TORON, Alberto Zacharias. Habeas Corpus. 2. ed. 2018

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2020 - 05 - 18

Habeas Corpus - Ed. 2018 PRIMEIRAS PÁGINAS

HABEAS CORPUS - ED. 2018

CONTROLE DO DEVIDO PROCESSO LEGAL: QUESTÕES CONTROVERTIDAS E DE PROCESSAMENTO DO WRIT Autor ALBERTO ZACHARIAS TORON © desta edição [2018]

Thomson Reuters Brasil Juliana Mayumi Ono Diretora responsável Rua do Bosque, 820 – Barra Funda Tel.: 11 3613-8400 - Fax: 11 36138450 CEP 01136-000 - São Paulo Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts.101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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edição:

ISBN 978-85-532-1063-3

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Habeas Corpus - Ed. 2018 CAPA

Capa

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Habeas Corpus - Ed. 2018 EXPEDIENTE

Expediente Diretora de Conteúdo e Operações Editoriais Juliana Mayumi Ono Editorial: Andréia Regina Schneider Nunes, Cristiane Gonzalez Basile de Faria, Diego Garcia Mendonça, Luciana Felix, Marcella Pâmela da Costa Silva e Thiago César Gonçalves de Souza Analistas Editoriais: André Furtado de Oliveira e Karolina de Albuquerque Araújo Assistente Editorial: Francisca Lucélia Carvalho de Sena Produção Editorial Coordenação Iviê A.M. Loureiro Gomes Líder Técnica de Qualidade Editorial: Maria Angélica Leite Analista de Projetos: Larissa Gonçalves de Moura Analistas de Operações Editoriais: Damares Regina Felício, Danielle Castro de Morais, Felipe Augusto da Costa Souza, Gabriele Lais Sant’Anna dos Santos, Maria Eduarda Silva Rocha, Mayara Macioni Pinto, Patrícia Melhado Navarra, Rafaella Araujo Akiyama e Thaís Rodrigues Sampaio Analistas de Qualidade Editorial: Carina Xavier, Daniela Medeiros Gonçalves Melo e Maria Cecilia Andreo Estagiários: Angélica Andrade, Beatriz Brandão Belo Bicker, Miriam da Costa Leite, Nicolas Eugênio Almeida Bueno e Sthefany Moreira Barros Capa: Chrisley Figueiredo Adaptação de capa: Brenno Stolagli Teixeira Controle de qualidade da Diagramação: Carla Lemos Equipe de Conteúdo Digital Coordenação Marcello Antonio Mastrorosa Pedro Analistas: Ana Paula Cavalcanti, Jonatan Souza, Luciano Guimarães e Rafael Ribeiro Administrativo e Produção Gráfica Coordenação

Mauricio Alves Monte Analistas de Produção Gráfica: Aline Ferrarezi Regis e Rafael da Costa Brito

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Habeas Corpus - Ed. 2018 FICHA CATALOGRÁFICA

Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Toron, Alberto Zacharias Habeas corpus [livro eletrônico] : controle do devido processo legal : questões controvertidas e de processamento do writ / Alberto Zacharias Toron. -- 2. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2018. 6 Mb ; ePUB 2. ed. em e-book baseada na 2. ed. impressa. Bibliografia. ISBN 978-85- 532-1063-3 1. Habeas corpus 2. Habeas corpus - Jurisprudência - Brasil 3. Habeas corpus - Leis e legislação Brasil I. Título. 18-16113 CDU-343.155(81)(094) Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Leis : Habeas corpus : Processo penal 343.155(81)(094) 2. Leis : Brasil : Habeas corpus : Processo penal 343.155(81)(094) Maria Paula C. Riyuzo - Bibliotecária - CRB-8/7639

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Habeas Corpus - Ed. 2018 PREFÁCIO

Prefácio Dentre as notas essenciais à conceituação de Estado de Direito, destaca-se o reconhecimento de que certos direitos dos cidadãos, indispensáveis à própria existência e ao desenvolvimento da personalidade humana, não podem ser ultrapassados no desempenho das funções estatais. De nada valeriam tais direitos ou liberdades individuais se, ao lado de sua proclamação, o texto constitucional não previsse, também, correspondentes instrumentos para a proteção do indivíduo, que são as garantias contra a utilização do poder arbitrário; sem elas, estaria certamente comprometida a efetividade daqueles mesmos direitos e liberdades. No direito moderno, desde a Magna Carta, de 1215, que assegurava o legal judgement como limite intransponível na relação entre o monarca e seus súditos, até a fórmula due process of law, da Emenda V à Constituição americana (1791), a maior e mais eficaz proteção do indivíduo é representada pelo processo justo – o fair trial – que os textos constitucionais e as cartas internacionais de direitos asseguram de forma destacada e irrestrita. No Brasil, essas ideias foram amplamente consagradas pela Constituição de 1988, que no seu artigo 5º – e também em outras disposições – estabelece um amplo e coordenado leque de garantias processuais, que se completam e interpenetram, dando lugar a um sistema circular apto a assegurar, em níveis cada vez mais elevados, a proteção do indivíduo por meio do processo jurisdicional, notadamente quando se trata de impor uma sanção criminal. É nesse quadro que se insere, como verdadeira regra de ouro de tal sistema, a previsão de um instrumento ágil, rápido, sem formalidades e acessível diretamente a qualquer cidadão, como é o habeas corpus. Inscrito em todos os nossos textos constitucionais republicanos – e só restringido pelo Ato Institucional n. 5, de 1969, o que é emblemático – o writ se presta a remediar, desde logo, quaisquer restrições e ameaças ao direito à liberdade de locomoção, o que enseja sua utilização, especialmente no processo criminal, para fazer prevalecer a legalidade da persecução, na ótica das garantias inerentes ao due process. Daí a grande oportunidade do trabalho de Alberto Zacharias Toron, em boa hora publicado pela Editora Revista dos Tribunais, sobre o “Habeas corpus e o controle do devido processo legal”, justamente quando algumas vozes – poucas, na verdade – tentam introduzir restrições ao emprego desse instrumento fundamental à tutela da liberdade e de outros direitos do indivíduo, em nome de uma hipotética e discutível eficiência da Justiça penal. Ao contrário, como bem evidencia o autor neste livro com expressivos exemplos, a utilização do habeas corpus para a tutela da liberdade de locomoção, que pode estar ameaçada desde os momentos iniciais da persecução, evita a perpetuação de ilegalidades, propiciando sejam elas sanadas com maior rapidez, tanto em favor do paciente, réu na ação penal, como também para se evitar a ocorrência da prescrição, que – aí sim – comprometeria a atuação eficaz da justiça. Advogado e professor, o autor consegue, com rara competência – bem sabida pelos que o conhecem – abordar o relevante tema com a paixão do criminalista, obstinadamente dedicado a fazer prevalecer os direitos de seus constituintes, sem deixar de lado a serena objetividade do acadêmico. Disso resulta um texto doutrinariamente profundo e, ao mesmo tempo, rico em informações advindas de uma profícua militância profissional.

O tratamento do tema é feito de forma didática e com frequente referência aos julgados dos nossos tribunais, especialmente os superiores, o que confere ao livro um notável valor para a prática da advocacia. Isso é muito evidente no capítulo VI, em que são abordadas as mais diversas situações em que a impetração do writ pode ser utilizada, com êxito, para reconhecer os mais frequentes vícios processuais, nas diversas fases da persecução. Trata-se, sem dúvida, de obra que muito enriquece a nossa literatura processual-penal. É com muita honra e satisfação que apresento este valioso trabalho ao público leitor, convencido da sua extraordinária relevância e certo do seu sucesso editorial. São Paulo, janeiro de 2017. Antonio Magalhães Gomes Filho Professor Titular de Processo Penal da  Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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Habeas Corpus - Ed. 2018 INTRODUÇÃO

Introdução “ESTADO DE DIREITO E DIREITO DE DEFESA. O Estado de direito viabiliza a preservação das práticas democráticas e, especialmente, o direito de defesa. Direito a, salvo circunstâncias excepcionais, não sermos presos senão após a efetiva comprovação da prática de um crime. Por isso usufruímos a tranquilidade que advém da segurança de sabermos que se um irmão, amigo ou parente próximo vier a ser acusado de ter cometido algo ilícito, não será arrebatado de nós e submetido a ferros sem antes se valer de todos os meios de defesa em qualquer circunstância à disposição de todos. Tranquilidade que advém de sabermos que a Constituição do Brasil assegura ao nosso irmão, amigo ou parente próximo a garantia do habeas corpus, por conta da qual qualquer violência que os alcance, venha de onde vier, será coibida” (STF, Pleno, Ministro Eros Grau, HC n. 95.009). Das origens inglesas ao cotidiano brasileiro, o habeas corpus percorreu um longo caminho. As discussões hoje travadas em torno da limitação deste writ mostram a sua importância. Da observação crítica da jurisprudência e do convite que recebi, em 2008, do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, para proferir aulas sobre o instituto do habeas corpus num projeto inédito levado adiante pela TV Justiça: “Saber Direito”, é que este trabalho nasce. A ideia do ministro era um curso que possibilitasse ao preso que o assistisse pela TV fazer uma petição de habeas corpus. Não soube de nenhum detento que o tivesse visto, mas emocionei-me quando, entusiasmado, o porteiro do hotel no qual me hospedo em Brasília (DF) comentou comigo sobre o programa. No mais, o grosso dos comentários veio de estudantes e colegas que, Brasil afora, manifestavam sua aprovação. Outra inspiração deste trabalho vem da luta que se trava contra as restrições que se erguem em relação ao manejo do habeas corpus ora mediante a construção de Súmulas da qual a 691 do STF é exemplo máximo ora por conta de interpretações que, a pretexto de sua “racionalização”, para evitar a chamada “banalização” ou a “desorganização do sistema recursal”, têm caráter perversamente restritivo. Pior: desorganizaram a sistemática do processo penal não conhecendo, mas concedendo ordens de habeas corpus “de ofício”, nos exatos termos em que pedidas pelo impetrante. Um contrassenso sem par; passamos a ir daqui para a Europa via China. Logo viveremos a realidade do “no day in court”, tão bem descrita por Sarah Staszak numa referência à contradição entre o proclamado acesso à Justiça e as políticas restritivas do Judiciário1. Arnaldo Malheiros Filho, há tempos alertava para o fato de o Judiciário ser, hoje, mais restritivo que o próprio AI-5, que não havia mexido no habeas em relação a crimes comuns2. A interminável Operação Lava Jato, em curso há mais de dois anos, e as propostas do Ministério Público Federal para estreitar o cabimento do habeas corpus deram o empurrão derradeiro para condensar as ideias postas neste trabalho. A bem da verdade, não são novas as investidas contra o habeas corpus como lembra Andrei Koerner em seu valioso trabalho de doutorado ao citar passagens de juristas como Candido Motta, o qual, na condição de Promotor do 2º Distrito da Capital (SP), reclamava da “amplitude” do habeas corpus, dizendo-o “incompatível com as dificuldades de formação da culpa” e mostrava seu inconformismo em ver “réus confessos postos em liberdade, ‘só pelo fato de não se ter concluído o sumário no prazo legal’”3. Também Pontes de Miranda retrata os acesos debates no Senado Federal, quando se promulgou a Lei n. 2.033, de 20 de setembro de 1871. Naquela oportunidade, o Ministro da Justiça Saião Lobato, depois Visconde de Niterói, salientava, como o fazem hoje alguns

juízes, a existência de “recursos ordinários” e a preocupação em não “tumultuar as formas do processo”4. Atento ao debate, o Supremo Tribunal Federal, é verdade que com oscilações5, começa a reagir ao estreitamento da garantia constitucional que o writ of habeas corpus representa e, no HC n. 110.118, determinou que o STJ conhecesse de uma impetração ali aforada que, a pretexto da “racionalização dos recursos”, não a conhecera6. Na oportunidade, o Ministro Celso de Mello disse que o habeas corpus representa “um patrimônio que deve ser preservado” e que “é grande a responsabilidade do STF de torná-lo acessível a qualquer pessoa”7. A ementa do julgado fala por si só: “o eventual cabimento de recurso especial não constitui óbice à impetração de habeas corpus, desde que o direito-fim se identifique direta e imediatamente com a liberdade de locomoção física do paciente”8. Este trabalho, com a organização diferente dos estudos acadêmicos que, em geral, muito cuidadosamente enfatizam o exame das condições da ação, legitimidade passiva e ativa, pressupostos processuais, como a capacidade postulatória etc., tem a proposta de reavivar a importância do habeas corpus e seu amplo espectro de incidência no processo penal brasileiro. E isso é feito, de um lado, centrado na ideia de que a efetiva proteção aos Direitos Fundamentais de natureza processual penal é essencial ao Estado de Direito. O foco no respeito ao devido processo legal, como essencial para a contenção dos desvios em matéria de repressão que, direta ou indiretamente, possam atingir a liberdade individual decorre da Constituição Federal e também dos compromissos internacionais que o Brasil assumiu. Muito a propósito, no voto que proferiu na AP-470, mais conhecida como “Mensalão”, o Ministro Celso de Mello, ao determinar a nulificação do processo em relação a um dos acusados, aliás, defendido pela Defensoria Pública da União, foi enfático ao dizer que “A justa preocupação da comunidade internacional com a preservação da integridade das garantias processuais básicas reconhecidas às pessoas meramente acusadas de práticas delituosas tem representado, em tema de proteção aos direitos humanos, um dos tópicos mais sensíveis e delicados da agenda dos organismos internacionais, seja em âmbito regional, como o Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 8º, §  2º, “d” e “f”), aplicável ao sistema interamericano, seja em âmbito global, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, n. 3, “d”), celebrado sob a égide da Organização das Nações Unidas...”9. De outro lado, a incursão em temas técnicos, caros no dia a dia forense e à própria cidadania, é realizada com os olhos postos em assuntos delicados como o âmbito de cognição do writ, seu manejo em concomitância com recursos ordinários, ou mesmo em substituição a estes, o relativo à exigência do assim chamado prequestionamento quando se trata de recurso ordinário constitucional, entre muitos outros. Aqui o exame da jurisprudência é central, pois o instituto do habeas edificou-se e se consolidou por meio da jurisprudência, que, em grande medida, lhe traçou a amplitude e os caminhos. Mas, deixando de lado o tecnicismo jurídico, o filósofo holandês Johan Huizinga tem uma proposta interessante para se encarar o processo: aprecia-o como um jogo. Diz que “a possibilidade de haver parentesco entre o direito e o jogo aparece claramente logo que compreendermos em que medida a atual prática do direito, isto é, o processo, é extremamente semelhante a uma competição, e isto sejam quais forem os fundamentos ideais que o direito possa ter”10. Visto pelo ângulo dos seus atores, sobretudo advogados e membros do Ministério Público, o processo penal é muito comumente, embora sem qualquer precisão científica ou preocupação ética, encarado como um jogo de ganhar ou perder; vitória ou derrota de um ou de outro. Nos processos julgados pelo Júri, isso fica muito evidente. Alfredo Tranjan em “A beca surrada” falanos disso com muita propriedade11. Claro que há uma simplificação grosseira das questões tratadas nas diferentes ações penais, pois centrada no ego dos seus atores. Sem embargo, há algo de aproveitável e que diz com a procura da igualdade de armas num confronto equilibrado e justo entre os contendores (fair trial). A pretensão punitiva de um lado e a defesa, de outro. É justamente sob o aspecto da eficácia defensiva que o habeas corpus desponta como um poderoso instrumento de proteção à liberdade de locomoção e, como pressuposto desta, também do próprio

direito de defesa como um todo, do inquérito policial até os recursos, passando pela ação penal. Daí a correção da lição de Nereu Giacomolli quando sustenta que “os remédios jurídicos fundamentais são os instrumentos processuais disponíveis para garantir a efetividade dos direitos fundamentais, tais como o habeas corpus e o mandado de segurança”12. No mais, valha-nos a sábia advertência de Pontes de Miranda, segundo a qual, “sempre que algum povo [ou regime] permite constrangimento à liberdade física sem a necessária tutela jurídica dos sofredores, começa a decadência ou a mudança violenta”13.

FOOTNOTES 1

. No day in Court: access to Justice and the Politics of Judicial retrenchment. Nova Iorque, Oxford University Press, 2015. Especificamente sobre as restrições ao habeas no Brasil ver o meu: “Habeas corpus está sendo amesquinhado”, disponível em: [www.conjur.com.br], de 20 de maio de 2010.

2

. Que saudades do AI-5! Folha de São Paulo, ed. de 21/08/2007, p. A3 (Tendências e Debates).

3

. Habeas corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920), São Paulo, ed. IBCCrim, 1999, p. 223. Borges da Rosa é outro jurista que não concordava com o emprego do habeas “para colocar fora do alcance da Justiça um criminoso indefensável, só porque o juiz não ultimou a formação da culpa dentro dos prazos legais”. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. Atualizada por Angelito A. Aiquel, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1982, p. 778.

4

. História e prática do habeas corpus. 8ª ed. São Paulo, ed. Saraiva, 1979, I/134.

5

. Cf. HC n. 100.319, 1ª T., rel. originário Min. Marco Aurélio; rel. p/ o ac. Min. Luiz Fux, Dje 22/6/11. Neste julgado inadmitiu-se o manejo do HC substitutivo do recurso ordinário por configuração da “banalização da garantia constitucional”.

6

. Tratava-se do HC n. 176.122, STJ, 5ª T., rel. Min. Gilson Dipp; DJe 17/8/2011, assim ementado: “Conquanto o uso do habeas corpus em substituição aos recursos cabíveis – ou incidentalmente como salvaguarda de possíveis liberdades em perigo – crescentemente fora de sua inspiração originária tenha sido muito alargado pelos Tribunais, há certos limites a serem respeitados, em homenagem à própria Constituição, devendo a impetração ser compreendida dentro dos limites da racionalidade recursal preexistente e coexistente para que não se perca a razão lógica e sistemática dos recursos ordinários, e mesmo dos excepcionais, por uma irrefletida banalização e vulgarização do habeascorpus”.

7

. STF, 2ª T, j. em 22/11/2011, rel. originário Min. Ricardo Lewandowski, rel. p/ ac. Min. Joaquim Barbosa, DJe 08/08/2012.

8

. HC n. 110.118, cit.

9

. Acórdão da Ação Penal 470, fl. 52.215, grifos do original.

10

. Homo Ludens. 2ª ed. São Paulo. ed. Perspectiva. 1980, p.  87. Vai na mesma linha Frederick Schauer, consagrado professor de filosofia do direito de Harvard, no seu Playing by the Rules (trad. Livre: Jogando de acordo com as regras, Clarendon Press, Oxford, 2002).

11

. Rio de Janeiro, ed. Civilização Brasileira, 1994, p. 44 e ss.

12

. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo. ed. Atlas, 2014, p. 80.

13

. História e prática do habeas corpus, ob. cit., I/5.

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Habeas Corpus - Ed. 2018 I. ATUALIDADE E IMPORTÂNCIA DO HABEAS CORPUS

Sumário: 1. Estado Democrático de Direito e flexibilização das garantias em prolda segurança. 2. Defensivismo dos Tribunais Superiores e restrição ao habeascorpus. 3. Reações a favor e contra o habeas corpus. Da preciosa lembrança de Nelson Câmara - um verdadeiro resgate histórico - sobre a eficaz utilização entre nós do habeas corpus como instrumento de libertação dos escravos, que o engenho e a combatividade do “advogado dos escravos”, Luiz Gama1, fizera, passando pelos truculentos episódios políticos da República Velha, que levaram Rui Barbosa, em inúmeras oportunidades, ao Supremo Tribunal Federal para conjurar violências2, até o importante registro de Louis Begley sobre o manejo do writ nos EUA para garantir o devido processo legal aos presos na Base Naval de Guantánamo3, permanecem vivas as palavras de Manoel Godofredo d’Alencastro Autran sobre ser o habeas corpus “eficaz garantia contra os abusos do poder, ela em si contém o que há de mais precioso para o cidadão”4. No caso Norte Americano, de extrema gravidade para um país que sempre se autoproclamou defensor dos direitos humanos e da democracia, onde os prisioneiros de Guantánamo, como os escravos de outrora, tornaram-se “não-pessoas”, a Suprema Corte, no caso Hamdan vs. Rumsfeld (2006), rejeitou o argumento do Pentágono de que a jurisdição da Corte fora suplantada pela Lei de Tratamento de Detentos (Detainee Treatment Act – DTA, de 2005). Segundo esta lei, somente o Tribunal Regional do Distrito de Columbia ficava autorizado a fazer reexames de decisões dos Tribunais para Revisão da Condição de Combatentes. A Suprema Corte acabou interpretando “a cláusula de destituição de jurisdição como inaplicável a um processo de habeas corpus que, como o de Hamdan, tivera início antes da aprovação da lei”5. Begley destaca que a Corte, em adendo, determinou que a comissão militar estabelecida pelo Presidente não tinha poderes para julgar Hamdan porque sua estrutura e seus procedimentos violavam tanto o Código Uniforme de Justiça Militar como as quatro Convenções de Genebra assinadas pelos EUA em 1949. Entre as falhas processuais apontadas pela Corte “estavam a impossibilidade de o acusado e seu advogado civil saberem quais evidências (leia-se, provas) estavam sendo apresentadas durante qualquer parte do processo, cujo acesso o oficial presidente decidiu lhes proibir...”6. Ora, as palavras de Louis Begley, associadas ao que ocorreu no histórico caso do capitão Dreyfus, há mais de cem anos na França, no qual também se permitiu o julgamento com provas secretas, dão a exata importância da garantia do habeas corpus e, igualmente, de se zelar pela sua vigência em toda a sua plenitude. É que, justamente hoje, também entre nós, quando são feitos inúmeros acordos por conta das assim chamadas delações premiadas, a pretexto de se proteger os delatores, impede-se que os advogados dos acusados/delatados tenham acesso ao conteúdo das declarações incriminatórias e às sentenças que as acolhem para extinguir a punibilidade do delator, em virtude da prova produzida em segredo contra o delatado. Assim, na contraface, selase o destino dos acusados delatados sem, para usar um eufemismo, o pleno contraditório. Expressivo, a propósito, os dizeres de um acórdão pioneiro do Tribunal Regional Federal da 3ª Região: “6. Se as declarações do réu delator servirão como prova, e terão influência no convencimento do Julgador, não há como negar o direito de acesso dos acusados, sob pena de frontal violação ao direito ao contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, assegurado pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal. 7.  Entendimento contrário, ou seja, admitir-se a legalidade de sigilo dos depoimentos incriminadores corresponderia a dar foros de validade e

possibilitar a condenação de alguém com base em ‘prova secreta’”7. Hoje, com a disseminação das delações premiadas, não é tão frequente a negativa de acesso ao conteúdo destas. Todavia, é comum que se retarde o acesso até que venham a ser homologadas. Como este ato nem sempre se dá celeremente, entrementes pessoas são presas e até processadas sem saber no que consiste o teor da prova incriminatória. Na Operação Lava Jato, conhecida no exterior como Car Wash Operation, isso se deu quando a primeira leva de grandes empresários foi presa em 14 de novembro de 2014. Na Reclamação n. 24.116, o Min. Gilmar Mendes reafirmou que o sigilo da delação não pode ser oposto ao delatado desde que estejam presentes dois requisitos: Um positivo: o ato de colaboração deve apontar para a responsabilidade criminal do requerente (Inq 3.983, Rel. Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 3.3.2016). Outro, negativo: o ato de colaboração não deve ser referente à diligência em andamento8. Pensando o tema de maneira mais ampla, tinha razão Raymundo Faoro quando, no contexto da ditadura militar, assinalou que “o habeas corpus não é só uma reclamação da sociedade civil, mas uma necessidade do próprio governo, pois a boa autoridade só pode vigiar a má autoridade pelo controle das prisões, proporcionado pelo habeas corpus”9. Agregue-se que, além das prisões, o habeas é importante pelo controle da legalidade das investigações e das ações penais, uma vez que estas, ainda que de forma mediata, podem atingir a liberdade e, de forma drástica, também a dignidade do ser humano. Numa palavra, se o Estado quiser cumprir sua finalidade, “precisa subministrar recursos idôneos para conseguir a mais completa proteção dos direitos individuais”10, inclusive os que tem por escopo proteger o indivíduo no contexto do processo judicial. Como adverte importante julgado do TJRS, relatado pelo Des. Nereu Giacomolli, o habeas corpus é fundamental para fazê-lo, inclusive com vistas a garantir o devido processo legal, isto é, como instrumento de collateral attack11. De fato, e para exemplificar, quando se trata do controle da justa causa para a ação penal, o habeas corpus tem importante papel tanto para impedir uma futura prisão injusta, como para se evitar a degradação moral do indivíduo. Idem quando se trata da verificação da aptidão formal da denúncia. Disse-o, em momento de grande inspiração, o Ministro Gilmar Mendes: “a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana...”12. De verdade, não poucas vezes a mídia, na ânsia de notícias impactantes, transforma o suspeito em culpado. Com isso, no dizer de Aury Lopes Júnior, “a pena pública e infamante do Direito Penal pré-moderno foi ressuscitada e adaptada à modernidade, mediante a exibição pública do mero suspeito nas primeiras páginas dos jornais ou dos telejornais”13.

1. Estado Democrático de Direito e flexibilização das garantias em prol da segurança A reconstrução do Estado Democrático de Direito é fundamental para o respeito aos direitos e garantias individuais. Porém, por si só, não é condição suficiente. Ora porque, como salienta Zaffaroni, temos o Estado de Polícia sempre latente, ora porque em nome do combate ao narcotráfico, do crime organizado nacional e transnacional, do terrorismo, da lavagem de dinheiro, dos crimes econômicos etc., tem-se permitido uma larga flexibilização, quando não a própria aniquilação, das garantias individuais de natureza judicial, entre as quais despontam a da amplitude do direito de defesa (CF, art. 5º, LV) e a do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). Por paradoxal que possa parecer, sob o manto legitimador da democracia, e em nome da repressão à criminalidade, ou da segurança social, têm sido praticados inomináveis abusos. Curioso é que não partiram apenas de policiais federais ou estaduais, mas, na grande maioria dos casos, decorreram de mandados expedidos pelo próprio Judiciário Federal e com o aval do Ministério Público Federal14. Assim é que nas grandes Operações da Polícia Federal tivemos mandados de prisões temporárias expedidos a granel, como se a prisão fosse um mero acessório das investigações e não uma medida altamente invasiva e só pertinente diante da imprescindibilidade para as investigações (Lei n. 7.960/89, art.  1º, inc. I), além de buscas e

apreensões realizadas sem qualquer especificação quanto ao objeto, inclusive em escritórios de advocacia, escutas deferidas ora sem fundamentação, ora com base apenas em denúncias anônimas etc. Agora virou moda, a determinação da condução coercitiva do investigado, como que para forçá-lo a falar ou não lhe dar chance de preparar a defesa, mesmo que ele nunca tenha sido previamente intimado para depor, em franco desalinho com a regra do art. 260 do CPP15. Mas foi por meio do habeas corpus que se conseguiu quebrar a espinha dorsal de uma maneira policialesca de se investigar: prender e não permitir que os advogados tivessem acesso aos autos; prender temporariamente como forma de facilitar a obtenção de confissões e a generalização de escutas, muitas vezes abusivas. No julgamento do habeas corpus n. 91.386, concedido no caso da Operação Navalha para revogar a prisão preventiva de um dos investigados, o Ministro Gilmar Mendes advertiu para que “a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole autoritária”. Em outra passagem, realça que a escorreita aplicação das garantias constitucionais “é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie”16. Nessa linha, concluiu lembrando o escólio de Claus Roxin, para quem “o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição, uma vez que nele reside a atualidade política da Carta Fundamental”17. Por outro lado, o eterno drama da Justiça Penal, sintetizado no título da obra de Frederico Stella “Justiça e modernidade: a proteção do inocente e a tutela das vítimas”18 dá o tom das marchas e contramarchas, dos dias atuais, sobretudo numa sociedade democrática. A contraposição dos direitos e garantias individuais e os mecanismos de defesa social representam uma discussão clássica no âmbito do Processo Penal e do próprio Direito Constitucional, uma insuperável tensão dialética em razão de o sistema jurídico repousar em princípios antinômicos. O dilema “moderno” nada mais reflete do que a tensão entre a segurança coletiva e as liberdades individuais, entre o garantismo e a efetividade do processo, como anotam Américo Bedê Júnior e Gustavo Senna19. No dizer de Bobbio, “valores antinômicos, no sentido de que a garantia da liberdade comumente causa dano à segurança e a garantia da segurança tende a restringir a liberdade...”20, e que, por isso mesmo, nos obrigam, a cada passo, a estar atentos para esta equação e acertá-la de acordo com as exigências de cada momento histórico. Sem, porém, abrir mão das garantias fundamentais, sob pena de construirmos um futuro sem nenhuma liberdade e segurança. Mesmo para quem pensa apenas em termos de segurança é evidente que há uma dupla dimensão desta. De um lado, como proteção contra agressão de terceiros, o que, grosso modo, chamaríamos de proteção contra a criminalidade. Mas, de outro, este o alerta de Stella, contra a agressão dos agentes estatais. É dizer, se de um lado carecemos de leis e esforços para a defesa contra a criminalidade, de outro, necessitamos igualmente de instrumentos que nos resguardem de abusos e ilegalidades praticadas por agentes do próprio Estado, sobretudo os incumbidos da repressão. O habeas corpus, entre nós, tem sido historicamente o grande instrumento que resguarda o cidadão de abusos praticados por agentes do sistema penal, de policiais a juízes, passando por membros do Ministério Público e até agentes do sistema penitenciário. Em outras palavras, o habeas corpus é, entre nós, o remédio que resguarda aquilo que Gilmar Mendes, na linha da doutrina alemã, chama de direitos fundamentais de caráter judicial (Justizgrundrechte21).

2. Defensivismo dos Tribunais Superiores e restrição ao habeas corpus No Brasil, além das questões teóricas relativas à discussão sobre o balanceamento entre os instrumentos de defesa do indivíduo e da coletividade, há problemas funcionais que representam um acréscimo ao tema. Com propriedade, Humberto Gomes de Barros, ex-Presidente do Superior Tribunal de Justiça, advertiu para a existência de uma “jurisprudência defensiva”, consistente na criação de “pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos”22. Prisioneiro do defensivismo, completa o Ministro, o STJ “deixa de solucionar questões fundamentais para esconder-se no escapismo do ‘não conheço’”. Após a promulgação da Constituição de 1988, que trouxe consigo um exuberante elenco de direitos e garantias individuais, tivemos paralelamente a edição de inúmeras leis seja para

proteger o meio ambiente, seja para alcançar com mais eficácia a criminalidade organizada, além do criminoso do colarinho branco. No dizer de Luiz Luisi “de um lado as Constituições contemporâneas se fixam os limites do poder punitivo do Estado, resguardando as prerrogativas individuais; de outro lado inserem normas propulsoras do direito penal para novas matérias, de modo a fazê-lo um instrumento de tutela de bens cujo resguardo se faz indispensável para a consecução dos fins sociais do Estado”23. Em outra passagem, com apoio na lição de Ferrando Mantovani, salienta o mestre gaúcho que esse aspecto criminalizador das Constituições mais recentes é visto como uma função propulsora da interferência criminal, objetivando “o cumprimento dos deveres individuais de solidariedade econômica e social” e, também, a remoção dos obstáculos econômicos e sociais “que se opõem a homogeneização e predispõem à criminalidade”24. A ênfase constitucional às regras penais dá lugar ao que Francesco Palazzo denomina de “obblighi legislativi di penalizzazione”25, de modo a “oferecer a imagem de um Estado empenhado e ativo (inclusive penalmente) na persecução de maior número de metas propiciadoras da transformação social”26. A propósito, Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini, tratando das obrigações constitucionais de tutela penal, salientam que excepcionalmente ampla é a gama de obrigações dessa natureza contida na Constituição brasileira de 1988 que, não raro, traz especificadas, com indicações relativas aos destinatários dos preceitos, “al dosaggio o al tipo di pena, all’esclusione di talune cause di estinzione del reato o della pena etc.”27 Sem embargo, não foram apenas novas leis criminalizando o “colarinho branco” ou a dita “criminalidade dourada”, mas órgãos de controle, repressão e persecução como a Polícia, Procuradorias das diferentes Fazendas, Ministérios Públicos dos Estados e o Federal, entre outros, com nova mentalidade e vontade política, que passaram a investigar condutas de um segmento social que até então eram toleradas ou tidas como destituídas de relevo. Enfim, o agigantamento da atuação repressiva, sobretudo no que diz com a criminalidade do colarinho branco e a organizada, nacional e transnacional, implicou, como parece óbvio, no correlato e imprescindível crescimento da atividade defensiva. Assim, não é de se estranhar que o número de impetrações de habeas corpus tenha crescido. Aliás, o fato é positivo, pois revela uma faceta democrática da sociedade, uma vez que o incremento do funcionamento do sistema punitivo veio acompanhado da instalação e fortalecimento das Defensorias Públicas nos Estados e da União, todas com extraordinário afinco na defesa de réus pobres, antes, salvo honrosas exceções, mal defendidos. Afora o mais, as hipóteses de arbitrariedade, quer as representadas por prisões ilegais ou o indeferimento de vista dos autos do inquérito para o advogado do investigado (às vezes preso) ou, ainda, de toda sorte procedimentos viciados, são tantas que, como não poderia deixar de ser, potencializaram o uso do writ. Este como, lembrado por Maria Thereza de Assis Moura, é cabível para tutelar a liberdade física do indivíduo “de modo mediato ou imediato”28. Daí servir “como meio de impugnação da validade de atos de procedimento no qual se apura possível prática de crime, e do qual pode advir restrição à liberdade de locomoção”29. Ocorre, porém, que houve protestos contra decisões garantidoras emanadas principalmente do Supremo Tribunal Federal, vindos, sobretudo, por parte dos juízes atingidos nos seus arroubos autoritários. Sintomático que justamente os que mais eram apontados como autoridades coatoras, passaram a criticar o fato de um “simples ministro”, numa decisão monocrática, poder paralisar uma investigação ou mesmo uma ação penal. Segundo essas vozes, era inconcebível que um magistrado da Suprema Corte tivesse tanto poder e, de outro lado, que o habeas corpus fosse utilizado com tanta amplitude, numa clara contrariedade não só às concessões de liminares, mas à autoridade judicante dos juízes da Suprema Corte e ao próprio dispositivo legal que autoriza o trancamento de um procedimento carente de justa causa. Representantes do Ministério Público Federal vieram na mesma toada e uma parte da imprensa também. O discurso era um só: a luta contra a impunidade; o excesso de recursos etc. Começava aí uma reação à garantia do habeas corpus e, em certa medida, à própria autoridade do STF, como se viu de maneira mais emblemática no caso da Operação Satiagraha.

Agora, com a Operação Lava Jato, o Ministério Público Federal apresenta à nação uma série de medidas, um autodenominado “pacote anticorrupção” e, enrustido neste, vamos encontrar a proposta de se reduzir o espectro de incidência do habeas corpus. Assim, não se poderá mais conceder a ordem de ofício, salvo “quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente”. Vale dizer, se o relator do habeas no Tribunal verificar, em caso de paciente solto, a existência de uma nulidade na ação penal, deverá ficar de mãos atadas. É como se o sistema punitivo pudesse passar a conviver com ilegalidades e, pior, corrigíveis, quem sabe, quando já alcançada a prescrição. Como veremos adiante, no estudo da evolução histórica do habeas corpus entre nós, já se tentou isso antes, no Império, com a Lei n. 2033, de 1871, proibindo-se o manejo do writ contra sentenças e despachos de pronúncia, “qualquer que seja a arguição contra tais atos, que só pelos meios ordinários podem ser nulificados” (art. 18, § 2º). Os tribunais deram de ombros à regra e concediam ordens de habeas corpus sem qualquer embaraço (vide infra). Não faltaram os áulicos da jurisprudência defensivista (e não apenas no STJ), que começaram a erguer suas vozes. Ilustra o descontentamento com a amplitude do habeas a declaração do então presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Desembargador Nelson Calandra (TJSP), o qual sustenta que o instituto foi sendo banalizado ao longo dos anos. Nas suas palavras, “O habeas corpus foi engendrado como uma ferramenta constitucional para proteger o direito de ir e vir”. Entretanto, disse ele, passou a ser usado para várias outras situações, como transferência de presídio ou progressão da pena. “Isso desvirtua a ferramenta constitucional e faz com que se multiplique o número de habeas corpus”30. Em julgamentos não é incomum a mesma grita. Eloquente, a propósito, o voto do Ministro Gilson Dipp no HC n. 128.590, quando aproveitou o ensejo para praguejar o uso excessivo do habeas corpus “por uma irrefletida banalização e vulgarização”, além da “desmoralização” das instâncias ordinárias de processo e julgamento. O site oficial do STJ deu a notícia do julgamento e veiculou a advertência do Ministro no sentido que a utilização indiscriminada do habeas corpus, em substituição a outros mecanismos processuais, pode levar à “desmoralização do sistema ordinário”31. Em nova notícia, o mesmo site, em manchete, anunciou: “STJ supera 200 mil habeas corpus”32. Seria de se perguntar se a ideia de “desmoralização das instâncias ordinárias” estaria, por acaso, afinada com a mesma grita autoritária de alguns “superjuízes” das Varas Federais especializadas no combate à Lavagem de Dinheiro, criadas pelo Ministro Dipp, contra as ordens de habeas corpus que o Supremo Tribunal Federal concedeu ora para determinar, por exemplo, que se desse vista dos autos de inquérito policial à defesa33, ou para declarar a ilegalidade de provas obtidas ao arrepio do devido processo legal34? É de se perguntar, por outro lado, o que há de desmoralizante para as instâncias de acertamento dos fatos, isto é, de piso, quando, por exemplo, se concede habeas corpus para trancar uma ação penal carente de justa causa? O erro e a injustiça deveriam subsistir para se preservar o “bom nome” dessas instâncias? É evidente o absurdo do raciocínio. Por outro lado, como aprofundaremos adiante, não custa lembrar ser princípio sedimentado na jurisprudência brasileira que a recorribilidade da decisão, ou a efetiva pendência de recurso contra eles, não inibe a admissibilidade paralela do habeas corpus35. Daí a torrente de julgados no sentido de ser “cabível habeas-corpus mesmo quando pendente julgamento de recurso de apelação que veicule a mesma questão”36, ou quando “evidenciado o constrangimento ilegal, cabe o writ, ainda que pendente apelação da sentença condenatória”37. A despeito dos argumentos técnicos em prol do emprego amplo do habeas corpus, a primeira versão do Projeto de Reforma do Código de Processo Penal oriunda do Senado38 (2010), estreitava, num inadmissível amesquinhamento, a garantia do habeas corpus, que ficaria confinado aos casos de prisão e só nestes se poderia arguir a nulidade do processo. Dessa forma, quando os réus estivessem soltos o tema da nulidade processual, leia-se, do desrespeito ao devido processo legal, ficaria de fora do alcance do writ. Idem a questão da falta de justa causa, cláusula aberta que o CPP, promulgado sob o Estado Novo getulista, introduziu de modo a permitir que se conjurassem ações penais abusivas, ou mesmo investigações criminais indevidas, que, mesmo mediatamente, pudessem representar uma ameaça à liberdade de ir e vir39. Sintomático que o Ministério Público

Federal, vencida a proposta do Anteprojeto do CPP, venha, agora, com o pacote denominado de “Medidas anticorrupção”40, a reintroduzir tais propostas.

3. Reações a favor e contra o habeas corpus Houve, no caso do estreitamento do habeas, uma grita generalizada de parte da imprensa, dos advogados e de políticos, de modo a fazer a ideia restritiva do Projeto do novo Código de Processo Penal refluir. Funcionou. Na aprovação final no Senado, o habeas foi restabelecido nos moldes e na extensão do que é hoje. Como a discussão se reiniciará na Câmara Federal, é renovada a importância da vigilância e de se demonstrar o significado singular no padrão expresso na conhecida frase de Montesquieu segundo a qual “pouvoir arret pouvoir”. Sim, porque o habeas é uma espécie de instrumento de contrapoder nas mãos do cidadão para deter o abuso ou o desvio dos agentes incumbidos de aplicar o direito penal. Sem embargo, com o recente projeto de iniciativa popular conduzido pelo Ministério Público Federal para maior eficácia no combate à corrupção, volta à baila a proposta de estreitamento do habeas corpus. Com a onda punitiva vigorante nas águas da Lava Jato e o número expressivo de assinaturas colhidas, não é de todo improvável que o Projeto do Código de Processo Penal fique esquecido em prol de mais uma reforma pontual do atual diploma processual. A proposta legislativa, ao menos no que diz com o habeas corpus, é manifestamente inconstitucional e precisa ser devidamente debatida técnica e politicamente, sob pena de passar no debate legislativo sem maior atenção. Está em jogo o tipo de Estado em que queremos viver, é dizer, mais autoritário ou garantidor de direitos. Não por acaso o Deputado Federal Onix Lorenzoni, no relatório que apresentou nos trabalhos da Comissão que estuda as assim chamadas “10 Medidas Anticorrupção”, deixou de fora as propostas que alteravam a sistemática do habeas corpus e, no ponto, o Plenário da Câmara Federal o acompanhou. No campo da Justiça Penal, no qual a ideia de Justiça em sentido substantivo deveria imperar, o importante não deveria ser o instrumento utilizado para se veicular o pleito, mas a sua procedência ou não. Isso até em homenagem à tão decantada instrumentalidade das formas que é normalmente invocada apenas para flexibilizar garantias de defesa. Daí a atualidade e importância do pronunciamento do Ministro Marco Aurélio no magnífico voto vencedor proferido no HC n. 86.864-SP(MC) sobre o habeas corpus e a postura do juiz quando vai julgá-lo: O habeas corpus é uma ação constitucional de envergadura maior, e o é porque inerente a um princípio constitucional explícito, implícito, e diria próprio ao direito natural, que é o princípiobase da vida: a liberdade. Não sofre o habeas corpus qualquer peia. Contenta-se a ordem jurídica constitucional com o concurso de três elementos, envolvido aí o próprio Estado-Juiz: o primeiro, ter-se como configurada uma ilegalidade; o segundo, o cerceio ou a ameaça – contenta-se a ordem jurídica constitucional com a simples ameaça de cerceio à liberdade de ir vir –; e o terceiro, para chegar-se ao objeto buscado pelo habeas corpus, a existência de um órgão a que se possa recorrer41. O Juiz, na precisa dicção de Renato Nalini e Xavier de Aquino, “tem de se conscientizar que o habeas corpus, não é processo como outro qualquer, em que o formalismo pode impedir se alcance o âmago do conflito. Não. Ele é remédio rápido, expedito, acessível a todos, quando exista constrangimento efetivo ou potencial. Reduzir o habeas corpus a um procedimento calcado em regras inflexíveis, válidas para os direitos indisponíveis, constitui selar-lhe a morte”42. Nos dias em que correm, no qual tanto se fala na celeridade do processo, inclusive para que a punição não tarde, não há porque restringir o campo do habeas corpus que representa a celeridade no campo defensivo.

FOOTNOTES 1

. O advogado dos escravos: Luiz Gama, São Paulo, ed. Lettera.doc, 2010, v. p. 178 e ss.

2

. Cf. Liberdade: teoria e lutas, Fontes de Alencar (Brasília, ed. Brasília Jurídica, 2000); O Supremo Tribunal Federal e a reconstrução da cidadania, Emília Viotti da Costa (2ª ed. São Paulo: ed. UNESP, 2006, p. 27/28 e 32 e ss.) Leda Boechat Rodrigues, História do Supremo Tribunal Federal, t. III/1910-1926, Rio de Janeiro, ed. Civilização Brasileira, 1991, p. 32 e ss. e A História das constituições brasileiras de Marco Antonio Villa (São Paulo, ed. Leya, 2011, p. 133/135).

3

. O caso Dreyfus: Ilha do Diabo, Guantánamo e o pesadelo da história, São Paulo, ed. Cia. das Letras, 2010, p. 46.

4

. Do habeas corpus e seu recurso, Rio de Janeiro, B.L. Garnier Livreiro Editor, 1879; apud: O advogado dos escravos, cit., p. 186.

5

. O caso Dreyfus, cit., p. 46.

6

. O caso Dreyfus, cit., p. 47.

7

. TRF-3, 1ª T, HC n° 2009.03.00.013589-7/SP, rel. Juiz Convocado Márcio Mesquita, DJ 03/09/2009. Sobre o tema, é imperiosa a leitura de “A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal” de Heloisa Estellita, co-impetrante do writ citado; in: Boletim do IBCCrim, ano 17, n. 202, set/2009, p. 2.

8

. DJe 27/05/2016.

9

. “O Comissário Fontana e o habeas corpus”, Elio Gaspari, artigo publicado na Folha de S. Paulo, edição de 13/07/2008, p. A14.

10

. Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo, ed. Saraiva. 1993, p. 52.

11

. TJRS, 3ª Câmara Criminal, rel. Des. Nereu Giacomolli, HC n. 70040380909, vu, j. em 13/01/2011.

12

. Voto-condutor do HC n. 102.477, 2ª Turma, DJe 10/08/2011.

13

. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 4ª ed., Rio de Janeiro, ed. Lumen Juris, 2006, p. 192.

14

. Cf. Gilmar Mendes em Estado de Direito e jurisdição constitucional – 2002/2010, São Paulo, ed. Saraiva, 2011, p. 31.

15

. O Partido dos Trabalhadores ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 395 discutindo a incompatibilidade parcial da regra prevista no art. 260 do CPP com o direito de não ser compelido a fazer prova contra si mesmo (art.  5º, inc. LXIII, da Constituição Federal). A liminar foi deferida monocraticamente pelo Min. Gilmar Mendes por entender violado o direito à liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade (j. em 18/12/2017; DJe 01/02/2018).

16

. STF; 2ª T.; j. em 11/03/2008; DJe 15/05/2008.

17

. Idem.

18

. Giustizia e modernitá: La protezione dell’inocente e la tutela delle vitime; Milão, ed. Giuffrè, 2002, p. 7.

19

. Princípios do processo penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo. ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 23.

20

. Teoria dell’ordinamento giuridico, trad. livre, Turim, G. Giappichelli ed., 1960, p. 93.

21

. Curso de direito constitucional. 5ª ed., São Paulo, ed. Saraiva, 2010, p. 587.

22

. Superior Tribunal de Justiça versus segurança jurídica: a crise dos 20 anos. Revista do Advogado, ano XXIX, maio de 2009, p. 60.

23

. Os princípios constitucionais penais, Porto Alegre, ed. Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 10.

24

. Idem, p.  41/42. As expressões em itálico são do mestre italiano e podem ser encontradas em: Diritto Penale (Pádua, ed. CEDAM, 1979, p. 25).

25

. Prefácio à tradução italiana da obra de Mireille Delmas-Marty: Dal codice penale ai diritti dell’uomo, tit. or.: “Le flou du droit. Du code pénal aux droits de l’homme”, trad. Alessandro Bernardi, Milão, ed. Giuffrè, 1992, p. X.

26

. Valores constitucionais e direito penal, trad. Gerson Pereira dos Santos, ed. Sergio Antonio Fabris, 1989, p.  103. Em trabalho anterior sustentei a idéia de que o direito penal não se presta a ser propulsor de transformações sociais. Como procurei demonstrar, “a ditadura, modalidade de violência política, foi ultrapassada pela organização dos mais diferentes setores da sociedade civil. A concentração do sistema fundiário não será resolvida por meio de medidas penais, mas por uma rígida vontade política de se reorganizar a estrutura de propriedade rural. E a maior violência de todas: A FOME também não será debelada pelo sistema punitivo. Este, quando muito, pode reforçar a proteção de bens jurídicos que, por via oblíqua, venham refletir na efetivação de políticas sociais. Nunca, porém, é demais advertir que o pampenalismo, isto é, a utilização do Direito Penal como uma espécie de “panacéia para todos os males”, quando não traduz um abastardamento deste instrumento de controle social, pode representar uma completa desmoralização decorrente da sua inoperância e ineficácia” (“Prevenção e retribuição na lei dos crimes hediondos: o mito da repressão penal”, em: Justiça Penal, coord. Jacques de Camargo Penteado, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1993, p. 90).

27

. Em tradução livre: “à dosagem ou ao tipo de pena, à exclusão de alguma causa de extinção do crimeou da pena etc.”. Corso di diritto penale, Milão, ed. Giuffrè, 1999, p. 129.

28

. Habeas Corpus na reforma do Código de Processo Penal. Revista do Advogado, ano XXXI, setembro de 2011, p. 84.

29

. STJ, 6ª T., HC n. 80.632, DJ 18/02/2008. Neste julgado a Ministra cita um vasto número de precedentes. No mesmo sentido, Ada Pellegrini Grinover e Outros, em Recursos no processo penal, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 6ª ed., 2009, p. 272.

30

. Revista eletrônica Conjur, www.conjur.com.br, notícia veiculada em 01/04/2011: “Aumento do uso de HC divide opiniões”.

31

. “Gilson Dipp critica utilização excessiva de habeas corpus”, site do STJ, www.stj.jus.br, seção de notícias, dia 22/06/2011, às 9:06

32

. www.stj.jus.br, notícia de 30/05/2011.

33

. STF, 1ª T., HC n. 82.354-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 24/09/2004.

34

. STF, 1ª T., HC n. 81.294-SC, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 01/02/2002.

35

. RHC n. 82.045, DJ 25/10/2002; HC n.º 82.968/SP, ambos relatados pelo. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 20/06/2003 e STJ HC n.º 77703/SP, rel. Min. Laurita Vaz, DJ 29/06/2007. Na doutrina, Eugênio Pacelli é incisivo sobre o cabimento do habeas concomitantemente ao recurso, ou mesmo no lugar deste (Curso de Processo Penal. 18ª ed. São Paulo, ed. Atlas, 2014, p. 1.020).

36

. HC n.º 77858/AM, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 12/02/1999.

37

. RTJ 125/157, rel. Min. Carlos Madeira.

38

. A Comissão para a elaboração do Anteprojeto da Lei de Reforma do CPP foi coordenada pelo Min. Hamilton Carvalhido (STJ) e foi composta pelos seguintes membros: Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho, Eugenio Pacelli de Oliveira, Fabiano Antonio Martins Silveira, Felix Valois Coelho Júnior, Jacinto Nelson Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.

39

. Sobre a crítica quanto ao habeas corpus no Projeto inicial do CPP, ver o meu Habeas Corpus está sendo amesquinhado, publicado no site da revista eletrônica Conjur em 20/05/2010 (www.conjur.com.br) e Arnaldo Malheiros Filho no Boletim do IBCCrim: Habeas Corpus: estorvo ao Estado Policial (Ano 18, edição especial de agosto de 2010, p. 6/7).

40

. Cf. www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas

41

. STF, Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 16/12/2005.

42

. Manual de processo penal. 3ª ed. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais. 2009; p. 401.

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2020 - 05 - 18

Habeas Corpus - Ed. 2018 II. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO HABEAS CORPUS NO BRASIL

Sumário: 1. As origens inglesas. 2. O Brasil Colônia e as Cartas de Seguro. 3. A Carta de 1824. 4. O Código de Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832. 5. A Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871. 6. Os escravos. 7. O habeas corpus na República e a doutrina brasileira. 8. A reforma de 1926 e as Constituições Republicanas. 9. A ditadura de 1964 e os AIs 5 e 6. 10. A Constituição de 1988.

1. As origens inglesas Talvez o traço mais saliente do habeas corpus, aqui e lá fora, seja o de que o instituto represente, como registra Isaac Sabbá Guimarães, uma ideação “de controle de poder”1. Daí Dante Busana, com precisão, afirmar que “monarquia absoluta e writ de habeas corpus são conceitos contraditórios, pois o regime absoluto não pode aceitar processo que obriga a Coroa a motivar seus atos”2. É sabido e aceito sem a mais diminuta discrepância que a Magna Charta Libertatum representava uma conquista dos Barões perante o rei João Sem Terra em 1215. Todavia, as origens inglesas do habeas corpus não estão na Magna Charta, que ao instituto não aludia, senão à necessidade de a prisão vir precedida de um julgamento regular, “pelos seus pares ou de harmonia com as leis do país”3, sem, portanto, prever qualquer garantia. A Magna Charta abre o caminho para a contenção do poder real. A Lei do habeas corpus (Habeas Corpus Act, de 1679) é que instituiu a garantia em estudo na Inglaterra: I – A reclamação ou requerimento escrito de algum indivíduo ou a favor de algum indivíduo detido ou acusado da prática de um crime (exceto tratando-se de traição ou felonia, assim declarada no mandato respectivo, ou de cumplicidade ou de suspeita de cumplicidade, no passado, em qualquer traição ou felonia, também declarada no mandato, e salvo o caso de formação de culpa ou incriminação em processo legal), o lorde-chanceler ou, em tempo de férias, algum juiz dos tribunais superiores, depois de terem visto cópia do mandato ou o certificado de que a cópia foi recusada, concederão providência de habeas corpus (exceto se o próprio indivíduo tiver negligenciado, por dois períodos, em pedir a sua libertação) em benefício do preso, a qual será imediatamente executória perante o mesmo lorde-chanceler ou o juiz; e, se, afiançável, o indivíduo será solto, durante a execução da providência (upon the return), comprometendo-se a comparecer e a responder à acusação no tribunal competente4. A evolução do instituto do habeas corpus, ali e aqui, não é outra coisa senão um reclamo para se assegurar o respeito às garantias constantes na Magna Carta.

2. O Brasil Colônia e as Cartas de Seguro No Brasil Colônia, para exemplificar, seria impensável o habeas corpus. No dizer de Anibal Bruno, “as cartas de doação entregavam aos capitães donatários o exercício de toda a justiça. Diziam elas: no crime, o capitão e seu ouvidor têm jurisdição conjunta com alçada até pena de morte inclusive, em escravos, gentios, peões e cristãos e homens livres, em todo e qualquer caso, assim para absolver como para condenar, sem apelação nem agravo”. Mais à frente: “nas terras da capitania não entrarão em tempo algum nem corregedor, nem alçada, nem alguma outra espécie de justiça para exercitar jurisdição em nome D’El-Rei”5. O enorme poder privado concedido aos donatários era, como parece fácil perceber, incompatível com um regime de direitos e garantias. No período colonial, quando vigoravam entre nós as Ordenações Filipinas até a promulgação

do Código Criminal de Primeira Instância em 1832, havia o instituto da Carta de Seguro6. Maria Lúcia Resende Chaves Teixeira, no alentado estudo sobre o instituto em exame no Brasil Colônia, demonstra que “o uso da carta de seguro foi bastante difundido pelo hábito de seu requerimento”7. Como assinala Nelson Hungria no prefácio à obra de Carlos de Araújo Lima, “as cartas de seguro impetravam-se logo depois de cometido o delito e diziam-se negativas, quando o réu afastava de si a autoria, ou confessativas, quando o réu confessava a autoria, mas invocava causa de justificação ou alegava não ter dito intenção criminosa” 8. Como se percebe, a Carta de Seguro não pode ser tida como antecessora ou congênere portuguesa do habeas corpus inglês, pois, de verdade, “era uma promessa judicial, pela qual o réu deixava de ser preso, até finalizar o processo ordinário”9. Era, como assinala Dante Busana, uma cautela substitutiva, que não visava remediar o cerceamento indevido ao direito de ir e vir pelo controle da legalidade dos atos da autoridade; apenas substituía a prisão processual legítima10. Em outras palavras, não discutia a ilegalidade da prisão.

3. A Carta de 1824 Por outro lado, a Carta Outorgada de 1824, malgrado tenha consagrado certos direitos aos súditos no seu artigo 179, inciso 8º, não referiu e, tampouco, instituiu o habeas corpus. A Carta dizia: “Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declarados em lei; e nestes, dentro de vinte e quatro horas, contadas da entrada na prisão, sendo em cidades, vilas ou outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz, e nos lugares remotos, dentro de um prazo razoável, que a lei marcará, atenta à extensão do território, o juiz por uma nota por ele assinada fará constar ao réu o motivo a prisão, o nome do seu acusador e os das testemunhas”, mas a garantia para o cumprimento do preceito constitucional não existia. Aliás, vale o registro que antes dela, logo após a partida de D. João VI para Portugal, o Decreto de 23 de maio de 1821, referendado pelo Conde de Arcos, outorgava certos direitos aos homens livres, como, por exemplo, o de não ser preso sem ordem escrita do juiz “ou magistrado criminal, exceto somente o caso de flagrante delito” ou a exigência de culpa formada para a expedição da ordem de prisão11. É verdade, como registram Florêncio de Abreu e José Henrique Pierangelli, que José de Alencar entendia que o instituto do habeas corpus estava implícito na Carta Outorgada de 1924, “quando ela decretou a independência dos poderes e quando deu ao Poder Judiciário o direito exclusivo de conhecer tudo quanto entende com a inviolabilidade pessoal”12. Todavia, pondera o antigo desembargador do TJRS e membro da Comissão elaboradora do Anteprojeto do Código de Processo Penal de 1941, a verdade é que a “Constituição de 1824 nenhuma palavra articulara sobre o habeas-corpus; nela estabelecem-se teses em favor da liberdade do cidadão, e o meio profícuo para garanti-la, quando arbitrariamente ofendida, foi a responsabilidade do juiz que tal praticasse (§10 do art. 179)”13. No dizer de Pierangelli, a Carta de 1824 “formulou as bases sobre as quais viria se assentar o instituto que ora estamos examinando”14.

4. O Código de Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832 O instituto do habeas corpus, de fato, vem referido pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico nos artigos 183 a 188 do Código Criminal do Império de 1830, que punia desde o juiz que viesse a embaraçar ou retardar a concessão da ordem “quando lhes forem regularmente requeridas” (art.  183) até aquele que se recusasse a prestar auxílio ao oficial encarregado da execução de uma “ordem legítima de habeas-corpus” (art. 188). O curioso é que embora houvesse tutela penal à ordem de habeas corpus, este só veio a ser contemplado entre nós com o advento do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832, portanto, ainda no Império, que no seu artigo 340 dispunha: “todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor”. O paradoxo do descompasso legislativo é explicável pelo fato de que o trâmite dos Projetos de Códigos se dava em paralelo na Câmara. Todavia, o Criminal acabou sendo promulgado antes do

correlato Código processual, o que gerou o paradoxo de termos normas incriminadoras de um instituto ainda inexistente. Dante Busana realça que a aprovação do Código de Processo Criminal “foi retardada pela impossibilidade de se votarem, no curto período de três meses, todas as matérias da pauta da sessão extraordinária convocada para o mês de setembro de 1830”15. Seja como for, o habeas corpus só veio a existir como instituto posto pelo direito positivo com o Código de Processo Criminal de 1832. É filho, no dizer de Florêncio de Abreu, “de leis secundárias, da situação liberal de 1831, que o consignou pela primeira vez no Cód. Criminal e no Cód. de Processo, como uma dedução daquelas teses”16.

5. A Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871 Maria Thereza de Assis Moura, com absoluta correção, mostra que o habeas corpus no Brasil foi “concebido originariamente de forma bastante restrita e vinculado unicamente aos casos de prisão”17. Era liberatório. Coube à jurisprudência, de forma marcante, como registra a autora, alargar o instituto. Mas foi com o advento da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, que o habeas corpus, além de alcançar os estrangeiros, uma vez que o Código de 1832 falava em cidadão, “passou a ter natureza preventiva, possibilitando-se sua concessão nos casos de ameaça de prisão ilegal”18. O art. 18, § 1º, do diploma em foco estabelecia: “Tem lugar o pedido e concessão da ordem de habeas-corpus, ainda quando o impetrante não tenha chegado a sofrer o constrangimento corporal, mas se veja dele ameaçado”. Mas o § 2º do mesmo artigo, proposta do Ministro da Justiça Sayão Lobato, apresentada no Senado, foi o ponto mais combatido pela oposição liberal. De acordo com a propositura, “não se poderá reconhecer constrangimento ilegal na prisão determinada por despacho de pronúncia, ou sentença da autoridade competente, qualquer seja a arguição conta tais atos, que só por meios ordinários podem ser nulificados”. A justificativa ancorava-se em “não danar o procedimento da autoridade competente, desmoralizando o ato que legal e legitimamente praticou” e, tampouco, para que converta em causa prejudicial à formação da culpa”19. Como quer que seja, Florêncio de Abreu, no compasso da observação de João Mendes Jr., anota que “esse dispositivo continuou a dar lugar às mesmas dúvidas”. Mas o citado autor esclarece que a jurisprudência, em diversos acórdãos, firmara princípios autorizando o manejo do habeas corpus como remédio hábil para sanar coações ilegais em casos de manifesta incompetência, atipicidade ou delitos afiançáveis. E arremata Florêncio de Abreu assinalando que, “não obstante ter sido o citado dispositivo da lei de 1871 reproduzido substancialmente pelas leis da República, o Código (refere-se ao de 1941) não o consagrou. A pronúncia ou a sentença definitiva não constitui obstáculo à concessão de habeas corpus, desde que se verifique, de modo evidente, incontestável, algum dos casos previstos no artigo em exame (648)”20.

6. Os escravos Abrindo um parêntesis, o escravo não podia, em princípio, impetrar ou mesmo ser beneficiado com o habeas corpus, pois era tido como coisa, mercadoria. É que o Código de Processo Criminal de Primeira Instância, no já citado art. 340, confinava a capacidade postulatória ao “cidadão”. Sem embargo, anota Nelson Câmara que Luiz Gama, o advogado dos escravos, “argumentava com a lei de 1831, que proibira o tráfico negreiro, bem como com a subsequente lei proibitiva de 1850 (Eusébio de Queiroz), para demonstrar que o infeliz havia ingressado em território brasileiro em condição de liberdade, pois o tráfico, estando abolido, a própria legislação abolidora acolhia tal entendimento. Argumentou muito com a Lei do Ventre Livre (Lei Feijó), como argumentou com a lei que obrigava o registro de matrícula e o preço da aquisição do escravo. E argumentava coma a lei que considerava o abandono do escravo por mais de cinco anos como forma de concessão de liberdade”21.

7. O habeas corpus na República e a doutrina brasileira Com a proclamação da República e a promulgação da Constituição de 1891 foi que o habeas corpus, além do status constitucional, ganhou maior amplitude, inclusive para amparar situações

nas quais não necessariamente se discutia o direito de locomoção. O texto constitucional dizia: Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder (art. 172, § 22). A redação do instituto, não o confinando à tutela da liberdade de ir e vir, deu margem a uma interpretação ampla sobre o seu cabimento. Daí, como informam Ada Pellegrini, Antonio Magalhães e Antonio Scarance, chegou-se até a “conceder ordem de habeas corpus para anular ato administrativo que mandara cancelar matrícula de aluno em escola pública; para determinar a concessão de uma segunda época de exames a estudantes; para garantir a realização de comícios eleitorais; para garantir o exercício de profissão etc.”22. O elastério interpretativo para o cabimento do writ deu origem à assim chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”23. No expressivo dizer de Evandro Lins e Silva, a doutrina brasileira do habeas corpus representou uma “construção feliz, talvez arrojada, em certos casos, mas que foi necessária para suprir a falta de outros institutos capazes de amparar direitos assegurados na Constituição, como por exemplo, a imunidade parlamentar no estado de sítio24”. Foi uma necessidade histórica ou, do contrário, campearia o arbítrio. Expressivo, no ponto, inclusive para os dias de hoje, as palavras do Min. Eneas Galvão: Acho que não há erro na ampliação do habeas-corpus. Se o conceito do habeas-corpus evoluiu por esse modo é porque as necessidades da nossa organização social e política o exigiram, como resultado de repetidos ataques à liberdade individual, determinando, assinalando função maior, mais lata, ao instituto do habeas-corpus. (...) No nosso meio político, os repetidos ataques à liberdade individual impuseram a necessidade deste meio judicial. (...) O Tribunal está cumprindo a sua missão tutelar dos direitos, está evoluindo com as necessidades da Justiça; se há excesso, é o excesso que leva ao caminho da defesa das liberdades constitucionais25. Com efeito, além dos casos acima apontados, Leda Boechat Rodrigues, em trabalho clássico sobre o tema, destaca ter sido por meio do habeas corpus que: O Supremo garantira a posse de governadores de Estado, senadores, deputados, vereadores, a liberdade de imprensa, de reunião e de religião, reconhecera o direito de greve, afirmara, durante os frequentes estados de sítio e intervenções federais, as imunidades parlamentares e o direito de senadores e deputados publicarem na imprensa diária seus discursos pronunciados no Congresso, exigiria a aplicação do processo justo (due process of law) nos casos de expulsão de estrangeiros “residentes” e dos jovens chamados para as forças militares irregularmente, entre outros26.

8. A reforma de 1926 e as Constituições Republicanas A reforma constitucional de 1926, promulgada pelo presidente Artur Bernardes sob o estado de sítio, no entanto, reconduziu o habeas corpus à estrita proteção da liberdade de locomoção. A nova redação do texto constitucional ao art. 72, § 22, ficou assim: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que alguém sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção”. Como se sabe, outros direitos líquidos e certos vieram a ser amparados somente com o advento da Constituição de 1934, que introduziu o mandado de segurança. No meio tempo, oito anos, ficou o vazio protetivo de outros direitos violados, que não o de locomoção. A Constituição de 1934, no art. 113, inc. 23, disciplinou o writ da seguinte forma: Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação, em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não cabe o habeas corpus. Foi nessa Constituição que, pela vez primeira, apareceu a regra segundo a qual caberia ao STF conhecer e julgar habeas corpus originariamente “ainda se houver perigo de se consumar a violência antes que outro Juiz ou Tribunal possa conhecer do pedido” (art. 76, 1, letra h), ou seja, não haveria, verificada a hipótese do perigo para coarctar o dano, necessidade de se passar pela

instância inferior até se chegar ao Supremo. Avant la lettre, quando ainda não se falava na efetividade da proteção aos Direitos Fundamentais, a Constituição brasileira de 1934 apresentava regra que a viabilizava27. Já a Carta de 1937, no seu art. 122, inc. 16, preceituava: Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar em iminência de sofrer violência ou coação ilegal, na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar. O art. 101, I, letra g, também repetia a regra constante do art. 76, 1, h, da Constituição de 1934. A despeito disso, no Estado Novo (1937-1945), o País ficou sob o Estado de Emergência, isto é, com a suspensão das garantias constitucionais. Destes breves apontamentos históricos é importante ressaltar que o Código de Processo Penal de 1941, promulgado no Estado Novo getulista, de inspiração fascista, sob a égide da Carta de 1937, no seu art.  647, na linha da referida Carta, refere-se à iminência da violência ou coação como requisito para a concessão da ordem em caráter preventivo. A regulação do habeas corpus pelo CPP de 1941 permanece praticamente intacata e por isso seu estudo será feito com mais vagar adiante. A partir da Constituição de 1946, já sob regime democrático, o writ foi regulado de forma mais ampla e generosa, sendo suprimida a exigência da iminência da coação ou violência para a concessão do habeas corpus preventivo. O art. 141, § 23, estabelecia: Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Daí em diante passou-se a entender que “é admissível a tutela antecipada mesmo em situações em que a prisão constitua evento apenas possível a longo prazo”28. Isso tem permitido, como demonstraremos no próximo capítulo, “que o habeas corpus seja, entre nós, um remédio extremamente eficaz para o controle da legalidade de todas as fases da persecução criminal”29. Além disso, para conferir maior eficácia a direitos fundamentais, a Constituição de 1946, no art. 101, I, h, trazia a mesma importante regra das Constituições de 1934 e 1937, segundo a qual o STF é competente para conhecer e julgar o habeas corpus originariamente “quando houver perigo de se consumar a violência, antes que outro juiz ou tribunal possa conhecer do pedido”. Com isso suprimiam-se exigências como a do prequestionamento ou mesmo a passagem por instâncias inferiores; exigências, hoje, comum no primeiro caso e indeclinável no último. Este preceito veio repetido na Constituição de 1967, no art. 114, I, h, mas foi suprimido na de 1969 (cf. art. 118, I, h).

9. A ditadura de 1964 e os AIs 5 e 6 Sob a ditadura de 1964, o habeas corpus só veio a ser estreitado em 1968 com a promulgação do Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968. O artigo 10 deste diploma determinou: “Fica suspensa a garantia do habeas corpus, nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”. De fato, apesar da clara disposição legal, só mesmo nos crimes políticos, ofensivos à segurança nacional, é que se restringiu o emprego do habeas corpus. Nos demais casos, desde que não houvesse repercussão à segurança nacional, o habeas corpus tinha trânsito. Mas foi com o AI-6, de 1º de fevereiro de 1969, que se mudou o cotidiano da garantia constitucional em estudo. O habeas corpus foi atingido no seu processamento. Das decisões denegatórias proferidas em habeas corpus pelos Tribunais de Justiça dos Estados e pelo Tribunal Federal de Recursos (lembremo-nos que os Regionais Federais só vieram com a Constituição Federal de 1988) era perfeitamente possível impetrar-se habeas corpus originário substitutivo do Recurso Ordinário Constitucional (RHC). Com isso, ganhava-se em termos de celeridade. Todavia, com o AI-6 introduziu-se um complemento ao disposto no art.  114, II, a, da Constituição Federal, vedando o manejo da impetração substitutiva do recurso. O dispositivo passou a ter a seguinte

redação: Art. 114. Compete ao Supremo Tribunal Federal: II – julgar, em recurso ordinário: a) os habeas corpus decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais locais ou Federais quando denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido originário. Posteriormente, com a Emenda n. 1, de 17 de outubro de 1969, a regra em foco passou a integrar o art.  119, II, letra c, da Constituição Federal. Com a vedação da utilização do habeas corpus substitutivo do RHC, a tramitação do remédio heroico passou a ser mais lenta, pois interposto o recurso no Tribunal de origem, haveria de se aguardar as contrarrazões do Ministério Público, o despacho do presidente da Corte de origem, sua publicação e, só depois, a remessa dos autos à Capital Federal, coisas, ainda hoje, comumente demoradas. Vale destacar que, por meio do AI-6, nos termos da redação proposta para o art.  113 da Constituição Federal, o STF voltou a ter somente onze ministros.

10. A Constituição de 1988 O regramento constitucional em vigor, estabelecido pela Constituição de 1988, ressalva as transgressões disciplinares do cabimento do habeas corpus e o estatui assim no art. 5º, inc. LXVIII: Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Obviamente, não se reproduziu a odiosa restrição ao manejo do habeas corpus substitutivo do respectivo recurso30 e, portanto, é de se entender revogada a proibição, tema que será tratado, em capítulo próprio.

FOOTNOTES 1

.        Habeas Corpus: críticas e perspectivas. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 237.

2

.              O habeas corpus no Brasil. São Paulo; Atlas, 2009, p.  15. Sem favor nenhum, o trabalho de Dante Busana apresenta a melhor análise sobre a evolução histórica do habeas corpus.

3

.              Item n. 39 da Magna Charta Libertatum de 1215: “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país” (Jorge Miranda. Textos históricos do direito constitucional. Lisboa: Ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, p. 15).

4

.        Textos históricos do direito constitucional, cit., p. 21.

5

.        Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, t. I, p. 172, nota n. 2. Sobre o sistema de justiça no Brasil colonial, confirmando a lição de Anibal Bruno, é obrigatória a obra do brasilianista Stuart B. Schwartz. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 15.

6

.        Cf. livro V, título 128.

7

.        As Cartas de Seguro: de Portugal para o Brasil Colônia. O perdão e a punição nos processos-crimes das Minas do Ouro (1769-1831). Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2011, p. 38.

8

.        Carta de Segurança. Manaus Artenova, 1969, p. 10.

9

.        Candido Mendes de Almeida. Ordenações filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

10

.           O habeas corpus no Brasil, cit., p. 4.

11

.           Pontes de Miranda. História e prática..., cit., I, p. 115-117.

12

.           Comentários ao Código de Processo Penal. Rio de Janeiro Forense, 1945, V, p. 553 e Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas. Bauru: Jalovi, 1983, p. 206.

13

.           Comentários, idem.

14

.           Processo penal, cit, p. 206.

15

.           O habeas corpus no Brasil, cit., p. 24.

16

.           Comentários ao Código de Processo Penal, cit., V, p. 553-554.

17

.           Habeas corpus na reforma...”, cit, p. 84.

18

.           Idem, ibidem.

19

.           Pontes de Miranda. História e prática..., cit., I, p. 134 e Florêncio de Abreu. Comentários..., cit., V, p. 570.

20

.           Comentários..., cit., V, p. 571-572.

21

.           O advogado dos escravos: Luiz Gama. São Paulo: Lettera.doc, 2010, p. 181. Nesta obra, encontramos petições de habeas corpus e acórdãos (cf. p. 203 e ss.). Pierangelli também traz o resumo de dois acórdãos. Um da Relação de São Paulo (1875) e outro da Relação de Recife (1876). (Processo penal, cit., p. 208).

22

.           Recursos no processo penal, cit., p. 268-269.

23

.                    Leda Boechat Rodrigues. História do Supremo Tribunal Federal, t. III/1910-1926. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 29 e ss.

24

.           Prefácio ao História do Supremo Tribunal Federal, t. III, cit., p. 14.

25

.           HC 3.697 de 1915, apud: História do Supremo Tribunal Federal, t. III, cit., p. 34.

26

.           História do Supremo Tribunal Federal, t. III, cit., p. 19.

27

.           Pontes de Miranda tributava a existência dessa regra sobre a competência originária do STF ao fato de que o Tribunal local poderia não ter se reunido por falta de número legal (História e prática do habeas corpus. Direito constitucional e processual comparado, cit., t. II, 1972, p. 202).

28

.           Ada Pellegrini Grinover e outros. Recursos no processo penal, cit., p. 272. Idem, Gustavo Badaró. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 676.

29

.           Recursos no processo penal, cit., p. 272.

30

.           Sobre o restabelecimento desta exigência pelo STF, pela via interpretativa, mesmo sob a égide da Constituição de 1988, que não repete a restrição constante do AI–6, ver infra.

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Habeas Corpus - Ed. 2018 III. PROTEÇÃO EFETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DEVIDO PROCESSO LEGAL E O HABEAS CORPUS

Sumário: 1. Reviver a doutrina brasileira do habeas corpus? 1.1. O controle dodevido processo legal e a repercussão na liberdade de ir e vir. 1.1.1. Habeascorpus e ilegalidade processual: cabimento. 2. Provas escondidas. 2.1. OperaçãoFratelli e excesso de acusação. 2.2. Dolo eventual em acidente de trânsito equalificadora do homicídio. Excesso acusatório. 2.2.1. Ainda o caminhoneiro eseu devido processo. 2.3. Operação Satiagraha e Chacal. Ilegalidade na buscae apreensão. 2.4. Ilegalidade na exigência de o réu fornecer a conta mantidano exterior. A positivação dos Direitos Fundamentais constitui elemento essencial para a sua obrigatoriedade. No dizer de José Afonso da Silva, “essa consagração jurídico-positiva dos direitos do homem é uma garantia de que se reconhece, na Carta Magna, uma relação jurídica entre governado (sujeito ativo) e o Estado e suas autoridades (sujeitos passivos)”1. Mas, obviamente, não basta a positivação dos Direitos Fundamentais se não houver um meio processual que viabilize sua observância, além, é claro, de vontade política para implementá-los. A própria qualificação do Estado de Direito, como aponta Peres Luño, inclui entre os requisitos que implica o seu funcionamento “el que se refire a la defensa de los derechos fundamentales”2. E essa defesa, verdadeira “garantia das garantias constitucionais”3, como corolário do princípio constitucional da proteção judiciária, segundo a qual, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF, art.  5º, inc. XXXV), é, por seu turno, princípio estruturante do Estado de direito4. Embora óbvio, convém dizer que tal proteção não pode ser retórica, ou meramente simbólica, há de ser efetiva. Sobre o tema, o artigo 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos contém mandamento exemplar: Toda persona tiene derecho a un recurso sencillo y rápido o a cualquier otro recurso efetivo, ante los juices o tribunales competentes, que la ampare contra actos que violen sus derechos fundamentales reconocidos por la Constituición, la ley o la presente Convención, aún cuando tal violación sea cometida por personas que actúen em ejercicio de sus funciones oficiales5. E a alínea b do mesmo dispositivo realça o compromisso de os Estados-partes desenvolverem “las possibilidades de recurso judicial”. Na mesma linha, para ilustrar, vai o art. 24 da Constituição espanhola de 1978: “Todas las personas tienen derecho a obtener la tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos, sin que, en ningún caso, pueda producirse indefensión”. Já o artigo 20 da Constituição portuguesa, cujo título é sugestivo: “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”, e os itens 4 e 5 não deixam dúvidas quanto ao significado da importância da efetividade na proteção dos Direitos Fundamentais: 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos. Desnecessário dizer que ter direito à tutela efetiva “implica frisar o dever estatal de proporcioná-la”6, o que se dá por meio dos instrumentos processuais postos ao alcance dos

cidadãos e da função jurisdicional. A efetividade da tutela jurisdicional é central para a proteção dos Direitos Fundamentais em geral e, com muita intensidade, mais especificamente, no campo do processo penal. Gilmar Mendes alude “a um elenco de proteções constantes da Constituição que tem por escopo proteger o indivíduo no contexto do processo judicial” (Justizgrundrechte7). Embora o autor ressalve a imperfeição da expressão, pois muitos desses direitos transcendem a esfera propriamente judicial, sua utilização vale para enfatizar a especificidade destes direitos. Na verdade, estamos diante das garantias constitucionais do processo que vão desde as constantes do art.  5º, como, por exemplo, a do juiz natural (XXXVII e LIII), contraditório (LV), ampla defesa (idem), inadmissibilidade das provas ilícitas (LVI), presunção de inocência (LVII), até a exigência de decisões fundamentadas (art.  93, IX), passando pela definição do foro por prerrogativa, como no caso dos Deputados e Senadores (art. 53, § 1º) e Prefeitos (art. 29, inc.X) e a competência do Júri (art. 5º, XXXVIII). Na sempre expressiva alocução do Min. Celso de Mello, o exame da cláusula do devido processo legal “permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ‘ex post facto’; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); (l) direito à prova; e (m) direito de presença e de ‘participação ativa’ nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes”8. O Brasil, ao celebrar o Pacto de San José da Costa Rica, assumiu, como todos os demais Estadosparte, o dever de garantir “el libre y pleno ejercicio de los derechos reconocidos en la Convención a toda persona sujeta a su jurisdicción”9. Bem por isso, não custa lembrar que a Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Daí o próprio STF ter realçado que a colocação do catálogo dos direitos fundamentais nos pórticos do texto constitucional “denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial”10, o que é, ademais, reforçado por sua extensão. Afora o mais, o caráter pétreo dos Direitos Fundamentais dá a nota da sua importância, fazendo-os elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, como acentuou o Min. Gilmar Mendes em outra oportunidade11. No campo específico do processo penal, onde é permanente a tensão entre o direito de defesa do imputado e a pretensão punitiva, é fundamental garantir-se o respeito aos Direitos Fundamentais, pois, como gizou a Suprema Corte, “cumprem um papel fundamental na concretização do moderno Estado democrático de direito”12. A reconstrução do Estado Democrático de Direito, já o dissemos, é fundamental para o respeito aos direitos e garantias individuais, mas não é condição suficiente, pois em nome do combate à criminalidade organizada, corrupção, crimes hediondos etc. tem-se permitido uma larga flexibilização, quando não a própria aniquilação, de algumas garantias individuais, entre as quais despontam a da amplitude do direito de defesa (CF, art.  5º, LV) e a do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). Do ponto de vista da segurança do cidadão, que também vem representada pelos meios de defesa diante da ação repressiva do Estado e seus agentes, a restrição à garantia do habeas corpus importa em clara afronta ao Pacto de San José da Costa Rica. Como lembra Flávia Piovesan, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), mesmo em caso de Estado de Emergência, delineia alguns conteúdos em matéria de proteção aos Direitos Fundamentais que consistem “em recursos judiciais efetivos a atos violatórios de direitos fundamentais, previstos interna ou internacionalmente, como o amparo e o habeas corpus...”13. Assinala, ainda, que a Corte estipula:

los Estados Partes se obligan a suministrar recursos judiciales efectivos a las víctimas de violación de los derechos humanos (art. 25), recursos que deben ser substanciados de conformidad com las reglas de debido proceso legal (...). Para que tal recurso exista, no basta com que esté previsto por la Constituición o la ley o com que sea formalmente admisible, sino que se requiere que sea realmente idôneo para estabelecer si se ha incurrido en una violación a los derechos humanos y proveer lo necesario para remediala14. O habeas corpus, entre nós, como o Amparo Constitucional na Espanha e no México, tem sido historicamente o grande instrumento que resguarda o cidadão de abusos praticados por agentes do sistema penal, de policiais a juízes, passando por membros do Ministério Público e até agentes do sistema penitenciário. Não apenas a liberdade é protegida de forma imediata, mas, também, de forma mediata, quando se resguarda o devido processo legal. Lembremo-nos, com Luís Roberto Barroso, que a cláusula do devido processo legal “tem versão substantiva, ao lado da processual, que deságua no princípio da razoabilidade, cuja finalidade é, precisamente, assegurar ao magistrado a realização da justiça do caso concreto”15. A despeito das não poucas vozes que se erguem, inclusive entre alguns ministros do Supremo Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça, para dizer que o habeas corpus vem sendo usado desmedidamente, em hipóteses que não atinam diretamente com a questão da liberdade16, o fato é que enquanto não houver outro meio processual igualmente eficaz e célere para afastar ilegalidades que possam, ainda que indireta e futuramente, atingir a liberdade, o emprego do habeas corpus não pode ser tolhido. Trata-se de um mecanismo de calibragem do sistema processual penal. A persecução penal pode se desenvolver, mas também tem de ser fiscalizada em todos os seus passos quanto à legalidade, impedindo abusos e arbitrariedades. Geraldo Prado, com acerto, coloca o habeas corpus entre a base das garantias processuais, tão importante quanto a presunção de inocência e a reserva de jurisdição17. Alguns juízes, no entanto, ignorando o fato de que, como regra, o habeas corpus não tem eficácia suspensiva e corre em paralelo à ação penal, tiveram o desplante de afirmar que o writ tem caráter procrastinatório. Tudo com o propósito de diminuir o seu raio de ação. Para conferir efetividade não apenas aos regramentos constitucionais, mas aos compromissos internacionais dos quais o Brasil é parte, o habeas corpus é fundamental, inclusive para assegurar o devido processo legal, pois o comprometimento deste pode acarretar, ainda que de forma mediata, o da própria liberdade. Como já realçado, desde a Constituição de 1946, Grinover, Magalhães e Scarance apontam que o manejo do habeas corpus tem sido admitido mesmo em situações em que a prisão constitua evento possível apenas a longo prazo18. Na síntese de memorável acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o habeas corpus é: “ação mandamental a tutelar, não apenas diretamente a liberdade física dos indivíduos, mas as demais hipóteses de coação ilegal que, de algum modo, estejam relacionadas com o status libertatis, incluindo o processo, do qual não se espera tão-só uma decisão justa, mas um tramitar escorreito e a salvo de nulidades (due process of law)”19. Mais recentemente o Superior Tribunal de Justiça reafirmou essa ideia ao julgar o HC 160.696: Há muito a jurisprudência dos Tribunais Superiores admite a utilização da ação mandamental de habeas corpus para afastar constrangimento ilegal de ordem processual suportado pelo réu no curso da ação penal, desde que presente a possibilidade de lesão à liberdade de locomoção do indivíduo.20 Na dicção da Suprema Corte, “O direito do réu à observância, pelo Estado, da garantia pertinente ao due process of law, além de traduzir expressão concreta do direito de defesa, também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu estrangeiro, sem domicílio em território brasileiro, aqui processado por suposta prática de delitos a ele atribuídos”21. Para Alexandre de Moraes, o habeas corpus “é meio idôneo para garantir todos os direitos do acusado e

do sentenciado relacionados com sua liberdade de locomoção, ainda que pudesse, como salienta Celso de Mello, ‘na simples condição de direito-meio, ser afetado apenas de modo reflexo, indireto ou oblíquo’”22. Não por acaso, inúmeros julgados de norte a sul do Brasil, de Tribunais Estaduais, Regionais e Superiores, têm proclamado a idoneidade do habeas corpus para sanar nulidade processual23 decorrente de inépcia de denúncia24, ou, para exemplificar, a decorrente da determinação da realização de interceptação telefônica por autoridade incompetente25 ou da colocação indevida de algemas no júri de modo a transmitir a ideia de que o acusado seja perigoso26; para evitar o indevido indiciamento27 e para preservar a cronologia das sustentações orais de modo a se impedir a inversão do contraditório28. Para que se tenha uma ideia da vitalidade e do alcance do writ na proteção do devido processo legal, a hipótese da negativa de vista dos autos pelo advogado do investigado na fase do inquérito policial, discutida no HC 82.354, abaixo examinada, é exemplo exuberante. À primeira vista, não há ameaça à liberdade de locomoção, todavia, há cerceamento de defesa que, de forma mediata, pode comprometer a liberdade com uma futura condenação. Em resumo, duas conclusões se impõem: i. o habeas corpus na conformação brasileira, como o Amparo Constitucional na Espanha e no México, é um importante instrumento de fazer respeitar os Direitos Fundamentais que atinam com o processo penal; ii. estreitar o cabimento do habeas corpus, ou mesmo tornar mais lento o acesso aos Tribunais Superiores, implica inegavelmente em um substancial comprometimento na eficácia da tutela do direito fundamental que o respeito ao devido processo legal representa. E tal comprometimento da garantia constitucional arranha o próprio Estado de Direito; representa, ainda que involuntariamente, inadmissível condescendência com o arbítrio e, portanto, significa a antítese dos compromissos internacionais que o país firmou em matéria de resguardo dos direitos fundamentais, o que já é o suficiente para se endereçar uma reclamação à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

1. Reviver a doutrina brasileira do habeas corpus? Não se trata, como deixou assentado a Primeira Turma do STF no HC 82.354 relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, “de fazer reviver a doutrina brasileira do habeas corpus, mas sim de dar efetividade máxima ao remédio constitucional contra a ameaça ou a coação da liberdade de ir e vir, que não se alcançaria, se limitada a sua admissibilidade às hipóteses da prisão consumada ou iminente”29. Daí ter recordado o decidido pela mesma Turma no HC 79.191, em cujo writ se discutia ilegalidade da quebra do sigilo bancário do paciente. A ementa consignou: Se se trata de processo penal ou mesmo de inquérito policial, a jurisprudência do STF admite o habeas corpus, dado que de um ou outro possa advir condenação a pena privativa de liberdade, ainda que não iminente, cuja aplicação poderia vir a ser viciada pela ilegalidade contra o qual se volta a impetração da ordem. Nessa linha, não é de recusar a idoneidade do habeas corpus, seja contra o indeferimento de prova de interesse do réu ou indiciado, seja, o deferimento de prova ilícita ou o deferimento inválido de prova lícita30. No voto condutor, após mostrar que há uma certa área comum, uma zona cinzenta, entre o habeas corpus e o mandado de segurança, suscita-se a indagação de saber se uma decisão tomada no curso de um procedimento penal, “ainda quando não tendo por objeto imediato a privação ou a restrição da liberdade, pode ser questionada em habeas corpus”. Mesmo sem a amplidão de outrora, quando se entendia cabível o habeas corpus “sempre que, no curso da ação penal, se alega que foi cometida uma ilegalidade em prejuízo do réu”31, assinalou o Min. Pertence que “não se controverte sobre o cabimento do habeas corpus contra a simples

instauração de inquérito policial por fato que se pretende atípico (v.g., HC 67.039, 31.10.89, Moreira; HC 68.348, 20.3.91, Passarinho) ou como é corriqueiro, contra o recebimento da denúncia; ou para questionar a competência da Justiça ou do Juízo onde corra o processo (HC 75.578, 2ª T., Corrêa, Informativo STF 94; HC 77.993, 1ª T, Pertence, 9.3.99)”. Bem por isso, concluiu: “não parece ser de recusar a idoneidade do habeas corpus, seja contra o indeferimento de prova do interesse do réu ou indiciado, seja contra o deferimento de prova ilícita ou deferimento inválido de prova lícita”. Essa gama imensa de situações atina com a proteção do devido processo legal que, mediatamente, pode vir a atingir a liberdade do investigado ou réu. O manejo do habeas corpus, no lugar do mandado de segurança, tem lugar exatamente por impedir, com eficácia, que se venha a atingir a liberdade, mesmo que futuramente. Nem mesmo a existência de recurso específico inibe a utilização do writ, pois, como se verá adiante, sendo ação de impugnação autônoma, pode ser utilizado concomitantemente ao recurso ou mesmo no lugar dele.

1.1. O controle do devido processo legal e a repercussão na liberdade de ir e vir 1.1.1. Habeas corpus e ilegalidade processual: cabimento Se recuarmos no tempo, mesmo desprezando o período anterior à Reforma constitucional de 1926, quando vigorava a doutrina brasileira do habeas corpus, vamos ver que, desde, ao menos, os anos 1970, o Supremo Tribunal Federal já entendia possível o manejo do writ, pois “ainda que livre o paciente pode o habeas corpus dirimir questões de competência”32. E, em outro julgado, do qual fora relator o Min. soares Muñoz, o Supremo volta a reiterar que “o habeas corpus é meio judicial apto para suscitar a incompetência absoluta do juiz. Embora o paciente não esteja preso, o procedimento criminal, pelo séquito de gravames que acarreta ao acusado, importa em restrição de sua liberdade de ir e vir”33. Após a Constituição de 1988, é, no ponto, paradigmático o acórdão proferido no HC 83.162, da lavra do Min. Carlos Velloso: Não é somente a coação ou ameaça direta à liberdade de locomoção que autoriza a impetração do habeas corpus. Também a coação ou a ameaça indireta à liberdade individual justifica a impetração da garantia constitucional inscrita no art.  5º, LXVIII, da CF. II. – Possibilidade de impetração de habeas corpus contra despacho que determina a notificação do querelado para oferecer resposta, dado que, em tese, configura ilegalidade a prática de qualquer ato que dê seguimento a um pedido incabível, como seria a imputação a parlamentar de crime contra a honra, cujo fato descrito na peça acusatória estaria amparado por sua imunidade parlamentar34. É inegável que a Suprema Corte tinha uma preocupação quase ancestral com a legalidade do devido processo legal, passível de ser corrigida pela via expedita do mandamus, inclusive com a vantagem de se evitar a prescrição. De fato, podendo-se corrigir mais rapidamente uma nulidade, o sistema fica mais funcional. Inadmitido o manejo do writ para tal finalidade, a correção de eventual desvio ou abuso somente pela via recursal ordinária poderá acarretar a ocorrência da extinção da punibilidade pela prescrição dada, como regra, a impossibilidade de se refazer o processo pelo decurso de tempo. O exame de casos concretos ajudam a compreender a importância do manejo do habeas corpus no controle do devido processo legal e sua repercussão na liberdade de ir e vir.

2. Provas escondidas Com o advento das grandes Operações da Polícia Federal a partir de 2003, inaugurou-se um “novo” método investigativo. A fase oculta da investigação começa em data remota com escutas telefônicas que duravam meses ou até mais de ano. Quando o acervo de escutas sobre a “vida dos outros” já parece suficiente, desencadeia-se a fase ostensiva da Operação com a simultânea e invariável expedição de mandados de busca e apreensão e de prisões temporárias. Com os investigados presos e o material probatório recolhido, iniciam-se os interrogatórios. A técnica, segundo revelou o diligente então Diretor Geral da Polícia Federal Paulo Lacerda, visava a impedir

que os investigados combinassem suas defesas35 e, obviamente, embora não expresso, que fossem instruídos pelos seus advogados. Funcionou durante um tempo e, por vezes, ainda hoje. Acontece que os familiares dos presos, desesperados, procuravam advogados e estes, por sua vez, buscavam o acesso aos autos, muitas vezes menos para orientar seus assistidos e mais para saber os motivos da prisão e, assim, permitir seu questionamento, isto é, obter a liberdade do preso. Como não há meio lógico de se combater um decreto de prisão sem conhecê-lo, formulavam-se petições de vista dos autos do inquérito. Estas, no entanto, eram, no início, sistematicamente indeferidas pelos mesmos juízes federais que haviam deferido as escutas e determinado a expedição dos mandados de prisão sob o despudorado argumento de que a vista reclamada “comprometeria a eficácia das investigações” e o “interesse público (em prol da repressão) não poderia ficar subjugado ao interesse do particular em examinar os autos”36. Essa contraposição entre o interesse público e o privado, além de falsa, tende a aniquilar o próprio sentido das garantias individuais no processo penal. Imagine alguém sendo torturado por agentes da polícia para se descobrir o crime (ou o criminoso) e o juiz vir a indeferir o pedido de cessação dos “maus tratos” com a mesma lógica do indeferimento da vista dos autos. Vale dizer, de que “o interesse do particular em não ser torturado não pode prevalecer sobre o do Estado na descoberta do crime”. Atroz e ilegal. Pois assim é prender e se impedir o advogado do preso, contra expressa disposição legal (Estatuto da OAB, art. 7º, inc. XIV), de examinar os autos do procedimento investigatório e a decisão que impõe a constrição. Ademais, inquéritos secretos não se compatibilizam com a garantia de o cidadão ter ao seu lado um profissional para assisti-lo, quer para permanecer calado, quer para não se autoincriminar (CF, art. 5º, LXIII). Como quer que seja, é preciso reconhecer que o permissivo legal que autoriza o advogado do investigado a examinar os autos do procedimento investigatório ostenta, igualmente, o status de interesse público. Tanto quanto, digamos assim, o da regra que inadmite a introdução de provas ilícitas no processo penal. Neste campo, há limites cognitivos e operativos impostos à atividade persecutória estatal erigidos em nome de uma ética reconhecida pelo documento maior de nossa cidadania. Na precisa síntese de Claus Roxin, num Estado de Direito a regulação dessa situação de conflito não é determinada através da antítese Estado-cidadão; o Estado mesmo está obrigado por ambos os fins: assegurar a ordem por meio da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão37. O pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no pioneiro julgamento do habeas corpus 82.354-8-PR, relatado pelo Ministro Pertence, foi incisivo, entre outras coisas, ao dizer que, malgrado não se apliquem as garantias do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, existem, não obstante: i. direitos do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio; e ii. do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial – é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade (DJ 24/09/2004). O entendimento em questão foi confirmado inúmeras vezes pelas duas Turmas e pelo próprio Pleno do STF, mas muitos juízes fizeram ouvidos moucos às decisões da Suprema Corte. Bem por isso, o Conselho Federal da OAB ajuizou um Pedido de edição de Súmula Vinculante (PSV n. 1) e o Pleno do STF culminou por editar a Súmula Vinculante 14, assim redigida: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de

polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa38. Sem embargo, para os fins deste trabalho, importa registrar que a Suprema Corte sublinhou ser perfeitamente possível manejar-se o habeas corpus para se discutir a questão da vista dos autos, pois “o cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na manutenção desta” (HC 82.354). Ou seja, tudo aquilo que atina com o direito de defesa – ainda que à primeira vista apenas ligado ao tema da “vista dos autos” e, portanto, fora do campo imediato da liberdade de locomoção – pode ser ventilado por meio do habeas corpus. Vale, como assevera Isaac Sabbá Guimaraes, “a potencialidade de causar danos ao direito de liberdade”39. Assim, as quebras indevidas ou sem fundamentação de sigilos, lentidão na apreciação da ação penal e do próprio writ, indiciamento indevido e até mesmo a indevida colocação de algemas. Enfim, todos os desvios marcados pelo abuso de poder que possam, no campo das investigações criminais, ou das ações penais, redundar em futuro cerceamento à liberdade de locomoção podem ser arguidos pela via do habeas corpus. Isso dá a medida da amplidão da aplicação do remédio heroico entre nós e o seu vigor para combater atos ilegais e despóticos, ainda que, eventualmente, carregados das melhores intenções.

2.1. Operação Fratelli e excesso de acusação Ilustra a importância do habeas corpus no controle do devido processo legal com repercussão na liberdade de ir e vir o seguinte caso: deu-se na Operação Fratelli, desenvolvida no interior de São Paulo, que um empresário, ao ser preso, em meio à busca e apreensão que se realizava em sua casa, foi num canto dela e, do seu telefone celular, pediu para um funcionário de sua confiança “sumir” com uma pasta contendo documentos que estava no seu escritório, na sua mesa de trabalho. Seu telefone já estava interceptado; não bastasse, foi flagrado fazendo uso dele. Caso clássico de supressão de prova, legitimador da prisão para a conveniência da instrução criminal. Habeas corpus denegado no TRF da 3ª Região por unanimidade e também, embora por maioria, no STJ, vencido o Min. Rogério Schietti Machado40. Pouco restava a fazer. Ir ao STF mostrava-se infrutífero diante das peculiaridades do caso, o qual, melhor analisado, revelou que o excesso de acusação poderia implicar na soltura do paciente. É que, para viabilizar a prisão preventiva, o Ministério Público Federal, além da acusação pela prática do crime de fraude ao caráter competitivo da licitação, apenado com detenção (art. 90 da Lei 8.666/93), agregou, em concurso material, o crime de falsidade ideológica (art. 299 do CP), apenado com reclusão e que, portanto, preencheria o pressuposto legal de sua admissibilidade. O TRF da 3ª Região, apreciando a matéria, concluiu não apenas que haveria consunção entre os crimes, explicitando que o “crime de fraude à licitação, por ser o crime fim, absorvia o crime de falsidade ideológica, crime meio, porque a intenção do agente ao praticar a suposta falsidade era fraudar o procedimento licitatório e vencer a competição”, mas também que o “Ministério Público Federal, ao afirmar que o paciente e outros ‘omitiram em documento público, declaração que dele devia constar, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante’, deixou de indicar a norma legal que cria esse dever, ou seja, não apontou qual dispositivo da lei de licitações impõe ao licitante o dever prestar tal informação ao responsável pela licitação”41. Ao ser afastado o crime de falsidade ideológica, o próprio relator originário propôs a soltura do paciente, “uma vez que o crime do art.  90 da Lei 8.666/93 não justifica a prisão cautelar”, pois é apenado com detenção. Ou seja, o controle pela via do habeas corpus do excesso acusatório permitiu a colocação do paciente em liberdade.

2.2. Dolo eventual em acidente de trânsito e qualificadora do homicídio. Excesso acusatório Outro caso interessante é o do motorista de caminhão, supostamente bêbado e dirigindo em excesso de velocidade na Rodovia Dutra, que veio a matar nove pessoas e ferir outras tantas ao cruzar o canteiro central da estrada. Acusado de homicídio doloso qualificado pela surpresa,

estava preso há mais de dois anos. Os habeas corpus impetrados para tentar revogar sua prisão revelaram-se infrutíferos dada a hediondez do crime. Porém, quando se questionou pela via do writ a impertinência da qualificadora da surpresa (CP, art. 121, § 2º, inc. IV), a sorte do réu mudou. É que a qualificadora em questão representava excesso acusatório, uma vez que o decisivo não é como as vítimas são pegas, mas como o agente executa o crime. Foi no HC 86.163, com Parecer favorável do MPF, que a 2ª Turma do STF afastou a qualificadora por entendê-la incompatível com o dolo eventual42. Afastada a hediondez do crime, o juiz de primeiro grau revogou a prisão do acusado. Vê-se que em ambos os casos acima citados o controle do devido processo legal pela via do writ revelou-se apto, por via oblíqua, para afastar a prisão preventiva. É certo que os réus estavam presos, mas e se estivessem soltos? Deveriam aguardar a condenação para serem presos e só aí poder manejar o habeas corpus ou quem sabe o demorado recurso especial? A simples acusação excessiva representa ilegalidade que não pode ser tolerada e, portanto, enseja a impetração do writ, pois, em caso de réu solto, no futuro, poderá comprometer a sua liberdade. O mesmo raciocínio vale para o caso de quem se vê acusado da prática de crime mais grave e, se readequada a acusação, poderia vir a fruir algum benefício despenalizador da Lei 9.099/95, como a suspensão condicional do processo. A cláusula da necessidade de justa causa para legitimar o processo penal, esteja o acusado preso ou solto, torna viável a impetração toda vez que a acusação se’ ressentir dela, ainda que parcialmente.

2.2.1. Ainda o caminhoneiro e seu devido processo Já em liberdade, dito caminhoneiro estava em vias de ser julgado pelo Júri quando um pavoroso acidente no interior do Estado de São Paulo vitimou uma família humilde que trafegava em uma moto. Morreram todos após terem sido colhidos por um motorista que, segundo o noticiado, estava bêbado e em velocidade excessiva. Ocorre que este era Promotor de Justiça e, diferentemente do caminhoneiro, foi denunciado pela prática de um homicídio culposo. Como o feito contra o Promotor de Justiça tramitava no TJSP e em sigilo, a defesa requereu que o Juiz do Júri requisitasse cópia da denúncia ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O juiz indeferiu o pedido sob o argumento de que se tratava de outro processo e que, ademais, tramitava em sigilo. Impetrado habeas corpus no TJSP em razão do cerceamento do direito de defesa, sua 12ª Câmara, por maioria, o indeferiu. A defesa insistiu que era importante comparar os casos para que os jurados, juízes leigos, vissem como o Promotor de Justiça, em situação idêntica a do caminhoneiro, era tratado diferentemente. Pois bem. O HC 137.422, substitutivo do recurso ordinário constitucional, foi distribuído ao Ministro Jorge Mussi, o qual, sem divergência, concedeu a ordem em acórdão assim ementado: 1. A provável simetria entre os fatos denunciados justifica o pedido do paciente em ter acesso à cópia da exordial de outra ação penal, visando o cotejo entre aquela e a sua acusação que imputaram tipos penais diversos, máxime se tratando de processos de competência do Tribunal do Júri nos quais é assegurada a defesa plena. 2. O direito a ampla defesa, constitucionalmente garantido, deve abranger tanto o direito do acusado ser assistido por profissional habilitado, conhecida por defesa técnica, como o direito de se defender com a maior amplitude possível. 3. Embora ao magistrado processante seja facultado, de forma fundamentada, o indeferimento das providências que julgar protelatórias, irrelevantes ou impertinentes, ao acusado no processo penal é dado o direito à produção da prova necessária a dar embasamento à tese defensiva, devendo a sua imprescindibilidade ser devidamente justificada pela parte, o que se verifica ter ocorrido na presente hipótese43. Com a vinda aos autos do processo-crime a que respondia o caminhoneiro por homicídio doloso da denúncia contra o Promotor, os jurados tiveram clareza de que o tratamento dispensado

a este era o correto e desclassificaram a imputação para a modalidade culposa. Ou será que os juízes leigos não suportaram o tratamento diferenciado para situações idênticas e resolveram fazer justiça não punindo o caminhoneiro mais severamente? A resposta é insondável, mas uma coisa é certa: pela via do habeas corpus foi possível corrigir-se o cerceamento do direito de defesa e permitir-se ao réu um julgamento justo.

2.3. Operação Satiagraha e Chacal. Ilegalidade na busca e apreensão De posse do mandado de busca e apreensão que apontava endereço certo de determinado estabelecimento financeiro, os policiais, por conta própria, realizaram a diligência em outro endereço. O Supremo Tribunal Federal, por sua Segunda Turma, no HC 106.566, para responder à preliminar lançada pelo Ministério Público Federal, lembrou que é “corriqueiro, na jurisprudência do Tribunal, a concessão da ordem nesse caso” e citou o precedente da Operação Navalha no HC 112.851, também relatado pelo min. Gilmar Mendes, no qual se discutiu a invalidade da busca e apreensão em lugar que não constava do mandado. O ministro repeliu a tentativa de se esvaziar o habeas corpus e disse: Eu sei que há uma moda, agora, na tentativa de esvaziar o habeas corpus. Nós temos até de denunciar isso, porque é um perigo à cidadania. Como, também, a tese, que nós não encampamos aqui felizmente, do recurso substitutivo do habeas corpus, porque, do contrário, claro, daqui a pouco nós voltaríamos ao regime do AI-5, com as restrições que se impõem. Então, é evidente que, e a tradição inclusive do Tribunal é de aceitar habeas corpus, até muitas vezes contra ato de CPI, por entender que aquilo pode deflagrar procedimento de índole criminal44. Na mesma linha encontramos o decidido no HC 112.659 pela eg. 1ª Turma do STF, agora pela voz do Min. Marco Aurélio: Habeas corpus – Adequação. O habeas corpus é medida cabível quando em jogo, direta ou indiretamente, o direito de locomoção. Habeas corpus – Julgamento – Preferência. O habeas corpus, pouco importando haver ou não o envolvimento direto da liberdade de ir e vir do paciente, deve merecer tramitação preferencial (DJe 17/10/2012). Também no HC 120.017, a 1ª Turma do STF reiterou o mesmo posicionamento: 1. Embora a pretensão formulada no writ não guarde relação direta com a liberdade de locomoção da paciente, circunstância que demonstraria a inadequação da via eleita, no caso vertente, diante de aventada ocorrência de nulidade absoluta, há indiretamente um cerceamento à liberdade de ir e vir da paciente, de modo a, excepcionalmente, entender-se cabível a impetração (Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 08/08/2014). Daí porque, justificando a pertinência do writ, Gilmar Mendes, em obra de doutrina, alude “a um elenco de proteções constantes da Constituição que tem por escopo proteger o indivíduo no contexto do processo judicial” (Justizgrundrechte45). Sobre o cabimento do habeas corpus para atacar ilegalidade de busca e apreensão é modelar o acórdão do HC 80.632, relatado pela Min. Maria Thereza que, citando ampla jurisprudência do STJ, peremptoriamente assinou ser “cabível o habeas corpus como meio de impugnação da validade de atos de procedimento no qual se apura possível prática de crime, e do qual pode advir restrição à liberdade de locomoção do paciente”46. Quanto ao mérito da questão, a ementa do decidido no HC 106.566, relatado pelo Min. Gilmar Mendes, fala por si só: Habeas corpus. 2. Inviolabilidade de domicílio (art.  5º, IX, CF). Busca e apreensão em estabelecimento empresarial. Estabelecimentos empresariais estão sujeitos à proteção contra o

ingresso não consentido. 3. Não verificação das hipóteses que dispensam o consentimento. 4. Mandado de busca e apreensão perfeitamente delimitado. Diligência estendida para endereço ulterior sem nova autorização judicial. Ilicitude do resultado da diligência. 5. Ordem concedida, para determinar a inutilização das provas. O voto condutor do aresto salientou que o “compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade, isto é, ambientes profissionais privados em geral (escritórios, salas, lojas, oficinas, restaurantes, consultórios etc.) estão sujeitos à proteção constitucional”, prevista no art. 5º, inc. XI, da Constituição Federal. Assim, a busca e apreensão depende imprescindivelmente de ordem judicial devidamente fundamentada. E como o mandado indicava um endereço, era inaceitável a diligência ser realizada em outro lugar. Daí a ilicitude da prova, “a diligência contrariou a regra constitucional de inviolabilidade de domicílio  –  art.  5º,  XI, da Constituição Federal”.

2.4. Ilegalidade na exigência de o réu fornecer a conta mantida no exterior Deu-se em 2005 que o Juiz Federal da 2ª Vara Federal, hoje celebrizado pela operação Lava Jato, proferiu decisão na qual determinou que os acusados fossem intimados, sob pena de desobediência, para trazer aos autos “a identificação de suas contas mantidas ou por eles controladas no exterior no Bank Leumi USA e no Commercial Bank of New York”. O juiz, exibindo grande cultura jurídica, sobretudo no que diz com o conhecimento do direito comparado, fez o que chamou de “leitura crítica” do nemo tenetur se detegere, entendendo que a Constituição proíbe apenas que se extraia “compulsoriamente do acusado informações verbais de fatos que possam incriminá-lo”. O fato é que, no ordenamento jurídico brasileiro, goste-se ou não, “o direito à não autoincriminação constitui uma barreira intransponível ao direito à prova de acusação; sua denegação, sob qualquer disfarce, representará um indesejável retorno às formas mais abomináveis da repressão, comprometendo o caráter ético-político do processo e a própria correção no exercício da função jurisdicional”47. O denominado privilege against self-incrimination, segundo Uadi Lammêgo Bulos, “retrata o princípio de que ninguém pode ser obrigado a fazer prova contra si mesmo”48. No que diz com a projeção do referido privilégio na garantia da ampla defesa, registra o constitucionalista baiano que “possibilita ao réu, ao indiciado e à testemunha não se autoincriminarem. Significa que eles podem recusar-se a produzir provas que lhes sejam desfavoráveis, sem que isso constitua crime de desobediência”49. E arremata o comentarista: “É o que tem declarado, em diversas assentadas, o Supremo Tribunal Federal, pois não se pode obrigar acusados, suspeitos ou testemunhas a fornecerem base probatória para caracterizar sua própria culpa (STF, HC 77.135/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, Informativo STF, n. 122, HC 75.527, rel. Min. Moreira Alves, j. 17/06/97; HC 68.929, rel. Min. Celso de Mello, j. 22/10/91)”50. Não por acaso, Antonio Scarance Fernandes salienta que a proteção contra a autoincriminação significa, de forma geral, “a afirmação de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma”, sendo o direito ao silêncio (CF, art.  5º, LXIII) uma derivação do de não se autoincriminar. Por fim, como decorrência desse direito do réu, anota que “não se admite que a eventual recusa de colaboração para produção de prova contra a sua pessoa possa configurar crime de desobediência”51. Este também o entendimento consagrado na monografia específica de Maria Elizabeth Queijo, para quem “não se admitem medidas coercitivas contra o acusado para compeli-lo a cooperar na produção das provas; a recusa do réu não configura crime de desobediência; e não se permite extrair da sua recusa a veracidade da imputação, nem presunção de culpabilidade”52. Impetrado habeas corpus no TRF da 4ª Região, este foi liminarmente indeferido em decisão monocrática proferida pelo Des. Fed. Tadaaki Hirose, sob o argumento de que: “O ato atacado diz respeito a situação futura, incerta, e que nem se sabe se colocará em risco a liberdade de locomoção dos Pacientes”. No entanto, ao prover o Agravo Regimental em Habeas corpus

2005.04.01.023325-6, a 7ª Turma, tendo como relator designado o então Des. Néfi Cordeiro, ementou a seguinte decisão: 1. Cabível a interposição do habeas corpus, seja porque há discussão acerca da prova ilícita, seja pela alegação de clara ilegalidade (art. 648, VI do CPP). 2. O princípio da não auto-incriminação, consagrado pela evolução histórica e combativa dos direitos individuais, força o Estado-acusador a desincumbir-se de seu ônus probatório, jamais se podendo exigir justamente do cidadão-acusado colaboração em sua própria condenação. 3. A não auto-incriminação garante não somente o silêncio, mas impede o exercício forçado de qualquer ato de colaboração na formação da culpa. 4. Requisitando a decisão atacada a apresentação por parte do paciente de documentos comprovantes de contas bancárias que este sequer reconhece a existência e ameaçando com as conseqüências processuais e legais da desobediência, há ofensa ao direito de autodefesa do réu e ao princípio da não auto-incriminação. 5. Determinação de tal índole ocasiona deslocamento do ônus probatório da culpa do réu em processo penal para a defesa, o que é inadmissível frente aos princípios regentes do processo penal. 6. Do exercício de direito fundamental (não auto-incriminação) não pode decorrer prejuízo ao seu titular, tal como presunção de culpa, e muito menos sanções processuais ou de repressão criminosa. 7. Conhecido o habeas corpus e concedida liminar para afastar a exigência de apresentação pelo réu dos documentos de conta bancária, sem que sejam cabíveis quaisquer represálias – processuais ou criminais – pelo exercício do fundamental direito de não auto-incriminação53. Depois, ao conceder a ordem por unanimidade, o TRF-4 ementou a seguinte decisão: 1. A auto-incriminação não encontra guarida na norma penal brasileira, nem na doutrina, muito menos na jurisprudência, o que, legitima a insurgência dos Pacientes contra a determinação da prática de exercício probatório que possa reverter em eventual condenação penal. 2. Através do princípio nemo tenetur se detegere, visa-se proteger qualquer pessoa indiciada ou acusada da prática de delito penal, dos excessos e abusos na persecução penal por parte do Estado, preservando-se, na seara dos direitos fundamentais, especialmente neste caso, a liberdade do indivíduo, evitando que o mesmo seja obrigado à compilação de prova contra si mesmo, sob pena de constrangimento ilegal, sanável por habeas corpus. Cuida-se de prerrogativa inserida constitucionalmente nos princípios da ampla defesa (art. 5º, inciso LV), da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII) e do direito ao silêncio (art. 5º, inciso LXIII)54. Percebe-se, portanto, que o controle da legalidade do ato do juiz pela via do writ, ainda que a prisão possa se dar a longo prazo, impediu a consumação de uma arbitrariedade com claras implicações no direito de defesa. De fato, se os próprios réus tivessem entregado a prova reclamada pelo juiz, numa típica atitude inquisitória, o destino destes estaria selado. Como quer que seja, o cabimento do habeas corpus para se discutir a matéria representa a afirmação do instituto como meio de controle do devido processo legal.

FOOTNOTES 1

. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 419.

2

. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 7. ed. Madri: Tecnos, 2001, p. 212.

3

. José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 430.

4

. J. J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição, cit., p. 459.

5

. Em tradução livre: “Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro efetivo, perante juízes ou tribunais competentes, que o ampare contra atos violadores dos seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, lei ou a presente Convenção, ainda quando tal violação seja cometida por pessoas que atuem em exercício de suas funções oficiais”. Semelhante é o texto do art. 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

6

. Judith Martins Costa, Comentário ao art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal. In: Gomes Canotilho, J. J.; Mendes, Gilmar; F. Sarlet, Ingo; Streck, Lenio (coords.). Comentários à Constituição do Brasil.. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p.  358. No mesmo sentido: Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Néry. Constituição Federal anotada. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013, p. 223.

7

. Curso de direito constitucional, cit., p. 587.

8

. STF, 2ª T., HC 94.016, rel. Min. Celso de Mello, DJe 01/04/2013.

9

. Rubén Hernández Valle. Las sentencias básicas de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2011, p. 59.

10

. STF, 2ª T., HC 91.386, DJe 16/05/2008.

11

. STF, 2ª T., HC 91.514-1, DJe 16/05/2008.

12

. STF, 2ª T., HC 91.386, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 16/05/2008.

13

. Segurança jurídica e direitos humanos: o direito à segurança de direitos. In: Carmén Lúcia (coord.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 70-71.

14

. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Garantias Judiciales em Estados de Emergencia, Opinión Consultiva OC 9, 06/10/1987, §  24, apud: Segurança jurídica e direitos humanos: o direito à segurança de direitos, cit., p. 71, grifei. Em tradução livre: Os Estados-parte obrigam-se a proporcionar recursos efetivos às vítimas de violação dos direitos humanos (art.  25), recursos que devem ser estruturados em conformidade com as regras do devido processo legal (...). Para que tal recurso exista, não basta que esteja previsto pela Constituição ou lei ou que seja formalmente admissível, exige-se que seja realmente idôneo para estabelecer se se incorreu em uma violação de direitos humanos e prover o necessário para remediála.

15

. Temas de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 586.

16

. Assim, entre outros ministros da 1ª Turma do STF, o Min. Luiz Fux no HC 136.002.

17

. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 52.

18

. Recursos no processo penal, cit., p.  272. Idem Gustavo Badaró: Processo penal. 3.  ed. São Paulo: d. RT, 2015, p. 904.

19

. TJSP, 3ª Câmara Criminal, HC 348.952, rel. Des. Gonçalves Nogueira, j. 12/06/2001.

20

. 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, DJe 29/08/2011. Na mesma linha, cf. RHC 12.717, rel. Min. Vicente Leal, DJ

28/10/2002; RHC 11.338, rel. Min. Felix Fischer, DJ 08/10/2001; HC 18.060, rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 26/08/2002; HC 55.986, rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 01/08/2006 e, entre muitos outros, HC 31.205, Rel. p/ Ac. Min. Paulo Medina, DJ 26/11/2004.

21

. STF, 2ª T., HC 94.016, rel. Min. Celso de Mello, DJ 01/04/2013.

22

. Direito constitucional. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 135.

23

. STJ, 5ª T., HC 17.953, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 08/08/2002 e, entre muitos outros, RHC 13.798, rel. Min. Félix Fischer, DJ 03/11/2003; apud: Alberto Silva Franco em: Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2004, v. I, p. 1150-1151.

24

. STF, HC 70.687, rel. Min. Pertence, RT 708/414; apud: A. Silva Franco, ob. cit, p.  1151 e, entre muitos outros, STF: HC 85.948-8/PA, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, DJ 23/05/2006; RHC 85.658/ES, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 12/08/2005; HC 83.948-7-SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 07/05/2004; HC 80.549/SP, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 24/08/2001. STJ, entre muitos outros, 5ª T., HC 171.976, rel. Min. Gilson Dipp, DJe 13/12/2010.

25

. STJ, 5ª T., HC 83.632, rel. Min. Jorge Mussi, DJ 20/09/2010.

26

. STF, Pleno, HC 91.952, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 19/12/2008. Sobre o tema, ver Antonio Magalhães Gomes Filho na Revista Brasileira de Ciências Criminais, dez. 1992, p.  110, Sobre o uso de algemas no julgamento pelo Júri.

27

. STJ, 5ª T., HC 58.323, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 11/09/2006 e STJ, 6ª T., HC 18.054, rel. Min. Paulo Gallotti, DJ 22/08/2001, entre muitos outros.

28

. STF, Pleno, HC 87.926, rel. Min. Peluso, DJ 25/04/2008.

29

. STF, 1ª T., un., DJ 24/09/2004.

30

. RTJ 171/258, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 08/10/1999.

31

. Luiz Gallotti, RHC 46.807, RTJ 49/592.

32

. RHC 52.699, 2ª T., rel. Min. Thompson Flores, DJ 04/10/1974, ou RTJ 72/349.

33

. RHC 56.873, 1ª T., rel. Min. Soares Muñoz, DJ 19/04/1979, ou RTJ 93/1.018.

34

. STF, 2ª T., DJ 26/09/2003.

35

. Jornal Hoje em Dia, Caderno Brasília, 17 a 23/06/2007, n. 528, p. 11.

36

. TRF da 4ª Região, RT 780/730 e, entre outros, STJ, RMS 12.516, 2ª T., rel. Min. Eliana Calmon. Neste último julgado há dois magníficos votos vencidos dos ministros Paulo Medina e do saudoso Peçanha Martins.

37

. Apud, HC 91.514, cit.

38

. A despeito de algumas críticas que a Súmula tem recebido, sua vitalidade é enorme. Basta ver o número de reclamações e a pronta tutela do STF. Confiram-se as seguintes Reclamações: 7.539-SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski; 7.813-RJ, rel. Min. Carlos Britto; 7.860-BA, rel. Min. Cezar Peluso; 7873-RJ, rel. Min. Celso de Mello; 8.158-SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski; 8.159/RS, rel. Min. Ellen Gracie; 8.173-SP, rel. Min. Eros Grau; 8225, rel. Min. Celso de Mello; 8.458-ES, rel. Min. Cezar Peluso; 8.483-SP, rel. Min. Joaquim Barbosa; 8.529-MS, rel. Min. Ricardo Lewandowski e, entre muitas outras, 24.116, rel. Min. Gilmar Mendes.

39

. Habeas Corpus: críticas e perspectivas. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 192193. Assim, entre muitos outros autores, Júlio Fabbrini Mirabete, Processo penal. 4.  ed. São Paulo: Atlas, 1995, p.  703; José Barcelos de Souza, Habeas corpus processual. Boletim do IBCCrim n. 50, jan. 1997 e Ada Pellegrini Grinover et alli, Recursos no processo penal, cit., p. 272.

40

. HC 272.737, rel. Min. Maria Thereza, DJe 24/10/2013.

41

. HC 0014886-28.2013.4.03.0000/SP, rel. p/ o acórdão Des. Fed. José Lunardelli, j. em 05/11/2013.

42

. STF, 2ª Turma, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 22/11/2005.

43

. STJ, 5ª Turma, un., DJe 23/04/2012.

44

. DJe 19/03/2015.

45

. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 587.

46

. DJe 18/02/2008.

47

. Antonio Magalhães Gomes Filho. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Ed. RT, 1997, p. 114.

48

. Constituição Federal anotada. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 273.

49

. Ob. cit., p. 273.

50

. Idem, ibidem.

51

. Processo penal constitucional. São Paulo: Ed. RT, 1999, p. 261.

52

. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 268.

53

. DJ 27/07/2005.

54

. TRF-4, 7ª T., rel. Tadaaki Hirose, DJ 19/10/2005.

© desta edição [2018]

2020 - 05 - 18

Habeas Corpus - Ed. 2018 IV. A “RACIONALIZAÇÃO” DO SISTEMA RECURSAL E O HABEAS CORPUS

Sumário: 1.  O habeas corpus como ação autônoma de impugnação. 2.  O habeas corpus virou agravo? 3. O habeas corpus é funcional ao sistema punitivo. 4. O valor da legalidade processual. 5. Identidade de objeto no habeas corpus e nos recursos Especial e Extraordinário. Sob a égide da Carta de 1937, o Código de Processo Penal instituiu, basicamente, dois recursos ordinários: o denominado recurso em sentido estrito (RSE, art.  581) e a apelação (art.  593). Também os embargos declaratórios e os infringentes foram previstos (CPP, arts.  619 e 609, parágrafo único), junto com o Protesto por novo Júri1, a Carta Testemunhável e a Revisão Criminal (CPP, arts.  607, 639 e 621). Afora, estes, havia o Recurso Extraordinário (CPP, art.  632). Posteriormente, em 1985, com a entrada em vigor da Lei de Execuções Penais, foi introduzido o Agravo em Execução Penal (art.  197). Em 1988, com o advento da nova Constituição Federal, o Recurso Extraordinário foi desdobrado e surgiu o Recurso Especial, também de natureza excepcional, mas destinado a garantir a aplicação e unidade interpretativa do direito ordinário (art. 105, inc. III).

1. O habeas corpus como ação autônoma de impugnação Ainda no capítulo dos recursos, o legislador de 1941 alinhou a Revisão Criminal (CPP, art. 621) e o habeas corpus (CPP, art. 647). A primeira, nada mais é do que uma ação rescisória no campo do processo penal e que serve para atacar as decisões condenatórias transitadas em julgado nas hipóteses definidas pelo próprio art.  621. Como o habeas corpus é, na verdade, uma ação autônoma de impugnação2. Este, porém, diferencia-se daquela porque se presta à defesa da liberdade de ir e vir, haja trânsito em julgado ou não. No mais, como a Revisão, não é um recurso, como há bastante tempo entende a doutrina3. Enfaticamente, desde ao menos os anos 60 do século passado, Frederico Marques dizia que “sob o ângulo estritamente processual, o habeas corpus não pode qualificar-se como recurso, embora assim o conceitue o Cód. de Proc. Penal”4. O pormenor, de um ponto de vista prático, é importante porque, na expressão de Eugênio Pacelli, sendo ação autônoma, o writ “pode ser usado como substitutivo do recurso cabível, ou mesmo ser impetrado cumulativamente a ele”5. Alexandre de Moraes, pelo ângulo do direito constitucional, também sustenta a ideia de que “nada impedirá a concomitância com qualquer recurso, pois prevenir ou fazer cessar a violência ou coação não encontra o obstáculo por determinação de rito ou encerramento do processo (...)”6. Como reforço à tese de o writ of habeas corpus não ser um recurso, deve-se agregar o fato de se poder impetrá-lo preventivamente, antes mesmo de se ser desencadeada a coação ilegal, ou antes ainda de ser instaurada a ação penal, ou seja, ainda na fase pré-processual, quando não há relação processual instaurada, visando, por exemplo, a evitar o indiciamento (STF, HC 115.0157, rel. Min. Teori Zavascki e TSE, HC 4408, rel. Min. Ellen Gracie), combater ilegalidades que geram provas ilícitas (STJ, HCs 137.349 e 159.1599, ambos relatados pela Min. Maria Thereza) e até a trancar o inquérito policial por falta de justa causa (STJ, RHC 8272, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 08.11.1999; HC 218.234, mesmo relator, DJe 20.03.2012). Noutro polo, o habeas corpus pode ser manejado depois do trânsito em julgado da sentença (STF, RHC 60.26410, rel. Min. Moreira Alves, DJ 19.11.1982 e HC 93.94211, rel. Min. Cezar Peluso, DJe 01.08.2008). Historicamente, em pleno Estado Novo, a garantia constitucional em estudo propunha-se a

tutelar a liberdade e ir e vir nos casos em que o constrangimento ilegal viesse representado pelas hipóteses retratadas no art. 648 do CPP: i.   falta de justa causa na coação; ii.  excesso de prazo na prisão; iii. incompetência de quem ordenasse a coação; iv. cessação do motivo que autorizou a coação; v.  inadmissão da fiança, “nos casos em que a lei a autoriza”; vi. nulidade manifesta do processo; e vii. quando extinta a punibilidade. A Constituição de 1988 não alterou substancialmente o panorama recursal, a não ser, como já dissemos, no que toca ao desdobramento do Recurso Extraordinário, que passou a contar com o Recurso Especial, um homólogo da mesma natureza, a ser julgado pelo STJ, mas para cuidar de questões infraconstitucionais. Em ambos os casos, só questões de direito são consideradas, sendo vedada a discussão de provas (cf. Súmulas 279 do STF e 7 do STJ). O ponto que tem, hoje, causado estrépito – sobretudo diante da massa avassaladora de processos que chegam às Cortes Superiores – está na amplitude do emprego do habeas corpus. Começam a surgir julgados rejeitando o seu emprego para questionar a legalidade das interceptações. Assim, por exemplo, o STJ, por sua 5ª Turma, depois de julgados históricos em sentido contrário, veio a decidir: O recorrente utiliza o writ como mero meio de coleta de provas a fim de averiguar eventual ilegalidade na execução de interceptações telefônicas e escutas ambientais, não pontando restrição ilegítima à sua liberdade, o que evidencia o não cabimento do remédio heroico12. O fato é que o CPP de 1941, no seu art.  647, na linha da Carta de 1937, aludia à iminência da violência ou coação como requisito para a concessão da ordem em caráter preventivo. Contudo, a partir da Constituição de 1946, já sob o regime democrático, o writ foi regulado de forma ampla e se suprimiu a exigência da iminência da coação ou violência para a concessão do habeas corpus preventivo. O art. 141, § 23, estabelecia: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Daí em diante, como acima se assinalou, passou-se a conhecer e conceder ordens de habeas corpus “mesmo em situações em que a prisão constitua evento apenas possível a longo prazo”13, isto é, em casos como os de inépcia da denúncia, de falta de justa causa para a ação penal, ou para sanar nulidades processuais, mesmo estando o réu solto. Esse largo espectro de incidência do writ of habeas corpus para o controle da legalidade de todas as fases da persecução criminal é uma sólida e exemplar construção dos tribunais brasileiros e, em especial, do STF, ao longo de mais de 70 anos na defesa dos direitos fundamentais do cidadão no processo penal. Este tema, como dissemos acima, no item dedicado às provas escondidas, foi bem explorado pelo Min. Sepúlveda Pertence ao julgar o HC 82.354, cujo objeto era conferir aos advogados do indiciado acesso aos autos do inquérito. Afora a amplitude da abrangência do habeas corpus para o controle do devido processo legal no processo penal, a dualidade recursal, ao menos desde 1941, não é estranha ao processo penal. A negativa de fiança pelo juiz, por exemplo, pode ser atacada tanto pela via do Recurso em Sentido Estrito (CPP, art.  581, V), como por meio do habeas corpus (CPP, art.  648, V). Também o manejo deste pode ser concomitante com a apelação, se a questão posta for de direito. Imagine-se a hipótese de um réu preso e condenado por sentença que apresente nulidade. Deveria ele aguardar o demorado trâmite da apelação para só depois de anos ver reconhecida a nulidade? É evidente que não interessa a ninguém, muito menos ao Estado, que se ressente de vagas nas cadeias, manter alguém preso indevidamente.

Estamos diante do que o Min. Moreira Alves, com muita propriedade, chamou de “concorrência eletiva de meios processuais”, ao aludir à possibilidade de se substituir o recurso ordinário constitucional (RHC) pelo habeas corpus originário14.

2. O habeas corpus virou agravo? Com agudeza de espírito, Gustavo Badaró adverte para o fato de que a amplitude do uso do habeas corpus transformou-o “em um amplíssimo ‘agravo’ cabível contra toda e qualquer decisão interlocutória proferida em processo penal”15 e se tornou moroso tanto quanto um recurso ordinário. Tanto que se chega ao cúmulo de impetrar-se habeas corpus no STF para que o STJ julgue mais rapidamente o remédio ali impetrado16. Poder-se-ia dizer que, à mingua de recurso específico para se discutir a falta de justa causa para, por exemplo, o recebimento da denúncia ou o questionamento de provas ilícitas, ou mesmo nulidades genericamente consideradas, o habeas corpus aparece como um “super remédio” ou, como prefere José Barcelos de Souza, um “recurso-ônibus”17. A verdade, porém, é que nos mais de 70 anos de vigência do CPP, a larga utilização do habeas corpus, mesmo fazendo as vezes do agravo, revela-se instrumentalmente útil, ainda que se demore para julgar mais os casos em que o paciente não esteja preso. Quando o impetrante instrui a impetração com os documentos necessários ao julgamento do remédio heroico, que podem ser complementados pelas informações da autoridade coatora, facilita o trabalho do tribunal num duplo sentido: o material probatório é levado à Corte Julgadora sem exigir esforços do Judiciário e, por outro lado, o pronunciamento jurisdicional pode não apenas abreviar o sofrimento de quem é alvo de uma ação penal, mas também significar a possibilidade de correção de rumos da acusação mais rapidamente, isto é, a tempo de se evitar a ocorrência da prescrição. Ou seja, o manejo do habeas corpus é funcional ao próprio sistema punitivo quer porque permite obviar com mais rapidez os casos carentes de justa causa, ou nulos; quer porque o refazimento de atos a serem reconhecidos apenas em grau de apelação estaria inviabilizado pela prescrição. A propósito, abra-se um parêntese para se dizer que o Agravo de Instrumento regulado pelo art. 1.016 do novo CPC afina-se, em certa medida, com a sistemática do próprio habeas corpus, pois a parte é quem deve dirigir-se diretamente ao tribunal por meio de petição devidamente instruída (CPC art.  1.017), podendo o Relator no tribunal conceder-lhe efeito suspensivo (CPC, art.  1019, I). Se, doravante, pretender-se confinar o habeas corpus aos casos de liberdade atingida ilegalmente ou que estiver na iminência de sê-lo, como na Carta autoritária de 1937, e deixar as demais hipóteses para o Recurso em Sentido Estrito ou o Agravo, a consequência prática será a maior lentidão na correção de abusos, arbitrariedades e injustiças no campo do processo penal, em total desalinho com a ideia de celeridade e efetividade na jurisdição penal. Pior, tem-se entendido que o Agravo não comporta sustentação oral. Então, além da demora na prestação jurisdicional, teremos o cerceamento de defesa. Importante ressaltar que não seria uma mera troca de etiquetas nos eventuais novos recursos, que se ocupariam de temas hoje cobertos pelo habeas corpus, mas a desconstrução de um sistema que funciona há mais de 70 anos com razoável grau de efetividade na proteção dos direitos fundamentais de natureza processual.

3. O habeas corpus é funcional ao sistema punitivo Fechado o parêntese, é de se perguntar: qual o sentido do manejo do habeas corpus por um advogado, a discutir uma nulidade, se o reconhecimento mais acelerado desta permitiria a pronta renovação dos atos processuais? De fato, a extirpação da nulidade o quanto antes permite frear a marcha do processo errado, que desrespeita a forma, mas, se não obstado, pode criar um fato consumado com a produção de provas materialmente robustas de modo a comprometer o próprio reconhecimento do defeito do

modus procedendi. Em bom português, dificilmente se anula um processo com provas maciças por um defeito de forma. É comum em casos assim invocar-se, contra o réu, a “instrumentalidade das formas” para se ignorar ou, como eufemisticamente se fala, flexibilizar direitos e garantias de natureza processual. Ilustra a hipótese um rumoroso caso envolvendo Prefeito do interior de São Paulo, no qual o desembargador relator no TJSP afirmou que, em alguns casos, o Judiciário é levado a julgamento pela opinião pública, “não devendo ser escandalizada com o reconhecimento de nulidades meramente formais”18. Tal acórdão, no entanto e sem nenhum abalo para a opinião pública, tempos depois, no Recurso Especial 86.097, foi reformado pelo Superior Tribunal de Justiça19. Com a anulação da condenação, o reconhecimento da prescrição foi inexorável. Houvesse sido manejado o habeas corpus no lugar do Recurso Especial, evitar-se-ia a prescrição. Chama a atenção, ainda, caso em que réu pobre teve a denúncia oferecida contra si rejeitada, mas a 3ª Câmara A do TJSP (extraordinária, isto é, formada por juízes convocados de primeiro grau), ao prover o Recurso em Sentido Estrito20, determinou diretamente a pronúncia do acusado. Deveria o réu ser submetido a Júri para só depois, acionando o sistema recursal em caso de condenação, ver sanada a nulidade? A ser assim, teríamos o Judiciário trabalhando inutilmente. Ora, a impetração de habeas corpus solucionou, sem delongas, o grave erro do Tribunal de Justiça. O acórdão do STJ nos autos do HC 74.588, relatado pelo Min. Hamilton Carvalhido, não deixa dúvidas: 1. Evidenciando insanável contradição, eis que, ao tempo em que relata a interposição de recurso contra decisão que rejeitou a denúncia, dá provimento ao recurso em sentido estrito para pronunciar o réu, é imperativa a declaração da nulidade do julgado21. A verdade é que a pretendida racionalização do sistema punitivo e, especificamente do processo penal, não passa pela restrição ao cabimento do habeas corpus e, sim, por paradoxal que possa parecer, pela otimização deste meio para que nulidades possam ser sanadas com maior rapidez tanto em favor do paciente, réu na ação penal, como também para se evitar a ocorrência da prescrição. Funcionalmente falando, o writ atende muito mais as exigências de justiça do que os clássicos recursos especial e extraordinário, sempre que para o deslinde da questão não haja necessidade de discussão de provas.

4. O valor da legalidade processual A racionalidade do sistema processual penal fala a favor de que este não se compadece com a perpetuação de ilegalidades em razão de uma pureza dogmática, rechaçando o emprego do habeas corpus em razão de uma suposta inadequação do meio utilizado. Ou, como disse a Min. Maria Thereza de Assis Moura no seu trabalho de doutoramento na USP, ao tratar da justa causa para a ação penal: “em decorrência do cânone da legalidade, o ordenamento jurídico processual não suporta a atipicidade da narrativa da conduta”22. Por isso é que, de longa data, como em outros tempos sublinhou o Min. Gilson Dipp, se tem entendido o seguinte: A existência de recurso próprio ou de ação adequada à análise do pedido não obsta a apreciação das questões na via do habeas corpus, tendo em vista sua celeridade e a possibilidade de reconhecimento de flagrante ilegalidade no ato recorrido, sempre que se achar em jogo a liberdade do réu23. E não é por acaso que mesmo em caso de Recurso Especial inadmitido por questões formais, por exemplo, a falta do prequestionamento, se tem concedido habeas corpus, ainda que de ofício, mas nos termos em que pedido, para remediar uma ilegalidade. Daí a expressiva ementa do HC 132.450, da lavra de reconhecida processualista, proclamar: 2. Para o enfrentamento de teses jurídicas na via restrita, imprescindível que haja ilegalidade manifesta, relativa a matéria de direito, cuja constatação seja evidente e independa de qualquer análise probatória.

3. Hipótese em que há manifesta ilegalidade no tocante à pena-base, fixada no triplo do mínimo legal em razão de uma circunstância judicial desfavorável, o que se mostra desproporcional24. Ainda: ilustra a pertinência do writ para sanar ilegalidades manifestas, mesmo havendo recurso específico, o precedente do STJ relatado pela Min. Maria Thereza (HC 164.056). No caso em exame, o TJSP, no HC 990.09.189897-0, havia repelido o manejo do habeas corpus no lugar do Agravo. A ementa do julgado do extinto Tribunal de Alçada Criminal paulista tinha o seguinte teor: O habeas corpus não pode ser usado como substituto do recurso ordinário. Caso contrário, ele seria transformado em um super-recurso, sem prazo certo para a sua interposição, tirando a segurança das decisões judiciais passadas em julgado, já que poderiam ser, a qualquer tempo, modificadas pelo remédio heróico (TACRIM – HC 201.602/3 – Rel. Hélio de Freitas – 20.12.1990 – RJDTACRIM 12/167). A Sexta Turma do STJ, além de repelir a necessidade do prequestionamento em habeas corpus, concedeu a ordem para afastar a ilegalidade da cumulação da pena restritiva da liberdade com a prestação de serviços à comunidade, fixada esta como condição especial para o cumprimento da pena em regime aberto25. Estranho mesmo é ter-se concedido a ordem “de ofício” nos termos do pedido. É incompreensível a “racionalidade” implementada de se dar o que se pede, mas “de ofício”. Cria-se o obstáculo para se superá-lo. É como ir da Capital de São Paulo para Santos (SP), via Suíça e, por absurdo que possa parecer, é fazer com que doravante os advogados peçam a concessão da ordem de ofício! A suposta racionalização, isto é, o movimento de não conhecer habeas corpus porque cabível o Recurso Especial, briga com a realidade da inadmissibilidade da sobrevivência do constrangimento ilegal. Vejamos a ementa do HC 184.050 relatado pela Min. Maria Thereza, uma das artífices do movimento em questão: A controvérsia acerca da viabilidade e pertinência do recurso de embargos de declaração, assim como da aplicação da multa prevista no art.  538, parágrafo único, do CPC, em princípio, pode ser suscitada através da via extraordinária, pela alegação do direito infraconstitucional. No entanto, quando a situação concreta prejudica o acesso à via excepcional, a ponto de inviabilizar a própria fundamentação do recurso próprio, há de se ter como parâmetro a violação ao direito de defesa, porquanto não será possível à parte trazer ao contexto as alegações importantes para a discussão definitiva da causa. No caso, com o não conhecimento dos embargos de declaração e aplicação da multa processual prevista no art.  538, §  1º, do CPC, o Tribunal a quo impediu que a parte viesse a esclarecer os principais tópicos da condenação, que, na sua grande extensão se deu com o julgamento do recurso de apelação do órgão de acusação. Portanto, resta evidente o prejuízo e o cerceamento ao direito de defesa, que deve ser desde logo afastado pela via heroica, já que patente o constrangimento ilegal. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para anular o acórdão dos embargos de declaração para permitir novo julgamento” (DJe 03.0902013). Ora, se a parte ficou impedida de esclarecer os principais tópicos da condenação e o prejuízo é evidente a ponto de se reconhecer a inviabilização do Recurso Especial e, portanto, legitimar-se a impetração do writ, é ilógico não o conhecer. É como se a inventada “teoria da racionalização” se sobrepusesse à realidade, a dizer que o sol é quadrado, ou que o preto é branco e por aí vai. Ficamos entre a banalização e o burocratismo. Certo mesmo, como disse o Min. Celso de Mello, é que “a majestade da Constituição não pode ser transgredida nem degradada pela potestade do Estado, pois, em um regime de perfil democrático, ninguém, a começar dos agentes e autoridades do aparelho estatal, pode pretender-se acima e além do alcance da normatividade subordinante dos grandes princípios que informam e dão essência à Lei Fundamental da República”26.

5. Identidade de objeto no habeas corpus e nos recursos Especial e Extraordinário Reagindo à tendência do STJ, de rechaçar habeas corpus substitutivos do REsp, o STF, no HC 110.118, relatado pelo Min. Joaquim Barbosa, foi enfático ao reafirmar que “O eventual cabimento de recurso especial não constitui óbice à impetração de habeas corpus, desde que o direito-fim se identifique direta e imediatamente com a liberdade de locomoção física do paciente” (DJe 08.08.2012). No julgamento do referido writ, além do valioso, vigoroso e esclarecedor pronunciamento do Min. Celso de Mello sobre a preocupante postura restritiva do STJ em relação ao habeas corpus27, o Min. Gilmar Mendes, no seu voto vencedor, destacou: “se se trata de algo verificável a partir de provas pré-constituídas, tal como exige o procedimento do habeas corpus, por que não o fazer aqui? Até porque, veja que, diferentemente do que ocorre em outras searas e tendo em vista o valor liberdade que está envolvido, o legislador cuidou de não impor sequer fórmula de preclusão para propositura da ação revisional, o que vale, também, neste caso, para habeas corpus, desde que preenchidos esses requisitos” (HC 110.118, DJe 08.08.2012). Se é possível fazer pela via do habeas corpus a mesmíssima coisa que se faz no Recurso Especial no campo do processo penal, é destituída de razão a crítica de que o STJ se distancia de sua missão constitucional de ser o “guardião da lei federal e de uniformizador da interpretação dessa legislação em âmbito nacional” ao julgar precipuamente habeas corpus, como pontuou o Min. Og Fernandes, no Portal do STJ28. Disse-o, por todos, o Min. Assis Toledo, em acórdão unânime da Terceira Seção do STJ (quando este ainda engatinhava), no HC 17: Sendo assim, como no recurso especial, criado pela Constituição de 1988 (art. 105, III), o objeto só pode ser, da mesmíssima forma que no habeas corpus, uma quaestio iuris, não uma intricada quaestio facti, é possível prever-se a substituição de um pelo outro, quando houver coincidência de fundamentos e interesse da parte em apressar a decisão judicial29 (grifei). A aventada relegação do Recurso Especial a um segundo plano apenas permite que a Corte faça justiça mais rapidamente e facilite o acesso do jurisdicionado ao Tribunal Superior, além, é claro, de exercer os mesmos controles por meio do habeas corpus. Aliás, o STF julgou a inconstitucionalidade do regime integral fechado por meio de um habeas corpus que, ademais, foi impetrado por um preso (HC 82.959). Daí porque é princípio sedimentado na jurisprudência brasileira que a recorribilidade da decisão ou a efetiva pendência de recurso contra eles não inibe a admissibilidade paralela do habeas corpus30, trate-se “de recurso ordinário ou extraordinário da decisão impugnada, nem a efetiva interposição deles”31. Neste julgado, o voto-condutor aponta arestos dos anos 1940 e 1960, entre outros: HC 30.622, rel. Min. Laudo de Camargo, 1948, RF 249; HC 31.086, rel. Min. Orozimbo Nonato, 1949; RHC 38.061, rel. Min. Luiz Gallotti, 1960; HC 40.182, rel. Min. Victor Nunes Leal, 1963 etc. Enfim, a “instrumentalidade das formas”, aliada à efetiva proteção de direitos e garantias individuais, sobrepõe-se a rígidos formalismos que, de verdade, nada têm de racionalizadores do sistema recursal. Essa, aliás, a expressão de memorável decisão da Suprema Corte pela voz de seu antigo decano que, sem tirar nem pôr, aplica-se ao Recurso Especial: (...) em recurso extraordinário criminal, perde relevo a inadmissibilidade do RE da defesa, por falta de prequestionamento e outros vícios formais, se, não obstante – evidenciando-se a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção – seja possível a concessão de habeas corpus de ofício (v.g., RE 273.363, 1ª T., Sepúlveda Pertence, DJ 20.10.2000)32. Por estranho que possa parecer, seria mais racionalizador do processo penal e menos comprometedor do direito de defesa o fim dos recursos Especial e Extraordinário no campo do processo penal, do que o estreitamento do habeas corpus. O trânsito em julgado operar-se-ia mais rapidamente, como preconizava o Min. Peluso na sua proposta de Emenda Constitucional, e os casos de patente ilegalidade seriam remediados com a concessão de medidas cautelares em habeas

corpus, para se evitar o mandado de prisão. Do jeito que estão pretendendo “racionalizar” os recursos no processo penal, teremos não apenas uma justiça mais lenta, como de dificílimo acesso em razão das inúmeras formalidades que balizam os recursos de natureza extraordinária. Em resumo, teremos a antítese da proteção efetiva dos Direitos Fundamentais no campo do processo penal. Pior, réus pobres e presos serão os que mais sofrerão diante das dificuldades de se superar os inúmeros obstáculos dos recursos excepcionais, difíceis até mesmo os para especialistas.

FOOTNOTES 1

.        Revogado pela Lei 11.689, de 10/06/2008.

2

.        Gustavo Badaró. Manual dos recursos penais. São Paulo: Ed. RT, 2016, p. 431.

3

.              Gustavo Badaró. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.  675. Eugênio Pacelli e Douglas Fischer. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 1367. Ada Pellegrini Grinover et alli. Recursos no processo penal. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, p. 270; Rogério Lauria Tucci. Habeas corpus, ação e processo penal. São Paulo: Saraiva, 1978, p.  5; Guilherme de Souza Nucci. Habeas corpus. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 21 e Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo penal. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, IV, p. 621.

4

.        Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, IV, p. 379.

5

.        Curso de processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 1021.

6

.        Direito constitucional. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 148.

7

.        DJe 11/09/2013.

8

.        DJe 08/11/2002.

9

.        Ambos publicados no DJ de 30/05/2011.

10

.                    É elucidativa a ementa deste julgado: “Habeas corpus. É cabível, fazendo as vezes de revisão criminal, ainda quando a condenação haja transitado em julgado, e, inclusive, para a obtenção, se cabível, da declaração de prescrição ou de nulidade processual”.

11

.           Eis a ementa: Habeas corpus. Sentença condenatória. Nulidade processual absoluta. Coisa julgada. Irrelevância. Conhecimento e concessão. Prevalência da tutela constitucional do direito individual da liberdade. Precedentes. O habeas corpus constitui remédio hábil para argüição e pronúncia de nulidade do processo, ainda que já tenha transitado em julgado a sentença penal condenatória.

12

.           RHC 39.457, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 27/05/2015.

13

.           Ada Pellegrini e outros. Recursos no processo penal, cit., p. 272.

14

.           STF, Pleno, RHC 67.788, rel. Min. Moreira Alves, DJ 22/02/1991.

15

.           Manual dos recursos penais, cit., p. 474.

16

.           Para casos e acórdãos, vide infra.

17

.           Doutrina e prática do habeas corpus, cit., p. 1.

18

.           TJSP, Apel. Criminal 152.151-3.

19

.           6ª T., rel. p/ o acórdão Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 13/10/1998.

20

.           RSE 473.057.3, rel. Des. Fernando Simão.

21

.           6ª T., DJ 22/10/2007.

22

.                    Justa Causa para a ação penal – Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Ed. RT, 2001, p.  221-222. Inspirado nessa lição, o STF vem de conceder Medida Cautelar em HC impetrado em substituição do RHC e superando a Súmula 691 (cf. HC 117.105, rel. Min. Dias Tóffoli, j. 05/04/2013).

23

.           STJ, 5ª T., RHC 20624/MG, DJ 19/03/2007. No mesmo sentido, entre muitos outros: HC 77858/AM, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 12/02/1999; RTJ 108/590, rel. Min. Oscar Corrêa.

24

.           STJ, 6ª T., rel. Min. Maria Thereza, DJe 05/09/2012.

25

.           HC 164.056, rel. Min. Maria Thereza, DJ. 01/07/2010.

26

.           STF, Pleno, voto vencido no RE 601.314; DJe 16/09/2016.

27

.           “Torna-se fácil concluir, do que venho de expor, que o E. STJ restringiu, excessivamente, o alcance do remédio constitucional do habeas corpus, impondo-lhe condicionamentos que a jurisprudência desta Corte Suprema considera inadmissíveis” (Min. Celso de Mello).

28

.                    Número de habeas corpus no STJ dobra em apenas três anos e preocupa ministros, matéria de 29/05/2011, veiculada no site do STJ www.stj.jus.br. Curioso é que esse mesmo ministro, no REsp 865.163 (DJe 01/07/2011), concedeu habeas corpus de ofício para liberação de bens, uma vez que o bloqueio destes já perdurava por sete anos. Para tanto, embora tudo ficasse restrito à liberação dos bens, salientou que “o STJ admite o cabimento do habeas corpus para a discussão da legalidade de medida assecuratória, pois é

possível que venha a restringir o direito de ir e vir do paciente. Precedentes citados: RMS 21.453, DJ 04/06/2007; HC 80.632, DJ 18/02/2008 e REsp 1.079.633, DJe 30/11/2009”.

29

.                    DJ 26/06/1989. Este acórdão do STJ, por conta da usurpação de competência do STF, foi alvo da Reclamação 317, ajuizada pela Procuradoria Geral da República, da Relatoria do Min. Moreira Alves (DJ 21/08/1992).

30

.           STF, HC 82.968/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 20/06/2003.

31

.           HC 83.346, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/08/2005.

32

.           STF, Agravo de Instrumento 516.429 QO/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 17/08/2007.

© desta edição [2018]

2020 - 05 - 18

Habeas Corpus - Ed. 2018 V. AS RESTRIÇÕES AO HABEAS CORPUS

Sumário: 1.  Pode o STF renunciar ao seu papel de guardião dos Direitos Fundamentais de natureza processual? 2.  A Súmula n. 691 do STF (um tormento diário). 2.1.  Análise crítica dos fundamentos da Súmula. 2.2.  A razão de ser das Súmulas. 3.  Julgamento do Agravo Regimental como pressuposto do HC (um novo tormento). 4. Proibição do habeas corpus substitutivo do RHC (o revigoramento do AI-6). 5.  Proibição de RHC para o STF contra acórdão de RHC do STJ e de concessão de ofício da ordem (o garrote final). 6.  Proibição de habeas corpus contra ato de Ministro do STF (king can do no wrong). 7.  Prequestionamento. Exigência devida? Quando? 8.  Habeas corpus como sucedâneo recursal ou impetrado concomitantemente a algum recurso. Possibilidade.

1. Pode o STF renunciar ao seu papel de guardião dos Direitos Fundamentais de natureza processual? A compreensão das restrições ao habeas corpus passa pela quantidade enorme de feitos julgados pelas Cortes Superiores e por uma nova mentalidade quanto ao papel destas. No que concerne às coisas do Direito Penal, o Ministro Barroso já disse que o STF não pode ficar julgando um sem-número de habeas corpus, ocupando-se do varejo das coisas da Justiça Penal, que são muitas e intermináveis. O STF deve se ocupar das grandes questões que tocam a cidadania. Ele não pensa sozinho na Corte e há muitos outros ministros que querem ver o nosso STF uma Corte Constitucional, a despeito das competências que lhe são outorgadas pela Constituição, do julgamento de ações penais até os habeas corpus e seus recursos, passando pela revisão criminal dos seus próprios julgados. As palavras do Min. Barroso evocam as do professor Eros Grau quando em uma tarde modorrenta, ainda na 1ª Turma, dizia que o Supremo parecia o extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, TACRIM-SP, que “só julgava habeas corpus”. Parecia, olhando de fora, que ele, entediado, contava os minutos para se aposentar. Penso que, anos depois, sua visão era outra sobre o habeas corpus e sua importância na proteção efetiva dos direitos fundamentais. Não por acaso, no único livro em que o Min. Eros retratou sua curta, mas fecunda, passagem pelo STF, cuidou apenas de questões do direito e processo penal. Reprisou a anotação feita no HC n. 95.916, do qual fora relator, e exprimiu a importância de o Magistrado “afirmar a força normativa da Constituição e de conferir efetividade à dignidade do ser humano”1. O julgado retratava uma mulher em estado de saúde debilitado presa em estabelecimento prisional inadequado. O precioso trabalho de Eros Grau, no livro e no Supremo, condensa casos, na grande maioria, de gente comum, submetida às vicissitudes do cárcere e do desrespeito ao devido processo legal em processos criminais ora conduzidos por juízes equivocados, ora por déspotas nem sempre tão esclarecidos. Mais de 90% dos casos lembrados foram julgados em habeas. No Decisões de Cezar Peluso no Supremo Tribunal Federal2, vamos ver que a grossa maioria dos casos lembrados cuida de matéria penal e processual penal ventilada em habeas. Valham-nos, por todos, o HC n. 82.959, relatado pelo Min. Marco Aurélio, impetrado por um preso em causa própria e que culminou no reconhecimento da inconstitucionalidade do regime integral para o cumprimento de pena, como estipulava a Lei dos Crimes Hediondos na sua formulação original. Outro importante é o HC n. 94.016, relatado pelo Min. Celso de Mello, no qual, em caso de réus soltos, assegurou-se o direito de qualquer dos litisconsortes passivos formular perguntas aos corréus. Caro aos advogados é o HC n. 87.926, relatado pelo Min. Peluso, no qual o Pleno do STF

sepultou a ideia de que o órgão do MP de segundo grau, por atuar como fiscal da lei, fala sempre por último. Se o MP é órgão recorrente seu representante falará em primeiro lugar. Eram casos comuns, de gente muitas vezes “mais comum” ainda e que, no entanto, colocaram balizas importantes na aplicação da lei e no funcionamento dos tribunais. À primeira vista, em todos esses casos, tínhamos o varejinho do crime; o dia a dia. Mas atrás deles se escondem grandes teses e que atinam com as garantias do cidadão diante do poder punitivo estatal. Portanto, o trabalho diário “dos casinhos”, embora invisível, cansativo e interminável, faz muito sentido não apenas para os cidadãos beneficiados com as decisões do STF, como também, didaticamente, freia abusos e atitudes arbitrárias de agentes do Executivo, membros do próprio Judiciário e Ministério Público. Pretender afastar esses “casinhos” do Supremo Tribunal Federal equivale a dizer que a Corte renuncia ao seu papel de guardiã dos Direitos Fundamentais no campo do sistema penal. Pior: é preterir a regra clara (tomo a consagrada expressão de Arnaldo Cezar Coelho) constante do texto constitucional que lhe outorga competência para julgar habeas corpus e seus recursos em (cf. art. 102, I, i, e II, letra a). Ou seja, gostemos ou não, nosso STF não é apenas uma corte constitucional; julga inclusive ações penais, revisões criminais e também habeas corpus originários. Outro aspecto é que, mesmo em uma Corte Constitucional como a espanhola, 96,58% dos recursos julgados pelo Tribunal Constitucional espanhol (TC) são de Amparo3 e destes muitos cuidam da quebra do devido processo legal. É verdade que se fala na Espanha de numa “hipertrofia” do Amparo, como aqui da banalização do habeas corpus, mas o Amparo segue existindo e atua em todos os rincões do ordenamento jurídico, e não há por que, guardadas as diferenças, ser diferente com o habeas. Em resumo, uma modificação radical na competência do Supremo implica, para ser legítima, numa reforma da própria Constituição para que, em um debate amplo, os cidadãos sejam ouvidos, “inclusive” por meio dos parlamentares, órgãos de classe, associações, docentes etc. A não ser assim, teremos soluções autoritárias, ainda que vindas de gente reconhecidamente esclarecida e preparada. Parafraseando o professor Eros Grau: se os argumentos funcionalistas (excesso de processos, leia-se, de trabalho), prevalecerem sobre os normativos, “o perigo de juízos irracionais aumenta”4. É o que, pesa dizê-lo, estamos assistindo quando pela via interpretativa se amesquinha o habeas corpus, inclusive reavivando a proibição do manejo do habeas substitutivo do recurso, instituído pelo famigerado AI-6, de 1969. A solução adotada pela Suprema Corte em relação ao habeas corpus revela nítida faceta consequencialista, na medida em que pondera os limites da máquina para julgar com a quantidade de processos que chega à Corte. Vale dizer, abandona-se a abordagem dogmática, que se preocupa prioritariamente com a coerência lógico-formal do ordenamento, para trilhar um raciocínio estritamente pragmático, com ênfase na real capacidade do seu funcionamento. Seria isso válido? O consequencialismo, mostrou-o com propriedade Alexandre Felix Gross ao comentar a solução adotada pelo STF no julgamento da dívida pelos Estados, “nada mais é do que um instrumento de interpretação e aplicação do direito objetivo, que se utiliza da ponderação das consequências para encontrar a solução capaz de concretizar o comando normativo da melhor maneira possível. Dedica especial atenção às externalidades da decisão, mesmo que isso signifique um abandono da coerência formal ao texto da lei. Representa um olhar para o futuro, comprometido mais com as consequências práticas de uma decisão do que com o reforço normativo de um ordenamento jurídico ou de um precedente judicial”5. Se é possível em matéria de dívidas adotar-se uma solução heterodoxa, quando se trata dos direitos fundamentais tutelados pelo habeas corpus, parece duvidoso, para se dizer o mínimo, que a Suprema Corte, pela via interpretativa, possa abdicar do seu papel constitucional de guardiã desses Direitos. Curioso é que o posicionamento restritivo, inclusive do STJ, surge exatamente quando, pelas mãos das Defensorias Públicas dos Estados e da União, os pobres, finalmente, começam a chegar a essas Cortes e o mais interessante é saber que a faculdade de Direito da GV, Rio de Janeiro, conduziu um importantíssimo trabalho demonstrando, em síntese, que o grosso dos

habeas que chegam ao STJ e ao Supremo decorrem decisões de Tribunais estaduais e regionais federais, que desrespeitam entendimentos muitas vezes sumulados6. O estudo das restrições impostas ao habeas corpus põe a nu o cerceamento ao direito de defesa e, junto com ele, as manobras que desorganizam a dogmática processual construída ao longo de quase um século para não se permitir que ilegalidades sobrevivam.

2. A Súmula n. 691 do STF (um tormento diário) Superado o entendimento de que o habeas corpus não contempla a possibilidade de concessão de liminar por inexistir previsão legal nesse sentido7, os advogados passaram a manejar o remédio constitucional em foco reclamando quase que invariavelmente a adoção da providência initio litis. Não raro, porém, a medida liminar é indeferida e surge para o profissional a questão de saber se é possível manejar outro habeas perante o órgão jurisdicional superior atacando apenas o indeferimento da liminar e, assim, sucessivamente, até se chegar ao Supremo Tribunal Federal. Independentemente das questões processuais que adiante serão discutidas, é preciso registrar que o comportamento dos advogados ao pleitear a concessão de liminares em habeas corpus impetrados sucessivamente perante tribunais de graus diferentes deve ser debitado, ao lado da urgência da medida, à demora no julgamento dos agravos regimentais, aliás, de discutível cabimento8, quando interpostos contra a decisão monocrática indeferitória da liminar e, por fim, do próprio writ. Assistimos com assombro habeas corpus aguardarem mais um ano na conclusão para ser levados a julgamento9. Quando se busca a tutela da liberdade do cidadão ou mesmo a da sua dignidade, que a ação penal sem justa causa tisna, é inadmissível a morosidade ou, mais grave, o vazio jurisdicional. Portanto, ao cuidarmos da necessidade da liminar em habeas corpus não estamos falando apenas de uma característica da modernidade, como tão bem lembrou Betina Rizzato Lara, aludindo ao tempo como medida da eficiência10. Aqui se fala da eficácia de um instrumento de atuação da denominada “jurisdição constitucional das liberdades”11. Não é por outra razão que todos os dias algum ministro do STF tem ultrapassado o verbete da Súmula em questão para conceder alguma medida liminar em habeas corpus ou, quando não, a própria ordem. Assim, v.g., o ministro Celso de Melo ao conceder a medida cautelar no HC n. 93.790: “Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal, ainda que em caráter extraordinário, tem admitido o afastamento, hic et nunc12, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante nesta Corte ou, então, veicule situações configuradoras de abuso de poder ou de manifesta ilegalidade” (HC 85.185/SP, Rel. Min. Cezar Peluso – HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. Celso De Mello – HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. Carlos Velloso – HC 87.468/SP, Rel. Min. Cezar Peluso – HC 89.025-MC-AgR/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa – HC 90.112MC/PR, Rel. Min. Cezar Peluso, v.g.)”13. No rumoroso caso da Operação Lava Jato, o Min. Teori Zavascki, superando a Súmula em estudo, concedeu medida liminar em favor de um dos investigados, antigo diretor da Petrobras, que havia sido preso preventivamente por conta da possibilidade de fugir, apenas em razão da sua condição social. Ao julgar o HC n. 125.555, a 2ª Turma ementou o seguinte entendimento: À vista da Súmula 691 do STF, de regra, não cabe ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator pela qual, em habeas corpus requerido a tribunal superior, não se obteve a liminar, sob pena de indevida – e, no caso, dupla – supressão de instância, ressalvadas situações em que a decisão impugnada é teratológica, manifestamente ilegal ou abusiva. Precedentes. A hipótese dos autos, todavia, autoriza a superação dessa regra procedimental14. O verbete da Súmula 691 é claro: Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra

decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar15. A jurisprudência que deu base à construção da Súmula em exame tinha como pilares as ideias bem condensadas pelo Min. Moreira Alves, segundo as quais “a admitir-se essa sucessividade de habeas corpus, sem que o anterior tenha sido julgado definitivamente para a concessão de liminar per saltum, ter-se-ão de admitir consequências que ferem princípios processuais fundamentais, como o da hierarquia dos graus de jurisdição e o da competência deles” (HC n. 76.347-1-MS; DJ 08/05/1998). Veja-se que a competência aludida é a dos outros Tribunais, e não a do STF, o que afasta a ideia de que o STF não deteria competência constitucional. O voto-condutor desse habeas sustentava o seguinte na Questão de Ordem suscitada: “a) se concedida a liminar pelo relator do habeas corpus nesta Corte ‘STF’, estarão prejudicados os habeas corpus interpostos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Regional Federal, pela impossibilidade de estes, examinando o mérito – que é o mesmo da liminar – concluírem pela improcedência do pedido, por terem de cassar necessariamente, até por causa do mesmo fundamento, a liminar concedida, no âmbito de sua competência, por juiz que é hierarquicamente superior, b) com isso, obtém-se indiretamente o que, por falta de competência, não é permitido diretamente, ou seja, que o relator do habeas corpus nesta Corte ‘STF’ conceda liminar contra despacho de juiz de primeiro grau; e c) se se entender, ao contrário, que, com a concessão da liminar pelo relator nesta Corte, não ficam prejudicados os julgamentos dos habeas corpus que tramitam no Tribunal Regional Federal e no Superior Tribunal de Justiça, ter-se-á de admitir que, se o primeiro deles julgar o writ perante ele interposto, e que visa ao mesmo fim a que visam os interpostos sucessivamente diante do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, e o indeferir, esse acórdão não só cassará a liminar concedida pelo Ministro desta Corte «STF», como também tornará prejudicado o julgamento pela Turma a que ele pertence do próprio habeas corpus, além de tornar prejudicado o julgamento do writ impetrado também junto ao Superior Tribunal de Justiça, violando por duas vezes o princípio da hierarquia de jurisdição pela cassação de liminar deferida por Juiz superior e por impedir que o Tribunal superior (e, no caso, são dois) delibere, em definitivo, contra o julgado pela Corte inferior” (QO no HC 76.347-1-MS, DJ 8/5/98).

2.1. Análise crítica dos fundamentos da Súmula O primeiro equívoco do julgado que dá base ao erguimento da Súmula em exame está em generalizar algo que nem sempre ocorre, isto é, “que o pedido liminar tem sempre o mesmo objeto da impetração” (cf. supra, letra a). Tal consideração ignora algo rotineiro no meio forense criminal: a impetração, por exemplo, dirigida ao trancamento da ação penal e o pedido liminar voltado unicamente à suspensão do interrogatório e/ou do indiciamento. Nesse caso é perfeitamente possível que, impetrado habeas perante o STJ contra o indeferimento da liminar pelo desembargador do Tribunal de Justiça, o Ministro venha deferi-la por entender presente o periculum in mora e não divisar prejuízo para o processo no sobrestamento momentâneo do indiciamento e/ou do interrogatório. Nessa situação, a despeito da liminar concedida pelo órgão da jurisdição superior, nada obsta que o Tribunal de Justiça, com outro espectro cognitivo, já de posse das informações prestadas pela autoridade coatora e do Parecer do Ministério Público, venha a indeferir a ordem. A concessão da liminar pelo grau de jurisdição superior não obsta a eventual denegação da ordem pelo tribunal local ou regional, pois a amplitude e a profundidade cognitiva do Tribunal quando do julgamento definitivo do habeas são diferentes. É clara a orientação do STF e do STJ no sentido de que a concessão de medida liminar em habeas corpus impetrado contra decisão de relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indeferir liminar, não prejudica a tramitação e julgamento do writ impetrado na origem16. Pela mesma razão, a denegação da ordem pelo Tribunal local não implica em qualquer subversão hierárquica. Como vimos, a pretensão do habeas era o trancamento da ação penal e o pedido liminar estava restrito ao sobrestamento do interrogatório e/ou ao indiciamento. Coisas diferentes e julgadas em momentos

diversos com um arco mais amplo de conhecimento no julgamento definitivo. Mas, e se o pedido liminar coincidisse com o de fundo, vale dizer, suponha-se que o writ visasse à revogação da prisão preventiva e, em caráter liminar, fosse requerida a soltura do paciente. Aqui também, embora coincidam os pedidos de caráter liminar e de fundo, a cognição do julgador quando aprecia o primeiro é uma; outra, mais aprofundada, quando decide o pedido instruído com as informações e o parecer ministerial. Assim, como na primeira hipótese, pode o Ministro conceder uma liminar por entender, si et in quantum, presente a fumaça do bom direito, mas o Tribunal na origem, julgando o feito, denegar a ordem. Haveria, em qualquer caso, ofensa à hierarquia dos tribunais ou as suas competências? A resposta, uma vez mais, é negativa e pelo simples fato de que uma coisa é o julgamento da liminar e outra, como é cediço, o do processo devidamente instruído. Em ambos os casos, julgada e denegada a impetração pelo tribunal local ou regional, o de grau superior deverá julgar prejudicado o writ que recebera, pois agora a coação por ventura existente decorrerá da denegação da ordem, e não mais do indeferimento da liminar. O raciocínio não muda se, por exemplo, o Tribunal Superior chegar até mesmo a conceder a ordem ratificando a liminar. É que a decisão colegiada está cingida aos termos de uma cognição provisória – e mais limitada – jungida à questão da liminar. Em resumo: o julgamento da liminar pela instância superior não vincula o juiz quanto ao mérito da ação que vem a julgar, como, aliás, se tem visto no cível quando se trata do provimento de agravos tirados de decisões que indeferem liminares. Soa especioso que no campo do processo penal se pense de modo diferente ou se ignore tal realidade. Outro entendimento nos levaria ao absurdo de que em todas as vezes que o Tribunal, no campo do processo civil, por exemplo, provesse um Agravo e concedesse uma liminar o juiz não poderia julgar improcedente a demanda contra a parte inicialmente beneficiada pela liminar. Portanto, o primeiro fundamento que dá origem à Sumula 691, relativo à competência dos tribunais e da hierarquia, não pode ser aceito. O segundo equívoco do aresto que dá base à Súmula – é importante lembrar que os julgados subsequentes praticamente repetem o relatado pelo Min. Moreira Alves – está em supor uma sucessividade que nem sempre ocorre. Não é exato que sempre se queira obter, per saltum, do Supremo Tribunal Federal, o que diretamente, “por falta de competência”, não se pode obter, “ou seja, que o relator do habeas corpus nesta Corte ‘STF’ conceda liminar contra despacho de juiz de primeiro grau” (cf. supra item b do julgado). De saída, em desabono dessa intelecção, deve-se dizer que o habeas corpus pode ser concedido, a qualquer tempo, de ofício, pelo julgador (CPP, art. 654, § 2º) o que, portanto, afasta a problemática do “salto” e, consequentemente, o rigor que se opõe ao seu manejo diante do indeferimento da liminar. O tema, aliás, foi objeto de atenção no STF por parte do Min. Ilmar Galvão quando no período do recesso forense: A orientação que vem sendo seguida é a impossibilidade da impetração de writ contra indeferimento de liminar durante o período forense, época em que a decisão impugnada será prontamente examinada pelo tribunal competente, que poderá mantê-la ou não. Hipótese diversa, contudo, dá-se quando, em virtude do recesso judiciário, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ou o ministro que estiver no exercício da Presidência, revela-se a única autoridade capaz de remediar o constrangimento ilegal porventura existente, mormente se se considerar a possibilidade da concessão da ordem de ofício (HC 81.677-1/RJ, rel., j. 25/04/2002, decisão monocrática, DJ 03/05/2002, p. 25-26, n.º 265). Mas, deixando-se de lado a possibilidade da concessão da ordem de ofício e a questão do recesso forense, fora da situação alvitrada pelo julgado relatado pelo Min. Moreira Alves, referente à sucessividade, pode se dar perfeitamente que o habeas corpus tenha sido julgado pelo Tribunal local, ou regional, e denegado. Contudo, com uma impetração substitutiva do RHC alcance-se o STJ e nessa Corte tenha-se indeferida a liminar. Ora, nesse caso, o STF vai apreciar, sem nenhum salto, tema que não decorre diretamente da decisão do juiz de primeiro grau, mas de Ministro de Tribunal Superior que julga em nome do Tribunal, como órgão fraccionário, e que tem, em matéria de habeas corpus, por expressa disposição constitucional, seus atos diretamente debaixo

da jurisdição da Suprema Corte (art. 102, I, letra i). A Súmula neste último caso, pesa dizê-lo, não poderia ir contra a expressa previsão constitucional e vedar a impetração de habeas contra a denegação da liminar. E, tampouco, se a impetração fosse decorrente de uma sucessão de negativas de liminares iniciada pelo relator no tribunal local ou regional. É que, primeiramente, não está em jogo diretamente a decisão do juiz de primeiro grau, mas a do Relator no Tribunal. Depois, não vedando a Constituição o manejo do habeas corpus contra o indeferimento da liminar, soa especioso que, pela via exegética, queira-se restringir o alcance da tutela da liberdade do cidadão. Ainda mais quando está em foco o acerto ou desacerto da concessão da liminar que pode, embora raro, encontrar no Pretório Excelso guarida sem que, como visto, atinja-se ou restrinja-se a competência do tribunal inferior quanto ao julgamento do mérito da ação constitucional ou, por outra, fira-se a autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal nos limites do que decidiu. Ditada, ao que parece, mais por razões de ordem funcional, leia-se, excesso de processos, do que por razões técnicas17, foi submetida ao Plenário do Supremo uma proposta de revogação desta Súmula por ocasião do julgamento do HC n. 85.185, relator ministro Cezar Peluso. Vencidos o relator e o incansável ministro Marco Aurélio, o grande e tenaz opositor ao seu cancelamento foi o ministro Sepúlveda Pertence. No entanto, no HC n. 85.186, no qual se questionava a nulidade da decisão monocrática do ministro do STJ, a impetração foi conhecida e a liminar pleiteada, após a interposição de um Agravo Regimental, veio a ser concedida monocraticamente em grau de reconsideração. Na oportunidade, o mesmo Min. Pertence admitiu que a “dissonância entre a causa proposta e a fundamentação de sua decisão judicial, mais que à falta de motivação, corresponde à negativa de prestação jurisdicional”18. Assim, com uma inteligente ginástica interpretativa, afirmou-se que seria possível conhecer a impetração, pois a ordem não visava “obter do STF a liminar no HC pendente da decisão definitiva do STJ, mas apenas para declarar nula a decisão que lá a indeferiu”. Então, doravante, seguindo esse peculiar raciocínio, a Súmula 691 deveria ser lida assim: “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar, salvo quando se questionar a sua validade formal”. Seria correto o distinguishing? Antes de responder, outros temperamentos poderiam ser formulados. Com base na Súmula 691, o relator originário do HC n. 89.025, Min. Joaquim Barbosa, havia lhe sido negado seguimento no Agravo Regimental interposto, a 2ª Turma do STF deu-lhe provimento em julgado que, no que interessa à discussão posta, porta a seguinte ementa: Agravo regimental em habeas corpus. Súmula 691/STF. Excepcionalidade. (...). 1. O entendimento pacificado nesta Corte é no sentido de afastar a incidência da Súmula 691/STF quando flagrante o constrangimento ilegal. (...). 4. Concessão de liminar para cassar o decreto de prisão preventiva (DJ 9/11/2007). Grosso modo, pode-se dizer que o STF tem superado a Súmula em exame nos seguintes casos: a) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar para evitar flagrante constrangimento ilegal; ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou na manutenção de situação que seja manifestamente contrária à jurisprudência do STF. Ocorre lembrar, como advertiu o ministro Cezar Peluso no seu voto vencido quanto ao cancelamento da Súmula 691 por ocasião do já referido HC n. 85.185, que o critério adotado para superação da Súmula 691 acaba por confundir pressupostos de admissibilidade da impetração com os de mérito, relativos à própria concessão da ordem. Numa palavra, só se supera a Súmula em pauta quando for o caso de concessão da ordem. Isso gera uma espécie de julgamento sumário monocrático, que se confunde com a admissibilidade do próprio remédio constitucional.

Ingressamos numa espécie de loteria judiciária. Há ministros, de ontem e de hoje, como Celso de Mello, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Dias Toffoli e Marco Aurélio, que aplicam com muita parcimônia o verbete da Súmula em causa. Já outros, aplicam-na mais amiúde. O então juiz Dante Busana, ao relatar um memorável habeas corpus no extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, advertia: “garantia constitucional e ação de direito processual constitucional, o habeas corpus não conhece outros limites que os estabelecidos na Carta Magna”19. Parafraseando Philadelpho Azevedo, citado por Busana, que atacava, como agora, a limitação que se queria impor ao manejo do habeas corpus, causa perplexidade que diante de uma Constituição com um “texto amplo e liberal” erga-se uma súmula tão restritiva e tão equivocada nos seus pressupostos lógicos e jurídicos. Não é por outra razão que os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal começam a temperar o rigor da Súmula 691, deixando de fora de do seu alcance os casos teratológicos ou de patente constrangimento ilegal.

2.2. A razão de ser das Súmulas Mas aqui, buscando Victor Nunes Leal, o criador das Súmulas, valeria lembrar suas palavras no RE 54.190: “Se tivermos de interpretar a Súmula com todos os recursos de hermenêutica, como interpretamos as leis, parece-me que a Súmula perderá sua principal vantagem. Muitas vezes, será apenas uma nova complicação sobre as complicações já existentes. A Súmula deve ser entendida pelo que exprime claramente, (...). Ela pretende pôr termo a dúvidas de interpretação e não gerar outras dúvidas”. (...). “A Súmula foi criada para pôr termo a dúvidas. Se ela própria puder ser objeto de interpretação laboriosa, de modo que tenhamos de interpretar; com novas dúvidas, o sentido da Súmula, então ela perderá a sua razão de ser”20. Ora, as sábias palavras de Victor Nunes Leal cabem como uma luva para a pregação do cancelamento da Súmula 691, que tanta incerteza traz ao cenário da principal garantia dos cidadãos contra o arbítrio. São tantas as interpretações construídas para a sua mitigação que ela mais se presta ao desserviço de gerar insegurança do que ao papel de estabilizar a jurisprudência. Pior é que por vezes passa a impressão de ser o meio mais rápido de se limpar a mesa de trabalho sem maior esforço, de forma sumária. Para encerrar esse tópico, enquanto em matéria de proteção aos Direitos Fundamentais os espanhóis contam com o Amparo Constitucional, que permite, ao cidadão, em processo preferencial, bater diretamente às portas da Corte Constitucional21, nós ficamos privados do acesso rápido ao nosso Supremo Tribunal Federal.

3. Julgamento do Agravo Regimental como pressuposto do HC (um novo tormento) Não bastasse o verbete da Súmula 691 a dificultar o acesso aos Tribunais Superiores, surge agora um novo percalço. Veja-se o seguinte trecho da ementa do HC n. 114.043, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux: 6. O habeas corpus é incabível quando endereçado em face de decisão monocrática que nega seguimento ao writ, sem a interposição de agravo regimental. 7. A competência desta Corte somente se inaugura com a prolação do ato colegiado, salvo as hipóteses de exceção à Súmula 691/STF. E não há de se estabelecer a possibilidade de flexibilização desta norma, pois, sendo matéria de direito estrito, não pode ser ampliada via interpretação para alcançar autoridades – no caso, membros de Tribunais Superiores – cujos atos não estão submetidos à apreciação do Supremo. 8. O artigo 34, inciso XVIII, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, permite ao relator negar seguimento a pedido improcedente e incabível, fazendo-o como porta-voz do colegiado. Entretanto, a competência do Supremo Tribunal Federal apenas exsurge se coator for o Tribunal Superior (CF, artigo 102, inciso I, alínea “i”), e não a autoridade que subscreveu o ato

impugnado, por isso que, in casu, impunha-se a interposição de agravo regimental, sob pena de malferimento da norma segundo a qual quando o coator for tribunal superior, a impetração de habeas corpus nesta Corte não prescinde do prévio esgotamento de instância (DJe 05/06/2013)22. Em resumo, como estampa o Informativo 729 do STF, “não se conhece de habeas corpus ou de recurso ordinário em habeas corpus perante o STF quando, da decisão monocrática de Ministro do STJ que não conhece ou denega o habeas corpus, não se interpõe agravo regimental”. Sublinhou-se a necessidade de o paciente exaurir, no tribunal a quo, as vias recursais acessíveis. Os Ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes acompanharam o relator, com a ressalva de seus entendimentos pessoais no sentido de se conhecer do pedido. Com a fixação do entendimento em exame, o STF torna mais lento o processamento do habeas e com isso não lhe assegura efetividade como instrumento de defesa dos direitos fundamentais de caráter processual e da própria liberdade de locomoção. Vale dizer, permite que abusos e ilegalidades se prolonguem no tempo. Por outro lado, a ressalva que se faz aos casos em que se excepciona a incidência da Súmula 691 mais confunde do que ajuda. Primeiramente, é estranho que se fale no caráter estrito da competência do STF, “que não pode ser ampliada para alcançar autoridades do STJ”, como gizou o Min. Fux, mas que desde sempre controlou (CF, art.  102, I, i). Afinal, se o STF pode, ainda que excepcionalmente, superar a Súmula 691 é porque tem competência para, no campo do processo penal, controlar a legalidade dos atos dos ministros do STJ. Depois, quem teve seu habeas indeferido monocraticamente no STJ haverá de considerar a ilegalidade flagrante e, obviamente, identificará uma exceção que permite a superação da Súmula 691. Se manejar o habeas e o relator do STF não considerar assim, a possibilidade de se veicular o reclamo estará sepultada definitivamente, sem que se tenha apreciado a impetração por um colegiado. Não interposto o Agravo Regimental na instância de origem, a decisão monocrática terá transitado e, por outro lado, com o indeferimento no STF por falta de pressuposto, o cidadão ficará à míngua. Para ilustrar, vejamos a seguinte hipótese: o sujeito foi preso em flagrante pelo crime de roubo. O juiz converte a prisão em preventiva unicamente em razão da gravidade abstrata do crime, coisa que os Tribunais Superiores já cansaram de dizer que é ilegal. Impetrado o HC no TJSP, a medida liminar é negada. Contra esta decisão é manejado novo writ perante o STJ. O Relator, aplicando a Súmula 691, indefere liminarmente o seu processamento. No STF, porém, ao apreciar o HC n. 115.318, o Min. Joaquim Barbosa supera a Súmula 691 e concede a medida liminar nos seguintes termos: A decisão atacada é de cunho monocrático e, como regra, o conhecimento do writ diretamente por este Tribunal acarretaria inadmissível supressão de instância. Contudo, o caso apresenta peculiaridades que autorizam a superação do óbice da Súmula 691 desta Corte. Entendo, ao menos nesse juízo preliminar, que a decisão que converteu a prisão em flagrante em custódia preventiva foi fundamentada na gravidade em abstrato do crime imputado ao paciente (...) (DJ 02/10/2002). Passados quase um ano e meio da concessão da medida liminar, com a substituição regimental do Relator em virtude de sua ascensão à Presidência da Corte, o Min. Barroso nega seguimento ao writ por entender, entre outras coisas, que não havia sido esgotada a instância anterior com a interposição de Agravo Regimental contra a decisão monocrática do STJ. A discrepância de entendimentos mostra a verdadeira loteria a que estamos expostos. O movimento do STF em matéria tão sensível quanto a do habeas corpus vai na linha da “segurança jurídica zero”, pois aplica o novo entendimento jurisprudencial a caso aflorado quando inexistia a restrição em questão. Ou seja, manejado validamente o writ quando não se exigia a prévia interposição de agravo regimental na Corte de origem, agora o paciente fica sem jurisdição, pois, o

habeas no STJ já julgado e negado ficou sem recurso, enquanto no STF o mandamus é extinto por falta de pressuposto. De se notar que o próprio STF, embora em matéria eleitoral, já tenha, com toda a procedência, proclamado a ideia segundo a qual: Mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica23. Com a nova jurisprudência, por outro lado, em matéria da efetividade do habeas corpus, também se esvaziou a garantia. A Constituição é clara quando coloca debaixo da competência do STF a coação emanada de Tribunal Superior “ou quando o coator ou paciente for autoridade (...) cujos atos estejam diretamente sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal (...)” (art. 102, I, i). Se assim não fosse, não haveria espaço para a superação da Súmula 691, como admite o julgado relatado pelo Min. Fux, mesmo sem a interposição do Agravo Regimental. O STF criou uma armadilha interpretativa não apenas para os advogados e os cidadãos, que podem diretamente manejar o writ, mas para si próprio, que navegará no subjetivismo de cada ministro e, pior, permitirá a continuidade da ilegalidade. Preocupa-se tanto com o que o habeas corpus não deve ser, que se esqueceu do que ele é na sua essência histórica24: um instrumento apto a coibir ilegalidades contra aliberdade do constrangido,sem qualquer entrave burocrático ou formalismo. Aliás, o STF, historicamente, decidia no sentido de que, não obstante as orientações restritivas do conhecimento de habeas corpus, as barreiras processuais devem ser mitigadas para conceder a ordem ex officio quando se discute diretamente o status libertatis do paciente: Assinalo, no entanto, que, mesmo em impetrações contra decisões monocráticas de Ministros de outros Tribunais Superiores da União, a colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ainda que não conhecendo writ constitucional, tem concedido ex ofício, a ordem de habeas corpus naqueles casos em que se evidencie patente a situação caracterizadora de injusto gravame ao status libertatis do paciente (HC 118.560, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, v.g.)”25. No campo da Justiça Penal, no qual a ideia de Justiça em sentido substantivo deveria imperar, o importante não deveria ser o instrumento utilizado para se veicular o pleito, mas a sua procedência ou não. Isso até em homenagem a tão decantada instrumentalidade das formas que, como referido, é normalmente invocada para flexibilizar garantias de defesa. Daí, convém repetir, a importância do pronunciamento do Min. Marco Aurélio no voto vencedor proferido no HC n. 86.864-SP(MC) sobre o habeas corpus e a postura do juiz quando vai julgá-lo: O habeas corpus é uma ação constitucional de envergadura maior, e o é porque inerente a um princípio constitucional explícito, implícito, e diria próprio ao direito natural, que é o princípiobase da vida: a liberdade. Não sofre o habeas corpus qualquer peia. Contenta-se a ordem jurídica constitucional com o concurso de três elementos, envolvido aí o próprio Estado-Juiz: o primeiro, ter-se como configurada uma ilegalidade; o segundo, o cerceio ou a ameaça – contenta-se a ordem jurídica constitucional com a simples ameaça de cerceio à liberdade de ir vir __; e o terceiro, para chegar-se ao objeto buscado pelo habeas corpus, a existência de um órgão a que se possa recorrer26. Aqui, como dissemos anteriormente, mais do que nunca, é preciso realçar que o juiz “tem de se conscientizar que o habeas corpus, não é processo como outro qualquer, em que o formalismo pode impedir se alcance o âmago do conflito. Não. Ele é remédio rápido, expedito, acessível a todos, quando exista constrangimento efetivo ou potencial. Reduzir o habeas corpus a um procedimento calcado em regras inflexíveis, válidas para os direitos indisponíveis, constitui selarlhe a morte”27. Essa nova exigência constitucional, ao mortificar a celeridade da garantia pétrea do habeas

corpus, abre a possibilidade de se recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo comprometimento da sua eficácia.

4. Proibição do habeas corpus substitutivo do RHC (o revigoramento do AI-6) Embora para o advogado seja mais cômodo interpor o recurso ordinário constitucional (RHC), pois todos os documentos já estão compendiados nos autos e cabe ao Tribunal recorrido remetêlos à Corte Superior, não raro ele se vê obrigado a dirigir-se diretamente a esta com um habeas substitutivo do recurso. É trabalhoso. É preciso reunir documentos novamente e, agora, digitalizálos. Mas isso é feito por uma razão simples, embora importante: a urgência na apreciação da medida cautelar; a eficácia da tutela. Se esperar o processamento do recurso, que só pode ser interposto após a publicação do acórdão, terá de aguardar as contrarrazões do Ministério Público e, não bastasse, o despacho determinando a subida dos autos e sua publicação. Vale dizer, ou o paciente ficará preso por pelo menos dois meses até ver apreciada a liminar, ou sofrerá o gravame processual que se quer evitar, por exemplo, o estrepitoso interrogatório em caso rumoroso e por aí vai. Foi com o AI-6, de 1º de fevereiro de 1969, que se mudou o processamento do habeas corpus. Das decisões denegatórias proferidas pelos Tribunais de Justiça dos Estados e pelo Tribunal Federal de Recursos (lembremo-nos que os Regionais Federais só vieram com a Constituição Federal de 1988) era perfeitamente possível impetrar-se habeas corpus originário substitutivo do RHC. A jurisprudência o admitia desde 1951, como percucientemente anotou o Min. Moreira Alves no voto que proferiu no RHC n. 67.78828. Com isso, ganhava-se em termos de celeridade. Todavia, com o AI-6 introduziu-se um complemento ao disposto no art. 114, II, a, da Constituição Federal de 1946, de modo que o dispositivo passou a ter a seguinte redação: Art. 114. Compete ao Supremo Tribunal Federal: II – Julgar, em recurso ordinário: a) Os habeas corpus decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais locais ou Federais quando denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido originário. Com a vedação da utilização do habeas substitutivo do RHC, o STF passou rigorosamente a não admitir os habeas substitutivos29. Ademais, a tramitação do remédio heroico passou a ser mais lenta, pois, como dito, interposto o recurso no Tribunal de origem, haveria de se aguardar as contrarrazões do Ministério Público (de discutível cabimento), o despacho do presidente da Corte de origem, sua publicação e, só depois, a remessa dos autos à Capital Federal, coisas, ainda hoje, comumente demoradas, mesmo com o processo eletrônico. O regramento constitucional em vigor, estabelecido pela Constituição de 1988, não reproduziu a proibição constante do AI-6 e, por essa razão, passou-se a admitir o manejo do habeas substitutivo do RHC. Elucidativo a esse respeito o acórdão relado pelo Min. Costa Lima: “A Constituição em vigor não opõe restrições à impetração originária de habeas corpus, visando a substituir o recurso ordinário”30. No STF, a jurisprudência construída pelo Pleno, em julgamento realizado em 1º de agosto de 1990, relatado pelo Min. Moreira Alves, foi clara nesse sentido: Com efeito, sob o império da Constituição de 1946, de quaisquer decisões denegatórias de habeas corpus proferidas por Tribunais locais ou federais cabia recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal, porque, acima deles, só se encontrava este. Como a Constituição de 1946 não proibia a substituição do recurso ordinário pela impetração originária (e esta se fundava na letra h do inciso I do art.  101 daquela Constituição), o Supremo Tribunal Federal – (...) – admitiu pelo menos a partir de 1951, pacificamente, que essa substituição era possível. E só deixou de admiti-la porque o AI-6, de 1º de fevereiro de 1969, para impedir essa orientação firmada por esta Corte, proibiu expressamente que, no âmbito do S.T.F., essa substituição se fizesse, proibição que foi mantida pela Emenda Constitucional n. 1/6931. E, com boa lógica, completava o acórdão:

Ora, se a atual Constituição se omitiu quanto a essa proibição, quer quanto ao S.T.F. quer quanto ao S.T.J., nos casos em que admite recurso ordinário de habeas corpus para eles, o sentido normal dessa omissão é o de ter deixado de haver a proibição, que tanto não era infensa ao sistema processual do habeas corpus que o Supremo Tribunal Federal, de 1951 a 1969, admitiu pacificamente essa substituição. Após a Constituição de 1988, deixou de haver restrição ao emprego do habeas substitutivo até o julgamento do HC n. 109.956, realizado em 2011, da relatoria do Min. Marco Aurélio, assim ementado: Habeas corpus – Julgamento por tribunal superior – Impugnação. A teor do disposto no artigo 102, inciso II, alínea a, da Constituição Federal, contra decisão, proferida em processo revelador de habeas corpus, a implicar a não concessão da ordem, cabível é o recurso ordinário. Evolução quanto à admissibilidade do substitutivo do habeas corpus.32 No voto-condutor do aresto, o Relator consigna como razão determinante para a nova interpretação a sobrecarga de processos que assola o STJ e o STF. Dado esse quadro é que se veio a estabelecer a nova interpretação de índole restritiva. O Min. Dias Toffoli votou vencido. Salientou que a jurisprudência “tanto da Primeira Turma, até o dia de hoje, quanto da Segunda Turma, [vem] entendendo viável e cabível a via do habeas corpus”. E completou: Desde o Código Processual Penal do Império, é previsto que, sempre que um juiz, ou tribunal, se depare com uma ilegalidade, ele deve conceder a ordem, mesmo que de ofício, se for o caso de constrição à liberdade de ir e vir do cidadão. Não vejo como colocar peias à viabilização do acesso do habeas corpus como substitutivo do recurso ordinário. Compreendia-se que na ditadura se quisesse manietar a ação do STF para afastar constrangimentos ilegais, muito embora, verdade seja dita, aos militares era indiferente a sorte dos pacientes nos crimes comuns, mais parecendo que o regramento introduzido pelo AI-6 tenha provindo de pedidos dos ministros da própria Suprema Corte. Mas a Constituição democrática de 1988, embora preveja o recurso ordinário em habeas corpus, não repetiu a vedação do AI-6. É tenebroso, depois de mais de 25 anos da vigência da Constituição de 1988, que o STF ressuscite a vedação pela via interpretativa. Há muita preocupação em celeridade para punir, mas parece que há pouca para a correção de erros que possam afetar a liberdade, direta ou indiretamente. Seja como for, o próprio Ministro Marco Aurélio propôs a revisão parcial do entendimento restritivo para ressalvar os casos em que se discute diretamente a liberdade, isto é, a ilegalidade do decreto de prisão. No HC n. 115.601 a ementa diz o seguinte: Habeas corpus – Substitutivo do recurso ordinário constitucional – Liberdade de locomoção atingida na via direta – Adequação. Sendo objeto do habeas corpus a preservação da liberdade de ir e vir atingida diretamente, porque expedido mandado de prisão ou porquanto, com maior razão, esta já ocorreu, mostra-se adequada a impetração, dando-se alcance maior à garantia versada no artigo 5º, inciso LXVIII, da Carta de 1988. Evolução em óptica linear assentada anteriormente. (DJ 08/08/2013). No corpo do julgado, reconhecendo as dificuldades do processamento do RHC, sublinhou-se: Sensibiliza a angústia da comunidade jurídica e acadêmica com a circunstância de o recurso ordinário seguir parâmetros instrumentais que implicam a demora na submissão ao órgão competente para julgá-lo. Isso acontece especialmente nos Tribunais de Justiça e Federais, onde se aponta que, a rigor, um recurso ordinário em habeas corpus tramita durante cerca de três a quatro meses até chegar ao Colegiado, enquanto o cidadão permanece preso, cabendo notar que, revertido o quadro, a liberdade, ante a ordem natural das coisas, cuja força é inafastável, não lhe será devolvida. O habeas corpus, ao contrário, tem tramitação célere, em razão de previsão nos regimentos em geral. A 2ª Turma do STF não acompanhou o movimento restritivo da 1ª Turma. Em sentido oposto:

“possui entendimento consolidado no sentido da possibilidade de impetração de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário (HC 122.268, Relator: Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, DJe de 04/08/2015; HC 112.836, Relatora Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 15/08/2013; HC 116.437, Relatora Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 19/06/2013)”33. No julgamento do HC n. 106.566, o Min. Gilmar Mendes trouxe a colação o voto proferido no HC 111.670, no qual sustentou o cabimento do habeas corpus substitutivo do recurso ordinário, nos seguintes termos: Como já tive a oportunidade de me manifestar, não olvido as legítimas razões que alimentam a preocupação com o alargamento das hipóteses de cabimento do habeas corpus e, com efeito, as distorções que dele decorrem. Contudo, incomoda-me mais, ante os fatos históricos, restringir seu espectro de tutela. O valor fundamental da liberdade, que constitui o lastro principiológico do sistema normativo penal, sobrepõe-se a qualquer regra processual cujos efeitos práticos e específicos venham a anular o pleno exercício de direitos fundamentais pelo indivíduo. Ao Supremo Tribunal Federal, como guardião das liberdades fundamentais asseguradas pela Constituição, cabe adotar soluções que, traduzindo as especificidades de cada caso concreto, visem reparar as ilegalidades perpetradas por decisões que, em estrito respeito a normas processuais, acabem criando estados de desvalor constitucional34. No HC 121.419, julgado pela 2ª Turma em 2.09.2014, o Ministro voltou a manifestar sua contrariedade e preocupação com as teses pela limitação do habeas corpus. O jornalista Pedro Canário, atento observador da cena judiciária, em matéria publicada na Revista eletrônica Conjur, sob o sugestivo título “Supremo substitui HC substitutivo pelo HC de ofício”, com inteira razão disse que “O fato de o Supremo Tribunal Federal ter mudado sua jurisprudência para deixar de aceitar o Habeas Corpus como substitutivo de Recurso Ordinário não reduziu a quantidade de ilegalidades cometidas pela repressão estatal. E também não significa que o tribunal passou a ignorar os abusos que lhe são relatados”35. Com base nas estatísticas do próprio tribunal, é possível perceber que, à medida que o tribunal foi deixando de aceitar os Habeas Corpus substitutivos, aumentou consideravelmente o número de ordens concedidas de ofício. A concessão de ofício é quando o tribunal entende que, no caso concreto, o Habeas Corpus não é a via processual adequada para o pedido, mas reconhece que há uma ilegalidade sendo cometida”. Os números do Supremo mostram que, por mais que o requisito formal tenha passado a derrubar os Habeas Corpus, o número de concessões de ofício, que eram raras, aumentou — e muito. Em 2011, por exemplo, 327 HCs foram concedidos, e em 55 casos a ordem foi concedida de ofício36. A sistemática adotada criou o seguinte paradoxo: por um lado, reconhece-se a inadequação da via, mas, por outro, examina-se o pedido e, quando presente o constrangimento, concede-se a ordem de ofício nos exatos termos em que pedida. Não faz sentido; parece que é como trocar seis por meia dúzia. Mas não é. Perde o paciente, pois quando se afirma que, por se tratar de conhecimento de ofício, o constrangimentodeve vir mais nítido ainda, somente para casos de flagrante ilegalidade; restringe-se ainda mais o conhecimento do remédio heroico. Aprofunda-se o subjetivismo no exame da ordem de habeas corpus. Como alertou Aury Lopes Jr. em sugestivo artigo doutrinário também publicado na revista eletrônica Conjur, “a moda agora é das habeas corpus de ofício, mas só quando eu quiser”37. Gustavo Badaró também comunga do mesmo entendimento ao apontar que, “além da ilogicidade, abre-se a porta para perigosa seletividade e discricionariedade”38 Tudo a bagunçar a sistemática processual que reservava o não conhecimento aos casos de falta de pressuposto ou inadequação da via por se pretender, por exemplo, a recondução de alguém a um cargo público. Pior mesmo é o comprometimento da eficácia da garantia constitucional, que se torna débil pela morosidade e subjetivismo.

5. Proibição de RHC para o STF contra acórdão de RHC do STJ e de concessão de ofício da ordem (o garrote final) Com a vedação, iniciada pelo STF, de se substituir o recurso ordinário (RHC) pelo habeas corpus originário, o STJ passou também a vedar a impetração originária e, como visto acima, ambas as Cortes passaram a não conhecer das diferentes impetrações, mas quando o caso, têm concedido a ordem de ofício nos termos do que autoriza o art. 654, § 2º, do CPP. Quando entendem o contrário, isto é, que não é caso de concessão do habeas, simplesmente não conhecem a ordem. Há, como já realçado, uma nítida confusão entre pressupostos processuais que podem levar ao não conhecimento do writ, como, por exemplo, a impossibilidade jurídica do pedido ou inadequação da via eleita, com aspectos de mérito, ligados à concessão da ordem. Os advogados passaram então a recorrer ordinariamente das decisões colegiadas que denegavam a ordem de habeas corpus nos Tribunais estaduais e nos Regionais federais. Mas aí surgiu a questão de saber se do acórdão proferido pelo STJ em RHC caberia outro recurso ordinário para o STF? Ou outro habeas originário para o STF? O art. 102, inc. II, letra a da Constituição Federal dispõe que compete ao STF julgar em recurso ordinário: a) o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão; A regra é clara e, a contrário senso, não cabe novo RHC de julgado oriundo dos Tribunais Superiores tirado de outro recurso. Foi o que decidiu monocraticamente o Min. Gilmar Mendes no Agravo de Instrumento interposto no RHC n. 120.363 contra decisão do Presidente do TSE, que não dera trânsito a recurso ordinário para o STF interposto contra acórdão proferido em RHC pela Corte eleitoral. A ementa do julgado tem a seguinte moldura: Com efeito, a decisão da Presidência do TSE corretamente atestou que “o art. 102, inc. II, alínea ‘a’ da Constituição da República dispõe que o recurso ordinário deve ser interposto apenas contra decisão denegatória em mandado de segurança, habeas corpus, mandado de injunção e habeas data, quando decididos em única instância pelos Tribunais Superiores”. (fl. 125). Nesse sentido, constitui erro grosseiro a interposição de recurso ordinário contra decisão proferida já em sede de recurso ordinário. Por consequência, tampouco cabe agravo contra sua respectiva inadmissibilidade39. Na mesma linha dessa decisão, a Primeira Turma do STF não tem conhecido de recurso ordinário em habeas corpus manejado no STF contra decisão do STJ tirado de outro recurso ordinário. A ementa do RHC n. 123.706, relatado pela Min. Rosa Weber, além de assinalar o descabimento de novo RHC, afirma ser cabível apenas o Recurso Extraordinário (RE): Contra acórdão exarado em recurso ordinário em habeas corpus cabível o recurso extraordinário previsto no art. 102, III, da Constituição Federal, e não o manejo de novo recurso ordinário, como no presente caso, o que conduz a seu não conhecimento40. Parcialmente no mesmo sentido, sem aludir ao cabimento apenas do RE, o acórdão da 2ª Turma no HC n. 122.681, relatado pelo Min. Ricardo Lewandowski: Este recurso volta-se contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento em parte ao recurso ordinário em habeas corpus manejado na origem. Desse modo o pleito não pode ser conhecido, haja vista que o art.  102, II, a, da Constituição Federal dispõe que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, em recurso ordinário, “o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão”41. Todavia, aplicando o princípio da fungibilidade, o mesmo acórdão da 2ª Turma, numa evidente busca da realização de justiça em sentido substantivo, que rejeita formalismos estéreis, ressalvou a

possibilidade de se conhecer do RHC como impetração originária: Contudo, em homenagem aos princípios da fungibilidade e da economia processual, é caso de receber o recurso ordinário como impetração originária de habeas corpus. Em decisão posterior, no Agravo Regimental no HC 125.298, a mesma Primeira Turma, seguindo o voto condutor da Min. Rosa Weber, vencido o Min. Marco Aurélio, foi além e sustentou a ideia segundo a qual também o habeas corpus originário para o STF não cabe diante de acórdão proferido em outro recurso ordinário no STJ: 1. Contra acórdão exarado em recurso ordinário em habeas corpus remanesce a possibilidade de manejo do recurso extraordinário previsto no art.  102, III, da Constituição Federal. Diante da dicção constitucional, inadequada a utilização de novo habeas corpus, em caráter substitutivo42. Para chegar a essa conclusão, o voto condutor do referido RHC bate na tecla de que não cabe HC originário para o STF contra acórdão do STJ, tema que o próprio Min. Marco Aurélio havia superado na Turma como destacamos acima ao cuidar desta matéria. O ponto, como sublinhado pelo Min. Roberto Barroso em decisão monocrática proferida no HC n. 138.413, é que: A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento no sentido da inadmissibilidade da impetração de habeas corpus em substituição ao recurso extraordinário, previsto no art. 102, III, da Constituição Federal (HC 110.055, Rel. Min. Marco Aurélio, HC 106.158, Rel. Min. Dias Toffoli, e HC 118.568, Rel. Min. Rosa Weber)43. Destaque-se que no HC 125.298 se discutia a ilegalidade da prisão preventiva imposta ao paciente, portanto, tema diretamente ligado ao direito de locomoção. A prevalecer esse entendimento restritivo, a Suprema Corte não mais apreciará a ilegalidade da prisão preventiva, pois, na essência, os habeas veiculam assuntos próprios da legislação ordinária ligados aos requisitos autorizadores da medida, tal como previstos no art.  312 do CPP. A jurisprudência constitucional da liberdade, que o STF construiu de maneira exemplar, sobretudo após a Constituição de 1988 – e é tão cara aos cidadãos – parece ter data marcada para findar44. Imposta a limitação extrema – e inédita – ao manejo do habeas no STF, até que se poderia ter, como válvula de escape, a concessão da ordem de ofício. Todavia, o Min. Edson Fachin vem decidindo que tal possibilidade é inviável, ou melhor, só vale quando o feito se encontrar “legitimamente” na mesa do Ministro, nas suas palavras: (...) cumpre assinalar que o Código de Processo Penal, ao permitir que as autoridades judiciárias concedam a ordem de ofício em habeas corpus, apenas o fez quanto aos processos que já lhes são submetidos à apreciação: “Art. 654. (…) §  2º Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal”. De tal modo, ao meu sentir, não se admite que o processo tenha como nascedouro, pura e simplesmente, a alegada pretensão de atuação ex officio de Juiz ou Tribunal, mormente quando tal proceder se encontra em desconformidade e com as regras de competência delineadas na Constituição da República. Em outras palavras: somente se cogita da expedição da ordem de ofício nas hipóteses em que não se desbordar da competência do órgão, de modo que essa não pode ser a finalidade precípua da impetração45. Dito de outra maneira, não se pode conceder habeas de ofício quando o STF não detenha competência para julgar o feito. A interpretação preconizada pelo ministro bate de frente com a jurisprudência da própria corte que, como assinalado, admite a concessão da ordem de ofício quando for flagrante a ilegalidade ou houver choque entre a decisão criadora do constrangimento ilegal e a jurisprudência da Corte. A propósito, esse entendimento contrasta com julgados dos anos 80, como se vê da RT 570/420, rel. Min. Aldir Passarinho, assim ementado:

Impetração de habeas corpus embora seja possível a interposição de recurso extraordinário. Inexistência de controvérsia quanto aos fatos. A jurisprudência do S.T.F. tem admitido a impetração de habeas corpus ainda que seja a decisão atacada por essa via suscetível de ser objeto de recurso extraordinário. Não havendo controvérsia quanto aos fatos, há de apreciar o tribunal a quo o pedido, que se restringe a matéria unicamente de direito. Habeas corpus parcialmente deferido para que o tribunal a quo o decida quanto ao mérito46. Chama atenção que na AP n. 568, relatada pelo Min. Roberto Barroso, a Primeira Turma do STF, mesmo tendo reconhecido a perda da competência em decorrência da não reeleição do parlamentar, concedeu-lhe ordem de habeas corpus de ofício para absolvê-lo. Como o voto do relator era pela absolvição, “vulneraria o mandamento da celeridade processual deixar-se de formalizar a extinção do processo com base no art.  386, III do CPP quando relator e revisor já haviam formado tal convicção”47. Também no HC n. 120.436, relatado pelo Min. Luiz Fux, embora não se tivesse discutido nas instâncias anteriores o tema do excesso de prazo para a prisão e não se tivesse interposto agravo regimental contra a decisão monocrática do STJ que negou seguimento ao habeas corpus no STJ, ultrapassando a Súmula 691, concedeu-se a ordem de ofício para se evitar a perpetuação de uma ilegalidade48. No HC 138.862, impetrado contra acórdão do STJ prolatado em Recurso Especial, a ordem foi concedida liminarmente, sem pedido de informações ou mesmo Parecer do MPF, a dizer que é possível impetrar o writ, ainda que possível o manejo do Recurso Extraordinário49. Em outras palavras, parece ganhar corpo uma espécie de subjetivismo segundo o qual cabe o writ quando é caso de concessão da ordem. Assim, confundem-se novamente aspectos de mérito com os pressupostos de cabimento, coisa que enseja um tipo de julgamento sumário do remédio em prejuízo da ampla defesa que, no mais das vezes, ficará sem a possibilidade de sustentar oralmente se a ordem, monocraticamente, foi obstada no seu nascedouro. A subsistir a interpretação formalista do ministro Fachin e majoritariamente consolidada na 1ª Turma, típica dos que tem formação privatista, as ilegalidades prevalecerão em detrimento da regra estatuída no Código de Processo Penal de 1941 e, o mais grave, da própria ideia de justiça em sentido material. Sem embargo, na Segunda Turma não vigora o mesmo entendimento quanto ao cabimento do habeas corpus. Ali se tem julgado normalmente os habeas impetrados contra acórdãos proferidos pelo STJ e outros Tribunais Superiores, como se pode ver, por exemplo, dos acórdãos proferidos no HCs ns. 127.186, 127.823, 130.254, quando se discutiu a legalidade da prisão preventiva imposta aos empresários da Operação Lava Jato e, por extensão, no primeiro deles vários outros foram colocados em liberdade50. As impetrações foram conhecidas sem divergência, mas deferidas apenas por maioria. Também casos nos quais se veiculam temas ligados ao devido processo legal têm sido apreciados até mesmo recursos em habeas corpus interpostos contra acórdãos proferidos em habeas corpus impetrados no STJ, como se vê do RHC n. 119.900, que cuidou da nulidade de ato processual praticado por falso advogado51. O novo entendimento da Primeira Turma do STF, além da concepção do papel mais restrito da missão da Corte Suprema, traduz, inescondivelmente, uma tentativa de limpar a pauta, já tão congestionada. A proclamada “autocontenção” tem caráter nitidamente funcional, pois a Constituição é clara quando no art.  102, I, i sustenta ser da competência originária do STF processar e julgar: (...) o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal (...)

Embora pareça óbvio, negada a ordem de habeas corpus por qualquer Tribunal Superior, leiase, STJ, STM ou TSE, a Corte assume o papel de coatora e, portanto, é competente o Supremo Tribunal Federal para sanar a coação. Alexandre de Moraes é taxativo a respeito: “ao STF permanece a competência originária para os habeas corpus ajuizados em face dos Tribunais Superiores”52. Bem por isso, José Afonso da Silva, ao tratar da competência do STF na Constituição de 198853, fala da jurisdição constitucional da liberdade, como exprimiu Mauro Cappelletti54 na sua conhecida obra. O Supremo, por mais que queira se demitir de questões aparentemente de menor importância, do “varejo dos casos penais”, não pode se esquivar da sua competência constitucional, salvo, é claro, como parece evidente, se houver mudança na própria Constituição. A discussão em foco, cabe alertar, não é nova. Aparece no Pleno da Suprema Corte nos albores da Constituição de 1988. Foi o então novato na Corte, Min. Sepúlveda Pertence, um dos maiores juízes do século XX daquele Tribunal, quem primeiro defendeu a impossibilidade de se manejar RHC contra acórdão de Tribunal Superior emanado de idêntico remédio. Salientou, no voto vencido que proferiu no RHC 67.788, que a atual Constituição rompeu com a tradição “liberalíssima de nosso constitucionalismo” e completou: “o sistema do recurso ordinário já não garante mais a chegada da impetração desatendida ao Supremo, nem sequer ao Superior Tribunal de Justiça: a ambos só se deu competência para o recurso ordinário contra denegação dos Tribunais de graduação imediatamente inferior, quando decidida em única instância”55. Ocorre que a posição do Min. Pertence, além de isolada, foi vencida e com argumentos irrespondíveis por parte da maioria, mas particularmente no voto condutor do Min. Moreira Alves: (...) ao contrário do que afirmou o eminente Ministro Sepúlveda Pertence, para o S.T.J. continua a caber recurso ordinário contra decisões denegatórias de habeas corpus em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais locais, e não apenas em única instância (veja-se o teor do artigo 105, II, a, da atual Constituição). E, noutra passagem, voltou a insistir que, contra as decisões denegatórias do STJ, “caberia, pela letra i, do inciso I, do artigo 102, habeas corpus originário (...)”. E, adiante, volta a defender a possibilidade da substituição do recurso ordinário pelo habeas originário, substitutivo daquele. Em arremate, é digno de nota que com a Súmula 691, editada em 2003, procurou-se impedir o manejo do habeas contra o indeferimento de liminar em idêntica medida por órgão jurisdicional inferior. Daí o verbete sumulado pelo Supremo Tribunal Federal ter restringido a sua competência apenas quando se ataca a liminar indeferida, mas não quando se hostiliza o acórdão que denega a própria ordem: “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”. Todavia, tratando-se de impetração de habeas voltada contra a denegação da ordem, nenhum óbice foi erigido. Isso mostra que sempre e sempre o STF reconheceu sua competência constitucional para julgar os habeas que lhe eram dirigidos. Mesmo a jurisprudência restritiva, que procura impedir o manejo de writ em substituição ao recurso ordinário, nunca sustentou que este era incabível. Ou seja, de uma forma ou de outra, a competência do STF para conhecer de impetrações originárias ou de recursos ordinários nunca foi negada. É bom registrar que a jurisprudência restritiva quanto ao manejo do habeas originário, substitutivo do recurso para o STF, empurrou os advogados para a interposição do recurso ordinário, para, depois, firmar posicionamento de que este não cabe. Se foi de caso pensado, ou se houve uma involução no pensamento que nega eficácia à proteção a Direitos Fundamentais de caráter processual penal, é difícil adivinhar. O voluntarismo restritivo, mais que atentar contra a letra da Constituição e a própria história do STF em matéria tão sensível como a da tutela da liberdade de locomoção, traduz um autoritarismo preocupante, pois é como se quisessem reformar a Constituição sem ouvir ninguém. Parafraseando Eros Grau: se os argumentos funcionalistas (excesso de processos, leia-se, de trabalho), prevalecerem sobre os normativos, “o perigo de juízos irracionais aumenta”56. É o que, pesa dizê-lo, estamos assistindo quando pela via interpretativa se amesquinha o cabimento do

habeas corpus.

6. Proibição de habeas corpus contra ato de Ministro do STF (king can do no wrong) A Súmula 606 do STF, aprovada em 29 de outubro de 1984, é muito clara “não cabe habeas corpus originário para o tribunal pleno de decisão de turma, ou do plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso”. Embora questionável, pois, quando editada a referida Súmula, o Recurso Extraordinário decidido por uma Turma comportava Embargos de Divergência em matéria de interpretação do direito federal (RISTF, art. 330), coisa que após 1988 passou a ser da esfera do Recurso Especial, o fato é que julgado o habeas pela Turma, a questão estava sepultada. Bem ou mal, mal ou bem, havia o pronunciamento do órgão colegiado, precedido de Parecer do Ministério Público Federal e sustentações orais etc. Agora, porém, reavivando a antiga e conhecida teoria do king can do no wrong57, que embasava a prerrogativa da irresponsabilidade dos reis, ampliou-se o alcance da Súmula 606 para se impedir o manejo de habeas corpus contra atos de Ministros da Corte. Sim, eles não erram. Mas, ainda que excepcionalmente, pode o relator de uma investigação, ação penal, habeas corpus ou recurso extraordinário, ocasionar prejuízo ao investigado, imputado, paciente ou recorrente. Por exemplo, praticando ato constritivo como a determinação de prisão ou retardando a apreciação do habeas corpus. Pode também requisitar inquérito sem justa causa. Assim, é estranho que não se permita questionar eventual constrangimento ilegal praticado pelo relator de uma ação penal ou de um habeas. Dir-se-á que cabe Agravo Regimental; sim, mas este recurso é processado pelo próprio Ministro que provoca o constrangimento. Ele leva o recurso em Mesa quando bem entender e expõe o caso como lhe apraz. Pior é que não cabe sustentação oral. Já o habeas é distribuído para outro ministro, que pode conceder medida cautelar, e possibilita a sustentação oral da tese esgrimida. Portanto, garante mais o direito de defesa que, segundo a Constituição, deve ser amplo. O tema do cabimento de habeas contra ato do relator no STF foi longamente discutido no HC n. 91.352 (DJ 18/04/2008), do qual foi relator o saudoso Min. Menezes Direito. A ordem não foi conhecida, pois se entendeu que o ato coator (demora na apreciação de um habeas), havia sido encampado pela Turma. Assim, a eventual coação seria atribuível a esta e, consequentemente, aplicável o verbete da Súmula 606. Sem embargo, o voto vencido do Min. Celso de Mello, dando uma verdadeira aula sobre o tema, mostra o cabimento do writ contra ato de Relator. No ponto, vale destacar a ementa de antigo julgado da lavra do Min. Pertence, referido no voto: Habeas corpus: cabimento contra decisão individual do relator que nega provimento a agravo visando à subida do recurso extraordinário, ainda que restrita à questão da admissibilidade deste (HC 69.138, 26/02/1992); descabimento, porém, se, à decisão individual do relator, sobreveio acórdão da Turma, que a confirmou (HC 76.628, (QO, 12.3.98). (...) (RTJ 167/643, rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, grifei). Cumpre não desconhecer, portanto, para efeito de correta (e pertinente) aplicação dos precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal – HC 85.099/CE, rel. Min. Marco Aurélio (admissibilidade de habeas corpus contra decisão monocrática do Relator da causa) eHC 76.653/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence (...). Ao final do voto, o Ministro Celso de Mello disse: Presente esse contexto, e por haver decisão monocrática imputável ao Relator da causa, torna-se plenamente cognoscível a presente ação de habeas corpus, nos termos da própria jurisprudência desta Suprema Corte (RTJ 146/597 – RTJ 167/643 – HC 84.444 AgR/CE, Rel. Min. Celso de Mello). Em outra oportunidade, tendo como relator o Min. Marco Aurélio, o Pleno do STF conheceu e concedeu parcialmente o HC n. 93.553 (DJe 04/09/2009) impetrado contra ato de Ministro que, na Ação Penal 420, determinara a realização do interrogatório do acusado. O julgado, marcado pela reserva de vários ministros quanto ao conhecimento do writ por se tratar de ato de Ministro da

Corte, porta a seguinte ementa: Habeas corpus – Adequação. Surge a adequação do habeas corpus com a articulação de prática de ato ilegal e a existência de órgão capaz de afastá-lo. Outra hipótese interessante – e que atesta a possibilidade de se impetrar habeas contra ato de ministro – deu-se no curso do Inquérito 2424-RJ (Operação Furacão) perante o STF. O relator, Min. Cezar Peluso, identificando erradamente no comportamento dos advogados o vazamento de informações cobertas pelo sigilo, determinou a instauração de Inquérito para apurar o eventual crime por parte destes. O Conselho Federal da OAB impetrou habeas corpus, que tomou o número 91.551 (DJe 27/02/2009), sob a relatoria do Min. Marco Aurélio. Malgrado, por maioria de votos, não se tenha conhecido da impetração por não reconhecer qualquer conduta irregular da parte do Min. Cezar Peluso, a ordem foi concedida de ofício. Eis a ementa: Inquérito – Representantes processuais – Envolvimento como investigados – Impropriedade. Verifica-se a impropriedade de inquérito relativamente a representantes processuais de envolvidos em certa investigação quando as peças existentes, o contexto revelado, não conduzem a indícios de participação em prática delituosa como é a que implique a publicidade de dados cobertos por sigilo. HABEAS CORPUS – Ato de integrante do Supremo – Inadequação. Na óptica da ilustrada maioria, em relação à qual guardo reservas, mostra-se incabível habeas corpus contra ato de integrante do Supremo. Diante desta decisão houve a oposição de embargos declaratórios. Estes foram conhecidos e providos para declarar expressamente que os votos não recusavam a possibilidade de se impetrar habeas contra ato de ministro do STF. Admitiram unicamente que não havia coação emanada do ministro Cezar Peluso. A ementa não deixa dúvidas: Embargos declaratórios – Acórdão – Contradição – Ementa e votos proferidos – Afastamento. Uma vez constatada contradição no acórdão, considerada ementa e votos proferidos, impõe-se o provimento dos embargos declaratórios. Isso ocorre quando, na ementa, assenta-se o não cabimento de habeas corpus contra ato de integrante do Tribunal e, nos votos, não admitindo a impetração, versa-se a inexistência da prática do ato pela autoridade ou órgão apontado como coator (DJe 11/06/2010). Os ventos mudaram e a jurisprudência, hoje, inadmite o emprego do habeas contra ato de Ministro. O decano da Corte, Min. Celso de Mello, ressalvando sua posição pessoal em sentido contrário, exposta no voto vencido no HC n. 91.207/RJ, faz um excelente histórico na decisão monocrática que proferiu no HC n. 113.222 (DJe 23/08/2012): Observo que a jurisprudência desta Corte entendia possível o ajuizamento da ação de habeas corpus “em face de decisões monocráticas proferidas pelo Relator da causa” (HC 84.444-AgR/CE, Rel. Min. Celso de Mello – HC 85.099/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, v.g.). Ocorre, no entanto, que essa diretriz jurisprudencial modificou-se, pois o Plenário deste Tribunal não mais tem admitido habeas corpus quando impetrado contra Ministros desta Suprema Corte (HC 91.207/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. Eros Grau – HC 100.397/MG, Rel. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia – HC 100.738/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia): “Habeas corpus. Ação de competência originária. Impetração contra ato de Ministro Relator do Supremo Tribunal Federal. Decisão de órgão fracionário da Corte. Não conhecimento. HC não conhecido Aplicação analógica da súmula 606. Precedentes. Voto vencido. Não cabe pedido de ‘habeas corpus’ originário para o tribunal pleno, contra ato de ministro ou outro órgão fracionário da Corte.” (HC 86.548/SP, Rel. Min. Cezar Peluso – grifei). Vale referir, por relevante, que o E. Plenário deste Supremo Tribunal Federal, em sucessivos julgamentos sobre o tema ora em análise, vem de reafirmar esse entendimento, no sentido da inadmissibilidade do “habeas corpus” quando impetrado, como ocorre na espécie, contra Ministro Relator desta Corte Suprema (HC 104.843-AgR/BA, Rel. Min.

Ayres Britto): “Agravo regimental. ‘Habeas corpus’. Processual penal. Impetração dirigida contra decisão singular de ministro do Supremo Tribunal Federal. Aplicação analógica da Súmula 606. Negativa de seguimento do ‘writ’. Decisão recorrida em sintonia com a jurisprudência deste nosso tribunal. Agravo desprovido. 1. A recente orientação jurisprudencial desta nossa Casa de Justiça é no sentido do descabimento da impetração de habeas corpus contra ato de Ministro Relator do próprio Tribunal, por aplicação analógica da Súmula 606/STF. (Cf. HC 100.738/RJ, Tribunal Pleno, redatora para o acórdão a ministra Cármen Lúcia, DJ 01/07/2010; HC 101.432/MG, Tribunal Pleno, redator para o acórdão o ministro Dias Toffoli, DJ 16/04/2010; HC 91.207/RJ, Tribunal Pleno, redator para o acórdão o ministro Eros Grau, DJ 05/03/2010; HC 99.510-AgR/MG, Tribunal Pleno, da relatoria do ministro Cezar Peluso, DJ 16/10/2009; HC 97.250-AgR/SP, Segunda Turma, da relatoria da ministra Ellen Gracie, DJ 07/08/2009; HC 86.548/SP, Tribunal Pleno, da relatoria do ministro Cezar Peluso, DJ 19/12/2008). 2. Agravo regimental desprovido” (HC 103.193-AgR/RJ, Rel. Min. Ayres Britto – grifei). Mais uma vez se percebe que o movimento do STF, mesmo sem qualquer previsão regimental, legal ou constitucional, é no sentido de estreitar o cabimento do habeas corpus, ensejando que arbitrariedades sobrevivam sem qualquer reparo. O cidadão torna-se uma espécie de “cera mole” nas mãos do Ministro-relator. Já a regra constante do art. 5º, inc. LXVIII, da Constituição, deve ser lida assim: conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, salvo quando oriundo de Ministro do STF, porque aí não há remédio. A criação de uma restrição onde a Constituição não previu também representa uma inconstitucionalidade. Parafraseando antigo julgado da Suprema Corte ainda ao tempo da antiga sistemática constitucional em matéria de Recurso Extraordinário, podemos dizer que se divorcia da Constituição “o acórdão que dá o que ela nega, ou nega o que ela dá (RE. 63.816, RTJ 51:126)”58. Nos vai e vem da Suprema Corte, a Operação Lava Jato apresentou novamente a questão relativa à possibilidade de se manejar o writ contra ato de Ministro. A Corte, que parecia ter jurisprudência consolidada no sentido da inadmissibilidade, mostrou-se dividida. Por empate, conheceu-se da impetração (HC n. 127.483) em acórdão da lavra do Min. Dias Toffoli. Com precisão cirúrgica, o Min. Gilmar Mendes chamou atenção para a necessidade de o STF não poder dificultar: (...) o próprio ideário de proteção judicial efetiva que se expressa no art.  5º, inciso XXXV, e, claro, na própria garantia do habeas corpus. E, de resto, como demonstrou o ministro Toffoli, a própria letra do Texto Constitucional não deixa dúvida quanto a essa leitura, a essa possibilidade59. Se o empate naquela assentada permitiu o conhecimento do writ, seis meses depois, no julgamento do HC n. 105.959, relatado incialmente pelo Min. Marco Aurélio, o STF, por escassa maioria (6 votos a 5) não conhece da impetração60. Prevaleceu o entendimento de que seria cabível o agravo interno previsto no art. 38 da Lei 8.038/90. Agora, em decisão monocrática, no HC n. 152.707/DF, o Min. Dias Toffoli concedeu medida liminar em favor do paciente Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo, contra ato do Min. Edson Fachin. Argumentou que essa atuação não era inédita como se vê do decidido no HC n. 91.551, impetrado pelo Conselho Federal da OAB contra ato do Min. Cezar Peluso, relator do Inq. 2.424 e do decidido no HC n. 83.326 pelo Min. Sepúlveda Pertence (DJ 1º/10/2004). No mais, salientou o fundamento humanitário que ditava o deferimento da cautelar (DJe 09/04/2018). Seja como for, na contramão da jurisprudência majoritária do STF, encontramos a previsão regimental do Tribunal de Justiça de São Paulo, que admite a impetração de habeas corpus contra ato de Relator, cabendo ao Grupo de Câmaras o seu julgamento (RITJSP, art. 37, § 1º).

7. Prequestionamento. Exigência devida? Quando? Com o crescimento avassalador das impetrações de habeas corpus, fruto, é bom que se diga, do aumento da atividade persecutória estatal, os juízes, inclusive dos Tribunais Superiores, têm mostrado certa fadiga e alguma indisposição para o conhecimento dos remédios heroicos. Começam então a garrotear o cabimento do writ. Ora não conhecendo da impetração, ora mediante a promulgação de Súmulas como a 691 e outros “inventos” como vimos acima, ora porque a instância inferior não apreciou determinado aspecto ventilado no recurso ordinário ou no habeas substitutivo. Eloquente, neste último aspecto, a decisão proferida pela 5ª Turma do STJ no HC n. 300.047, relatado pelo Min. Félix Fischer: II – As teses relativas à responsabilidade objetiva do paciente, à suposta responsabilização penal dos depositários fiéis e à inépcia da denúncia (ao argumento de violação ao princípio da indivisibilidade da ação penal) não foram sequer examinadas pelo eg. Tribunal a quo, ficando impedida esta Corte Superior de proceder a tal análise, sob pena de indevida supressão de instância (precedentes)61. Num país como o Brasil, em que as cadeias são poucas para o número de presos e, portanto, vivem abarrotadas, representa uma terrível insensibilidade manter alguém preso por conta de um formalismo incompatível com a natureza do remédio e do pedido. Isso para não falarmos na proteção da dignidade da pessoa que poderia ficar em liberdade se suprimida a ilegalidade. A exigência do prequestionamento é peculiar aos recursos de natureza extraordinária como o Extraordinário (RE) e o Especial (REsp). Há Súmulas para um e outro disciplinando a exigência de que a matéria a ser tratada tenha sido previamente discutida. Assim, nos termos do verbete da Súmula n. 283 (STF): “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. De igual teor, a Súmula 320 do STJ: “A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento”. Em se tratando de habeas corpus, há uma peculiaridade que deveria afastar a dita exigência do prequestionamento. É que o art. 654, § 2º, do CPP autoriza juízes e tribunais a conceder a ordem de ofício quando verificarem a ocorrência do constrangimento ilegal que afete a liberdade de ir e vir. Esta regra dá a tônica do que é o remédio heroico no nosso ordenamento jurídico que, como dissemos acima, não se compadece com a ilegalidade. O Min. Marco Aurélio, ao julgar o HC n. 69.421, ainda na Segunda Turma, lançou uma poderosa luz sobre a postura do julgador na ação constitucional de habeas corpus. O memorável julgado diz: Habeas corpus – Causa de pedir – Pedido – Liberdade do órgão julgador. Na apreciação de habeas corpus, o órgão investido do oficio judicante não está vinculado a causa de pedir e ao pedido formulados. Exsurgindo das peças dos autos a convicção sobre a existência de ato ilegal não veiculado pelo impetrante, cumpre-lhe afasta-lo, ainda que isto implique concessão de ordem em sentido diverso do pleiteado. Esta conclusão decorre da norma inserta no § 2º do artigo 654 do Código de Processo Penal, no que disciplina a atuação judicante em tal campo independentemente da impetração do habeas-corpus. Precedentes: habeas corpus n. 69.237 e habeas corpus n. 68172, relatados pelos Ministros Carlos Velloso e Marco Aurélio, julgados pela Segunda Turma em 8 e 16 de junho de 1992, respectivamente62. Se o juiz do habeas pode concedê-lo de ofício, divisando até mesmo questões não postas na impetração, disso decorre que não há prequestionamento de espécie alguma no julgamento de habeas corpus, sobretudo se a matéria foi veiculada, mas não apreciada pela instância de origem. Paradigmático a respeito o acórdão relatado pelo Min. Pertence no julgamento do RHC n. 82.045: I. Habeas corpus: competência: pressupostos. 1. O conhecimento do habeas corpus nos diversos graus de jurisdição independe de prequestionamento na decisão impugnada: basta que a coação seja imputável ao órgão de gradação jurisdicional inferior, o que tanto ocorre quando esse haja examinado e repelido a ilegalidade aventada, quanto se omite de decidir sobre a alegação da impetrante ou sobre matéria sobre a qual, no âmbito de conhecimento da causa a ele devolvida, se

devesse pronunciar de ofício63. No corpo do julgado citam-se os seguintes precedentes: HC 75.090; HC 80.315; HC QO 81.414 e HC 82.104, todos relatados também pelo Min. Pertence. Vale dizer, se a tese é colocada e vem a ser rechaçada ou mesmo se ocorre omissão na sua apreciação, não se pode opor a exigência do prequestionamento para inviabilizar o conhecimento do writ em outra instância. Agora, se o tema não foi sequer veiculado anteriormente, prevalece a intelecção segundo a qual não se pode conhecer da impetração64. Embora os Tribunais imponham a exigência do prequestionamento para o conhecimento do habeas corpus, mesmo em caso de Recurso Especial inadmitido por questões formais, como a falta do prequestionamento, tem-se concedido habeas, ainda que de ofício, mas nos termos em que pedido, para remediar uma ilegalidade. Daí a ementa do HC 132.450 proclamar: 2. Para o enfrentamento de teses jurídicas na via restrita, imprescindível que haja ilegalidade manifesta, relativa a matéria de direito, cuja constatação seja evidente e independa de qualquer análise probatória. 3. Hipótese em que há manifesta ilegalidade no tocante à pena-base, fixada no triplo do mínimo legal em razão de uma circunstância judicial desfavorável, o que se mostra desproporcional65. Outro enfoque para a superação da exigência do prequestionamento tem a ver com a violação da coisa julgada, matéria cognoscível de ofício, e, assim, “a Corte Maior pode deferir a ordem de ofício”66. Ao relatar o HC n. 164.056 (DJe 01/07/2010), a Ministra Maria Thereza, em acórdão unânime, foi taxativa ao dizer: 1. Embora o colegiado do Tribunal de origem não tenha examinado a questão objeto desta impetração, tratando os autos de flagrante ilegalidade, pode-se apreciar a matéria nesta Corte Superior. Precedentes. No corpo do aresto, vem gizado: Vê-se que a Corte Estadual não analisou a tese no prévio writ, conquanto tenha sido regularmente aventada pela defesa. A jurisprudência desta Corte tem considerado não ser possível o conhecimento de habeas corpus quando não apreciada a questão pelo Tribunal a quo, sob pena de indevida supressão de instância. Entretanto, excepciona-se constrangimento ilegal.

o

dito

entendimento

quando

caracterizado

o

manifesto

Com efeito, por força do §  2º do artigo 654 do Código de Processo Penal, constitui-se um dever do juiz ou tribunal conceder de ofício ordem de habeas corpus quando verificarem que alguém está sofrendo uma coação ilegal em sua liberdade de locomoção. Vejam-se, a respeito, os seguintes arestos: “Habeas corpus. Penal. Processo de execução. Crimes hediondos. Progressão de regime. Possibilidade. Lei n.º 11.464/07. Lapsos temporais mais gravosos. Novatio legis in pejus. Irretroatividade. Matéria não apreciada pelo tribunal de origem. Supressão de instância. Ordem concedida de ofício. 1. Esta Corte já havia firmado entendimento no sentido de considerar inconstitucional a vedação ao cumprimento progressivo da pena aos condenados pela prática de crimes hediondos, nos termos do posicionamento adotado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC n.º 82.959/SP.

2. (...). 3. Não tendo a ordem sido conhecida na origem, inviável o conhecimento da impetração. 4. Ordem concedida, de ofício, para afastar a incidência dos lapsos temporais previstos na Lei n.º 11.464/07, para que o juízo das execuções criminais analise os requisitos objetivos e subjetivos do paciente para a obtenção da progressão de regime de acordo com o regramento do art. 112 da Lei de Execuções Penais.” (HC 94.640/SP, de minha relatoria, DJ 14/11/2007). “Estatuto da Criança e do Adolescente – Eca. Habeas corpus. Ato infracional equiparado ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Aplicação da medida socioeducativa de internação por prazo indeterminado fundamentada na gravidade genérica do ato infracional. Questão não analisada pelo tribunal a quo. Writ não conhecido na origem. Supressão de instância. Impossibilidade de apreciação da matéria. Ordem não conhecida. Constrangimento ilegal configurado. Princípio da excepcionalidade. Arts. 227, §  3º, V, da CF e 122, §  2º, do ECA. Habeas corpus concedido de ofício. 1. As questões expendidas em favor do menor não podem ser analisadas por esta Corte, uma vez que os argumentos aduzidos pela impetrante não foram objeto de debate e decisão pelo Tribunal a quo, sob pena de indevida supressão de instância. 2. O Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento no sentido de que a existência de recurso próprio ou de ação adequada à análise do pedido não obsta a apreciação das questões na via do habeas corpus, tendo em vista sua celeridade e a possibilidade de reconhecimento de flagrante ilegalidade no ato recorrido, sempre que se achar em jogo a liberdade do réu. Precedentes. 3. (...). 4. (...). 5. (...). 6. (...). 7. Ordem não conhecida. Habeas corpus concedido, de ofício, para anular a sentença, no tocante à medida imposta, para que outra mais branda seja aplicada ao menor” (HC 91.192/SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 18/12/2007, DJe 10/03/2008). “Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Estatuto da criança e do adolescente. Ato infracional equiparado a tráfico de entorpecentes. Medida de internação. Excepcionalidade da medida extrema. Supressão de instância. Flagrante ilegalidade. Writ concedido de ofício. I – Tendo em vista que a tese suscitada não foi analisada pela e. Tribunal a quo, fica esta Corte impedida de examiná-la, sob pena de supressão de instância (Precedentes). II – (...). Writ não conhecido. Habeas corpus concedido de ofício” (HC 80.733/SP, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 14/06/2007, DJ 03/09/2007 p. 210). Para encerrar, é preciso dizer que soa especioso levantar o tema do prequestionamento contra o paciente, como se fosse uma espécie de “direito” de o tribunal a quo examinar a matéria não suscitada ali e que, portanto, inviabilizaria o exame pelo Tribunal Superior. Formalismo dessa

natureza é até compreensível nos recursos de natureza extraordinária, mas soa incompatível com a sistemática do remédio heroico, uma vez que, afora a citada regra do art.  654, §  2º, do CPP, a Constituição Federal é taxativa ao estabelecer que o habeas será concedido “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção (...)” (art. 5º, inc. LXVIII). A se admitir a exigência do prequestionamento do habeas, deveríamos restringir a regra processual para inadmitir a concessão de ofício quando não houvesse prequestionamento? O mesmo deveria ser feito em relação à garantia constitucional? Seria um rematado absurdo interpretativo, pois não se pode restringir o alcance da regra onde o legislador não o fez, máxime no terreno das garantias constitucionais, no qual a regra é a da otimização destas.

8. Habeas corpus como sucedâneo recursal ou impetrado concomitantemente a algum recurso. Possibilidade Já salientamos no capítulo IV, n. 1, e em outras passagens, que o habeas corpus, malgrado classificado no Código de Processo Penal entre os recursos, é, na verdade, uma ação constitucional autônoma de impugnação. Para Eugenio Pacceli, essa característica é que permite a utilização do writ “como substitutivo do recurso cabível, ou mesmo ser impetrado cumulativamente a ele”67. Daí no julgamento do HC n. 110.118 a 2ª Turma do STF ter sublinhado: O eventual cabimento de recurso especial não constitui óbice à impetração de habeas corpus, desde que o direito-fim se identifique direta e imediatamente com a liberdade de locomoção física do paciente68. Afinal, como ponderou o Min. Gilmar Mendes: (...) se se trata de algo verificável a partir de provas pré-constituídas, tal como exige o procedimento do habeas corpus, por que não o fazer aqui? Até porque, veja que, diferentemente do que ocorre em outras searas e tendo em vista o valor liberdade que está envolvido, o legislador cuidou de não impor sequer fórmula de preclusão para propositura da ação revisional, o que vale, também, neste caso, para habeas corpus, desde que preenchidos esses requisitos (HC n. 110.118, DJe 08/08/2012). O tema, embora se referindo especificamente à substituição do Recurso Especial pelo habeas, não escapou ao Min. Assis Toledo no HC n. 17: Sendo assim, como no recurso especial, criado pela Constituição de 1988 (art. 105, III), o objeto só pode ser, da mesmíssima forma que no habeas corpus, uma quaestio iuris, não uma intricada quaestio facti, é possível prever-se a substituição de um pelo outro, quando houver coincidência de fundamentos e interesse da parte em apressar a decisão judicial69 (grifei). O mesmo raciocínio vale para os casos de recurso em sentido estrito, apelação ou agravo em execução, desde que não se discuta aspectos controvertidos da prova. Não há, com efeito, razão lógica e nem jurídica para se impedir o manejo do writ quando a questão versada for compatível com seus limites de cognição. Envolvendo questão puramente de direito, ainda que controvertida ou de alta indagação, a ordem deve ser conhecida, pois a Constituição impõe, ao disciplinar o habeas corpus, que sempre se concederá a ordem quando alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer constrangimento ilegal em sua liberdade de ir e vir (art. 5º, inc. LXVIII). Daí a consolidada jurisprudência que se ergueu ao longo dos mais de 70 anos de vigência do CPP. Como advertiu o Des. Dante Busana (TJSP), ainda ao tempo do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo: Garantia constitucional e ação de direito processual constitucional, o Habeas corpus não conhece outros limites que os estabelecidos na Carta Magna. Inaceitável sustentar, como faz a ilustrada Procuradoria de Justiça, seu não cabimento em hipótese em que haveria constrangimento ilegal à liberdade física porque prescrita a pretensão punitiva, a pretexto de que

quem a sofre apelou da sentença condenatória e no julgamento do recurso a eventual extinção da punibilidade poderá ser melhor apreciada70. No julgado em questão, o grande jurista que engrandeceu o TJSP vindo dos quadros do Ministério Público paulista, trouxe o alerta de Philadelpho Azevedo: (...) entendemos que, durante o curso do processo e independentemente de despachos ou sentenças, com quaisquer recursos, deve ser concedido o Habeas corpus sempre que ficar provado incontinenti a nulidade substancial de qualquer espécie ou a carência da ação penal intentada; devem ser suprimidas da legislação quaisquer referências à dita Lei (Lei 2.033, de 1831), que, disfarçando uma regulamentação do texto constitucional amplo e liberal, há cinqüenta anos e sob o regime imperial originava veementemente protestos e hoje constitui verdadeira aberração; assim, fazemos votos para que no mesmo sentido se uniformize a jurisprudência do STF em respeito à liberdade individual e como lição aos Tribunais e Juízes dos Estados Federados (Habeas corpus em concorrência com os demais recursos p. 63 – destaques da transcrição). De resto, com o Min. Pertence, não custa lembrar que é princípio sedimentado na jurisprudência brasileira de que a recorribilidade da decisão ou a efetiva pendência de recurso contra eles não inibe a admissibilidade paralela do habeas corpus71. Idem: “É cabível habeascorpus mesmo quando pendente julgamento de recurso de apelação que veicule a mesma questão” (HC n.º 77.858/AM, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 12/02/1999); “Evidenciado o constrangimento ilegal, cabe o writ, ainda que pendente apelação da sentença condenatória”. (RTJ 125/157, Min. Carlos Madeira). “Habeas corpus. Apelação pendente. Cabimento do writ. Não se há de remeter ao juízo de apelação, ainda que idêntica a matéria do Habeas corpus evidenciadora do constrangimento ilegal. Recurso de Habeas corpus provido” (RTJ 109/144, Rel. Min. Rafael Mayer). “Recurso de Habeas corpus. (...). Por si só não o impede a pendência da apelação, se presente o constrangimento ilegal e o exame da matéria se comporta no âmbito de writ. Recurso de Habeas corpus provido”. (RTJ 108/590, Rel. Min. Oscar Corrêa); “A existência de recurso próprio ou de ação adequada à análise do pedido não obsta a apreciação das questões na via do Habeas corpus, tendo em vista sua celeridade e a possibilidade de reconhecimento de flagrante ilegalidade no ato recorrido, sempre que se achar em jogo a liberdade do réu” (RHC n.º 20624/MG, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 19/03/2007); “II – O fato de haver recurso de apelação ainda pendente de julgamento perante o e. Tribunal a quo, não impede que esse aprecie a presente ordem (Precedentes)” (HC n. 29450/PR, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 18./04/2005). Também a 6ª Turma do STJ, em decisão da lavra do Min. Hamilton Carvalhido, já reconheceu que, salvo nos casos em que as peculiaridades da espécie recomendam a consideração do conjunto da prova, impróprio à via heroica, “nenhum óbice há em que se conheça de pedido de Habeas corpus impetrado à Corte de Justiça Estadual simultaneamente com a interposição de recurso de apelação” (RHC 12.244/MA, DJ 21./06/2004). Assim, se cabe habeas corpus na pendência, por que não em substituição ao próprio recurso? Se o raciocínio vale para a apelação, valerá, com redobrada razão, para o habeas na concomitância com o recurso especial como gizamos acima. Afinal, ambos têm o mesmo campo cognitivo: são infensos ao reexame da prova, mas não à correção da qualificação jurídica dada a fatos incontroversos72. Portanto, aquilo que no recurso especial vai ganhar o nome de negativa de vigência pela preterição de regra que deveria ser aplicada ao caso e não o foi ou, inversamente, pela aplicação de regra que não deveria ter incidência – no habeas tal quadro se resumirá ao constrangimento ilegal decorrente da falta de justa causa (CPP, art. 648, I) ou em razão de nulidade (inc. VI). Assim, nada obsta que se maneje o writ para, dentro dos seus limites cognitivos, ver-se sanado o constrangimento ilegal. Esse o já referido inspirado pensamento do Min. Pertence: “em recurso extraordinário criminal, perde relevo a inadmissibilidade do RE da defesa, por falta de prequestionamento e outros vícios formais, se, não obstante – evidenciando-se a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção – seja possível a concessão de habeas corpus de ofício (v.g., RE 273.363, 1ª T., Sepúlveda Pertence, DJ 20/10/2000)”73. Essa maneira de compreender o processo penal prestigia, no bom sentido, o entendimento de que este “rege-se pelo princípio da instrumentalidade das formas, do qual se extrai que as formas,

ritos e procedimentos não existem como fins em si mesmos, mas como meios de se garantir um processo justo, equânime, que confira efetividade aos postulados constitucionais da ampla defesa, do contraditório, e do devido processo legal.”74.

FOOTNOTES 1

.        Sobre a prestação jurisdicional – Direito Penal. São Paulo, ed. Malheiros, 2010, p. 11.

2

.        São Paulo, ed. Saraiva, 2013.

3

.        Pablo Pérez Tremps, El recurso de amparo. Valencia: Tirant lo blanch, 2004, p. 23.

4

.        Sobre a prestação jurisdicional, ob. cit, p. 17.

5

.        A posição consequencialista do STF no julgamento da dívida dos Estados, in: [www.conjur.com.br], acessado em 07/05/2016.

6

.              Thiago Bottino, Habeas corpus nos tribunais superiores: análise e propostas de reflexão. Rio de Janeiro. ed. FGV, 2016.

7

.        Sobre o tema são referências obrigatórias na doutrina os trabalhos, entre outros, de Alberto Silva Franco, Medida liminar em habeas corpus, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, número especial de lançamento, ed. Revista dos Tribunais, dez/1992, p.  70 e ss.; Leônidas Ribeiro Scholz, com idêntico título, publicado nos Cadernos de Advocacia Criminal, Porto Alegre, ed. Fabris, 1988, p. 32 e ss. e Pedro Gagliardi no seu As liminares no processo penal, São Paulo, ed. Saraiva, 1999, p. 34 e ss.

8

.        A jurisprudência do STJ das Turmas especializadas em matéria penal pacificou o entendimento de que “não cabe agravo regimental contra decisão de Relator que, fundamentadamente, indefere pleito de liminar” AgRg no HC n. 348.622, 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, DJe 28/03/2016. Idem: AgRg nos EDcl no HC n.

299.830, 5ª T., rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 02/02/2016 e, entre muitos outros, AgRg no HC 344.041, 6ª T., rel. Min. Sebastião Reis Jr, Dje 05/02/2016.

9

.        Cf. Gustavo Badaró, Manual dos recursos penais, ob. cit., p. 474.

10

.           Liminares no processo civil, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1993, p. 17.

11

.           Alberto Silva Franco, Medida liminar em habeas corpus, cit., p. 70.

12

.           Aqui e agora.

13

.           DJe 14/02/2008. A este pequeno repertório de julgados poderíamos acrescentar: HC nº 91.729, Min. Ricardo Lewandowski, HC nº 79.781, Min. Gilmar Mendes, j. 11/09/2007, HC nº 84.014/MG, 1ª Turma, um., Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 25/06/2004; HC nº 85.185/SP, Pleno, por maioria, Rel. Min. Cezar Peluso,; e HC nº 88.229/SE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, maioria, julgado em 10/10/2006; e as seguintes decisões monocráticas: HC n. 85.826/SP (MC), de minha relatoria, DJ de 03/05/2005; e HC n. 86.213/ES (MC), Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 01/08/2005; apud: Min. Gilmar Mendes, HC 89.794, DJ 29/11/2006.

14

.           DJ 04/04/2015.

15

.           Aprovada na Sessão Plenária de 24/09/2003 e publicada no DJ de 09/10/2003.

16

.                    STF, 1ª T., HC n. 105.833, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 12/11/2010 e na ementa: DJe 21/08/2012). Idem, a mesma Turma, em questão de ordem, no HC 92.688, j. em 29/03/2011, rel. Min. Dias Toffoli. HC n. 123.339, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJe 19/11/2014: “a decisão liminar e precária proferida nestes autos não leva ao prejuízo da impetração no Superior Tribunal de Justiça nem no Tribunal de Justiça de São Paulo, devendo a jurisdição ser exaurida em cada instância”. HC nº 92.474, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 20/02/2009. No STJ: HC n. 322.565, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 27/10/2015 e HC n. 237.925, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior DJe 14/02/2013.

17

.                    Sobre o tema, Alberto Zacharias Toron, A Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal e o amesquinhamento da garantia do habeas corpus. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, Ano 8, n. 15, jan-jun. 2005.

18

.           Ag. Reg. no Habeas Corpus nº 85.186-0-SP, de 07/12/2004; DJ 01/02/2005.

19

.           JTACrSP, ed. Lex, 74/142.

20

.           Rel. Min. Victor Nunes, in: Fernando Dias Menezes de Almeida, Memória jurisprudencial: Ministro Victor Nunes, Brasília, Supremo Tribunal Federal, 2006, p. 36.

21

.           Cf. Luis Maria Díez-Picazo, Sistema de derechos fundamentales. 4ª ed. Madri, ed. Civitas, 2013, p. 75.

22

.           Na mesma linha, também da 1ª T., HC n. 115.279, DJe 27/02/2014; HC n. 115.318, rel. Min. Barroso, monocrático, DJe 13/02/2014. Na 2ª T., com a oposição dos Mins. Celso de Mello e Gilmar Mendes, RHC n. 116.711/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 19/11/2013, Informativo STF, 729.

23

.                    RE n. 637.485, Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 21/05/2013. Este tema foi reavivado no julgamento pelo TSE da Prestação de Contas no 976-13 da então candidata à Presidência da República Dilma Vana Rousseff.

24

.           Criado para coarctar as arbitrariedades cometidas contra a liberdade física dos súditos, praticadas pelos Reis Absolutistas ingleses, com um artifício imune à pura vontade do Monarca (Aurelino Guimarães, O Habeas Corpus, ed. Saraiva & Comp., 1925, p. 6).

25

.           Medida Cautelar no HC n. 120.676, rel. Min. Celso de Mello, j. 19/12/13; DJe 03/02/2014.

26

.           STF, Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 16/12/2005.

27

.           Renato Nalini e Xavier de Aquino, Manual de processo penal, ob. cit., p. 401.

28

.           STF, Pleno, j. em 01/08/1990; DJ 22/02/1991.

29

.           HC n. 57.533, rel. Min. Moreira Alves, DJ 25/04/1980 e, entre muitos outros, HC n. 60.000, rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ 20/08/1982; apud Alberto Silva Franco, RBCCrim, n. 1, jan.-mar. 1993, p. 160.

30

.           STJ, 5ª T., HC n. 1.733-PA, DJ 12/04/1993. Na mesma linha, entre muitos outros: HC n. 447-MA, rel. Min. William Patterson, DJ 01/10/1990.

31

.           RHC n. 67.788, DJ 22/02/1991.

32

.           STF, 1ª T., DJe 11/09/2011.

33

.           STF, 2ª T., HC n. 130.636, rel. Min. Teori Zavascki, DJe 12/05/2016.

34

.           DJe 19/03/2015.

35

.           [www.conjur.com.br], matéria do dia 04/11/2013.

36

.           Idem.

37

.           Disponível em: [www.conjur.com.br], acessado em 22 de abril de 2016.

38

.           Manual dos recursos..., ob. cit., p. 481.

39

.           DJe 11/12/2013.

40

.           DJe 30/09/2014.

41

.           DJe 08/09/2014.

42

.           DJe 26/05/2015.

43

.           DJe 16/12/2016.

44

.           Gustavo Badaró, no já citado Manual, aponta o mesmo problema (cf. p. 480, nota de rodapé n. 43).

45

.           HC n. 133.387, DJe 16/06/2016.

46

.           STF, 2ª T., RHC n. 60.357, DJ 10/12/1982.

47

.           DJe 18/05/2015.

48

.           DJe 11/04/2014.

49

.           Decisão monocrática do Min. Roberto Barroso, DJe 16/12/2016.

50

.           Todos da 2ª T., relatados pelo Min. Teori Zavascki, DJe, respectivamente, 03/08/2015, 21/08/2015 e 20/10/2015.

51

.           STF, 2ª T., rel. Min. Teori Zavascki, DJe 20/05/2015.

52

.           Direito Constitucional, ob. cit., p. 145.

53

.           Curso de direito constitucional positivo, 33ª ed. São Paulo, 2010, p. 561.

54

.                    La jurisdicción constitucional de la libertad, tit. or. La giurisdizione costituzionale delle libertà. Lima, 2010.

55

.           DJ 22/02/1991.

56

.           Sobre a prestação jurisdicional, ob. Cit., p. 17.

57

.                    Numa tradução livre, o rei não erra. Esta teoria embasava a irresponsabilidade dos reis nas monarquias, inclusive constitucionais. Para maiores detalhes, ver o meu: Inviolabilidade penal dos Vereadores. São Paulo: ed. Saraiva, 2004, p. 326 e ss.

58

.           Raul Armando Mendes, Da Interposição do Recurso Extraordinário, São Paulo, ed. Saraiva, 1984, p. 36

59

.           STF, Plenário, j. em 26/08/2015, DJe 04/02/2016.

60

.           DJe 15/06/2016, rel. p/ o acórdão, Min. Edson Fachin.

61

.           DJe 23/08/2016. No mesmo sentido: STJ, 5ª T., RHC, n. 70.968, rel. Min. Jorge Mussi, DJe 01/06/2016; 6ª T. e RHC n. 68.591, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 29/04/2016.

62

.           STF, 2ª T., un., DJ 28/08/1992. Ementa publicada também na Revista Brasileira de Ciências Criminais, ed. Revista dos Tribunais, n. de lançamento, p. 256-257.

63

.           STF, 1ª T., DJ 25/10/2002.

64

.           STF, 1ª T., HC n. 80.776, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 05/04/2002 e, no STJ, entre muitos outros: RHC n. 64.425, rel. Min. Félix Fischer, DJe 22/04/2016.

65

.           STJ, 6ª T., rel. Min. Maria Thereza, DJe 05/09/2012.

66

.           STF, 1ª T., HC n. 101.131, rel. p/ ac. Min. Marco Aurélio, DJe 10/02/2012.

67

.           Curso de Processo Penal, ob. cit., p. 1021.

68

.           Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 08/08/2012.

69

.           3ª Seção, DJ 26/06/1989.

70

.           JUTACRIM, ed. Lex, 74/140-142.

71

.           RHC n. 82.045, DJ 25/10/2002; HC n. 82.968/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 20/06/2003; HC n. 83.346, do mesmo relator, DJ 19/08/2005 e STJ HC n. 77703/SP, rel. Min. Laurita Vaz, DJ 29/06/2007.

72

.                    Rafael Mayer, JSTF, ed. LEX, 78/353; Marco Aurélio, RHC 83.548-1-RJ, DJ 26/03/2003; Menezes Direito, RHC 91.691, DJ 25/04/2008 e, entre muitos outros, Ricardo Lewandowski, HC n. 98.816, DJ 03/09/2010.

73

.           STF, Agravo de Instrumento n. 516429 QO/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 17/08/2007.

74

.           STF, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, v.u., HC n. 100795, DJe 20/09/2011; apud, STJ, 5ª T., Resp. n. 1.234.097, rel. Min. Gilson Dipp, v.u., DJe 17/11/2011.

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2020 - 05 - 18

Habeas Corpus - Ed. 2018 VI. AS HIPÓTESES DE CABIMENTO DO HABEAS CORPUS

Sumário: 1. Justa causa. 1.1. Conceito. 1.2. O exame da prova em si, quando é possível. 1.3. Casos de interesse para estudo. 1.3.1. Pais testemunhas de Jeová: trancamento da ação penal pela prática de homicídio doloso. 1.3.2. Festa Rave e facilitação ao tráfico: trancamento da ação penal. 1.3.3. Acidente com vítima fatal no Parque de diversões Hopi Hari: imputação de culpa ao presidente do Parque. 1.3.4. Prerrogativas do advogado. A atipicidade da conduta profissional na crítica ao juiz. 1.3.4.1. Prerrogativas profissionais do advogado. Crítica a juiz. Ofensa descaracterizada. 1.3.5. Guerra fiscal e comportamento atípico de empresários. 1.3.5.1. Crime fiscal e justa causa para o falso ideológico em processo autônomo. 1.3.5.2. Bem dado em garantia na execução fiscal afasta a justa causa para a ação penal por crime tributário? 1.3.6. Médico de Pronto Socorro da Santa Casa que deixa de comunicar à polícia o encontro de maconha na vagina da paciente e é preso, autuado em flagrante, por participação no tráfico. 1.3.7. Crime contra o sistema financeiro. Arquivamento do processo administrativo. Falta de justa causa. 1.3.8. Operação Castelo de Areia: falta de justa causa para a deflagração de medida invasiva. 1.3.9. Para apagar maus antecedentes. 1.3.10. Trancamento de inquérito policial. 1.3.11. O caso do gerente do banco e a quebra do sigilo bancário. 1.3.12. O crime ambiental inexistente. 1.3.13. O caso dos jovens militantes do Black Bloc e o inquérito para apurar crime contra a segurança nacional e quadrilha. 1.3.14. Descumprimento contratual versus apropriação de honorários. 1.4. Indiciamento e justa causa. 1.4.1. Indiciamento determinado após o oferecimento de denúncia. Ilegalidade sanável pela via do writ. 1.4.2. Indiciamento arbitrário e controle da sua legalidade pelo writ. 2. Ainda a Justa Causa: questões afetas ao Júri. 2.1. É possível afastar qualificadora em habeas corpus? 2.2. Denúncia excessiva (tentativa de homicídio) e anulação pelo STF por meio do habeas corpus. Possibilidade. 2.3. Pode o habeas corpus impedir a realização do Júri quando pende Recurso Especial contra a decisão de pronúncia? 2.4. Recurso acusatório contra veredito absolutório do Júri em razão de decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Inadmissibilidade diante da nova sistemática instituída pela Reforma de 2008. Habeas corpus para impedir novo julgamento popular. 2.5. HC contra acórdão do TJ que cassa decisão do júri. Limites cognitivos da apelação contra o mérito do veredito popular. É verificável a existência de duas versões no âmbito do writ para restabelecer o veredicto dos jurados? 2.6. HC e desaforamento. Possibilidade do manejo. 2.7. HC e pena maior no novo Júri que a do primeiro anulado em recurso exclusivo da defesa. 3. Ainda a Justa Causa. 3.1. Habeas corpus contra a demora na prestação jurisdicional e para apressar o julgamento de outro writ. Possibilidade. 3.2. HC e questionamento da pena. Quando é possível. 3.3. HC para trocar de regime; para colocação em prisão especial, para ser removido para estabelecimento definido, mas não cumprido e para ficar mais perto da família. Possibilidade. 3.3.1. Para obter a saída temporária independentemente do lapso temporal. 3.4. Para a mãe obter prisão domiciliar a fim de cuidar de filhos menores. 4. Quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo. 4.1. Crime ambiental em Paraty (RJ) e a prorrogatio jurisdicionis (RJ). 4.2. Prevenção inexistente e possibilidade do manejo do writ contra a decisão que rejeita a exceção de competência. 4.3. Competência para a apuração da lavagem e do peculato. 4.3.1. Competência para apuração de acidente ferroviário envolvendo vítimas fatais. 4.4. Prerrogativa de foro e controle da competência por meio do writ. 4.5. Foro por prerrogativa de função e impossibilidade do fatiamento da ação entre diferentes réus. 4.6. Prefeito investigado em inquérito requisitado por Promotor de Justiça. Ilegalidade. 4.7. Interceptação telefônica ordenada por juiz incompetente. 4.7.1. Delegado de Polícia Federal que escolhe, num domingo, juiz de férias para despachar representação pela interceptação. Ilegalidade. 4.7.2. Escuta deferida por juiz escolhido pelo Ministério Público. Ilegalidade. 4.8. Usurpação de competência e prova ilícita: Quando ocorre. 5. Quando o processo for manifestamente nulo. 5.1. Desrespeito à cronologia das sustentações orais: prejuízo presumido. 5.1.1 Cronologia na entrega dos memoriais por réus

delatores e delatados. 5.2. Respostas contraditórias dos jurados: nulidade insanável. 5.3. Cerceamento de defesa pela impossibilidade de se fazer perguntas no interrogatório do corréu. 5.4. Denúncia inepta: possibilidade de arguir-se a nulidade após a prolação da sentença. 5.4.1. Denúncia inepta nos crimes societários. 5.4.2. Denúncia inepta por se remeter a outra peça do processo. 5.5. Nulidade da decisão desfundamentada que confirma o recebimento da denúncia. 5.5.1. O surgimento de um truque interpretativo. 5.5.2. Nulidade da pronúncia que acolhe qualificadora sem fundamentação. 5.6. Nulidade decorrente da redução do número de testemunhas pelo juiz. 5.7. Prova furtada por funcionário para propor ação trabalhista é ilícita. 5.7.1. Compartilhamento direto de dados bancários entre a Receita Federal e o MPF. Ilicitude da prova. 5.8. O juiz não pode sentenciar o feito sem os memoriais defensivos (obrigatórios). 5.9. Livre escolha do advogado. Impossibilidade de o juiz nomear advogado a quem já o tenha, sem a prévia intimação do réu para constituir um novo. 5.10. Efetividade da defesa. Nulidade decorrente da ausência desta. 5.11. Informação errada na página eletrônica do Tribunal. Nulidade. 5.12. Reformatio in pejus. Nulidade. 5.13. Correlação entre a imputação e a denúncia. 6. Extinção da punibilidade. 6.1. Prescrição e habeas corpus. 6.2. Perdão Judicial e habeas corpus. 6.3. Termo inicial da contagem do prazo para o reconhecimento da prescrição executória. 6.4. Parcelamento do débito tributário e extinção da punibilidade na vigência da Lei n. 9.249/1995. 6.5. Prescrição e 70 anos antes do acórdão. Cômputo do prazo pela metade. Neste capítulo serão examinadas apenas as situações que atinam com o devido processo legal.

1. Justa causa 1.1. Conceito A cláusula que torna o habeas corpus dotado de um espectro tão amplo é justamente a possibilidade de manejá-lo diante da falta de justa causa para o constrangimento ilegal, como consta do art. 648, I, do CPP. No dizer de Florêncio de Abreu, o conceito de justa causa “é tão amplo que não se pode estabelecer a priori”1. Maria Thereza de Assis Moura, em monografia específica, também sustenta a impossibilidade de se traçar uma definição de justa causa2. Capaz, como anota Dante Busana, de abarcar as hipóteses figuradas nos incisos II a VII do art. 648 do CPP e outras3, propicia desde o exame da indevida decretação da prisão (temporária, preventiva, decorrente de pronúncia, sentença e acórdão recorríveis) até o da prova quando esta se apresentar unívoca para fins de trancamento da ação penal, ou a indevida colocação de algemas no preso. No dizer de acórdão do STJ, relatado pelo Min. Luiz Vicente Cernicchiaro: O trancamento da ação penal pressupõe falta de justa causa para o processo: ocorre quando o fato descrito na ação penal não configurar, em tese, infração penal, restar evidenciada a falta de legitimidade ativa ou passiva, incidente causa de extinção de punibilidade, ou inexistir indícios de suporte fático. Não se confunde com a comprovação do fato imputado, o que ocorre no plano da experiência, satisfeitas as exigências normativas. O Habeas Corpus considera fato, todavia, insuscetível de realização probatória4. Tanto faz a denúncia narrar fato atípico, como descrever fato que não guarde ressonância com a prova colhida. “Em ambos os casos haverá ilicitude e, mais do que isso, imoralidade. E tanto a doutrina como a jurisprudência entendem que faltará, na hipótese, justa causa para a ação penal”5. Na dicção de expressivo julgado da 2ª Turma do STF, relatado pelo Min. Dias Toffoli: A justa causa para a ação penal consiste na exigência de suporte probatório mínimo a indicar a legitimidade da imputação e se traduz na existência, no inquérito policial ou nas peças de informação que instruem a denúncia, de elementos sérios e idôneos que demonstrem a materialidade do crime, bem como de indícios razoáveis de autoria6. Também situações ligadas à quebra de sigilo, retenção de passaporte como condição para a liberdade provisória e, entre outras, a acusação excessiva ficam albergadas, uma vez que de forma mediata, ainda que a longo prazo, possam vir a afetar a liberdade de locomoção, como demonstramos acima. É, por isso, impossível esgotar o rol de possibilidades e daí a dificuldade de

se conceituar o que é justa causa7. Como consequência da amplidão do conceito de justa causa, podemos, com Frederico Marques, dizer que o habeas corpus tornou-se “instrumento processual de grande extensão e alcance, no que tange à tutela do direito de ir e vir”8. Aqui, portanto, tomaremos apenas alguns temas do dia a dia que reputamos mais relevantes.

1.2. O exame da prova em si, quando é possível Verificar a justa causa para a ação penal, ou mesmo de eventual condenação, implica necessariamente na valoração do material probatório que a sustenta. Todavia, esta operação, além de delicada, porque pode resvalar no confronto das provas, inadmissível no âmbito do writ, esbarra na vedação ao exame de provas no habeas corpus. Na verdade, trata-se, como registra Dante Busana, de “preconceito ou clichê que oculta muitas vezes uma inconcebível restrição à efetividade da garantia constitucional, pois como sublinhou o Ministro Vitor Nunes Leal, ‘ficaria letra morta a cláusula constitucional, que dá habeas corpus em caso de abuso de poder, se o Supremo Tribunal Federal se impusesse uma vedação absoluta nessa matéria’ (RTJ 35/533)”9. Daí que a jurisprudência, nesses mais de 70 anos de vigência do CPP, amadureceu a ideia de que “em sede de habeas corpus, é possível que se proceda ao exame da prova, desde que convergente e indiscutível, nos limites da descrição do fato, com a sua conotação jurídica. Essa análise não implica em revolvimento, cotejo, ou exame aprofundado de prova, o que tornaria inviável o writ”10. E mesmo em caso de condenação lavrada por acórdão, o STF decidiu pelo trancamento da ação. O habeas havia sido impetrado pelo professor Manoel Pedro Pimentel, advogado e jurista de escol, que identificara na condenação a ocorrência da responsabilidade objetiva em matéria penal. O dono de uma construtora, apenas por ser o proprietário da empresa, sem que tivesse qualquer responsabilidade pelo sinistro, havia sido condenado por homicídio culposo em razão da morte de um trabalhador. O STF, pela voz do Min. Rafael Mayer trancou a ação penal e cassou a condenação em acórdão que ostenta expressiva ementa: “Não se trata de reexame de prova, quando incontroverso o fato se afere o seu correto enquadramento legal”11. E, como explicou o Min. Marco Aurélio, em outra assentada, o writ tem “cabimento para dar à versão do fato acertada pela instância de mérito a sua correta classificação jurídica, mais favorável ao paciente”12. Também no HC n. 84.217, a respeito do writ disse o Min. Pertence: “cabimento para dar à versão do fato acertada pela instância de mérito a sua correta classificação jurídica, mais favorável ao paciente”13. E, mais recentemente, no HC n. 107.801, da lavra do Min. Luiz Fux acentuou-se que “A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus”14. O relator, reconhecido processualista, ao final da ementa, acrescentou: A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/06/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 06/04/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/08/1990. Também em caso de réu que teve reformada a sentença de primeiro grau para lavrar condenação por tráfico de drogas, o STF, em acórdão da relatoria do Min. Ricardo Lewandowski decorrente de trabalho impecável da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, proclamou o seguinte: I – Este Tribunal possui jurisprudência assente no sentido de que o habeas corpus não se presta ao revolvimento do conjunto fático-probatório da causa. II – No caso sob exame, porém, não há falar em revolvimento de provas e, sim, de sua revaloração. III – A Corte estadual reformou a sentença de primeiro grau, que havia concluído pela caracterização da infração de porte de entorpecente para uso próprio, para condenar o paciente pelo crime de tráfico sem a existência de prova inequívoca de que o réu tentara comercializar a droga apreendida. IV – Ordem concedida15.

Em outra oportunidade o saudoso Min. Carlos Alberto Direito relatou acórdão que proclamava a absolvição do paciente, mesmo tendo havido confissão. O julgado vem assim ementado: 2. Não constitui reexame de matéria fático-probatória a análise, em cada caso concreto, da força probante dos elementos de prova relativos a fatos incontroversos. 3. Vige em nosso sistema o princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, segundo o qual compete ao Juiz da causa valorar com ampla liberdade os elementos de prova constantes dos autos, desde que o faça motivadamente, com o que se permite a aferição dos parâmetros de legalidade e de razoabilidade adotados nessa operação intelectual. Não vigora mais entre nós o sistema das provas tarifadas, segundo o qual o legislador estabelecia previamente o valor, a força probante de cada meio de prova. 4. Tem-se, assim, que a confissão do réu, quando desarmônica com as demais provas do processo, deve ser valorada com reservas. Inteligência do artigo 197 do Código de Processo Penal. 5. A sentença absolutória de 1º grau apontou motivos robustos para pôr em dúvida a autoria do delito. Malgrado a confissão havida, as demais provas dos autos sustentam, quando menos, a aplicação do princípio do favor rei. 6. Habeas corpus concedido16. Há no caso acima retratado uma peculiaridade que merece atenção: tratava-se originariamente de um RHC, mas interposto fora do prazo. Superando formalismos estéreis e incompatíveis com a celeridade e a importância do bem tutelado pelo writ, a Turma conheceu da ordem como habeas corpus originário e a concedeu. Agora, do mesmo modo que se admite o exame da prova para a detecção da justa causa, não se admite a discussão do conjunto probatório, vale dizer, o confronto dos elementos informativos; saber se este ou aquele depoimento é melhor, não é possível de ser feito no âmbito do writ. A jurisprudência é antiga e copiosa a esse respeito: 1. O habeas corpus não se apresenta como via adequada ao trancamento da ação penal, quando o pleito se baseia em falta justa causa (atipicidade), não relevada, primo oculi. Intento, em tal caso, que demanda revolvimento fático-probatório, não condizente com a via angusta do writ.17 1. O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus só é cabível quando houver comprovação, de plano, da ausência de justa causa, seja em razão da atipicidade da conduta supostamente praticada pelo acusado, seja da ausência de indícios de autoria e materialidade delitivas, ou ainda da incidência de causa de extinção da punibilidade. 2. Havendo suficiente suporte probatório para a denúncia, não há que se falar em falta de justa causa, não cabendo no habeas corpus exame aprofundado dos elementos fático-probatórios18. 1. Nos termos do entendimento consolidado desta Corte, o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, o que não se infere na hipótese dos autos19. Percebe-se, com clareza, que a utilização das expressões acima negritadas são variáveis de um mesmo entendimento, vale dizer, o painel probatório deve ser unívoco para se examinar a justa causa para a ação penal ou até mesmo da condenação. De se destacar que no RE n. 593.443 o Pleno do STF decidiu que o trancamento da ação penal é possível de ser feito sem que isso vulnere “a cláusula constitucional de monopólio do poder de iniciativa do Ministério Público em matéria de persecução penal e tampouco transgride o postulado do juiz natural nos procedimentos do júri”20.

1.3. Casos de interesse para estudo 1.3.1. Pais testemunhas de Jeová: trancamento da ação penal pela prática de homicídio doloso Em razão da recusa, por motivos religiosos, para a realização de transfusão de sangue na filha, seus pais, gente humilde que a haviam levado ao hospital para tratamento, vieram a ser processados e pronunciados pela prática de homicídio doloso, na modalidade do dolo eventual. Improvido o Recurso em Sentido Estrito (RSE) no TJSP por maioria e, depois, os embargos infringentes, por 3 votos a 2, a via do Recurso Especial revelou-se infrutífera por motivos de natureza formal. Assim, a pronúncia tornou-se preclusa. Os pais ainda choravam a morte da filha, mas estavam na iminência de serem levados a julgamento pelo Júri. Estabelecidas as premissas fáticas a partir da narrativa da denúncia, ficou claro que, além de inexistir dolo na conduta dos pais, que levaram a filha ao hospital, caberia aos médicos, independentemente de qualquer tipo de autorização dos pais, adotar os procedimentos médicos cabíveis. A Sexta Turma do STJ, tendo como relatora a Min. Maria Thereza de Assis Moura, por empate na votação do HC n. 268.459, concedeu a ordem para excluir os pais da ação penal em julgado assim resumido: 2. Não há ofensa ao quanto assentado por esta Corte, quando da apreciação de agravo em recurso especial e em recurso em habeas corpus, na medida em que são trazidos a debate aspectos distintos dos que outrora cuidados. 3. Na espécie, como já assinalado nos votos vencidos, proferidos na origem, em sede de recurso em sentido estrito e embargos infringentes, tem-se como decisivo, para o desate da responsabilização criminal, a aferição do relevo do consentimento dos pacientes para o advento do resultado tido como delitivo. Em verdade, como inexistem direitos absolutos em nossa ordem constitucional, de igual forma a liberdade religiosa também se sujeita ao concerto axiológico, acomodando-se diante das demais condicionantes valorativas. Desta maneira, no caso em foco, terse-ia que aquilatar, a fim de bem se equacionar a expressão penal da conduta dos envolvidos, em que medida teria impacto a manifestação de vontade, religiosamente inspirada, dos pacientes. No juízo de ponderação, o peso dos bens jurídicos, de um lado, a vida e o superior interesse do adolescente, que ainda não teria discernimento suficiente (ao menos em termos legais) para deliberar sobre os rumos de seu tratamento médico, sobrepairam sobre, de outro lado, a convicção religiosa dos pais, que teriam se manifestado contrariamente à transfusão de sangue. Nesse panorama, tem-se como inócua a negativa de concordância para a providência terapêutica, agigantando-se, ademais, a omissão do hospital, que, entendendo que seria imperiosa a intervenção, deveria, independentemente de qualquer posição dos pais, ter avançado pelo tratamento que entendiam ser o imprescindível para evitar a morte. Portanto, não há falar em tipicidade da conduta dos pais que, tendo levado sua filha para o hospital, mostrando que com ela se preocupavam, por convicção religiosa, não ofereceram consentimento para transfusão de sangue – pois, tal manifestação era indiferente para os médicos, que, nesse cenário, tinham o dever de salvar a vida. Contudo, os médicos do hospital, crendo que se tratava de medida indispensável para se evitar a morte, não poderiam privar a adolescente de qualquer procedimento, mas, antes, a eles cumpria avançar no cumprimento de seu dever profissional21. O tema do caso aqui retratado encontra eco em vários casos fora do Brasil. A Corte Constitucional espanhola, em caso quase idêntico ao examinado, concedeu Amparo a pais que também se viram processados pela mesma razão. Absolvidos em primeira instância, vieram a ser condenados em grau de recurso pelo Tribunal Supremo. O Amparo constitucional, que fez as vezes do nosso habeas corpus, julgado pelo Pleno da Corte, foi outorgado como solicitado e em consequência, reconheceu que “a los recurrentes en amparo se les ha vulnerado su derecho fundamental a la libertad religiosa (art. 16.1 CE) e, em consequência, anulou a condenação de la Sala de lo Penal del Tribunal Supremo22.

1.3.2. Festa Rave e facilitação ao tráfico: trancamento da ação penal

O paciente era antigo aluno da Faculdade de Direito da USP, mas, mesmo formado, nunca se dedicou a isso. Desde estudante era DJ nas festas dos amigos e, depois, se profissionalizou tornando-se um dos maiores organizadores de festas rave do país. Bem orientado, antes de realizar o evento festivo, oficiou à Prefeitura local para lhe conceder o competente Alvará; às polícias civil e militar do Município, comunicando o evento e ao Departamento Estadual de Narcóticos do Estado de São Paulo para o mesmo fim. Ainda assim, quando os policiais encontraram gente se drogando na festa, levaram-no preso em flagrante por supostamente facilitar o uso de drogas. Depois houve denúncia contra ele, mas a Primeira Câmara Criminal do TJSP trancou a ação penal em acórdão da lavra do Des. Márcio Bartoli que, em resumo, assim o fundamentou: O crime atribuído ao paciente só se configura com a comprovação do dolo, ou seja, a consciência e vontade de consentir que outrem se utilize de local de que o acusado tem a posse, para uso indevido e tráfico de entorpecentes. Não se harmonizam, nesse ponto, as providências antecedentes adotadas pelo acusado para tentar coibir o uso de substâncias entorpecentes na festa e a facilitação do tipo legal de crime23. O MP estadual não se conformou com a decisão e interpôs Recurso Especial que, embora admitido na origem, veio a ser improvido monocraticamente24. O próprio Parecer do MPF já opinava pelo desprovimento do REsp. interposto pelo Ministério Público estadual. Na essência, foi dito: O recorrido, ao promover a festa, adotou todas as cautelas para que esta transcorresse em clima de normalidade, tanto que acionou os órgãos responsáveis por coibir eventuais delitos relacionados a entorpecentes. Tal providência, decerto, não é compatível com a imputação que lhe foi feita. De resto, a denúncia incorre em situação de responsabilidade objetiva. O só fato de promover uma festa, bastante comum entre os jovens, não autoriza validamente a conclusão de que o seu patrocinador, por só essa circunstância, tenha facilitado uso e comércio de substâncias entorpecentes que ali se verificaram. A tese do MP estadual era a de que o TJSP não poderia ter analisado o dolo no comportamento do agente. Todavia, o STJ, em reiterados julgados, tem reconhecido a possibilidade de se trancar a ação penal por falta de dolo quando isto for reconhecido, como no caso ora apresentado, prima facie (6ª T., RHC n. 15.941, rel. Min. Hamilton Carvalhido; RHC n. 11.474, rel. Min. Edson Vidigal; Corte Especial, Notícia Crime n.º 185, rel. Min. Milton Luiz Pereira; 5ª T., HC n. 45.779, rel. Min. Félix Fischer e HC n. 41179, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima). Neste último julgado, o votocondutor é eloquente ao admitir o “trancamento da ação penal por falta de justa causa for reconhecido prima facie quando desponta, induvidosamente, a inocência do indiciado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade”.

1.3.3. Acidente com vítima fatal no Parque de diversões Hopi Hari: imputação de culpa ao presidente do Parque Um triste episódio logo no começo de 2012 comoveu todo o país: uma família de brasileiros que vivia no Japão e estava em férias no Brasil foi ao Parque de diversões Hopi Hari (SP). Numa atração denominada Torre Eiffel, uma espécie de elevador que desce em queda quase livre, a filha do casal sentou-se numa cadeira desabilitada. Quando o elevador desceu, a vítima se desprendeu da cadeira e veio ao solo. Morte instantânea. A denúncia foi oferecida na Comarca de Vinhedo (SP) contra vários funcionários do Parque por negligência e, inclusive, contra seus diretores e o próprio presidente. Em relação a este sustentou-se que ele “deveria e poderia ter evitado o resultado morte se ordenasse a eficaz interdição da cadeira”. Ocorre, que antes de chegar ao presidente do Parque a própria denúncia referiu comportamentos outros, de funcionários, que por si sós, foram a causa eficiente para o triste acidente. Enfim, funcionários do setor de manutenção esqueceram-se de travar o colete da cadeira, que há mais de dez anos, eficazmente, impedia o acesso a esta e foi, segundo a denúncia, “determinante para o trágico evento”. O supervisor que mesmo avisado por meio da operadora da atração, ordenou o prosseguimento do seu funcionamento e, por fim, mas

não menos importante, a do operador da atração que, mesmo avisado pela mãe da vítima, permitiu que esta se sentasse na cadeira sem cinto e sem observar o destravamento do colete de proteção, cuja verificação é obrigatória de sua parte. Na verdade, o comportamento do presidente do parque não tinha relevância causal alguma. Tratava-se de responsabilidade objetiva marcada por uma espécie de demagogia segundo a qual “não apenas os funcionários de menos gradação foram denunciados, os altos também”. Uma espécie de populismo penal, lamentavelmente muito em voga nos dias de hoje. O TJSP, por sua Segunda Câmara Criminal, tendo como relator o Des. Alex Zilenovski, trancou a ação em acórdão que porta, no que interessa, a seguinte ementa: I. Despicienda a análise aprofundada do conjunto probatório, pois a análise do pleito do Ilustre Impetrante prende-se à compreensão lógico-formal do que já consta da própria denúncia no tocante ao Paciente. II. A questão tange à aferição do quanto da estrutura hierárquica do Parque “Hopi Hari” pode ser responsabilizado criminalmente por ter dado causa direta e eficiente à morte da jovem Gabriela Yukai Nychymura naquela manhã do dia 24 de Fevereiro de 2012. Afinal, foram denunciados desde o Presidente e administrador do Complexo até responsáveis diretos pela manutenção, fiscalização e operação do equipamento em que se deu o acidente, passando por escalões intermediários da estrutura administrativa do Parque. III. Afinal, como bem asseverou o Ilustre Impetrante, cumpre evitar o “regresso ao infinito” na responsabilização penal atinente ao caso concreto. Caso contrário, entraremos no pantanoso terreno da responsabilidade objetiva, que não tem guarida em sede penal. IV. Por certo, numa atividade em que as funções se desenvolvem com observância a uma estruturação hierárquica pré-estabelecida e estável como a do Parque em questão razoável crer que se cada um bem cumprir seu mister, por certo, a empreitada correrá a bom termo. Agora se alguém dentro desta cadeia hierárquica deixar de observar as cautelas a seu cargo, ou descurar de suas obrigações diretas e imediatas, poderá dar azo ao infortúnio, sem que com isto se possa lançar responsabilização penal aos que acreditavam, legitimamente, que aquele desidioso estava a bem cumprir seu dever. Trata-se, em última instância, de uma questão atinente à natural e necessária confiança que deve existir entre pessoas no seio de uma sociedade, de uma comunidade, de uma coletividade, ou mesmo, de uma empresa (Habeas Corpus n. 209413582.2014.8.26.0000 – Vinhedo). A prova dos autos fora examinada nos limites do que se permite no habeas corpus, pois nesta sede “é possível que se proceda ao exame da prova, desde que convergente e indiscutível, nos limites da descrição do fato, com a sua conotação jurídica. Essa análise não implica em revolvimento, cotejo, ou exame aprofundado de prova, o que tornaria inviável o writ”25. Inconformado com o trancamento da ação penal pelo TJSP, o Ministério Público interpôs recurso especial o qual, admitido na origem, veio a ser provido monocraticamente pela 5ª Turma do STJ (REsp. n. 1.502.544, DJe 26/08/2016) e, posteriormente, mantida a decisão no respectivo Agravo Regimental, ambos relatados pelo Min. Jorge Mussi (DJe 16/11/2016). Embora não essencial à compreensão do que se estuda neste tópico, é de se registrar que o julgamento pelo colegiado pela via do agravo regimental sepulta a amplitude do direito de defesa, pois com isso se impede a realização de sustentação oral. Há, sem exagero, um verdadeiro abuso no emprego de decisões monocráticas para se decidir recursos especiais admitidos. De qualquer sorte, reaberta a ação penal com o provimento do recurso ministerial, o Min. Celso de Mello, também monocraticamente, veio a deferir a ordem para, novamente, determinar o trancamento da ação penal em exame. A ementa da decisão é elucidativa: Homicídio culposo. Acidente em parque de diversões. Imputação desse evento delituoso ao Presidente e Administrador do Complexo Hopi Hari.

Inviabilidade de instaurar-se persecução penal contra alguém pelo fato de ostentar a condição formal de “Chief Executive Officer” (CEO). Precedentes. Doutrina. Necessidade de demonstração, na peça acusatória, de nexo causal que estabeleça relação de causa e efeito entre a conduta atribuída ao agente e o resultado dela decorrente (CP, art. 13, “caput”). Magistério doutrinário e jurisprudencial. Inexistência, no sistema jurídico brasileiro, da responsabilidade penal objetiva. Prevalência, em sede criminal, como princípio dominante do modelo normativo vigente em nosso País, do dogma da responsabilidade com culpa. “Nullum crimen sine culpa”. Não se revela constitucionalmente possível impor condenação criminal por exclusão, mera suspeita ou simples presunção. O princípio da confiança, tratando-se de atividade em que haja divisão de encargos ou de atribuições, atua como fator de limitação do dever concreto de cuidado nos crimes culposos. Entendimento doutrinário. Inaplicabilidade da teoria do domínio do fato aos crimes culposos. Doutrina. “Habeas corpus” deferido (HC n. 138.637, DJe 22/05/2017).

1.3.4. Prerrogativas do advogado. A atipicidade da conduta profissional na crítica ao juiz No curso de uma ação penal intentada contra vários réus, deu-se que um juiz federal entendia descabida a expedição de uma Carta Rogatória para os EUA com o intuito de se ouvir uma única testemunha. A advogada que patrocinava a defesa dos acusados, aliás, das mais destacadas na cidade, impetrou habeas corpus e o Tribunal Regional Federal da 3ª Região concedeu a ordem para que a Rogatória fosse expedida26. Ocorre que o juiz de primeiro grau, opondo novo óbice à expedição da Rogatória, determinou que se recolhessem as custas que supunha devidas. A advogada bateu, novamente, as portas do TRF que, em decisão liminar, determinou a expedição da Rogatória independentemente do pagamento imposto pelo magistrado27. Passado um ano sem que o juiz cumprisse a determinação da instância superior, a advogada foi surpreendida com a intimação para se manifestar nos termos do antigo art. 499 do CPP a fim de indicar as diligências que entendia necessárias. Irresignada, dirigiu-se ao relator do habeas e, em veemente petição, reclamou do não cumprimento da liminar concedida. Depois de historiar os fatos, a advogada narrou que em tese o juiz poderia ter prevaricado. Não deu outra. Diante da petição, o Relator no TRF pediu informações à autoridade coatora e a advogada, após a representação do juiz ao Ministério Público Federal, foi denunciada pela prática do crime de calúnia. Impetrado habeas corpus perante o TRF da Terceira Região, a ordem veio a ser denegada, sob o cômodo (e surrado) argumento de que a matéria não poderia ser examinada no âmbito do writ28. Todavia, o habeas substitutivo do recurso no STJ (HC n. 45.779) foi conhecido e concedido em acórdão da lavra do Min. Félix Fischer assim ementado: I – O trancamento da ação penal por falta de justa causa, na via estreita do writ, somente é possível se houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito. II – Para que a conduta descrita no art.  138 do Código Penal seja típica, é necessário que as declarações do autor da acusação sejam falsas, ou quanto a ocorrência dos fatos, ou quanto à autoria (Precedentes). III – Evidenciado, in casu, não se tratar, objetivamente, de falsas afirmações, as realizadas por advogada, no exercício da função, é de se determinar o trancamento da ação penal, pois o que se tem é o simples animus narrandi, talvez, até criticandi, mas não animus caluniandi29. Na parte final do acórdão percebe-se que o relator captou o âmago da questão que garroteia os advogados: a necessidade imperiosa de criticar como meio de defesa do acusado e a proteção que deve recair sobre o advogado para que possa desempenhar sua missão sem qualquer temor de

represálias. O habeas corpus, no caso, além de afastar a ameaça de pena que uma futura condenação poderia implicar, cumpriu, por via transversa, o importantíssimo papel de garantir a liberdade profissional do advogado e, mais que isso, sua dignidade pessoal e profissional.

1.3.4.1. Prerrogativas descaracterizada.

profissionais

do

advogado.

Crítica

a

juiz.

Ofensa

Outro caso que ilustra a importância do habeas corpus no controle da legalidade da ação penal e preservação da dignidade profissional do advogado deu-se no episódio em que dois advogados, assinando conjuntamente razões de apelação, teceram duras críticas ao magistrado sentenciante, mas relacionadas à discussão da causa. Este, por seu turno, representou contra os advogados apenas pela prática do crime de injúria, mas a denúncia oferecida pelo MPF foi além e abrangeu os crimes de calúnia e difamação. O tema foi alvo da atenção do Supremo Tribunal Federal que, superando a Súmula 691, concedeu inicialmente o pedido liminar para que se sobrestasse a ação penal e, depois, a própria ordem para se trancar a ação penal. Reconheceu-se tanto o excesso acusatório como a incidência da inviolabilidade profissional do advogado. No primeiro tópico, relativo ao excesso da denúncia, que articulou crimes em relação aos quais não havia sido oferecida representação, o Min. Celso de Mello ao julgar o HC n. 98.237 disse que a representação importa em “limitação material” ao poder de denunciar: O fato que constitui objeto da representação oferecida pelo ofendido (ou, quando for o caso, por seu representante legal) traduz limitação material ao poder persecutório do Ministério Público, que não poderá, agindo “ultra vires”, proceder a uma indevida ampliação objetiva da “delatio criminis” postulatória, para, desse modo, incluir, na denúncia, outros delitos cuja perseguibilidade, embora dependente de representação, não foi nesta pleiteada por aquele que a formulou. Precedentes. – A existência de divórcio ideológico resultante da inobservância, pelo Ministério Público, da necessária correlação entre os termos da representação e o fato dela objeto, de um lado, e o conteúdo ampliado da denúncia oferecida pelo órgão da acusação estatal, de outro, constitui desrespeito aos limites previamente delineados pelo autor da delação postulatória e representa fator de deslegitimação da atuação processual do “Parquet”. Hipótese em que o Ministério Público ofereceu denúncia por suposta prática dos crimes de calúnia, difamação e injúria, não obstante pleiteada, unicamente, pelo magistrado autor da delação postulatória (representação), instauração de “persecutio criminis” pelo delito de injúria. Inadmissibilidade dessa ampliação objetiva da acusação penal30. Afastadas as figuras da difamação e da calúnia o acórdão destacou a importância das prerrogativas profissionais e, em particular, a imunidade material que acoberta seus atos e manifestações: Inviolabilidade do advogado – Crimes contra a honra – Elemento subjetivo do tipo – O “animus defendendi” como causa de descaracterização do intuito criminoso de ofender. – A inviolabilidade constitucional do Advogado: garantia destinada a assegurar-lhe o pleno exercício de sua atividade profissional. – A necessidade de narrar, de defender e de criticar atua como fator de descaracterização do tipo subjetivo peculiar aos delitos contra a honra. A questão das excludentes anímicas. Doutrina. Precedentes. – Os atos praticados pelo Advogado no patrocínio técnico da causa, respeitados os limites deontológicos que regem a sua atuação como profissional do Direito e que guardem relação de estrita pertinência com o objeto do litígio, ainda que expressem críticas duras, veementes e severas, mesmo se dirigidas ao Magistrado, não podem ser qualificados como transgressões ao patrimônio moral de qualquer dos sujeitos processuais, eis que o “animus defendendi” importa em descaracterização do elemento subjetivo inerente aos crimes contra a honra. Precedentes. Afora isso, representa página de ouro da jurisprudência da Suprema Corte a afirmação do

caráter público das prerrogativas profissionais do advogado na defesa dos direitos e liberdades fundamentais: O exercício da advocacia e a necessidade de respeito às prerrogativas profissionais do advogado. – O Supremo Tribunal Federal tem proclamado, em reiteradas decisões, que o Advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja a instância de poder perante a qual atue, incumbe, ao Advogado, neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias – legais e constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos. – O exercício do poder-dever de questionar, de fiscalizar, de criticar e de buscar a correção de abusos cometidos por órgãos públicos e por agentes e autoridades do Estado, inclusive magistrados, reflete prerrogativa indisponível do Advogado, que não pode, por isso mesmo, ser injustamente cerceado na prática legítima de atos que visem a neutralizar situações configuradoras de arbítrio estatal ou de desrespeito aos direitos daquele em cujo favor atua. – O respeito às prerrogativas profissionais do Advogado constitui garantia da própria sociedade e das pessoas em geral, porque o Advogado, nesse contexto, desempenha papel essencial na proteção e defesa dos direitos e liberdades fundamentais. No corpo do aresto, o voto-condutor realçou que “o Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação – livre e independente – há de ser permanentemente assegurada pelos juízes e Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão”. E, por fim, o relator colocou em relevo a importância do controle jurisdicional da atividade persecutória estatal como “uma exigência inerente ao estado democrático de direito”: O Estado não tem o direito de exercer, sem base jurídica idônea e suporte fático adequado, o poder persecutório de que se acha investido, pois lhe é vedado, ética e juridicamente, agir de modo arbitrário, seja fazendo instaurar investigações policiais infundadas, seja promovendo acusações formais temerárias, notadamente naqueles casos em que os fatos subjacentes à “persecutio criminis” revelam-se destituídos de tipicidade penal. Precedentes. – A extinção anômala do processo penal condenatório, em sede de “habeas corpus”, embora excepcional, revela-se possível, desde que se evidencie – com base em situações revestidas de liquidez – a ausência de justa causa. Para que tal se revele possível, impõe-se que inexista qualquer situação de dúvida objetiva quanto aos fatos subjacentes à acusação penal ou, até mesmo, à própria condenação criminal. Precedentes. O STF trancou a ação penal instaurada contra os advogados por votação unânime. O tema é recorrente nas crônicas judiciárias como se pode ver da recente decisão do TRF da 4ª Região que trancou a ação penal contra um Procurador da Fazenda Nacional que afirmou ter o juiz sentenciado sem ler o processo. A 7ª Turma trancou a ação penal ao argumento de que “embora as palavras usadas no recurso interposto sejam, em tese, ofensivas, não atingem a potencialidade lesiva suficiente à persecução penal, restringindo-se aos aspectos cíveis”31.

1.3.5. Guerra fiscal e comportamento atípico de empresários Os pacientes, diretores de uma importante empresa que produz baterias, foram denunciados por crime contra a ordem tributária por terem lançado nas notas fiscais o valor cobrado por aquele Estado a título de ICMS nas operações: 12% de valor da operação. Toda a escrituração fiscal foi feita correta, transparente e precisamente pelos dois contribuintes envolvidos: a vendedora, no Estado de Pernambuco, e a compradora, no Estado de Minas Gerais. Tendo sido recolhido o ICMS devido a este último Estado da Federação tempestivamente, antes da entrada da mercadoria nos limites do Estado, documentos estes que acompanhavam regularmente a mercadoria transportada. A despeito disso, no Posto Fiscal mineiro, o Fisco glosou os documentos fiscais. Fê-lo ao

argumento de que, gozando a vendedora de benefício fiscal concedido regularmente pelo Estado de Pernambuco quanto ao pagamento do ICMS devido (instituído no exercício por tal Estado da Federação no âmbito de sua competência tributária constitucionalmente instituída), o valor creditado pela compradora era maior do que o ICMS efetivamente pago pela vendedora. Disso resultaria que o valor do abatimento feito (creditamento) fora maior do que o devido e, consequentemente, o valor recolhido antecipadamente a título de ICMS fora inferior ao devido. O ponto é que “Não é dado ao Estado de destino, mediante glosa à apropriação de créditos nas operações interestaduais, negar efeitos aos créditos apropriados pelos contribuintes” (STF, AC 2.611, Min. Ellen Gracie, DJe 28/06/2010) e, por outro lado, não há fraude no proceder do vendedor que escriturou a operação corretamente. Negada a ordem de habeas corpus no TJ-MG, impetrou-se outro, substitutivo do recurso, no STJ. Como a liminar fora negada e o início da instrução criminal se avizinhava, considerando manifesta a ilegalidade do caminhar da ação penal, impetrou-se novo writ no STF e o ministro Joaquim Barbosa, em decisão memorável, superou a Súmula 691 e concedeu a medida liminar pleiteada para sobrestar a ação penal até o julgamento do habeas. Fê-lo nos seguintes termos: Com efeito, do modo como a conduta dos pacientes está narrada na denúncia, não estão presentes, ao menos na análise superficial permitida em sede preliminar, os elementos típicos dos crimes que lhes são imputados, assim previsto na Lei 8.137/90: ‘Art. 1º. Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (...) IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;’ ‘Art. 2º. Constitui crime da mesma natureza: I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo.’ Com efeito, a denúncia não imputou aos pacientes o uso, elaboração ou emissão de qualquer documento falso ou inexato, nem qualquer declaração falsa, omissão, ou fraude empregada com o fim de recolhimento a menor do imposto. Conforme se extrai dos autos, os pacientes, por meio de sua empresa domiciliada em Minas Gerais, adquiriram baterias automotivas junto a empresa domiciliada no Estado de Pernambuco. No momento do recolhimento do ICMS-ST devido em Minas Gerais, os pacientes deduziram o valor de ICMS da operação própria, tal como registrado na nota fiscal emitida pela empresa de Pernambuco como incidente sobre a operação de compra e venda. A denúncia sustenta que essa dedução consubstanciaria crime, pois a empresa vendedora não pagou, ao Estado de Pernambuco, o valor de ICMS da operação própria. Contudo, o fato de a empresa remetente não ter efetivamente pago o valor do tributo por ela devido, com amparo em benefício fiscal concedido pelo Estado de Pernambuco, não torna falsa ou inexata a nota fiscal por ela emitida e utilizada pelos pacientes-compradores para o cálculo do tributo devido ao Estado de Minas Gerais. Os documentos que acompanharam a denúncia revelam que todos os dados informados na nota fiscal em questão – origem da operação (Pernambuco), fato gerador (compra e venda de baterias automotivas), valores envolvidos (base de cálculo, alíquota incidente, montante do ICMS devido na origem) – são exatos e correspondem à realidade. Assim, a questão resume-se a saber se os pacientes tinham ou não direito de deduzir, do valor do ICMS-ST por eles devido ao Estado de Minas Gerais, o valor do ICMS incidente sobre a operação

própria – do remetente –, tendo em vista que o Estado de Pernambuco, em contrariedade à Resolução do Confaz, dispensa o pagamento do referido tributo, como incentivo fiscal às empresas locais. Segundo o Conselho dos Contribuintes: ‘a Fiscalização considerou o recolhimento incorreto, em função do abatimento indevido do valor integral do ICMS normal, destacado na nota fiscal, quando a mesma foi remetida por Contribuinte do Estado de Pernambuco (PE), contrariando os termos do art. 1º, item 10.1, da Resolução 3.166/01, juntamente com as modificações introduzidas pelas notas 26, 27 e 28, item 3 da Resolução 3.282/02’. Salienta, ainda, que não podem ser considerados, no cálculo do ICMS-ST, os ‘créditos destacados nos documentos fiscais e não cobrados na origem, nos termos da Resolução nº 3.166/01, tendo em vista que o benefício fiscal foi concedido à revelia da legislação tributária’. Tal como narrada na denúncia, a alegada sonegação fiscal não ultrapassa os limites do direito tributário. Em momento algum os pacientes são acusados de terem omitido ou declarado falsamente a origem da operação configuradora do fato gerador (compra de mercadoria junto a empresa sediada em Pernambuco), os valores envolvidos na operação de compra-e-venda, a data, a alíquota incidente, nem alterado a exatidão desses fatos ou praticado fraude sobre o documento fiscal utilizado pelos pacientes. Com isso, os elementos objetivos e normativos dos artigos 1º, IV, e 2º, I, da Lei 8.137/90 não estão, numa análise prefacial, narrados na denúncia. Do exposto, defiro a liminar para, superando a Súmula 691 deste Supremo Tribunal Federal, determinar a suspensão da Ação Penal 478.08.34925-0 (sic), em trâmite perante a Vara Única da Comarca de Pedra Azul/MG, até o julgamento do mérito do presente writ32. Passado mais de um ano e meio da concessão da cautelar, o Min. Luis Roberto Barroso, monocraticamente, extinguiu o habeas por entender que tendo havido posterior julgamento e indeferimento do anterior remédio heroico ajuizado no STJ (HC n. 196.262), cuja relatoria, inicialmente, coube ao Min. Adilson Macabu. Dessa forma, não caberia ao STF examinar a matéria. Como quer que seja, o certo é que o writ não estava definitivamente julgado no STJ e, com um novo relator, a 5ª Turma da Corte, sem divergência, conheceu e proveu os embargos declaratórios opostos contra o acórdão denegatório, dando-lhes efeitos infringentes. A ementa do julgado resultante dos declaratórios conduzido pelo Min. Gurgel de Faria é a seguinte: Penal e processual. Embargos de declaração. Omissão. Ocorrência. Atribuição de efeito modificativo. Crime contra a ordem tributária. Recolhimento de ICMS em operações interestaduais. Guerra fiscal entre estados federados. Trancamento da ação penal. Atipicidade da conduta. 1. Os embargos de declaração têm ensejo quando há ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão no julgado e, por construção pretoriana integrativa, erro material. 2. Constatada a existência de omissão no julgado acerca da atipicidade da conduta, a questão deve ser alvo de enfrentamento. 3. O trancamento de ação penal ou de inquérito policial em sede de habeas corpus constitui “medida excepcional, só admitida quando restar provada, inequivocamente, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático-probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito” (HC 281.588/MG, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 05/02/2014). 4. Hipótese em que os embargantes foram denunciados pela prática dos delitos descritos nos artigos 1º, IV, e 2º, II, da Lei 8.137/1990, por duas vezes, porque teriam reduzido o valor a pagar a título de ICMS-ST em operações interestaduais de compra e venda de baterias automotivas. 5. Situação que retrata a guerra fiscal entre estados federados, consubstanciada na concessão de incentivo fiscal a uma das partes da operação comercial, sem amparo em convênio celebrado

no âmbito do CONFAZ, conforme determina a LC n. 24/1975. 6. “A guerra fiscal não se limita à alocação dos empreendimentos. Mesmo quando definidos os lugares de instalação, os embates continuam quando as unidades começam a funcionar, pois é comum a circulação de mercadorias entre estabelecimentos de Estados distintos, ensejando discussão acerca da validade e do abatimento do crédito relativo à operação anterior (entrada) na operação subsequente (saída), o que, caso não existisse o conflito, deveria ser aceito normalmente, em face do princípio da não cumulatividade do ICMS (art. 155, § 2º, I, CF/88).” (FARIA, Luiz Alberto Gurgel de. A Extrafiscalidade e a Concretização do Princípio da Redução das Desigualdades Regionais. Quartier Latin, São Paulo, 2010, p. 134). 7. Afasta-se a configuração do delito capitulado no art. 1º, IV, da Lei n. 8.137/1990, se os dados informados na nota fiscal são exatos e correspondem à realidade, refletindo fiel e cabalmente os detalhes da operação de compra e venda de mercadoria, com os lançamentos tributários exigidos por lei e já com pagamento antecipado e tempestivo do ICMS devido. 8. O aproveitamento de crédito de ICMS decorrente de diferenças de alíquotas interestaduais, ainda que possa ser passível de eventual condenação no âmbito fiscal (pagamento de créditos glosados), não caracteriza o delito descrito no art. 2º, II, da Lei 8.137/1990. 9. Não se pode imputar a prática de crime tributário ao contribuinte que recolhe o tributo em obediência ao princípio constitucional da não cumulatividade, bem como mantém a fidelidade escritural dentro das normas (em princípio) válidas no âmbito dos respectivos entes da Federação. 10. Embargos acolhidos, para não conhecer do habeas corpus e conceder a ordem, de ofício, determinando o trancamento da ação penal por atipicidade da conduta33. O STJ, como se pode observar das ementas dos julgados do RHC 7.700 – publicado em 14/12/1998 – e HC 4.307 – publicado em 26/5/1997 –, ambos da relatoria do ministro Vicente Leal, já havia se pronunciado anteriormente sobre o tema, evidenciando que “a guerra fiscal entre os Estados não pode dar causa a persecução penal sem justa causa”. Idem o STF: Inq. 1.059, ministro Celso de Mello, DJ 25/08/1995. Posteriormente, a mesma 5ª Turma, julgando o RHC n. 66.716, tendo como relator o Min. Ribeiro Dantas, reafirmou a mesma tese34.

1.3.5.1. Crime fiscal e justa causa para o falso ideológico em processo autônomo Se a denúncia especifica que a falsidade ideológica foi perpetrada para iludir o fisco, mas o crime fiscal não pode ser objeto de perseguição, pois o agente, antes mesmo da constituição do crédito tributário, paga o valor devido, é viável o processo autônomo pelo crime meio? A resposta é negativa. Todavia, quando o falso narrado na denúncia tiver potencialidade lesiva autônoma e esta potencialidade estiver descrita na denúncia, é viável a instauração da ação penal pelo crime de falsidade ideológica (STJ, 6ª T., RHC 67.638/PE, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 01/08/2016). Se, porém, a denúncia confinar o alcance lesivo do falso ao crime fiscal e este não puder ser objeto de ação penal, não há justa causa para a ação penal, pois o crime-meio não pode sobreviver independentemente do crime-fim. Em outras palavras, se a falsidade ideológica estiver na mesma linha de desdobramento causal de lesão ao bem jurídico, integrando, assim, o iter criminis do delito-fim, consistente na sonegação, aplica-se, assim, o princípio da consunção. Como se decidiu na 3ª T. do TRF da 1ª Região, “carece de justa causa a ação penal intentada para punir o crime-meio, depois de extinta a punibilidade do crime-fim (contra a ordem tributária) pelo pagamento integral do débito e seus acessórios, daquele não remanescendo potencialidade lesiva” (HC n. 0050194-77.2016.4.01.0000 rel. Juíza Fed. Convocada Rogéria Maria Castro Debelli. DJe 23/07/2017). No Agravo em Recurso Especial n. 1.207.338 interposto contra a decisão do TRF-1, o Min. Reynaldo Soares da Fonseca, improveu-o destacando que o posicionamento do STJ vai no mesmo

sentido da decisão atacada. Também o TRF da 3ª Região, em expressivo acórdão relatado pela Des. Fed. Cecília Mello, sufragou o mesmo entendimento: I – Os crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso, em princípio, apresentam existência autônoma. Todavia, no caso sub examen, sua prática teria se dado tão-somente como meio necessário para a consumação da sonegação fiscal, é dizer, tais crimes seriam meio (crimesmeio) para a prática do delito contra a ordem tributária (crime-fim) sendo, portanto, por ele absorvidos. II – Os recibos inquinados de falso foram apresentados pelo paciente em cumprimento à ordem da autoridade administrativa, o que afasta a imputação dos delitos de falsidade ideológica e uso de documento falso. III – Declarada extinta a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária em virtude do pagamento integral do tributo, impõe-se trancar a ação penal. IV – Ordem concedida para trancar a ação penal originária em relação a ambos os réus. (Habeas Corpus 0011969-31.2016.4.03.0000/SP, 11ª T., j. 23/08/2016). Este último julgado foi, igualmente, alvo de Recurso Especial por parte da Procuradoria Regional, mas improvido monocraticamente pelo Min. Joel Ilan Paciornik com farta citação jurisprudencial (REsp. n. 1.646.753, DJe 09/08/2017) e sem impugnação.

1.3.5.2. Bem dado em garantia na execução fiscal afasta a justa causa para a ação penal por crime tributário? Questão tormentosa e que tem provocado séria dissidência jurisprudencial. Em matéria de crime tributário há previsão da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido. É uma opção do legislador para estimular o seu pagamento ao invés de fazer recair sobre o contribuinte o estigma penal ou mesmo o encarceramento. Embora se possa discutir a legitimidade de tal opção legislativa, que não é dada aos infratores dos crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça contra a pessoa35, o fato é que se encontram em vigor o art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/2003 e o art. 69 da Lei nº 11.941/2009. Imagine-se a hipótese do crédito tributário constituído e que na respectiva ação executória fiscal o executado, ao oferecer seus embargos, apresente bem à penhora sendo este aceito para a satisfação do crédito buscado na execução. Duas são as possibilidades quanto aos reflexos na ação penal: i. Se forem providos os embargos do executado, não haverá mais débito fiscal a se apurar, pois eles possuem exatamente a finalidade de desconstituir integralmente a autuação fiscal e o crédito tributário dela decorrente. Neste caso, a ação penal não terá justa causa porque o crime em foco é material e, inexistindo crédito tributário devido, não há tipicidade. ii. Se, ao contrário, forem improvidos os embargos do devedor, o valor da garantia será integralmente revertido a favor da Fazenda e, da mesma forma, estará extinto o crédito tributário pela quitação integral do seu valor atualizado. Em outras palavras, qualquer que seja o desate dos embargos à execução, a ação penal representa um projeto natimorto. Conforme reconheceu a 6ª Turma do STJ, “(...) oferecidas garantias integrais sobre os valores devidos, garantias estas aceitas pelo Juízo e pela Fazenda Pública”, “não se justifica a manutenção do processo criminal, pois em qualquer das soluções a que se chegue no juízo cível ocorrerá a extinção da ação penal” (HC n. 1551.17/ES, Rel. Min. Haroldo Rodrigues, DJe 03/05/2010). Mais recentemente, o TJSP, em acórdão da lavra do Des. Almeida Toledo, reafirmou tal entendimento destacando-se a ilegitimidade da utilização do direito penal para cobrança de tributos. Qualificou-se tal ação penal como “patente demonstração do

desvio da função do Direito Penal para a finalidade arrecadatória da máquina pública”. O acórdão está assim ementado: CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. Impetração que pretende o trancamento da ação penal por falta de justa causa. Necessidade. Pagamento do débito garantido por penhora realizada nos autos da execução fiscal. Exigência do ordenamento para que a correção da cobrança possa ser discutida em Juízo via embargos à execução. Equivalência aos efeitos do pagamento ou parcelamento, que extinguem a punibilidade, vez que o desfecho da discussão judicial com a Fazenda será necessariamente a inexigibilidade do tributo ou o seu integral pagamento. Emprego ilegítimo do Direito Penal pelo Estado como método de coerção para o recolhimento do tributo, tolhendo do cidadão o direito de discuti-lo em Juízo sob a ameaça de prisão. Ordem concedida para determinar o trancamento da ação penal por falta de justa causa (16ª Câm. Criminal, HC n. 2031657-33.2017.8.26.0000, j. 20/03/2018). É verdade que a orientação da 5ª T. do STJ vai no sentido contrário consoante se vê da ementa do HC n. 394.746, relatado pelo Min. Jorge Mussi: “Conquanto o débito fiscal tenha sido garantido na origem, o certo é que não se equipara ao pagamento do tributo, razão pela qual não enseja, imediata e obrigatoriamente, o trancamento da ação penal, como almejado. Precedentes” (DJe 24/08/2017). Todavia, embora o oferecimento de garantia na execução fiscal não se equipare ao pagamento do tributo, é indiscutível, como pondera o acórdão do TJSP, que “tanto o pagamento quanto a garantia Judicial do débito levam à disponibilidade da quantia aos cofres públicos, ainda que o primeiro o faça mais rapidamente”. Assim, “não há que se diferenciar o pagamento voluntário daquele feito nos autos da execução, sob pena de exigir do cidadão que simplesmente se conforme com a decisão administrativa e não a questione, sob pena de ver-se preso mesmo depois de ter saldado sua dívida. Acrescer a voluntariedade do pagamento para a extinção da punibilidade é criar requisito não previsto na lei, interpretação claramente vedada e contraditória com aquela de exigir que a garantia estivesse expressamente prevista como causa extintiva da punibilidade”. A intelecção fixada no julgado paulista é mais do que razoável, pois, além de prestigiar a política criminal do legislador, reafirma o caráter de ultima ratio do direito penal, afastando a incidência da máquina estatal penal em hipótese que, cedo ou tarde, se resolverá com a extinção de punibilidade. Acima de tudo, reforça-se o respeito à dignidade humana não se submetendo o contribuinte, desnecessariamente, aos trâmites estigmatizantes de uma ação penal sem possibilidade de vingar.

1.3.6. Médico de Pronto Socorro da Santa Casa que deixa de comunicar à polícia o encontro na vagina da paciente de maconha e é preso, autuado em flagrante, por participação no tráfico A história é bizarra. Médico há mais de 30 anos, “João” vem a receber no plantão da Santa Casa de Assis (SP) uma viajante, mulher em estado adiantado de gravidez, que passava mal. Atendida às pressas, o profissional encontrou na sua vagina 130 gramas de maconha. Retirou-a e mandou devolver para a portadora. Ao que parece, a Polícia Civil já vinha investigando dita mulher que, inclusive, ato contínuo, veio a parir na própria Santa Casa. O médico não quis denunciá-la à polícia; prevaleceu sua obrigação ética de preservar o sigilo. Foi preso e assim ficou até que o STJ, três meses depois, em memorável acórdão da lavra do Min. Nilson Naves determinasse a sua soltura36. Já na discussão do mandamus causou certa indignação o tratamento dispensado ao profissional da medicina como criminoso. Mas foi o TJSP que, em julgamento histórico da sua 16ª Câmara Criminal, em acórdão relatado pelo Desembargador Almeida Toledo, veio, por maioria, a conceder a ordem em julgado assim resumido: Habeas Corpus. Tráfico. Impetração em favor de médico obstetra acusado de concorrer para a traficância por retirar e devolver, mediante pagamento de preço previamente estipulado, 130 gramas de maconha a gestante que transportava a droga no interior de sua vagina. Ausência de

comunicação do procedimento à polícia. Pretendido trancamento da ação penal por atipicidade do fato. Admissibilidade. Conduta que não se subsume a nenhum dos núcleos do artigo 33 da Lei nº 11.343/06. Paciente, profissional da medicina, que deve observar o sigilo que o ordenamento legal lhe impõe. Proceder legitimado por mais de uma norma jurídica. Inteligência dos artigos 11 e 102 do Código de Ética Médica; artigo 66 da LCP e artigo 154 do CP. Intuito de socorrer e obter lucro, não de traficar. Constrangimento ilegal configurado. Ordem concedida para trancar a ação penal contra ele instaurada37. O voto vencedor do 3º Juiz, Desembargador Alberto Mariz, foi primoroso ao destacar o âmbito de conhecimento do writ: Primeiramente, é de se ver que ao analisar um habeas corpus impetrado visando o trancamento de ação penal, deve o julgador efetuar o exame da viabilidade da denúncia, isto é, se ela apresenta uma imputação que possa vir a ser acolhida, ou se é uma acusação natimorta que, se levada até o final somente trará prejuízos e dissabores para a parte acusada, em razão dos efeitos negativos que uma ação penal traz. O Eminente Professor José Frederico Marques, no clássico “Elementos de Direito Processual Penal” (Forense, 1.961, Volume II, pg. 161), deu bastante realce ao controle sobre a denúncia no despacho liminar, enumerando 3 espécies de condições ou pressupostos que devem ser verificados para o recebimento da inicial: a – regularidade formal da denúncia; b – viabilidade da relação processual; c – viabilidade do direito de ação (op. cit. pg. 161). No caso em exame deve-se verificar se há viabilidade de se obter uma decisão condenatória, mesmo se a imputação contida na denúncia for verdadeira, pois como afirmou o mestre acima mencionado, citando José Alberto dos Reis, “é de todo aconselhável e vantajoso, (...) que o magistrado disponha da faculdade de jugular à nascença pleitos absolutamente inviáveis” (pg. 163). E, depois de lembrar Torquato Castro, que disse que “nada justifica ulterior movimentação processual, quando o juiz, liminarmente, em face da inépcia do pedido, possa desde logo reconhecer a absoluta carência do direito de ação”, completou: “Quando se cuida da ação penal, maior peso adquirem esses argumentos, porquanto a persecutio criminis sempre afeta o status dignitatis do acusado e se transforma em coação ilegal, se inepta a acusação. A falta de justa causa para a coação processual, que se traduz na propositura da ação penal, é motivo, até, para a impetração de ordem de habeas corpus, o que mostra ser inteiramente razoável que o juiz impeça a constituição da relação processual quando a denúncia se apresentar de todo não apta a produzir os efeitos que são pedidos na acusação” (pg. 163 – grifei). Na hipótese em debate, a impetração assevera inexistir justa causa porque, em síntese, o paciente estava obrigado a dar o atendimento médico, agindo pois no estrito cumprimento do dever legal e, igualmente, estava proibido de comunicar à autoridade policial o fato delituoso, em razão do sigilo médico a que está submetido pelos preceitos do Código de Ética (fls. OS). Para, após cuidadoso exame do caso, advertir: Eduardo Couture, brilhante processualista, em obra sobre processo civil, afirmou que “O processo leva consigo uma carga de sacrifício (eu ousaria dizer: de dor) que nenhuma sentença pode reparar” (“Introdução ao Estudo do Processo Civil”, José Konfino Editor, 1.951, pg. 27). O caso examinado. Cidade do interior. Todos se conhecem. A reputação do médico não se restaurará por uma sentença absolutória. Só a ordem de habeas corpus pode fazê-lo. A ação penal foi trancada por maioria de votos, pois o Relator sorteado entendeu que haveria necessidade de discussão de provas, o que seria incompatível com o âmbito de conhecimento do

habeas corpus. A Procuradoria Geral de Justiça interpôs recurso especial, mas este, embora admitido na origem, não foi conhecido em decisão monocrática (art. 557, caput, do antigo CPC) da lavra do Min. Ericson Maranho por entender que não se atacou um dos fundamentos do acórdão recorrido e que haveria necessidade de discussão de prova, inviável no Resp. (Súmula n. 07)38.

1.3.7. Crime contra o sistema financeiro. Arquivamento do processo administrativo. Falta de justa causa Todos sabemos (e cansamos de ler e ouvir) que as instâncias penal e administrativa são independentes. Todavia nem sempre é assim. Demonstrou-o, para exemplificar, o Supremo Tribunal Federal ao julgar o HC n. 81.611, da lavra do Min. Pertence ao firmar o entendimento de que sem a constituição definitiva do crédito tributário, não há justa causa para a ação penal. Tema hoje condensado no verbete da Súmula Vinculante n. 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art.  1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. No campo dos crimes contra o sistema financeiro pode, em algumas hipóteses, se passar algo semelhante. Se o Banco Central num primeiro momento representa ao Ministério Público Federal entendendo que há crime e, posteriormente, julgando recurso interno, vem a entender lícita a conduta, a denúncia oferecida, apenas com base na representação do BACEN, não pode sobreviver. É o que se vê da ementa do HC n. 81.324, relatado pelo Min. Nelson Jobim: “Habeas corpus”. Penal. Processo penal. Crime contra o sistema financeiro nacional. Representação. Denúncia. Processo administrativo. Arquivamento. Ação penal. Falta de justa causa. Denúncia por crime contra o Sistema Financeiro Nacional oferecida com base exclusiva na representação do BANCO CENTRAL. Posterior decisão do BANCO determinando o arquivamento do processo administrativo, que motivou a representação. A instituição bancária constatou que a dívida, caracterizadora do ilícito, foi objeto de repactuação nos autos de execução judicial. O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional referendou essa decisão. O Ministério Público, antes do oferecimento da denúncia, deveria ter promovido a adequada investigação criminal. Precisava, no mínimo, apurar a existência do nexo causal e do elemento subjetivo do tipo. E não basear-se apenas na representação do BANCO CENTRAL. Com a decisão do BANCO, ocorreu a falta de justa causa para prosseguir com a ação penal, por evidente atipicidade do fato. Não é, portanto, a independência das instâncias administrativa e penal que está em questão. HABEAS deferido39. No corpo do julgado, destacando o Parecer do MPF oferecido no TRF da 3ª Região, foi dito: Penso que o enfoque não pode se estabelecer à luz de discussão sobre a independência das instâncias administrativa e judicial e independência da jurisdição penal. É que a partir do momento em que a autoridade monetária proclamou que a operação realizada é legal e que a BBA não deve ser multada pelo Banco Central, toda a discussão deve girar em torno da autonomia do ilícito e da segurança jurídica. Ademais, que segurança jurídica poderá subsistir no nosso Sistema Financeiro e na própria Ordem Jurídica, se chegarmos ao ponto de condenar o paciente por crime contra o Sistema Financeiro, aplicando-se pena em defesa da preservação da higidez, do sistema quando se sabe de antemão que a autoridade monetária não viu anormalidade nas operações realizadas... ... A prosseguir no processo crime, incidirá o Estado na ‘proibição de ‘venire contra factum proprio’. Por isso, a meu ver só há uma solução para assegurar a persecução penal ‘in casu’: desconstituir judicialmente a decisão do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. O tema foi tratado em outros casos anteriormente como se vê do HC n. 72.101, relatado pelo Min. Maurício Corrêa: “Habeas corpus”. Crime societário contra o sistema financeiro (Lei nº 7.492/86, art.  6º). Inexistência de inquérito policial; arquivamento do processo administrativo. Inépcia da denúncia:

falta de justa causa para a ação penal. 1. A denúncia, como peça primeira da ação penal que baliza a defesa a ser apresentada pelo acusado é essencialmente técnica, por isso que não pode descumprir o imperativo contido no art.  41 do CPP, dela devendo constar, com precisão, a exposição do fato criminoso. 2. Relatado na exordial acusatória que os denunciados fizeram inserir no balanço semestral do Banco, “dados relativos a depósitos interfinanceiros”, cuja peça contábil foi publicada e aprovada pelo Banco Central, infere-se ausentes as figuras essenciais à caracterização do delito definido no art.  6º da Lei nº 7.492/86: sonegação de informação ou informação falsa. As informações acerca da captação de recursos financeiros junto a outros bancos não foram sonegadas, porque prestadas, como não são falsas, porque mencionados os nomes dos estabelecimentos, as datas e os montantes que teriam sido depositados em “operações casadas”, cujas captações foram registradas na Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos do Banco Central, com a expedição de certificados de depósitos inter-bancários. 3. Diante da inexistência de instauração de inquérito policial e do arquivamento do processo administrativo por decisão do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, não se constata a presença do elemento crime, que da denúncia não restou tipificado. 4. “Habeas corpus” deferido para determinar o trancamento da ação penal40. Expressivo, igualmente, o decidido no HC n. 83.674, em acórdão lavrado pelo Min. Carlos Velloso assim ementado: Penal. Processual penal. Habeas corpus. Crime contra o sistema financeiro nacional. Representação. Denúncia. Processo administrativo. Arquivamento. Ação penal: trancamento: falta de justa causa. I. – No caso, tendo a denúncia se fundado exclusivamente em representação do Banco Central, não há como dar curso à persecução criminal que acusa o paciente de realizar atividade privativa de instituição financeira, se a decisão proferida na esfera administrativa afirma que ele não pratica tal atividade. Inocorrência, portanto, de justa causa para o prosseguimento da ação penal contra o paciente. II. – H.C. deferido41. Percebe-se dos julgados que, embora não se discuta a independência das instâncias, não se identifica a justa causa para a ação penal por crime contra o sistema financeiro se o próprio BACEN vem a considerar lícita a conduta e inexistem outros elementos, colhidos em investigação diversa, para viabilizar a acusação.

1.3.8. Operação Castelo de Areia: falta de justa causa para a deflagração de medida invasiva Examinada em perspectiva, a Operação Castelo de Areia poderia ter sido o embrião da Lava Jato. Foi deflagrada contra uma das maiores empreiteiras do país, mas desmoronou como um castelo de cartas por conta de uma ilegalidade na origem e que veio a contaminar as demais provas. O juiz da 6ª Vara Federal de São Paulo havia autorizado o acesso a informações telefônicas dos investigados com base em denúncia anônima. A 6ª Turma do STJ examinou a matéria nos habeas corpus ns. 137.349 e 159.159 relatados pela Min. Maria Thereza e julgados conjuntamente. A expressiva ementa do julgado dá a exata dimensão do significado das garantias constitucionais do processo penal: As garantias do processo penal albergadas na Constituição Federal não toleram o vício da ilegalidade mesmo que produzido em fase embrionária da persecução penal. A denúncia anônima, como bem definida pelo pensamento desta Corte, pode originar procedimentos de apuração de crime, desde que empreendida investigações preliminares e respeitados os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão, o que leva a considerar imprópria a realização de medidas coercitivas absolutamente genéricas e invasivas à intimidade tendo por fundamento somente este elemento de indicação da prática delituosa. A exigência de fundamentação das decisões judiciais, contida no art.  93, IX, da CR, não se compadece com justificação transversa, utilizada apenas como forma de tangenciar a verdade real e confundir a defesa dos investigados, mesmo que, ao depois, supunha-se estar imbuída dos melhores sentimentos de proteção social.

Verificada a incongruência de motivação do ato judicial de deferimento de medida cautelar, in casu, de quebra de sigilo de dados, afigura-se inoportuno o juízo de proporcionalidade nele previsto como garantia de prevalência da segurança social frente ao primado da proteção do direito individual42. É interessante notar que a autoridade inicialmente apontada como coatora havia prestado informações suplementares de caráter sigiloso à Desembargadora relatora do habeas no TRF afirmando que era impossível combater o crime organizado de maneira “absolutamente ortodoxa”. A relatora deu ciência aos impetrantes das ditas informações sigilosas, o que atestava a ilegalidade. A relatora do writ no STJ colocou uma indagação fundamental para o julgamento: Qual o limite, no caso concreto, do direito da coletividade à persecução penal? Sem dúvida, controvérsias como as que tais serão sempre ditadas pelo conflito de princípios fundamentais onde a solução tende a alicerçar-se no equilíbrio entre a liberdade do cidadão, de grande valia para a preservação do Estado Democrático de Direito, nos fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III, da CR), e o sentido da segurança social, sem a qual o próprio Estado deixaria de existir. Se de um lado a pessoa deve ter preservada a sua individualidade, de outro, o Poder Público tem a prerrogativa de fazer prevalecer a ordem, afastando e coibindo, dentro do plano da legalidade, eventuais desestímulos à paz social. E tudo se interpondo no curso da previsão constitucional do devido processo legal. Em outra passagem, o acórdão lembra o voto do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, da Quinta Turma, que, após robusta argumentação sobre discussão similar, concluiu: 28. A criminalidade de qualquer nível ou natureza deve ser combatida com eficiência e pertinácia constantes e crescentes, mas esse objetivo à segurança da Sociedade não serve de escudo e nem justifica que as autoridades responsáveis pela sua consecução procedam de forma incontrolada ou segundo os ditames de suas percepções particulares do sistema de garantias jurídicas, ainda que explicáveis, de outro ponto de vista. 29. Só seria possível relevar essas exigências se se aceitasse a tese de que os fins justificam os meios, impropriamente atribuída a Nicolau Maquiavel; porém, no atual estágio em que se encontra o Direito Processual Penal Brasileiro, cujo norte é a fiel obediência ao princípio do Devido Processo Legal, não se pode admitir a infringência dos princípios e garantias constitucionais sob a justificativa de combate à criminalidade (Voto proferido no HC 124253/SP). No mesmo julgamento, o Ministro Jorge Mussi lembrou: Por tratar-se de medida excepcional, o afastamento do sigilo de dados deve ser precedido de concretas e fundadas razões, não se podendo admitir que o abrandamento desta garantia constitucional seja realizado sem a demonstração efetiva da sua necessidade, comprovando-se a impossibilidade de obtenção da prova pretendida por outros meios disponíveis. Após o exame da lição doutrinária e de alguns precedentes, o voto condutor do aresto traz valiosa jurisprudência sobre o tema: Anonimato – Notícia de prática criminosa – Persecução criminal – Impropriedade. Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente. (HC 84827/TO, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJe-147 divulg 22-11-2007 publicado 23-11-2007). Consigne-se, então, o entendimento acolhido por esta Sexta Turma:

“Procedimento criminal (acusação anônima). Anonimato (vedação). Incompatibilidade de normas (antinomia). Foro privilegiado (prerrogativa de função). Denúncia apócrifa (investigação inconveniente). 1. Requer o ordenamento jurídico brasileiro – e é bom que assim requeira – que também o processo preliminar – preparatório da ação penal – inicie-se sem mácula. 2. Se as investigações preliminares foram iniciadas a partir de correspondência eletrônica anônima (e-mail), tiveram início, então, repletas de nódoas, tratando-se, pois, de natimorta notícia. 3. Em nosso conjunto de regras jurídicas, normas existem sobre sigilo, bem como sobre informação; enfim, normas sobre segurança e normas sobre liberdade. 4. Havendo normas de opostas inspirações ideológicas – antinomia de princípio –, a solução do conflito (aparente) há de privilegiar a liberdade, porque a liberdade anda à frente dos outros bens da vida, salvo à frente da própria vida. 5. Deve-se, todavia, distinguir cada caso, de tal sorte que, em determinadas hipóteses, esteja a autoridade policial, diante de notícia, autorizada a apurar eventual ocorrência de crime. 6. Tratando-se, como se trata, porém, de paciente que detém foro por prerrogativa de função, ao admitir-se investigação calcada em denúncia apócrifa, fragiliza-se não a pessoa, e sim a própria instituição à qual pertence e, em última razão, o Estado democrático de direito. 7. A Turma ratificou a liminar – de caráter unipessoal – e concedeu a ordem a fim de determinar o arquivamento do procedimento criminal.” (HC 95838/RJ, Rel. Ministro Nilson naves, Sexta turma, julgado em 26/02/2008, DJe 17/03/2008). Malgrado a excelência do voto condutor e dos votos que o acompanharam, o Ministério Público Federal interpôs recurso extraordinário (RE) o qual, todavia, não foi admitido. O agravo (ARE n. 654.335) foi julgado no Supremo Tribunal Federal monocraticamente pelo Min. Luis Roberto Barroso que lhe negou seguimento. Afora questões de processamento próprias ao RE e que não interessam ao presente estudo, a decisão enfatizou: 27. Ainda que superados todos esses óbices processuais, não seria possível dar provimento a este recurso extraordinário. De fato, é pacífica a jurisprudência da Corte, no sentido de que é permitida a “deflagração da persecução penal pela chamada ‘denúncia anônima’, desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados” (HC 99.490, Rel. Min. Joaquim Barbosa). Nessa mesma linha de orientação, vejam-se os seguintes precedentes: HC 74.195, Rel. Min. Sidney Sanches; RHC 86.082, Rel. Min. Ellen Gracie; HC 90.178, Rel. Min. Cezar Peluso; HC 95.244, Rel. Min. Dias Toffoli; HC 105.484, Rel. Min. Cármen Lúcia; HC 113.597, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; HC 120.234-AgR, Rel. Min. Luiz Fux; HC 110.436-AgR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. 28. No caso de que se trata, contudo, a moldura factual delineada pelo acórdão recorrido dá conta de que tanto a inicial quebra do sigilo dos dados telefônicos do recorrido quanto as demais interceptações telefônicas autorizadas pelo Juízo de origem tiveram como único ponto de partida denúncia anônima. O que significa dizer que a tese perfilhada no acórdão recorrido está em conformidade com a jurisprudência desta Corte. Refiro-me ao HC 84.827, Rel. Min. Marco Aurélio (Primeira Turma) e ao HC 108.147, Rel. Min. Cármen Lúcia (Segunda Turma), assim ementados: Anonimato – Notícia de prática criminosa – Persecução criminal – Impropriedade. Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente.” (HC 84.827, Rel. Min. Marco Aurélio). Habeas corpus. Constitucional. Penal. Imputação da prática dos delitos previstos no art. 3º, inc. II, da Lei n. 8.137/1990 e nos arts.  325 e 319 do Código Penal. Investigação preliminar não realizada. Persecução criminal deflagrada apenas com base em denúncia anônima.

1. Elementos dos autos que evidenciam não ter havido investigação preliminar para corroborar o que exposto em denúncia anônima. O Supremo Tribunal Federal assentou ser possível a deflagração da persecução penal pela chamada denúncia anônima, desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados antes da instauração do inquérito policial. Precedente. 2. A interceptação telefônica é subsidiária e excepcional, só podendo ser determinada quando não houver outro meio para se apurar os fatos tidos por criminosos, nos termos do art. 2º, inc. II, da Lei n. 9.296/1996. Precedente. 3. Ordem concedida para se declarar a ilicitude das provas produzidas pelas interceptações telefônicas, em razão da ilegalidade das autorizações, e a nulidade das decisões judiciais que as decretaram amparadas apenas na denúncia anônima, sem investigação preliminar. Cabe ao juízo da Primeira Vara Federal e Juizado Especial Federal Cível e Criminal de Ponta Grossa/PR examinar as implicações da nulidade dessas interceptações nas demais provas dos autos. Prejudicados os embargos de declaração opostos contra a decisão que indeferiu a medida liminar requerida.” (HC 108.147, Rel. Min. Cármen Lúcia)43. Depois de deflagrada a Operação Lava Jato, os jornais noticiaram a tentativa de o MPF obter, por outras fontes, provas para reabrir o caso. Ao que se saiba isso nunca foi feito.

1.3.9. Para apagar maus antecedentes O art. 64, I, do Código Penal é claro ao estabelecer que “não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos...”. É a chamada primariedade técnica. Mas, se, de um lado, o agente não pode carregar a pecha de reincidente pelo resto da vida, poderia, por outro, à mingua de disposição legal, suportar a condição de “portador de maus antecedentes”? O primeiro precedente sobre o tema veio do STJ pela pena do Min. Cernicchiaro no RHC n. 2.227 assim ementado: O art.  64, I, C.P., determina que, para efeito de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração anterior houver decorrido o período superior a 5 (cinco) anos. O dispositivo se harmoniza com o Direito Penal e Criminologia modernos. O estigma da sanção criminal não é perene. Limita-se no tempo. Transcorrido o tempo referido, sem outro delito, evidencia-se ausência de periculosidade, denotando, em princípio criminalidade ocasional. O condenado quita sua obrigação com a justiça penal. A conclusão é válida também para os antecedentes. Seria ilógico afastar expressamente a agravante e persistir genericamente para recrudescer a sanção aplicada44. O STF, por sua Primeira Turma, ao julgar o HC n. 126.315, da relatoria do Min. Gilmar Mendes, aplicando os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana, considerou possível afastar a pecha de maus antecedentes, desde que preenchidas as condições do art. 64, I, do CP. O julgado em questão porta a seguinte ementa: Habeas corpus. 2. Tráfico de entorpecentes. Condenação. 3. Aumento da pena-base. Não aplicação da causa de diminuição do §  4º do art.  33, da Lei 11.343/06. 4. Período depurador de 5 anos estabelecido pelo art. 64, I, do CP. Maus antecedentes não caracterizados. Decorridos mais de 5 anos desde a extinção da pena da condenação anterior (CP, art.  64, I), não é possível alargar a interpretação de modo a permitir o reconhecimento dos maus antecedentes. Aplicação do princípio da razoabilidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana. 5. Direito ao esquecimento. 6. Fixação do regime prisional inicial fechado com base na vedação da Lei 8.072/90. Inconstitucionalidade. 7. Ordem concedida45. No mesmo sentido foi o julgado da Primeira Turma no RHC n. 118.977, relatado pelo Min. Dias

Toffoli, assim ementado: 2. Quando o paciente não pode ser considerado reincidente, diante do transcurso de lapso temporal superior a cinco anos, conforme previsto no art.  64, I, do Código Penal, a existência de condenações anteriores não caracteriza maus antecedentes. Precedentes46. A ideia central é a de que o banimento da pena perpétua não pode conviver com efeito perpétuo decorrente de outra condenação. Ademais, o Min. Gilmar Mendes advertiu para o seguinte: (...) o agravamento da pena-base com fundamento em condenações transitadas em julgado há mais de cinco anos não encontra previsão na legislação, tampouco em nossa Carta Maior, tratandose de analogia in malam partem, método de integração vedado no ordenamento jurídico. É que, em verdade, assiste ao indivíduo o “direito ao esquecimento”, ou “direito de ser deixado em paz”, alcunhado, no direito norte-americano de “the right to be let alone”47. Enfim, como sublinhou o Min. Dias Toffoli, o “homem não pode ser penalizado eternamente por deslizes em seu passado pelos quais já tenha sido condenado e tenha cumprido a reprimenda imposta em regular processo penal”48. Tem direito ao esquecimento.

1.3.10. Trancamento de inquérito policial Embora seja dificílima a hipótese de se trancar o procedimento investigatório por meio do habeas corpus, pois o que se busca é a coleta de dados informativos a comprovar a existência do crime em toda a sua extensão (fato típico) e sua autoria, não é tão infrequente, ao contrário do que se imagina, apresentarem-se casos em que, de saída, torna-se possível verificar-se que falta tipicidade para o fato investigado. Vicente Greco Filho afirma que pode ser trancado o inquérito policial “se instaurado em face de alguém para apurar fato atípico ou infração que manifestamente não pode ter cometido. Tranca-se a ação penal se não se forma juízo de probabilidade da ocorrência da infração e da autoria; tranca-se o inquérito se não se forma juízo de possibilidade”49. Sem exagero, pode-se dizer que é mais fácil trancar uma ação penal, que há de guardar um juízo de probabilidade quanto à existência do crime e sua autoria, do que a investigação que, em termos de justa causa para o seu prosseguimento, se contenta com o campo amplo e aberto da mera possibilidade. Marta Saad, em cuidadoso trabalho sobre o direito de defesa no inquérito, lembra que há diversas hipóteses de cabimento de habeas corpus no inquérito policial. Entre outras, elenca a ilegalidade no ato constritivo da liberdade de locomoção e, também, para o seu trancamento, quando o fato apurado não constitua infração penal ou então para o trancamento de inquérito policial instaurado contra pessoa manifestamente inocente, ou para o reconhecimento da extinção da punibilidade, pela ilegalidade da requisição de inquérito policial em caso de ação penal privada “ou pela ausência de representação para instauração de inquérito policial que apure crime cujo processamento se dê por meio de ação penal pública dependente de representação, pelo reconhecimento da ilicitude da prova que embase inquérito policial, ou, enfim, pelo reconhecimento de bis in idem”50. Por outro lado, a literatura jurídico-penal alerta até mesmo para casos de natureza civil, de difícil composição nessa seara que, de forma artificial, acabam ganhando uma roupagem criminal e são, indevidamente, levados para o campo criminal, gerando investigações abusivas e com propósitos inconfessáveis. Por isso é que “inexistindo, à luz dos elementos de prova que suportam a notitia criminis, justa causa para o inquérito policial, o seu trancamento é medida que se impõe”51. O caminhar de um inquérito contra um cidadão, mais que preocupação, pode trazer danos objetivos não só a sua imagem e, por conseguinte, à sua dignidade, mas um séquito de gravames que vão desde a constrição de bens até eventual prisão. Ademais, de acordo com a judiciosa apreciação do Min. Edson Vidigal, não se deve “consentir que a engrenagem estatal, a Polícia, o Ministério Público, o Judiciário, que custam muito dinheiro ao contribuinte, se ocupem ou sejam

ocupados de maneira perdulária, tocando inquéritos ou processo que, depois de muito tempo, acabam dando em nada, exatamente em razão da evidência, notada logo no primeiro momento, como neste caso, de que não há crime algum a apurar, a processar, a punir. Ora, quando é evidente, como neste caso, a inexistência do crime não há porque prosseguir com o inquérito ou com a Ação Penal. É desperdício de dinheiro público manter um processo sobre o qual se tem certeza, antemão, que vai dar em nada. Do ponto de vista do acusado em face dos seus direitos constitucionais individuais, é constrangimento ilegal reparável por ‘habeas corpus’”52. Aqui, dentre muitos que poderiam ser lembrados, tomaremos apenas quatro casos para estudo: i. o de um gerente que manda notificar o correntista do encerramento de sua conta na instituição bancária e vem a sofrer inquérito por quebra do sigilo bancário; ii. o de uma construtora que vem a ser investigada por suposto crime ambiental; iii. o de jovens que participando do movimento popular de protesto contra a política pública de ensino vêm a ser investigados pela prática do crime de associação criminosa e, por fim, iv. o descumprimento contratual versus apropriação de honorários.

1.3.11. O caso do gerente do banco e a quebra do sigilo bancário Já assinalamos que o habeas corpus pode se prestar, embora raramente, ao trancamento de um inquérito policial53, mas pode ocorrer que de uma equivocada interpretação das normas incidentes sobre determinada conduta atribua-se conduta delitiva a quem age conforme o direito. Esse precisamente o caso do gerente do banco. Se de um lado tem a obrigação legal de preservar o sigilo das informações bancárias, inclusive porque constitui crime a violação de sigilo “de operação ou de serviço prestado por instituição financeira” (art. 18 da Lei n. 7.492/89), de outro, a Resolução n. 2.025/94 do Banco Central determina que se proceda à notificação do correntista para que providenciasse os trâmites necessários ao fechamento de sua conta bancária, explicitando seu saldo. Ora, a notificação é feita por meio de Cartório extrajudicial e a vítima dizia que seu saldo no banco fora conhecido pelos funcionários do Cartório e, portanto, haveria o crime de quebra de sigilo. O Ministério Público Federal, com fundamento nesta alegação, requisitou a instauração do inquérito. Independentemente de se considerar que os funcionários do Cartório prestam serviço público e, como tal, estão sujeitos às regras de sigilo, como, aliás, a auxiliar do médico ou o estagiário do advogado, o fato é que o direito, como ensinava Norberto Bobbio, não é um amontoado de regras sem conexão umas com as outras. Ao contrário, guardam relações particulares entre si54. Vale dizer, a conduta do gerente deveria ser vista no contexto do plexo de normas incidentes sobre a sua atividade. A norma permissiva do Banco Central dava cobertura legal ao comportamento do gerente. É, de resto, antiga a lição segundo a qual a ilicitude é una. Como há muito advertia Assis Toledo, em lição sempre atual, “um ato lícito civil, administrativo, etc. não pode ser ao mesmo tempo um ilícito penal”55. “O direito, como sistema, é unitário. Inexiste contradição lógica”, acentuou o STJ em decisão da sua Corte Especial no Inq. n. 33, relatado pelo Min. Vicente Cernicchiaro56. Daí porque, ao julgar o RHC n. 8.27257, a Quinta Turma do STJ, por empate na votação, proveu o recurso para trancar o inquérito policial instaurado contra o gerente por suposta quebra do sigilo bancário. O acórdão relatado pelo Min. Gilson Dipp porta a seguinte ementa: I. Evidenciado que os pacientes, na qualidade de gerentes de banco, cumpriram procedimento de rotina a que estavam sujeitos por Resolução do Banco, sobressai flagrante atipicidade, ensejando o trancamento do inquérito policial, pois não restou comprovado que tinham a intenção de devassar operações cobertas pelo sigilo fiscal. O ponto importante é que a moldura fática era clara e precisa. Assim não sendo os fatos controversos, tornou-se possível, independentemente de novas informações que pudessem vir aos autos do inquérito, trancar o procedimento investigatório.

1.3.12. O crime ambiental inexistente Contra uma construtora residencial de renome na Capital paulista foi aberto inquérito para se apurar crime ambiental consistente na construção em solo não edificável, ou no seu entorno (art. 64 da Lei n. 9.605/98), e na omissão de informação no Procedimento Administrativo sobre a existência de córrego no terreno do seu novo empreendimento. Segundo a representação criminal, “o proprietário deixou de levar aos agentes públicos relevantes informações constantes da planta da Bacia Hidrográfica da região”, pois “em nenhum documento anexado ao processo 200703928984 está registrado o Córrego Maria Joaquina que presumivelmente passa dentro do terreno em questão” (art.69-A do mesmo diploma). O requerente do inquérito era o condomínio vizinho, incomodado com os trabalhos de construção. Ocorre que a Secretaria Municipal de Infraestrutura, após inspecionar in loco toda a área do terreno, foi categórica ao afirmar que em seus arquivos “consta o Córrego Maria Joaquina, canalizado, seção retangular 2 x2,00x2,50m, passando sob o leito da Av. (...), não atingindo o imóvel em referência”. Diz, ainda, que no lote há apenas “galerias para drenagem dos pontos baixos”. Aliás, o próprio Boletim de Dados Técnicos da Prefeitura, que foi anexado pela própria Municipalidade ao Procedimento Administrativo n.º 2007.0.392.898-4, não aponta a existência de córrego no terreno em questão. Ficou claro, incontroverso, portanto, que no terreno não existia córrego algum. O renomado professor Édis Milaré58, em opinião técnico-jurídica, foi categórico ao afirmar que “sob qualquer ótica que se analise a questão, não há que se falar em incidência de área de preservação permanente no terreno onde a Consulente pretende implantar o empreendimento Jardins (...), localizado à (...)”. Enfim, o inquérito, que no caso, poderia inviabilizar as obras e, consequentemente, adiar a entrega do empreendimento com sérios prejuízos não apenas aos adquirentes, mas à própria empresa, não tinha justa causa. Impetrada a ordem de habeas corpus perante o Departamento de Inquéritos Policiais da Capital (SP; DIPO), órgão encarregado de conhecer todas as questões que envolvem os procedimentos investigatórios até a denúncia, a ordem veio a ser concedida. A juíza sentenciante, com sólida fundamentação, entendeu que “a atipicidade é patente, não havendo indícios da materialidade delitiva, o que não justifica a continuidade das investigações no inquérito policial”59. O recurso de ofício foi improvido por unanimidade pela 11ª Câmara Criminal do TJSP em acórdão da lavra do Des. Xavier de Souza que, na essência, reafirmou a inexistência do menor indício para a continuidade do inquérito, com a ressalva do art.  18 do CPP para o caso de surgirem novas provas60.

1.3.13. O caso dos jovens militantes do Black Bloc e o inquérito para apurar crime contra a segurança nacional e quadrilha No ano de 2014, São Paulo e outras Capitais do país foram sacudidas com movimentos de rua que iam desde a exigência de gratuidade nas passagens dos coletivos públicos até a moralidade na política. Um grupo mais radical, denominado Black Bloc promoveu atos de vandalismo, com ataques e danos às propriedades públicas e privadas. A polícia Militar agiu com vigor e, em não poucos casos, se excedeu no uso da força. A Polícia Civil de São Paulo tratou esses militantes como agentes criminosos e infratores da Lei de Segurança Nacional, mesmo sem ter atribuição para apurar condutas representativas de infração aos crimes ali capitulados, uma vez que a competência nesses casos é da Justiça Militar federal. Os militantes “João” e “Maria”, participaram da manifestação pacífica organizada pelos professores da rede pública de ensino de São Paulo. Apesar de não terem praticado nenhum ato de violência ou vandalismo, “Maria” registrou diversas cenas com a sua máquina fotográfica que havia levado para as manifestações, dentre elas o momento em que terceiros depredaram diversas lojas e viraram a viatura de polícia do 3º Distrito Policial da Capital (SP). Enquanto caminhava na direção do metrô para regressar à sua casa, “Maria” foi conduzida por policiais e veio a ser autuada em flagrante delito em virtude da suposta prática dos delitos previstos no artigo 15, caput, da Lei nº 7.170/83, art.  65 da Lei nº 9.605/98 e art.  163, parágrafo único, II, 286 e 288 todos do

Código Penal. Segundo constou do Auto de Prisão em flagrante, ela e seu amigo “João” foram abordados pela autoridade policial do 3º DP, momentos após o término da manifestação organizada pelos professores da rede pública de ensino ocorrida naquele dia, portando (ele) uma mochila, um pano, uma cartilha escrita em poesia e em tom de protesto, uma granada de gás lacrimogênio (já deflagrada), quatro latas de tinta tipo spray e uma máquina fotográfica com imagens capturadas durante as manifestações. Ninguém testemunhou qualquer ato de vandalismo por parte de “João” e “Maria”. Contra esta havia apenas as fotos que ela própria tirara. Contra aquele, apenas pertences suspeitos. Em esmerada sentença e a despeito da pressão circundante pela repressão ao Black Bloc, o juiz do DIPO concedeu a ordem para trancar o inquérito apenas em relação a “Maria”. Salientou o seguinte: Em preâmbulo, cumpre salientar que segundo pacífico entendimento jurisprudencial, o trancamento da ação penal ou do inquérito policial, apesar de medida excepcional, é possível, sendo admissível nas hipóteses em que se mostra evidente, de plano, a ausência de justa causa, a inexistência de elementos indiciários demonstrativos de autoria e materialidade ou a atipicidade da conduta imputada ao investigado. Nesse sentido, a orientação da jurisprudência: “Trancamento – Reiterada orientação do Tribunal sobre os préstimos do habeas corpus para trancar inquérito, quando, às claras, falte ao fato noticiado conotação criminal atribuível ao paciente” (STJ, RHC 2.626-5, Rel. José Dantas, DJU 26/04/1993, p. 7.220). “Ainda que o inquérito policial seja um procedimento investigatório e informativo, destinado a fornecer ao Ministério Público os elementos necessários a formar a opinio delicti, com vistas ao desencadeamento da ação penal, não é, entretanto, por deter essa natureza, que deixa de importar em constrangimento legal para o indiciado quando, instaurado por arbitrariedade, ou abuso de poder, se revele, desde logo, a inocuidade penal do fato que nele se pretende apurar” (TJSP, HC, Rel. Arthur de Godoy, RT 523/325). “Ausência de justa causa – Trancamento de inquérito policial. Justifica-se a concessão do writ, quando se verifica prima facie não configurada a participação delituosa do paciente” (STJ, RHC 2.380·0, Rel. Fláquer Scartezzini, DJU 15/02/1993, p. 1.692). “É possível o trancamento da ação penal por falta de justa causa se a atipicidade dos fatos exsurge claramente e a inocência ressai de forma incontestável” (RJDTACRIM/SP 18/207). “Inquérito policial – Constrangimento ilegal – Ausência de ilícito criminal – Trancamento– Art. 4º do CPP. Constitui constrangimento ilegal a instauração de inquérito policial para apuração de fatos que desde logo se evidenciem inexistentes ou não configurantes, em tese, de infração penal. Recurso de habeas corpus provido” (STF, RHC, Rel. Rafael Mayer, j. 18/11/1986, RT 620/367)61. Entrando no mérito da investigação, o juiz concluiu: Com efeito, muito embora aprofundado os trabalhos investigatórios, ao longo de mais de oito meses depois da data dos fatos, conclui-se, seguramente, que não há justa causa para o seu prosseguimento, especificamente no que diz respeito à investigada Maria, seja pela total ausência de indícios mínimos de autoria delitiva seja pela ausência de materialidade delitiva, assim como pela atipicidade das condutas imputadas à paciente. De fato, as provas e elementos informativos acrescidos aos autos do aludido inquérito policial nada acrescentaram em termos de apontar para a existência de indícios razoáveis da participação da paciente nos crimes que lhe foram imputados.

(...) A simples existência de imagens do ato de vandalismo ou dano, registradas em sua máquina fotográfica, não representa, indiscutivelmente, elemento indiciário suficiente para justificar sua prisão em flagrante ou a instauração de inquérito policial contra si. Ademais, resta evidente que tal situação, isoladamente, não pode ser enquadrada em crime de sabotagem. A suposta conduta não recaiu sobre instalações militares, meios de comunicação, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, usinas, barragens, depósitos e muito menos instalações congêneres, razão pela qual estão ausentes os elementos normativos do tipo penal. Ora, a conduta isolada de depredar, queimar ou destruir uma única viatura policial não basta para tipificar o crime previsto no art. 15, caput, da Lei 7.170/83, cujo bem jurídico tutelado é muito mais abrangente, atingindo a própria segurança nacional. Assim, seja pela ausência de indício de autoria seja pela atipicidade, de rigor o trancamento do inquérito policial em relação a tal crime. Depois de analisar os outros crimes pelos quais ela era investigada, o magistrado também afasta a tipicidade destes e volta a reafirmar a pertinência do uso do writ, mesmo no inquérito, para afastar ilegalidades: É certo que “o Supremo Tribunal Federal já decidiu que não é possível o exame da justa causa e legitimidade para o processo penal sem examinar provas, pois não há outro processo lógico para ela se chegar” (Maria Thereza Rocha de Assis Moura, “Justa Causa para a Ação Penal”, Doutrina e Jurisprudência, Edit. RT, 2001, XV. 2 Justa Causa: comporta exame da prova, p. 281). Mais adiante, observa Maria Thereza Rocha de Assis Moura: “Defendem alguns julgados não ser de toda verdadeira a assertiva de que o habeas corpus não comporta exame aprofundado de provas, pois o writ cabe sob o fundamento da falta de justa causa, e se esta decorre da prova, há de ser feito o seu exame com a profundidade necessária em casa caso”(p. 283). Nesse sentido, já decidiu o extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo que “nos autos de habeas corpus, é possível, se bem instruídos, o exame da prova produzida no inquérito policial, para a conclusão de que exista ou não justa causa para o oferecimento e recebimento de denúncia, registrando que a denúncia que não tem por base os elementos do inquérito é inepta, justificando o trancamento da ação penal”. JTACRIM/SP-Lex, 83/162. A despeito da robustez da sentença, o recurso voluntário interposto pelo Ministério Público (RSE) e também o de ofício foram providos pelo TJSP em acórdão da sua 14ª Câmara Criminal da lavra do Des. Herman Herschander. O julgado do Tribunal paulista filiou-se ao entendimento segundo o qual, “O inquérito policial, salvo os casos aberrantes, em que à primeira vista se possa identificar abuso intolerável, é procedimento investigatório legítimo, cujo desenvolvimento e desfecho não devem ser obstados pelo habeas corpus, para que não se incorra no risco de coarctar as atividades próprias da polícia judiciária e do MP” (TACrimSP: JUTACRIM 79/110). Ausente a hipótese de teratologia, o abortamento das investigações viola o direito da sociedade à devida apuração de condutas que, em tese, podem assumir contornos de ilícitos penais62. Contra esta decisão colegiada foi interposto RHC e o Parecer do Ministério Público Federal é pelo provimento do recurso “a fim de que seja restabelecida a sentença de primeiro grau que trancou o inquérito policial por falta de justa causa”. A manifestação ministerial destacou o seguinte: Nos termos da jurisprudência dessa Corte Superior, o trancamento de inquérito policial ou de ação penal em sede de habeas corpus é medida excepcional, só admitida quando restar provada,

inequivocamente, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático-probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito (RHC 39907/RJ, 5ª T., em 18/06/2015). Essa se mostra a hipótese dos autos, pois, conforme bem destacado pela Procuradoria Geral de Justiça em seu parecer, os elementos dos autos realmente não indicam, com a mínima segurança necessária, que a recorrida seja integrante do grupo “black block”, não existindo sequer elementos, mínimo que sejam, que a vincule aos ilícitos noticiados (fls. 419)63. Ao final, o MP requereu o arquivamento do inquérito, e o relator do RHC no STJ determinou o seu arquivamento. Este caso mostra as dificuldades na apreciação de um tema em si já difícil, mas se presta a mostrar com clareza as possibilidades do habeas corpus e os seus limites em matéria cognitiva.

1.3.14. Descumprimento contratual versus apropriação de honorários No julgamento do HC n. 83.166, relatado pelo Min. Nelson Jobim, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal retratou caso interessante no qual, embora se reconhecendo o descumprimento contratual, ilícito civil, afastou-se a tipicidade penal e, por isso, se legitimou o trancamento de inquérito contra o advogado. Eis a ementa do julgado: Habeas corpus. Apropriação indébita de honorários. Não configuração. Trancamento por falta de justa causa. Conduta atípica. Para se caracterizar o delito em tese, é necessário haver a apropriação da coisa alheia móvel, de que o agente tem posse ou detenção do objeto. Não houve apropriação indébita de honorários, mas sim eventual descumprimento de obrigação contratual por parte do Banco do Brasil. Conduta atípica do advogado e do gerente de contas e, portanto, falta de justa causa para o inquérito policial64. Para conceder a ordem, o acórdão colocou em destaque que o fundamento é a falta de justa causa, “consubstanciada na atipicidade da conduta”. O ponto é que o advogado vítima reclamava que A e B, respectivamente, Advogado e Gerente de Contas do Banco do Brasil, não pagaram seus honorários conforme estipulado no contrato, em razão das demandas vencidas por ele. O acórdão destacou que o delito de apropriação indébita exige que o agente tenha “a posse ou detenção do objeto”, coisa que os investigados não tinham. Na verdade, conclui o julgado em estudo “o Banco do Brasil deixou de cumprir o contrato feito com a vítima, ex-procurador do Banco. Por fim, lembrou os precedentes dos HCs ns. 80.659, rel. Min. Maurício Corrêa (DJ 7/8/2001); 72.731, rel. Min. Carlos Velloso (DJ 31/10/95) e HC n. 72.858, rel. Min. Marco Aurélio (DJ 26/9/1995), afastando o crime, mesmo em tese.

1.4. Indiciamento e justa causa Indiciamento é o ato pelo qual a autoridade policial, no âmbito do inquérito policial aponta a autoria de um crime a uma pessoa65. É, portanto, um ato de polícia judiciária realizado com base nos elementos informativos reunidos no inquérito, mas “não pode ser fruto de mero subjetivismo da autoridade policial. Deve decorrer de ato motivado e concretamente justificado”66, alerta Gustavo Badaró. Daí a advertência do Min. Nelson Jobim: O indiciamento de qualquer cidadão impõe pedido com um mínimo de verossimilhança e probabilidade. Estas são as exigências do Estado Democrático de Direito, concretizadas no devido processo legal. (...). O processo democrático é incompatível com ‘denuncismo’ (...)67 A decisão em questão foi tomada monocraticamente no rumoroso caso do Inq. 1.828, relativo à morte do Prefeito Celso Daniel, em que o chefe do Parquet Paulista enviou peças ao STF para investigar o então ministro da Casa Civil José Dirceu. O teor da decisão encontra apoio no pensamento jurisprudencial da Suprema Corte como se pode ver da decisão tomada, também monocraticamente, pelo Min. Celso de Mello no Inq. 2.041:

Se é inquestionável que o ato de indiciamento não pressupõe a necessária existência de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso, não é menos exato que esse ato formal, de competência exclusiva da autoridade policial, há de resultar, para legitimar-se, de um mínimo probatório que torne possível reconhecer que determinada pessoa teria praticado o ilícito penal. O indiciamento não pode, nem deve, constituir um ato de arbítrio do Estado, especialmente se se considerarem as graves implicações morais e jurídicas que derivam da formal adoção, no âmbito da investigação penal, dessa medida de Polícia Judiciária, qualquer que seja a condição social ou funcional do suspeito68. Dissecando a matéria no corpo de sua decisão, o Min. Celso de Mello reafirmou ideias centrais ao tema: Cumpre reconhecer, neste ponto, por oportuno, que o indiciamento de alguém, por suposta prática delituosa, somente se justificará, se e quando houver indícios mínimos, que, apoiados em base empírica idônea, possibilitem atribuir-se, ao mero suspeito, a autoria do fato criminoso. É inquestionável que o ato de indiciamento não pressupõe a necessária existência de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso, mas esse ato formal, de competência exclusiva da autoridade policial, há de resultar, para legitimar-se, de um mínimo probatório que torne possível reconhecer que determinada pessoa teria praticado o ilícito penal. (...) Também perfilha igual entendimento, em magistério extremamente preciso sobre o tema ora em análise, o saudoso e eminente Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo (“O indiciamento como ato da Polícia Judiciária”, in RT 577/313-316): “O indiciar alguém, como parece claro, não há de surgir qual ato arbitrário da autoridade, mas legítimo. Não se funda, também, no uso de poder discricionário, visto que inexiste a possibilidade legal de escolher entre indiciar ou não. A questão situa-se na legalidade do ato. O suspeito sobre o qual se reuniu prova da autoria da infração, tem de ser indiciado. Já aquele que contra si possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito. A mera suspeita não vai além da conjectura, fundada em entendimento desfavorável a respeito de alguém. As suspeitas, por si sós, não são mais que sombras; não possuem estrutura para dar corpo à prova da autoria” Cabe referir, finalmente, a expressiva lição de Sylvia Helena F. Steiner (“O Indiciamento em Inquérito Policial como Ato de Constrangimento – Legal ou Ilegal” in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 24/305-308, 307), hoje eminente Juíza do Tribunal Penal Internacional, instituído pelo Estatuto de Roma: “(...) levando-se em conta que a Constituição Federal centra o rol de direitos e garantias individuais no princípio da dignidade do ser humano, não temos dúvidas em apontar a ilegalidade do ato de indiciamento antes da definição da materialidade delitiva e antes que suficientes os indícios de autoria.” Em suma: o indiciamento não pode, nem deve, constituir um ato de arbítrio do Estado, especialmente se se considerarem as graves implicações morais e jurídicas que derivam da formal adoção, no âmbito da investigação penal, dessa medida de Polícia Judiciária, qualquer que seja a condição social ou funcional do suspeito. (...) No Estado de São Paulo, a Portaria n. 18, de 25/11/1998, da Delegacia Geral de Polícia, exige, em seu art.  5º, parágrafo único, que a decisão do delegado de polícia que determina o indiciamento seja fundamentada, devendo pormenorizar, com base nos elementos probatórios objetivos e subjetivos coligidos na investigação, os motivos da sua convicção quanto à autoria dos fatos e a

classificação da infração atribuída ao fato. Também no âmbito da Polícia Federal, anota Badaró, “o art.  103 da Instrução Normativa n. 1/1992 do Diretor de do Departamento de Polícia Federal determina que ‘a indiciação somente será procedida após colhidas as provas necessárias à comprovação da ocorrência e da autoria da infração’”69. A matéria relativa à exigência de fundamentação vem agora disciplinada pela Lei n. 12.830/13, no seu art. 3º, § 6º, impondo “análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”. Embora haja Súmula do STF cuidando da identificação criminal70, matéria hoje disciplinada por lei (Lei n. 12.037), uma vez que a Constituição da República assegura que o civilmente identificado não possa vir a sê-lo no âmbito do inquérito policial, salvo sob certas condições (cf. art. 3º da Lei n. 12.037), o fato é que a identificação não se confunde com o ato do indiciamento. Aquela é uma das consequências deste. O ponto é que muitas vezes se invocava a Súmula para se dizer que não havia constrangimento no indiciamento, numa terrível confusão conceitual. Estabelecido que o indiciamento pode implicar em constrangimento ilegal, duas questões surgem: i. é viável o indiciamento quando é requisitado pelo Promotor após o oferecimento da denúncia e ii. é possível discutir-se a sua legalidade quando, intrinsecamente considerado, revelase carente de justa causa.

1.4.1. Indiciamento determinado após o oferecimento de denúncia. Ilegalidade sanável pela via do writ Antes da Lei n. 12.830/2013, era comum, membros do Ministério Público federal e estadual, no instante em que ofereciam denúncia, requisitarem o indiciamento em autos apartados. Hoje tal prática não pode ser mais admitida porque a determinação do ato em foco é exclusiva do Delegado de Polícia (art.  2º, §  6º). Exemplar, no ponto, acórdão da 2ª Turma do STF, que, superando a Súmula 691, concedeu a ordem para afastar a ilegal determinação de indiciamento nessas condições: Habeas corpus. Processual penal. Crime contra ordem tributária. Requisição de indiciamento pelo magistrado após o recebimento denúncia. Medida incompatível com o sistema acusatório imposto pela Constituição de 1988. Inteligência da Lei 12.830/2013. Constrangimento ilegal caracterizado. Superação do óbice constante na súmula 691. Ordem concedida. 1. Sendo o ato de indiciamento de atribuição exclusiva da autoridade policial, não existe fundamento jurídico que autorize o magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento de determinada pessoa. A rigor, requisição dessa natureza é incompatível com o sistema acusatório, que impõe a separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a impedir que o juiz adote qualquer postura inerente à função investigatória. Doutrina. Lei 12.830/2013. 2. Ordem concedida” (STF, 2ª T., rel. Min. Teori Zavascki HC n. 115.015, DJe 11/09/13). No corpo do aresto, o Relator cita a prestigiosa lição de Guilherme de Souza Nucci: Requisição de indiciamento: cuida-se de procedimento equivocado, pois indiciamento é ato exclusivo da autoridade policial, que forma o seu convencimento sobre a autoria do crime, elegendo, formalmente, o suspeito de sua prática. Assim, não cabe ao promotor ou ao juiz exigir, através de requisição, que alguém seja indiciado pela autoridade policial, porque seria o mesmo que demandar à força que o presidente do inquérito conclua ser aquele o autor do delito. Ora, querendo, pode o promotor denunciar qualquer suspeito envolvido na investigação criminal, cabendo-lhe, apenas, requisitar do delegado a ‘qualificação formal, a identificação criminal e o relatório sobre vida pregressa’ (cf. Maurício Henrique Guimarães Pereira, Habeas corpus e polícia judiciária, p.  227). (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 10ª ed. Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 96). Também o TSE, no julgamento do HC n. 440, do qual foi relatora a Min. Ellen Gracie, concedeu ordem de habeas corpus em caso idêntico ao estudado:

“1. Solicitação de indiciamento feita no ato de oferecimento da denúncia. Seu deferimento caracteriza constrangimento ilegal contra os réus, uma vez que o inquérito policial visa, tão somente, a subsidiar a atuação do Ministério Público. Ratificação da decisão proferida em sede de liminar. Concessão da ordem” (DJ 08/11/2002). Neste julgado, a Relatora colacionou outros do eg. STJ na mesma linha: HC n. 17.984/SP, DJ de 29/04/02, rel. Min. Edson Vidigal; HC n. 10.340/SP, DJ de 22/05/2000, rel. Min. Hamilton Carvalhido e HC n. 5.399/SP, DJ de 02/06/1997, rel. Min. Anselmo Santiago. Embora os julgados colacionados no aresto do TSE datem de mais de uma década, o fato é que a jurisprudência não se modificou. Confira-se: HC n. 66.229, Rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJ 05/11/2007; HC n. 27.389, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 17/12/2004; HC n. 86.252, Rel. Min. Napoleão Maia Nunes Filho, DJ 29/10/2007; HC n. 84.142, Rel. Min. Napoleão Maia Nunes Filho, DJ 28/04/2008; RHC n. 21.657, Rel. Min. Napoleão Maia Nunes Filho, DJ 15/03/2010; HC n. 65.219, Rel. Min. Félix Fischer, DJ. 01/10/2007; HC n. 107.361, Rel. Min. Félix Fischer, DJ. 03/11/2008; HC n. 61.033, Rel. Min. Félix Fischer, DJ 17/12/2007; HC n. 83.979, Rel. Min. Félix Fischer, DJ 12/11/2007; HC n. 40.642, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 01/08/2005; HC n. 92.117, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 18/12/2009; HC n. 56.337, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ. 05/11/2007; HC n. 69.428, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 05/02/2007; RHC 24.297/SP, Rel. Min. Napoleão Maia Nunes Filho, DJ 02/08/2010 e, entre inúmeros outros precedentes, tem sido reafirmado que o “Superior Tribunal de Justiça, em reiterados julgados, vem afirmando seu posicionamento no sentido de que caracteriza constrangimento ilegal o formal indiciamento do paciente que já teve contra si oferecida denúncia e até mesmo já foi recebida pelo Juízo a quo” (HC n.º 179.951, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, DJ 27/05/2011). Diante da sólida jurisprudência erguida, não pode, portanto, remanescer qualquer dúvida de que a requisição de indiciamento após o oferecimento da denúncia representa constrangimento ilegal sanável pela via do habeas corpus.

1.4.2. Indiciamento arbitrário e controle da sua legalidade pelo writ Deu-se em Guaratinguetá (SP) que o Delegado de Polícia Titular da Seccional resolveu indiciar empresários pela prática dos crimes de estelionato e sonegação fiscal. Quanto a este crime, sequer havia crédito tributário constituído, o que nos termos da Súmula Vinculante n. 24 do STF impede o reconhecimento, mesmo em tese, do crime fiscal. Quanto ao estelionato, os cheques objeto da investigação, emitidos por empresário do ramo de transporte, foram destinados ao pagamento de show da dupla Bruno e Marrone, que se apresentou na Expo Guará 2008, de forma que o dinheiro não foi recebido em favor da empresa dos pacientes. Afora tratar-se a hipótese, quanto ao cheque, de uma questão comercial a ser resolvida no foro próprio, a determinação de indiciamento não veio acompanhada de qualquer fundamentação, mais parecendo uma forma de pressão sobre os investigados, como muitas vezes ocorre. Sylvia Steiner, antiga juíza do Tribunal Penal Internacional, quando tinha assento no Tribunal Regional da 3ª Região, deixou claro que “antes da efetiva constatação da existência do crime e da sua autoria, o indiciamento deve ser evitado (STJ – RHC 5.332 – DJU 7.10.96, p.  37686), pelo constrangimento que traz, traduzindo publicidade à investigação e importando em registro nos institutos de investigação”71. Também no extinto Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, vigorava a ideia segundo a qual: Embora não seja o inquérito mais que a fase preparatória da acusação formal, constitui já mal insigne para o indivíduo, pois o alcança em seu mais valioso patrimônio: a honra. Todo o indiciamento importa verdadeira capitis diminutio. A decisão, portanto, que põe cobre ao gravame do indiciamento em inquérito policial – quando escusado (e talvez arbitrário) – passa por legítima, além de sábia. Sob pena de constituir violência contra o status dignitatis do indivíduo, o indiciamento em inquérito policial, a lei unicamente permite em face de prova cabal da existência do crime e de indícios veementes de sua autoria (HC n. 392.472-5; TACRIM, Rel. Des. Carlos

Biassotti, DJE 04/10/2001). No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o Des. Décio Barretti, antigo Delegado de Polícia, foi ao ponto ao dizer “... não antevejo no caso fundadas razões para que realize o seu formal indiciamento, até porque, isso não frustrará, o andamento da peça investigativa ou da ação penal. Esse ato, circunstancialmente, constitui flagrante violação ao status dignitatis do paciente e do princípio constitucional da presunção da inocência, sanável por meio do habeas corpus” (TJSP, HC n. 512.550-9, DJE 28/04/2005). A juíza da Comarca de Guaratinguetá, não apenas reconheceu a aptidão do writ para se discutir a matéria, como o concedeu averbando: (...) o formal indiciamento dos pacientes sem a devida fundamentação não pode ser permitido, porque o indiciamento é ato que macula os antecedentes do indivíduo, constituindo registro de mau antecedente à disposição de consulta da Justiça, ainda que não sejam denunciados posteriormente as pessoas indiciadas, e por isto aquele ato da autoridade policial deve ser fundamentado na prova da materialidade do crime e indícios de autoria, o que não se verifica no caso dos autos.72 Interessante observar que, ao final, houve pedido de arquivamento do inquérito policial por ter o representante do Ministério Público entendido que, além de não se poder falar em crime tributário por inexistência de lançamento, o estelionato não passava de uma questão de natureza civil. Impedir o indiciamento, mais que preservar o bom nome dos pacientes, empresários atuantes no ramo do entretenimento, ajudou a colocar as questões de forma clara de modo a se perceber a inexistência de crime. Vale a nota de que, evidentemente, não havia perigo imediato à liberdade de locomoção dos pacientes, mas o habeas corpus funcionou para impedir que se abatesse sobre eles uma ilegalidade com graves consequências, inclusive quanto à futura caracterização de maus antecedentes como referiu a juíza na sua sentença. 2.Ainda a Justa Causa: questões afetas ao Júri

2.1. É possível afastar qualificadora em habeas corpus? Se não houver necessidade de revolver provas e tudo girar em torno da correta qualificação jurídica dada a fatos incontroversos, é possível cancelar-se qualificadora com o manejo do writ. O Supremo Tribunal Federal, em caso de motorista acusado de dirigir embriagado e em alta velocidade, considerou, na linha do parecer ministerial, inadmissível a qualificadora da surpresa com o dolo eventual e por isso afastou aquela ao ementar decisão segundo a qual o: “dolo eventual não se compatibiliza com a qualificadora do art.  121, §2º, do IV (traição, emboscada, dissimulação)”73. Também no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, em decisão da lavra do Min. Hamilton Carvalhido, já se decidiu que “a qualificadora inserta no inciso IV do parágrafo 2.º do artigo 121 do Código Penal reclama, para a sua caracterização, a preordenação do agente à traição, emboscada, dissimulação ou a outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”74. Também em caso de disputa automobilística não autorizada nas ruas, o popular “racha”, em São Paulo, ou “pega” no Rio de Janeiro, a 6ª Turma do STJ, por maioria de votos concedeu habeas corpus para afastar a qualificadora do motivo fútil, entendendo-a incompatível com o dolo eventual, ressaltando o relator para o acórdão que a futilidade envolve um comportamento reativo do agente criminoso em relação ao da vítima75. Em caso de marido que veio a matar a esposa, em julgado relatado pelo Min. Félix Fischer, afastou-se a qualificadora da torpeza por entender-se que é imprescindível ter presente que “a incidência de circunstância qualificadora exige perfeita adequação da conduta aos elementos que a caracterizam”76.

2.2. Denúncia excessiva (tentativa de homicídio) e anulação pelo STF por meio do habeas corpus. Possibilidade Há não muito tempo era comum os acórdãos dos Tribunais de Justiça remeterem ao juiz, para a ocasião da prolação da sentença, o correto enquadramento dos fatos ao direito. Todavia, quer em nome da dignidade humana, quer no do respeito à garantia da legalidade, não é concebível que alguém possa se submeter a processo mais gravoso do que o correspondente ao ato praticado. A errada classificação jurídica dada aos fatos na denúncia pode trazer complicações relativas tanto ao procedimento aplicável quanto, eventualmente, o comprometimento da própria liberdade se se tratar de crime qualificado como hediondo. Daí a precisa observação de Antonio Scarance Fernandes sobre a classificação jurídica dos fatos interessar “também para verificar se podem ser aplicadas ao caso as disposições da Lei 9.099/95, dos Juizados Especiais Criminais, quanto à transação penal e à suspensão condicional do processo”77. Imagine-se o usuário de drogas denunciado por tráfico. Não só perderia o tratamento legal mais benéfico consistente na outorga de medidas despenalizadoras, como sofreria todos os gravames decorrentes da hediondez (por equiparação) do crime. Idem em casos de homicídios simples, mas articulados na denúncia como qualificados. Fixando a melhor interpretação acerca da matéria, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em acórdão relatado pelo Min. Celso de Mello, embora salientando que o Ministério Público seja o “dominus litis”, ressalvou que tal posição não abstrai o controle jurisdicional das consequências jurídicas da relação processual, exigindo-se uma relação de pertinência entre o fato emergente da fase policial e a “opinio delicti” realizada na denúncia, que desencadeia e alicerça o “ius persequendi”. Por isso, “o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público submete-se, após sua formalização, a estrito controle jurisdicional. Essa atividade processual do Poder Judiciário, exercida liminarmente no âmbito do processo penal condenatório, objetiva, em essência, a própria tutela do “status libertatis” do imputado”78. Como dito em outra oportunidade pelo mesmo ministro, a “imputação penal não pode ser a expressão arbitrária da vontade pessoal do órgão acusador”79. O assunto, mais especificamente, foi discutido com indizível brilho pelo Min. Pertence ao julgar o HC n. 84.653 e ali ficou consignado, em página de ouro da jurisprudência do STF, o seguinte: 30. Já não transita hoje na doutrina e na jurisprudência, com o tom apodítico e absoluto de outrora, a máxima de que não se rejeita a denúncia, nem se corrige liminarmente a capitulação penal nela proposta, se a inicial contém a imputação de um fato definido como crime, seja este qual for80. 36. Assim, há quase três décadas, assentava o Tribunal, pela voz autorizada do em. Ministro Xavier de Albuquerque – RHC 56726, 21/111978, RTJ 88/491: “O acórdão recorrido considerou que as omissões da denúncia podem ser supridas a todo tempo, antes da sentença final, como dispõe o art. 569 do Código de Processo Penal. E que o réu se defende do fato descrito, e não da classificação dada na denúncia. Tenho esses conceitos como verdadeiros, mas não posso deixar de distinguir certas hipóteses, como a presente, de classificação patentemente errônea e exasperante. Em tais hipóteses, penso que se configura ilegalidade reparável pelo habeas corpus.” 37. O tema ganhou relevo mais dramático a partir da vedação legal da liberdade provisória nos processos por crimes hediondos; e, por isso, tem sido objeto de algumas valiosas reflexões doutrinárias (81). 38. O Superior Tribunal de Justiça – além do acórdão ora questionado –, tem significativas decisões a respeito, dentre as quais se distinguem dois arestos conduzidos do d. Ministro Félix Fischer (82), que acolheram ambos, como fundamento, um precioso julgado do extinto Tribunal de Alçada do Paraná, da lavra do il. Des. Luiz Viel, no qual se analisa a matéria com precisão e riqueza de informação doutrinária e jurisprudencial.

Antigo aresto da 1ª Turma do STF, em habeas corpus impetrado pelo grande advogado Evandro Lins e Silva, cuja relatoria coube ao preclaro Min. Firmino Paz, já sufragava o entendimento segundo a qual: “se a classificação do crime, contida na denúncia, mostra-se patentemente errônea e exasperante, serve o habeas corpus para remediar a ilegalidade”83. Por outro lado, a ementa do acórdão da lavra do Min. Félix Fischer, referido pelo Min. Pertence, dado o seu alto didatismo, merece ser transcrita para clareza da ideia de que o juiz não está obrigado a receber denúncia que se mostre excessiva e nem o acusado sofrer com os seus gravames: O Juiz não está absolutamente impedido de fazer, no recebimento da denúncia, exame superficial de imputação. Se verificado abuso completo do poder de denunciar ou ‘excesso de capitulação’, poderá proferir a rejeição total da peça acusatória ou proceder alguma correção. Desta forma, se a denúncia é aproveitável, embora com excesso de capitulação, porque descreve, na verdade, outra modalidade delitiva com reflexos imediatos ao status libertatis, é realizável a correção com o recebimento da opinio delicti” (HC n. 12.627; DJ 09/10/2000; RT 787/ 564). Portanto, como no caso da Operação Fratelli e na articulação de qualificadoras do crime de homicídio, acima citados, pode o habeas corpus ser manejado para expungir o excesso acusatório.

2.3. Pode o habeas corpus impedir a realização do Júri quando pende Recurso Especial contra a decisão de pronúncia? A redação do art.  421 do CPP não deveria deixar espaço para dúvidas: “preclusa a decisão de pronúncia, os autos serão encaminhados ao juiz presidente do Tribunal do Júri”. Vale dizer, a segunda fase do procedimento do júri somente terá início quando não couberem mais recursos contra a decisão de pronúncia. Como se sabe, preclusão é “um fato impeditivo destinado a garantir o avanço progressivo da relação processual e a obstar seu recuo para fases anteriores do procedimento”84. Pendente recurso, ainda que não dotado de efeito suspensivo, o feito, ainda assim, não poderá prosseguir, avançando para o julgamento em Plenário, sob pena de negativa de vigência do dispositivo legal em exame. Sob a sistemática anterior à reforma de 2008, quando vigorava o art.  416 do CPP, a lição de Frederico Marques era taxativa: “Os atos preliminares do judicium cause não podem ter início antes de tornar-se imutável a sentença de pronúncia. (...) Quando operar-se a preclusão no tocante à pronúncia, terá início o juízo da causa”85. Sem embargo, o Superior Tribunal de Justiça e não poucos Tribunais de Justiça dos Estados passaram a entender que não sendo dotado o Recurso Especial de eficácia suspensiva (art. 27, § 2º, da Lei n. 8.038/90) é possível determinar o prosseguimento do procedimento do Júri86. Embora a lex generalis, que cuida dos recursos, devesse ficar afastada pela lex specialis, que trata (especificamente) do procedimento do Júri, tem prevalecido a aplicação da regra do art. 27 § 2º, da Lei n. 8.038/90. O Ministro Teori Zavascki, no entanto, salientando serem relevantes os fundamentos do pedido, concedeu medida liminar nos HCs ns. 125.43987 e 130.314 para sobrestar o andamento do processo instaurado perante o Júri. Lembrou na oportunidade que o STF ainda deve apreciar a matéria no julgamento do HC n. 119.314 afetado ao Plenário88. Na sequência, o Min. Gilmar Mendes também concedeu medida cautelar no HC n. 132.512 para o mesmo fim. Ocorre que ao julgar o HC n. 130.314, a 2ª Turma do STF, sem divergência, denegou a ordem: 1. A preclusão a que se refere o art.  421 do CPP diz respeito apenas às decisões com recursos previstos para as instâncias ordinárias, razão pela qual a pendência de recursos de natureza extraordinária não impede a realização do júri. Precedentes. 2. Habeas corpus denegado. Cassada a liminar deferida nos autos89. Portanto, embora inicialmente fosse possível pensar que a resolução da controvérsia pendesse para a necessidade de cumprimento da regra estampada no art.  421 do CPP para só então ter

seguimento o procedimento perante o Júri, já há um precedente do STF no sentido oposto. A nosso sentir, é incorreta a solução, pois, se a lei fala em preclusão da pronúncia sem qualquer ressalva, não se pode reduzir o sentido da expressão para os recursos ordinários.

2.4. Recurso acusatório contra veredito absolutório do Júri em razão de decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Inadmissibilidade diante da nova sistemática instituída pela Reforma de 2008. Habeas corpus para impedir novo julgamento popular A partir da nova redação do art. 483 do CPP, após a Lei nº 11.689/08, é admitida a absolvição do réu “por motivos desconhecidos, e até mesmo por clemência”90. Diante da nova sistemática introduzida pela Reforma de 2008 no Júri, parte da doutrina tem entendido que não é mais possível a utilização do quanto previsto no artigo 593, III, “d”, pela acusação, como meio de impugnação das decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri. Como assevera Guilherme de Souza Nucci com a dupla autoridade de juiz e professor: “A razão pela qual os jurados absolveram o réu, se for positiva a resposta, torna-se imponderável. É possível que tenham acolhido a tese principal da defesa (por exemplo, a legítima defesa), mas também se torna viável que tenham preferido a subsidiária (por exemplo, a legítima defesa putativa). Pode ocorrer, ainda, que o Conselho de Sentença tenha resolvido absolver o réu por pura clemência, sem apego a qualquer das teses defensivas. Em suma, de maneira como o quesito será encaminhado aos jurados, serão eles, realmente, soberanos para dar o veredicto, sem que os juízes e tribunais togados devam imiscuir-se no mérito da solução de absolvição”91. Nesse sentido também Andrey Borges de Mendonça: “(...) o jurado poderá absolver o acusado por qualquer causa imaginária, mesmo que não alegada pelas partes (clemência, por exemplo). Na antiga sistemática, as possibilidades de absolvição eram limitadas pelas teses apresentadas pela defesa, o que mitigava, de certa forma, a possibilidade de o jurado absolver com base na íntima convicção. A partir da reforma, não há nenhum limite”92. Tanto é assim que o Min. Celso de Mello concedeu a medida liminar pleiteada no RHC n. 117.076 (Dje 18/09/2013), afirmando, a partir de rigorosa hermenêutica constitucional, que a reforma processual penal trazida pela Lei nº 11.689/08, amplificou ainda mais a soberania dos vereditos consagrada no art.  5º, XXXVIII, da CF, ensejando nova interpretação do disposto no art.  593, III “d”, do CPP, e seu §  3º, no sentido de que a apelação pela decisão manifestamente contrária à prova dos autos tornou-se recurso exclusivo da defesa, verbis: Com efeito, não se pode ignorar a existência de expressiva orientação jurisprudencial no sentido de que, com o advento da Lei nº 11.689/2008, os jurados teriam passado a gozar de ampla e irrestrita autonomia na formulação de juízos absolutórios, não se achando adstritos, em sua razão de decidir, seja às teses suscitadas em plenário pela defesa, seja a quaisquer outros fundamentos de índole estritamente jurídica (Apelação nº 0008366-51.2007.8.26.0400, Rel. Des. Newton Neves, TJSP – Apelação-Crime n. 70034122390, Rel. Des. Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, TJRS – Apelação Criminal n. 2004.01.1.085323– –9, Rel. p/ o acórdão Des. João Timóteo de Oliveira, TJDFT – Embargos Infringentes e de Nulidade nº 70049995897, Rel. p/ o acórdão Des. Marcel Esquivel Hoppe, TJRS – HC 200.440/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, STJ): ‘Apelação criminal – Homicídio simples – Júri – Alegação de decisão dos jurados contrária à prova dos autos – Inocorrência – Quesitação alterada após a Lei nº 11.689/08 – Absolvição sem estar adstrita às teses defensivas do plenário – Possibilidade – Recurso não provido. I – A partir da nova redaçãodo art.  483 do CPP, após a Lei nº 11.689/08, é admitida a absolvição do réu por motivos desconhecidos e até mesmo por clemência. II – Se a nova formulação dos quesitos alargou as possibilidades de absolvição, fica, de fato, ao alvedrio dos jurados decidir pela não condenação do réu por motivos até alheios à sustentação

defensiva. III – Na antiga sistemática, as possibilidades de absolvição eram limitadas pelas teses apresentadas pela defesa, o que mitigava, de certa forma, a possibilidade de o jurado absolver, com base na íntima convicção. A partir da reforma, não há nenhum limite. IV – Recurso não provido.’ (Apelação Criminal nº 1.0024.00.092182-5/002, Rel. Des. Eduardo Brum, TJMG – grifei) Considerado esse entendimento – que merecerá, em momento oportuno, detida reflexão por parte desta Corte –, revelar-se-ia, aparentemente, inadmissível, por incongruente com a recente reforma introduzida no procedimento penal do júri, o controle judicial das decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri com fundamento no art. 483, III e § 2º, do CPP, quer pelo fato, pragmaticamente relevante, de que os fundamentos efetivamente acolhidos pelo Conselho de Sentença restariam desconhecidos, quer pelo fato, não menos importante, de que a fundamentação adotada pelos jurados poderia, ao menos virtualmente, extrapolar os próprios limites da razão jurídica”. Na oportunidade, o Ministro destacou o magistério de Adel el Tasse e Luiz Flávio Gomes, que, pela pertinência e precisão, merece transcrição: A Lei n. 11.689/2008, ao regulamentar o modelo de quesitação que atualmente deve ser adotado, produziu reflexo direto na matéria da apelação das decisões do Tribunal do Júri, não sendo mais aceita a continuidade no emprego da vetusta interpretação da matéria, que passa a representar evidente ausência de lógica do sistema. Parece indiscutível, sendo qualquer resistência em verificar esta situação totalmente desprovida de sentido técnico mínimo, que, com a alteração não só dos procedimentos, mas verdadeiramente da estrutura do Tribunal do Júri brasileiro, produzida em 2008, pela entrada em vigor da Lei n. 11.689, a apelação com base na manifesta contrariedade às provas dos autos passou a ser recurso exclusivo da defesa. O atual modelo de quesitação existente, pelo qual o Conselho de Sentença decide sobre a absolvição com total distanciamento de questionamentos técnico-jurídicos, mas atuando em acordo com o livre convencimento íntimo de forma plena, respondendo a quesito geral sobre se o acusado deve ser absolvido ou condenado, faz com que a decisão absolutória não seja passível de qualquer tipo de controle recursal pela acusação, pois insuscetível de análise quanto aos seus fundamentos, que podem, inclusive, decorrer do perdão social pelo fato praticado. Em outras palavras, não há qualquer suporte lógico para que possa a acusação recorrer para atacar o veredicto absolutório, argumentando que este ocorreu em contrariedade à prova dos autos, pois a absolvição deve atender a um único critério, qual seja, a livre convicção plena do juiz de fato, formada com imparcialidade após a apresentação das provas e dos debates pelas partes. O dado essencial é que a estrutura democrática do Tribunal do Júri garante que os jurados possam atuar para absolver além dos limites impostos pela lei ao juiz togado, não havendo dúvidas de que este aspecto democrático encontra-se, no caso brasileiro, expressamente refletido no modelo de quesitação adotado. (...) A Lei n. 11.689/2008, ao reformar o modelo de Tribunal do Júri existente no Brasil, reconstruiu o pacto democrático, ao dotar o jurado da garantia de imparcialidade e da possibilidade de formar a sua íntima convicção sem ficar submetido a mecanismos de controle autoritário. A quesitação hoje existente, em que uma única pergunta sobre se o réu deve ser absolvido resolve a causa, garante ao jurado a possibilidade de absolver com base no mais amplo juízo de íntima convicção e, por via de consequência, tacitamente revogou em parte o art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, pois passou a ser absolutamente carente de lógica sistêmica debater em grau de apelação quais os critérios de absolvição do cidadão jurado, vedando-se, assim, o recurso de apelação pela acusação com base no fundamento de que o julgamento foi manifestamente contrário às provas dos autos.

Dessa forma, a atual redação do Código de Processo Penal, na disciplina do Tribunal do Júri, fixando a viabilidade absolutória com base na livre convicção íntima de forma plena, impede a utilização do recurso de apelação com base no art. 593, III, “d”, contra a decisão absolutória, sendo este recurso, em consequência, exclusivo da defesa para atacar decisão condenatória (Processo Penal IV: júri, p. 161/165, item n. 1.d., São Paulo: Saraiva, 2012, g.n.)93. A nova interpretação do art. 593, III, d, do Código de Processo Penal, limita o manejo do apelo das decisões de mérito do Conselho de Sentença, tornando-o, sob esse fundamento, um recurso exclusivo da defesa. Portanto, se o Ministério Público pretender a reforma do julgamento absolutório, por entendê-lo manifestamente contrário à prova dos autos, caso o recurso venha a ser provido, pode ser impetrado habeas corpus em favor do réu ao fundamento de que, sob a nova sistemática instituída pela Reforma de 2008, não se pode prover tal apelo. Como dito, os jurados podem absolver o réu “por motivos desconhecidos, e até mesmo por clemência”.

2.5. HC contra acórdão do TJ que cassa decisão do júri. Limites cognitivos da apelação contra o mérito do veredito popular. É verificável a existência de duas versões no âmbito do writ para restabelecer o veredicto dos jurados? A soberania do veredicto do Júri Popular é consagrada como uma garantia constitucional (artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “c”, da CF). De outro lado, o CPP só autoriza a anulação das decisões do júri pelo mérito quando estas sejam manifestamente contrárias à prova dos autos (art. 593, III, d). E decisão manifestamente contrária à prova dos autos “é aquela que se afasta, por inteiro, da prova colhida”94. Portanto, a menos que haja manifesta dissociação entre a decisão dos jurados e as provas amealhadas no processo, não se permite a sua nulificação, sob pena de o Tribunal se sobrepor ao juiz natural da causa, ou seja, os jurados. Em consequência, há um limite cognitivo na atividade do Tribunal ao julgar a apelação interposta contra a decisão do Júri. De fato, como proclamado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, nos casos de apelação contra as decisões do Tribunal do Júri “não incumbe ao juízo de segundo grau um novo julgamento da causa – ofensivo da privativa e soberana competência constitucional do tribunal popular, mas apenas verificar se, como reclama a lei para a cassação, a decisão é ‘manifestamente contrária à prova dos autos ou se o veredicto nela encontra algum apoio, bastante a elidir a pecha de arbitrariedade’”95. José Frederico Marques, citado pelo Ministro Paulo Brossard no HC nº 67.558-1-MG, demonstra que, “referentemente às decisões do Júri, o Tribunal ad quem, em homenagem à garantia da soberania dos veredictos, ‘se restringe à apreciação sobre a regularidade do veredicto, sem o substituir, mas pronunciando ou não pronunciando o sentencia rescindenda sit’. A apelação no Júri, dizem os mestres europeus, é uma ‘instância de cassação’ (Beling); giurisdizione regolatrice (Lucchini); apello limitato (Carnelutti)”. Ao julgar monocraticamente o ARESP n. 983.373 a Min. Maria Thereza bem resumiu a matéria: (...) interposto recurso de apelação contra a sentença proferida pelo Tribunal do Júri, sob o fundamento de ser manifestamente contrária à prova dos autos, ao órgão recursal se permite apenas a realização de um juízo de constatação acerca da existência de suporte probatório para a decisão tomada pelos jurados integrantes do Conselho de Sentença, somente se admitindo a cassação do veredicto se flagrantemente desprovido de elementos mínimos de prova capazes de sustentá-lo (HC 229.847/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 04/08/2014) Além do mais, consoante jurisprudência pacífica deste Tribunal Superior, “decisão manifestamente contrária à prova dos autos é aquela que não encontra amparo nas provas produzidas, destoando, desse modo, inquestionavelmente, do acervo probatório”. (HC 348.027/DF, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 23/08/2016). É “o julgamento que acolhe versão não contida no processo, decorrendo de mera imaginação dos Jurados”. (HC 91.551/DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), Quinta Turma, DJ 07/02/2008)96. O que importa reconhecer é que, diferentemente do que ocorre nas hipóteses de apelação tiradas de processos comuns, o âmbito cognitivo do Tribunal é menor; apenas avalia a

conformidade do veredito com a prova existente nos autos. Por isso, só se anula a decisão do Júri quando esta for arbitrária, isto é, manifestamente contrária à prova dos autos (RT 595/349). Assim, quanto às provas, “não cabe ao Tribunal de Justiça revalorá-las com o fim de anular o processo por decisão manifestamente contrária à prova dos autos”97. É que: A adoção, pelos jurados, da versão que lhes pareceu mais convincente quando ambas são aceitáveis, após a apreciação dos elementos probantes, não significa que houve decisão contrária à prova dos autos; portanto, não há qualquer nulidade no veredicto98. Mas e se o Tribunal ultrapassa o limite que lhe é imposto pela lei e a Constituição e anula o veredicto do júri, determinando que o réu se submeta a novo julgamento, pode o habeas conjurar a ilegalidade? A jurisprudência do STF responde afirmativamente, pois, como ressaltou o Min. Oscar Corrêa, “concluir-se a decisão é ou não manifestamente contrária a prova dos autos, importa valoração e não reexame de provas”99. Cuida-se como dito pelo Min. Paulo Brossard no HC n. 67.558, de Minas Gerais, de “quaestio iuris viável de exame no âmbito de Habeas corpus”100. Nessa linha, hipótese interessante foi julgada pelo STF, no início dos anos 90, na qual o réu, embora acusado de homicídio qualificado, veio a ser condenado, por unanimidade, pela prática do homicídio privilegiado. O TJSP, no entanto, veio a dar provimento ao apelo ministerial por entender que o veredicto dos jurados seria manifestamente contrário à prova dos autos. O HC impetrado diretamente perante o STF, pois antes da Emenda Constitucional n. 22, relatado pelo Min. Aldir Passarinho, foi conhecido e concedido, determinando-se a cassação do acórdão do TJSP para se restabelecer a decisão do Tribunal do Júri, em julgado assim ementado: Homicídio. Tribunal do júri. Condenação por homicídio privilegiado. Oferecimento de duas teses submetidas ao conselho de sentença. Opção válida por uma delas. Submissão do réu a novo julgamento, pelo Tribunal do Júri: descabimento. Se, no Tribunal do Júri, foram submetidas a confronto duas teses: uma a de que o réu agira sob domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima; e a outra a de que o réu praticara o crime por motivo fútil, e foi acolhida a primeira, tendo-se que provas colhidas na instrução criminal em relação as reais circunstâncias do crime não são robustas, não cabe a anulação do julgamento pelo Conselho de Sentença. Não há, de fato, nos autos, elementos seguros para que se possa dizer com tranquilidade que o decidido pelo Tribunal do Júri o foi contra a evidência dos autos e só em tal hipótese caberia, no caso, submeterse o réu a novo julgamento, não sendo de esquecer que a nova Constituição deu ainda maior relevo aquele Tribunal, como resulta do inc. XXXVIII do seu art. 5. Precedentes. “Habeas corpus” que se defere para que o paciente não seja submetido a novo julgamento101.

2.6. HC e desaforamento. Possibilidade do manejo O desaforamento vem regulado pelo CPP no art. 427 e se baseia em três causas: a) interesse da ordem pública; b) dúvida sobre a imparcialidade do júri; c) dúvida sobre a segurança pessoal do réu. Como gizou o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro “busca-se julgamento imparcial, preocupação constante do Judiciário”102. Excepcionalmente o desaforamento pode se dar também para permitir o julgamento do caso com maior brevidade, mas “em razão do comprovado excesso de serviço” da Vara e desde que não possa “ser realizado no prazo de 6 (seis) meses, contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia” (CPP, art. 428). O cuidado do legislador, em ambas as hipóteses, se justifica, uma vez que o desaforamento interfere com a garantia do juiz natural da causa (CF, art. 5º, inc. LIII). O CPP regula o procedimento do desaforamento. O juiz deve representar ao Tribunal quando entender necessária a providência; não pode fazê-lo de ofício e as partes devem ser ouvidas. Já o Ministério Público e a defesa devem requerê-lo perante o Tribunal de Justiça. Seguem-se as informações do juiz ao Tribunal, as quais, como regra, têm peso decisivo na decisão do Tribunal. Sim, como regra as informações do juiz da Comarca são decisivas, mas o Tribunal não está vinculado a elas, pois, de acordo com o STF, devem “ser analisada(s) em conjunto com os demais elementos probatórios”103. A decisão que o defere ou o indefere é sempre colegiada, mas pode haver medida cautelar para sobrestar o julgamento pelo Júri, qual pode ser deferida monocraticamente. Esse, enfim, é o caminho legal para o desaforamento.

Contudo, a questão se complica quando o Tribunal indefere a pretensão. O recurso cabível é o Recurso Especial cujo processamento, como é sabido de todos, é lento, sem eficácia suspensiva e tem especificidades que tornam o seu manejo dificultoso. Seria viável o emprego do habeas corpus, já que a matéria atina com o direito de ser processado perante um juiz imparcial e, portanto, imbricada com o devido processo legal? Vejamos a seguinte hipótese. O Tribunal de Justiça de São Paulo ao decidir o pedido de Desaforamento nº 443.457-3/7-00 negou-o com base na ideia de que o juiz “vivendo o cotidiano na Comarca e gozando de imparcialidade e serenidade, é a pessoa mais indicada para avaliar se a segurança pessoal do réu, a suspeita de parcialidade dos jurados ou o interesse público, recomendam o desaforamento”. Ocorre que o magistrado que prestou as informações estava há apenas 20 dias na Comarca, aliás, pequena. Portanto, sem nenhuma condição de aquilatar a necessidade, ou não, do desaforamento. Por isso, com honestidade, revelou que se valia das informações do cartorário para esclarecer o Tribunal. Por outro lado, a pequena cidade era comprovadamente comandada pela poderosa família da vítima e do réu (a mesma). O julgamento, segundo a defesa técnica, seria uma espécie de jogo de “cartas marcadas” para o réu. Assim, como o Tribunal havia indeferido o pedido de desaforamento, pela via do habeas corpus bateu-se às portas do STJ, não sem antes salientar a existência de precedentes que admitiam o seu emprego, desde que não houvesse a necessidade de discussão de provas. O STJ, por sua 5ª Turma, não apenas conheceu do HC n. 36.427, como veio a conceder a ordem em acórdão da lavra do Min. Gilson Dipp, assim ementado: I. Admite-se o desaforamento nos procedimentos do Júri, na hipótese de existência de interesse da ordem pública, dúvida sobre a imparcialidade do júri, ou, ainda, sobre a segurança pessoal do réu – tudo visando à imparcialidade do julgamento. II. Hipótese que cuida de pedido de desaforamento indeferido, sob o entendimento de não comprovação do comprometimento da isenção do corpo de jurados. III. Devidamente ressaltada a influência econômica da família do réu e da vítima, capaz de influir no convencimento dos jurados, caracterizada está a hipótese prevista no art.  424, do CPP, autorizando-se o desaforamento do Júri. Precedentes. IV. O fato de o crime ter ocorrido há mais de 10 (dez) anos não desnatura a necessidade do desaforamento, tendo em vista ser o pedido baseado na dúvida sobre a imparcialidade do Conselho de Sentença e, não, no perigo à integridade do réu. V. Ordem concedida para determinar que o julgamento dos pacientes seja desaforado para outra Comarca do Estado de São Paulo104. O próprio Parecer ministerial havia se colocado a favor da concessão da ordem como se vê da transcrição feita pelo acórdão: 11. Destarte, verifica-se no caso em testilha, a ocorrência objetiva e concretamente da hipótese legal autorizadora do desaforamento, qual seja, dúvida sobre a imparcialidade do júri, a qual funda-se em fatos concretos e não apenas em meras suposições ou alegações, haja vista que o crime ocasionou à época forte comoção social, uma vez que um dos pacientes foi acusado de matar o próprio irmão em razão de desavenças havidas no inventário do pai, além de pertencerem a vítima e o acusado à família que exerce forte influência econômica na comunidade local. 12. Assim, comprovada a influência financeira do réu e de sua família sobre aquela comunidade, susceptível de alterar a isenção e a imparcialidade dos integrantes do Corpo de Jurados, é de ser acolhida a proposta de desaforamento para outra Comarca do Estado, sem que se possa falar em falta de demonstração de dúvida suscitada quanto ao corpo de jurados. O aresto indicou os seguintes precedentes para legitimar o conhecimento da matéria pela via do writ:

Processo penal. Tribunal do Júri. Réu influente. Imparcialidade. Desaforamento. É cabível o desaforamento quando houver dúvidas sobre a imparcialidade do Conselho de Sentença, em razão de se tratar de réu influente na comarca, capaz de influir no ânimo dos jurados, mercê de eventual represália, na hipótese de condenação (grifos do original). A oitiva do réu acerca do desaforamento não constitui pressuposto ou requisito para a decisão judicial, bastando, para tanto, seja ouvido o Procurador Geral de Justiça (art. 424 do CPP). Ordem denegada.” (HC n.º 26.700/AL; Rel. Ministro Paulo Medina; DJ 15/12/2003). Processual penal. Recurso especial. Desaforamento. CPC – art. 424. Duplo homicídio qualificado ocorrido há mais de 20 anos. Influência econômica, financeira e política dos acusados. Julgamento pela comarca da capital. Necessidade demonstrada. 1. Segundo o princípio do juiz natural, a competência originária para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida é do Tribunal do Júri da Comarca onde ocorreram os delitos, sendo cabível, entretanto, a modificação do local do julgamento desde que constatadas algumas das hipóteses de desaforamento, previstas no artigo 424, do Código de Processo Penal. 2. Ressalta-se que o processo se arrasta por mais de vinte anos: só na fase instrutória, transcorreram-se dez anos. Outrossim, depois de confirmada a sentença de pronúncia pelo Tribunal de origem, até hoje, decorridos quase cinco anos, o feito ainda não foi levado a julgamento. Ora, não possuindo o Recurso Especial interposto efeito suspensivo, nada obstaria a realização do julgamento pelo júri popular na localidade dos fatos. Tanta demora, considerando o tamanho da cidade e a quantidade de processos não se justifica. 3. Comprovada a influência econômica, financeira e política dos acusados sobre a comunidade local, susceptível de alterar a isenção e a imparcialidade dos integrantes do Corpo de Jurados, é de ser acolhida a proposta de desaforamento para a Comarca da Capital, afastando-se as comarcas contíguas, em razão da supracitada influência se estender por toda a região. 4. Necessidade real de se deslocar a sede do julgamento sob pena de a justiça amargar mais um exemplo de impunidade, quer pela demora, quer pela submissão ao poder econômico e político. 5. Recurso Especial provido.” (RESP nº 224683 / GO; Rel. Ministro Edson Vidigal; DJ 08/04/2002). Processual penal. Desaforamento. Capital do Estado. Nulidade. Inexistência. 1 – Se há suficiente fundamentação no julgado do Tribunal de origem, dando conta da forte influência política e financeira do réu e de sua família, na comarca onde se realizaria o júri e região circunvizinha, não há falar em nulidade pelo fato do desaforamento efetivar-se para a capital do Estado. 2 – Ordem denegada.” (HC nº 15.866/GO; Rel. Ministro Fernando Gonçalves; DJ 04/06/2001) No Supremo Tribunal Federal também vigora o mesmo entendimento: Pacífico o entendimento desta Corte no sentido da adequação do habeas corpus para rever decisão quanto a pedido de desaforamento (HC 75.919 e HC 70.799). (HC nº 80.226-5/PA, Rel. Min. Ilmar Galvão, 1ª T., v.u., DJ 10.11.2000). A impetração do writ trazia um importante julgado da lavra do Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, que, embora proferido em Recurso Especial, dá a dimensão da questão. REsp – Constitucional – Processual penal – Habeas corpus – Desaforamento. O Judiciário, seja pelas origens históricas, como para proteger o exercício do direito de liberdade, tem sido tolerante e recepcionado o Habeas Corpus. Admite-o sempre que houver iminente, ou atual ameaça ao direito de locomoção. O desaforamento arrima-se em três causas:

a)  interesse da ordem pública; b) dúvida sobre a imparcialidade do júri; c)  dúvida sobre a segurança pessoal do réu. Busca-se julgamento imparcial, preocupação constante do Judiciário. (Resp. nº 168.461-ES, DJ 29/10/1998). No corpo do acórdão, lê-se: Nessa extensão, com essa franquia democrática, a fim de garantir julgamento isento, imparcial, o Habeas Corpus tem sido admitido. A tanto equivale – julgamento imparcial. Se a lei ordinária, mediante requerimento, direito de provocar a manifestação do Judiciário, consente à parte postular julgamento isento, sem dúvida, a conclusão é a mesma se manejada a ação constitucionalizada. Portanto, se a matéria não carecer de discussão de prova ou, dito de outra maneira, se os fatos se apresentarem incontroversos, é possível agitar-se nos tribunais superiores a matéria pela via do habeas corpus. Nos tribunais locais, ou nos Regionais Federais, para a hipótese de júri da competência da justiça federal, o caminho é necessariamente o previsto no art.  427 do CPP e, se necessário, cumulado com um pedido de medida cautelar para se sobrestar o julgamento pelo Júri.

2.7. HC e pena maior no novo Júri que a do primeiro anulado em recurso exclusivo da defesa Tema tormentoso é o de saber se, anulado o Júri a que o réu se submeteu em recurso exclusivo da defesa, pode o novo julgamento implicar na adoção de pena mais grave? Estão em jogo de um lado a soberania dos vereditos do Júri, constitucionalmente assegurada (art. 5º, inc. XXXVIII, “c”) e, de outro, a proibição da reformatio in pejus indireta. Há, porém, duas situações diferentes: a) O réu foi condenado pela prática de um homicídio doloso a uma pena de 12 anos e, anulado o primeiro Júri por conta de recurso exclusivo seu, no segundo, mantida a qualificadora, é pacifico que o Juiz não pode impor pena maior que a fixada anteriormente pelo seu colega, sob pena de se ferir a garantia da ne reformatio in pejus, no caso indireta105; b) O réu foi condenado por um homicídio simples e, ao recorrer buscando alcançar, por hipótese, o privilegiado ou mesmo a absolvição, vem a ser condenado no segundo Júri por homicídio qualificado. O problema surge na última situação. No acórdão do HC n. 115.428, o Min. Dias Toffoli, com muita proficiência, fez uma bela resenha do tema e que dispensa acréscimos. Disse o julgado106: A doutrina tem divergido a respeito do tema. Penalistas de escol assinalam a possibilidade de imposição de uma sanção mais gravosa, desde que não se verifiquem os mesmos fatos e as mesmas circunstâncias admitidos no julgamento anterior: v.g. MIRABETE (Processo Penal. 8.  ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.  656-657), MOUGENOT (Código de Processo Penal anotado. 3.  ed. São Paulo: RT, 2010. p. 1071), CAPEZ (Curso de Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 765), PACELLI et al. (Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 4.  ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.  1198), (GRINOVER et al. (Recursos no Processo Penal. 2.  ed. São Paulo: RT, 1998. p.  46-48); RANGEL (Direito Processual Penal. 5.  ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p.  531); MAGALHÃES NORONHA (Curso de Direito Processual Penal. 20.  ed. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 375), entre outros. Outros, não menos ilustres, contudo, manifestam posicionamento contrário: NUCCI (Código de Processo Penal comentado. 13.  ed. São Paulo: RT, 2013, p.  1072-1073), MARQUES, Frederico (A Instituição do Júri. São Paulo: Saraiva, 1963. v.  1, p.  35), BADARÓ (Direito Processual Penal. São Paulo: Campus, 2007. t. III, p. 203). Também, na expressão do julgado em exame, além de anotar que a jurisprudência da Suprema Corte se revela dividida, ressaltou importantes julgados na linha da inadmissibilidade do agravamento da pena do réu em novo júri decorrente de seu recurso exclusivo: AÇÃO PENAL. Homicídio doloso. Tribunal do Júri. Três julgamentos da mesma causa. Reconhecimento da legítima defesa, com excesso, no segundo julgamento. Condenação do réu à

pena de 6 (seis) anos de reclusão, em regime semi-aberto. Interposição de recurso exclusivo da defesa. Provimento para cassar a decisão anterior. Condenação do réu, por homicídio qualificado, à pena de 12 (doze) anos de reclusão, em regime integralmente fechado, no terceiro julgamento. Aplicação de pena mais grave. Inadmissibilidade. Reformatio in peius indireta. Caracterização. Reconhecimento de outros fatos ou circunstâncias não ventilados no julgamento anterior. Irrelevância. Violação consequente do justo processo da lei (due process of law), nas cláusulas do contraditório e da ampla defesa. Proibição compatível com a regra constitucional da soberania relativa dos veredictos. HC concedido para restabelecer a pena menor. Ofensa ao art. 5º, incs. LIV, LV e LVII, da CF. Inteligência dos arts. 617 e 626 do CPP. Anulados o julgamento pelo tribunal do júri e a correspondente sentença condenatória, transitada em julgado para a acusação, não pode o acusado, na renovação do julgamento, vir a ser condenado a pena maior do que a imposta na sentença anulada, ainda que com base em circunstância não ventilada no julgamento anterior (HC nº 89.544/RN, Segunda Turma, Relator o Ministro Cezar Peluso, DJe de 15/05/2009). Este último julgado foi o que serviu de base para o novo posicionamento da Suprema Corte. O Min. Toffoli salientou que o Min. Celso de Mello anuiu com a mais recente orientação, à qual, como destacado pelo Ministro Cezar Peluso em seu voto, “[se, de um lado, a Constituição da República, no art. 5º, inc. XXXVIII, letra ‘c’, proclama a instituição do júri e a soberania de seus veredictos, de outro assegura aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (inc. LV do art. 5º). Ambas essas garantias, que constituem cláusulas elementares do princípio constitucional do justo processo da lei (due process of law), devem [ser] interpretadas sob a luz do critério da chamada concordância prática, que, como se sabe, consiste ‘numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum’ (MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 107). Noutras palavras, onde, nos passos metodológicos da exegese, se desenhe ou apareça contradição ou colisão de normas, não se pode, à base de precipitada ‘ponderação de bens’ ou de ‘abstrata ponderação de valores’, interpretar e aplicar nenhuma delas à custa do pleno sacrifício da outra ou outras. (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha, tradução da 20ª ed. alemã, de Luís Afonso Heck, Porto Alegre: S.A. Fabris, 1998, p. 66). Essa é decorrência lógico-jurídica do princípio da unidade orgânica e da integridade axiológica da Constituição, e cuja ratio iuris está em garantir a coexistência harmônica dos bens nessa tutelados, sem predomínio teórico de uns sobre outros, cuja igualdade de valores fundamenta o critério ou princípio da concordância, como adverte CANOTILHO: ‘Este princípio não deve divorciar-se de outros princípios de interpretação já referidos (princípio da unidade, princípio do efeito integrador). Reduzido ao seu núcleo essencial, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros. O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens’. (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1150). E, como corolário do contraditório e da ampla defesa, o Código de Processo Penal contempla, dentre outros, o princípio da personalidade dos recursos (parte final do art.  617), que obsta à reformatio in peius. Isso, que é truísmo jurídico, significa que: ‘a) o recurso só pode beneficiar à parte que o interpôs, não aproveitando à parte que não recorreu; e, via de consequência, que b) quem recorreu não pode ter sua situação agravada, se não houve recurso da parte contrária’. (GRINOVER, Ada Pelegrini, GOMES FILHO, Antônio Magalhães, FERNANDES, Antônio Scarance. Recursos no processo penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 46). Tratase, aí, da proibição taxativa da reformatio in peius direta, segundo a qual o recorrente não pode

ver, no julgamento do recurso que interpõe – ou, como paciente, em habeas corpus que se lhe impetre – agravada sua situação jurídica, material ou processual, quando não haja recurso da parte contrária. SÉRGIO PITOMBO lecionava a respeito: ‘O estudo da inibição da reformatio in pejus principia pela atenção as regras da ampla defesa do acusado; da interdição de pronunciamento ultra e extra petita; e da prevalência do favor rei ou libertatis. A garantia constitucional da ampla defesa diz com o direito de saber dos prazos recursais; da ciência de seu início; requisitos e do andamento da apelação. Concederlhe, ainda, os limites, ou a devolutividade, sempre arredando a surpresa. Importa, também, a bilateralidade da audiência, durante o procedimento recursal. Já a contraditoriedade acha-se, à evidência, ínsita no apelo e seus incidentes. Em nenhuma fase, ou instante do procedimento, pouco importando o grau de jurisdição, o acusado deve ver-se tratado como estranho, na causa. Direito, por fim, a que eventual prova emergente no correr do procedimento recursal, desponte, legitimamente, obtida ou produzida. (...) O Tribunal Superior, em princípio, não deve decidir ultra ou extra petita. Não há de julgar nem a mais, nem fora do pedido. Encontra-se, portanto, balizado; obstada a decisão contra o próprio apelante. Sempre se poderia argumentar que tal ideia impede o procedimento espontâneo do juiz, em razão do nemo judex sine actore e ne procedat judex ex officio’. E rematava: ‘A jurisprudência incumbiu-se, na mesma linha, de impedir a denominada reformatio in pejus indireta. Assim, anulada a decisão condenatória, mediante recurso, tão só, do arguido, o Juiz que proferir nova sentença achar-se-á jungido ao máximo da pena, imposta na sentença inválida. Importa assentar: a sentença nula passa a ter força e efeito sobre a nova e válida. Desútil reclamar da lógica, em face do favor rei’. (Disponível em http://www.sergio.pitombo.com.br/files/word/in_pejus.doc.). A reformatio in peius indireta, conquanto hospedada por certa jurisprudência, guarda identidade estrutural com a direta e, não por outra razão, ligação nevrálgica com as normas constantes dos arts.  617 e 626 do Código de Processo Penal. Inconcebível, daí admitir-se que, anulado o processo ou a sentença no julgamento de recurso tendente a só beneficiar o réu, a nova decisão da mesma causa ou questão possa agravar-lhe a situação jurídica. Não há, em termos jurídicos, diferença alguma considerável entre a conformação, o mecanismo e as consequências de ambas as hipóteses. É velha e aturada a jurisprudência da Corte, no sentido de que o juiz que venha a proferir nova decisão, em substituição à cassada no âmbito de recurso exclusivo da defesa, está limitado e adstrito ao máximo da pena imposta na sentença anterior, não podendo de modo algum piorar a situação jurídico-material do réu, sob pena de incorrer em inadmissível reformatio in peius indireta. (Cfr., por todos, RE nº 87.394, Rel. p/ ac. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, RTJ 88/10181030). A racionalidade dessa orientação ajusta-se de todo a este caso, onde se deu para a acusação, à falta de recurso seu, o trânsito em julgado da sentença no segundo julgamento, a qual condenou o paciente a seis anos de reclusão, enquanto limite que, no prejulgamento, eventual pena não poderia nunca ultrapassar sem evidente degradação da condição jurídica do condenado. Nem se reedite a superada objeção da ineficácia dos atos nulos no âmbito processual-penal, sobretudo em relação aos efeitos da sentença nula. É que, por obra de princípios jurídicos superiores, sobremodo ligados à matriz da tutela da dignidade da pessoa humana no tratamento normativo das causas penais, a proibição da reformatio figura excepcional hipótese em que o ato nulo produz o singular, mas compreensível efeito de limitar a pena que venha a ser aplicada em decisão superveniente. É coisa que antiga doutrina já percebia, como se vê à postura, por exemplo, de SADY CARDOSO

DE GUSMÃO, que notava: ‘Estes argumentos não colhem, porque o princípio de que o que é nulo não produz qualquer efeito, já o dizíamos, não se compadece com a realidade, eis que a despeito da nulidade, o réu sofreu pena e Bulhões de Carvalho, escrevendo no Arquivo Judiciário sobre a nulidade e a inexistência, mostra que os atos nulos são suscetíveis de certos efeitos, inclusive os provisórios (Arquivo Judiciário 41, sup. p. 33)’. E, adiante: ‘Deste modo, chegamos a uma conclusão que nos parece absurda. Se à Corte Suprema, tribunal máximo do País, é vedado agravar a situação do condenado na revisão criminal, como ser reconhecida aos tribunais inferiores essa possibilidade, atingindo, assim, uma competência mais lata? O princípio de que o que é nulo não produz efeito é vago e contraditório com os fatos. Embora nulo seja o processo, o condenado, até a revisão, em razão dele, se acha cumprindo pena. Este é um efeito que nem a revisão apaga, por isso que os fatos reais da vida humana não podem ser considerados como inexistentes, sem que essa asserção importe em falsidade, em negar a existência das coisas’. (Apud MELLO, Dirceu de. In: PORTO, Hermínio Alberto Marques, e DA SILVA, Marco Antônio Marques (coord.). Processo penal e constituição federal. São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 27-28). Suposto consolidada nesta Corte, a proibição da reformatio in peius indireta tem sido aplicada restritivamente ao Tribunal do Júri, sob a explícita condição de o conselho de sentença reconhecer a existência dos mesmos fatos e circunstâncias admitidos no julgamento anterior: ‘HABEAS CORPUS – TRIBUNAL DO JÚRI – REFORMATIO IN PEJUS INDIRETA – RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA – EXAPERAÇÃO DA PENA DETERMINADA PELO JUIZ-PRESIDENTE – INADMISSIBILIDADE – PEDIDO DEFERIDO. O Juiz– Presidente do Tribunal do Júri, quando do segundo julgamento, realizado em função do provimento dado a recurso exclusivo do réu, não pode aplicar pena mais grave do que aquela que resultou da anterior decisão, desde que estejam presentes – reconhecidos pelo novo Júri – os mesmos fatos e as mesmas circunstâncias admitidos no julgamento anterior. Em tal situação, aplica-se, ao Juiz– Presidente, a vedação imposta pelo art. 617 do CPP’. (HC nº 73.367, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 29/06/2001). Tal restrição, sobre não encontrar amparo no ordenamento jurídico, aniquila, na prática, a ampla defesa, na medida em que, intimidando o condenado, lhe embaraça senão que inibe o manejo dos recursos. E subtrair ao condenado a segurança para recorrer, sem o temor de que nova decisão possa de algum modo piorar-lhe a situação resultante do juízo impugnado, viola o cerne do devido processo legal, não apenas porque tende a atrofiar o exercício de poderes inerentes ao processo da lei, mas também porque, nisso, cria o grave risco de induzir, contra exigências básicas de justiça que devem permear o mesmo processo, aceitação contrafeita de decisões gravosas ao status libertatis e, em tese, suscetíveis de modificação ou reforma. Como se adverte, ‘la oposición es el primer paso y limite futuro del recurso de apelación, y en consecuencia, deberá compartir el fundamento de la prohibición de la reformatio in peius, ya que como se refirió supra, los fundamentos de esta prohibición reposan en la necesidad de garantizar al imputado la libertad y la tranquilidad de recurrir, la que existirá cuando él sepa que el recurso que intenta nunca podrá perjudicarlo más que la propia sentencia (o resolución o requerimiento) recurrida, ya que si existiera el peligro de que la impugnación deducida en su favor pudiera terminar empeorando su situación, quizás prefiera sufrir la resolución injusta (a su entender) antes de correr el riesgo de que ésta se modifique en su perjuicio y com elle, echaríamos por tierra el derecho que le corresponde a todo imputado de lograr la revisión de las resoluciones dictadas en su contra’. (MARTINEZ, Félix Alejandro. Pensamiento penal y criminológico. In: Revista de Derecho Penal Integrado. Córdoba: Editorial Mediterránea, 2004, p. 134). A regra constitucional da soberania dos veredictos em nada impede a incidência da vedação da

reformatio in peius indireta, pois esta não lhe impõe àquela limitações de qualquer ordem, nem tampouco despoja os jurados da liberdade de julgar a pretensão punitiva, nos termos em que a formule a pronúncia. ‘A solução indicada para harmonizar as duas disposições, de grande interesse para o sistema judiciário democrático, é não impedir que o júri decida como bem entender, incluindo, se quiser, a qualificadora antes afastada. Entretanto, no momento de aplicar a pena, terminado o processo, o juiz, lembrando que há impossibilidade de prejudicar o réu, em recurso que foi exclusivo da defesa, reduzirá a reprimenda até atingir o patamar primário’, pondera e discerne, com razão, GUILHERME NUCCI. (NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 104). O conselho de sentença decide sempre como lhe pareça; o juiz presidente do Tribunal do Júri, esse é que, ao fixar a pena, está obrigado a observar o máximo da reprimenda imposta ao réu no julgamento anterior. Acerca da notória distinção das funções do juiz e dos jurados, sublinhava FREDERICO MARQUES: ‘O júri e o juiz possuem atribuições funcionais distintas, mas não é na separação do direito e do fato que se dividirão as competências de um e de outro. GARRAUD, que também repeliu a estranha cisão, soube, em face das leis francesas então em vigor, traçar com mão de mestre o campo de atribuições dos jurados e da magistratura togada, nos julgamentos do Tribunal do Júri. Como, desprezadas pequenas diferenças de pormenores, é aplicável ao direito pátrio, a discriminação por aquêle penalista estabelecida, convém expô-la. Enquanto os jurados – diz o citado autor – apreciam a culpabilidade do acusado, não só em relação ao fato principal, mas ainda no que concerne às circunstâncias acessórias que o podem agravar ou atenuar, – os magistrados da ‘cour d’assisses’ decidem sôbre a aplicação da pena em face do veredicto. Sobre estas bases se assentam as diferenças de funções; e sôbre essa discriminação funcional, baseia-se, por sua vez, a técnica do questionário. Aliás, o nosso MORAES MELO, com apoio em BORSANI e CASORATI, já havia elucidado também o assunto, ao ensinar que o critério atualmente adotado consiste em “conferir-se ao Júri o conhecimento das questões que diretamente se ocuparem do crime e da responsabilidade criminal do acusado, sejam puramente de fato ou se achem envolvidas com questão de direito, afetando-se ao conhecimento e resolução do presidente do tribunal tôdas as outras questões de direito e de fato’ (MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. v.  1. São Paulo: Saraiva, 1963, p.  35). Ou seja, é ‘necessário que se distinga, na sentença subjetivamente complexa do Tribunal do Júri, qual matéria é de competência dos Jurados – e, portanto, acobertada pela soberania – e qual matéria é de competência do juiz-presidente – despida, pois, do atributo da soberania. Como aos jurados cabe decidir sobre a existência do crime, incluindo qualificadora, e a autoria delitiva, somente com relação à decisão destas questões, a soberania dos veredictos pode ser justificativa para a não aplicação da vedação da reformatio in pejus. Por outro lado, como a fixação da pena, dentro dos limites mínimo e máximo cominados ao delito, é matéria afeta ao juiz presidente, e não aos jurados, em tal aspecto, deve ser vedada a reformatio in pejus indireta’. (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. t. II. São Paulo: Campus, 2007, p.  203). A soberania dos veredictos não autoriza (i) o conselho de sentença a decidir em dissonância com a lei material, nem, tampouco, (ii) o presidente do tribunal a ignorar a lei processual, que, no Código de Processo Penal, dispõe: ‘Art. 617. O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença’. ‘Art. 626. Julgando procedente a revisão, o tribunal poderá alterar a classificação da infração, absolver o réu, modificar a pena ou anular o processo. Parágrafo único. De qualquer maneira, não poderá ser agravada a pena imposta pela decisão revista’. A soberania do Júri não limita nem manieta o julgamento da revisão criminal. Como já insinuei,

o princípio da soberania não é absoluto, pois o tribunal técnico pode até absolver réu condenado injustamente pelos jurados, por força do princípio da plenitude de defesa no júri (art. 5º, inc. XXXVIII, ‘a’, da CF). Aliás, sob a perceptível semelhança ou identidade de alcance entre as normas processuais transcritas, faz muito viu a Corte que: ‘A razão é a mesma. A apelação só do réu e o pedido de revisão se equivalem, pois este é privativo do apenado. E se na apelação, como na revisão, a instância colegiada pode anular o processo, a ambas se impõe a sujeição da garantia atribuída ao réu, em jamais ter ele agravada a pena imposta’. (RHC nº 48.998, Rel. Min. THOMPSON FLORES, RTJ 60/348). Conferir ao Tribunal do Júri, chamado a rejulgar a causa após provimento de recurso exclusivo do réu, poder jurídico de lhe agravar a pena anterior, significaria transformar o recurso da defesa em potencial instrumento de acusação, ante as vicissitudes do novo julgamento, em clara afronta ao postulado do favor rei ou libertatis, que descende, em linhagem direta, da norma constitucional da chamada presunção de inocência (art. 5º, LVII). Ou seja, sob pretexto e no âmbito de julgamento de recurso da defesa, operar-se-ia, em dano do réu, autêntica revisão da sentença pro societate, em favorecendo a acusação, que não recorreu. ‘Não há dúvida – diz-se com acerto, ao propósito – que a equidade e o ‘favor libertatis’ têm certa influência aqui, como elemento ou causa do sistema existente. Repugna agravar a situação do réu provendo-lhe o próprio recurso, porque sem este o réu não teria pior condição, mormente quando ao que recorreu de modo nulo, ao desistente, se reconheceria melhor situação’. (GUSMÃO, Sady de, Recursos cíveis e criminaes. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio Rodrigues & C., 1936, pp. 105106). É mister insistir em que a soberania dos veredictos assegurada ao Tribunal do Júri não se reveste de caráter absoluto, como, aliás, qualquer outra garantia de índole constitucional. (A respeito, cf. RTJ 148/366, RTJ 173/805-810 e RTJ 190/139-143) (...)”. Em conclusão, o acórdão do HC n. 115.428 mereceu a seguinte ementa: Habeas corpus. Processual Penal. Homicídio qualificado tentado (CP, arts.  121, §  2º, IV, c/c o art. 14, II). Paciente condenado à pena de 8 (oito) anos de reclusão. Recurso exclusivo da defesa. Anulação do decisum. Designação de novo julgamento. Agravação da reprimenda. Impossibilidade. Ocorrência de reformatio in pejus indireta. (...) 1. Anulados o julgamento pelo tribunal do júri e a correspondente sentença condenatória, transitada em julgado para a acusação, não pode o acusado, na renovação do julgamento, vir a ser condenado a pena maior do que a imposta na sentença anulada, ainda que com base em circunstância não considerada no julgamento anterior (HC nº 89.544/RN, Segunda Turma, Relator o Ministro Cezar Peluso, DJe de 15/05/2009).

3. Ainda a Justa Causa 3.1. Habeas corpus contra a demora na prestação jurisdicional e para apressar o julgamento de outro writ. Possibilidade Se a entrega da prestação jurisdicional em prazo razoável já era uma exigência decorrente da garantia do devido processo legal consagrado no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal – tanto que já se conheciam habeas corpus antes da emenda Constitucional 45107 – essa garantia foi reforçada com a inserção do inciso LXXVIII no mesmo artigo pela EC 45/2004: “LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação;” (g.n.). Em obra de admirável fôlego, o Min. Gilmar Mendes registra que “a duração indefinida ou ilimitada do processo judicial afeta não apenas e de forma direta a ideia de proteção judicial efetiva, como compromete de modo decisivo a proteção da dignidade da pessoa humana, na

medida em que permite a transformação do ser humano em objeto dos processos estatais”108. Que a ação constitucional do habeas corpus é remédio que se caracteriza pela celeridade, representa a afirmação de um lugar comum que a doutrina e a jurisprudência, em uníssono, realçam109. Tanto é assim que já se decidiu pela dispensa de informações da autoridade apontada como coatora quando os autos já estavam devidamente instruídos (STF, despacho do Min. Ilmar Galvão no HC n.º 69.968-5-PR publicado no DJ de 02/12/1992) e mesmo do parecer ministerial quando escoado o prazo, pois “cumpre ao Relator dar sequência ao processo, máxime em se tratando de réu preso” (STJ, HC 1.484, rel. Min. Vicente Cernicchiaro, Sexta Turma, DJ 26/10/1992). Como gizou o Min. Marco Aurélio ao relatar o HC n. 106.336, “cumpre imprimir preferência a processo revelador de habeas corpus”, revelando a demora em mais de dois anos para julgar “verdadeira negativa de jurisdição”110. Sem embargo, não são poucos os casos penais, muitas vezes com réus presos, que se arrastam. Até mesmo os habeas corpus, que deveriam ser julgados com celeridade se arrastam. Há impetrações nos Tribunais Superiores que foram julgadas dois anos depois e há um no STF que está chegando na casa dos cinco anos sem julgamento. Para sanar o constrangimento ilegal decorrente da falta de prestação jurisdicional em matéria penal, o Supremo Tribunal Federal tem concedido habeas corpus seja para determinar a realização de julgamentos, seja para o exame de sanidade mental se realize111. O Min. Celso de Mello, em acórdão paradigmático averbou: O JULGAMENTO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS CONSTITUI PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. – O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do ‘due process of law’. O réu – especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade – tem odireito públicosubjetivo deser julgado, pelo PoderPúblico, dentro deprazo razoável, sem demora excessiva nem dilações indevidas. Convenção Americanasobre DireitosHumanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. – O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional. (HC 83773, 2ª T., DJ 06/11/2006)112. Posteriormente, em caso de demora no julgamento de outro writ no STJ, determinou-se que a prestação jurisdicional fosse entregue no prazo legal: HABEAS CORPUS. WRIT IMPETRADO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DEMORA NO JULGAMENTO. DIREITO À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. NATUREZA MESMA DO HABEAS CORPUS. PRIMAZIA SOBRE QUALQUER OUTRA AÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. O habeas corpus é a via processual que tutela especificamente a liberdade de locomoção, bem jurídico mais fortemente protegido por uma dada ação constitucional. O direito a razoável duração do processo, do ângulo do indivíduo, transmuta-se em tradicional garantia de acesso eficaz ao Poder Judiciário. Direito, esse, a que corresponde o dever estatal de julgar. No habeas corpus, o dever de decidir se marca por um tônus de presteza máxima. Assiste ao Supremo Tribunal Federal determinar aos Tribunais Superiores o julgamento de mérito de habeas corpus, se entender irrazoável a demora no julgamento. Isso, é claro, sempre que o impetrante se desincumbir do seu dever processual de pré-constituir a prova de que se encontra padecente de “violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (inciso LXVIII do art. 5º da Constituição Federal). Ordem concedida para que a autoridade impetrada apresente em mesa, na primeira sessão da Turma em que oficia, o writ ali ajuizado.” (HC 91.041, rel. p/acórdão Min. Carlos Britto, 1ª T., DJ 17.08.2007).

Em seu voto-vista, que se tornou condutor do aresto, o Min. Carlos Britto destacou que “de nada valeria declarar com tanta pompa e circunstância o direito à razoável duração do processo, se a ele não correspondesse o dever estatal de julgar. Dever que é uma das vertentes da altissonante regra constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (inciso XXXV do art.  5º). Dever, enfim, que, do ângulo do indivíduo, se transmuta em tradicional garantia de acesso eficaz ao Poder Judiciário (“universalização da Justiça”, também se diz) E, pergunta o e. Ministro, “se ao Judiciário nunca se permite dar o silêncio como resposta às demandas que lhe são submetidas, o que dizer em tema de apreciação de habeas corpus?”. A resposta vem a seguir: “Precisamente isto, parece-me: que o dever de decidir se marca por um tônus de presteza máxima. Presteza máxima que me parece de todo incompatível com a vaga informação de que – palavras do agente apontado coator – o julgamento ocorrerá em tempo ‘oportuno’”. Por fim, não descuidou o Ministro de levar em conta a sobrecarga de trabalho dos tribunais, especialmente dos Tribunais Superiores, mas, ponderou, “os jurisdicionados não podem pagar por um débito a que não deram causa. O débito é da Justiça e a fatura tem que ser paga é pela Justiça mesma”113. Em outra hipótese, a Primeira Turma do STF chegou a determinar a soltura do paciente: I – A constatação de evidente constrangimento ilegal permite o conhecimento de habeas corpus contra decisão liminar em writ anteriormente impetrado, mediante a flexibilização do teor da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes. II – Paciente acusado da prática de porte ilegal de arma de fogo, cuja sanção corporal não excede a 4 anos, ensejando a imposição de pena restritiva de direitos, ante a ausência de violência ou grave ameaça. III – Ademais, a demora no julgamento de writ impetrado junto ao Tribunal de Justiça da Bahia, e o fato de ser o paciente primário e possuir residência fixa, permitem responda ele ao processo em liberdade. IV – A circunstância de o paciente estar sendo investigado pela prática do delito de homicídio, por si só, não se mostra suficiente para a decretação de prisão preventiva sob o fundamento de garantia da ordem pública. V – Ordem concedida”114. Agora, também a demora no julgamento em Recurso Especial ensejou a concessão da ordem para que o STJ o apresente “em mesa para julgamento até a 5ª sessão, ordinária ou extraordinária, subsequente à comunicação da ordem”. A ementa do HC n. 136.435, da relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, diz o seguinte: I – O excesso de trabalho que assoberba o STJ permite a flexibilização, em alguma medida, do princípio constitucional da razoável duração do processo. II – Contudo, no caso dos autos, a situação caracteriza evidente constrangimento ilegal, uma vez que, passados mais de cinco anos de seu recebimento e distribuição, os autos permanecem, até esta data, sem julgamento de mérito, tendo em vista as sucessivas alterações de relatoria. III – Inaplicabilidade, na espécie, dos precedentes da Corte que afirmam não configurar ilícito a demora no julgamento do recurso decorrente de sucessão de Ministro egresso do STJ. IV– A demora demasiada para o julgamento do feito naquela Corte Superior, decorrente de elevado número de substituição de relatores, a saber, o total de cinco, configura negativa de prestação jurisdicional e flagrante constrangimento ilegal sofrido pelo paciente, apto a justificar a concessão da ordem para determinar o imediato julgamento daquela ação115. Com clareza percebe-se que a ofensa ao devido processo legal pela demora no julgamento, com o fundamento da falta de justa causa, permite o manejo do writ para se remediar a situação.

3.2. HC e questionamento da pena. Quando é possível Os Tribunais Superiores, de forma exaustiva, têm decidido que o habeas corpus não se presta à verificação de aspectos subjetivos na fixação da pena. Daí a torrente de julgados no sentido de que

é “válida a pena-base fixada acima do mínimo legal, quando o aumento é fundamentado no quadro fático-probatório da causa”116 ou de que “não se presta o habeas corpus para ponderar, em concreto, a suficiência das circunstâncias judiciais invocadas pelas instâncias de mérito para majorar a pena-base acima do mínimo”117. Idem o Min. Joaquim Barbosa no HC n. 96.500: (...) o conhecimento dessas questões (regime prisional e substituição da pena privativa de liberdade) demanda o reexame das circunstâncias judiciais avaliadas negativamente na sentença condenatória, não sendo o habeas corpus o meio processual adequado para tanto118. A despeito da torrencial jurisprudência demarcando os limites do habeas corpus para examinar a questão da dosimetria da resposta penal, é igualmente assente a ideia de que o exame fica circunscrito a “motivação [formalmente idônea] de mérito e à congruência lógico-jurídica entre os motivos declarados e a conclusão (v.g., HC 69.419, Pertence, RTJ 143/600)” ou, na síntese da Min. Rosa Weber: 1. A dosimetria da pena é matéria sujeita a certa discricionariedade judicial. O Código Penal não estabelece rígidos esquemas matemáticos ou regras absolutamente objetivas para a fixação da pena. Cabe às instâncias ordinárias, mais próximas dos fatos e das provas, fixar as penas. Às Cortes Superiores, no exame da dosimetria das penas em grau recursal, compete o controle da legalidade e da constitucionalidade dos critérios empregados, bem como a correção de eventuais discrepâncias, se gritantes ou arbitrárias, nas frações de aumento ou diminuição adotadas pelas instâncias anteriores119. Bem por isso, a 6ª Turma do STJ, pela voz da em. Min. Maria Thereza de Assis Moura, deixou assentado ser “patente desproporção no incremento da pena base em patamar superior ao dobro, dada a ocorrência de apenas uma circunstância negativa”120. Em oportunidade anterior, a mesma relatora, salientou: 2. Para o enfrentamento de teses jurídicas na via restrita, imprescindível que haja ilegalidade manifesta, relativa a matéria de direito, cuja constatação seja evidente e independa de qualquer análise probatória. 3. Hipótese em que há manifesta ilegalidade no tocante à pena-base, fixada no triplo do mínimo legal em razão de uma circunstância judicial desfavorável, o que se mostra desproporcional. O regime prisional também deve ser abrandado, embora as consequências do delito justifiquem a imposição do semiaberto121. No mesmo sentido a 5ª Turma em acórdão relatado pela Min. Laurita Vaz: A despeito de haver certa discricionariedade do Juiz na aferição das circunstâncias do art.  59 do Código Penal, deve fazê-lo objetivamente, respeitando o critério da proporcionalidade entre o aumento implementado e as circunstâncias judiciais consideradas desfavoráveis. No caso dos autos, está justificada a fixação da pena-base acima do mínimo legal nas consequências do crime, contudo, o Magistrado a fez de forma exacerbada e desproporcional, elevando em um terço a reprimenda com base em apenas uma circunstância judicial desfavorável122. Sobre a necessidade de a pena-base ser fixada proporcionalmente às circunstâncias judiciais previstas no artigo 59, do Código Penal, destaca-se outro acórdão do STJ: Verifica-se, na hipótese, a inequívoca ofensa aos critérios legais (art. 59, do Código Penal) que regem a primeira fase da aplicação da pena. Não se trata, aqui, de reavaliar a justiça da decisão, mas sim de ilegalidade decorrente da ausência de fundamentação e flagrante erro de técnica emanado da sentença. (...) Mesmo que se possa reconhecer a correção da sentença na avaliação dos antecedentes, das circunstâncias e consequências do crime, a quantidade da pena imposta ainda resta exacerbada, tendo em vista que, das oito circunstâncias previstas no artigo 59 do Código Penal, apenas três são consideradas desfavoráveis ao réu, sendo desproporcional, assim, a fixação da pena-base bem

próxima do máximo cominado pela lei123. Certamente viola o princípio da proporcionalidade adotar o aumento exacerbado da penabase unicamente em razão de dois fatores desfavoráveis, quando existem oito que devem ser sopesados. Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça: A discricionariedade permitida na fixação da pena privativa de liberdade, mormente nas duas etapas iniciais, deve ser exercida de forma ponderada, guardando sempre a devida e hipotética proporcionalidade com outras circunstâncias. A resposta penal, que deve procurar ser convincente e concretamente motivada, é de ser anulada quando manifestamente desproporcional124. Por outro lado, é pacífico na jurisprudência que “descabe tomar como circunstância judicial dado fático que integra a própria definição legal do crime”125 e, de idêntica maneira o bem protegido pelo próprio tipo penal126. Porque, sendo a circunstância invocada um elemento do crime “não pode ser levada em consideração para aumentar a reprimenda, sob pena de bis in idem”127. Enfim: Os motivos e circunstâncias do crime não podem ser analisados de forma desfavorável com base em fundamentos inerentes ao tipo penal, já sopesados pelo legislador para cominar a pena em abstrato para o crime. O acórdão recorrido violou o art.  59 do CP, pois deixou de apontar elementos acidentais mais graves do crime, que não participam da estrutura típica128. Também se mostra válido o writ para a aplicação de circunstancia atenuante quando esta se mostre induvidosa como se vê do decidido pelo STF no HC n. 101.909 da relatoria do Min. Ayres Britto: 2. A presunção de não culpabilidade trata, mais do que de uma garantia, de um direito substantivo. Direito material que tem por conteúdo a presunção de não culpabilidade. Esse o bem jurídico substantivamente tutelado pela Constituição; ou seja, a presunção de não culpabilidade como o próprio conteúdo de um direito substantivo de matriz constitucional. Logo, o direito à presunção de não culpabilidade é situação jurídica ativa ainda mais densa ou de mais forte carga protetiva do que a simples presunção de inocência. 3. O Supremo Tribunal Federal tem entendido que não se pode relacionar a personalidade do agente (ou toda uma crônica de vida) com a descrição, por esse mesmo agente, dos fatos delitivos que lhe são debitados (HC 102.486, da relatoria da ministra Cármen Lúcia; HC 99.446, da relatoria da ministra Ellen Gracie). Por outra volta, não se pode perder de vista o caráter individual dos direitos subjetivo-constitucionais em matéria penal. E como o indivíduo é sempre uma realidade única ou insimilar, irrepetível mesmo na sua condição de microcosmo ou de um universo à parte, todo instituto de direito penal que se lhe aplique – pena, prisão, progressão de regime penitenciário, liberdade provisória, conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos – há de exibir o timbre da personalização. Quero dizer: tudo tem que ser personalizado na concreta aplicação do direito constitucional-penal, porque a própria Constituição é que se deseja assim orteguianamente aplicada (na linha do “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, como sentenciou Ortega Y Gasset). E como estamos a cuidar de dosimetria da pena, mais fortemente se deve falar em personalização. 4. Nessa ampla moldura, a assunção da responsabilidade pelo fato-crime, por aquele que tem a seu favor o direito a não se autoincriminar, revela a consciência do descumprimento de uma norma social (e de suas consequências), não podendo, portanto, ser dissociada da noção de personalidade. 5. No caso concreto, a leitura da sentença penal condenatória revela que a confissão do paciente, em conjunto com as provas apuradas sob o contraditório, embasou o juízo condenatório. Mais do que isso: as palavras dos acusados (entre eles o ora paciente) foram usadas pelo magistrado sentenciante para rechaçar a tese defensiva de delito meramente tentado. É dizer: a confissão do paciente contribuiu efetivamente para sua condenação e afastou as chances de reconhecimento da tese alinhavada pela própria defesa técnica (tese de não consumação do crime). O que reforça a necessidade de desembaraçar o usufruto máximo à sanção premial da atenuante. Assumindo para com ele, paciente, uma postura de lealdade (esse vívido conteúdo do princípio que, na cabeça do art.  37 da Constituição, toma o explícito nome de moralidade). 6. Ordem concedida para reconhecer o caráter preponderante da confissão espontânea e determinar ao Juízo Processante

que redimensione a pena imposta ao paciente129. O mesmo relator, em julgado anterior, quando ainda integrava a 1ª Turma, sufragou o mesmo entendimento, ainda que houvesse posterior retratação em juízo: 1. “Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias:” (...) “g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada” (artigo 14, 3, “g”, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos). Esse efetivo direito a não se autoincriminar constitui uma das mais eminentes formas de densificação da garantia do processo acusatório e do direito à presunção de não culpabilidade. A revelar que o processo é o meio de plena demonstração da materialidade do delito e da autoria. 2. A confissão extrajudicial retratada em Juízo constitui circunstância atenuante (alínea “d” do inciso III do art. 65 do CP), quando embasar a sentença penal condenatória. O que se deu no caso concreto. 3. Ordem concedida130. Também o STJ, em caso no qual também houvera retratação da confissão feita na polícia, mas o juiz a utilizara para condenar, considerou imperiosa a aplicação da atenuante: 1. Saber se o quantum arbitrado, motivadamente, na fixação da pena-base pelo julgador a quo é adequado implica análise do conjunto fático-probatório, inviável em habeas corpus. 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de que deve ser aplicada a atenuante da confissão espontânea realizada perante a autoridade policial, ainda que retratada em juízo, desde que ela tenha, em conjunto com outros meios de prova, embasado a condenação. Ressalva do ponto de vista do relator que entende que a retratação afasta a incidência dessa atenuante. 3. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, concedida para anular parcialmente o acórdão da apelação no pertinente à dosimetria e determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem a fim de que refaça o cálculo da pena, com observância da incidência da atenuante relativa à confissão espontânea131. A motivação para a fixação da pena tem na fixação da pena “um de seus momentos culminantes”, disse-o, por todos, o Min. Carlos Britto ao relatar o HC n. 105.278. Naquela assentada registrou com inteira procedência: “Trata-se de garantia constitucional que junge o magistrado a coordenadas objetivas de imparcialidade e propicia às partes conhecer os motivos que levaram o julgador a decidir neste ou naquele sentido”132. Na sequência, ainda na ementa, registrou: 2. O Supremo Tribunal Federal junge a legalidade da pena ao motivado exame judicial das circunstâncias do delito. Exame, esse, revelador de um exercício racional de fundamentação e ponderação dos efeitos éticos e sociais da sanção, embasado nas peculiaridades do caso concreto, e no senso de realidade do órgão sentenciante. De outro modo não pode ser, devido a que o art. 59 do Código Penal confere ao Juízo sentenciante o poder-dever de estabelecer uma reprimenda apta à prevenção e simultaneamente à reprovação do delito, sempre atento o magistrado à concretude da causa. 3. O paciente se acha condenado pelo delito de tráfico de entorpecentes. Pelo que o caso é de calibração das balizas do art.  59 do Código Penal com as circunstâncias listadas na pertinente legislação extravagante. E o fato é que a pena-base está assentada num cuidadoso exame das circunstâncias que moldam o quadro fático-probatório da causa e em nada afronta as garantias da individualização da pena e da fundamentação das decisões judiciais (inciso XLVI do art. 5º e inciso IX do art. 93 da Constituição Federal). Mais: reprimenda que decorre da motivação estampada na sentença, não sendo de ser atribuída ao voluntarismo do julgador, como pretende a impetração. 4. A mera reiteração aos requisitos legais não supre a necessidade de fundamentação quanto à eleição do grau de redução pela minorante do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006. 5. Ordem parcialmente concedida para determinar ao Juízo Processante que refaça a

dosimetria da pena quanto à causa de diminuição da reprimenda. Juízo que deverá, considerando o que decidido no HC 97.256, da minha relatoria, examinar se estão presentes os requisitos da substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos (art.  44 do Código Penal). São comuns também a dupla valoração da mesma circunstância como motivação para se elevar a pena base e, posteriormente, como agravante, o que é inadmissível, sob pena de bis in idem. Exemplar, no ponto, o HC n. 94.692 relatado pelo Min. Joaquim Barbosa: Habeas Corpus. Dosimetria da pena. Reincidência. Bis in idem. Ocorrência. Ordem parcialmente concedida. Ocorrência, na fixação da pena, de bis in idem, pois a mesma circunstância – a reincidência – foi utilizada para aumentar a pena, na primeira fase da dosimetria, como circunstância judicial desfavorável, e depois, na segunda fase, como agravante prevista no art. 61, inc. I, do Código Penal. Ordem parcialmente concedida133. Outra vertente da matéria relativa à dosimetria da pena diz com a fração do aumento pela continuidade delitiva. O STJ tem entendimento pacífico segundo o qual: Penal. Processual. Crime Continuado. Aumento critério. Quantidade de delitos. 1. Em se tratando de crime continuado, o aumento da pena deve ser fixado segundo o número de infrações cometidas. Precedentes. 2. Pedido de habeas corpus concedido para reduzir de 2/5 para ¼ o aumento relativo à continuidade delitiva134. No corpo do v. acórdão lê-se: Em tema da continuidade delitiva de que trata o caput do art.  71 do Código Penal, tem entendido a doutrina, majoritariamente, que o melhor critério para a fixação do aumento de pena deve ser aquele que considera o número de crimes praticados. Quanto à questão da majoração pela continuidade delitiva é bem de ver que se o referencial básico é o número de infrações (2 crimes= 1/6, 3 crimes= 1/5, 4 crimes= ¼, etc.), pouco importa, in casu, se aos recorrentes eram imputados noventa ou trinta delitos. Na mesma linha, colocam-se outros julgados, embora decididos em Recurso Especial, “em se tratando de aumento de pena referente à continuidade delitiva, aplica-se a fração de aumento de 1/6 pela prática de 2 infrações; 1/5, para 3 infrações; 1/4, para 4 infrações; 1/3, para 5 infrações; 1/2, para 6 infrações e 2/3, para 7 ou mais infrações”135. Exatamente no mesmo sentido: AIEDARESP nº 830332, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 17/05/2016; HC nº 171396, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, j. 26/04/2016; HC nº 283720, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, j. 12/08/2014; AgRg no REsp nº 1169484, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, j. 06/11/2012. Desse entendimento não discrepa a doutrina: Guilherme de Souza Nucci, aludindo à lição de Flávio Augusto Monteiro, afirma: (...) no crime continuado, o único critério a ser levado em conta para dosar o aumento (1/3 a 2/3, no caput, até o triplo, no parágrafo único, do art.  71) é o número de infrações praticadas. É a correta lição de Fragoso, Lições de direito penal, p. 352. Sobre o aumento, Flávio Augusto Monteiro de Barros fornece uma tabela: para 2 crimes, aumenta-se a pena em um sexto; para 3 delitos, eleva-se em um quinto; para 4 crimes, aumenta-se em um quarto; para 5 crimes, eleva-se em um terço; para 6 delitos, aumenta-se de metade; para 7 ou mais crimes, eleva-se em dois terços (Direito penal Parte geral, p. 447)136.

3.3. HC para trocar de regime; para colocação em prisão especial, para ser removido para estabelecimento definido, mas não cumprido e para ficar mais perto da família. Possibilidade.

Prisão é prisão, mas há uma enorme diferença entre a constrição que se tem no regime fechado e a imposta no semiaberto. Esse espaço maior de liberdade é a chamada “liberdade juridicamente relativa” (STF, RT 583/452) que pode ser tematizada na via do habeas corpus desde que para isso não se tenha que analisar os aspectos subjetivos relativos à promoção de regime. Assim, por exemplo, quando se trata de condenação que, a despeito da quantidade de pena permitir a imposição de regime mais brando, mas em razão da simples presunção de periculosidade do agente, derivada da natureza do crime, fixa o regime fechado, cabe habeas corpus para superar o constrangimento ilegal137. Idem quando se tratar da imposição de regime mais severo unicamente em razão da natureza do crime138, tema hoje sumulado (STF, S. 718). Da mesma maneira, em casos de prisão especial para policiais civis, que contam, ao menos no Estado de São Paulo, com um presídio especial, o STF em reiteradas oportunidades concedeu habeas corpus para pacientes que estavam colocados em “xadrezes especiais”. A burla de etiquetas não só foi repelida, como reafirmado o cabimento do writ para desfazer o constrangimento ilegal139. Até mesmo para que o preso fosse transferido para estabelecimento prisional mais próximo da residência de seus familiares, o STF já concedeu habeas corpus: 1. O art. 86, caput, da LEP permite o cumprimento da pena corporal em local diverso daquele em que houve a perpetração e consumação do crime. 2. Entretanto, o exame minucioso de cada caso concreto pode afastar o comando legal supramencionado, desde que comprovadas as assertivas de falta de segurança do presídio destinatário da remoção, participação do preso em facção criminosa e outras circunstâncias relevantes à administração da Justiça. Ônus do Parquet. 3. No caso sob exame, não ficou demonstrado o perigo na transferência, tampouco a periculosidade, ao contrário, porquanto são prisões aptas ao cumprimento de pena em regime fechado, além do que o vínculo familiar, a boa conduta carcerária e a respectiva vaga foram documentalmente demonstrados pelo paciente. 4. A ressocialização do preso e a proximidade da família devem ser prestigiadas sempre que ausentes elementos concretos e objetivos ameaçadores da segurança pública140. Outra questão dramática diz com a falta de vagas no regime mais benigno e que, comumente, acarreta a manutenção do preso em estabelecimento prisional inadequado e cerceador de sua liberdade, ainda que relativa. O Supremo Tribunal Federal em acórdão da lavra do Min. Ricardo Lewandowski já decidiu: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. REGIME DE CUMPRIMENTO. SEMI-ABERTO. AUSÊNCIA DE VAGAS. DEFICIÊNCIA DO ESTADO. REGIME MAIS BENÉFICO. ORDEM CONCEDIDA. I – Consignado no título executivo o regime semi-aberto para o cumprimento da pena, cabe ao Estado o aparelhamento do Sistema Penitenciário para atender à determinação. II – À falta de local adequado para o semi-aberto, os condenados devem aguardar em regime mais benéfico até a abertura de vaga. III – Ordem concedida. (HC nº 94.526/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, DJU 29/08/2008). Não são diferentes as decisões do Superior Tribunal de Justiça: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO. PROGRESSÃO DE REGIME. PLEITO DEFERIDO PELO JUÍZO DAS EXECUÇÕES. RÉU MANTIDO NO REGIME FECHADO. AUSÊNCIA DE VAGAS EM ESTABELECIMENTO DESTINADO PARA O DESCONTO DA PENA NO REGIME SEMI-ABERTO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. Configura-se constrangimento ilegal a manutenção no regime fechado, ainda que provisoriamente, se evidenciado que o paciente, após o desconto de 1/6 da reprimenda, obteve o direito de progredir para o regime menos gravoso. 2. Nos termos da jurisprudência consolidada desta Corte, evidenciada inadequação da Delegacia de Polícia de Ribas do Rio Pardo/MS para o cumprimento de pena em regime intermediário, impõe-se a transferência do paciente para estabelecimento compatível com tal regime, sendo que, no caso de inexistência de vagas, excepcionalmente, a pena deve descontada em regime aberto, sendo admitido o regime domiciliar, na ausência de casa de albergado, até que o Juízo das Execuções assegure ao paciente vaga em estabelecimento próprio ao regime semi-aberto.

3. Restando configurado o alegado excesso de execução, deve ser concedida a ordem, confirmando a medida liminar antes deferida, para que o paciente seja transferido para o regime semi-aberto, ou, não sendo isto possível, que aguarde a abertura de vaga no semi-aberto em regime aberto, a ser cumprido no estabelecimento legal próprio, se por outro motivo não estiver preso, ou em regime domiciliar, na hipótese de inexistência de Casa de Albergado. 4. Ordem concedida, nos termos do voto da Relatora. (HC 81.707/MS, Rel. Min. Jane Silva, 5ª Turma, DJ. 01/10/2007). Como quer que seja, hoje o tema está pacificado com a edição da Súmula Vinculante n. 56, segundo a qual: “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do  condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa  hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS”. A não observância desta súmula enseja a apresentação de Reclamação perante o Supremo Tribunal Federal diretamente. Também se tem admitido o uso do writ para a obtenção do regime semiaberto quando a imposição do fechado não esteja fundamentada de forma idônea. Assim, em decisão monocrática, mas com força de acórdão o Min. Luis Roberto Barroso no HC n. 138.862 ao conceder a ordem: 1. A jurisprudência consolidada do STF fixou orientação no sentido de que “A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea” (Súmula 719/STF). 2.Hipótese em que a pena final aplicada ao paciente, primário e de bons antecedentes, é compatível com o regime prisional semiaberto, nos exatos termos do art. 33, § 2º, “b”, do CP. 3.Ordem concedida para fixar o regime semiaberto141.

3.3.1. Para obter a saída temporária independentemente do lapso temporal O art.  123 da Lei de Execução Penal autoriza a concessão de saída temporária desde que o apenado cumpra com três requisitos: (i) ostentar comportamento adequado; (ii) demonstrar ser a saída temporária um benefício compatível com os objetivos da pena; e (iii) ter cumprido no mínimo 1/6 da pena. Todavia, quando se trata de sentenciado que cumpra diretamente a pena no regime semiaberto, a exigência do cumprimento do lapso de 1/6 para só então poder usufruir do benefício da saída temporária significa, na prática, que ele não poderá fruí-lo. É que, cumprido este lapso, ele já poderá progredir para o regime aberto. Daí porque a jurisprudência do STF abrandou a exigência para dispensar a exigência do referido lapso. Em decisão da lavra do Min. Roberto Barroso, decidir o seguinte: Assim como na hipótese de trabalho externo, considero que a exigência do requisito temporal esvaziaria o instituto da saída temporária e a própria possibilidade, relevante para a ressocialização, de estudo externo. Afinal, ao alcançar o cumprimento de 1/6 da pena, o condenado que dispõe de condições pessoais aptas a justificar a saída do estabelecimento penal sem vigilância teria, em rigor, direito à progressão ao regime aberto (Execução Penal nº 12, DJe 31/07/2014). Trata-se de entendimento já adotado por outros Tribunais que enfrentaram a questão e, atentos à importância do instituto e sua influência direta nos objetivos da execução da pena, pautaram-se no julgamento do col. Supremo Tribunal Federal: Em razão da necessidade de reinserção e ressocialização da apenada no meio social, consubstanciada na aproximação desta com seus familiares, especialmente em datas de natureza comemorativa, não seria justo fazer com que aquela aguarde o cumprimento de 1/6 da pena infligida para que, assim, possa usufruir dos benefícios inerentes da saída temporária. Precedentes do STF e do TJPA; 02. Em se tratando de pedido de saída temporária, este e. Tribunal sedimentou o entendimento de que se pode dispensar o requisito previsto no art.  123, inciso II, da LEP. Cumprimento de 1/6 da pena definitiva. Precedentes. 03. Ordem conhecida e concedida a unanimidade (TJPA, HC nº 0012741-86.2015.8.14.0000, Rel. Des. Leonam Gondim da Cruz Junior, J. 24/08/2015).

EXECUÇÃO PENAL. AGRAVO. SAÍDA TEMPORÁRIA. APENADO PRIMÁRIO. REGIME INICIAL SEMIABERTO. DISPENSABILIDADE DO CUMPRIMENTO DE 1/6 DA PENA. O apenado que iniciou o cumprimento da pena no regime semiaberto tem direito à saída temporária, independente do cumprimento de 1/6 da pena imposta, desde que preenchidos os demais requisitos do art.  123 da Lei de execução penal. Precedentes deste tribunal. Agravo desprovido. Decisão mantida (TJRS, AG nº 0337885-77.2014.8.21.7000, Rel. Des. Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, DJe 22/01/2015). AGRAVO EM EXECUÇÃO. REGIME INICIAL SEMIABERTO. SAÍDA TEMPORÁRIA. REQUISITO OBJETIVO. CUMPRIMENTO DE 1/6 DA PENA. PERMISSÃO DE SAÍDA. FREQUENCIA A CULTOS RELIGIOSOS. 1 – A essência do regime semiaberto é possibilitar ao sentenciado o convívio simultâneo com a sociedade, sendo suas principais ferramentas de promoção a possibilidade de o apenado prestar serviço externo e usufruir de saída temporária, com finalidade ressocializadora, nos termos do art. 122 da LEP. Ao cumprir 1/6 da pena, já terá direito, em tese, à progressão para o regime aberto. Portanto, incabível a exigência do cumprimento do referido lapso temporal para a concessão do benefício da saída temporária ao apenado que iniciar o cumprimento da pena em regime semiaberto, sob pena de inviabilização do direito ao referido benefício legal (TJRS, AG nº 321512-05.2013.8.21.7000, Rel. Des. Francesco Conti, DJe 12/09/2013). AGRAVO EM EXECUÇÃO. CONCESSÃO DE SAÍDA TEMPORÁRIA. CONDENADO EM REGIME INICIAL SEMIABERTO. IMPLEMENTAÇÃO DO REQUISITO ESTABELECIDO PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL. Nada obstante inexigível o cumprimento de 1/6 da pena para obtenção de saídas temporárias quando o condenado já inicia a sua prestação da pena privativa de liberdade em regime semiaberto, no presente caso verifica-se que o apenado já cumpriu o requisito exigido pelo juízo das execuções criminais quando do indeferimento do pedido, não havendo óbice, no momento, à concessão da benesse. Agravo provido (TJRS, AG nº 61057613.2011.8.21.7000, Rel. Des. José Conrado Kurtz de Souza, DJe 23/02/2012). Ademais, é manifestamente contraproducente e contraditório impedir a ressocialização do preso e o seu contato com a família quando “uma das importantes metas da execução penal é promover a reintegração do preso à sociedade”142. Agora, o TJSP, em decisão liminar da lavra do Des. Willian Campos, referendou a desnecessidade do cumprimento do lapso de 1/6 para a concessão da saída temporária para quem já esteja no regime semiaberto: Vistos... A questão deve ser analisada com certo tempero, posto que a saída temporária é concedida exclusivamente para os presos em regime semiaberto. Forçoso reconhecer que o cumprimento de 1/6 da pena já permite a modificação do regime para o aberto. Conclui-se, assim, que tal exigência do lapso temporal tornará a concessão do benefício inócua, pois não necessitará de autorização alguma no regime aberto. A saída temporária foi criada dentro do espírito de ressocialização, possibilitando ao presidiário uma readaptação social e também representativa de um prêmio pelo bom comportamento. Abstraindo-se a questão do lapso temporal, há que se admitir como bastante benéfica para ressocialização a saída temporária justamente no Natal e Ano Novo, que são festas da família. São sete dias que só poderão contribuir para a reeducação, reflexão e maior aproximação da família. Por fim, reconheço que a possibilidade da saída temporária deve ser sempre analisada à luz do regime em que se executa a pena, sob pena de se tornar um benefício inexequível. Concedo, assim, a liminar, para deferir ao paciente a saída temporária de natal e fim de ano, comunicando-se essa decisão com urgência à autoridade impetrada143.

3.4. Para a mãe obter prisão domiciliar a fim de cuidar de filhos menores Em caso gravíssimo, no qual a paciente se via processada pela suposta prática dos crimes previstos nos artigos 159 do Código Penal; 1º, I, a, da Lei nº 9.544/94; e 14 da Lei nº 10.826/03 e estava presa preventivamente há seis meses, a 5ª Turma do STJ, no RHC n. 71.697, em acórdão da lavra do Min. Joel Paciornik, proveu o recurso para lhe conceder a prisão domiciliar a fim de cuidar das filhas menores e dela dependentes (DJe 23/11/2016).

A 14ª Câmara Criminal do TJSP havia denegado a ordem sob o argumento simplório de que “não se logrou demonstrar que as crianças não poderiam contar com os cuidados de pessoa diversa, familiar ou não, estando ausente, assim, o requisito da imprescindibilidade”144. No entanto, a Lei nº 13.257/16, em vigor desde o dia 9 de março de 2016, alterou a redação do art. 318 do Código de Processo Penal para incluir dentre as hipóteses de substituição a de “mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos” e questão da imprescindibilidade deve ser aferida com muita cautela de modo a não se anular o permissivo legal, pois sempre se poderá dizer que “alguém” poderá cuidar dos filhos da presa. Por outro lado, nos termos do art. 227 da Constituição Federal, é dever do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. O Estatuto da Criança e do Adolescente assegura às crianças a proteção integral, garantindo a elas “por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (art. 3º). É por isso que a Lei nº 12.403/2011 passou a determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar nos casos em que o agente for “imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência” (art. 318, III, do CPP), redação agora alterada para abarcar toda “mulher com filho menor de 12 anos” (art. 318, V, do CPP). Atento aos comandos legais, o Superior Tribunal de Justiça, no HC 288.752, em acórdão da relatoria do Min. Jorge Mussi, realçou que a previsão legislativa em foco tem como o objetivo resguardar as crianças, que nada têm a ver com o processo a que responde sua genitora: Ao Estado incumbe assegurar, seja de forma negativa ou positiva, a saúde física e mental do cidadão. É um direito social, de cumprimento obrigatório pelo Estado, objeto, também, do art. 4o do Estatuto da Criança e do Adolescente, que o prevê, juntamente com outras obrigações, como deveres do Poder Público: (...). E, afastado do amor e carinho maternos, os infantes estariam sendo penalizados em sua educação e desenvolvimento, e não pode o Estado, a quem incumbe o dever de cuidado, assistência e proteção às crianças, omitir-se diante de tal situação. Não pode ser ele, através de um de seus poderes, o Judiciário, o causador de tamanho transtorno à saúde física e mental de duas crianças menores de 6 (seis) anos de idade, sendo uma delas dependente de cuidados especiais. Trata-se, aqui, de uma maneira de não extrapolar os limites de uma reprimenda imposta à mãe em relação a seus filhos, crianças inocentes que nada têm a ver com a necessidade de punição ou segregação de sua genitora. Desse modo, melhor que se permita à paciente aguardar em prisão domiciliar o julgamento da ação penal a que responde, a fim de que possa dar a devida assistência aos seus filhos menores, dela dependentes, necessária ao regular desenvolvimento dos infantes, sem, porém, furtar-se à eventual aplicação da lei penal e à devida instrução do processo a que responde, mais em atenção aos inocentes infantes do que a si própria” (HC 288.752, Ministro Jorge Mussi, 5a T., julgado em 05/06/2014, DJe 18/06/2014). Por outro lado, de acordo com o autorizado magistério de Gustavo Badaró “embora o art. 318 utilize o verno poderá, é de se considerar que, demonstrada a hipótese de incidência do art. 318, o juiz deverá determinar o cumprimento da prisão preventiva em prisão domiciliar”145, independentemente da gravidade do fato imputado, como se vê do acórdão em que se discutia a aplicação da prisão domiciliar para detento debilitado e pode valer, igualmente, para o da mãe. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO DOMICILIAR. REQUISITOS

PRESENTES. ORDEM CONCEDIDA. 1. Dispõe o art. 318, inc. II, do Código de Processo Penal, que “Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (...) II – extremamente debilitado por motivo de doença grave”. 2. In casu, reconhecido o estado debilitado do paciente e a falta de estrutura do presídio, faz ele jus ao benefício. A motivação empregada para negar a benesse (gravidade do crime) é inidônea. 3. Ordem concedida, confirmando a liminar, para substituir a prisão preventiva do paciente pela prisão domiciliar, nos moldes a serem estabelecidos pelo juízo, até o restabelecimento do estado de saúde que permita o seu retorno ao sistema prisional. (HC 335.379/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6a T., julgado em 10/11/2015, DJe 25/11/2015). Em caso de acusada por tráfico e associação para o mesmo fim, o STJ superou o óbice da súmula 691 para determinar o recolhimento domiciliar com fundamento na doutrina da proteção integral e art. 227 da Constituição Federal: HABEAS CORPUS. DECISÃO DE DESEMBARGADOR RELATOR QUE INDEFERIU PEDIDO LIMINAR. SÚMULA 691/STF. SUPERAÇÃO. ARTIGOS 33, CAPUT E 35, CAPUT, AMBOS DA LEI N. 11.343/2006. PRISÃO DOMICILIAR. FILHO MENOR DE 6 ANOS. PECULIARIDADES CONCRETAS. MEDIDA SUFICIENTE PARA A GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. FLAGRANTE ILEGALIDADE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Nos termos do enunciado da Súmula n. 691 do Supremo Tribunal Federal, “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar”. 2. Tal impeditivo é ultrapassado somente em casos excepcionais, nos quais a ilegalidade é tão flagrante de modo a não escapar à pronta percepção do julgador, como na hipótese dos autos. 3. O juiz deverá substituir a prisão preventiva do acusado pela prisão domiciliar, quando o agente for imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade e tal medida revelar-se útil e suficiente como alternativa à prisão ad custodiam. 4. No caso dos autos, a paciente não ostenta registros criminais, os contornos da sua participação delitiva não estão muito bem delineados e ela comprovou ser genitora de duas crianças, uma delas de um ano. 5. Assim, a prisão domiciliar deve ser deferida, por razões humanitárias, em decorrência da doutrina da proteção integral à criança e do princípio da prioridade absoluta, previstos no art. 227 da Constituição Federal, no ECA e, ainda, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada pelo Decreto Presidencial n. 99.710/90, mesmo porque a medida cautelar revela-se adequada para a salvaguarda da ordem pública, diante das condições favoráveis que a paciente ostenta (primariedade e residência fixa) e das peculiaridades do caso, em que o juiz de primeiro grau não demonstrou ser a cautela extrema a única idônea a tutelar a ordem pública. 6. A violação da prisão domiciliar enseja o restabelecimento da prisão preventiva, que também pode ser novamente aplicada pelo julgador, se sobrevier situação que configure a exigência da cautelar mais gravosa. 7. Habeas Corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para substituir a prisão preventiva por prisão domiciliar. (HC 291.439/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6a T., julgado em 22/05/2014, DJe 11/06/2014). Em caso recente no qual a paciente era acusada de integrar facção criminosa, o STJ também determinou o seu recolhimento domiciliar: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DO RECURSO PRÓPRIO (NÃO CONHECIMENTO). ASSOCIAÇÃO

PARA O TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. DOIS FILHOS MENORES DE 6 ANOS. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL RECONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. (...) 3. Caso em que foram colhidas interceptações telefônicas durante o procedimento investigatório criminal, onde se identificaram diálogos entre a paciente e um integrante de facção criminosa, que figura como seu companheiro. (...) 5. A teor do art.  227 da Constituição da República, a convivência materna é direito fundamental dos filhos da paciente. Também o ECA e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada pelo Decreto nº 99.710/1990, garantem que a prisão domiciliar seja deferida por razões humanitárias, diante das peculiaridades do caso concreto. 6. Writ não conhecido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício para substituir a prisão preventiva da paciente por prisão domiciliar, mediante monitoração eletrônica, aos ditames do art. 318, III, c/c o art. 319, IX, ambos do CPP. (HC 295.473/MT, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5a T., julgado em 25/08/2015, DJe 01/09/2015). Igualmente se permitiu o recolhimento domiciliar de acusada de homicídio duplamente qualificado, esclarecendo que eventual descumprimento das condições da prisão domiciliar implica no imediato restabelecimento da custódia: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. MOTIVO TORPE E EMPREGO DE RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. PRISÃO PREVENTIVA. RECORRENTE GRÁVIDA E COM DOIS FILHOS MENORES. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. POSSIBILIDADE DE COLOCAÇÃO DA AGENTE EM PRISÃO DOMICILIAR. EXEGESE DO ART. 318, III, DA LEI 12.403/2011. QUESTÃO NÃO DISCUTIDA NO ARESTO COMBATIDO. SUPRESSÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL RECONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Com o advento da Lei 12.403/2011, permitiu-se ao juiz a substituição da prisão cautelar pela domiciliar quando o agente for imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência e a providência revelar-se suficiente como alternativa à constrição provisória. 2. Não obstante a gravidade da imputação, a excepcionalidade da situação em que se encontra a recorrente, que está grávida e possui dois filhos menores, um deles com apenas 3 (três) anos de idade, justifica que, por razões humanitárias, pelo bem das crianças que merecem os cuidados da mãe, se permita que aguarde em prisão domiciliar o julgamento da ação penal a que responde perante o Juízo singular. 3. Os predicados pessoais favoráveis da agente – primária, sem registro de outros envolvimentos criminais, com residência fixa e profissão definida –, reforçam a conclusão pela suficiência e adequação do benefício. 4. Eventual descumprimento das condições da prisão domiciliar implicará no imediato restabelecimento da constrição preventiva. 5. Recurso ordinário não conhecido, concedendo-se, contudo, a ordem de habeas corpus de ofício, para substituir a prisão preventiva da recorrente por domiciliar, nos termos do art. 318, III, do CPP, devendo o Juízo singular ficar responsável pela fiscalização do cumprimento do benefício. (RHC 49.537/CE, Rel. Min. Jorge Mussi, 5a T., julgado em 07/10/2014, DJe 23/10/2014). Ainda, a 5ª Turma do STJ, no RHC n. 71.697, em acórdão da lavra do Min. Joel Paciornik, ementou a seguinte decisão: 1. Embora o pedido originário tenha ocorrido antes da edição da Lei n. 13.257/2016, o presente recurso será analisado à luz do inciso III e do inciso V, introduzido pela referida lei, por se tratar de

lei posterior mais benéfica. 2. O inciso V, introduzido pela Lei n. 13.257/2016, não trouxe maiores detalhamentos sobre os requisitos subjetivos a serem atendidos para conversão da prisão preventiva em domiciliar. No caput do art.  318 do Código de Processo Penal encontra-se a previsão de que o Juiz poderá converter a prisão preventiva em domiciliar. Dessa forma, essa análise deve ser feita caso a caso, pois se por um lado não existe uma obrigatoriedade da conversão, por outro a recusa também deve ser devidamente motivada. O requisito objetivo está atendido, uma vez que a recorrente possui duas filhas menores, uma com 7 e outra com 9 anos. No tocante ao preenchimento do requisito subjetivo, ainda que se trate de crime equiparado a hediondo, pesa em favor da paciente o fato de se tratar de acusada primária, com bons antecedentes, residência fixa e cuja atenuante da confissão espontânea foi reconhecida na sentença condenatória. Assim, considerando que a presente conduta ilícita se trata de fato isolado na vida da paciente, acrescido ao fato de que até o momento da prisão era ela a responsável pela guarda, criação e orientação das menores, mostra-se adequada a conversão da custódia cautelar em prisão domiciliar (DJe 23/11/2016). Coroando a jurisprudência humanitária, ao julgar o HC n. 143.641 em 21/02/2018, a 2ª Turma do STF concedeu habeas corpus coletivo para permitir que todas as mulheres gestantes, e mães com filhos até doze anos presas preventivamente possam obter o regime de prisão domiciliar. O Ministro Ricardo Lewandowski, condutor do aresto, com apoio em outro julgado da relatoria do Min. Marco Aurélio, retratou o sistema penitenciário brasileiro como gerador de: “forte violação de direitos fundamentais, alcançando a transgressão à dignidade da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial justifica a atuação mais assertiva do Tribunal” (cf. ADPF 347 MC/DF). Essa falha estrutural, referendada por todos os ministros da Corte, implica na necessidade de o Tribunal exercer função típica de racionalizar a concretização da ordem jurídico-penal de modo a minimizar o quadro” de violações a direitos humanos que vem se evidenciando, salientou o Min. Lewandowski, de modo a se impedir maior violência contra as mulheres gestantes e mães com filhos menores de 12 anos. Ao final a ordem foi concedida nos seguintes termos: (...) para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelo juízes que denegarem o benefício. Depois, a ordem foi estendida de ofício “às demais as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições previstas no parágrafo acima”146.

4. Quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo Embora, como já dito, seja possível entender que a hipótese de a coação emanar de autoridade incompetente esteja abarcada no item da justa causa, ou mesmo na da nulidade (CPP, art. 648, VI), o legislador de 1941 optou por destacar e explicitar esta situação inserindo-a no art. 648, inc. III, do CPP, o que reforça a tese de que o writ se presta ao controle da legalidade da ação penal ou, na técnica constitucional, ao cumprimento do devido processo legal. Aliás, mesmo sob a égide da Lei n. 2.033, de 20 de setembro de 1871, que no seu art.  18, § 2º, proibia reconhecer-se “constrangimento ilegal na prisão determinada por despacho de pronúncia, ou sentença da

autoridade competente, qualquer seja a arguição conta tais atos, que só por meios ordinários podem ser nulificados”, a jurisprudência desde então, segundo a precisa anotação de Florêncio de Abreu, sempre reconheceu a nulidade pela via do habeas corpus147. De resto, a jurisprudência do STF sempre afirmou a possibilidade do manejo do writ, pois “ainda que livre o paciente pode o habeas corpus dirimir questões de competência”148. E, em outro julgado, do qual fora relator o Min. Soares Muñoz, o Supremo volta a reiterar que “o habeas corpus é meio judicial apto para suscitar a incompetência absoluta do juiz. Embora o paciente não esteja preso, o procedimento criminal, pelo séquito de gravames que acarreta ao acusado, importa em restrição de sua liberdade de ir e vir149. Após a Constituição de 1988, que proclamou, como garantia do acusado, i. a proscrição do juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, inc. XXXVII) e ii. o correlato direito de ser processado e sentenciado apenas “pela autoridade competente” (art.  5º, inc. LIII) fica reforçado o comando processual constante do art. 648, III, para atender a esta garantia fundamental de natureza processual. Esta, por sua vez, ganha relevo porque é corolário da garantia do Juiz Natural o asseguramento da imparcialidade do juiz. Para Gustavo Badaró a “palavra juiz não se compreende sem o qualificativo de imparcial”150. Por outro lado, o tema da competência tem despertado muita atenção, pois como salientou a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, “o exercício da jurisdição pressupõe a existência de órgãos julgadores dotados de competências infensas a alterações artificiosas. Daí a necessidade de regras claras que confiram segurança ao sistema de processo/julgamento das infrações penais”151. Como alertam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães e Antonio Scarance: É certo que no constitucionalismo norte-americano o princípio do juiz natural, como juiz competente, se prendeu à competência territorial, para resguardar o foro da consumação do delito. Mas é certo também que as Cartas de Direitos e a própria Emenda VI à Constituição Federal asseguraram expressamente ao acusado o julgamento no locus commissi delicti. Não é essa a situação no sistema brasileiro, em que as Constituições atribuem aos órgãos jurisdicionais as competências de jurisdição, funcional e objetiva, sem preocupar-se com a competência de foro, regulada pelos códigos. Assim, é acertada a afirmação de que o juiz natural, no ordenamento jurídico brasileiro, é o órgão constitucionalmente competente, ou seja, aquele cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais152. Sem embargo, não raro se nota uma tendência a se fixá-la a partir do critério da conexão, cuja amplitude pode criar a figura do “Juiz Nacional”, competente para conhecer tudo e todos os casos penais no país, ainda que remotamente conexos. É, para citar um exemplo eloquente, o que se vê na operação Lava Jato. No dizer de Gustavo Badaró, “o perigo é que quanto mais elástica for a interpretação sobre ocorrência de conexão, com maior facilidade se poderá burlar a garantia do juiz natural”153. Daí o Pleno do STF na Questão de Ordem suscitada no Inquérito n. 4.130, sob a relatoria do Min. Dias Toffoli, ter gizado que “nenhum órgão jurisdicional pode-se arvorar de juízo universal de todo e qualquer crime relacionado a desvio de verbas para fins político-partidários, à revelia das regras de competência”154. Outra vertente desta matéria a ensejar inúmeros questionamentos de competência tem a ver com o foro por prerrogativa de função e seu tratamento pouco objetivo por parte da jurisprudência do STF. Vejamos a casuística.

4.1. Crime ambiental em Paraty (RJ) e a prorrogatio jurisdicionis (RJ) O STJ havia fixado a competência da Justiça Federal para apuração dos crimes ambientais e o de desacato aos funcionários do IBAMA por conta de estes serem funcionários públicos federais (Conflito de Competência n. 54.905, DJ 26/03/2007). Considerados isoladamente, os crimes ambientais seriam da competência da Justiça Estadual. Posteriormente, veio a ser declarada a ocorrência da prescrição do crime de desacato, único a atrair a competência federal. Poderia a ação penal continuar a tramitar perante a Justiça Federal? Aplica-se ao processo penal o princípio da perpetuatio jurisdictionis?

A matéria foi discutida no HC n. 108.350 assim ementado: 1. Na hipótese de conexão entre crime de desobediência de servidor federal e crimes ambientais, em que existiu atração do processamento/julgamento para a Justiça Federal, sobrevindo prescrição do crime contra a Administração Pública, desaparece o interesse da União, devendo haver o deslocamento da competência para a Justiça Estadual. 2. Ordem concedida para determinar o envio dos autos da ação penal para o Juízo estadual, que se tornou o competente para processar e julgar os crimes ambientais em questão155. No corpo do aresto ficou explicitado o seguinte: A garantia do juiz natural, uma das mais significativas conquistas do indivíduo, representa importante meio de assecuração da imparcialidade dos juízes e tribunais, achando-se, de há muito, consagrada na ordem internacional. (...) No direito brasileiro, a garantia, entendida em seu duplo significado, qual seja de proibição de tribunais extraordinários, ex post facto, e de juiz, constitucionalmente, competente, integra a cláusula do devido processo legal, remontado sua inserção nos textos legais à época do Império. (...) No tocante ao outro aspecto essencial da garantia, voltado à exigência de autoridade, constitucionalmente, competente, não se pode negar que ela se acha conectada aos cânones da anterioridade e da legalidade, de tal modo que a competência deve emanar, primeiro, do próprio texto da Lei Maior. Ressalta, a propósito, Rogério Lauria Tucci, trazendo ensinamento de Calamandrei, que o ‘juiz natural ‘constitui necessária integração da irretroatividade da lei’, sendo, por isso, a garantia que se presenta inseparável do sistema da legalidade’. (...) Aqueles que assim sustentam, dentre os quais nos posicionamos, entendem que o dispositivo constitucional configura regra de direito intertemporal, assegurando ao acusado o direito de somente ser processado e julgado pela autoridade competente ao tempo da conduta ilícita. Vale dizer, as disposições constitucionais exigem a ‘preconstituição do órgão jurisdicional penal competente’.” (Alteração da competência da justiça militar. In: Justiça penal 7: críticas e sugestões. São Paulo: Ed. RT, 2000. p. 233 e ss.). Depois, sustentou-se que “Diante das considerações trazidas a lume, acerca da fragilidade técnica da aplicação extensiva da perpetuatio jurisdictionis do processo civil ao penal, acredito que a pretensão é de ser acolhida”. É que, na esteira de precedente do extinto Tribunal Federal de Recursos, se o juiz federal não proferiu sentença de mérito, não subsiste a sua competência156. A importante conclusão do julgado é no sentido de que por mais que a Justiça Federal se enquadre no conceito de justiça comum, “é especial diante da Justiça Estadual”. Portanto, “dado o seu caráter excepcional, como ocorre nas hipóteses em que há competência por prerrogativa de função, cessada a razão de sua existência, e, não tendo sobrevindo julgamento de mérito”, de rigor é o deslocamento do feito para a Justiça Estadual.

4.2. Prevenção inexistente e possibilidade do manejo do writ contra a decisão que rejeita a exceção de competência Em meados de 2006, foi deflagrada em Cuiabá (MT) a denominada “Operação Sanguessuga”, cujo objetivo seria apurar eventuais ilícitos relativos a desvio de dinheiro público na aquisição de ambulâncias. O feito tramitou perante a 7ª Vara da Seção Judiciária de Mato Grosso.

No curso das investigações, foi descoberta, fortuitamente, uma suposta tentativa de negociação a membros do Partido dos Trabalhadores (PT) de um “dossiê” contendo informações relativas à Operação Sanguessuga. Na sequência, a Polícia Federal apreendeu expressiva quantia em dinheiro que foi transportado de Cuiabá para São Paulo para supostamente pagar por tais documentos. Entendendo que esses fatos poderiam, em tese, configurar os crimes previstos no art.  305 do Código Penal, consistente na suposta “ocultação de provas” referentes à Operação Sanguessuga e lavagem de capitais (já que não se sabia a origem dos valores), foi instaurado, perante a Polícia Federal de Mato Grosso, um inquérito policial para apurar os fatos. Em razão de aparente conexão com a Operação Sanguessuga, os autos foram distribuídos, por “prevenção” à 7ª Vara Federal de Cuiabá, Mato Grosso. Com o desenrolar das investigações, descobriu-se que (i) os dólares americanos apreendidos poderiam ser fruto de operações de câmbio ilegais realizadas em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro e (ii) que os atos relativos à alegada lavagem de capitais teriam ocorrido na cidade de São Paulo. Também ficou comprovada a inocorrência de qualquer delito referente à negociação do tal do dossiê, na medida em que, conforme assinalado pelo próprio Procurador da República oficiante nos autos, a tentativa de venda da documentação não se amoldaria a nenhuma figura penal (manifesta atipicidade). Os possíveis ilícitos praticados, portanto, não guardavam qualquer conexão – probatória ou instrumental – com o primeiro feito. Daí porque, após o oferecimento da denúncia perante a 7ª Vara Federal de Cuiabá, foi oposta exceção de incompetência a qual, no entanto, veio a ser rejeitada em razão de uma suposta prevenção. Ocorre que contra a decisão que rejeita a exceção de incompetência não cabe apelação e, tampouco, o denominado recurso em sentido estrito. Iterativa é a jurisprudência nesse sentido como averbou o Desembargador Federal Cândido Ribeiro ao julgar a Apelação Criminal n. 0014617-44.2012.4.01.3600/MT: II – “Da decisão que rejeita Exceção de Incompetência não cabe recurso. Resta à parte a impetração de habeas corpus, em caso de flagrante ilegalidade, inocorrente na hipótese, ou arguir a questão como preliminar em eventual recurso de apelação. Não provimento do recurso em sentido estrito interposto contra a decisão que não recebeu a apelação que impugnava a rejeição da Exceção de Incompetência.” (TRF/1ª Região, RSE 0001693– 46.2009.4.01.3813/MG, Rel. Juíza Federal Convocada Maria Lúcia Gomes de Souza, 3ª Turma, unânime, e-DJF1 de 26/02/2010). (EXINC 0006300-71.2010.4.01.4200 / RR, Rel. Des. Fed. Assusete Magalhães, 3ª T., e-DJF1 p. 168 de 08/04/2011). Ao final, embora o TRF da 1ª Região tivesse determinado a remessa do feito para a Justiça Federal de Nova Iguaçu (RJ), o STJ ao julgar o Conflito de Competência n. 136.829 (DJe 09/12/2014) definiu a competência da Justiça Federal de São Paulo como competente e, nesta, o Ministério Público Federal propôs o arquivamento do feito.

4.3. Competência para a apuração da lavagem e do peculato Se o crime precedente foi praticado contra interesse da União ou, por força de lei, a competência para apurá-lo é da Justiça Federal, a apuração do crime de lavagem, como regra, será da mesma justiça157. Caso interessante deu-se no interior do Estado do Paraná no qual advogados receberam, a título de honorários, veículos de origem supostamente ilícita. A acusação arguia que ditos bens eram fruto de alegado desvio de verba federal à OSCIP sujeita à prestação de contas perante o TCU. A despeito disso, a ação tramitava perante a Justiça Estadual. O verbete da Súmula 208 do STJ é claro ao estabelecer que “Compete à Justiça Federal processar

e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal”. Por analogia, em relação ao cidadão sem foro por prerrogativa de função, é de se reconhecer que também ele deve ser processado, inclusive pelo crime parasitário da lavagem, perante a Justiça Federal. Ocorre que os advogados se viam processados perante a Justiça Estadual não apenas pelo crime de lavagem, mas também por peculato. Portanto, a coação representada pelo recebimento da denúncia por autoridade incompetente era manifesta. Impetrado o habeas corpus, a Segunda Câmara Criminal do TJPR, contando com o Parecer ministerial favorável, conheceu e concedeu a ordem para determinar o deslocamento da competência para a Justiça Federal em acórdão assim ementado: Habeas Corpus – Impetração visando o deslocamento da ação penal nº 006107594.2011.8.16.0014, em tramite na 3ª vara criminal do Foro Central da região metropolitana de Londrina para a Justiça Federal, denúncia que descreve crime de peculato envolvendo verba de interesse da União, requisitos do artigo 109, da Constituição da República, incompetência da Justiça Estatual, remessa dos autos da ação penal para a Justiça Federal. Acolhido o Parecer da Procuradoria Geral de Justiça. Ordem concedida158. A hipótese era de competência da Justiça Federal e, portanto, nulos os atos praticados pelo juiz estadual. Se fosse aguardado o demorado trâmite da ação penal para arguir a matéria como preliminar de nulidade nos memoriais de defesa ou em eventual apelação, certamente os réus teriam, indevidamente, passado o dissabor da ação penal e, por outro lado, o poder de punir do Estado estaria virtualmente fulminado pela prescrição. Por aí se vê a importância de se manter a via do writ para se discutir questões processuais. Interessa tanto ao cidadão como ao próprio sistema penal.

4.3.1. Competência para apuração de acidente ferroviário envolvendo vítimas fatais Ocorreu na cidade de São José do Rio Preto um pavoroso acidente no final de 2013: um trem descarrilou e parte da composição invadiu uma residência e ocasionou a morte de oito pessoas e ferimentos em outras tantas que ali faziam um churrasco. Em consequência, dois procedimentos investigatórios foram instaurados para apurar o ocorrido: um pela polícia estadual, que tomou a frente do caso, e outro, posterior, pela Polícia Federal (PF). A existência de dois procedimentos para apurar o mesmo fato revela um bis in idem e, também, que uma das polícias não teria atribuição para apurá-lo. Como se sabe, é inadmissível a duplicidade de ações penais e “O propósito original da criação da regra proibitiva da dupla persecução penal foi o de proteger o indivíduo contra o abuso persecutório (tanto do Estado, acusador Público, quanto, onde permitida tal iniciativa, do acusador particular), de mover repetidas ações penais contra a mesma pessoa, em razão do mesmo fato criminoso”159. Daí a jurisprudência inadmitir a existência de dois procedimentos investigativos sobre um único fato: “Bem se sabe que para cada fato delituoso corresponde um inquérito para apurá-lo”160. De outro lado, é clara a disposição da Constituição da República no que atina com a atribuição da Polícia Federal para a apuração de infrações penais. Artigo 144, § 1º, inciso I: A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou se suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei. Ou seja, a PF poderá investigar nas mesmas situações em que será competente a Justiça Federal para o julgamento de eventual ação penal, conforme preconiza o art. 109 da Carta Magna. De fato, o que se extraí do dispositivo constitucional é que a atribuição para investigações criminais somente será da Polícia Federal quando houver interesse direto da União. A

circunstância de o acidente em questão ter ocorrido em ferrovia (pertencente à União) não atrai, por si só, a competência federal, pois, ao se admitir tal raciocínio, qualquer acidente com vítima em Rodovia Federal (BR) também deveria ser apurado pela Polícia Federal, Ministério Público Federal e Justiça Federal, o que não ocorre. Sobre o tema, em caso análogo, já se manifestou a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça o qual tratou de um crime de furto praticado nas dependências de Zona Portuária, que, assim como as ferrovias, pertence à União (Art. 21, XII, “d” e “f”, da CF; e Art. 1º, “g”, do Decreto Lei nº 9.760/46): No caso, o objeto material furtado, container e roupas vindas da China não pertencem à União, nem se sabe que interesse específico teria a União na apuração de tal delito. Certo que há um interesse geral da União na apuração dos crimes, mas para que um ilícito penal passe para a alçada federal é mister existir um interesse específico. Que, no caso, não existe. Certo que as zonas portuárias, os aeroportos são locais fiscalizados pela Polícia e receita Federais. Mas isso não quer dizer que os crimes ali cometidos, e pelo de ter sido naquele local, determine a competência da Justiça Federal, pois sabe-se que a competência da Justiça Federal não é determinada pelo território, mas pela natureza da infração161. O TRF da 3ª Região, em decisão anômala, fatiava, como se fosse possível, o espectro das investigações. Entendeu que caberia à polícia federal a continuidade das investigações, mas sem apurar os crimes de homicídio culposo e lesões corporais, que tocava à polícia estadual. A defesa do paciente, ao contrário, sustentava que, além de não se poder cindir artificialmente as investigações, não havia ofensa direta a bens ou serviços da União, mas sim apenas a particulares o que não atraia a competência da Justiça Federal. Seja como for, a decisão do TRF3 criava o disparate de, em decorrência do mesmo fato, termos dois procedimentos investigatórios: o primeiro, conduzido pela Polícia Civil, para apurar homicídios e lesões corporais de natureza culposa e, o segundo, para apurar o crime de desastre ferroviário e dano (arts. 260, inc. IV, e 163, parágrafo único, III, do CP). Ou bem tudo ficava sob a apuração da Polícia Federal, cuja vis atrativa é indiscutível (STJ, 3ª Seção, CC 54905/RJ, rel. Min. Maria Thereza, DJ 26/03/2007), ou bem sob a égide da Estadual. Dirimindo a matéria, a 6ª Turma do STJ, no RHC n. 50.054, relatado pelo Min. Nefi Cordeiro, afastou a atribuição da PF para investigar o caso, pois entendeu que inexiste competência da Justiça Federal para conhecê-lo. O julgado tem a seguinte ementa: 1. O bem jurídico tutelado pelo crime de perigo de desastre ferroviário é a incolumidade pública, consubstanciada na segurança dos meios de comunicação e transporte. Indiretamente, também se tutelam a vida e a integridade física das pessoas vítimas do desastre. 2. Ausente especificada ofensa direta a bens, serviços e interesses da União, não se dá hipótese de competência da Justiça Federal para persecução do crime previsto no art.  260, IV, § 2º, c/c art. 263, ambos do Código Penal, a teor do art. 109, IV, da Constituição Federal. 3. Trancamento determinado do inquérito policial instaurado pela Polícia Federal, com sua remessa à Polícia Civil, tendo em vista o reconhecimento da competência estadual para o feito162. Houve Recurso Extraordinário interposto pela Procuradoria da República e admitido pelo STJ que, no entanto, monocraticamente, teve seu curso obstado, pois no entender do Min. Dias Toffoli, com apoio em farta jurisprudência, “a irresignação não merece acolhida, uma vez que esta Corte é pacífica no entendimento de que a mera alegação de interesse da União não é suficiente para atrair competência da Justiça Federal no processamento do feito ou da Polícia Federal para investigar o suposto crime em tela”163.

4.4. Prerrogativa de foro e controle da competência por meio do writ

Enquanto vigorava a Súmula 394 do STF, se o agente praticasse o crime durante o gozo do assim chamado foro por prerrogativa de função, a competência do Tribunal para conhecer da matéria se prorrogava mesmo após o fim do cargo ou mandato. Após vigorar por 35 anos, o STF, em sessão do seu órgão Pleno, realizada aos 25 de agosto de 1999, decidindo Questão de Ordem no Inquérito nº 687-4164, cancelou-a. Criou-se, a despeito dos aplausos gerais, um campo fértil para decisões contraditórias em matéria de definição da competência. O então Senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) renunciou ao mandato antes do julgamento e teve seu processo deslocado para a Justiça mineira de primeiro grau165. O então Deputado Natan Donadon (PMDB-PB), em questão de ordem anterior não teve a mesma sorte de seu colega Senador166. Também ele renunciou antes do julgamento, mas, a pretexto de ter abusado do direito e agido com fraude processual, foi julgado e condenado pelo STF. Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PB), anos antes de Donadon, havia renunciado e obtido a declaração de perda do foro privilegiado a que fazia jus como parlamentar. Ali, salvo nos votos vencidos, não prevaleceu abuso do direito e fraude processual167 A solução encontrada nos diferentes casos revela a odiosa fórmula condensada na máxima “dois pesos e duas medidas”. A referência ao abuso de direito não é mais que a censura ao exercício da faculdade de renunciar ao mandato para provocar a cessação da competência do STF. Idem a alusão à fraude processual. O vazio normativo deveria ser obrigatoriamente preenchido pela edição de uma Emenda Constitucional ou, ao menos, de outra Súmula para, na linha do que já havia proposto o ministro Dias Tóffoli e, agora, também, Luís Roberto Barroso, definir-se um marco objetivo a partir do qual a renúncia não teria o efeito de implicar o deslocamento do processo para outra instância. É uma “proposta-remendo”, pois a regra constitucional é clara: o foro em razão do cargo só vale enquanto o acusado ou o investigado o ocupar. Da forma como se decidiu no caso Donadon, infringiu-se a garantia do Juiz Natural que o Brasil se comprometeu a respeitar na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, 3). Ali valeu a regra do juiz criado para o ato (ad hoc). Ou será que é o contrário, da forma como se decidiram os casos Cunha Lima e Azeredo é que se infringiu a garantia do Juiz Natural? Criou-se a possibilidade de o réu ou o investigado escolher o juízo que irá julgá-lo ou, igualmente grave, de o órgão jurisdicional escolher o que quer julgar. Mas ao invés de regras claras em matéria de competência, exigência indeclinável para se evitar o arbítrio, o STF inventou uma nova moda: o fatiamento das ações penais de modo a preservar para si apenas o julgamento do detentor do foro por prerrogativa de função. O fundamento legal para o “achado” foi o art.  80 do CPP que faculta ao juiz (e não ao Tribunal) realizar o desmembramento do processo “quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não lhes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante...”. O ponto é que nem sempre a desconexão instrumental é possível dada a imbricação das condutas. Na Ação Penal 470, popularmente conhecida como Mensalão, prevaleceu o entendimento segundo o qual não seria possível realizar o fatiamento, mesmo que em outros casos assemelhados se tivesse firmado o entendimento oposto. As razões de caráter puramente funcional que ditaram a aplicação do art.  80 do CPP nos Tribunais deu lugar a um subjetivismo em matéria da definição de competência que é incompatível com a garantia do juiz natural. Os Tribunais passaram a escolher quem vão julgar. Tanto isso como a possível escolha pelo réu de quem irá julgá-lo não se concilia com a garantia do juiz natural.

4.5. Foro por prerrogativa de função e impossibilidade do fatiamento da ação entre diferentes réus No julgamento do HC n. 303.132, relatado pelo Min. Nefi Cordeiro, prevaleceu o entendimento segundo o qual “Não admitida na origem a falta de prejuízos pela cisão dos fatos, descabe a revisão

do critério de oportunidade no habeas corpus”168. É que: 2. A competência do foro especial, prevalente, para os crimes conexos e agentes em continência por cumulação subjetiva, foi no Ag. Reg. no Inq 3515 (julgado 13/02/2014 pelo Supremo Tribunal Federal) restringida por interpretação do critério de excepcionalidade do constitucional foro funcional. 3. Estabeleceu-se fundamento normativo de competência (limitação do foro prevalente pela essencialidade da reunião dos feitos) e critério de oportunidade (assim que constatada a ausência de prejuízos relevantes com a separação), mas não regras de nulidade ou do reconhecimento de prejuízos como fundamento necessário para tanto. É fácil perceber o subjetivismo presente na decisão do STJ em estudo. Primeiramente pela utilização da expressão “critério de oportunidade” que sugere todo tipo de possibilidade. Depois, pelo afastamento das “regras de nulidade ou do reconhecimento de prejuízos como fundamento necessário para tanto [reconhecimento da cisão]”. Não é, todavia, como o STF tem decidido em outros casos. De fato, como pontuado pelo seu órgão Pleno a “necessidade de evitar-se, mediante a reunião de ações penais, decisões conflitantes, não se sobrepõe à competência funcional estabelecida em normas de envergadura maior, de envergadura insuplantável como são as contidas na Lei Fundamental”169. Ou ainda: Numa visão republicana, democrática, a prerrogativa (de foro) deve ser vista, em primeiro lugar, como contida em norma a encerrar a exceção. Em segundo lugar – e é o fundamento maior –, a competência do Superior, como também a competência do Supremo, mostra-se de direito estrito, é o que está na Carta. E uma lei processual não pode aditar a Carta, estendendo essa mesma competência. (HC nº 89.056, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 02/10/2008). Complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional, não comporta a possibilidade de extensão, que extravasem os rígidos limites fixados em numerus clausus pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política (STF, Pet. 1026, rel. Min. Celso de Mello, DJ 31/05/1995). A competência do Superior Tribunal de Justiça está delimitada na Constituição Federal, não sofrendo alteração considerados institutos processuais comuns – a conexão e a continência (HC nº 89.083, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 05/02/2009). Essas últimas decisões estampam maior objetividade de modo a se compreender a exceção que representa o foro por prerrogativa de função, inalcançável pela via da conexão, ainda que critérios de “oportunidade” possam ser vislumbrados, mesmo que ensejadores de decisões conflitantes. Fernando da Costa Tourinho Filho, a propósito, faz a seguinte reflexão: e “(...) se houver conexão ou continência envolvendo pessoas que devam ser processadas e julgadas pelo STF, ou STJ, ou Tribunal Regional Federal, e outras não elencadas nos arts. 102, 105 e 108 da CF?” Em resposta, o autor afirma que a solução é o desmembramento do processo, verbis: A competência desses Tribunais vem fixada na Lei Maior. Como nesta não existe nenhuma regra explícita, ou implícita, permitindo-lhes o julgamento de outras pessoas além daquelas ali elencadas, e não podendo a lei ordinária alterar-lhes a competência, segue-se deva haver a disjunção dos processos. Na verdade, se a Constituição não permite a esses Tribunais o julgamento de outras pessoas, como poderia ocorrer o simultaneus processus? Não se pode alterar a competência por prerrogativa de foro fixada na Constituição a não ser por meio de emenda constitucional170. Não por acaso, Eugênio Pacelli de Oliveira adverte: “a subtração ao juiz cuja competência seja prevista na Constituição, é dizer, o seu afastamento por quaisquer critérios que não constituam exceção de natureza constitucional, configurará sempre violação à regra do juiz natural171”.

4.6. Prefeito investigado em inquérito requisitado por Promotor de Justiça. Ilegalidade. Ao julgar o HC n. 178.397 a Sexta Turma do STJ, em acórdão relatado pelo Min. Nefi Cordeiro proferiu decisão segundo a qual: Há violação às regras de competência por prerrogativa de função quando Promotor de Justiça requisita a instauração de inquérito policial direcionada, especificamente, à apuração de fatos praticados por Prefeito Municipal172. De fato, é antigo o entendimento do STJ no sentido de que nos termos do art.  29, inc. X, da Constituição Federal, a investigação contra Prefeito Municipal só pode ser feita observado o foro por prerrogativa de função: O entendimento pretoriano é no sentido de que a investigação contra Prefeito Municipal, em virtude da prerrogativa de função, só poderá ser procedida pelo órgão competente para oferecer eventual denúncia junto ao Tribunal de Justiça173 É de se observar que o Promotor de Justiça não tem atribuição para determinar a instauração de inquérito policial, tampouco para investigar quando o averiguado tenha direito ao foro especial por prerrogativa de função, como é o caso do paciente, pois: Se, o processo desenvolver-se-á perante o Tribunal de Justiça, consequência lógica, a apreciação de fatos reclama a atribuição do membro do Ministério Público que oficia perante o colegiado. Qualquer pessoa, é certo, pode dar a notícia-crime. Inclusive membro do Ministério Público. A investigação (ainda que preliminar) contudo, só poderá sê-lo pelo órgão que tiver atribuição, no caso, para oferecer denúncia. Conclusão diversa levará à insegurança jurídica. Sem exagero, negativa da própria atribuição. Como o juiz está limitado, na competência, para conhecer e processar (garantia política do povo), o Promotor está limitado, na atribuição, para ofertar a denúncia e, logicamente, para desenvolver os atos preparatórios que busquem elementos de convicção. O regime democrático é regime de freios e contrapesos, como repetem os constitucionalistas americanos. As garantias do processo penal expressam o regime democrático174. Portanto, não pode o Prefeito ser investigado por requisição do Promotor de Justiça em inquérito policial. Isso importa em manifesto desrespeito à garantia de que se reveste o foro por prerrogativa de função.

4.7. Interceptação telefônica ordenada por juiz incompetente A Constituição Federal assegura a todos o direito ao sigilo de suas comunicações e à inviolabilidade da privacidade. Esses direitos, entretanto, não são absolutos e admitem flexibilização, mediante ordem judicial devidamente fundamentada. A prevalência do direito à segurança materializado na adequada e proporcional viabilização dos meios de investigação, antes da exigência da ordem judicial fundamentada (CF, art.  5º, XII, c.c. art.  5º da Lei n. 9.296/96), assenta-se no respeito à garantia do juiz natural. Por outras palavras, só o juiz constitucional e legalmente competente é que pode determinar a quebra do sigilo telefônico do investigado. Da mesma maneira que este não pode escolher o juiz da sua causa, não é dado ao representante do Ministério Público ou à autoridade policial escolher o juiz para apreciar a representação pela quebra do sigilo. A livre distribuição é um insubstituível instrumento de garantia da imparcialidade do magistrado. Daí a tônica da jurisprudência: 1. Somente o juiz natural da causa, a teor do disposto no art.  1.º, Lei nº 9.296/96, pode, sob segredo de justiça, decretar a interceptação de comunicações telefônicas

2. Na hipótese, a diligência foi deferida pela justiça comum estadual, durante a realização do inquérito policial militar, que apurava a prática de crime propriamente militar (subtração de armas e munições da corporação, conservadas em estabelecimento militar). Deve-se, portanto, em razão da incompetência do juízo, declarar a nulidade da prova ilicitamente colhida. 3. Ordem concedida175. Ou: I – O juiz competente para a ação principal é quem deve autorizar ou não a interceptação das comunicações telefônicas. (Precedente). II – In casu, declarada a competência do e. Tribunal a quo para processar e julgar o feito, devem ser desentranhadas dos autos as provas decorrentes da quebra de sigilo telefônico determinada por Juízo incompetente. Ordem concedida, para anular a decisão que determinou a interceptação telefônica do ora paciente, determinando o desentranhamento da prova nula, sem prejuízo das demais provas constantes do inquérito176. No Supremo Tribunal Federal a mesma intelecção é prestigiada como se extrai do RHC n. 80.197, relatado pelo Min. Néri da Silveira: Recurso parcialmente provido para ampliar o deferimento do habeas corpus e considerar nula a decisão do Juiz Federal incompetente, quanto à autorização para a interceptação telefônica e quebra dos sigilos bancário e telefônico, sem prejuízo das demais provas constantes do inquérito policial que, autônomas, possam fundamentar a denúncia do Ministério Público Estadual177. O estudo da casuística só reforça a necessidade de controle da legalidade da coação representada pela adoção de providência invasiva por juiz incompetente.

4.7.1. Delegado de Polícia Federal que escolhe, num domingo, juiz de férias para despachar representação pela interceptação. Ilegalidade Deu-se em Dourados (MS) caso verdadeiramente insólito: um Delegado da Polícia Federal, investigando, em tese, crime de atribuição da Polícia Federal, procura, em pleno domingo, um juiz que estava de férias para decidir sobre pedido de interceptação telefônica. O detalhe, abstraída a questão da competência do magistrado estadual, é que havia juiz estadual de plantão. Mais insólito ainda é que o procedimento só veio a ser aforado três meses depois do início das escutas e tudo sem que o Ministério Público tivesse ciência. Manifesta, portanto, a incompetência do magistrado. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, por sua Segunda Turma Criminal, em acórdão da lavra do Desembargador Claudionor Abs Duarte lavrou o seguinte acórdão: Habeas corpus. Paciente denunciado por suposta infração ao art. 333 do Código Penal. Alegação de nulidade das interceptações telefônicas realizadas. Pedido de trancamento da ação penal. Denúncia anônima. Prova ilícita. Autorização concedida por magistrado em gozo de férias sem vinculação ao processo. Ausência de jurisdição. Desrespeito às normas procedimentais. Error in procedendo. Inobservância ao princípio do juiz natural. Inquérito policial instaurado após 2 anos e 2 meses da concessão da medida cautelar. Ciência do Ministério Público após 7 meses. Nulidade absoluta. 1 – O magistrado em gozo de férias deve se afastar da atividade judicante. Excepcionalmente, o STF tem admitido a legitimidade de atos praticados, quando devido ao acúmulo de serviço e preocupação com o jurisdicionado, o magistrado, antecipando o seu retorno, dá andamento ao feito no qual já esteja vinculado, sendo imprescindível que não haja indícios de direcionamento. Exceção que não se aplica ao caso. 2 – Viola o princípio do juiz natural a ausência de distribuição do feito nas comarcas onde houver mais de um juiz dotado da mesma competência para dizer o direito. A garantia do juiz

competente não se restringe ao direito de ser processado e julgado por órgão previamente conhecido, também se aplicando às hipóteses de restrição de direitos fundamentais, praticados antes ou no curso do processo, notadamente as que pressupõem permissão judicial, como a interceptação das comunicações telefônicas. 3 – A interceptação telefônica deferida com base em delação anônima encarta-se como ilegal, uma vez que a Constituição Federal veda o anonimato, especialmente quando instaurado o inquérito policial, formalizando as investigações, após 2 anos e 2 meses da concessão da medida cautelar, que, ademais, é marcada, ontologicamente, pela necessidade pela brevidade. 4 – O art. 6º, da Lei n. 9.296/1996, prevê a obrigatória cientificação do MP, na condição de fiscal da lei, para averiguar a lisura do ato (interceptação telefônica), desse modo, ao tomar conhecimento, somente 7 meses após a sua realização, com sucessivas prorrogações nesse interregno, resta maculado, de forma inconteste, todo o procedimento. 5 – A ação penal baseada, exclusivamente, em prova ilícita, gera constrangimento ilegal ao paciente e, por isso, deve ser trancada178. A decisão colegiada foi alvo de Recurso Especial (n. 1.307.146), admitido na origem, mas improvido à unanimidade pela 6ª Turma do STJ em acórdão da lavra do Min. Sebastião Reis Júnior, assim ementado: 2. As garantias constitucionais da intimidade, da privacidade e do sigilo telefônico exigem que a medida da interceptação telefônica seja objeto de prévia ordem emanada de autoridade judicial competente (art. 5º, X e XII, da CF)179.

4.7.2. Escuta deferida por juiz escolhido pelo Ministério Público. Ilegalidade O representante do Ministério Público de Ribeirão Preto (SP), ao invés de distribuir livremente os requerimentos entre as diversas varas criminais de Ribeirão Preto e correr o risco de ter seu pedido negado, dirigiu-os especial e diretamente a outro juízo, diverso do natural, adrede escolhido por ser-lhe mais conveniente, em afronta a todo o ordenamento do jurídico. Violou-se desde o princípio constitucional do juiz natural, as disposições sobre a livre distribuição constantes no Código de Processo Penal, a ordem expressa do art.  1º da Lei nº 9.296/96, e até mesmo a já antiga orientação da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O Superior Tribunal de Justiça, a despeito do entendimento do TJSP, concedeu a ordem: Habeas corpus. Paciente denunciado pela suposta prática dos crimes previstos nos artigos 319 e 333 do Código Penal, e 90, 94 e 95 da Lei 8.666/1993. Alegação de nulidade das interceptações telefônicas realizadas. Autorização por juiz incompetente. Inobservância das regras de competência previstas no Código de Processo Penal e no Código Judiciário do Estado de São Paulo. Violação ao princípio do juiz natural. Desentranhamento da prova em outro inquérito. Constrangimento ilegal existente. Concessão da ordem. 1. Nos termos do artigo 1º da Lei 9.296/1996, a competência para deferir a interceptação telefônica no curso do inquérito policial é do juiz competente para a ação principal. 2. Prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento segundo o qual a competência para autorizar a interceptação telefônica no curso das investigações deve ser analisada com cautela, pois pode ser que, inicialmente, o magistrado seja aparentemente competente e apenas no curso das investigações se verifique a sua incompetência. 3. Esta não é, contudo, a hipótese dos autos, em que o pedido de interceptação telefônica foi requerido pelo Ministério Público diretamente ao Juízo de Direito da Vara do Júri, Execuções Criminais e Corregedoria da Polícia Judiciária, que deferiu a medida cautelar, a par de não possuir competência para tanto.

4. De acordo com as regras de competência previstas no Código de Processo Penal e no Código Judiciário do Estado de São Paulo, competiria a uma das Varas Criminais de Ribeirão Preto – que teria atribuição para julgar um futuro processo criminal decorrente das investigações – a apreciação do requerimento de interceptação de determinadas linhas telefônicas formulado pelo órgão ministerial. 5. Havendo quatro Varas Criminais com igual competência para processar e julgar eventual ação penal contra o paciente, o requerimento de interceptação telefônica deveria, consoante o artigo 75 do Código de Processo Penal, ter sido objeto de distribuição entre uma delas, o que não ocorreu, já que o pleito foi encaminhado ao Juiz Corregedor, titular da Vara do Júri e Execuções Criminais, em violação ao princípio do juiz natural. 6. A garantia do juiz competente não se restringe ao direito de ser processado e julgado por órgão previamente conhecido, também se aplicando às hipóteses de restrição de direitos fundamentais no curso do processo, notadamente as que pressupõem permissão judicial, como a busca e apreensão e a interceptação das comunicações telefônicas. 7. Concessão da ordem para declarar a nulidade das interceptações telefônicas e de toda a prova dela decorrente, determinando-se o seu desentranhamento dos autos180.

4.8. Usurpação de competência e prova ilícita: Quando ocorre Não é incomum que no curso de uma investigação a autoridade policial, ou mesmo o membro do Ministério Público, depare-se com o envolvimento de agente público detentor de foro por prerrogativa de função. Se se tratar de mera menção, sem maior relevo, a investigação poderá prosseguir em primeiro grau181. Idem em se tratando de encontro fortuito de provas em interceptações telefônicas. Ao julgar o RHC n. 135.683 o Min. Dias Toffoli elencou sólida jurisprudência nesse sentido: HC nº 81.260/ES, Pleno, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 19/04/2002; HC nº 83.515/RS, Pleno, Relator o Ministro Nelson Jobim, DJ de 04/03/2005; HC 84.224/DF, Segunda Turma, Relator para o acórdão o Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 16/05/08; AI nº 626.214/MGAgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 08/10/2010; HC nº 105.527/DF, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe de 13/05/2011; HC nº 106.225/SP, Primeira Turma, Relator para o acórdão o Ministro Luiz Fux, DJe de 22/03/2012; RHC nº 120.111/SP, Primeira Turma, de minha relatoria, DJe de 31/03/2014182. Todavia, constatado indícios da participação ativa e concreta do titular da prerrogativa de foro em algum delito, é obrigatório o envio dos autos, imediatamente, ao grau de jurisdição a que compete conhecer a matéria. A esse órgão jurisdicional superior é que caberá proceder à eventual desmembramento do feito e não o contrário. No preciso dizer do Min. Marco Aurélio: (...) a partir do momento, como aconteceu na espécie, em que surgem indícios, simples indícios, de participação de detentor de prerrogativa de foro nos fatos, cumpre à autoridade judicial declinar da competência, e não persistir na prática de atos objetivando aprofundar a investigação. É a organicidade e a dinâmica do Direito. É o respeito irrestrito às instituições pátrias, ao sistema judicial estabelecido na Lei das leis – a Carta Federal. Avança-se culturalmente observando a ordem jurídico constitucional183. Na mesma linha coloca-se o precedente da lavra do Min. Ricardo Lewandowski no Inquérito n. 2.842 no Pleno do STF: III – Competência do Supremo Tribunal Federal, quando da possibilidade de envolvimento de parlamentar em ilícito penal, alcança a fase de investigação, materializada pelo desenvolvimento do inquérito. Precedentes desta Corte. IV – A usurpação da competência do STF traz como consequência a inviabilidade de tais

elementos operarem sobre a esfera penal do denunciado. Precedentes desta Corte. O ponto central nessa questão é que não pode a autoridade judiciária de piso proceder, ela mesma, ao desmembramento do inquérito ou da ação penal. Cabe ao Tribunal fazê-lo: Compete exclusivamente a esta Suprema Corte decidir sobre eventual desmembramento do feito em relação aos coacusados não detentores de prerrogativa de foro. Remessa irrazoavelmente tardia, imotivada e apenas parcial da investigação sobre fatos conexos – desmembrada por conta e risco da autoridade policial –, além de proposição de ato investigativo, na instância originária, diretamente dirigido a detentor de prerrogativa de foro nesta Suprema Corte. Preponderância da dúvida quanto à legalidade da base probatória que pavimenta a denúncia184. Mais enfático, o Min. Teori Zavascki, perante o Pleno do STF, disse: Cabe apenas ao Supremo Tribunal Federal, e não a qualquer outro juízo, decidir sobre a cisão de investigações envolvendo autoridade com prerrogativa de foro na Corte, promovendo, ele próprio, deliberação a respeito do cabimento e dos contornos do referido desmembramento. No caso em exame, não tendo havido prévia decisão desta Corte sobre a cisão ou não da investigação ou da ação relativamente aos fatos indicados, envolvendo autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, fica delineada, nesse juízo de cognição sumária, quando menos, a concreta probabilidade de violação da competência prevista no art. 102, I, b, da Constituição da República185. Estabelecida a ideia de que a competência para desmembrar o feito é da instância superior, resta saber se verificada a usurpação de competência, em relação aos investigados sem foro é de se ter por ilícitas as provas produzidas por autoridade incompetente para o ocupante de cargo público? Dois cenários são possíveis descortinar: a. o Tribunal entende que não se deve desmembrar o feito e processa todos na instância do acusado detentor do foro por prerrogativa de função como, por exemplo, se deu na AP-470 (Mensalão). Nesse caso as provas são ilícitas para todos, uma vez que todos os acusados passam a ter seu juízo natural no Tribunal; b. O Tribunal desmembra o feito e investiga/processa apenas o agente detentor do foro. Nessa hipótese o Pleno do STF já decidiu que “a declaração de imprestabilidade dos elementos de prova angariados em usurpação da competência criminal do Supremo Tribunal Federal não alcança necessariamente os acusados destituídos de foro por prerrogativa de função”186. Esta não nos parece ser a melhor solução, pois, corolário dela é que a mesma prova será lícita para uns e ilícita para o detentor do foro de prerrogativa, uma vez que houve usurpação da competência. A cisão do processo é apenas uma faculdade prevista no art.  80 do CPP. Na realidade, como regra, o processo deveria ser uno. A desconexão instrumental por si só não deveria ter o condão de deslegitimar a prova para uns e fazê-la válida para outros.

5. Quando o processo for manifestamente nulo Ao julgar o HC n. 73.338 no acórdão lavrado pelo Min. Celso de Mello, o STF registrou que a “persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal não é um instrumento de arbítrio do Estado”187. Vale dizer, o respeito às formas do processo representa uma exigência indeclinável para o cumprimento do devido processo legal, extirpando-se o arbítrio. No dizer de Cezar Peluso, a tradução perfeita da expressão due process of law é “o justo processo da lei”, tal como preceitua a Constituição italiana no art.  111, primeira parte, “La giuridizione si attua mediante il giusto

processo regolato dalla legge”188. Assim, as nulidades processuais cumprem a função de responder ao descumprimento do figurino legal invalidando os atos praticados e também os dele derivados (CPP, art.  573, §  1º). Algumas vezes com a necessidade da demonstração do prejuízo, outras o presumindo. São múltiplas e variadas as hipóteses de nulidades, indo da denúncia inepta, que não preenche os requisitos do art. 41 do CPP, ou o seu recebimento desfundamentado até a sentença que padece do mesmo mal, passando, para exemplificar, pelo indevido cerceamento do direito de defesa ou mesmo a instalação do Conselho de Sentença no Júri com menos de 15 jurados (CPP, art.  463). Todavia, para os fins deste estudo vale lembrar que parte do catálogo previsto no art. 571 do CPP já foi estudado nos dispositivos anteriores quando tratamos da coação emanada de autoridade incompetente e, de certa forma, também da falta de justa causa, que abrange a matéria de ilegitimidade de parte quando observado o polo passivo da ação penal. Por outro lado, uma das questões mais tormentosas no reconhecimento da nulidade está na identificação do prejuízo, exigido pelo art. 563 do CPP para o reconhecimento daquela. Há quem diga que nas nulidades absolutas o prejuízo não precisa ser demonstrado e é arguível a qualquer tempo, sendo, portanto, insanável. Já as denominadas nulidades relativas não prescindem da demonstração do prejuízo e, além do mais, devem ser arguidas oportunamente, sob pena de preclusão, isto é, de se considerarem sanadas. Daniel Zaclis, na sua valiosa monografia de mestrado (USP), adverte para que “não é possível encontrar, em nossa legislação processual penal, a definição – e por consequência, a distinção – entre nulidades absolutas e relativas. Tampouco se depreende das disposições normativas qualquer rol de vícios que ensejariam especificamente uma ou outra categoria de nulidade”189. Exemplo marcante das dificuldades que o tema encerra por falta de balizamento legal pode-se notar logo na ementa do HC n. 99.996, julgado pela 5ª Turma do STJ, relatado pelo Min. Napoleão Nunes Maia Filho: 1. No âmbito do Processo Penal, não se deve declarar nulidade quando não resultar prejuízo comprovado para a parte que a alega (arts.  563 e 565 do CPP e Súmula 563/STF). Dessa forma, a inobservância do art. 38 da Lei 10.409/2002, à luz de uma interpretação sistemática do capítulo das nulidades do CPP, não traduz nulidade absoluta. 2. O Supremo Tribunal Federal acolhe o entendimento de que o princípio geral norteador das nulidades em Processo Penal – pas de nullité sans grief – é igualmente aplicável em casos de nulidade absoluta (HC 85.155/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, DJU 15.04.05 e AI-AgR. 559.632/MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 03.02.06). 3. Registre-se que, no caso concreto, foram respeitados os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, com citação regular, interrogatório na presença do advogado, defesa prévia e alegações finais regularmente oferecidas, intimação da sentença condenatória, interposição de Apelação, além de inexistir sequer insinuação sobre qual seria o prejuízo sofrido, razão pela qual é vazia a alegação de nulidade. Ofende a lógica do razoável, em prejuízo da efetiva atuação jurisdicional, a pretendida declaração de nulidade, em todos os casos, com a repetição dos atos processuais, sem um mínimo de alegação ou demonstração objetiva de prejuízo. 4. Entretanto, as doutas Cortes Superiores do País já assentaram, em inúmeros precedentes, que a inobservância da fase prevista no art.  38 da Lei 10.409/02 traduz nulidade absoluta, independente, portanto, da demonstração objetiva do prejuízo. 5. Parecer do MPF pela concessão da ordem. 6. Writ concedido, com a ressalva do ponto de vista do Relator190. Primeiro, com apoio no decidido pelo STF no HC n. 85.155 relatado pela Min. ellen Gracie, ainda que se trate de nulidade absoluta, afirma-se a impossibilidade de se anular o processo sem a

demonstração do prejuízo: A demonstração de prejuízo, a teor do art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta, eis que, conforme já decidiu a Corte, “o âmbito normativo do dogma fundamental da disciplina das nulidades – pas de nullité sans grief – compreende as nulidades absolutas” (HC 81.510, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, unânime, DJ de 12.4.2002) 191. Já no passo seguinte, por conta de “inúmeros precedentes” da Suprema Corte, afirma-se “que a inobservância da fase prevista no art. 38 da Lei 10.409/02 traduz nulidade absoluta, independente, portanto, da demonstração objetiva do prejuízo”. O fato é que, posteriormente ao julgamento do HC n. 85.155, o STF reviu sua posição e passou a entender diferentemente como se vê da ementa do HC n. 94.027, cujo relator para o acordão foi o Min. Joaquim Barbosa: A inobservância do rito do art. 38 da Lei nº 10.409/2002, que assegura o contraditório prévio ao denunciado pelo crime de tráfico de entorpecentes, resulta na nulidade do processo penal, desde o recebimento da denúncia. Habeas corpus conhecido e ordem concedida192. Que o STF reveja seu entendimento para restabelecer o devido processo legal, exigindo o cumprimento do disposto no art.  38 da antiga Lei de Drogas, n. 10.409/2002, a qual previa o oferecimento de uma resposta à acusação antes do recebimento da denúncia, é fato a ser aplaudido, mas que o STJ flutue ao sabor dos movimentos erráticos da Suprema Corte, sem ter densidade própria nos seus pronunciamentos, é causa de preocupação. Sim, como advertiu Daniel Zaclis, “há de se ter preocupação com o tamanho da fresta disponível à discricionariedade do juiz”193. E o que se nota nos diferentes julgados, é exatamente isso: discricionariedade não regrada, vale dizer, subjetivismo e, por vezes, puro arbítrio. O exame da casuística revela toda a sorte de distorções e dificuldades.

5.1. Desrespeito à cronologia das sustentações orais: prejuízo presumido Elucidativo da dificuldade de se lidar com a demonstração do prejuízo é a inversão na cronologia das sustentações orais nos Tribunais. Antigo entendimento prestigiava a ideia de que o representante do Ministério Público de segundo grau, ou mesmo nos Tribunais Superiores, por atuarem como fiscais da lei (custos legis), teriam a primazia de falar por último, ainda que o MP de primeiro grau atuasse como órgão recorrente. A qualificação do órgão ministerial de segunda instância como fiscal da lei não é mais do que uma escancarada burla de etiquetas para justificar a inversão no contraditório nas sustentações orais. Coube justamente ao então Procurador Geral de Justiça do Distrito Federal, Rogério Schietti Machado Cruz, desmistificar as coisas. Nas suas palavras, “assim como a forma não desnatura a matéria, mas apenas modifica sua aparência, o parecer do Procurador de Justiça não elimina, mas tão somente esconde a sua função acusatória que, nas alegações finais ou na denúncia do Promotor de Justiça, se revela bem mais nítida. Ou será – indaga – “que estas últimas peças processuais retiram do Ministério Público atuante no primeiro grau a sua função fiscalizadora?”194. Não é por acaso que o revogado art.  500, §  2º, do CPP, dispunha que nas queixas-crime, nas quais o MP, indiscutivelmente, se manifesta como fiscal da lei, o legislador de 1941 dispunha que o MP terá vista dos autos após o querelante e, por último o querelado. É que este poderia rebater eventual carga acusatória vinda do representante ministerial ou mesmo ampliar os eventuais argumentos absolutórios. O STF, no seu Regimento Interno, art. 132, § 5º, tem previsão análoga à referida regra do revogado art.  500 do CPP. Também não é por acaso que o TJSP, há mais de 20 anos, tem regra regimental dispondo que nos recursos do Ministério Público, seu representante falará em primeiro lugar. Colocando uma pá de cal no assunto, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, com a sua mais alta autoridade, julgando o HC n. 87.926, da relatoria do Min. Cezar Peluso, disciplinou a cronologia

das falas no campo do processo penal de modo a se impedir a inversão do contraditório. A ementa do julgado não deixa margem a dúvidas: Ação penal. Recurso. Apelação exclusiva do Ministério Público. Sustentações orais. Inversão na ordem. Inadmissibilidade. Sustentação oral da defesa após a do representante do Ministério Público. Provimento do recurso. Condenação do réu. Ofensa às regras do contraditório e da ampla defesa, elementares do devido processo legal. Nulidade reconhecida. HC concedido. Precedente. Inteligência dos arts. 5º, LIV e LV, da CF, 610, §único, do CPP, e 143, §2º, do RI do TRF da 3ª Região. No processo criminal, a sustentação oral do representante do Ministério Público, sobretudo quando seja recorrente único, deve sempre preceder à da defesa, sob pena de nulidade do julgamento195. E sobre a questão da demonstração do prejuízo o acórdão pontuou: Quando, porém, se impõe ao réu que promova sustentação oral antes da intervenção do representante do Ministério Público, sobretudo no caso de ser este o recorrente, cria-se manifesta restrição à defesa, com afronta ao art.  5º, LV, da Constituição da República, o que conduz à nulidade do julgamento. A defesa aí já não é plena, como deve sê-lo, e, por sustentar a invalidez, prejuízo virtual bastaria, porque é, a rigor, impossível sua demonstração em ato, como tem a Corte reconhecido: “1. Defesa: Defensoria Pública: ausência de intimação pessoal da pauta de julgamento do recurso em sentido estrito: nulidade absoluta: precedentes. 2. Sustentação oral frustrada pela ausência de intimação da pauta de julgamento: demonstração de prejuízo: prova impossível (v.g., HC 69.142, 1ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926). Frustrado o direito da parte à sustentação oral, nulo o julgamento, não cabendo reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada aquela oportunidade legal de defesa, outra teria sido a decisão do recurso” (RHC nº 85.443, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 13.05.2005. No mesmo sentido, cf. HC nº 83.835, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 26.08.2005). Depois, revelando a dificuldade do tema, o voto condutor expôs: Alegou-se – e, em casos análogos, se alega sempre – não ter sido demonstrado o prejuízo da defesa. Mas o dano, esse resulta do teor mesmo do julgamento contrário ao réu e, como tal, é certo e induvidoso. Tenho relevado este fato intransponível. O prejuízo da defesa, em casos semelhantes, é sempre certo. Presumida é apenas a relação jurídico-causal entre o vício do processo e o teor gravoso do julgamento. E tal relação não pode deixar de presumir-se ante a impossibilidade absoluta de se atribuir o resultado injurioso ao réu a causa jurídica independente. Só se poderia, deveras, afastar, quando menos, esse nexo entre o defeito processual e a certeza do prejuízo da defesa, se o resultado concreto do julgamento, caso em que qualquer recurso seria absolutamente anódino e infrutífero, lhe tivesse sido favorável. Todas as vezes em que, sob arguição de vício processual na sessão de julgamento ou na decisão, a defesa saia de algum modo prejudicada, não é lícito opor argumentação baseada na hipótese de que, fosse outro o procedimento adotado, segundo a lei, o resultado teria sido o mesmo. É simplesmente impossível saber como se comportariam os julgadores, ou o prolator da decisão, se houvera sido observada a ordem legal do processo garantido pela Constituição! Noutras palavras, não há como nem por onde argumentar com o fato de que a defesa não seria capaz de demonstrar outro prejuízo, senão com resultado danoso do caso concreto, porque não se pode predizer, ou melhor, não se pode adivinhar que, se tivesse sido outra a ordem observada, o resultado do julgamento teria sido o mesmo. Por isso, esta Corte, não poucas vezes, aludiu à impossibilidade de o réu provar prejuízo, que eu nem diria mais concreto, porque não há nada mais concreto que ato de todo em todo contrário aos interesses da defesa, como é o juízo condenatório. A mim me parece, dessarte, que tal objeção, aliás acolhida no acórdão ora impugnado, não tem,

com o devido respeito, consistência alguma, porque parte de lucubração, qual seja, a de que, eventualmente, o mesmo resultado seria obtido, se a defesa, no caso, por exemplo, se tivesse manifestado depois do representante do Ministério Público. Não sabemos se o seria. Podemos até imaginar que, se se repetir o julgamento, o resultado da causa será o mesmo. Mas isso fora puro exercício de imaginação, que nada tem a ver com a necessidade de resguardar a ordem do justo processo da lei (due process of law), garantido como direito fundamental pela Constituição da República. Até porque, doutro modo, se introduz este princípio incomentável: a ordem legal do processo pode ser sempre violada, desde que o resultado seja esse ou aquele! Isto é, outorga-se ao arbítrio do julgador, ao arbítrio de quem deve controlar a legalidade e a justiça do processo, o poder de decidir se deve, ou não, observar a Constituição da República, secundum eventum litis! A ordem estrita de ações na particular estrutura dialética do processo penal – primeiro acusação, depois defesa – é imperativa e independe do teor do parecer do órgão acusatório, que também vela pela correta aplicação da lei. Como se vê, no início se tomou o prejuízo como decorrência do provimento do recurso do Ministério Público, mas depois evoluiu-se para a ideia de que a ordem do processo não pode ser violada “desde que o resultado seja este ou aquele”. Outro entendimento representaria, nas palavras do acórdão, uma outorga de arbítrio do julgador, isto é, o “arbítrio de quem deve controlar a legalidade e a justiça do processo, o poder de decidir se deve, ou não, observar a Constituição da República...”. Ou seja, em matéria de descumprimento do devido processo legal não há espaço para a discussão do reconhecimento, ou não, do prejuízo: este é presumido ou, se se preferir, basta a ofensa ao regramento legal ou constitucional para o reconhecimento da nulidade.

5.1.1. Cronologia na entrega dos memoriais por réus delatores e delatados Se numa mesma ação penal houver acusados que se tornaram delatores e outros que são delatados, embora a Lei n. 12.850/2013 e tampouco o Código de Processo Penal tragam qualquer regra sobre a cronologia dos interrogatórios ou mesmo da apresentação dos memoriais, em respeito ao contraditório e à amplitude do direito de defesa, devem os delatores ser interrogados antes dos delatados e também oferecerem seus memoriais antes destes. A colaboração premiada possui natureza jurídica de meio de obtenção de prova (art. 3º, I, da Lei n. 12.850/2013). Na delação, ou chamamento de corréu, explica Gustavo Badaró: (...) a parte em que o acusado reconhece que praticou o delito, há simples confissão. Já ao atribuir o cometimento do crime a outra pessoa o delator age como se fosse testemunha. Por tal motivo, afirma-se que, na parte em que formula a declaração contra o corréu, o ato tem a natureza de prova testemunhal (Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 450). O prestigiado professor paulista aponta em abono dessa intelecção os escólios de Ada Pelegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, no conhecido As nulidades no processo penal e, entre outros, o de Guilherme Nucci, O valor da confissão como meio de prova no processo penal. Badaró, porém, pensa que o delator não é testemunha nem no momento em que faz a delação por lhe faltar a característica exigida de toda e qualquer testemunha, i.e., de “terceiro” (p. 450-451). Todavia, o Autor é expresso em dizer que é necessário que se dê ao defensor do acusado delatado a oportunidade de formular perguntas ao delator, “como se tratasse de uma testemunha arrolada pela acusação (CPP, art. 212)”. É uma espécie de “prova testemunhal sui generis”, completa o Autor (ob. cit., p. 451, grifamos). Quando o acusado, durante o interrogatório, incrimina outra pessoa, ele, na verdade, torna este específico momento do seu depoimento um ato de natureza eminentemente testemunhal, pois não está se referindo a fato seu, mas ao de outrem. Este intervalo do interrogatório é, em sua essência, uma fonte de prova especialmente com relação ao fato de terceiro.

Apreciando esta matéria, o eg. TJDF, no HC n. 20170020114479HBC, por sua Primeira Turma Criminal, ementou decisão lapidar: Habeas corpus – Tribunal do júri – inversão da ordem dos interrogatórios e dos debates – Corréu colaborador – Ampla defesa e contraditório – Observância – Concessão. I. A atividade estatal – principalmente a função jurisdicional – deve ser exercida de forma a dar a máxima eficácia às garantias basilares do indivíduo, entre as quais a liberdade de locomoção, o contraditório, a ampla defesa e, por conseguinte, o devido processo legal. II. Se o depoimento do corréu aproxima-se da prova obtida em delação premiada, não é adequado que ele seja interrogado após os demais, nem que a defesa se manifeste após as outras, sob pena de ofensa ao princípio do contraditório. Na hipótese, ainda que não tenha celebrado acordo formal, o confessou e colaborou com a justiça ao relatar, detalhadamente, como teria ocorrido a empreitada criminosa e a participação dos corréus. III. Ordem concedida (1ª T. Criminal, rel. Des. Sandra de Santis, j. em 04/5/2017).

5.2. Respostas contraditórias dos jurados: nulidade insanável “Toninho Batista”, réu pobre, fora submetido a julgamento pelo Júri Popular e, reconhecida a autoria por ele negada, foi condenado por 4 votos a 3. Mas o acusado tinha um álibi: dizia que estava na casa de um compadre na hora dos fatos. O compadre foi ouvido em Plenário e, sem titubear, confirmou o álibi. O Promotor requereu então que se quesitasse o falso testemunho, mas os jurados, por 5 votos a 2, negaram a ocorrência do falso testemunho. As respostas aos diferentes quesitos estão evidentemente relacionadas. Afinal, ou os jurados erraram quando reconheceram a autoria ou quando negaram o falso o que, em outras palavras, não permite saber se acertaram quando reconheceram a autoria ou quando reconheceram a validade do álibi que afastava o reconhecimento daquela. Como quer que seja, ao julgar o HC n. 29.154, a Sexta Turma do STJ, além de afirmar que “as respostas questionadas” não tinham “relação necessária qualquer”, entendeu que nos julgamentos realizados pelo Júri “havendo contradição, cabe a defesa argui-la no momento oportuno, sob pena de preclusão”196. Levada a matéria ao Supremo Tribunal Federal, sua primeira Turma, no julgamento do HC n. 85.150, pela voz do Min. Marco Aurélio, concedeu a ordem sufragando entendimento oposto: Júri – Quesitos – Respostas – Contradição. Ante contradição nas respostas a quesitos, incumbe ao juiz, esclarecidos os jurados, proceder a nova votação – artigo 489 do Código de Processo Penal. Júri – Quesitos – Respostas – Contradição. Surge contradição, a ensejar a observância do artigo 489 do Código de Processo Penal, quando testemunha revela dados incompatíveis com a presença do acusado no horário e local do crime, afastando os jurados o crime de falso testemunho e concluindo pela autoria197. O ponto de relevo para o presente estudo está em que se considerou absoluta a nulidade e, portanto, insuscetível de preclusão. O voto do Min. Pertence, embora vencido por entender que haveria necessidade de exame de prova para verificar a relação entre a afirmação da autoria do homicídio e a veracidade ou não do dito álibi, deixou expresso o caráter absoluto da nulidade: Que é nulidade absoluta não há dúvida. Essa nulidade, por deficiência dos quesitos ou contradição, foi inserida no Código de Processo Penal posteriormente e não está prevista entre as nulidades sanáveis. De tal modo que me parece tranquilo tratar-se de nulidade absoluta. É digno de nota não apenas o movimento em ziguezague do STJ que no HC n. 17.566 havia entendido ser de caráter absoluto a nulidade em questão, enquanto que no posterior HC n. 29.154 modificou-o para reclamar o protesto oportuno sob pena de preclusão. Note-se que a relatoria deste último acórdão só não coube ao Min. Fontes de Alencar porque, após o pedido de vista do

Min. Hamilton Carvalhido, ele veio a se aposentar. Chama a atenção, de qualquer forma, que a impossibilidade de se entender a vontade dos jurados, expressa nas respostas contraditórias aos quesitos, pudesse sobreviver, ainda que não tenha havido o protesto da defesa na sala secreta. Seria como transformar o processo penal numa espécie de jogo de astúcias em detrimento da justiça em sentido substantivo. Concedida a ordem pelo STF, o réu foi submetido a novo julgamento e, por votação unânime, veio a ser absolvido. Contudo, havia ficado preso mais de quatro anos. Custa a acreditar que se pretenda impedir de se questionar nulidades pela via do writ. O réu teria cumprido a pena, já que não havia questão diretamente constitucional a ser apreciada pela via do Recurso Extraordinário.

5.3. Cerceamento de defesa pela impossibilidade de se fazer perguntas no interrogatório do corréu Hipótese curiosa deu-se na 6ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo. A despeito da clareza da regra introduzida pela Lei n. 10.792/2003, constante do art.  188 do CPP, facultando às partes, formular perguntas ao acusado que estiver sendo interrogado, o Juiz Federal ali oficiante tinha o entendimento peculiar no sentido de que somente o advogado do próprio interrogado poderia dirigir-lhe perguntas. O ilustrado juiz federal tinha, digamos assim, seu próprio Código de Processo Penal. Apesar de já existir o precedente da Ação Penal 470 (Mensalão), noticiado no Boletim Informativo 491 do STF, o Min. Félix Fischer, no STJ, indeferiu a medida liminar pleiteada no HC n. 100.204 sob o argumento de que a “participação de advogados dos co-réus não tem amparo legal, visto que criaria uma forma de constrangimento para o interrogado”198. Invocou para tanto o decidido pela mesma Quinta Turma no HC n. 42.780199. No julgamento do HC n. 94.016, relatado pelo Min. Celso de Mello, superando a Súmula 691, prevaleceu na Segunda Turma, sem divergência, entendimento oposto. No que interessa para o exame da matéria, a ementa destaca: Possibilidade jurídica de um dos litisconsortes penais passivos, invocando a garantia do “due process of law”, Ver assegurado o seu direito de formular reperguntas aos co-réus, quando do respectivo interrogatório judicial. – Assiste, a cada um dos litisconsortes penais passivos, o direito – fundado em cláusulas constitucionais (CF, art. 5º, incisos LIV e LV) – de formular reperguntas aos demais co-réus, que, no entanto, não estão obrigados a respondê-las, em face da prerrogativa contra a autoincriminação, de que também são titulares. O desrespeito a essa franquia individual do réu, resultante da arbitrária recusa em lhe permitir a formulação de reperguntas, qualifica-se como causa geradora de nulidade processual absoluta, por implicar grave transgressão ao estatuto constitucional do direito de defesa. Doutrina. Precedente do STF200. Nesse valioso precedente a nulidade foi considerada absoluta “por implicar grave transgressão ao estatuto constitucional do direito de defesa”. Já não contou o tema do prejuízo, embora este houvesse. Em conclusão, o tema do prejuízo no reconhecimento da nulidade enseja inúmeras controvérsias e nem sempre é possível prová-lo, como no primeiro caso apontado, ou superá-lo, como no segundo, ou mesmo levá-lo em consideração, como no último caso.

5.4. Denúncia inepta: possibilidade de arguir-se a nulidade após a prolação da sentença A denúncia, sem exagero, é a peça mais importante do processo. Disse-o com inteira propriedade o Procurador Geral da República na Ação Penal 470 (Mensalão), pois “é ela que delimita o âmbito da acusação, pois o Poder Judiciário não pode julgar uma pessoa por um fato não descrito na peça inaugural”201. Aliás, já afirmava José Frederico Marques que, “por paradoxal que pareça, a acusação é uma exigência do exercício do direito de defesa. (...). É que ninguém pode defender-se no vácuo, ou seja, ignorando o crime que se lhe imputa. Sem que o réu tenha conhecimento e notícia do fato delituoso que lhe é atribuído, impossível lhe será rebater, através

da defesa, a denunciação contra si endereçada”202. E o Min. Cezar Peluso, processualista de mão cheia, como relator do HC n. 83.301 deixou expressa a mesma ideia ao dizer: Como proposta de modelo de sentença condenatória, a denúncia, ou a queixa, fixa o núcleo substantivo da causa, governa o rumo de toda a instrução e, como objeto de resposta, delimita o campo do iudicium, como capítulo último da sentença, porque é ao redor da denúncia, ou da queixa, que se estrutura e desenvolve todo o processo, do seu início ao trânsito em julgado do provimento jurisdicional, seja em que instância for. Esta verdade jurídica, que nasce já na percepção do processo penal como alvo das garantias constitucionais enfeixadas na cláusula do justo processo da lei, ou due process of law (art. 5º, incs. LIV e LV, da CF), e, ainda, como instrumento primário da tutela da liberdade e da dignidade da pessoa humana, encontra confirmação expressa em múltiplas normas do Código de Processo Penal (...) “o teor da acusação predefine sempre os rumos da instrução criminal e os passos da defesa. Nem poderia ser diferente. Tendo o processo caráter dialético, ou agônico, todos os movimentos de contradição linguística ou real a acusação, nos quais se radica a substância do exercício da ampla defesa, somente podem dar-se perante acusação determinada e conhecida203. Dada a ofensa à garantia constitucional do devido processo legal e da ampla defesa, no julgamento em exame o STF considerou a nulidade absoluta e insanável. O tema foi realçado em decisão monocrática, mas com força de acórdão, pelo Min. Celso de Mello no HC n. 105.953204 e repetido o entendimento no julgamento do RHC n. 85.658205. Damásio de Jesus anota que o STF, antes da reforma da Lei n. 11.719/08, vinha entendendo que depois da sentença “não pode ser alegada a inépcia da denúncia, senão de um defeito da sentença”206. Assim, recentemente, decidiu a 6ª Turma do STJ em acórdão relatado pelo Min. Nefi Cordeiro no RHC n. 46.715: Incabível o exame da alegação de inépcia da denúncia, pois, não há mais sentido em decidir acerca da viabilidade formal da persecutio, se já existe acolhimento formal e material da acusação, tanto que prolatada sentença condenatória207 Ainda que perfilhe o entendimento externado pelo Min. Peluso no HC n. 83.301 de que se trata de nulidade absoluta e, portanto, insanável, parece mais acertado, o decidido no HC n. 86.630, relatado pelo Min. Sepúlveda Pertence208: I. Denúncia: inépcia: preclusão inexistente, quando arguida antes da sentença. A jurisprudência predominante do STF entende coberta pela preclusão a questão da inépcia da denúncia, quando só aventada após a sentença condenatória (precedentes); a orientação não se aplica, porém, se a sentença é proferida na pendência de ‘habeas-corpus’ contra o recebimento da denúncia alegadamente inepta. Este entendimento foi agasalhado recentemente pela 5ª Turma do STJ no julgamento do HC n. 300.047, relatado pelo Min. Félix Fischer209. Com essa intelecção fica, ao menos, ressalvada a possibilidade do exame da arguição da inépcia feito antes da prolação da sentença vir a ocorrer, ainda que a demora judicial na apreciação do writ, decorrente de demora do próprio relator, dê tempo para a prolação da sentença em primeiro grau.

5.4.1. Denúncia inepta nos crimes societários O artigo 41 do CPP manda que o fato criminoso seja descrito em todas as suas circunstâncias. Isso, em bom português, significa que a denúncia deva descrever a conduta relevante de cada agente criminoso para a prática do crime. Não obstante, ergueu-se tanto no STJ como no STF jurisprudência no sentido de que nos crimes societários a inicial acusatória poderia ser genérica

conforme se observa da ementa do HC n. 86.879, relatado pelo Min. Gilmar Mendes: 1. Habeas Corpus. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei no 7.492, de 1986). Crime societário. 2. Alegada inépcia da denúncia, por ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados. 3. Mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de crimes societários, entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as condutas de cada indiciado, bastando a indicação de que os acusados fossem de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. Precedentes: HC no 86.294-SP, 2ª Turma, por maioria, de minha relatoria, DJ de 03.02.2006; HC no 85.579-MA, 2ª Turma, unânime, de minha relatoria, DJ de 24.05.2005; HC no 80.812-PA, 2ª Turma, por maioria, de minha relatoria p/ o acórdão, DJ de 05.03.2004; HC no 73.903-CE, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ de 25.04.1997; e HC no 74.791-RJ, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 09.05.1997. 4. Necessidade de individualização das respectivas condutas dos indiciados. 5. Observância dos princípios do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), da ampla defesa, contraditório (CF, art. 5º, LV) e da dignidade da pessoa humana (CF, art.  1º, III). Precedentes: HC no 73.590-SP, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 13.12.1996; e HC no 70.763-DF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23.09.1994. 6. No caso concreto, a denúncia é inepta porque não pormenorizou, de modo adequado e suficiente, a conduta do paciente. 7. Habeas corpus deferido210. Um início da guinada na jurisprudência da Suprema Corte se deu no HC n. 73.324, da relatoria do Min. Ilmar Galvão, que embora afastasse a exigência da descrição pormenorizada da conduta de cada sócio na empreitada criminosa, destacou a necessidade de se estabelecer, ao menos, “o vínculo” de cada sócio com o ilícito211. Passados poucos anos, a jurisprudência do STF ampliou a exigência da descrição do vínculo de cada sócio com o crime imputado como se pode ver do julgamento do HC n. 80.549, relatado pelo Min. Nelson Jobim: Nos crimes contra a ordem tributária a ação penal é pública. Quando se trata de crime societário, a denúncia não pode ser genérica. Ela deve estabelecer o vínculo do administrador ao ato ilícito que lhe está sendo imputado. É necessário que descreva, de forma direta e objetiva, a ação ou omissão da paciente. Do contrário, ofende os requisitos do CPP, art.  41 e os Tratados Internacionais sobre o tema. Igualmente, os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Denúncia que imputa co-responsabilidade e não descreve a responsabilidade de cada agente, é inepta. O princípio da responsabilidade penal adotado pelo sistema jurídico brasileiro é o pessoal (subjetivo). A autorização pretoriana de denúncia genérica para os crimes de autoria coletiva não pode servir de escudo retórico para a não descrição mínima da participação de cada agente na conduta delitiva. Uma coisa é a desnecessidade de pormenorizar. Outra, é a ausência absoluta de vínculo do fato descrito com a pessoa do denunciado212. Hoje predomina o entendimento de que a denúncia, ainda que não pormenorizadamente, deve descrever a participação delitiva de cada sócio, individualizando as condutas. No ponto, convergem as duas Turmas do STJ: 1. É inepta a inicial acusatória que se limita a afirmar ser o réu gerente da empresa, sem narrar de forma clara o fato típico e esclarecer efetivamente os atos que praticava, não descrevendo os elementos que o vincule aos acontecimentos narrados (...)213. Não pode ser genérica, vale dizer, atribuir “a mesma conduta a todos os denunciados”214. Eloquente, no ponto, o pronunciamento do Min. Celso de Mello que, monocraticamente, deferiu o já citado HC n. 105.953: Tenho enfatizado, em diversos julgamentos proferidos no Supremo Tribunal Federal, que a denúncia deve descrever, de modo objetivo e individualizado, a conduta delituosa atribuída aos sócios e/ou administradores das empresas. Mesmo que se trate do denominado “reato societario”, a participação pessoal de cada sócio (ou administrador) na suposta prática delituosa, alegadamente cometida por intermédio de organização empresarial, há de resultar de narração individualizada contida na peça acusatória

(RTJ 163/268-269 – RTJ 165/877-878). É que não basta, para satisfazer-se a exigência constitucional do devido processo legal, que o Ministério Público, ao deduzir imputação penal contra alguém, descreva-lhe, de modo genérico, a respectiva conduta, sob o argumento de que a responsabilidade do acusado na prática de delitos societários resulta do fato de ostentar a condição de sócio, de administrador ou de representante da empresa (RTJ 163/268-269, Rel. Min. Celso de Mello). Com efeito, o Supremo Tribunal Federal tem advertido que a circunstância de alguém meramente ostentar a condição de sócio ou de dirigente de uma empresa não pode justificar, só por si, a formulação, pelo Estado, de qualquer juízo acusatório fundado numa inaceitável presunção de culpa: “Sócia quotista minoritária que não exerce funções gerenciais – Necessidade de descrição de determinado comportamento típico que vincule o sócio ao resultado criminoso. ....................................................................................................... A mera invocação da condição de quotista, sem a correspondente e objetiva descrição de determinado comportamento típico que vincule o sócio ao resultado criminoso, não constitui, nos delitos societários, fator suficiente apto a legitimar a formulação de acusação estatal ou a autorizar a prolação de decreto judicial condenatório.” (HC 89.427/BA, Rel. Min. Celso de Mello) A formulação de acusações genéricas em delitos societários culmina por consagrar uma inaceitável hipótese de responsabilidade penal objetiva, com todas as gravíssimas consequências que daí podem resultar, consoante adverte, em precisa abordagem do tema, o ilustre Advogado paulista (e antigo membro do Ministério Público de São Paulo) Dr. Ronaldo Augusto Bretas Marzagão (“Denúncias Genéricas em Crime de Sonegação Fiscal”, “in” Justiça e Democracia, vol. 1/207-211, 210-211, 1996, RT): “Se há compromisso da lei com a culpabilidade, não se admite responsabilidade objetiva, decorrente da imputação genérica, que não permite ao acusado conhecer se houve e qual a medida da sua participação no fato, para poder se defender. Desconhecendo o teor preciso da acusação, o defensor não terá como orientar o interrogatório, a defesa prévia e o requerimento de provas, bem assim não terá como avaliar eventual colidência de defesas entre a do seu constituinte e a do co-réu. O acusado será obrigado a fazer prova negativa de que não praticou o crime, assumindo o ônus da prova que é do Ministério Público, tendo em vista o princípio constitucional da presunção de inocência. A denúncia genérica, nos crimes de sonegação fiscal, impossibilita a ampla defesa e, por isso, não pode ser admitida.” (grifei) Daí a objeção exposta pelo saudoso Ministro Assis Toledo, para quem “Ser acionista ou membro do conselho consultivo da empresa não é crime. Logo, a invocação dessa condição, sem a descrição de condutas específicas que vinculem cada diretor ao evento criminoso, não basta para viabilizar a denúncia” (RT 715/526 – grifei). Vale ressaltar que esse entendimento foi realçado em diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 80.549/SP, Rel. Min. Nelson Jobim – HC 85.948/PA, Rel. Min. Ayres Britto – HC 88.875/AM, Rel. Min. Celso de Mello – HC 89.427/BA, Rel. Min. Celso de Mello – HC 107.187/SP, Rel. Min. Ayres Britto – RHC 85.658/ES, Rel. Min. Cezar Peluso, v.g.): “‘Habeas corpus’ – Crime contra o Sistema Financeiro Nacional – Responsabilidade penal dos controladores e administradores de instituição financeira – Lei nº 7.492/86 (ART. 17) – Denúncia que não atribui comportamento específico e individualizado aos diretores da instituição financeira – Inexistência, outrossim, de dados probatórios mínimos que vinculem os pacientes ao evento

delituoso – Inépcia da denúncia – Pedido deferido. Processo penal acusatório – Obrigação de o Ministério Público formular denúncia juridicamente apta. – O sistema jurídico vigente no Brasil – tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático – impõe, ao Ministério Público, notadamente no denominado ‘reato societario’, a obrigação de expor, na denúncia, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a participação de cada acusado na suposta prática delituosa. – O ordenamento positivo brasileiro – cujos fundamentos repousam, dentre outros expressivos vetores condicionantes da atividade de persecução estatal, no postulado essencial do direito penal da culpa e no princípio constitucional do ‘due process of law’ (com todos os consectários que dele resultam) – repudia as imputações criminais genéricas e não tolera, porque ineptas, as acusações que não individualizam nem especificam, de maneira concreta, a conduta penal atribuída ao denunciado. Precedentes. A pessoa sob investigação penal tem o direito de não ser acusada com base em denúncia inepta. – A denúncia deve conter a exposição do fato delituoso, descrito em toda a sua essência e narrado com todas as suas circunstâncias fundamentais. Essa narração, ainda que sucinta, impõese ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura, ao réu, o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que deixa de estabelecer a necessária vinculação da conduta individual de cada agente aos eventos delituosos qualifica-se como denúncia inepta. Precedentes. Delitos contra o Sistema Financeiro Nacional – Peça acusatória que não descreve, quanto aos diretores de instituição financeira, qualquer conduta específica que os vincule, concretamente, aos eventos delituosos – Inépcia da denúncia. – A mera invocação da condição de diretor ou de administrador de instituição financeira, sem a correspondente e objetiva descrição de determinado comportamento típico que o vincule, concretamente, à prática criminosa, não constitui fator suficiente apto a legitimar a formulação de acusação estatal ou a autorizar a prolação de decreto judicial condenatório. – A circunstância objetiva de alguém meramente exercer cargo de direção ou de administração em instituição financeira não se revela suficiente, só por si, para autorizar qualquer presunção de culpa (inexistente em nosso sistema jurídico-penal) e, menos ainda, para justificar, como efeito derivado dessa particular qualificação formal, a correspondente persecução criminal. – Não existe, no ordenamento positivo brasileiro, ainda que se trate de práticas configuradoras de macrodelinquência ou caracterizadoras de delinquência econômica, a possibilidade constitucional de incidência da responsabilidade penal objetiva. Prevalece, sempre, em sede criminal, como princípio dominante do sistema normativo, o dogma da responsabilidade com culpa (‘nullum crimen sine culpa’), absolutamente incompatível com a velha concepção medieval do ‘versari in re illicita’, banida do domínio do direito penal da culpa. Precedentes. As acusações penais não se presumem provadas: o ônus da prova incumbe, exclusivamente, a quem acusa. – Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº 88, de 20/12/37, art.  20, n. 5).

Precedentes. – Para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais (‘essentialia delicti’) que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente. – Em matéria de responsabilidade penal, não se registra, no modelo constitucional brasileiro, qualquer possibilidade de o Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer a culpa do réu. Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita.” (HC 84.580/SP, Rel. Min. Celso de Mello) “1. ‘Habeas Corpus’. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492, de 1986). Crime societário. 2. Alegada inépcia da denúncia, por ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados. 3. Mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de crimes societários, entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as condutas de cada indiciado, bastando a indicação de que os acusados fossem de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. Precedentes: HC nº 86.294-SP, 2ª Turma, por maioria, de minha relatoria, DJ de 03.02.2006; HC nº 85.579-MA, 2ª Turma, unânime, de minha relatoria, DJ de 24.05.2005; HC nº 80.812-PA, 2ª Turma, por maioria, de minha relatoria p/ o acórdão, DJ de 05.03.2004; HC nº 73.903-CE, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ de 25.04.1997; e HC nº 74.791-RJ, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 09.05.1997. 4. Necessidade de individualização das respectivas condutas dos indiciados. 5. Observância dos princípios do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), da ampla defesa, contraditório (CF, art. 5º, LV) e da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Precedentes: HC nº 73.590-SP, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 13.12.1996; e HC nº 70.763-DF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23.09.1994. 6. No caso concreto, a denúncia é inepta porque não pormenorizou, de modo adequado e suficiente, a conduta do paciente. 7. ‘Habeas corpus’ deferido.” (HC 86.879/SP, Red. p/ o acórdão Min. Gilmar MendeS – grifei) “1. Ação penal. Denúncia. Deficiência. Omissão dos comportamentos típicos que teriam concretizado a participação dos réus nos fatos criminosos descritos. Sacrifício do contraditório e da ampla defesa. Ofensa a garantias constitucionais do devido processo legal (‘due process of law’). Nulidade absoluta e insanável. Superveniência da sentença condenatória. Irrelevância. Preclusão temporal inocorrente. Conhecimento da arguição em HC. Aplicação do art. 5º, incs. LIV e LV, da CF. Votos vencidos. A denúncia que, eivada de narração deficiente ou insuficiente, dificulte ou impeça o pleno exercício dos poderes da defesa, é causa de nulidade absoluta e insanável do processo e da sentença condenatória e, como tal, não é coberta por preclusão. 2. Ação penal. Delitos contra o sistema financeiro nacional. Crimes ditos societários. Tipos previstos nos arts. 21, § único, e 22, ‘caput’, da Lei 7.492/86. Denúncia genérica. Peça que omite a descrição de comportamentos típicos e sua atribuição a autor individualizado, na qualidade de administrador de empresas. Inadmissibilidade. Imputação às pessoas jurídicas. Caso de responsabilidade penal objetiva. Inépcia reconhecida. Processo anulado a partir da denúncia, inclusive. HC concedido para esse fim. Extensão da ordem ao co-réu. Inteligência do art. 5º, incs. XLV e XLVI, da CF, dos arts. 13, 18, 20 e 26 do CP e 25 da Lei 7.492/86. Aplicação do art. 41 do CPP. Votos vencidos. No caso de crime contra o sistema financeiro nacional ou de outro dito ‘crime societário’, é inepta a denúncia genérica, que omite descrição de comportamento típico e sua atribuição a autor individualizado, na condição de diretor ou administrador de empresa.” (HC 83.301/RS, Red. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso – grifei) “‘Habeas corpus’. Denúncia. Estado de Direito. Direitos fundamentais. Princípio da dignidade

da pessoa humana. Requisitos do art. 41 do CPP não preenchidos. 1 – A técnica da denúncia (art. 41 do Código de Processo Penal) tem merecido reflexão no plano da dogmática constitucional, associada especialmente ao direito de defesa. Precedentes. 2 – Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. 3 – Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso. 4 – Ordem deferida, por maioria, para trancar a ação penal.” (RTJ 195/126, Rel. Min. Gilmar Mendes – grifei) Também no HC n. 127.415, relatado pelo Min. Gilmar Mendes realçou-se que “É fundamental que o mínimo de individualização da conduta esteja contido na denúncia para permitir o recebimento”215. Este julgado rechaçou o entendimento do TRF da 3ª Região no sentido de que “No que toca à autoria delitiva, o contrato social é suficiente para o oferecimento da denúncia, uma vez que nessa fase o juiz deve aplicar o princípio in dubio pro societate, verificando a procedência da acusação no curso da ação penal”216 e, igualmente, do STJ segundo a qual “nos crimes societários, não se exige a descrição individualizada da conduta de cada acusado, bastando a narrativa do fato delituoso e a indicação da suposta participação do agente”217. No corpo do aresto, o relator chamou a atenção para a questão relevante na jurisprudência do STF: (...) diz respeito ao contraditório e à ampla defesa exercida em face de denúncia genérica ou que não descreve de maneira adequada os fatos imputados ao denunciado. É substancial a jurisprudência do Tribunal, que considera atentatório ao direito do contraditório o oferecimento de denúncia vaga ou imprecisa, por dificultar ou impedir o exercício do direito de defesa (Cf. HC 70.763, rel. min. Celso de Mello, DJ de 23.9.1994; HC 86.879, red. do acórdão min. Gilmar Mendes, DJ de 16.6.2006; HC 85.948, rel. min. Carlos Britto, DJ de 1º.6.2006; HC 84.409, rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 19.8.2005; HC 84.768, red. do acórdão min. Gilmar Mendes, DJ de 27.5.2005, INQ 1.656, rel. min. Ellen Gracie, DJ de 27.2.2004). Depois, o julgado assinala que o STF vinha mitigando a exigência quanto a uma denúncia precisa nos crimes societários, com a indicação pormenorizada dos fatos em relação a cada um dos denunciados, com fundamento que tal exigência pudesse dar ensejo a um quadro de impunidade. Todavia, pondera que “não se pode atribuir o dolo solidariamente a todos os sócios, uma vez que o ordenamento jurídico penal está impregnado da ideia de que a responsabilização penal se dá, em regra, pela aferição da responsabilidade subjetiva”. Na verdade, como preferiu o Min. Jorge Scartezzini ao julgar o RHC n. 9.396, “a responsabilidade penal não é objetiva e em razão disso, o simples fato de constar o nome do réu no contrato social, por si só, não é suficiente para ensejar a persecução criminal”218. Outro exemplo da guinada na jurisprudência do STF quanto ao tema das denúncias genéricas nos casos de crimes de autoria coletiva ou societários, é o decidido no HC n. 93.683 da relatoria do Min. Eros Grau, assim ementado: Habeas corpus. Constitucional e processual penal. Crime societário. Apropriação indébita de contribuição previdenciária. Inépcia da denúncia: imputação genérica e ausência de nexo de causalidade. Prejuízo ao exercício da ampla defesa (Constituição do Brasil, artigo 5º, inciso LV) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal evoluiu no sentido de que a descrição genérica da conduta nos crimes societários viola o princípio da ampla defesa. É inepta a denúncia pela prática do crime de apropriação indébita previdenciária quando fundada tão somente na circunstância de

o paciente constar do quadro societário da empresa. É necessário o mínimo de individualização da conduta e a indicação do nexo de causalidade entre esta e o delito de que se trata, sem o que fica impossibilitado o exercício da ampla defesa (Constituição do Brasil, artigo 5º, inciso LV). Ordem concedida219. De fato, a denúncia genérica, mais do que cercear a defesa, acaba por inverter o ônus da prova como advertiu o Min. Hamilton Carvalhido ao relatar o HC n. 34.364220 e endossado pelo Min. Félix Fischer no HC n. 76.189221, assim resumido: A denúncia genérica acaba por inverter o ônus da prova, pois a partir da inobservância por parte do órgão acusador do ônus da descrição mínima da conduta imputada na exordial com a demonstração da potencial participação do denunciado nos fatos narrados, em última análise implicaria na incumbência do denunciado em demonstrar a sua não participação nos fatos. O STJ segue firme na senda da jurisprudência do STF ao reiterar a inépcia da denúncia que se limita “a afirmar que os réus eram proprietários da empresa, não descrevendo os elementos que os vinculassem aos fatos imputados”222.

5.4.2. Denúncia inepta por se remeter a outra peça do processo Não pode a denúncia relegar a descrição do fato para os documentos “tais e quais” dos autos, não só porque, como visto, é essa peça que delimita todo o âmbito da causa de pedir, como pela circunstância de que na citação o acusado não recebe os “tais e quais” documentos a que a denúncia faz remissão. E mesmo que o imputado os recebesse, não lhe incumbe extrair dos documentos, por si, qual seria a “adequação típica” dos supostos fatos ali documentados. Tal prática cerceia a amplitude do direito de defesa, de resto também consagrada pelo Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, e que, em seu art. 8º, 2, b, determina ser direito humano: “a comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada”. Nesse sentido, merece menção antigo precedente do TJSP, lavrado pelo Des. Xavier Homrich: “é evidentemente inepta a denúncia que faz remissão a outros atos do processo, ao invés de narrar, com todas as suas circunstâncias o fato delituoso”223. No mesmo sentido, o próprio STF também firmou o seguinte entendimento: Denúncia. É inepta a que não especifica, nem descreve, ainda que sucintamente, os fatos criminosos atribuídos a dois acusados, limitando-se a referência a outra peça dos autos224. O STJ vai na mesma direção: 4. Na hipótese em apreço, o Órgão Acusatório cinge-se a afirmar que o paciente teria utilizado conta corrente no exterior para realizar pagamentos relacionados a câmbio, reportando-se a documentos que constariam de volumes apensos ao processo, olvidando-se contudo, de descrever quando a conduta teria sido praticada, quais pagamentos relacionados a câmbio teriam sido realizados pelo paciente, deixando de declinar, inclusive, a quantia destes, informações sem as quais se impede a correta delimitação dos fatos que configurariam o crime de evasão de divisas. 5. Por se tratar de peça que define os limites da prestação jurisdicional, é vedado ao Órgão Acusatório simplesmente se reportar a documentos constantes dos autos supostamente aptos a complementar a narrativa dos fatos, diante da incompatibilidade de tal artifício com a certeza que se exige de uma condenação criminal225. Neste julgado o relator compila dois precedentes do STF da maior importância: Ementa: Ação penal. Crime contra o Sistema Financeiro Nacional. Tipos previstos nos artigos 4º e 17 da Lei nº 7.492/86. Denúncia que se reporta a relatório da autoridade administrativa que, no entanto, afasta a responsabilidade do paciente. Peça que omite a descrição de comportamentos típicos atribuídos ao acusado. Inadmissibilidade. Inépcia reconhecida. HC concedido para trancar a ação penal em relação ao paciente. Inteligência do art. 5º, incs. XLV e XLVI, da CF. Aplicação do

art. 41 do CPP. Precedentes. É inepta a denúncia que remete a individualização e delimitação das condutas a relatório formulado por Comissão de Inquérito do Banco Central, se este afasta, expressamente, a responsabilidade do acusado. (HC 95507, Relator(a): Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, julgado em 09/03/2010, DJe-071 Divulg 22-04-2010 Public 23-04-2010 Ement Vol-02398-02 PP-00261) Ementa: Habeas Corpus. 1. Crimes previstos nos artigos 147 c/c artigo 61, II, alínea “g”, do Código Penal e artigo 3º, alínea “j”, c/c artigo 6º, § 4º, da Lei nº 4.898/1965 (ameaça com a agravante genérica do abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão e abuso de autoridade). 2. Alegações: a) ausência de representação quanto ao crime de ameaça; e b) ausência de justa causa para a ação penal em face da denúncia não descrever as condutas típicas imputadas ao paciente. 3. No caso concreto, a denúncia limita-se a reportar, de maneira pouco precisa, os termos de representação formulada pelos policiais rodoviários federais envolvidos. Não narra o ato concreto do paciente que configure ameaça ou abuso de autoridade. A peça acusatória não observou os requisitos que poderiam oferecer substrato a uma persecução criminal minimamente aceitável. 4. Na espécie, a atividade persecutória do Estado orienta-se em flagrante desconformidade com os postulados processuais-constitucionais. A denúncia não preenche os requisitos para a regular tramitação de uma ação penal que assegure o legítimo direito de defesa, tendo em vista a ausência de fatos elementares associados às imputações dos crimes de ameaça e abuso de autoridade. Precedentes: HC nº 86.424/SP, acórdão de minha relatoria, Rel. originária Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, por maioria, DJ de 20.10.2006; HC nº 84.388/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, unânime, DJ de 19.05.2006; e HC nº 84.409/SP, acórdão de minha relatoria, Rel. originária Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, por maioria, DJ de 19.08.2005. 5. Ordem concedida para que seja trancada a ação penal instaurada contra o paciente, em face da manifesta inépcia da denúncia. (HC 86395, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 12/09/2006, DJ 06-11-2006 PP-00050 Ement Vol-02254-03 PP-00440 RTJ VOL-00200-01 PP-00122). Enfim, além de cercear a defesa, a denúncia não pode eximir-se da tarefa básica e indeclinável de narrar o fato criminoso em todas as circunstâncias (CPP, art. 41). Isso, obviamente, não significa que a denúncia por homicídio não possa, ao falar das lesões corporais, reportar-se ao laudo. Todavia, se pretende acusar alguém da prática do homicídio qualificado pelo recurso que qualificou ou impossibilitou a defesa da vítima, não pode se reportar a reconstituição dos fatos; tem, obrigatoriamente, que descrever a conduta qualificada do agente ainda que, depois, possa referir à reconstituição. O mesmo vale para os crimes econômicos como se viu no julgado relatado pelo Min. Jorge Mussi, ou em caso do crime de revenda de combustível fora das especificações. Como decidiu a Sexta Turma do STJ: 3. Entende essa Corte que o texto do inciso I do artigo 1º da Lei n. 8.176/1991 revela uma norma penal em branco, que exige complementação por meio de ato regulador, devendo a inicial acusatória expressamente mencionar o ato regulatório extrapenal destinado à concreta tipificação do ato praticado, sob pena de inépcia formal da denúncia. 4. Na presente hipótese, constata-se que a inicial acusatória, além de limitar-se a afirmar que os réus eram proprietários da empresa, não descrevendo os elementos que os vinculassem aos fatos imputados, deixou de indicar a norma regulamentadora violada, o que enseja sua inépcia formal226.

5.5. Nulidade da decisão desfundamentada que confirma o recebimento da denúncia O Min. José Paulo Sepúlveda Pertence, que tanta falta nos faz na Suprema Corte, ao relatar o Recurso Extraordinário nº 210.917-7-RJ no Pleno do STF, fez contundente referência ao “misoneísmo exegético ou a interpretação retrospectiva que sói atribuir-se, muitas vezes com razão, à jurisprudência constitucional que, avessa às inovações de uma Constituição, continua a decidir, na sua vigência, como se nada houvesse mudado...”227. Assim foi com a presunção de inocência e tantos outros temas. Agora, assistimos algo parecido com a questão do recebimento da denúncia no processo comum, regido pelo rito ordinário ou mesmo o sumário.

Apesar das inovações (convenha-se, já não tão novas porque em vigor há mais de 8 anos), velhos bordões como o da desnecessidade de fundamentação da decisão que recebe a denúncia continuam nos atordoando. São os conhecidos julgados que vêm desde os anos 40 do século passado a dizer que a decisão que recebe a denúncia, a rigor, não é decisão; é mero despacho e por aí vai. Ilustra a situação o decidido no AgRg no RHC n. 38.189, de relatoria do Min. Ribeiro Dantas: Conforme reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e na esteira do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, consagrou-se o entendimento de inexigibilidade de fundamentação complexa no despacho de recebimento da denúncia, em virtude de sua natureza interlocutória, não se equiparando à decisão judicial a que se refere o art. 93, IX, da Constituição Federal. Precedentes. 3. “Esta Corte vem admitindo como mero despacho a manifestação do magistrado de recebimento da denúncia, de modo que não cabe falar em nulidade por deficiência de fundamentação, pois somente na posterior decisão de absolvição sumária é que se exige o exame das teses relevantes e urgentes.” (AgRg no RHC 64.324/PE, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 29/08/2016)228. Bem por isso, vale, ao menos para espantar falsas premissas, reiterar pontos centrais da reforma e sua interpretação jurisprudencial. Diz o art. 396-A do CPP: “na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à defesa, oferecer documentos e justificações, especificar provas...”. Já o disposto no art. 396-A, § 2º, do Código de Processo Penal, preceitua: “não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias”. Ora, analisando-se esta última regra processual observa-se que, “na redação antiga da defesa prévia, ela mostrava-se facultativa. Agora, com o novo 396-A, ela é obrigatória. A lei não diz que o juiz poderá nomear defensor, como se fosse uma faculdade do magistrado. Não. Trata-se de norma cogente, imperativa que determina a nomeação, pelo juiz, de defensor para que esta etapa procedimental da defesa preliminar seja cumprida.”229. Sobre o tema, Guilherme de Souza Nucci explica: “é imprescindível o oferecimento da defesa prévia, tanto que, uma vez citado, se deixar o réu de apresentá-la, deve o magistrado nomear defensor para tanto, concedendo-lhe vista dos autos por dez dias. Parece-nos, igualmente, imprescindível que o defensor constituído ofereça a defesa prévia. Se não o fizer, pode-se considerar o réu indefeso, nomeando-se defensor dativo ou indicando-se defensor público para oferecer a peça exigida”230. Portanto, de acordo com a nova sistemática legal, a resposta à acusação é essencial, imprescindível, indispensável e a sua ausência nos autos caracteriza nulidade absoluta. De fato, “a inobservância do disposto no art.  397 do Código de Processo Penal contraria o devido processo legal, sendo evidente o prejuízo ocasionado ao paciente, que não teve as suas razões previamente analisadas pelo magistrado de origem”231. Nesse sentido a lição pretoriana do TJSP pela voz do Des. Hermann Herschander, antigo membro do Ministério Público paulista: (...) Verifica-se, portanto, que a Defesa oferecida se valeu daquilo que o artigo 396-A lhe faculta: “argüir preliminares e alegar tudo o que interesse”. Não há dúvida de que o direito à resposta preliminar conferido à Defesa pela nova sistemática processual tem como consectário inarredável o direito à apreciação fundamentada das preliminares e matérias ali arguidas, quaisquer que sejam. (...) Quanto às preliminares e ao requerimento defensivo, a digna Autoridade coatora nada diz. Ora, se ao Juiz somente fosse imposta a apreciação de matérias pertinentes às hipóteses de absolvição sumária, não se compreenderia a razão pela qual a lei faculta à Defesa, nesse momento, a arguição de preliminares. (...) Temos que a solução adequada à hipótese é a anulação do feito a partir da decisão que rejeitou a resposta preliminar(...) Assim, caberá ao MM. Juiz apreciar todas as teses defensivas, na forma devida. Não cabe alegar que, já antes recebida a denúncia pelo MM. Juiz, não lhe caber apreciar a tese de ausência de justa causa, pois ultrapassada. (...) sendo a falta de justa causa questão cuja relevância permite até mesmo a rejeição de plano da denúncia ou da queixa, não faz sentido impedir que, caso ela venha a ser constatada a seguir, através de

elementos trazidos pela resposta preliminar, o Magistrado a reconheça e obste o infrutífero prosseguimento do feito, através de juízo de retratação do recebimento da denúncia. (...) Portanto, deve o Magistrado nessa fase, para manter o recebimento da denúncia, rejeitar fundamentadamente eventuais alegações defensivas relativas às hipóteses de rejeição, previstas no artigo 395 do CPP. Anula-se o feito, portanto, a partir da decisão que rejeitou a defesa prévia, por carência de fundamentação232. Nesse contexto, o juiz não pode deixar de apreciar as teses postas pela defesa e receber a denúncia sem fundamentação. O Min. Felix Fischer, relatando acórdão unânime da 5ª Turma do STJ, alerta: “se não fosse necessário exigir que o Magistrado apreciasse as questões relevantes trazidas pela defesa – sejam preliminares ou questões de mérito – seria inócua a previsão normativa que assegura o oferecimento de resposta ao acusado”233. Mas ressalva: para se evitar um prejulgamento, “a fundamentação referente à rejeição das teses defensivas, nesta fase, há de ser concisa...”234. Eugênio Pacelli, na mesma linha entende que “o pronunciamento decisório do juiz nessa fase deve ter a mesma extensão e profundidade da decisão de pronúncia, guardadas as distinções quanto ao respectivo conteúdo”235. Aliás, diante da nova sistemática, não se pode mais dizer que a decisão que confirma o recebimento da denúncia, precedida de contraditório, classifica-se entre as interlocutórias simples. Ainda que não haja previsão recursal para esta decisão, impugnável unicamente pela via do habeas corpus, está mais do que na hora de mudar sua classificação doutrinária. A exigência de fundamentação, não representa apenas uma forma de “educação processual”, pois o processo, antes de tudo, é diálogo; exige-o a própria Constituição republicana (art. 93, inc. IX). De fato, a inexistência de fundamentação “revela que a decisão não foi fruto de uma ponderada reflexão sobre os elementos de fato e de direito disponíveis nos autos, mas representa ato de pura vontade pessoal do seu autor”236, ensina Antonio Magalhães Gomes Filho. É, no ponto, preciso lembrar antiga interpretação pretoriana, anterior à Constituição de 1988. No Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, no julgamento do RE nº 74.297-RJ, o Min. Xavier de Albuquerque, em seu voto, destacou a diferença de tratamento entre o procedimento penal comum e aqueles nos quais, previamente ao recebimento da inicial acusatória, há manifestação da defesa. Como advertiu: “Nesses casos, insere-se antecipação de contraditório, traduzindo em resposta documentada do denunciado, entre o oferecimento da demanda penal e seu recebimento pelo Juiz ou Tribunal, como pretendi ressaltar no voto que proferi em 9.11.72, na Ação Penal 215. Neles, por outro lado, amplia-se o elemento decisório do despacho de recebimento da denúncia, em confronto com o que se profere nos demais procedimentos, e por igual se ampliam o campo de cognição do órgão jurisdicional”237. Em outra oportunidade, analisando habeas corpus no qual se insurgia contra a ausência de motivação na decisão que recebia denúncia por crime praticado por funcionário público, após o oferecimento da defesa preliminar, prevista no art. 514 do Código de Processo Penal, o Min. Cézar Peluso, explicou que “se a rejeição deve ser fundamentada, também deve sê-lo o juízo de admissibilidade, até porque traz gravosas consequências para o acusado, embora lícitas. Um mínimo de motivação, diante do grau de certeza exigido nessa fase, deve ser cumprido pelo magistrado”238. E, mais adiante, arremata: “Tenho, contudo, que não faria nenhum sentido prescrever que a defesa apresente alegações prévias ao juízo de admissibilidade, como ocorreu no caso, para depois escusar o juiz de analisá-las na decisão que dar início à ação penal”. O ponto é que, havendo contraditório prévio ao recebimento da denúncia, seja em razão do art.  514 do CPP ou mesmo em ações penais originárias regidas pela lei n. 8.038/90 e, agora, nos ritos ordinário e sumário, a carga cognitiva do magistrado (ou do Tribunal) se amplia na fase do recebimento da denúncia e deve, ainda que de maneira sucinta, mas concretamente, responder às teses da defesa, sob pena de nulidade.

5.5.1. O surgimento de um truque interpretativo O misoneísmo exegético não pode imperar onde a mudança legislativa é clara! Mas aí apareceu um velho truque. A validação de decisões com a aparência de fundamentadas. São decisões, tidas como sucintas, mas que, de verdade, são genéricas. Assim, são comuns as seguintes expressões: “As alegações da defesa serão apreciadas ao final do processo, pois se confundem com o mérito” ou “nessa fase não se identifica nenhuma razão para se absolver sumariamente o acusado”. E os Tribunais, inclusive os Superiores, começaram a dizer que há necessidade da demonstração do prejuízo: 2. Não há nulidade na decisão que rejeita, de forma concisa, as alegações apresentadas na resposta à acusação. Precedentes. 3. A jurisprudência desta Corte Superior se firmou no sentido de que o reconhecimento de nulidade exige a demonstração do prejuízo, à luz do art. 563 do Código de Processo Penal, segundo o princípio pas de nullité sans grief. Prejuízo não demonstrado239. A pretexto de serem sucintas, são validadas. É um erro, pois, em verdade, são decisões genéricas, que cabem em qualquer processo, “pret a porter” e, portanto, não podem ser consideradas como fundamentadas. Violenta-se o devido processo penal. Aliás, é do sempre lembrado Min. Sepúlveda Pertence, o método para identificar decisão sem motivação. Diz ele que “a melhor prova da ausência de motivação de um julgado é que a frase enunciada, a pretexto de fundamentá-lo, sirva, por sua vaguidão, para a decisão de qualquer outro caso”240. Aliás, o novo Código de Processo Civil estabelece claramente não se considerar fundamentada a decisão que “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” (art. 489,§ 1º, III). Não por acaso, julgado paradigmático da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, relatado pela Desembargadora Federal Cecília Mello ementou decisão na qual dirime dúvidas sobre a ilegalidade das decisões genéricas: II – As questões arguidas pela defesa na resposta escrita, devem ser apreciadas pelo magistrado a quo, ainda que de forma sucinta, porém não genérica. III – O pronto conhecimento pelo juiz natural da causa, das questões preliminares, em grande parte de ordem pública, é recomendável, não só no interesse das partes, mas principalmente no da jurisdição”241. Portanto, diante da exigência constitucional de fundamentação concreta e específica, é inaceitável que se profiram decisões genéricas, que caibam em todos os processos. A resposta do magistrado às questões apresentadas pela defesa antes do recebimento da denúncia representa um imperativo do devido processo legal.

5.5.2. Nulidade da pronúncia que acolhe qualificadora sem fundamentação A pronúncia deve ser sóbria em relação aos fundamentos expendidos. Não pode haver excesso de linguagem, pois se trata de um juízo confinado à admissibilidade da acusação; não pode, igualmente, ser transformado num juízo sobre a culpa do acusado, deliberação reservada exclusivamente ao Conselho de Sentença. Isso, todavia, não exime o juiz do dever de, ao remeter o feito para julgamento perante o Júri, fundamentar a decisão tanto no que diz com a presença de indícios de autoria como em relação à prova da materialidade. O mesmo vale para as qualificadoras. Em acórdão paradigmático do final dos anos 90, ao julgar o REsp n.178.229, o Min. Félix Fischer destacou que o “art. 93, IX, 2ª parte da Lex Fundamentalis, para evitar abusos, deixa claro que os atos judiciais relevantes devem ser fundamentados nos limites de sua incidência. No iudicium accusationis, a fundamentação é indispensável, mas não deve, e não pode, ir além da mera admissibilidade. Caso contrário, a pronúncia não retrataria uma admissibilidade da acusação, mas, sem nenhum sentido, seria uma simples homologação de toda e qualquer denúncia”242. Em

outro julgado, o mesmo relator destaca ainda que “a admissibilidade deve ser concreta e sucintamente indicada”243. Ou seja, na pronúncia, o juiz deve indicar a razão de ser, específica, da admissibilidade da acusação como um todo e não somente do tipo básico. Ainda mais quando o tipo qualificado é tido como hediondo, apresentando, portanto, consequências processuais e penais sérias. Diferente não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal como se vê da expressiva ementa do HC n. 74.351 conduzido pelo Min. Celso de Mello, no sentido de que “a sentença de pronúncia deve analisar as qualificadoras imputadas ao réu” e “sempre com fundamento em prova idônea”244. Embora os julgados mais recentes da Suprema Corte também se coloquem na mesma linha dos antigos quanto à necessidade de fundamentação da pronúncia em relação às qualificadoras, após a reforma de 2008, com a modificação na redação do art. 413, § 1º, do CPP, surge a questão de saber se, ainda hoje, é necessária essa específica fundamentação da pronúncia. Dispõe o art. 413, § 1º, do CPP: Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. §  1º. A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena. Guilherme de Souza Nucci continua entendendo, apesar da expressão legal apenas mandando o juiz especificar as qualificadoras, que do “mesmo modo que precisa o juiz fundamentar o seu convencimento em relação à materialidade e à autoria, necessita expor os motivos que o levam a manter eventuais qualificadoras constantes da denúncia”245. Na direção do entendimento doutrinário, o Superior Tribunal de Justiça, por suas duas Turmas especializadas em matéria penal, interpretando o dispositivo no que diz com a necessidade de fundamentação das circunstâncias qualificadoras na pronúncia, exigida pelo art. 413, § 1º, do CPP, já assentou: 9. Do disposto no §  1º do art.  413 do Código de Processo Penal, tem-se que a decisão que submete o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri deve ser motivada, inclusive no que se refere às circunstâncias qualificadoras do homicídio, sob pena de inviabilização do próprio exercício de defesa (HC nº 159.263, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 14.05.12). No mesmo sentido: HC n. 133.667, 5ª T., rel. Min. Felix Fischer, j. em 02.02.10; HC n. 159.936, 5ª T., rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 17.06.10; HC n. 178.450, 6ª T., rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Dje de 13.3.2013 e HC n. 145.731. rel. Min. Jorge Mussi. 5ª T., DJe 01/08/2011. No corpo do aresto do HC nº 159.263, o Relator, Min. Sebastião Reis Jr., deixou claro o seguinte: Diante do dispositivo legal acima mencionado, dúvidas não há de que a decisão que submete o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri deve ser motivada, inclusive no que se refere às circunstâncias qualificadoras do homicídio, notadamente em razão do disposto no art.  93, IX, da Constituição Federal, que impõe a obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões judiciais. E traz a colação o prestigioso escólio de Guilherme Nucci, agora em obra diferente da acima citada, verbis: O disposto no § 1º do art. 413 deve ser considerado inconstitucional, se interpretado de maneira abrangente, ou inútil, visto de maneira restrita. A preocupação com a motivação da decisão de pronúncia é evidente, tanto que o legislador, mesmo sem necessidade de explicitar, deixou bem

claro no caput: “fundamentadamente”. No mais, o respeito à Constituição Federal se impõe, pois todas as decisões do Judiciário devem ser fundamentadas (art.  93, IX). A decisão de remeter o caso à apreciação do Tribunal Popular deve oferecer motivação suficiente para demonstrar às partes o convencimento judicial. Pretender limitá-la à materialidade e à autoria é ignorar, por completo, o amplo quadro de alegações porventura trazido pelas partes. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pág. 757). E tem razão o prestigiado Desembargador do TJSP, pois, lembrando-se a lição de Norberto Bobbio, o ordenamento jurídico não pode ser interpretado como um amontoado de normas sem relações particulares entre si246. Assim, a regra do art. 93, IX, da Constituição Federal, ilumina todo o ordenamento jurídico, inclusive quanto à exigência de fundamentação no acolhimento das qualificadoras na pronúncia. Daí o preciso ensinamento do Promotor de Justiça Renato Brasileiro de Lima: Presente uma qualificadora, e desde que ela tenha constado da peça acusatória, deve o magistrado não só declarar qual seria o dispositivo legal, como também especificar em que teria consistido. Exemplificando, não basta apontar a qualificadora do art.  121, § 2º, II, do CP, sendo necessário que o magistrado descreva qual teria sido o motivo fútil que levou o agente à prática do delito247. Gustavo Badaró adverte que a determinação da regra processual em exame, no sentido de que o juiz deva “especificar” as qualificadoras, significa “mais do que declarar o dispositivo legal”248. Expressivo, no ponto, os dizeres do Min. Jorge Mussi ao ementar o acórdão do HC n. 145.731: Conquanto o § 1º do artigo 413 do Código de Processo Penal preveja que “a fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”, não há dúvidas de que a sentença que submete o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri deve ser motivada, inclusive no que se refere às qualificadoras do homicídio, notadamente diante do disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, que impõe a fundamentação de todas as decisões judiciais (DJe 01/08/2011). Idem o Min. Felix Fischer no HC n. 133.667: II – Ainda que se trate de um mero juízo de admissibilidade, no qual é vedado proceder-se a um exame exauriente da prova e em que prevalece o princípio in dubio pro societate, revela-se nula a decisão de pronúncia que deixa de motivar concretamente a admissibilidade da acusação por não tratar da admissão de qualificadora (Precedente). Ordem concedida (, j. 02.02.10). E também o Min. Rogério Schietti Cruz no HC n. 236.676: 1. A jurisprudência desta Corte de Justiça há muito consignou que a pronúncia deve ser sóbria na apreciação das provas, mas deve haver uma fundamentação mínima para o reconhecimento das qualificadoras, sob pena de se desprezar o princípio constitucional que recomenda a motivação das decisões judiciais. 2. A simples menção às folhas dos autos, sem que sejam concretamente apontadas quais circunstâncias extraídas das provas indicadas justificam as qualificadoras, não supre o dever de motivação das decisões judiciais previsto no art. 93, IX, da Constituição Federal249. Na mesma linha colocam-se também os precedentes mais recentes do STF: O dever de motivação exige que haja na decisão de pronúncia fundamentação adequada quanto à prova da materialidade e aos indícios suficientes de autoria, bem como a indicação de base empírica idônea para o reconhecimento das qualificadoras (1ª T., HC n. 113.293, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 23/2/2015). No mesmo sentido: HC n. 122.924, rel. Min. Dias Toffoli, DJe

17/11/2014. É importante ter presente que a qualificadora é “elemento acidental do crime, e não circunstância da pena”250. Assim, se é elemento do crime e, inclusive, o torna hediondo, o reconhecimento deste na forma qualificada, ainda que de maneira indiciária e mesmo que sucintamente, dever vir concretamentefundamentado, sob pena de nulidade: 1. Nula a sentença de pronúncia por ausência de fundamentação quando não há referência a qualquer elemento concreto mínimo quanto à autoria do fato e presença das qualificadoras (HC n. 159.936, 5ª T., rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 17.06.10). A pronúncia deve ser sóbria na apreciação das provas, mas deve haver uma fundamentação mínima para o reconhecimento das qualificadoras, sob pena de se desprezar o princípio constitucional que recomenda a motivação das decisões judiciais. Ordem concedida para anular a pronúncia e determinar que outra seja prolatada com a mínima fundamentação exigida para o reconhecimento das qualificadoras (HC n. 123.073/SP, 6ª T., rel. Min. Jane Silva, DJe de 02/03/2009). 7. O Superior Tribunal de Justiça é firme na compreensão de que a decisão de pronúncia deve ser comedida na apreciação das provas, mas deve conter uma mínima fundamentação para o reconhecimento das qualificadoras, deixando o juízo de valor acerca da sua efetiva ocorrência para ser apreciado por quem constitucionalmente competente, o Conselho de Sentença do Tribunal do Júri. (HC 178.450, 6ª T., rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Dje de 13.3.2013). 2. No caso dos autos, não tendo o magistrado singular motivado, ainda que sucintamente, a admissibilidade das qualificadoras do delito de homicídio imputado ao paciente, e tendo a Corte de origem considerado tal proceder legítimo, atestando a desnecessidade de motivação da sentença no tocante à referida matéria, impõe-se a anulação dos referidos pronunciamentos judiciais. 3. Ordem parcialmente concedida para anular a decisão de pronúncia, tão somente na parte referente às qualificadoras do crime de homicídio, determinando-se que o magistrado de origem proceda à fundamentação acerca da admissibilidade ou não de tais das circunstâncias narradas na denúncia. (HC 145.731, 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, DJe 01/08/2011). Portanto – e para não insistirmos no óbvio –, é evidente que a decisão de pronúncia deve ser fundamentada, ainda que minimamente, também no que diz com o acolhimento das qualificadoras. Isso porque, em direito penal, nada há de implícito ou subentendido (JTACrSP, ed. Lex., 74/37). Tudo deve ser claro e explícito. Aliás, na lapidar colocação de Bettiol: “típico da motivação é tornar explícito o que é implícito, de tal sorte a se poder afirmar que motivação implícita não é motivação”251.

5.6. Nulidade decorrente da redução do número de testemunhas pelo juiz Há uma interpretação rasa do dispositivo legal constante do art. 401 do CPP, segundo o qual, no rito ordinário, o acusado só pode arrolar até oito testemunhas na ação que responde. Na verdade, o imputado pode arrolar até oito testemunhas por crime a que responda. Assim, se forem três os crimes pelos quais se acuse alguém, sua defesa poderá arrolar até vinte e quatro testemunhas, desde, é claro, que todos os crimes sejam apenados com reclusão e regidos pelo mesmo rito. Sobre o tema o TRF da 3ª Região reconheceu a nulidade da decisão do juiz que reduziu o número de testemunhas: Quando apresentada defesa prévia, após o recebimento da denúncia e seu aditamento, foram arroladas 13 testemunhas. O art. 398 do CPP estabelece que o número de testemunhas de acusação é no máximo 08 e de defesa até 08. Como os réus em apreço são 05, cada um tem direito de arrolar até 08 testemunhas. Se se considerar o número de fatos, também cada um poderia arrolar mais de 08 testemunhas, pois a denúncia descreve falta de recolhimento de contribuições em relação a

várias competências. Tanto é que o Ministério Público invoca a aplicação do art.  71 do CP. – Mesmo se se entendesse que a defesa havia arrolado número excessivo de testemunhas, cabia ao juiz, antes de reduzi-lo, dar oportunidade à parte para adequar ao número legal (RT 741/531)252. De fato, como registra Eugênio Pacelli, “é importante observar que o número de testemunhas diz respeito aos fatos imputados. Assim, se houver imputação da prática de mais de um crime, o número de testemunhas variará em relação à quantidade dos delitos. O limite é, assim, para cada fato.”253. Nesse sentido já decidiu o STJ: “o limite máximo de 8 (oito) testemunhas descrito no art. 401, do Código de Processo Penal, deve ser interpretado em consonância com a norma constitucional que garante a ampla defesa no processo penal (art.  5º, LV, da CF/88). 2. Para cada fato delituoso imputado ao acusado, não só a defesa, mas também a acusação, poderá arrolar até 8 (oito) testemunhas, levando-se em conta o princípio da razoabilidade e proporcionalidade”254. Exatamente por isso na AP-470 (Mensalão) o Min. Joaquim Barbosa não acatou pedido do Procurador Geral da República para limitar o rol de testemunhas, permitindo aos réus arrolar testemunhas de acordo com o número de imputações255. Portanto, a redução do número de testemunhas ou mesmo a determinação para que a defesa o faça, representa cerceamento de defesa e gera nulidade absoluta. Segundo a jurisprudência da Suprema Corte não se pode restringir o direito à prova quando legitimamente pretendida. No dizer do Min. Celso de Mello: Assentada a essencialidade da cláusula constitucional do “due process of law”, cabe reconhecer o caráter fundamental de que se acha impregnado o direito à prova, que traduz uma das dimensões em que se desenvolve a garantia do devido processo. Tenho acentuado, em diversas decisões proferidas nesta Suprema Corte, a fundamentalidade do direito à prova (inclusive à prova testemunhal e à prova pericial), cuja inobservância, pelo Poder Público, qualifica-se como causa de invalidação do procedimento estatal instaurado contra qualquer pessoa, seja em sede criminal, seja em sede meramente disciplinar, seja, ainda, em sede materialmente administrativa: “– A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o ‘due process of law’, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina. – Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do ‘due process of law’ (CF, art.  5º, LIV) – independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado –, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV), inclusive o direito à prova. – Abrangência da cláusula constitucional do ‘due process of law’.” (MS 26.358-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello) A importância do direito à prova, especialmente em sede processual penal, ainda mais quando se tratar de inquirição de testemunha arrolada com a nota da imprescindibilidade, é ressaltada pela doutrina (Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, “As nulidades no processo penal”, p. 143/153, itens ns. 1 a 6, 10ª ed., 2007, RT; Julio Fabbrini Mirabete, “Código de Processo Penal Interpretado”, p.  998, item n. 455.1, 7ª ed., 2000, Atlas; Guilherme Madeira Dezem e Gustavo Octaviano Diniz Junqueira, “Nova Lei do Procedimento do Júri Comentada”, p. 95/96, item n. 54, 2008, Millennium; Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, “Curso de Processo Penal”, p.  493, item n. 14.7.5.3.7, 4ª ed., 2009, GEN/Forense; Edilson

Mougenot Bonfim, “Júri: Do Inquérito ao Plenário”, p. 174/175, item n. 6.1, 1994, Saraiva; Adriano Marrey, “Teoria e Prática do Júri”, p.  341/342, item n. 18.01, atualização de doutrina por Luiz Antonio Guimarães Marrey, coordenação de Alberto Silva Franco/Rui Stoco, 7ª ed., 2000, RT; Guilherme de Souza Nucci, “Tribunal do Júri”, p.  160, item n. 3.5.2, 2008, RT; José Ruy Borges Pereira, “Tribunal do Júri: Crimes Dolosos Contra a Vida”, p.  340, 2ª ed., 2000, Edipro; Eugênio Pacelli de Oliveira, “Curso de Processo Penal”, p.  552, item n. 15.4.3.1, 9ª ed., 2008, Lumen Juris; Fernando da Costa Tourinho Filho, “Código de Processo Penal Comentado”, vol. 2/83, 4ª ed., 1999, Saraiva; Damásio de Jesus, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 385, 23ª ed., 2009, Saraiva, v.g.). Essa orientação reflete-se, por igual, na jurisprudência dos Tribunais em geral (RJDTACRIM/SP 11/68-69 – RJTJESP/LEX 117/485 – RT 542/374 – RT 676/300 – RT 723/620 – RT 787/613-614, v.g.). O fato é um só: por representar uma das projeções concretizadoras do direito à prova, configurando, por isso mesmo, expressão de uma inderrogável prerrogativa jurídica, não pode ser negado ao réu o direito de ver inquiridas em Plenário do Júri as testemunhas que arrolou, além dos peritos oficiais e assistentes técnicos (CPP, art. 159, §§ 3º e 5º, incisos I e II, c/c o art. 422), sob pena de inqualificável desrespeito ao postulado constitucional do “due process of law”. Essa orientação doutrinária, por sua vez, reflete-se na jurisprudência dos Tribunais (RT 237/83 – RT 415/80 – RJTJSP/Lex 10/558), inclusive na desta Suprema Corte (RTJ 92/371, Rel. Min. Décio Miranda)256. Em resumo, em respeito ao princípio da ampla defesa, não se pode coibir a legítima produção probatória e o caráter protelatório ou expletivo das testemunhas arroladas ou diligências sugeridas deve ser visto de forma muito cuidadosa pelo magistrado a fim de não gerar nulidade insanável.

5.7. Prova furtada por funcionário para propor ação trabalhista é ilícita Não é incomum demandas propostas com base em documentos subtraídos de uma empresa para o ajuizamento de uma demanda trabalhista ou mesmo algum desafeto utilizá-lo para fins criminais. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC n. 82.862, em acórdão da lavra do Ministro Cezar Peluso, discutiu a matéria e proclamou a ilicitude da prova assim obtida: Prova. Criminal. Documentos. Papéis confidenciais pertencentes a empresa. Cópias obtidas, sem autorização nem conhecimento desta, por ex-empregado. Juntada em autos de inquérito policial. Providência deferida em mandado de segurança impetrado por representante do Ministério Público. Inadmissibilidade. Prova ilícita. Ofensa ao art. 5º, LVI, da CF, e aos arts. 152, § único, 153 e 154 do CP. Desentranhamento determinado. HC concedido para esse fim. Não se admite, sob nenhum pretexto ou fundamento, a juntada, em autos de inquérito policial ou de ação penal, de cópias ou originais de documentos confidenciais de empresa, obtidos, sem autorização nem conhecimento desta, por ex-empregado, ainda que autorizada aquela por sentença em mandado de segurança impetrado por representante do Ministério Público257. No corpo do julgado está dito: Se é certo que têm, as partes, poder jurídico, caracterizado como ônus, de requerer e produzir todas as provas que reputem necessárias ou convenientes à apuração da verdade, não menos o é que o objeto último sobre o qual recai esse poder encontra limite intransponível no seu eventual caráter ilícito, que a Constituição da República não tolera, subtraindo-lhe toda eficácia retórica e consequente uso processual (art. 5º, inc. LVI). Prova ilícita, obtida de forma ilícita, escusaria dizêlo, não é prova; é não prova. No mesmo sentido, decisão monocrática do Min. Celso de Mello Qualifica-se como prova ilícita o material fotográfico, que, embora alegadamente comprobatório de prática delituosa, foi furtado do interior de um cofre existente em consultório odontológico pertencente ao réu, vindo a ser utilizado pelo Ministério Público, contra o acusado,

em sede de persecução penal, depois que o próprio autor do furto entregou à Polícia as fotos incriminadoras que havia subtraído. No contexto do regime constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, impõe-se repelir, por juridicamente ineficazes, quaisquer elementos de informação, sempre que a obtenção e/ou a produção dos dados probatórios resultarem de transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo, notadamente naquelas situações em que a ofensa atingir garantias e prerrogativas asseguradas pela Carta Política (RTJ 163/682 RTJ 163/709), mesmo que se cuide de hipótese configuradora de ilicitude por derivação (RTJ 155/508), ou, ainda que não se revele imputável aos agentes estatais o gesto de desrespeito ao sistema normativo, vier ele a ser concretizado por ato de mero particular258. Mutatis mutandi, é o mesmo entendimento do STJ, que assim decidiu caso no qual a prova foi produzida mediante interceptação telefônica levada a efeito por particular: Na hipótese, o paciente teria sido contratado por Kátia Sirlene Nogueira para, na condição de advogado, acompanhar inquérito policial instaurado com a finalidade de investigar abusos sexuais de que estaria sendo vítima sua filha, apontando como investigado o seu marido, Milton Gonçalves Santos. No curso da investigação para cujo acompanhamento foi contratado, quando o paciente mantinha contato com a sua cliente, suas ligações telefônicas foram interceptadas pelo então investigado, que apresentou o conteúdo das gravações à Delegacia de Polícia (e-STJ fl. 123), o que resultou na instauração de inquérito policial para apurar a suposta prática do delito de tráfico de influência. Embora tais gravações tenham sido implementadas pelo esposo da cliente do paciente com a intenção de provar a sua inocência, é certo que não obteve a indispensável autorização judicial, razão pela qual se tem como configurada a interceptação de comunicação telefônica ilegal. Com efeito, a Constituição Federal estabeleceu como garantia individual a inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, excetuando-a apenas quando a interceptação for necessária para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, sempre precedida por ordem judicial. (...). Não se pode admitir, portanto, que nenhum tipo de interceptação telefônica seja validamente inserida como prova em ação penal sem a prévia autorização judicial, oportunidade na qual o magistrado realiza o controle de legalidade e necessidade da medida invasiva, em respeito à citada garantia constitucional que, frise-se, apenas em hipóteses excepcionais pode ser afastada259. Trata-se de tema tão caro ao Estado Democrático de Direito que, conforme decidiu o STJ no caso acima, nem mesmo o “fato da esposa do autor das interceptações – que era uma interlocutora dos diálogos gravados de forma clandestina – ter consentido posteriormente com a divulgação dos seus conteúdos não tem o condão de legitimar o ato, pois no momento da gravação não tinha ciência do artifício que foi implementado pelo seu marido, não se podendo afirmar, portanto, que, caso soubesse, manteria tais conversas com o seu advogado pelo telefone interceptado” (idem, destaques nossos).

5.7.1. Compartilhamento direto de dados bancários entre a Receita Federal e o MPF. Ilicitude da prova Tendo identificado no curso da ação fiscal situações que, em tese, configuram crime definido nos arts.  1º ou 2º da Lei n. 8.137/1990, auditores fiscais formalizaram, “nos termos do art.  1º e seguintes da Portaria SFR n. 326, de 15/03/2004, a Representação Fiscal para Fins Penais” e nesta anexaram informações fiscais sigilosas. A controvérsia sobre o fisco obter, de forma direta, informações bancárias do contribuinte foi

superada com o julgamento da ADI n. 2859/DF (DJe 21/10/2016), que reconheceu a constitucionalidade do compartilhamento ou da transferência de informações sigilosas no âmbito da Administração Pública, resguardando a publicização de tais dados, principalmente para uso em eventual persecução penal, que ainda permanece sob reserva absoluta de jurisdição. Por maioria de votos, prevaleceu o entendimento de que a norma não resulta em quebra de sigilo bancário, mas sim em transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, ambas protegidas contra o acesso de terceiros. Todavia, como gizou o Min. Rogério Schietti (STJ) ao julgar e conceder monocraticamente a ordem de habeas corpus n. 260.519: A notícia de crime não poderia abranger o compartilhamento de extratos bancários e documentos fiscais com conteúdo protegido por sigilo (declaração de imposto de renda, livros contáveis etc.). Repito, em benefício da clareza: apesar de, no âmbito fiscal, haver permissão para transferência de dados financeiros do contribuinte, as informações sigilosas obtidas durante o procedimento administrativo fiscal devem ser protegidas contra o acesso de terceiros e, assim, não podem ser compartilhadas para uso em persecução penal sem autorização judicial, pois, no âmbito penal, ainda permanecem sob reserva absoluta de jurisdição260. A decisão invoca, ainda, a autoridade da decisão proferida pela 5ª Turma em acórdão da lavra do Min. Ribeiro Dantas assim ementado: (...) Malgrado esta Corte admita o intercâmbio de informações entre as instituições financeiras e a autoridade fiscal para fins de constituição do crédito tributário, isso não significa que o dominus litis possa utilizar-se de tais dados para que seja deflagrada ação penal, porquanto representa verdadeira quebra de sigilo constitucional, inserida em reserva de jurisdição, e não mero compartilhamento de informações. Como cediço, o sigilo bancário, garantido no art.  5º da Constituição da República, somente pode ser suprimido por ordem judicial devidamente fundamentada, nos termos do artigo 93, inciso IX, da Constituição. Nesse sentido é a jurisprudência deste Tribunal, que firmou o entendimento que é imprescindível prévia autorização judicial da representação fiscal para fins penais, caso contenha dados bancários sigilosos, devidamente compartilhados com a autoridade fiscal para consecução do lançamento fiscal. (...) (RHC n. 72.074/MG, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 19/10/2016). Portanto, sob pena de nulidade, o Ministério Público, estadual ou federal, não pode obter diretamente os dados fiscais e bancários do investigado. Em outras palavras, a prova só será lícita se obtida com ordem judicial.

5.8. O juiz não pode sentenciar o feito sem os memoriais defensivos (obrigatórios) Se antes da reforma de 2008 pudesse haver alguma dúvida sobre a possibilidade de o juiz sentenciar o feito sem as alegações finais das partes, hoje chamados de memoriais, é induvidoso que disso não se pode mais cogitar. E por uma razão simples: se o legislador no caso do não oferecimento da resposta à acusação manda que se nomeie defensor para oferecê-la (CPP, art. 396A, § 2º), com maior razão haverá de fazê-lo em se tratando da grave omissão quanto aos memoriais que, na escala de importância para a defesa, é um mais quando comparado à resposta acusação. De qualquer modo, é bom que se diga que muito antes da reforma de 2008, o STF já proclamava que as alegações finais eram “peça essencial do processo-crime, e o juiz não pode sentenciar sem suprir a omissão do defensor”261. Atento à importância dos memoriais, o STF, julgando o HC n. 92.680, decidiu: Ação Penal. Processo. Defesa. Alegações finais. Não apresentação pelo patrono constituído.

Intimação prévia regular. Nomeação de defensor dativo ou público para suprir a falta. Medida não providenciada pelo juízo. Julgamento subsequente da causa. Condenação do réu. Inadmissibilidade. Cerceamento de defesa caracterizado. Violação do devido processo legal. Nulidade processual absoluta. Pronúncia. HC concedido, em parte, para esse fim. Precedentes. Interpretação dos arts.  5º, LIV e LV, da CF, e 261, 499, 500 e 564 do CPP. Padece de nulidade absoluta o processo penal em que, devidamente intimado, o advogado constituído do réu deixa de apresentar alegações finais, sem que o juízo, antes de proferir sentença condenatória, lhe haja designado defensor dativo ou público para suprir a falta262. Posterirormente, também a Primeira Turma sufragou o mesmo entendimento ao julgar o HC n. 94.168: 1. As alegações finais defensivas constituem peça essencial do processo-crime. A falta de nomeação de Defensor Dativo para a respectiva apresentação acarretou evidente prejuízo ao acusado, ainda que absolvido em Primeiro Grau. Prejuízo que se constata, de plano, dado que o réu acabou condenado à pena de 03 (três) anos de reclusão, ante o provimento da apelação ministerial pública perante o Tribunal de Justiça da Paraíba. 2. A simples apresentação de contrarazões ao recurso de apelação acusatório não tem a força de substituir, à altura, a relevante fase procedimental das alegações finais defensivas. Precedente específico: HC 73.227, da relatoria do ministro Maurício Corrêa. 3. Habeas corpus concedido, com a expedição de alvará de soltura do paciente, se por outro motivo não tiver que permanecer preso263. Portanto, é nula a sentença proferida sem a prévia apresentação dos memoriais, ainda que por defensor nomeado pelo juiz. Trata-se de nulidade absoluta e que, nessa medida, prescinde da demonstração de prejuízo, podendo ser arguida a qualquer tempo.

5.9. Livre escolha do advogado. Impossibilidade de o juiz nomear advogado a quem já o tenha, sem a prévia intimação do réu para constituir um novo Tome-se como exemplo o caso anterior. Se o advogado constituído, regularmente intimado, deixar de apresentar os memoriais, pode o juiz diretamente nomear-lhe um dativo? A resposta é negativa. Deverá primeiramente intimar o réu a constituir novo advogado em prazo razoável e só após nomear-lhe um profissional para prosseguir na defesa. É o que o Pleno do STF, vencido unicamente o Min. Joaquim Barbosa reconheceu na AP – 470 ao anular o feito em relação a um dos acusados que ficou privado da escolha do advogado. Na oportunidade, o Min. Celso de Mello, após realçar a importância do devido processo legal, gizou: Cumpre referir, ainda, que a jurisprudência desta Suprema Corte já reconheceu ser direito daquele que sofre persecução penal escolher o seu próprio defensor (RTJ 117/91, Rel. Min. Octavio Gallotti – RTJ 150/498-499, Rel. Min. Moreira Alves – HC 96.905/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.), sob pena de a decisão judicial que lhe recusa tal prerrogativa jurídica qualificar-se como causa geradora de nulidade processual absoluta, consoante se verifica de decisões que restaram consubstanciadas em acórdãos assim ementados: “(...) O réu tem o direito de escolher o seu próprio defensor. Essa liberdade de escolha traduz, no plano da ‘persecutio criminis’, específica projeção do postulado da amplitude de defesa proclamado pela Constituição. Cumpre ao magistrado processante, em não sendo possível ao defensor constituído assumir ou prosseguir no patrocínio da causa penal, ordenar a intimação do réu para que este, querendo, escolha outro Advogado. Antes de realizada essa intimação – ou enquanto não exaurido o prazo nela assinalado – não é lícito ao juiz nomear defensor dativo sem expressa aquiescência do réu.” (RTJ 142/477, Rel. Min. Celso de Mello) “(...) A jurisprudência desse Pretório tem entendimento firmado no sentido de que o réu deve ser cientificado da renúncia do mandato pelo advogado, para que constitua outro, sob pena de

nulidade por cerceamento de defesa. ‘Habeas corpus’ deferido.” (HC 75.962/RJ, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – grifei) A preterição desta importante garantia deferida ao cidadão como corolário da amplitude do direito de defesa, macula o processo de forma insanável. Todavia, a 5ª Turma do STJ no HC n. 340.981, sob a relatoria do Min. Joel Ilan Paciornik, entendeu ser possível ao juiz desde logo nomear defensor para o acusado, quando o constituído, sob o fundamento de que queria oferecer memoriais, se recusou a participar do debate final da causa. Sustentou-se “inexistir nenhum prejuízo evidente à defesa pela substituição do causídico por defensora ‘ad hoc’ na apresentação das alegações finais...”264. Curioso é que a mesma 5ª Turma, tendo como relator o Min. Félix Fischer, ao julgar o RHC n. 61.848 firmou o entendimento, na linha da jurisprudência do STF, de que “é nulo o processo quando há nomeação de defensor dativo em comarcas em que existe Defensoria Pública estruturada...”265. Ora, se não se pode nomear defensor quando haja Defensoria, por que seria possível nomear advogado dativo, ou mesmo ad hoc (para o ato), a quem já o tem? Dois pesos e duas medidas é padrão que não se compadece com o princípio da legalidade e nem inspira a boa justiça. É evidente que, antes da nomeação de advogado para o réu, este deveria ter sido intimado a constituir outro de sua preferência, como há muito se tem decidido na Suprema Corte (HC n. 67.755, rel. Min. Celso de Mello, DJ 11/9/1992) e, de resto, a própria 5ª Turma do STJ como se vê da ementa do HC n. 368.272 julgado posteriormente: Em respeito às garantias constitucionais ao contraditório e à ampla defesa, esta Corte Superior de Justiça tem decidido que nas hipóteses em que o advogado do réu, intimado para apresentação das razões da apelação, permanece inerte, é necessário seja oportunizado ao acusado a nomeação de novo defensor, sob pena de nulidade por cerceamento de defesa (HC 229.808/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 07/08/2012, DJe 14/08/2012)266. No mesmo sentido, reconhecendo indevida limitação ao direito de defesa, o decidido monocraticamente pelo Min. Celso de Mello ao conceder o HC n. 91.284267.

5.10. Efetividade da defesa. Nulidade decorrente da ausência desta O tema vem balizado pelo verbete da Súmula 523 do STF assim redigida: No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu. De longa data, porém, o STF tem entendido que a defesa não pode ser meramente formal, “havendo mister que se apresente adequadamente exercida (RHC 58.240, RTJ 96/109; HC 57.175, RTJ 92/641 e HC 54.531, RTJ/105)”268. Ou seja, a deficiência de defesa, situação mais comum, com a prova do prejuízo, anula o processo. Jorge Figueiredo Dias, dissertando o respeito do papel do advogado, sublinha: (...) a função de defesa ultrapassa o eventual interesse subjectivo do arguido para cumprir uma tarefa que interessa à própria comunidade jurídica: a de que só sejam punidos em processo penal os verdadeiros culpados e, para isso, a de que sejam juridicamente protegidos todos os arguidos”269 . Também o consagrado processualista italiano, Gaetano Foschini, alerta: L’ uffcio della difesa, quindi, é garanzia della esatezza del giudizio, la quale esatezza rispecchia una esigenza che non è solo dell’ imputato, cioé dell’ individuo che ha la situazione di parte

responsabile, ma é anche una esigenza della societá, perché la regiudicanda penale, come si è visto a suo tempo (nº 6l) implica non solo una responsabilità individuale ma anche una responsabilità della collettività sociale270. Entre nós, Frederico Marques, no seu “Tratado de Direito Processual Penal”, após a assinalar que o “advogado representa a parte no processo (...) cumprindo ônus e obrigações” (p.  294), destaca: “O advogado deve trabalhar pela vitória do cliente (...) intermediário entre a parte e o juiz, o advogado é sujeito especial do processo porque tem interesse em obter tutela jurisdicional favorável a seu constituinte, exercendo, para isso, em sua plenitude, a função postulatória”271. Heleno Fragoso, em síntese afortunada ensinava: A defesa efetiva do cidadão submetido a processo penal constitui interesse público. Como dizia Carrara, não tem o Estado mais interesse na Condenação dos culpados do que na absolvição dos inocentes. A defesa, no processo penal moderno, constitui valor que transcende as conveniências do acusado para projetar-se na perspectiva da reta administração da Justiça272. Dada a característica singular do trabalho de defesa no processo penal, esta deve ser efetiva. E nem pode ela ser comparada com a do processo civil, já que, como destacado, aquela tem assento no direito público, dizendo com o interesse da própria coletividade. Não é à toa que a Suprema Corte tem proclamado a nulidade de processos em que a defesa foi exercida com desídia, tendo cunho meramente formal. Elucidativo, a propósito, o julgado relatado pelo Min. Leitão de Abreu: Defensor dativo. Defesa meramente formal, não exercida, assim pelo defensor nomeado, adequadamente. Precedentes do Supremo Tribunal, reconhecendo a nulidade273. Anteriormente, o Min. Rafael Mayer, havia relatado habeas corpus que teve a seguinte ementa: Defesa. Defensor dativo. Defesa deficiente. Defesa meramente formal, em que o defensor não exerceu seu munus adequadamente274. Assim, para exemplificar, a manifestação do defensor que pede a pronúncia do réu gera nulidade: II – A manifestação do defensor, na fase do art. 406 do CPP, pela pronúncia do acusado, acarreta a nulidade do processo. III. – H.C. deferido para anular o processo a partir das alegações finais da defesa, inclusive275. Ou da defesa realizada por estagiário da Defensoria: A passagem do tempo não prejudica o habeas corpus quando voltado ao reconhecimento de nulidade absoluta e presente o direito de ir e vir. Defesa – Concretude – Estagiário – Defensoria Pública. A garantia constitucional da defesa há de ser observada sob o ângulo efetivo e não simplesmente formal. Veiculada por estagiário, sem a presença de profissional da advocacia quer na fase de instrução, quer na de alegações finais, longe fica de atender aos ditames legais276. Ou por profissional não inscrito na OAB como enfatizado pelo Min. Teori Zavascki no RHC n. 119.900: 1. Nos termos do art.  4º da Lei 8.906/1994, são nulos todos os atos privativos de advogado praticados por pessoa não inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil. Precedentes. 2. A decisão do Tribunal de Justiça que submeteu o recorrente a novo Júri baseou-se em elementos probantes colhidos em audiência em que o falso advogado atuara como defensor, o que demonstra o efetivo prejuízo causado à parte.

3. Recurso ordinário provido277. Em resumo, há casos em que a falta de defesa desponta com clareza, mas em outros há necessidade da demonstração do prejuízo, nem sempre fácil de comprovar.

5.11. Informação errada na página eletrônica do Tribunal. Nulidade O Tribunal de Justiça do Distrito Federal anulou processo em grau de apelação por entender que houve cerceamento ao direito de defesa em situação que a induziu em erro, causando-lhe prejuízo. Os advogados estavam cientificados da data de uma audiência que, no entanto, veio a ser mudada sem qualquer retificação da anterior. Eis a ementa: Penal e processual artigo 3º, 11 e 111, da Lei 8.137/90. Artigos 299, parágrafo único e 333, ambos do Código Penal nulidade – Cerceamento do direito de defesa – Direito de audiência não observado informações equivocadas no site oficial – Preliminar acolhida. Informações veiculadas na página eletrônica dos tribunais, após o advento da Lei 11.419/2006 são consideradas oficiais (precedentes STJ). Se os autos revelam a existência de conflito entre comunicações destinadas às partes, ainda que uma delas, a primeira, tenha se dado pessoalmente e a outra em meio virtual, não havendo justificativa para o lançamento da segunda no sítio oficial do Tribunal de Justiça, é de se presumir que a última comunicação tenha cancelado a primeira, substituindo-a, ainda que meramente informativa. Em atenção à boa-fé objetiva que orienta a relação entre o Poder Judiciário e os cidadãos, conclui-se que a divulgação errônea no síte oficial do Tribunal de Justiça, acerca da data da Audiência de Instrução e Julgamento, serve de justa causa à ausência dos acusados, tisnando de nulidade o ato processual levado a efeito sem a presença das partes ou de seus procuradores278.

5.12. Reformatio in pejus. Nulidade Hipótese interessante de reformatio in pejus indireta se deu no caso retratado no HC n. 70.421, relatado pelo Min. Sydney Sanches, no qual o paciente havia sido pronunciado por homicídio simples e, após a anulação da decisão em recurso exclusivo da defesa, a segunda pronúncia se deu por homicídio qualificado. A 1ª Turma do STF entendeu que havia reformatio in pejus e determinou que a pronúncia se fixasse no homicídio simples em acórdão assim ementado: 2. Tendo sido o réu pronunciado, na primeira sentença, por homicídio simples, não poderia, após a anulação do julgado, em razão de provimento de recurso, interposto apenas pela Defesa, ser pronunciado, depois, por homicídio qualificado. 3. Evidenciada, nessa hipótese, a “reformatio in pejus”, é de se anular, em parte, a sentença e o acórdão que a confirmou, ou seja, apenas para que o paciente seja submetido a julgamento, perante o Tribunal do Júri, por homicídio simples – e não por homicídio qualificado. 4. “Habeas Corpus” deferido, em parte, para esse único fim279. Situação correlata se deu, igualmente, no caso em que réu pobre teve a denúncia oferecida contra rejeitada, mas a 3ª Câmara Extraordinária “A” do TJSP (formada por juízes convocados de primeiro grau), ao prover o Recurso em Sentido Estrito280, determinou a pronúncia do acusado. O grave erro do Tribunal de Justiça paulista foi solucionado no julgamento do HC n. 74.588, relatado pelo Min. Hamilton Carvalhido: 1. Evidenciando insanável contradição, eis que, ao tempo em que relata a interposição de recurso contra decisão que rejeitou a denúncia, dá provimento ao recurso em sentido estrito para pronunciar o réu, é imperativa a declaração da nulidade do julgado281.

5.13. Correlação entre a imputação e a denúncia Todos sabem que no processo penal o acusado se defende dos fatos tais como narrados na

denúncia e não da sua capitulação jurídica (RTJ 110/107 e RT 779/487). É que a imputatio facti constitui o núcleo duro da inicial acusatória, delimitando o campo cognitivo do magistrado282 ou, por outra, demarcando “a área de incidência do judicium”283. Não é por outra razão que, com incomum insistência, nossa Suprema Corte tem assinalado que a denúncia “fixa o núcleo substantivo da causa, governa o rumo de toda a instrução e, como objeto e resposta, delimita o campo do iudicium, como capítulo último da sentença”284. Nessa medida, uma acusação com contornos certos e bem definidos, é o que permite ao réu exercer a ampla defesa que lhe é constitucionalmente garantida. Daí porque o STF, no RHC n. 85.023, da relatoria do Min. Joaquim Barbosa, sufragou o entendimento segundo o qual “o princípio de correlação entre denúncia e sentença, pelo qual o réu não pode ser condenado por fatos não narrados explicitamente na peça acusatória (nesse sentido: HC 88.025, rel. Min. Celso de Mello, DJ 13.06.2006)”285. Disso decorre, como parece elementar, que: (i) a decisão condenatória haverá de manter ajuste capilar com o fato, como imputado ao agente na inicial acusatória (vinculação temática); e (ii) se o juiz, ao sentenciar, divisar algum fato novo não constante da denúncia apto a condenar o imputado deverá abrir vista ao órgão acusatório para, conforme o caso, determinar alguma das providências previstas no art. 384 do CPP. Com isso, permite-se que o réu possa se defender de algo que não constava da denúncia, mas que o juiz repute relevante. Daí a proclamação iterativa no STF de que vigora entre nós: (...) o princípio da correlação entre a imputação e a sentença representa uma das mais relevantes garantias do direito de defesa, que se acha tutelado constitucionalmente (art. 5º, LV, da Constituição Federal). Ninguém pode ser punido por fato que não lhe foi imputado. Assim, na medida em que se descreve um episódio criminoso atribuindo sua autoria a alguém, a denúncia fixa os limites da atuação do magistrado, que não poderá decidir além ou fora da imputação, sob pena de violação ao princípio da congruência, ou correlação, entre acusação e sentença penal, consectário lógico de outros relevantes princípios processuais, como o contraditório, a ampla defesa, a inércia da jurisdição e o devido processo legal286. Em suma, não pode ser condenado, portanto, aquele que não teve a chance de se defender do fato criminoso cuja autoria lhe foi atribuída. Caso rumoroso deu-se em São Paulo, envolvendo conhecida seguradora e Delegados de Polícia em esquema inicialmente capitulado como estelionato e corrupção, mas que sem a observância do art.  384 do CPP, redundou na condenação por extorsão. Ao apreciar a apelação, a 10ª Câmara Criminal do TJSP anulou a sentença apelada e com fundamento no art. 386, III, do CPP, absolveu os acusados. O voto condutor do aresto, da lavra do Des. Nuevo Campos deixou expresso o seguinte na ementa: Por ausência de correlação entre as imputações e a condenação – Violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa prejudicada a análise das demais preliminares e do mérito absolvição art. 386, III, do Cód. de Proc. Penal. No corpo do aresto, trazendo a lição de José Frederico Marques, vem dito: “Somente em casos excepcionais é declarada insanável a nulidade”. Sustenta, a propósito, que: “O problema das nulidades processuais tem sua justa solução no princípio da relevância das formas, temperado com o da instrumentalidade do ato processual”. Assinala, ainda, o ilustre doutrinador, recomendando prudência ao julgador, que: “Postergar, de maneira categórica, a relevância das formas processuais, para atender tão só ao aspecto teleológico do ato, pode redundar em violação aberta do direito de defesa”. (Estudos de Direito Processual Penal, as nulidades no processo penal O formalismo processual e o problema das nulidades As nulidades insanáveis na justiça penal, p. 258/259, 1ª edição, Forense, 1960).

Leciona, ainda, o eminente doutrinador: “A petição inicial e a denúncia são peças que delimitam o conteúdo da relação processual, a res in judicium deducta, que, através da decisão do juiz, se transformará de res judicanda em res judicata. Daí a necessidade de vir perfeitamente exposto o elemento causal do pedido, uma vez que é êle um dos fatores de individualização da ação a ser julgada, e isto com reflexos em institutos como o da proibição da mutatio libeli, o da exceção de litispendência e do da res judicata”. (Ob. cit., Da Denúncia na ação penal Os fundamentos da denúncia e o problema da causa petendi no processo penal A acusação e os limites da sentença penal, p. 141). “A área de incidência do judicium é demarcada, nas ações penais condenatórias, pelo fato descrito na imputação.” “A mutatio libeli é proibida. Se o magistrado entender que pode dar definição jurídica diversa da contida na denúncia, aos fatos que esta descreve, cabe a êle fazê-lo, desde que não saia dos limites da imputação, isto é, dos fatos nesta descritos e atribuídos ao réu. Do contrário, haverá julgamento ultra petita, o qual é absolutamente nulo, por violar o direito de defesa e por corresponder a verdadeira condenação sem denúncia (art.  564, nº III, letra a)”. (Elementos de Direito Processual Penal, 2ª edição, p. 253, vol. II, p. 252, Forense, 1965, Rio de Janeiro.)’287 O caso foi levado ao STJ por meio do Resp. n. 1.564.568, cujo relator foi o Min. Gurgel de Faria, mas o recurso foi improvido com a seguinte ementa: 2. Não constando da inicial acusatória a conduta do crime de extorsão, caberia à sentenciante, ao realizar a mutatio libelli, observar o figurino previsto no art. 384 do CPP, sob pena de configurar flagrante prejuízo à defesa, sendo certo que o Ministério Público quedou-se inerte ante tal omissão. 3. Conforme disposto na Súmula 453 do STF, não se admite, em segunda instância, que o Tribunal, quando do julgamento da apelação, dê nova definição jurídica à conduta típica, em razão de fatos surgidos no curso da instrução e não contidos na denúncia, com relação a alguns réus. Precedentes288. Este é também o entendimento do STF como se vê da ementa do HC n. 83.924 relatado na 2ª Turma pelo Min. Gilmar Mendes: 5. Absolvição em primeiro grau. 6. Condenação em segundo grau pelo crime do art. 339, caput do Código Penal. Ausência de congruência entre a denúncia e a condenação. 7. Aplicação da Súmula 453289.

6. Extinção da punibilidade Outra previsão legal para o manejo do writ ocorre “quando extinta a punibilidade” (CPP, art. 648, VII). As hipóteses de extinção da punibilidade vêm referidas no art. 107 do Código Penal, mas o rol não é taxativo. Assim, para exemplificar, o pagamento antes do recebimento da denúncia nos crimes fiscais não se encontra previsto entre as causas extintivas da punibilidade na Parte Geral do Código Penal. Para nos concentrarmos nas causas mais frequentes, fiquemos na prescrição (107, IV) e no perdão judicial (107, IX).

6.1. Prescrição e habeas corpus A prescrição, por expressa previsão legal, pode ser ventilada no habeas corpus, mas desde que o seu reconhecimento não envolva controvérsias fáticas do tipo: quando se deu o crime ou a constatação da idade do agente. Saber se o crime é permanente ou instantâneo de efeitos permanentes, embora exija a superação da controvérsia, é questão de direito que pode e deve ser resolvida no âmbito do writ.

6.2. Perdão Judicial e habeas corpus Já o perdão judicial também pode apresentar particularidades que afastem o emprego do writ. Assim, por exemplo, quando houver necessidade de reexame do conjunto fático probatório. É o que assentou a 6ª Turma do STJ em caso de delação premiada na qual o juiz deixou de aplicar o perdão judicial: Com arrimo nos fatos da causa, a fundamentação das instâncias de origem para rechaçar a aplicação do perdão judicial na delação premiada dos pacientes se presta a supedanear dada conclusão e, para se adotar diverso entendimento, há necessidade de revolvimento do acervo fático-probatório, providência incabível na angusta via do habeas corpus290. Diferente, porém, foi o entendimento da 5ª Turma em caso de acidente de trânsito no qual havia morrido o irmão do condutor e seu melhor amigo e o extinto Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo aplicou o perdão judicial de forma parcial, isto é, apenas em relação à morte do irmão do motorista, mantendo a pena em relação ao outro homicídio. Ora, antiga e sedimentada jurisprudência já proclamava que o perdão judicial “não depende do parentesco entre réu e vítima. Pode alcançar qualquer pessoa. Na realidade para os fins do art.  121, §5º, do CP, importam as consequências da infração que devem atingir gravemente o agente e, por isso, tornar desnecessária a aplicação da pena” (TACRIM-SP, RT 644/294, rel. Juiz Haroldo Luz). Ao julgar o HC n. 21.442, o STJ ementou a seguinte decisão: Sendo o perdão judicial uma das causas de extinção de punibilidade (art.107, inciso IX, do C.P.), se analisado conjuntamente com o art. 51, do Código de Processo Penal (“o perdão concedido a um dos querelados aproveitará a todos...”), deduz-se que o benefício deve ser aplicado a todos os efeitos causados por uma única ação delitiva. O que é reforçado pela interpretação do art. 70, do Código Penal Brasileiro, ao tratar do concurso formal, que determina a unificação das penas, quando o agente, mediante uma única ação, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. – Considerando-se, ainda, que o instituto do Perdão Judicial é admitido toda vez que as consequências do fato afetem o respectivo autor, de forma tão grave que a aplicação da pena não teria sentido, injustificável se torna sua cisão291.

6.3. Termo inicial da contagem do prazo para o reconhecimento da prescrição executória Conforme disposto expressamente no art. 112, I, do Código Penal, o termo inicial da contagem do prazo da prescrição executória é a data do trânsito em julgado para a acusação, e não para ambas as partes (STJ, medida cautelar no HC n. 429.009, rel. Min. Néfi Cordeiro, DJe 15/12/2017). Idem: STJ, 6ª T., AgRg no RHC n. 74.996, do mesmo relator; AgInt no AREsp n. 1.156.766, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 28/11/2017; AgRg no Resp. n. 1.471.505, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 27/09/2017) e STJ, 5ª T., AgRg no HC n. 402.521, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 31/8/2017. Na doutrina, Júlio Mirabete é claro quando afirma que “O termo inicial do prazo da prescrição executória não é o do trânsito em julgado para ambas as partes, como na legislação anterior, mas o trânsito em julgado para a acusação”292. Guilherme Nucci, embora critique a lei, não deixa dúvidas: “É a data do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação. (...). Entretanto, a lei é clara: começa a ser computada a prescrição da pretensão executória a partir da data do trânsito em julgado da sentença condenatória”293 Embora sólida esta interpretação doutrinária e pretoriana e rigorosamente consoante a letra da lei, há quem sustente, sem razão, mas ancorado numa ideia de razoabilidade, que “estando o Ministério Público impedido de pleitear a execução da pena enquanto o feito não transitar em julgado para ambas as partes, seria um contrassenso reconhecer a prescrição da pretensão executória pelo transcurso de um lapso temporal durante o qual o Estado-acusação não pode agir e que escoa em benefício exclusivo das postulações recursais da defesa” (TRF-3, 5ª T., Recurso em Sentido Estrito n.º 0107610-95.2006.4.03.0000).

O ponto é que não se pode expandir os domínios do direito penal, preterindo-se o princípio da legalidade, ainda que em nome da razoabilidade. O efeito modificador da lei a partir de uma exegese que a aniquila, que lhe nega vigência, desequilibra os poderes da República e desagua “no próprio arbítrio” como advertiu o min. Alexandre de Moraes, embora focado na questão relativa ao respeito às imunidades parlamentares294. Daí a lição de Ana Paula Barcelos, no sentido de que Regras, como padrão geral, não devem ser ponderadas”. Do contrário, “o intérprete estará conferindo à sua própria concepção pessoal acerca do melhor desenvolvimento do princípio maior importância do que à concepção majoritária, apurada pelos órgãos legitimados a tanto”295.

6.4. Parcelamento do débito tributário e extinção da punibilidade na vigência da Lei n. 9.249/1995 O acusado já estava condenado em segunda instância pela prática do crime de apropriação indébita previdenciária296. No entanto, ao julgar o HC n. 284.989, a 6ª Turma do STJ, não sem antes ressalvar a inadmissão do uso writ como sucedâneo da via recursal, mas admitir a análise, caso a caso, da ilegalidade que possa afetar a liberdade de ir e vir, concedeu a ordem de ofício para declarar extinta a punibilidade do paciente pelo crime de apropriação indébita previdenciária. O acórdão tem a seguinte ementa: 2. Apesar de se ter solidificado o entendimento no sentido da impossibilidade de utilização do habeas corpus como substitutivo do recurso cabível, este Superior Tribunal analisa, com a devida atenção e caso a caso, a existência de coação manifesta à liberdade de locomoção, não tendo sido aplicado o referido entendimento de forma irrestrita, de modo a prejudicar eventual vítima de coação ilegal ou abuso de poder e convalidar ofensa à liberdade ambulatorial. 3. A partir do julgamento do RHC n. 11.598/SC, pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, adotou-se nesta Corte o entendimento de que o parcelamento do débito tributário antes do recebimento da denúncia, na vigência da Lei n. 9.249/1995, equivale a promover o pagamento do tributo, requisito previsto no art. 34 do referido diploma legal para o reconhecimento da extinção da punibilidade. 4. No caso, observa-se que, além de a empresa representada pelo paciente ter ingressado no Programa de Recuperação Fiscal ainda na vigência da Lei n. 9.249/1995 (em 27/3/2000), ou seja, antes da entrada em vigor da Lei n. 9.964, de 11/4/2000, a adesão ao programa ocorreu dois anos antes do oferecimento da denúncia, que se deu em 20/6/2002, devendo, portanto, ser reconhecida a extinção da punibilidade do acusado297.

6.5. Prescrição e 70 anos antes do acórdão. Cômputo do prazo pela metade Em relação ao redutor etário do prazo prescricional, previsto no art. 115, do CP, este deve ser aplicado desde que o agente tenha mais de 70 (setenta) anos de idade na data da sentença. Todavia, modernamente, tem-se entendido que a idade deve ser considerada até a data do julgamento do recurso. Nesse sentido é a posição do eg. STJ: Habeas corpus. Prescrição. Paciente com mais de 70 anos de idade na data do julgamento do recurso. Incidência da redução disposta no art.  115 do CP que se impõe. Causa extintiva caracterizada. 1. O caráter benevolente e extensivo da norma inserta no art. 115 do CP, ao tratar da redução do prazo prescricional em decorrência da senilidade do maior de 70 anos de idade, impõe o reconhecimento da sua aplicação também em relação à data da decisão que confirma a sentença condenatória. 2. Constatado que entre a data da publicação do édito repressivo e a do aresto que o manteve transcorreu lapso necessário ao reconhecimento da prescrição, deve ser extinta a punibilidade do agente. 3. Ordem concedida298. O STF também já se posicionou de forma semelhante, embora mais alargada. Vale dizer, considerando aplicável o redutor etário para agente que complete 70 (setenta) anos de idade enquanto perdurar a relação processual penal, ou seja, antes do trânsito em julgado do feito: 1. A faixa etária, para efeito de prescrição, deve ser considerada enquanto persiste a relação

processual penal. 2. É que, recentemente, o Tribunal Pleno, na Ação Penal n. 516, reconheceu a prescrição em razão da idade avançada tendo o réu completado 70 anos após o julgamento da demanda, mas antes do seu trânsito em julgado (...). 3. A aplicação do artigo 115 do Código Penal reclama interpretação teleológica e técnica interpretativa segundo a qual não se pode extrair de regra que visa a favorecer o cidadão razão capaz de prejudicá-lo, restringindo a extensão nela revelada. 4. Consectariamente, há de se tomar a idade do acusado, não na data do pronunciamento do Juízo, mas naquela em que o título executivo penal condenatório se torne imutável na via do recurso (Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração no Inquérito nº 2.584/SP, relator o Ministro Ayres Britto, sessão de 16 de junho de 2011). (...) 5. Agravo Regimental provido para reconhecer a redução do prazo prescricional pela metade em razão da idade avançada do agravante (art.  115 do Código Penal) e declarar a extinção da pretensão punitiva do Estado, pela prescrição299. Assim, indiscutível o alargamento da redução do prazo prescricional pela metade, em razão da incidência do redutor etário previsto no art. 115, do CP mesmo depois da prolação da sentença.

FOOTNOTES 1

. Comentários..., V, p. 567.

2

. Justa causa para a ação penal. São Paulo. ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 19

3

. “O habeas corpus no Brasil”, São Paulo, ed. Atlas, 2009, p.  106. No mesmo sentido, Guilherme de Souza Nucci, Habeas corpus, ob. cit., p. 83.

4

. 6ª Turma, RHC n. 2.845, DJ 13/09/1993.

5

. Maria Thereza de Assis Moura em “Justa causa para a ação penal”, ob. cit., p. 222.

6

. AP n. 913, DJe 15/12/2015.

7

. Sobre o tema, ver “Justa causa para a ação penal”, ob. cit., p. 172 e ss.

8

. Elementos de direito processual penal, ob. cit., IV/369.

9

. O habeas corpus no Brasil, cit., p. 110.

10

. STJ, 5ª T., HC 21.002, Min. Felix Fischer, DJ 26/05/2003.

11

. STF, 1ª T., HC n. 61.826, DJ 05/10/1984. JSTF, ed. LEX, 78/353.

12

. RHC 83.548-1-RJ, DJ 26/03/2003.

13

. DJ 27/08/2004.

14

. DJe 13/10/2011.

15

. HC n. 98.816, DJ 03/09/2010, apud: Bol. IBCCrim, n. 215, out/2010, p. 1403.

16

. STF, 1ª T., RHC 91.691, DJ 25/04/08.

17

. STJ, 6ª T., HC 34139, rel. Min. Maria Thereza, DJe 22/04/2016.

18

. STJ, 6ª T., HC 349.159, rel. Min. Néfi Cordeiro, DJe 19/04/2016.

19

. STJ, 5ª T., RHC n. 50.692, rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 15/04/2016.

20

. Rel. para o ac. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 22/05/2014.

21

. Dje 28/10/2014.

22

. Sentença do Tribunal Constitucional (STC 154/2002).

23

. Habeas corpus n.º 851.084.3/4.

24

. Resp. n. 913.085, rel. min. Celso Limongi, DJe, 21/02/2011.

25

. STJ, 5ª T., HC 21.002, Min. Felix Fischer, DJ 26/05/2003.

26

. TRF-3, 5ª T., HC n.º 2001.03.00.037211-2, rel. Des. Fed. Suzana Camargo.

27

. TRF-3, 5ª T., HC n.º 2001.03.00.031740-7, rel. Des. Fed. Suzana Camargo.

28

. TRF-3, 2ª T., HC n. 2005.03.00.019424-0, rel. Des. Fed. Peixoto Júnior.

29

. DJ 06/03/2006.

30

. DJe 06/08/2010.

31

. HC n. 5035781-87.2016.4.04.0000, rel. Des. Fed. Márcio Antônio Rocha, J. em 13/09/2016.

32

. STF, HC n. 107.489, Min. Joaquim Barbosa, 2ª T., DJe 25/03/2011.

33

. EDcl no HC n. 196.262, DJe 19/12/2014.

34

. DJe 30/03/2016.

35

Veja-se, no ponto, a crítica de Alexandra Lebelson Szafir propondo a ampliação das causas de extinção da punibilidade em “O direito penal dos ricos”, Boletim do IBCCrim, n.º 54, p. 8.

36

. 6ª T., HC n. 134.350, DJe 21/09/2009.

37

. HC n• 990.10.405570-9, j. em23/11/2010.

38

. Recurso Especial n. 1.318.658, DJe 10/09/2015.

39

. DJ 23/8/2002.

40

. DJ 11/04/1997.

41

. DJ 16/04/2004.

42

. DJe 30/05/2011.

43

. DJe 19/02/2015.

44

. STJ, 6ª T., DJ 29/03/1993.

45

. DJe 07/12/2015.

46

. DJe 04/04/2014.

47

. HC n. 126.315, cit.

48

. RHC 118.977, cit.

49

. Manual de processo penal, 7ª ed. São Paulo. ed. Saraiva, 2009, p. 425.

50

. O Direito de Defesa no Inquérito Policial. 1ª ed., São Paulo, RT, 2004, coleção estudos de processo penal Joaquim Canuto Mendes de Almeida, v. 9, p. 357/358.

51

. STJ, RHC nº12541, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 02/05/2006.

52

. STJ, HC n.º 7.809, DJ 29/03/1999.

53

. Cf. RHC 8.005, rel. Min. José Arnaldo, DJ 07/12/1998 e, dentre muitos outros, RHC n. 7.814, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 09/11/ 1998.

54

. “Teoria dell’ordinamento giuridico”, Torino, ed. Giappichelli, 1960, p. 3.

55

. “Princípios básicos de direito penal”. 4ª ed., São Paulo, ed. Saraiva, 1991, p. 165.

56

. J. em 11/06/1992, DJ 03/11/1992, apud: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 1, 1993, p. 201/210.

57

. DJ 08/11/1999.

58

. Procurador de Justiça do Estado de São Paulo (aposentado), Ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo  (1992/1994), Docente na área de Direito Ambiental no “Curso de Especialização em interesses Difusos e Coletivos” do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Estado de São Paulo.

59

. HC n. 0044053-67.2010.8.26.0050.

60

. Reexame necessário n. 0391938-57.2010.8.26.0000, j. em 13/04/2011.

61

. HC n. 0025142-65.2014.8.26.0050

62

. Recurso em Sentido Estrito/recurso Ex Officio nº 0025142-65.2014.8.26.0050, j. em 22/01/2015.

63

. RHC n. 61.906, rel. Min. Joel Ilan Paciornick, ainda não julgado.

64

. DJ 12/03/2004.

65

. Julio Fabbrini Mirabete, no seu Código de Processo Penal interpretado (9ª ed. São Paulo. ed. Atlas, 2002, p. 105) dizia: “Indiciamento é imputação a alguém, no inquérito policial, da prática da infração penal que está sendo apurada”

66

. Processo Penal. Rio de Janeiro: ed. Campus – Elsevier, 2012, p. 85.

67

. j. em 1.º/07/2002, DJU 1.º/08/2002.

68

. DJ 06/10/2003.

69

. Processo Penal, ob. cit., p. 85, nota de rodapé n. 42.

70

. Súmula 568: A identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente.

71

. TRF3, 2º Turma, RHC 1999.03.00.019963-5 – Ribeirão Preto, j. 29/02/2000; apud: Habeas Corpus n. 1183719.3/0, TJSP, Rel. Des. Renê Ricupero, DJ 17/04/2008.

72

. 2ª Vara, Processo n. 0002881-18.2013.8.26.0220 – Habeas Corpus; j. em 15/04/2013.

73

. HC 86.163, 2ª T., rel. Min. Gilmar Mendes, v.u., DJ 03/02/2006. Na mesma linha, HCs 111.442, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 17/09/2012 e 95.136, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 30/03/2011.

74

. HC 30.339-MG, 6ª T., v.u., DJ 16/02/2004.

75

. HC n. 307.617, rel. p/ o acórdão Min. Sebastião Reis Jr., DJe 16/05/2016.

76

. STJ, 5ª T., HC 77.309; v.u., DJ 26/05/2008.

77

. Reação defensiva à imputação. 2ª ed. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217.

78

. HC n.º 68.926–MG, DJ de 28/08/1992.

79

. HC n.º 80.542-6-MG, DJ de 29/06/2001 – grifos originais.

80

. V.g., Roberto Lira Filho – A classificação da infração penal pela autoridade policial em Estudos (...) em homenagem a Nélson Hungria, ed. Forense, 1962, p. 276.

81

. Cf., v.g., Thiago Bottino do Amaral, A emendatio libelli no recebimento da denúncia, Direito Federal, AJUFE, 63/287; José Marçal de Assis – Viabilidade da emendatio libelli no recebimento da denúncia, ICE/ES 2/117; Luís de Barros Vidal – Homicídio qualificado e procedimento do Júri, RBCcrim 32/94.

82

. Cf. STJ, HHCC 5356, 25/08/1997; e 12627, 17/08/2000, RT 787/564.

83

. RHC 59.001, DJ 02/10/1981; in: JSTF, ed. Lex., vol. 37, p. 320.

84

. José Frederico Marques em Direito processual penal, v. III, n. 636; apud: Vicente Sabino Jr. em: O habeas corpus e a liberdade pessoal. São Paulo. ed. Saraiva, 1964, p. 105.

85

. A instituição do júri, Campinas, ed. Bookseller, 1997, p. 428/429.

86

. RHC 22.317, rel. Min. Og Fernandes; REsp. n. 197071, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro e o REsp. n. 1.012.187, rel. Min. Maria Thereza, apud: RCD no HC n. 342.512, rel. Min. Sebastião Reis Jr., DJe 18/12/2015.

87

. Este habeas foi julgado monocraticamente e concedida parcialmente a ordem apenas para confirmar os efeitos da liminar no sentido de se afastar o transito em julgado (DJe 03/08/2015).

88

. O julgamento deste mandamus foi julgado prejudicado, pois, negada a liminar, o paciente veio a ser julgado e absolvido pelo júri, ficando o writ prejudicado.

89

. DJe 05/12/2016.

90

. TJMG, Apelação nº 1.0024.00.092182-5/002, Rel. Des. Eduardo Brum. j. 29/05/2013. Nesse sentido também: “A nova formulação alarga as possibilidades de absolvição ao potencializar o sistema da íntima convicção, haja vista que, em face da fórmula genérica, os jurados podem absolver o réu por motivos desconhecidos ou imponderáveis não alegados pelas partes” (TJMG, Apelação nº 1.0145.04.1854111/002, Rel. Des. Júlio Cezar Guttierrez).

91

. Código de Processo Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Editora RT, 2008. p. 812.

92

. Nova Reforma do Código de Processo Penal, Método, p. 118.

93

. No mesmo sentido, citado na decisão monocrática do Min. Celso de Mello: cf. Madi Rezende, Guilherme, Júri: decisão absolutória e recurso da acusação por manifesta contrariedade à prova dos autos – descabimento. Boletim IBCCRIM, São Paulo, Ano 17, nº 207, 2010; Felberg, Lia; Felberg, Rodrigo. A soberania dos vereditos e a inconstitucionalidade da apelação pelo Ministério Público com fundamento no

art. 593, III, d, do Código de Processo Penal. São Paulo: Tribuna Virtual. Ed. nº 4, maio de 2013.

94

. RTJ 118/273.

95

. HC n.º 77.996-3-RJ, rel. Min. Pertence, DJ 08/09/2000. Nesse sentido é torrencial a jurisprudência, cf.: “RTJs” 63/150; 71/247; 100/111;109/338; 117/1273; 118/273 e, entre muitas outras, 123/345.

96

. DJe 13/10/2016.

97

. STJ, 5ª T., HC n. 75.131, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 17/11/2008.

98

. TJSP, 1ª Câm. Crim. Ap. Crim n. 218.451-3/3 – Rel. Des. Andrade Cavalcanti – RT 743/621.

99

. RE n. 99.344-RS, in: RTJ 109/338.

100

. DJ de 08/09/1989, p. 14.232.

101

. HC n. 67.959, DJ 07/12/1990.

102

. Resp. n.º 168.461-ES, DJ 29/10/1998.

103

. HC nº 80.226-5/PA, Rel. Min. Ilmar Galvão, 1ª T., DJ 10/11/2000.

104

. DJ 06/12/2004.

105

. HC nº 73.367/MG, Primeira Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 29/06/2011 e HC n. 113.627, Segunda Turma, rel. Min. Carmén Lúcia, DJe 17/04/2013.

106

. STF, Primeira Turma, DJe 23/08/2013.

107

. Cf. a liminar concedida no HC n. 80.468-3, rel. Min. Sepúlveda Pertence e RHC n. 56.044, rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 86/462.

108

. MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo, Saraiva-IDP, 2007, p. 455.

109

. Pontes de Miranda, História e prática do habeas corpus, São Paulo, Saraiva, 8ª ed., 1979.

110

. 1ª T., DJe 18/10/2011.

111

. STF, 1ª T., RHC n. 56.044, rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 86/462.

112

. No mesmo sentido e do mesmo relator: HC n. 80.379, 2ª T., DJ 25/05/2001 e, em decisão monocrática: HC n. 93279; DJ 18/12/2007.

113

. HC 91.041, rel. p/acórdão Min. Carlos Britto, 1ª T., DJ 17/08/2007.

114

. HC n. 90.443, Min. ricardo lewandowski, Primeira Turma, DJ 04/05/2007. Na mesmíssima linha: HC n. 101.970, Primeira Turma, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 06/05/2011: “A comprovação de excessiva demora na apreciação do pedido de habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça configura constrangimento ilegal, por descumprimento da norma constitucional da razoável duração do processo

(art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República)” e HC n. 105.117, Primeira Turma, rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 21/05/2010: “A comprovação de excessiva demora na realização do julgamento de mérito do habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça configura constrangimento ilegal, por descumprimento da norma constitucional da razoável duração do processo (art.  5º, inc. LXXVIII, da Constituição da República), viabilizando, excepcionalmente, a concessão de habeas corpus”.

115

. STF, 2ª T., DJe 06/12/2016. No mesmo sentido, do mesmo relator, mas em decisão monocrática, HC n. 147.474, DJe 20/10/2017.

116

. HC n. 92.369, 1ª T., Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 11/04/2008.

117

. HC n. 111.987, 2ª T., Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 19/02/2013. No mesmo sentido destaco o HC n. 98.900, 1ª T., DJe de 30/11/2010; e o HC nº 101.590, 1ª T., DJ e de 30/11/2010, ambos relatados pelo Min. Dias Toffoli.

118

. STF, 2ª T., DJe 19/03/2010.

119

. STF, 1ª T., RHC 118.008, DJe 19/11/2013.

120

. HC 163.607/RJ, DJe 08/06/2011.

121

. HC n. 132.450, DJe 05/09/2012.

122

. HC n. 116.250, DJ 01/12/2008.

123

. HC 70.964/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 18/06/2007.

124

. HC n. 11.270, Rel. Min. Félix Fischer, DJ 22/05/2000.

125

. STF, 1ª T., RHC n. 85.879, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 23/09/2005. Idem, HC n. 106.380, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 01/08/2013.

126

. HC n. 106.380, rel. Min. Marco Aurélio, Dje 01/08/2013.

127

. STF, 1ª T., HC n. 83.510, rel. Min. Carlos Britto, DJ 05/12/2003.

128

. STJ, 6ª T., HC n. 223.071, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 17/12/2015. Idem o HC n. 168.167, Rel. Min. Og Fernandes, Dje 02/08/2010.

129

. STF, 2ª T., DJe 19/06/2012.

130

. STF, HC n. 91.654, DJe 07/11/2008.

131

. 5ª T., HC n. 86.685, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJ 05/11/2007.

132

. STF, 2ª T., DJe 29/11/2010.

133

. STF, 2ª T., DJe 08/10/2008.

134

. 5ª T., HC n. 10.082, rel. Min. Félix Fischer, DJ 20/08/2001.

135

. Resp n. 1.582.601, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 26/04/16. Idem o HC n. 137.626, 6ª T., rel. Min. Maria Thereza, (DJe 04/10/2010): Segundo entendimento desta Corte, o aumento referente à continuidade delitiva deve ser diretamente proporcional ao número de crimes praticados, devendo, então, ser de 1/4 (um quarto) quando for quatro vezes e de 1/5 (um quinto) quando for três vezes.

136

. Código Penal Comentado, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 214.

137

. STJ, 6ª T., HC n. 18.781, rel. Min. Hamilton Carvalhido, (DJ 25/02/2002): “Fazendo-se manifesto que a recusa do regime inicial semiaberto ao condenado decorre de pura e simples presunção de periculosidade, derivada da natureza abstrata do delito, cabe habeas corpus para superação do inegável constrangimento ilegal”.

138

. STJ, 5ª T., RHC n. 15.162, rel. Min. Félix Fischer, DJ 19/12/2003, apud: Código de Processo Penal e sua interpretação..., ob. cit., p. 1112.

139

. Cf. STF, 1ª T., RHC n. 61.435-1, rel. Min. Néri da Silveira, DJ 16/12/1983 ou RT 583/452, RHC n. 56.059, 1ª T., rel. Min. Xavier de Albuquerque; RTJ 86/463 e RHC n. 50.262, rel. Min. Thompson Flores, RTJ 63/382,.

140

. STF, Segunda Turma, HC n. 100.087, rel. Min. Ellen Gracie, DJe 09/04/2010.

141

. DJe 16/12/2016.

142

. Guilherme de Souza Nucci, Leis Penais e Processuais Comentadas – v.  2. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2012, p. 176.

143

. HC n. 2251090-73.2016.8.26.0000, DOE 14/12/2016.

144

. HC n. 2027916-19.2016.8.26.0000, rel. Des. Marco de Lorenzi.

145

. Processo Penal, ob. cit., p. 747.

146

Voltaremos ao tema no capítulo VII ao tratar das “questões de procedimento”.

147

. Comentários, ob. cit., V, p. 571/572.

148

. RHC n. 52.699, 2ª T., rel. Min. Thompson Flores, DJ 04/10/1974, ou RTJ 72/349.

149

. RHC n. 56.873, 1ª T., rel. Min. Soares Muñoz, DJ 19/04/1979, ou RTJ 93/1.018.

150

. Processo Penal, ob. cit., p. 9.

151

. STJ, Sexta Turma, HC n. 108.350, DJe 24/08/2009.

152

. Nulidades no processo penal. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 42.

153

. A conexão no processo penal, segundo o princípio do juiz natural, e sua aplicação nos processos da Operação Lava Jato, na Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 122, agosto de 2016, p. 182.

154

. DJe 03/02/2016.

155

. STJ, Sexta Turma, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 24/08/2009.

156

. TFR, Primeira Seção, CC n. 7.043, rel. Min. Washington Bolivar, DJ 06/11/1986;

157

. Cf. Gustavo Badaró e Pierpaolo Bottini, Lavagem de dinheiro. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 256.

158

. HC n. 1408705-1, rel. Des. Roberto de Vicente, j. em 24/09/2015.

159

. Rogério Schietti Machado Cruz. A Proibição de Dupla Persecução Penal, 1ª ed., Rio de Janeiro: ed. Lumen Juris, 2008, pág. 13.

160

. TRF3, RHC nº 1999.03.99.077639-0, Rel. Des. André Nabarrete, DJ 03/07/2001.

161

. CC n. 20.534, Rel. Min. William Patterson, v.u., DJ 09/12/1997. No mesmo sentido, em caso de acidente ferroviário: CC n. 14745/SE, rel. Min. Adhemar Maciel; DJ 22/04/1996.

162

. STJ, 6ª T., DJe 14/11/2014.

163

. RE n. 883.746, DJe 10/09/2015.

164

. Este Inquérito desenvolvia-se no Supremo Tribunal Federal para apurar o envolvimento do já cassado Deputado Federal Jabes Rabelo. O acórdão em questão foi Publicado no Diário da Justiça da União em 09/11/2001.

165

. STF, Pleno, AP n. 536, rel. Min. Roberto Barroso, DJe 12/08/2014.

166

. STF, Pleno, AP n. 396, rel. Cármen Lúcia, DJe 28/04/2011.

167

. STF, Pleno, AP n. 333, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 11/04/2008.

168

. DJe 06/04/2015.

169

. HC nº 91.273, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 31/01/2008.

170

. Manual de Processo Penal. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 365/366, grifei.

171

. Curso de Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 254/255.

172

. DJe 12/04/2016.

173

. RHC n. 8.502, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 07/06/1999.

174

. RHC nº 4402/SC, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 11/11/1996.

175

. HC n. 49.179/RS, rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª T., DJ 30/10/2006.

176

. HC n. 43.741/PR, rel. Min. Felix Fischer, 5ª T., DJ 10/10/2005.

177

. DJ 29/09/2000.

178

. HC n. nº 2011019021-7.

179

. DJe 09/09/2013.

180

. HC n. 83.632/SP, 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, DJe 20/09/2010.

181

. Rcl. n. 2101/DF-AgR, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 20/09/2002 e HC n. 82.647, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 25/04/2003.

182

. STF, 2ª T., j. em 25/10/2016.

183

. STF, 1ª T., Reclamação n. 3.305, DJe 02/10/2014.

184

. STF, 1ª T., Inq. 2.560, rel. Min. Rosa Weber, DJe 23/05/2016.

185

. Medida Cautelar na Rcl. n. 23.457 (caso Luis Inácio Lula da Silva), j. 31/03/2016; apud: voto do Min. Dias Toffoli no RHC n. 135.683. Na mesma linha: Ap nº 871 QO, rel. Min. Teori Zavascki, DJe 31/10/2014

186

. Inq. 2.842, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 27/02/2014.

187

. 1ª T., DJ 19/12/1996.

188

. Constituição brasileira revela amplitude da presunção de inocência, in: www.conjur.com.br,, visto em 27/09/2016. Este trabalho é a segunda parte da Conferência proferida no VI Encontro da Associação dos

Advogados de São Paulo.

189

. Nulidades no processo penal: estudo crítico sobre a aplicação da regra do prejuízo. 1ª ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2016, p. 83.

190

. DJe 23/06/2008. No mesmo sentido, STF, 2ª T., HC n. 88.836, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 06/10/2006.

191

. DJ 15/04/2005.

192

. DJe 29/05/2009.

193

. As nulidades no processo penal, ob. cit., p. 88.

194

. Atuação do Ministério Público no processamento dos recursos dos recursos criminais face aos princípios do contraditório e da isonomia, RT 737/495. Sobre o tema escrevi: O contraditório nos tribunais e o Ministério Público, in: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2003, p. 91 e ss.

195

. DJ 25/04/2008. Este habeas foi impetrado pelo saudoso advogado Arnaldo Malheiros Filho.

196

. Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 16/11/2004. Interessante notar que a mesma Turma, no HC n. 17.566, deda relatoria do Min. Fontes de Alencar, já havia reconhecido que a nulidade era absoluta e por isso havia mandado o TJSP julgar a preliminar destacada na apelação (DJ 01/10/2001).

197

. DJ 21/10/2005.

198

. DJ 26/02/2008.

199

. DJ 12/02/2007.

200

. 2ª T., DJe 27/02/2009.

201

. Fl. 10.168.

202

. Da acusação de co-autoria, In: Estudos de direito processual penal, Rio de Janeiro, ed. Forense, 1960, p. 148/149.

203

. 1ª T., DJ 06/08/2004.

204

. DJe 23/02/2015.

205

. STF, 1ª T., rel. Min. Cezar Peluso, DJ 12/08/2005.

206

. Código de processo penal anotado. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 326, coment. ao art. 395.

207

. DJe 15/02/2016.

208

. 1ª T., DJ de 07/12/2006.

209

. DJe 23/08/2016.

210

. STF, 2ª T., DJ 16/06/2006.

211

. STF, 1ª T., DJ 26/04/1996.

212

. 2ª T., DJ 24/08/2001.

213

. STJ, 6ª Turma, RHC 42.717-PI, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 28/04/2016.

214

. STJ, 5ª T., HC n. 48.121, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJe 19/10/2009. Mais recentemente, da mesma Turma: não se admite no direito pátrio a denúncia genérica, sendo possível, entretanto, nos casos de crimes societários e de autoria coletiva, a denúncia geral, ou seja aquela que, apesar de não detalhar minudentemente as ações imputadas ao denunciado, demonstra, ainda que de maneira sútil, a ligação entre sua conduta e o fato delitivo.” (RHC nº 70.395, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 14/10/2016).

215

. DJe 27/09/2016.

216

. HC n. 2007.03.00.018251-9, rel. Des. Fed. André Necatschalow, DJ 12/06/2007.

217

. HC n. 85.566, rel. Nefi Cordeiro, DJe 17/03/2015.

218

. STJ, 5ª T., DJ 15/05/2000.

219

. DJ 25/04/2008.

220

. STJ, 6ª T., DJ 11/09/2006.

221

. STJ, 5ª T., DJ 17/09/2007.

222

. STJ, 6ª T., HC n. 350.973, rel. Nefi Cordeiro, DJe 19/08/2016.

223

. RT 454/389.

224

. RHC n. 48.283, Min. Aliomar Baleeiro, Primeira Turma, DJ 03/11/1970.

225

. 5ª T., HC n. 132.199, rel. Min. Jorge Mussi, DJe 21/05/2012. Idem, do mesmo relator: HC n. 267.138/SP, DJe 17/09/2013.

226

. HC n. 350.973, rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 19/08/2016.

227

. Cf. item nº 10 do aresto; DJ 18/06/2001.

228

. STJ, 5ª T., DJe 19/10/2016.

229

. Reforma Processual Penal de 2008. Lei 11.719/2008 (Procedimentos penais). Lei 11.690/2008 (Provas). Lei 11.689/2008 (Júri). Comentada artigo por artigo – Ivan Luís Marques da Silva, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, p. 37.

230

. Manual de Processo Penal e Execução Penal: 11ª ed. rev. atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 626.

231

. STJ, 5ª T., HC n. 183.355, rel. para o acórdão Min. Adilson Vieira Macabu, DJ 19/09/2012. Na mesma linha, da 6ª T.: HC n. 145.994, rel. Min. Celso Limongi, Sexta Turma, DJ 09/03/2011 e HC 232.842, rel. Min. Og Fernandes, DJe 30/10/2012.

232

. TJSP, 14ª Câmara Criminal, HC n° 990.09.123605-5, j. 13/08/2009. No mesmo sentido, todos do TJSP: HC nº 0529400-56.2010.8.26.0000, Rel. Willian Campos, j. 22/02./2011; HC n° 990.10.179175-7, 14ª Câmara Criminal, Rel. Des. Wilson Barreira, j. 01/07/2010; HC n° 0048678-66.2011.8.26.0000, 16ª Câmara Criminal, Rel. Des. Mariz de Oliveira, j. 28/06/2011; HC n° 990.09.156846-5, 8ª Câmara Criminal, Rel. Des. Louri Barbiero, j. 08/10/2009; HC nº 0267837-11.2011.8.26.0000, 15ª Câmara Criminal, Rel. para acórdão Des. Miguel Marques e Silva, j. 23/04/2012, entre outros.

233

. HC n. 138.089, DJ 22/03/2010.

234

. Idem.

235

. Curso de processo penal. 18ª ed. São Paulo: ed. Atlas, 2014, p. 690.

236

. GOMES FILHO, Antonio Magalhães, A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, RT, 2001, p. 185.

237

. RTJ 69/771.

238

. HC 84.919, DJ 26/03/2010.

239

. STJ, 5ª T., RHC 63.658, rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 28/09/2016.

240

. STF, 1ª T., HC n. 76.258, DJ 24/04/1998.

241

. HC 0031700-52.2012.4.03.0000/SP, rel. p/ ac. Des. Fed. Cecília Mello, DJe 26/03/2013.

242

. STJ, 5ª T., DJe 15/03/1999.

243

. STJ, 5ª T., HC nº 11.995/SP, DJ 11/09/2000.

244

. STF, 1ª T., DJ 13/12/1996. Idem: RTJ 123/134, rel. Min. Francisco Rezek.

245

. Tribunal do Júri. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 70/72.

246

. Teoria dell’ordinamento giuridico, Torino, ed. Giappichelli, 1960, p. 3.

247

. Curso de Processo Penal. Niteroi. ed. Impetus. 2013, p. 1.356.

248

. Processo Penal, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2012, p. 476.

249

. STJ, 6ª T., DJe 09/12/2016.

250

. STF, Pleno, HC n. 66.334-6, rel. Min. Moreira Alves, un., DJ 19/05/1989. Idem no STJ: Resp. n. 12.011, rel. Min. Costa Leite, entre muitos outros.

251

. Instituzioni di diritto e procedura penale, CEDAM, 1966, p. 221-222.

252

. HC nº 2004.03.00.052427-2, Rel. Des. André Nabarrete, DJ 17/01/2005. No mesmo sentido: TRF2, HC nº 9902106889, Rel. Des. Fed. Carreira Alvim, DJ 04/11/1999; TRF4, HC nº 2005.04.01.046621-4, Rel. Des. Fed. Maria de Fátima Labarrere, DJ 11/01/2006.

253

. Curso de Processo Penal, 18.ª ed. São Paulo: ed. Atlas, 2014, p.  420. Idem a lição de Vicente Greco Filho em: Reforma Tópica do Processo Penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 234.

254

. HC nº 55702, Rel. Min. Honildo Castro, DJ 05/10/2010. No mesmo sentido: HC nº 63712/GO, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias, DJ 15/10/2007.

255

. Ação Penal nº 470-1, DJ 31/08/2009.

256

. HC n. 120.676, Medida Cautelar, DJe 03/02/2014.

257

. 2ª T., DJe 13/06/2008.

258

. RE nº 251.445, DJ 03/08/2000.

259

. 5ª T., HC nº 161.053, rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, DJe 03/12/2012.

260

. DJe 19/12/2016.

261

. 2ª T., HC n. 73.227, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 25/10/1996.

262

. 2ª T., rel. Min. Cezar Peluso, DJe 25/04/2008

263

. 1ª T., rel. Min. Carlos Britto, DJe 19/09/2008.

264

. DJe 18/10/2016.

265

. DJe 17/08/2016. No mesmo sentido: 5ª T., HC n. 337.754, rel. Min. Jorge Mussi, DJe 26/11/2015.

266

. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 02/12/2016.

267

. J. em 19/12/2016.

268

. RHC n. 62.870, rel. Min. Octávio Gallotti, DJ 07/06/1985.

269

. Direito Processual Penal, Coimbra, Coimbra ed., l984.§ l4, p. 47l/472.

270

. Sistema del Diritto Processuale Penale, Milano, Giuffrè ed., l965, vol. I, nº 120, p. 267/268.

271

. São Paulo, ed. Saraiva, 1980, vol. I, p. 295.

272

. Jurisprudência Criminal, RJ, ed. Forense, 1982, nº 158, p. 203.

273

. RTJ 96/109. No mesmo sentido: RHC n. 62.870, rel. Min. Octávio Gallotti, DJ 07/06/1985.

274

. RTJ 92/641 e, do mesmo relator: RT 583/468. Idem, Min. Oscar Corrêa na RT 601/445.

275

. HC n. 71.633, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 27/04/2001.

276

. HC n. 89.222, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 31/10/2008.

277

. DJe 20/05/2015. No mesmo sentido: HC n. 85.717, rel. Min. Celso de Mello, DJe 14/06/2013 e RHC n. 83.800, rel. Min. Cezar Peluso, DJe 14/10/2005.

278

. Apelação criminal n. 20050110578327APR, rel. Des. Romão C. Oliveira, j. 06/10/2016.

279

. DJ 24/06/1994.

280

. RSE n. 473.057.3, rel. Des. Fernando Simão.

281

. 6ª T., DJ 22/10/2007.

282

. Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, ed. Coimbra, 1984, I/144.

283

. Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, Rio de Janeiro, ed. Forense, 1961, v. II, p. 252.

284

. HC nº 83.301, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 06/08/2004.

285

. 2ª T., DJ 11/02/2008.

286

. 2ª T., RHC nº 118.653, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 22/09/2014.

287

. Apel. Criminal n. 0021731-29.2005.8.26.0050. J. em 13/11/2014.

288

. STJ, 5ª T., DJe 23/02/2016.

289

. DJ 11/11/2005.

290

. HC n. 289.440, DJe 25/11/2015.

291

. Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 09/12/2002.

292

Código Penal interpretado. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 612.

293

Código Penal comentado. 13ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 610.

294

DireitoConstitucional, 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 388.

295

Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, Rio de Janeiro: ed. Renovar, 2008.

296

. TRF-3, 2ª T., Apelação criminal n. 29003, rel. Des. Fed. Cotrim Guimarães, j. 16/12/2008.

297

. Rel. Min. Sebastião Reis Jr., DJe 15/06/2015. No mesmo sentido: 5ª Turma, HC nº 86.330/SP, rel. Min. Felix Fischer, DJ 12/11/2007.

298

. STJ, 5ª T., HC 119.808, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 01/06/2009.

299

. AgRg n. 778.042, rel. Min. Luiz Fux, DJe em 24/11/2014.

© desta edição [2018]

2020 - 05 - 18

Habeas Corpus - Ed. 2018 VII. QUESTÕES DE PROCEDIMENTO

Sumário: 1. Liminar em HC no STF prejudica o HC no STJ? 2. Qual a natureza jurídica da decisão da decisão que concede a liminar em HC? 3. Cabe Agravo no STJ contra decisão que defere ou indefere liminar em HC? 4. Contrarrazões em RHC. Desnecessidade. 5. Aceitação da suspensão processual e HC pendente: ausência de prejuízo. 6. Intimação do julgamento do HC. Quando é necessária? 7. Pode-se recorrer da decisão que não conhece o writ? 8. Há necessidade de se intimar o impetrante quando o MP opõe embargos declaratórios com a pretensão de efeitos modificativos? 9. Pode haver reformatio in pejus em habeas corpus? 10. Há necessidade de procuração para a interposição do RHC? 11. Sobre a desistência unilateral do habeas corpus. 12. HC contra condenação transitada em julgado. 13. Julgamento: a questão do julgamento pelo colegiado. 14. Possibilidade de a ordem ser concedida monocraticamente. 15. Legitimidade ativa. Impetração pelo MP para prejudicar o acusado. Impossibilidade. 16. Habeas corpus no STF só pela via eletrônica (Resolução 427/2010). 17. Inquérito Policial requisitado por membro do MP. Competência para conhecer do HC. 18. Habeas corpus coletivo. É possível?. 19. Amicus curiae no habeas corpus: é possível? 20. Admissão de assistente do MP no writ. Necessidade de revisão da jurisprudencia.

1. Liminar em HC no STF prejudica o HC no STJ? É clara a orientação do STF no sentido de que a concessão de medida liminar em habeas corpus impetrado contra decisão de relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indeferir liminar, não prejudica a tramitação e julgamento do writ impetrado na origem 1. A mesma Turma, em questão de ordem, no HC 92.688, j. em 29/3/2011, rel. Min. Dias Toffoli (a Turma, resolvendo questão de ordem, deferiu o pedido de sobrestamento feito pela Defesa e determinou que seja oficiado ao Superior Tribunal de Justiça para imediato julgamento do Habeas Corpus n. 91.574/STJ, nos termos do voto do Relator). Na ementa do julgado veio dito: Em vista do deferimento de liminar no presente habeas corpus e diante da demora no julgamento de agravo regimental em writ impetrado ao Superior Tribunal de Justiça, para que não ocorresse supressão de instância, a Turma, em julgamento inaugural, acolheu a matéria preliminar arguida da tribuna para suspender o julgamento desta impetração, com expedição de ofício ao relator do HC nº 91.574/SP no Superior Tribunal de Justiça para o imediato julgamento do recurso pendente2. No HC n. 123.339, do qual foi relatora a Min. Carmen Lúcia, prevaleceu o mesmo entendimento: “a decisão liminar e precária proferida nestes autos não leva ao prejuízo da impetração no Superior Tribunal de Justiça nem no Tribunal de Justiça de São Paulo, devendo a jurisdição ser exaurida em cada instância”3. Idem no HC nº 92.474, relatado pelo Min. Ricardo Lewandowski: I – A superação da Súmula 691, por parte deste STF, constitui medida excepcional, que não tem o condão de interromper a prestação jurisdicional por parte do Tribunal apontado como coator. II – Prejudicialidade que implica, inclusive violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, abrigado no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal4. No mesmíssimo sentido, após alguma hesitação, coloca-se o STJ como se pode ver dos seguintes julgados:

HC nº 322.565, relatora Min. Maria Thereza de Assis Moura: Conquanto a liminar deferida pelo Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a plausibilidade jurídica do pedido, tal decisão ainda possui caráter cautelar, não afastando a possibilidade deste Superior Tribunal de Justiça se manifestar sobre a ordem originária5 No voto condutor do aresto lê-se: Habeas corpus. Recurso ordinário. Execução de alimentos. Liminar deferida pelo STJ. Perda de objeto. Não ocorrência. 1. A concessão de liminar em habeas corpus pelo STJ não prejudica a apreciação de habeas corpus impetrado com a mesma pretensão em tribunal de hierarquia inferior. Precedentes do STF e desta Corte. 2. Recurso ordinário em habeas corpus a que se dá provimento. (RHC 27.896/DF, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 14/12/2010, DJe 04/02/2011). Ementa: habeas corpus. Prisão preventiva. Fundamentação inidônea. Óbice da súmula 691/STF. Ilegalidade evidenciada. Decreto preventivo que se apoiou no conteúdo de entrevista concedida a programa televisivo. Fundamento que, no caso, não se encaixa nos requisitos do artigo 312 do CPP. Habeas corpus não-conhecido. Concessão da ordem, de ofício. 1. A prisão cautelar da paciente se apoia, exclusivamente, no conteúdo de entrevista concedida a programa de televisão. Entrevista pela qual a paciente, com o legítimo propósito de autodefesa, narrou sua própria versão aos fatos criminosos a ela mesma imputados. 2. A análise dos autos evidencia ilegítimo cerceio à liberdade de locomoção da paciente. Circunstância que autoriza o abrandamento da Súmula 691/STF. 3. No caso, o Juízo processante indeferiu o direito de a paciente apelar em liberdade e decretou a sua prisão preventiva. Isto sob a alegação de surgimento de fato superveniente apto a justificar a prisão preventiva. Decisão que se apoiou, tão-somente, no conteúdo de entrevista televisiva, em que a paciente simplesmente apresentou a sua versão para o fato pelo qual foi condenada a uma pena de 30 (trinta) anos de reclusão (crime de latrocínio). Fundamento que não tem a força de corresponder à finalidade do artigo 312 do CPP. 4. O deferimento de liminar por ministro do Supremo Tribunal Federal não prejudica o exame de mérito do habeas corpus, ajuizado no STJ. 5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para permitir que a acusada aguarde o julgamento do respectivo recurso de apelação em liberdade. Salvo se por outro motivo tiver que permanecer presa. (HC 95116, Relator(a): Min. Carlos Britto, Primeira Turma, julgado em 03/02/2009, DJe-043 divulg 05-03-2009 public 06-03-2009 ement vol-02351-04 PP-00656 RTJ vol00209-01 pp-00317 RT v. 98, n. 883, 2009, p. 544-549 LEXSTF v. 31, n. 363, 2009, p. 433-442). Por fim, na mesma linha, veja-se o HC n. 237.925, da relatoria do Min. Sebastião Reis Júnior6. Verifica-se, portanto, que haverá supressão de instância caso a Corte de menor grau se recuse a julgar o mérito do habeas unicamente em virtude da liminar concedida pela instância superior.

2. Qual a natureza jurídica da decisão que concede a liminar em HC? Como já decidiu o Min. Celso de Mello:

A medida liminar, no processo penal de habeas corpus, tem o caráter de providência cautelar. Desempenha importante função instrumental, pois destina-se a garantir – pela preservação cautelar da liberdade de locomoção física do indivíduo – a eficácia da decisão a ser ulteriormente proferida quando do julgamento definitivo do writ constitucional (RTJ 147/962).

3. Cabe Agravo no STJ contra decisão que defere ou indefere liminar em HC? As duas Turmas especializadas em matéria penal já decidiram que, salvo hipóteses teratológicas, não cabe Agravo Regimental contra a decisão que defere ou indefere liminar no writ. No AgRg no HC n. 159.159, a Min. Maria Thereza ementou decisão segundo a qual: 1. Conforme pacífico entendimento deste Superior Tribunal de Justiça, não cabe agravo regimental contra decisão de Relator deferindo ou indeferindo liminar em habeas corpus. 2. Agravo regimental não-conhecido7. No corpo do aresto são citados os seguintes precedentes: Agravo interno. Habeas corpus. Deferimento de pedido liminar devidamente fundamentado. Descabimento de recurso. Liberdade provisória. Vedação constante do art. 44 da Lei nº 11.343/06. Fundamentação inidônea. Agravo interno de que não se conhece. 1. Esta Corte firmou o entendimento de que não cabe agravo interno contra decisão do relator que, fundamentadamente, defere ou indefere, pedido liminar em habeas corpus. 2. Ainda que superado o óbice, esta Sexta Turma tem reiteradamente decidido que a vedação de liberdade provisória constante do art. 44 da Lei nº 11.343/06 não é suficiente para justificar a constrição cautelar do acusado de tráfico de entorpecentes. 3. Agravo interno de que não se conhece.” (AgRg no HC 131.453/MT, Rel. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP), Sexta Turma, julgado em 13/10/2009, DJe 03/11/2009). Agravo regimental. Habeas corpus. Indeferimento pedido liminar. Descabimento de recurso. Prevenção. Inexistência. Fundamentos da decisão mantidos. 1. Não cabe recurso contra decisão de Relator proferida em sede habeas corpus que defere ou indefere, fundamentadamente, o pedido de liminar. Precedentes. 2. A presente ordem não está vinculada aos habeas corpus de n.ºs 5.217/RR, 66.101/RR, 66.102/RR, 66.631/RR, 68.366/ e 77.741/PI, que estão sob a relatoria do ilustre Min. Nilson Naves, porque as partes e as ações penais nas nominadas impetrações são diversas das constantes na presente ordem, inexistindo qualquer causa que justifique ou implique em prevenção. Decisão mantida pelos seus próprios fundamentos. 3. Agravo parcialmente conhecido e desprovido. (AgRg no HC 88.564/RR, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 11/09/2007, DJ 08/10/2007 p. 353).

4. Contrarrazões em RHC. Desnecessidade Sobretudo depois que as Cortes Superiores passaram a exigir que se manejasse o recurso ordinário constitucional em habeas corpus (RHC) contra as decisões denegatórias de habeas corpus nos tribunais estaduais e regionais federais, veio à baila a questão da lentidão no trâmite deste recurso. O ponto é que interposto o recurso na origem com as suas respectivas razões, normalmente se concede vista ao Ministério Público para que apresente suas contrarrazões e só aí o feito vai a despacho para se determinar a subida do recurso. O fato é que inexiste previsão na Lei nº 8.038/90 para oferecimento de contrarrazões pelo MPF. Disse-o com todas as letras o Min. Felix Fischer ao

relatar o RHC nº 51.177: “não há previsão de contrarrazões no recurso ordinário em habeas corpus na Lei n. 8.038/90, razão pela qual é desnecessária a providência, pois a d. Subprocuradoria--Geral da República já oficia nos autos”8. No RHC n. 48.244, relatado pela Min. Maria Thereza houve um incidente a esse respeito e foi assim dirimido: No presente recurso ordinário, em manifestação às fls. 120-126, a Subprocuradora-Geral da República Elizeta Maria de Paiva Ramos requer, preliminarmente, seja o feito remetido ao Tribunal de origem para o oferecimento das contrarrazões pelo parquet. A diligência solicitada, ao que cuido, é indubitavelmente incondizente com o rito previsto para o recurso ordinário na Lei n.º 8.038/90. Ei-lo: “Art. 30 – O recurso ordinário para o Superior Tribunal de Justiça, das decisões denegatórias de Habeas Corpus, proferidas pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal, será interposto no prazo de cinco dias, com as razões do pedido de reforma. Art. 31 – Distribuído o recurso, a Secretaria, imediatamente, fará os autos com vista ao Ministério Público, pelo prazo de dois dias. Parágrafo único – Conclusos os autos ao relator, este submeterá o feito a julgamento independentemente de pauta. Art. 32 – Será aplicado, no que couber, ao processo e julgamento do recurso, o disposto com relação ao pedido originário de Habeas Corpus. ” De fato, a apresentação das contrarrazões pelo parquet não se mostra imprescindível. A propósito, outrora abordou-se a matéria deste modo (RHC n.º 35.123/PR, de minha relatoria, DJe de 22.4.2013): “No presente recurso ordinário, em manifestação às fls. 438/439, o Subprocurador-Geral da República Francisco Rodrigues dos Santos Sobrinho requer seja o feito remetido ao Tribunal de origem para o oferecimento das contrarrazões pelo parquet. Argumenta, para tanto, o seguinte (fls. 438/439): ‘(...) Compulsando-se os autos, observa-se que, logo após a interposição do Recurso Ordinário em Habeas Corpus sub oculi (e-STJ fls. 405/420), o Desembargador Federal Vice-Presidente do TRF da 4.ª Região proferiu decisão de admissibilidade recursal (e-STJ fls. 424/425), providenciando-se, imediatamente, a sua remessa a essa Colenda Corte Superior, sem que, antes, fosse intimado o Ministério Público Federal com ofício na Segunda Instância, especificamente, para ofertar contraminuta. Muito embora conste dos autos manifestação do Órgão Ministerial, dando ciência da decisão que admitiu o recurso em tela, não se desincumbiu o Parquet Federal do seu dever processual de atuar, regularmente, no feito sub examine, na qualidade de parte. Destaque-se que o Parquet não foi intimado para tanto. Ressalte-se, por isso mesmo, que a ausência de intervenção do órgão competente do Ministério Público, oportunamente, pode ensejar nulidade processual. Por outro lado, não pode o Ministério Público, simplesmente, omitir-se ou escamotear-se ao seu munus. Por isso, em atenção às garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, entendo necessária a conversão do julgamento em diligência, com baixa dos autos ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, para que se intime o MPF, para exercer o

munus processual que lhe cabe nos autos, ofertando contrarrazões ao recurso ordinário em habeas corpus, ou, ao menos, expondo as razões por que não o faz. Em face do exposto, requeiro a conversão do feito em diligência, com baixa dos autos ao Tribunal a quo, a fim de que seja intimado o Órgão Ministerial que oficia perante a Segunda Instância, para oferecer contraminuta ao recurso ordinário em referência. Após isso, protesto por nova vista dos autos, para emissão de Parecer.’ A diligência solicitada, ao que cuido, é indubitavelmente incondizente com o rito previsto para o recurso ordinário na Lei n.º 8.038/90. Ei-lo: ‘Art. 30 – O recurso ordinário para o Superior Tribunal de Justiça, das decisões denegatórias de Habeas Corpus, proferidas pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal, será interposto no prazo de cinco dias, com as razões do pedido de reforma. Art. 31 – Distribuído o recurso, a Secretaria, imediatamente, fará os autos com vista ao Ministério Público, pelo prazo de dois dias. Parágrafo único – Conclusos os autos ao relator, este submeterá o feito a julgamento independentemente de pauta. Art. 32 – Será aplicado, no que couber, ao processo e julgamento do recurso, o disposto com relação ao pedido originário de Habeas Corpus. ’ De fato, a apresentação das contrarrazões pelo parquet não se mostra imprescindível. Ademais, verifica-se que, dada vista dos autos ao órgão ministerial (fl. 429), o Procurador Regional da República Marco André Seifert, em 4.12.2012, restou cientificado da interposição recursal (fls. 430 e 431), quedando-se silente no tocante à juntada das contrarrazões. Preclusa a matéria, nada resta a prover, portanto. Diante disso, reencaminhe-se o recurso ordinário ao Parquet Federal para o devido oferecimento do parecer ministerial.” Traz-se, ainda, a seguinte decisão unipessoal prolatada pelo Ministro Og Fernandes, no RHC n.º 36.412/MG, DJe de 17.4.2013: “Vistos, etc. À fl. e-STJ 316, o Ministério Público Federal lançou a seguinte promoção: ‘Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que denegou a ordem na impetração originária (fls. 265/273e). Todavia, no caso em apreço, verifica-se que não foram oferecidas as contrarrazões e nem se deu conhecimento do r. despacho que mandou subir os autos ao Ministério Público atuante no feito. Dessa forma, necessário se faz diligência com o retorno dos autos à origem, data venia em homenagem ao contraditório e ao devido processo legal, para que o órgão do Ministério Público naquela instância possa se manifestar nos autos. É o que requer.’ Não vejo razão, à vista do princípio da instrumentalidade processual, para determinar o retorno dos autos à instância a quo, procedimento que somente retardaria, injustificadamente, o julgamento do feito. Como se sabe, o habeas corpus é ação de sede constitucional que tem por escopo a tutela da liberdade de locomoção, nela atuando o Ministério Público como fiscal da lei, motivo pelo qual descabe falar em princípio do contraditório.

Desse modo, e à míngua de exigência legal de apresentação de contrarrazões a recurso ordinário em habeas corpus, indefiro o requerimento. Retornem os autos à Subprocuradoria-Geral da República, para parecer. Publique-se.”9 No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o então presidente da Seção de Direito Criminal, Des. Geraldo Pinheiro Franco, embora em caráter excepcional, também determinou a imediata subida dos autos ao STJ no despacho que proferiu no HC n. 2023015-42.2015.8.26.0000: Considerando os argumentos trazidos pelo causídico e a existência de precedentes do Colendo Superior Tribunal de Justiça nesse sentido (RHC nº 43.938/MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJU de 20.04.2015; RHC nº 53.675/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, DJU de 03.02.2015; RHC nº 39.468/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, DJU de 03.02.2015; RHC nº 52.107/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJU de 28.11.2014; RHC nº 51.177/BA, Rel. Min. Felix Fischer, DJU de 24.11.2014; RHC 49.721/MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJU de 26.09.2014; RHC nº 38.624/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, de 04.08.2014; RHC 39.233/MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJU de 22.08.2013), defere-se, excepcionalmente, o pedido, remetendo-se os autos ao Colendo Superior Tribunal de Justiça10. Lamentavelmente, pesa dizer, em muitos tribunais requerer a subida imediata do recurso toma mais tempo do que esperar as contrarrazões do ministério público. De qualquer modo, o tema vem bem tratado na jurisprudência do STJ e pode vir a ser disciplinado no âmbito dos regimentos internos dos tribunais.

5. Aceitação da suspensão processual e HC pendente: ausência de prejuízo A aceitação da proposta de suspensão processual nos termos do art. 89 da Lei n. 9.099/95 não prejudica o exame do habeas corpus no que diz com a falta de justa causa, inépcia da denúncia, ilicitude da prova ou qualquer outra circunstância autorizadora do seu manejo (CPP, art. 648). É que em razão de ação penal ilegal, o paciente está sujeito a período de prova – portanto, sofre coação em sua liberdade de ir e vir, pois tem que comparecer ao fórum mensalmente e não pode frequentar certos lugares – e permanece inalterada a possibilidade de aplicação de pena restritiva de liberdade a ele, já que o benefício pode vir a ser revogado. Daí por que o STF é firme ao estabelecer que a aceitação de proposta de suspensão condicional do processo não importa na prejudicialidade do writ: Processo – Suspensão – Habeas corpus. A suspensão do processo, operada a partir do disposto no artigo 89 da Lei nº 9.099/95, não obstaculiza impetração voltada a afastar a tipicidade da conduta. O que cumpre ter presente é a possibilidade, ainda que latente e ante certo ato, de o paciente, por este ou aquele motivo, vir a sofrer cerceio na liberdade de ir e vir. Então, tem-se que, deixando o acusado de a tentar para as condições fixadas quando da formalização do termo concernente à suspensão do processo, segue-se a retomada do curso da ação penal para prolação da sentença, no sentido de absolver ou condenar. É o suficiente para se assentar o interesse de agir na via do habeas corpus (...)11. Em outro julgado, repetiu-se o mesmo entendimento: Nos termos relatados, vê-se que a controvérsia jurídica a ser equacionada no presente habeas corpus consiste em saber se restou prejudicada, ou não, a ordem impetrada no Superior Tribunal de Justiça. Isto, aclare-se, pela superveniência de ato de suspensão condicional do processo a que responde o paciente. (...) O pedido veiculado na Corte Superior de Justiça foi pelo trancamento da ação penal por motivo de atipicidade da conduta ao impetrante (fls. 12) Pedido, cujo fundamento abrange análise da higidez e validade da acusação, de modo a eventualmente impedir a instauração indevida da instância. Pelo que, considerando a envergadura constitucional do habeas

corpus e o direito fundamental a que visa resguardar, é de se reconhecer que o acusado pode, a qualquer tempo, questionar os atos processuais que importem coação sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Por tudo quanto posto, defiro o habeas corpus para que, afastada a prejudicialidade, o Superior Tribunal de Justiça julgue a impetração como entender de direito (HC 89179-9, Rel. Min. Ayres Britto, DJ 13/4/2007). Essa, sem dúvida é a intelecção mais correta, não apenas pela possibilidade de retomada da ação penal no caso de descumprimento das condições da suspensão processual, mas porque nada pode justificar a submissão do cidadão a restrições à sua liberdade de ir e vir, representada, entre outras coisas, pela restrição quanto à frequência a certos lugares, que decorra de uma ação sem justa causa. Com medo de perder a oportunidade da suspensão processual, esta é aceita, mas isso não pode suprimir o direito de se questionar a legalidade da própria ação penal como bem decidiu a 6ª Turma do STJ no RHC n. 48.443, relatado pelo Min. Sebastião Reis Júnior, repelindo a ideia de incoerência lógica12.

6. Intimação do julgamento do HC. Quando é necessária? A regra do art. 664 do CPP é clara: “recebidas as informações, ou dispensadas, o habeas corpus será julgado na primeira sessão, podendo, entretanto, adiar-se o julgamento para a sessão seguinte”. Até, ao menos, os anos 80 essa regra era cumprida à risca no TJSP. O relator recebia o feito e, na sessão seguinte, ou, no máximo, na próxima, o feito era levado a julgamento. Não havia necessidade de intimação; a lei não prevê e a praxe forense tornava-a dispensável em razão da preconizada celeridade nos julgamentos. A Súmula 431 do STF condensava o entendimento pretoriano explicitando serem nulos os julgamentos “de recurso criminal na segunda instância sem prévia intimação ou publicação da pauta, salvo em habeas corpus”. Ocorre que nos tribunais superiores há casos – e não são poucos – em que o habeas é levado a julgamento mais de um ano depois de pronto para julgar, isto é, com informações e Parecer ministerial. Por conta disso, os advogados, que não podiam, em razão da perda de tempo e dos custos, ir toda semana a Brasília, começaram a reclamar da situação e reivindicar a necessidade de prévia intimação para o julgamento do writ. Mas havia casos em que o advogado era surpreendido com o julgamento do habeas justamente na sessão em que não houvera comparecido. Não por acaso, no julgamento do RHC n. 84.310, relatado pelo Min. Marco Aurélio, alertou-se para que “a ausência de inclusão do habeas em pauta visa à celeridade no julgamento, longe ficando de implicar surpresa. Consubstancia um direito natural a ciência da data designada”13. Sensível à realidade que se alastrava, com delongas injustificadas inclusive no julgamento dos habeas corpus nos tribunais estaduais e, sobretudo, nos regionais federais, o Min. Nelson Jobim, então presidente do STF, editou a Emenda Regimental n. 17, de 09 de fevereiro de 2006, disciplinando a intimação no julgamento dos habeas corpus da seguinte maneira: Art. 1º O art. 192 do Regimento Interno passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 192 (...) (...) Parágrafo único-A. Não ocorrendo a apresentação em mesa na sessão indicada no caput, o impetrante do habeas corpus poderá requerer seja cientificado pelo Gabinete, por qualquer via, da data do julgamento. (NR)” Embora a Emenda vigorasse apenas no âmbito do STF, logo o STJ passou a aceitar a necessidade da intimação e, hoje, os tribunais de praticamente todo o país seguem a regra. Do contrário, havendo pedido de intimação e não tendo o relator levado o feito a julgamento na primeira sessão, será nulo o julgamento do writ. Elucidativa, no ponto, a ementa do HC n. 86.550, da relatoria do Min. Carlos Britto: Habeas corpus. Alegação de prejuízo à defesa pela ausência de intimação para a realização do

julgamento do writ. Impossibilitada a sustentação oral. Existência de pedido de intimação expresso nos autos. Nos termos da orientação deste Supremo Tribunal Federal, a sustentação oral não é ato essencial à defesa. Contudo, havendo pedido expresso nos autos de intimação da realização do julgamento, é de se deferir o habeas corpus, em homenagem à envergadura maior do writ14. Também a Min. Carmén Lúcia, ao relatar o HC n. 104.264 deixou expressa a necessidade de intimação para o julgamento do writ: Habeas corpus. Processual penal. Ausência de intimação do advogado para a sessão de julgamento de habeas corpus impetrado no superior tribunal de justiça. Impossibilidade de realização de sustentação oral. Existência de pedido de intimação constante dos autos. Cerceamento de defesa. Direito a previa comunicação para dar eficácia à garantia constitucional da ampla defesa. Nulidade absoluta. Precedentes. Habeas corpus concedido. 1. Havendo pedido nos autos, a falta de intimação para a sessão de julgamento suprime o direito da defesa do Paciente de comparecer para efetivar a sustentação oral, que constitui instrumento de efetivação da garantia constitucional da ampla defesa, para cujo exercício a Constituição da Republica assegura ‘os meios e recursos a ela inerentes’ (art. 5º, LV). 2. Nulidade absoluta do ato praticado nessa condição. Precedentes. 3. Habeas corpus concedido15. Todavia, não se tem reconhecido a nulidade por falta de intimação quando não há pedido de intimação: “[n]a ausência de manifestação prévia do advogado do acusado sobre seu interesse em realizar sustentação oral[,] não há que falar em violação ao princípio da ampla defesa”16. Eloquente nesse sentido o decidido na Segunda Turma do STF: O julgamento de habeas corpus independe de pauta ou qualquer tipo de comunicação, cumprindo ao impetrante acompanhar a colocação do processo em mesa para julgamento, se deixa de requerer intimação ou ciência prévia para expor oralmente as razões da impetração17.

7. Pode-se recorrer da decisão que não conhece o writ? O art. 102, II, letra a, da Constituição Federal dispõe que cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar em recurso ordinário: “o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão”. Na mesma linha vai o art. 105, II, quando trata da competência recursal ordinária do Superior Tribunal de Justiça: “os habeas corpus decididos em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão for denegatória”. A Lei n. 8.038/90 segue o mesmo figurino no seu artigo 30 ao tratar do recurso ordinário em habeas corpus (RHC) para o STJ: “das decisões denegatórias de Habeas Corpus, proferidas pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal, será interposto no prazo de cinco dias, com as razões do pedido de reforma”. A despeito de a Constituição e a Lei n. 8.038/90 referirem apenas decisões denegatórias, é antigo o entendimento no Supremo Tribunal Federal, e o Pleno o reafirmou no julgamento do MS n. 21.112, segundo o qual a locução constitucional — “‘quando denegatória a decisão’ — tem sentido amplo, pois não só compreende as decisões dos tribunais que, apreciando o meritum causae, indeferem o pedido, como também abrange aquelas que, sem julgamento de mérito, operam a extinção do processo” 18. Preciso, no ponto, o escólio de Ada Pelegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes quando sustentam que se entende “ser o recurso ordinário cabível também da decisão que não conhece ou julga prejudicado o pedido de habeas corpus: STF, RT 572/433, 640/385”19. O julgado referido na RT 572/433 traz a seguinte ementa: Habeas corpus. Pedido prejudicado. Recurso ordinário (cabimento). Constituição Federal, art. 119, II, “c” (exegese da expressão “se denegatória a decisão”). A interpretação da expressão “se

denegatória a decisão”, contida no art. 119, II, “c”, da CF, para efeito de cabimento do recurso, deve compreender tanto a decisão que julga improcedente o pedido como a que dele não conheça, ou o julgue prejudicado, porquanto o que se tem em vista é a recusa da vantagem que se busca pela prestação jurisdicional. Recurso de habeas corpus improvido20. Portanto, deve-se dar seguimento a RHC quando interposto contra decisão que não tenha conhecido da impetração.

8. Há necessidade de se intimar o impetrante quando o MP opõe embargos declaratórios com a pretensão de efeitos modificativos? Ante a possibilidade de se conceder efeitos modificativos ou infringentes aos embargos de declaração, de modo a resultar em alteração prejudicial à parte embargada, é indispensável sua prévia intimação para contrarrazoar o conteúdo do recurso. Isso porque, a concessão de efeitos modificativos aos declaratórios não pode se sobrepor ao direito constitucional do contraditório e da ampla defesa. E a falta de intimação, conforme magistério de Grinover, Magalhães e Scarance21, torna “insanavelmente nula a decisão nos embargos que modificar a embargada, sem observância do contraditório prévio”, porquanto, “a surpresa para a parte contrária, decorrente da ausência de contraditório, viola frontalmente as garantias constitucionais do ‘devido processo legal’”. Nesse sentido, inclusive, o STJ fixou o entendimento de que constitui manifesto cerceamento de defesa a não intimação do embargado para contrarrazoar os declaratórios a que se pretende conceder efeitos modificativos ou infringentes: Habeas corpus. Processo penal. Tráfico de drogas e posse ilegal de arma de fogo. Embargos de declaração opostos pelo Ministério Público Estadual em face de acórdão de julgamento de recurso de apelação. Efeitos infringentes. Agravamento da situação prisional do embargado. Alegação de nulidade ante a falta de intimação das advogadas para oferecerem contrarrazões aos embargos. Cerceamento de defesa configurado. Ordem de habeas corpus concedida. 1. A atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração opostos pelo Ministério Público em face de acórdão que decidiu recurso de apelação, com agravamento da situação do Embargado, pressupõe a intimação dos seus Patrocinadores para oferecerem contrarrazões, sob pena de ilegal cerceamento de defesa. 2. Ordem de habeas corpus concedida, para anular o acórdão do julgamento dos embargos de declaração em apelação criminal, garantindo-se a regular intimação das Advogadas do Paciente para oferecerem contrarrazões (HC nº 262032, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 02.09. 14. No mesmo sentido: HC nº 46.465, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 12.03.07) O tema foi posto novamente no julgamento do RHC n. 62.786, relatado pelo Min. Reynaldo Soares da Fonseca e assim ementado: Processo penal. Recurso em habeas corpus. Acolhimento pelo tribunal de origem de embargos de declaração com efeitos infringentes. Ausência de intimação prévia da parte adversa. Ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa. 1. A ausência de contrarrazões ao recurso ministerial (embargos de declaração com efeitos modificativos) enseja nulidade, conforme entendimento consolidado pela Suprema Corte: “visando os embargos declaratórios à modificação do provimento embargado, impõe-se, considerado o devido processo legal e a ampla defesa, a ciência da parte contrária para, querendo, apresentar contrarrazões” (STF, HC n. 92.484 ED, Relator Ministro Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 5/6/2012, publicado em 19/6/2012). 2. No mesmo sentido, precedentes desta Corte: EAREsp 285.745/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz,

Corte Especial, julgado em 02/12/2015, DJe 02/02/2016); AgRg nos EDcl no REsp 1054867/RJ, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10/11/2015, DJe 17/11/2015; EDcl nos EDcl no REsp 1278101/SP, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 03/03/2015, DJe 10/03/2015. 3. Recurso ordinário em habeas corpus parcialmente provido, a fim de anular o v. acórdão exarado nos embargos de declaração e, em consequência, determinar que novo julgamento seja proferido após regular intimação da parte embargada para, querendo, apresentar contrarrazões22.

9. Pode haver reformatio in pejus em habeas corpus? Sobre a vedação da reforma para pior em habeas corpus, o Supremo Tribunal Federal, em acórdão de lavra do Min. Dias Toffoli, já se posicionou: (...) 7. A proibição da reformatio in pejus, princípio imanente ao processo penal, aplica-se ao habeas corpus, cujo manejo jamais poderá agravar a situação jurídica daquele a quem busca, exatamente, favorecer. 8. Anulada, em habeas corpus, condenação alcançada por indulto para que o paciente seja submetido a novo julgamento, devem-se protrair os efeitos jurídicos dessa causa de extinção de punibilidade, de modo a alcançar eventual nova condenação, como expressão do favor rei ou do favor libertatis. 9. Ordem de habeas corpus concedida para anular a condenação do paciente e determinar sua submissão a novo interrogatório23. No corpo do aresto chama-se atenção para que é “mister conjugar a garantia constitucional do habeas corpus com outro princípio do processo penal: a vedação da reformatio in pejus”. No mesmo sentido confiram-se os seguintes julgados: EDcl no HC 172.488/SP, rel. Min. Marilza Maynard, 5ª T., DJe 19/11/2012 e HC 157.021/SP, rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 02/03/2012.

10. Há necessidade de procuração para a interposição do RHC? Depois que o STJ, na linha da jurisprudência da Primeira Turma do STF24, começou a restringir a impetração de habeas corpus originários, substitutivos do recurso, a interposição deste, a despeito de o seu processamento ser mais moroso, avolumou-se. Agora, além das restrições ao habeas corpus acima tratadas, eis que surge uma nova: a exigência de procuração para a interposição do RHC. Logo viveremos a realidade do no day in court, tão bem descrita por Sarah Staszak numa referência à contradição entre o proclamado acesso à Justiça e as políticas restritivas do Judiciário25. O art. 654 do CPP é taxativo quanto à legitimação ativa de “qualquer pessoa” para impetrar habeas corpus. Este também é o teor do art. 1º, § 1º, do Estatuto do Advogado (Lei n. 8.906/94) que é expresso em determinar que “não se inclui na atividade privativa de advocacia a impetração de habeas corpus em qualquer instância ou tribunal”. Sendo o writ of habeas corpus uma garantia constitucional de defesa de direitos fundamentais, em especial o direito à liberdade de locomoção, é natural que o legislador de 1941 (CPP) e também o de 94 (Estatuto da OAB) tenham afastado formalismos no seu manejo. Como procedentemente apontam Nalini e Xavier de Aquino, “a tendência pretoriana a restringir o habeas corpus, esvaziando-o de seu conteúdo, mediante apreciação formalística de seus requisitos”, sela-o de morte26. E tão relevante é o direito discutido no habeas que os Regimentos internos do STF (art. 191, I) e do STJ (art. 201, I) facultam ao relator a nomeação de advogado “para acompanhar e defender oralmente o habeas corpus impetrado por pessoa que não seja bacharel em Direito”27. A despeito de a jurisprudência do STF, de longa data, como registra o saudoso Mirabete,

proclamar a desnecessidade de procuração para o manejo de um RHC, pois, “se qualquer pessoa pode impetrar habeas corpus em favor de terceiro sem mandato deste, pode-se igualmente sem procuração recorrer da decisão denegatória. Precedentes do STF (RT 631/389)”28, o STJ, recentemente, começou a erguer jurisprudência segundo a qual é necessária a existência de mandato para a interposição do RHC, pois “‘na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos’ (Enunciado da Súmula n. 115 desta eg. Corte)”29. No corpo do julgado, o Min. Félix Fischer traz a colação o decidido pela 6ª Turma do STJ no RHC n. 52.995/RJ, assim ementado: – Incidente no caso o disposto no Enunciado n. 115 da Súmula desta Corte, porquanto ausente dos autos, no momento de interposição do recurso, o instrumento de mandato endereçado ao advogado subscritor da petição de recurso ordinário. Ademais, nos termos da jurisprudência desta Corte, não se admite a posterior regularização da capacidade postulatória, com a juntada tardia aos autos do instrumento de mandato. (...) Recurso ordinário desprovido (RHC 52.995/RJ, Sexta Turma, Rel. Min. Ericson Maranho – Des. conv. do TJ/SP, DJe de 3/2/2015). Há, ainda, na mesma linha, o AgRg no RHC n. 52.916/SP da relatoria do Min. Gurgel de Faria (DJe 3/12/2014) e AgRg no RHC n. 40.896, rel. Min Sebastião Reis Jr. (DJe 27/6/2014). Afora a sólida jurisprudência do STF em sentido contrário, ao menos quatro questões mostram o desacerto do entendimento do STJ na matéria em exame: 1. O RHC não é “instância especial” nos termos da Súmula 115 do STJ; 2. Não há lógica em se permitir o manejo do habeas sem procuração e, simultaneamente, exigirse procuração para o seu recurso; 3. O Tribunal não pode criar condição extralegal para a impetração do habeas corpus; 4. O impetrante é parte, não é mandatário do paciente. Portanto, ele recorre em nome próprio. A ideia de que o Recurso Ordinário em habeas corpus representa uma “instância especial”, briga com a expressa disposição legal constante do art. 30 da Lei 8.038/90, que fala em “recurso ordinário em habeas corpus”. Briga também com a própria Constituição Federal que é, igualmente, expressa ao atribuir competência ao STJ para julgar em recurso ordinário os habeas corpus decididos em única ou última instância pelos Tribunais... (CF, art. 105, II, a). A Constituição Federal, no art. 105, III, alude ao recurso especial cabível contra as causas decididas em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais, do Distrito Federal ou pelos Tribunais de Justiça. É só nesta hipótese que se pode falar em “instância especial”. Basta dizer que todos os precedentes que deram base à construção da Súmula 115 do STJ são tirados de recursos especiais. Ou seja, a incidência da referida Súmula não pode ser alargada para alcançar hipótese representada por recurso ordinário constitucional. De se lembrar com o Ministro Marco Aurélio, que o Direito é ciência e, como tal, seus vocábulos têm sentido próprio (HC n. 114.770). Ora, se o verbete da Súmula 115 do STJ foi erguido para situações abrangidas pelo recurso especial e, bem por isso, alude à “instância especial”, causa espécie que se subverta o conteúdo do verbete para se alcançar o recurso ordinário constitucional em habeas corpus. Há mais. Qual é a lógica de se permitir o manejo do habeas sem procuração, e não o seu recurso? Antiga jurisprudência do STF, da lavra do Min. Djaci Falcão, supra referida, responde com

propriedade à questão: Se qualquer pessoa pode impetrar habeas corpus em favor de terceiro, sem mandado deste, pode-se igualmente sem procuração, recorrer da decisão denegatória. Precedentes do S.T.F RHC n. 66.144 (DJ 20/5/1998 ou na RT 631/389). No julgado em questão, há um magnífico Parecer da então Procuradora da República Laurita Vaz, hoje vice-presidente do STJ, e aprovado pelo Subprocurador-Geral da República José Arnaldo Gonçalves de Oliveira: A meu ver, não tem procedência, data venia, a preliminar arguida pela douta Procuradoria Geral de Justiça, às fls.. .. dos autos. Se qualquer pessoa, independentemente de mandato, pode impetrar habeas corpus em favor de terceiro, conforme permite o art. 654 do Código de Processo Penal, pode-se igualmente, sem procuração, ingressar com recursos contra decisão denegatória do habeas corpus. Nesse sentido, aliás, já decidiu a Colenda 2ª Turma desse Excelso Pretório, no RHC n. 60.421-ES, que o Relator, eminente Ministro Moreira Alves, anulou, com os seguintes dizeres: Habeas corpus. – Se se pode impetrar habeas corpus em favor de terceiro sem mandato deste, pode-se igualmente sem procuração, recorrer da decisão que indeferiu o habeas corpus. – Excesso de prazo que decorre da atuação da defesa. Habeas corpus indeferido (RTJ 108/117) Mais recentemente, no RHC n. 121.555/PE (DJe 25/3/2014), debruçando-se sobre o tema, a Min. Rosa Weber, em decisão monocrática, averbou que a posição sufragada pelo STJ, no ponto, contraria a jurisprudência de STF, verbis: Embora esse posicionamento seja contrário ao predominante nesta Suprema Corte, que se orienta no sentido de “não se exigir habilitação legal para impetração originária do writ ou para interposição do respectivo recurso ordinário” (HC 86.307/SP, Rel. Carlos Britto, 1ª Turma, DJ 26.5.2006; igualmente: HC 84.719/MG, Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, DJ 26.11.2004), a matéria de fundo do recurso foi devidamente analisada pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, ao fim, concluiu não ser hipótese de concessão de eventual ordem de ofício no habeas corpus30. Também o Min. Maurício Corrêa, no AgR-AgR no RE n. 273.762 (DJ 10/10/2001), em decisão monocrática, rechaçou a exigência de procuração para a interposição de RHC, disse: (...) denegado o writ no tribunal de origem, aceita-se a interposição, pelo impetrante – independentemente de habilitação legal ou de representação – de recurso ordinário constitucional (HC nº 73.455, Rezek, DJ de 07.03.97, Segunda Turma; RHC nº 60.421, Moreira Alves, DJ de 22.04.83, Segunda Turma; HC nº 64.116, Sydney Sanches, DJ de 24.10.86, Primeira Turma, dentre outros). Todavia, dada a peculiaridade do caso e a justificativa do recorrente de que foi induzido a equívoco em razão de na autuação do processo figurar o paciente como recorrido e não um dos impetrantes do writ, reconsidero a decisão que declarou inexistente o primeiro agravo regimental. De mais a mais, ainda que se queira desprezar os argumentos precedentes, não se pode ignorar que o RHC pode ser substituído pela impetração de habeas corpus originário, segundo a firme jurisprudência da 2ª Turma do STJ31. Assim sendo, soa extravagante que se permita a impetração originária substitutiva do recurso, feita por pessoa sem instrumento de mandato, mas o recurso não. Cria-se uma injustificável disparidade de tratamento que, em primeira e última análise, representa um formalismo incompatível com a garantia constitucional que direta ou

indiretamente cuida da liberdade. No mais, é de se advertir, consoante sábia jurisprudência do próprio STJ, aliás, lavrada pelo saudoso Min. Assis Toledo, que “não pode o Tribunal criar condição extralegal para a impetração do habeas corpus (STJ, RHC 113, 5ª T., DJ 6/11/89)”32. Embora o julgado em apreço tratasse da possibilidade de se recorrer da decisão que não conhecesse do habeas na instância de origem, a diretriz traçada se aplica com exatidão para o caso em que, pela via exegética, se quer criar condição não prevista em lei para o conhecimento do recurso de habeas corpus, vale dizer, procuração do advogado-impetrante ou “qualquer pessoaimpetrante”. Mais grave, repita-se, é que se está invocando uma Súmula que tem incidência aos casos de “instância especial” que o recurso ordinário, diz o próprio nome, não representa. Por fim, mas não menos importante, é de se lembrar que o impetrante é parte no habeas corpus, não representa, no sentido processual da expressão, o paciente. Portanto, ele, quando recorre, o faz em nome próprio. Expliquemo-nos: quando o advogado (ou qualquer pessoa sem ter essa qualificação) impetra o habeas o faz “em favor do paciente”. Vale dizer, não age por procuração, como representante do paciente no sentido processual do termo. Não é seu mandatário. Tem voz e legitimação ativa próprias. Assim, quando a ordem é denegada na origem, o impetrante, como parte que é, tem legitimidade recursal em nome próprio. A se seguir a jurisprudência do STJ cairíamos no absurdo de ter que se outorgar procuração em causa própria ou, pior ainda, ter que pedi-la ao paciente para atuar em seu nome, quando a lei não o exige! Enfim, a jurisprudência do STJ, que, lamentavelmente, começa a ganhar corpo, merece ser repensada e afastada pela odiosarestrição que acolhe em matéria na qual deveria imperar a tão decantada “instrumentalidade das formas”, sempre lembrada para estreitar garantias, mas raramente para lhes dar vida. Não é por acaso que, mais recentemente, a 6ª Turma do STJ, em acórdão relatado pelo Min. Schietti Machado sublinhou a desnecessidade de procuração para o recurso ordinário constitucional (RHC n. 61.942, DJe 24/8/2017).

11. Sobre a desistência unilateral do habeas corpus Embora raro, pode acontecer que o relator do habeas corpus se recuse a homologar a desistência do writ. O impetrante, como parte, tem o direito de desistir da impetração se antevê no seu julgamento a possibilidade de algum dano processual ao seu assistido, o paciente. Idem, se entender que a ordem está prejudicada. Como se sabe, o habeas corpus é uma ação mandamental proposta pelo impetrante, que pode, ou não, confundir-se com a pessoa do paciente quando este atua em causa própria, manejando-o diretamente. Como quer que seja, a parte tem plena disposição sobre o seu curso, descabendo ao juiz opor-se à sua desistência. Bem por isso, o despachar no HC n. 135.362, o Min. Celso de Mello, afirmou essa possibilidade: A parte ora impetrante formula pedido de desistência da presente ação de habeas corpus. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – refletindo o magistério da doutrina (Julio Fabbrini Mirabete, Processo Penal, p. 640 e 760, 18ª ed., 2006, Atlas) – reconhece a possibilidade jurídicoprocessual de o impetrante desistir tanto da ação de habeas corpus como do recurso ordinário interposto contra a denegação desse writ constitucional (RTJ 117/552 – RTJ 117/1084 – RTJ 150/765 – HC 71.217/MG, Rel. Min. Néri da Silveira – HC 80.151/MG, Rel. Min. Celso de Mello – RHC 59.107/AL, Rel. Min. Djaci Falcão – RHC 65.180/DF, Rel. Min. Néri da Silveira – RHC 66.341/PR, Rel. Min. Aldir Passarinho, v.g.). Cabe registrar, por oportuno, que esse tem sido o entendimento prevalecente na prática jurisprudencial desta Suprema Corte, consoante evidenciam inúmeras decisões monocráticas proferidas por seus eminentes Juízes (HC 92.947/SP, Rel. Min. Cezar Peluso – HC 106.026/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes – HC 106.042/SC, Rel. Min. Marco Aurélio – HC 106.355/GO, Rel. Min. Dias Toffoli – HC 108.661/SP, Rel. Min. Luiz Fux – HC 109.086/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski – HC 111.732/RN, Rel. Min. Cármen Lúcia – HC 111.848/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa – HC 113.045/MT, Rel. Min. Rosa Weber – HC 127.230/PE, Rel. Min. Teori Zavascki, v.g.). Sendo

assim, homologo o pedido de desistência, declarando extinto este processo de habeas corpus.33

12. HC contra condenação transitada em julgado O tema já foi tratado acima, mas vale destacá-lo para facilidade de consulta. Não é infrequente que após o trânsito em julgado de uma condenação, não raro por conta do olhar de um novo advogado, descubra-se constrangimento ilegal decorrente ou da falta de justa causa ou de nulidade. Enquanto a pena não estiver extinta é cabível o habeas corpus, fazendo as vezes de revisão criminal. Expressivas nesse sentido as ementas de dois julgados. O primeiro, da lavra do Min. Moreira Alves, assim ementado: Habeas corpus. É cabível, fazendo as vezes de revisão criminal, ainda quando a condenação haja transitado em julgado, e, inclusive, para a obtenção, se cabível, da declaração de prescrição ou de nulidade processual34. E, na mesma linha, da lavra do Min. Cezar Peluso: 1. Habeas corpus. Sentença condenatória. Nulidade processual absoluta. Coisa julgada. Irrelevância. Conhecimento e concessão. Prevalência da tutela constitucional do direito individual da liberdade. Precedentes. O habeas corpus constitui remédio hábil para argüição e pronúncia de nulidade do processo, ainda que já tenha transitado em julgado a sentença penal condenatória35. Na mesma linha, a 6ª Turma do STJ, ao julgar o HC 138.001, em acórdão relatado pelo Des. Convocado Celso Limongi, admitiu o emprego do habeas corpus para discutir nulidade absoluta “a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, mesmo após o trânsito em julgado”36.

13. Julgamento: a questão do julgamento pelo colegiado Alguns ministros, sobretudo no STJ, têm julgado a impetrações de habeas corpus monocraticamente. Com isso se sepulta a possibilidade de sustentação oral, cerceando-se o direito de defesa. No julgamento do Agravo Regimental no HC n. 143.625, após o indeferimento liminar do seu processamento pelo Desembargador Convocado Haroldo Rodrigues, a 6ª Turma do STJ ementou decisão segundo a qual, em atenção ao princípio da colegialidade, o writ deve ser julgado pela Turma: Habeas corpus. Indeferimento liminar. Aplicação do enunciado nº 691 da Súmula do STF. Decisão monocrática. Impossibilidade. Princípio da colegialidade. 1. A jurisprudência que vem se consolidando no Supremo Tribunal Federal tem recomendado o julgamento de habeas corpus pelo órgão fracionário competente, em homenagem ao princípio da colegialidade, portanto, a ele cabendo, após a prolação do parecer pelo Ministério Público, a verificação da existência de flagrante ilegalidade apta a eventual afastamento do enunciado nº 691 da Súmula do STF. 2. Agravo regimental provido para determinar o prosseguimento da tramitação do habeas corpus37. No voto-condutor da lavra do Min. Og Fernandes há menção a vários precedentes do STF que iluminam o tema, verbis: Habeas corpus. Decisão monocrática proferida por ministro do Superior Tribunal de Justiça. Indeferimento liminar do habeas corpus ali ajuizado. Mérito da impetração. Ofensa ao princípio da colegialidade. Precedentes. Ordem concedida de ofício. 1. A decisão singular do Ministro-Relator no STJ, ao não conhecer do habeas corpus, julgou, todavia, o mérito da impetração. O que viola o princípio da colegialidade, nos termos da Lei nº 8.038/90 e do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça (art. 202). Precedentes específicos: HC 90.367, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski (Primeira Turma); e HC 90.427, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa (Segunda Turma).

2. Habeas corpus não conhecido, porém concedida a ordem, de ofício, tão-somente para determinar que o órgão colegiado respectivo aprecie o mérito da impetração. (HC nº 92.877/RS, Relator o Ministro Carlos Britto, DJe de 3/4/2009). Penal. Processual penal. Habeas corpus. Decisão terminativa proferida monocraticamente pelo tribunal a quo. Inadmissibilidade. Devido processo legal. Inobservância. Não conhecimento da impetração. Ordem concedida de ofício. I – Como a decisão impugnada foi proferida monocraticamente pelo relator, o pleito não pode ser conhecido, sob pena de indevida supressão de instância e de extravasamento dos limites de competência do STF descritos no art. 102 da Constituição Federal, que pressupõe seja a coação praticada por Tribunal. II – O habeas corpus deve ser apresentado ao colegiado após seu regular processamento, sendo indevida a decisão monocrática terminativa depois de apreciado o pedido liminar e oferecido o parecer do Ministério Público. Hipótese de violação ao princípio da colegialidade. III – Habeas corpus não conhecido. IV – Ordem concedida de ofício para anular a decisão atacada e determinar a apreciação do mérito pelo colegiado competente. (HC nº 96.012/CE, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 14/8/2009) Habeas corpus. Negativa de seguimento. Precedente da Suprema Corte. 1. O princípio da colegialidade assentado pela Suprema Corte não autoriza o Relator a negar seguimento ao habeas corpus enfrentando diretamente o mérito da impetração. 2. Habeas corpus concedido, em parte. (HC nº 95.173/TO, Relator o Ministro Menezes Direito, DJe de 13/2/2009). Tratando do tema com profundidade, o Min. Rogério Schietti Machado ao reconsiderar decisão monocrática anterior de outro ministro no RCD no REsp. n. 942.407 advertiu para a necessidade de se interpretar restritivamente o permissivo constante do antigo art. 557 do CPC e que se aplica por inteiro ao atual art. 255, § 4º, III, do RISTJ que autoriza o julgamento monocrático: (...) por se tratarem de hipóteses que excetuam, num primeiro lanço, o exame pelo grupo de magistrados, em prestígio a celeridade e eficiência na prestação jurisdicional, excluindo-se, por isso mesmo, a incidência imediata do princípio da colegialidade, deve-se operar a interpretação do referido dispositivo processual de forma restritiva, levando-se em consideração os demais princípios envolvidos, sobretudo o da ampla defesa. Assim, só é possível ao relator de um recurso decidir de maneira monocrática, quando o tema a ele submetido inserir-se no rol contido no art. 557 do Código de Processo Civil (manifesta inadmissibilidade do pedido, na improcedência, prejudicialidade ou confronto com súmula ou jurisprudência dominante). No mesmo sentido o Min. Franciulli Netto: A expressão jurisprudência dominante do respectivo tribunal somente pode servir de base para negar seguimento a recurso quando o entendimento adotado estiver de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e (grifei) do Supremo Tribunal Federal, sob pena de negar às partes o direito constitucional de acesso às vias excepcionais (extraordinária e especial). Precedente desta Corte. Reconhecida a afronta ao artigo 557 do estatuto processual civil. Recurso especial provido. (STJ, REsp. n. 299.196/MG, 2ª T., DJ 05/08/2002, p. 234). E, no corpo do voto, advertia-se:

(...) será dever do relator abster-se de julgar de plano sempre que não veja uma situação manifesta, isto é, límpida e indiscutível (Cândido Rangel Dinamarco, Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis de acordo com a Lei 9.756/98, coordenação de Teresa Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Jr., RT, 1a edição, p. 132). No mesmo sentido, entre muitas outras: STJ, AgRg no REsp 1071939/PR, Rel. Min. Francisco Falcão, 1ª T., j. em 04/12/2008, DJe 15/12/2008. Em sentido até mais rigoroso, o col. STF, com a sua mais alta autoridade, embora atinente ao Recurso Especial, já proclamou: Não cabe ao Relator examinar o mérito da causa para negar seguimento a Recurso Especial, sob pena de indevida ofensa ao princípio da colegialidade. (...) Concessão de ofício para cassar a decisão questionada e determinar a apreciação do mérito pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (HC 103.147-SP, rel. Carmen Lúcia, DJ 15/03/2011).

14. Possibilidade de a ordem ser concedida monocraticamente Embora a denegação da ordem monocraticamente seja censurável, pois, num primeiro momento, retira o exame do colegiado e, quando o permite, pela via do agravo interno, extirpa a possibilidade da sustentação oral, coisa que cerceia a defesa, o mesmo não se pode dizer da sua concessão, sobretudo nos casos em que o representante do Parquet se coloca de acordo com a tese da impetração. Como quer que seja, ao julgar monocraticamente o HC 105.953, o Min. Celso de Mello destacou que a Emenda Regimental n. 30, de 29 de maio de 2009, outorgou ao relator da causa competência para “denegar ou conceder a ordem de habeas corpus”, “ainda que de ofício”, desde que a matéria versada no writ em questão constitua “objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal” (RISTF, art. 192, caput, na redação dada pela ER nº 30/2009)38. Afirmou que a legitimidade jurídica da regra: (...) decorre da circunstância de o Relator da causa, nodesempenho de seus poderes processuais, dispor de plena competência para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, justificando-se, em consequência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar (RTJ 139/53 – RTJ 168/174-175 – RTJ 173/948), valendo assinalar, quanto ao aspecto ora ressaltado, que este Tribunal, em decisões colegiadas (HC 96.821/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski – HC 104.241-AgR/SP, Rel. Min. Celso de Mello), reafirmou a possibilidade processual do julgamento monocrático do próprio mérito da ação de habeas corpus, desde que observados os requisitos estabelecidos no art. 192 do RISTF, na redação dada pela Emenda Regimental nº 30/2009. E assim se tem procedido em não poucos casos, embora também para denegar a ordem.

15. Legitimidade ativa. Impetração pelo MP para prejudicar o acusado. Impossibilidade Por incrível que possa parecer, a pretexto de querer favorecer o acusado, mas causando-lhe real prejuízo, o órgão da acusação impetrou habeas corpus. Isso não é possível de ser feito e viola o sentido da garantia constitucional. Expressivo a respeito o acórdão proferido no HC n. 69.889, relatado pelo Ministro Celso de Mello, eis sua ementa: O Ministério Público dispõe de legitimidade ativa ad causam para ajuizar, em favor de terceiros, a ação penal de habeas corpus. – O remédio processual do habeas corpus não pode ser utilizado como instrumento de tutela dos direitos do Estado. Esse writ constitucional há de ser visto e interpretado em função de sua especifica destinação tutelar: a salvaguarda do estado de liberdade do paciente. A impetração do habeas corpus, com desvio de sua finalidade jurídicoconstitucional, objetivando satisfazer, ainda que por via reflexa, porém de modo ilegítimo, os

interesses da Acusação, descaracteriza a essência desse instrumento exclusivamente vocacionado a proteção da liberdade individual. – Não se deve conhecer do pedido de habeas corpus quando este, ajuizado originariamente perante o Supremo Tribunal Federal, e desautorizado pelo próprio paciente (RISTF, art. 192, parágrafo único). Conversão do julgamento em diligência, para que o paciente, uma vez pessoalmente intimado, esclareça se esta de acordo, ou não, com a impetração do writ39. Convertido o feito em diligência para saber se o paciente aquiesceria com a impetração, novo acórdão foi proferido com a seguinte ementa: O remédio processual do habeas corpus não pode ser abusivamente utilizado pelo Ministério Público como instrumento de promoção dos interesses de acusação. Esse writ constitucional há de ser considerado em função de sua específica destinação tutelar: a salvaguarda do estado de liberdade individual do paciente. A impetração do habeas corpus, com desvio de sua finalidade jurídico-constitucional, objetivando satisfazer os interesses da Acusação, descaracteriza a essência desse instrumento exclusivamente, vocacionado à proteção da liberdade individual. Doutrina e precedentes.40

16. Habeas corpus no STF só pela via eletrônica (Resolução 427/2010) Por meio de Resolução, o STF passou a admitir petições de habeas corpus unicamente de forma eletrônica (art. 19, IX). A exceção, permitindo o encaminhamento das petições por meio físico, fica por conta dos habeas impetrados “em causa própria ou por quem não seja advogado, defensor público ou procurador”. Compreende-se que o STF queira exterminar a “papelada” e agilizar a tramitação dos habeas. O que, porém, parece uma demasia é, de uma hora para outra, exigir que todos os advogados estejam up to date para manejar o remédio heroico da forma preconizada. É verdade que se todos tivessem os equipamentos necessários para digitalizar os documentos que instruem os habeas, tudo ficaria mais fácil, pois o advogado não precisa se deslocar da cidade onde se encontra para impetrar o remédio. Todavia, pensemos nos advogados humildes das periferias das grandes cidades e, apenas para exemplificar, nos que militam no interior do Amazonas, Acre ou Pará. Eles deverão omitir seus nomes para que o habeas tenha trânsito na Suprema Corte? Ou, não tendo condições de se equipar, estarão proibidos de impetrar o remédio heroico no STF? Se toda a doutrina proclama que o habeas corpus prescinde de maior formalidade, por que esta exigência em relação à ação que tutela a liberdade? É de se convir que o writ não deveria sofrer embaraço de espécie algum. A exigência da impetração de habeas corpus unicamente pela via eletrônica, representa uma incongruência. Dadas as condições do país, a exigência do STF deveria sofrer o crivo da Corte Interamericana por violar o Pacto de São José da Costa Rica à medida que se cerceia o manejo de uma das mais importantes garantias do cidadão.

17. Inquérito Policial requisitado por membro do MP. Competência para conhecer do HC Embora a jurisprudência esteja sedimentada no sentido de que compete ao Tribunal de Justiça conhecer diretamente de habeas corpus impetrado contra a requisição de inquérito policial, ou outro ato gravoso ao cidadão, e o mesmo valha quanto ao Tribunal Regional Federal quando se trate de ato de Procurador da República, não é incomum encontrarem-se decisões negando seguimento ao habeas nos Tribunais em casos tais. É que consoante antigo entendimento pretoriano, “no sistema de direito positivo vigente, não pode a Polícia Civil, que tem a função constitucional de apurar infrações penais, exceção feita aos crimes militares (Constituição Federal, artigo 144, parágrafo 4º), inatender requisição de instauração de inquérito policial, feita pelo Ministério Público (Código de Processo Penal, artigo 5º, inciso II), a quem a Constituição da República atribui a ação penal, com exclusividade (artigo 129,

inciso I), estabelecendo evidente subordinação institucional”41. Dessa forma, é procedente o escólio de Guilherme de Souza Nucci no sentido de que “(...) quando juiz ou promotor requisitar a instauração de inquérito policial, torna-se autoridade coatora, tendo em vista que a autoridade policial deve, como regra, acolher o pedido”42. Tratando do tema Aury Lopes Jr indaga: E se a autoridade coatora for um Promotor de Justiça ou Procurador da República, a quem competirá o julgamento do habeas corpus? Ao respectivo tribunal ao qual estas autoridades estão sob jurisdição, ou seja, o Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, conforme o caso. A competência para o julgamento do HC deve considerar também a que tribunal está submetida a autoridade coatora, ou ainda, que tribunal julga eventual crime praticado pela autoridade coatora. No caso dos membros do Ministério Público, estão submetidos ao julgamento pelo respectivo tribunal, cabendo também a esse tribunal, portanto, o julgamento do writ43. E a jurisprudência não discrepa: (...) se o inquérito policial foi instaurado mediante requisição do Juiz de Direito ou Promotor de Justiça, a coação é da autoridade judiciária ou do Ministério Público, casos em que a competência se desloca para o Tribunal de Justiça do Estado44 No mesmo sentido, também do STJ: Recurso ordinário em habeas corpus. Crime contra a ordem tributária. Instauração de inquérito policial por meio de requisição do ministério público. Impetração de habeas corpus perante o juízo de origem. Remessa dos autos à segunda instância. Competência do tribunal de justiça para apreciar o feito. (...) 1. Esta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento de que o Tribunal de Justiça é competente para julgar habeas corpus impetrado contra ato de Promotor de Justiça (RHC nº 32.253, 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, DJe 23/08/2013)45. Assim também já decidiu o TRF-3: “Tendo o Ministério Público Estadual requisitado a instauração do inquérito policial, eventual constrangimento ilegal desse fato advindo deve a ele ser atribuído, e não ao Delegado de Polícia que tão-somente a ela deu cumprimento” (ACR n. 2002.61.81.00611-7, Rel. Des. André Nekatschalow, j. em 28.06.04). E, ainda, traçando um paralelo com a competência da Justiça Federal e a prática de ato mediante requisição de Procurador da República: Habeas corpus. Inquérito policial instaurado mediante requisição do procurador da república. Incompetência do TRF. – O inquérito foi instaurado, na forma do art. 5º, inciso II, do Código de Processo Penal, por requisição do Sr. Procurador da República que oficia em 1º grau de jurisdição. Se é dever da autoridade policial cumpri-la, torna-se evidente que o constrangimento ilegal é em tese causado pela parte da autoridade requisitante, in casu, o Ministério Público Federal (TRF-3, HC nº 2001.61.81.006071-6, Rel. Des. Fed. André Nabarrete, j. em 19.03.02). A lógica para tal entendimento vem expressa em antigo e irrespondível julgado da lavra do Min. Sepúlveda Pertence: (...) em matéria de competência para o ‘habeas-corpus’, o sistema da Constituição Federal — com a única exceção daquele em que o coator seja Ministro de Estado (CF, arts. 105, I, c e 102, I, e) —, é o de conferi-la originariamente ao Tribunal a que caiba julgar os crimes da autoridade que a impetração situe como coator ou paciente (CF, arts. 102, I, d; 105, I, c). O princípio tem óbvia explicação sistemática: a decisão concessiva de habeas-corpus traduz, com frequência, provimento mandamental, a ser cumprido pela autoridade coatora, sob pena de prisão por desobediência. Assim, se a teor do art. 96, inciso III, CF, aos Tribunais de Justiça é que toca o julgamento dos membros do Ministério Público local, por crimes comuns ou de responsabilidade, a regra constitucional local que, em consequência, lhes dê competência originária para conhecer do

habeas-corpus que os aponte como autoridades coatoras, antes de contrariar a Constituição Federal, é a que melhor se amolda ao seu princípio reitor na matéria46. Assim, se o Tribunal tem competência para investigar eventual crime de abuso de autoridade praticado por membro do MP de primeiro grau, terá, igualmente, competência para conhecer de habeas corpus contra ato seu reputado ilegal.

18. Habeas corpus coletivo. É possível? Nossos constitucionalistas e também os tratadistas do processo penal apontam o habeas corpus como garantia individual da liberdade de locomoção47. É dizer, os textos constitucional e processual penal ao disciplinarem o writ of habeas corpus tratam da proteção da liberdade de ir e vir de “alguém”, singularmente considerado e não de um conjunto de pessoas. Tanto é assim que, ao dispor sobre o conteúdo da petição de habeas corpus, o art. 654 do CPP, no seu § 1º, exige que se coloque “o nome da pessoa” que sofre ou está ameaçada de sofrer constrangimento ilegal à sua liberdade. Não é por outra razão que o Min. Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, ao relatar o HC n. 148.459 impetrado pela Defensoria Pública da União (DPU) em favor de “todas as pessoas que se encontram presas em estabelecimento penal federal há mais de dois anos”, negou seguimento ao writ sob o argumento de que “o habeas corpus exige a demonstração de constrangimento ilegal que implique coação ou iminência direta de coação à liberdade de ir e vir, não podendo ser utilizado como substituto de ação direta de inconstitucionalidade ou arguição de descumprimento de prefeito fundamental”. Na sua óptica há necessidade da indicação específica de cada constrangimento ilegal, com a indicação do nome de quem o sofre ou está prestes a sofrêlo (CPP, art. 654), além do preciso apontamento da autoridade coatora (DJe 21/2/2018). Essa intelecção, em que pese a aparente sustentação legal, peca pelo excessivo formalismo e ignora não apenas o avanço legislativo verificado no mandado de segurança e no mandado de injunção, mas realidades nas quais seja possível discernir direitos individuais homogêneos, tal como acentuou em decisão histórica o Min. Ricardo Lewandowski ao relatar o HC n. 143.641, impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de “todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade”. O voto-condutor conduzido pelo Min. Ricardo Lewandowski, na linha do que preconiza o art. 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, toma em consideração a necessidade de se dar plena eficácia à garantia judicial do habeas corpus e otimizar os meios de ação judicial de modo a se evitar a proliferação de ações constitucionais sobre o mesmo tema. Mais que o paralelo com o Mandado de Injunção coletivo (Lei n. 13.300/2016, art. 12), ou mesmo com o Mandado de Segurança coletivo (Lei n. 12.016/2009, art. 21), o art. 580 do próprio CPP permite que se estenda a ordem a todos que se encontram na mesma situação de pacientes beneficiados com o writ. Afora a preterição de formalismos estranhos ao instituto do habeas corpus, o julgado aponta precedentes em que se concedeu habeas coletivo: prisão em contêiner (STJ, HC n. 142.513/ES, rel. Min. Nilson Naves, DJe 10/5/2010) e Portaria do juiz da infância e juventude de Cajuru (SP) que restringia a movimentação de jovens à noite (STJ, HC n. 207.720, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 23/2/2012). A discussão sobre o cabimento do habeas corpus coletivo lembra a velha e superada polêmica sobre a possibilidade da concessão de medida liminar no writ. Os opositores, sem razão, argumentavam com a falta de previsão legal. A jurisprudência superou o óbice e tem, com parcimônia, concedido liminares. A mesma solução deve encontrar o habeas coletivo. Mediante o empréstimo, por analogia (CPP, art. 3º), das regras do Mandado de Injunção ou do Mandado de Segurança é plenamente possível manejar e conhecer do writ em casos que se possa identificar a homogeneidade de situações caracterizadoras de constrangimento ilegal. Daniel Sarmento, em vigoroso Parecer oferecido para a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no RE n. 855.810, com propriedade, defende a possibilidade do manejo do habeas corpus coletivo e destaca que “assim como ocorre com os demais direitos individuais, a violação à liberdade de ir e vir pode ultrapassar a esfera isolada do indivíduo, pois as lesões e ameaças a esse direito podem alcançar um amplo contingente de pessoas”48.

19. Amicus curiae no habeas corpus: é possível? O Código de Processo Penal não prevê o ingresso do amigo da Corte no rito procedimental do habeas corpus. Eloquente, quanto à impossibilidade da admissão do amicus curiae, a decisão monocrática proferida pelo Min. Celso de Mello no HC n. 109.598 no qual a Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul – AJUFESP, requeria a sua admissão. Na oportunidade destacou-se que nos processos de índole subjetiva não tem lugar a atuação do amigo da Corte. Ademais, os sujeitos da relação processual, afora o órgão competente para julgar o habeas, são apenas o impetrante, o paciente, a autoridade coatora e o Ministério Público (DJe 14/5/2015). Todavia, não é menos verdadeiro que o remédio heroico possa veicular temas que transcendam os interesses subjetivos do paciente e se projete para uma coletividade. Assim, por exemplo, a discussão travada no HC n. 126.292, relatado pelo saudoso Min. Teori Zavascki, sobre a prisão logo após o julgamento em segunda instância. O debate da tese jurídica se projeta sobre todos aqueles condenados presos ou que possam vir a ser, independentemente do trânsito em julgado e da presença dos pressupostos autorizadores da prisão preventiva. Em outras palavras, a discussão sobre a execução provisória da pena sem trânsito em julgado, em manifesta afronta ao disposto no art. 283 do CPP, é tema que interessa a toda a cidadania e, portanto, deve permitir que outros intervenham para opinar. Idem, para citar um exemplo de caráter histórico, superado com a edição da Súmula Vinculante n. 14, a discussão sobre o exame dos autos do inquérito policial gravado pelo sigilo por parte do advogado constituído pelo investigado. O tema foi ventilado no HC n. 82.354, relatado pelo Min. Sepúlveda Pertence, mas o interesse de todos os advogados e da própria OAB era patente. O mesmo vale para a discussão travada sobre a descriminalização do aborto no HC n. 124.306, do qual foi relator para o acórdão o Min. Roberto Barroso e sobre a constitucionalidade do revogado art. 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos que impunha o cumprimento da pena em regime integralmente fechado (HC 82.959, relatado pelo Min. Marco Aurélio). O art. 138 do Código de Processo Civil de 2015 ao disciplinar o amicus curiae estabelece: O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. A regra em questão pode perfeitamente, por analogia (CPP, art. 3º), ser aplicada ao writ, mas com temperamentos. Primeiro, se o paciente estiver preso, não poderá haver delongas que retardem a marcha do habeas, cujo procedimento é sumário. Assim, a admissão e a intervenção do amicus é cabível desde que não implique em indevido retardo no julgamento. Isso é perfeitamente possível se o ingresso do amicus se der enquanto se aguardam as informações da autoridade coatora ou a emissão do Parecer do Ministério Público. Segundo, se o paciente estiver solto e a matéria discutida não for diretamente a liberdade, como por exemplo, quando se discute a justa causa da ação penal, com maior razão de ser a intervenção do amicus é admissível. Em ambos os casos, porém, há de estar presente a relevância da matéria e sua repercussão social. É inegável que o Tribunal ao ouvir as vozes das diferentes entidades da sociedade civil devidamente legitimadas se enriquece e com isso pode proferir decisões mais sensíveis e adequadas às tensões envolvidas na discussão da causa a ser decidida. Julga, parafraseando Hannah Arendt, com a mentalidade alargada. O Ministro celso de Mello, com propriedade, lembrou que a admissão do amicus curiae “qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte”49. Portanto, não há porque nos casos de repercussão social ou mesmo a uma coletividade, deixar de se admitir a atuação desse valioso agente. Veja-se, ainda, para traçar um paralelo, que o Pleno do STF, ao julgar o Mandado de Segurança n. 32.033 (DJe 18/2/2014), decidiu ser plenamente admissível a intervenção do amicus curiae. No seu voto, o Ministro Gilmar Mendes pontuou:

Na ocasião, assentei que a matéria discutida no writ apresentava “relevância tal que ultrapassa os limites e meros interesses das partes, de forma que se revela salutar que o debate perante o Supremo Tribunal Federal possa ser informado pelo maior número de argumentos possíveis”. Continuo a entender que a admissão de amicus curiæ confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, que, a meu ver, não pode ficar restrito ao controle concentrado. Pelo contrário, penso que, justamente por se tratar a questão discutida nos autos, matéria de inegável importância, a jurisdição exercida por este tribunal deve se afastar de uma perspectiva estritamente subjetiva. Ora, se no mandado de segurança, remédio homólogo ao habeas corpus, que é igualmente uma ação de impugnação, vale tal raciocínio, não há porque, observados os temperamentos acima mencionados, tratar-se diferente o habeas corpus, especialmente naqueles em que temas gerais como os acima apontados ou mesmo de natureza coletiva são tratados. Atento ao tema, o Min. Gilmar Mendes admitiu o IDDD, Instituto de Defesa do Direito de Defesa Marcio Thomaz Bastos, como amicus curiae no HC n. 141.478 no qual se discutia se o advogado pode ser considerado obstrutor da justiça por combinar versão de seu cliente com colega que assiste corréu na mesma ação. Na oportunidade o Ministro observou que a jurisprudência do STF, refratária à participação de terceiros no writ, é anterior ao CPC de 2015 que introduziu o já citado art. 138. Trata-se, como disse o Ministro Gilmar Mendes, na linha do novo CPC, “de democratizar a formação da jurisprudência”.

20. Admissão de assistente do MP no writ. Necessidade de revisão da jurisprudência É certo que, de longa data o STF não admite a intervenção do Assistente de acusação no habeas corpus, v.g., HC 84.022, rel. Min. Carlos Velloso (DJ 20/8/2004) quer pela limitação das suas funções (CPP, art. 271), quer pelo caráter sumário do procedimento e também por não ser parte na ação penal. Admitida, porém, a intervenção do querelante no habeas corpus, ainda que facultativa50 e também a do amicus curie, por uma questão de razoabilidade seria de se rever a jurisprudência que inadmite a intervenção do assistente de acusação, ressalvados os casos em que o acusado discute a ilegalidade da prisão. Nos demais, quando está em pauta a discussão sobre a justa causa para a ação penal ou mesmo sua nulidade, quando menos por uma questão de equidade, se deveria admitir sua intervenção.

FOOTNOTES 1

. STF, 1ª T., HC nº 105.833, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 12/11/2010. A providência acauteladora não prejudica a tramitação do habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça.

2

. DJe 21/08/2012.

3

. STF, 2ª T., DJe 19/11/2014.

4

. STF, 1ª T., DJe 20/02/2009.

5

. 6ª T., DJe 27/10/2015.

6

. DJe 14/02/2013.

7

. 6ª T., DJe 22/03/2010.

8

. STJ, 5ª T., DJe 24/11/2014. No mesmo sentido, RHC nº 43.938, rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 20/04/2015.

9

. 6ª T., DJe 05/09/2014.

10

. Decisão de 21/05/2015.

11

. 1ª T., HC 85.747-7, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 14/10/2005.

12

. DJe 05/02/2015. No mesmíssimo sentido: 6ª T., RHC n. 62.036, rel. Min. Maria Thereza, DJe 11/09/2015); RHC n. 35.258, rel. Min. Rogério Schietti Machado Cruz, DJe 03/02/2015 e da 5ª T. do STJ, RHC n. 41.527, rel. Min. Jorge Mussi, DJe 11/03/2015.

13

. 1ª T., DJ 10/12/2004.

14

. STF, 1ª T., DJ 13/10/2006.

15

. 1ª T., DJe 19/11/2010. No mesmo sentido: RHC n. 120.031, rel. Min. Rosa Weber, DJe 12/02/2014 e da 2ª T., HC 107.497, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 21/03/2012.

16

. 1ª T., HC n. 105.469, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 03/03/2011. No mesmo sentido: HC n. 112.252, rel. Min. Dias Toffoli, Dje 17/08/2012 e, entre muitos outros, RHC n. 124.131, rel. Min. Teori Zavascki, DJe 15/05/2015.

17

. HC n. 89.339, rel. Min. Cezar Peluso, DJe 19/02/2010.

18

. STF, Pleno, rel. Min. Celso de Mello, DJ 29/06/1990.

19

. Recursos no Processo Penal, ob. cit., p. 304.

20

. STF, 1ª T., RHC n. 59.538, rel. Min. Rafael Mayer, DJ /12/04/1982.

21

. Grinover, Ada Pellegrini (coord.). As nulidades no processo penal... 8ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 293.

22

. DJe 29/02/2016.

23

. HC nº 121.907, DJe 28/10/2014.

24

. Entre muitos outros julgados cf. HC n. 114.821, rel. Min. Rosa Weber, DJe 09/09/2014.

25

. No day in Court: access to Justice and the Politics of Judicial retrenchment. Nova Iorque, Oxford

University Press, 2015. Especificamente sobre as restrições ao habeas no Brasil ver o meu: Habeas corpus está sendo amesquinhado, disponível em [www.conjur.com.br], de 20 de maio de 2010.

26

. Nalini, José Renato e Xavier de Aquino, José Carlos G. Manual de processo penal. 3ª ed. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 401

27

. Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9ª ed. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2009, n. 46. p. 1066.

28

. Mirabete, Júlio Fabbrini. 9ª ed. São Paulo, ed. Atlas, 2011, p. 1.750. No mesmo sentido, o escólio de Damásio de Jesus, também com apoio na jurisprudência do STF, cf. RHC 60.421, DJ 22/04/1983 em Código de Processo Penal Anotado. 23ª ed. São Paulo, ed. Saraiva, 2009, p. 537.

29

. RHC n. 52.977/SP, 5ª T., rel. Min. Félix Fischer, DJe 31/03/2015.

30

. Impetrado contra o RHC 37.949 do STJ, rel. Min. Sebastião Reis Jr. (DJe 13/12/2013).

31

. STF, 2ª T, HC 110.118, j. em 22/11/2011, rel. originário Min. Ricardo Lewandowski, rel. p/ ac. Min. Joaquim Barbosa, DJe 08/08/2012.

32

. Apud: Damásio de Jesus, Código de Processo Penal anotado, ob. cit., p. 538.

33

. DJe 06/10/2016.

34

. STF, 2ª T., RHC n. 60.264, rel. Min. Moreira Alves, DJ 19/11/1982.

35

. STF, 2ª T., HC n. 93.942, DJe 01/08/2008.

36

DJe 26/10/2009.

37

. STJ, 6ª T., rel. Min. Og Fernandes, DJ 14/05/2010.

38

. DJe 23/02/2015.

39

. DJ 01/07/1993.

40

. DJ 10/06/1994.

41

. STJ, 6ª T., HC nº 15.115, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 25/02/2002.

42

. Manual de Processo Penal e Execução Penal. Rio de Janeiro, ed. Forense, 2014, p. 895.

43

. Direito Processual Penal, 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1356.

44

. STJ, 5ª T., REsp nº 67.757, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJ 22/09/1997.

45

. Na mesma linha, cf. STJ, REsp nº 878.881, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 26/06/2007, HC nº 136.370, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 22/02/2011 e RHC nº 25.068/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 17/03/2009.

46

. STF, 1ª T., RE n. 141.209-7, DJ 20/03/1992.

47

Alexandre de Moraes, Direito Constitucional. 31ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 134; Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 620; José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 193-194 e 238/239 e 444 e Luis Roberto Barroso, Temas de Direito Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 92. Entre os processualistas: Dante Busana, O habeas corpus no Brasil. São Paulo: Atlas, 2009, p. 32; Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. IV, p. 621; Guilherme de Souza Nucci, Habeas Corpus. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 23 e Tales Castelo Branco, Memorabilia, São Paulo: Migalhas, 2016, p. 120.

48

www.conjur.com.br/dl/parecer-hc-coletivo.pdf.

49

ADI 2.130, DJ 04/09/2011.

50

O leading case admitindo o querelante no habeas corpus foi relatado pelo Min. Sepúlveda Pertence no AgRg na Pet 423 (DJ 13/03/1992). No ARE n. 859.251 o STF firmou posicionamento, em julgamento no qual foi reconhecida a repercussão geral, no sentido de que o querelante da ação penal privada tem legitimidade e interesse para intervir no habeas corpus: “Recurso extraordinário com agravo. Repercussão geral. Constitucional. Penal e processual penal. 2. Habeas corpus. Intervenção de terceiros. Os querelantes têm legitimidade e interesse para intervir em ação de habeas corpus buscando o trancamento da ação penal privada e recorrer da decisão que concede a ordem. (...) 9. Recurso extraordinário provido, por maioria, para reformar o acórdão recorrido e denegar a ordem de habeas corpus, a fim de que a ação penal privada prossiga, em seus ulteriores termos” (Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 16/04/2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO; DJe 21/05/2015).

© desta edição [2018]

2020 - 05 - 18

Habeas Corpus - Ed. 2018 BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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com

o

ministro

Barroso.

Disponível

em:

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© desta edição [2018]
TORON, Alberto Zacharias. Habeas Corpus. 2. ed. 2018

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