o conceito de desenho

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1. O conceito de desenho O termo desenho é, ao mesmo tempo, familiar e estranho. Familiar porque é largamente utilizado no dia a dia, sempre com muita desenvoltura. Estranho porque, apesar do uso frequente, dificilmente se encontra uma descrição clara do seu significado amplo e uma classificação aceitável dos seus diferentes tipos. No mais das vezes, a palavra é usada de maneira imprecisa, sem uma preocupação com o sentido estrito, mas com a fé genuína de que se está fazendo entender. A maioria dos indivíduos, mesmo aqueles com pouca instrução, possui alguma ideia do que seja desenho e isso parece bastar para que as conversações sigam adiante sem grandes problemas de entendimento. É comum entre as pessoas não especializadas em arte a ideia de que desenhos são representações de coisas concretas ou imaginárias e que são produzidos manualmente com lápis sobre papel. Tal noção é evidentemente restritiva e não atende às necessidades de uma definição ampla e rigorosa do termo. Mas fiquemos com ela, por enquanto, como uma definição provisória, pois ela contem muitos aspectos factualmente acertados, como costuma acontecer na sabedoria do senso comum. Em termos quantitativos, ela abarca uma parte significativa das imagens com as quais lidamos no cotidiano e que, por hábito, chamamos de “desenho”. Além disso, por não especificar as características do sujeito que desenha, ela admite que o desenho não está necessariamente ligado a uma prática profissional, deixando abertas as possibilidades de poder ser ele, em certos casos, uma atividade lúdica ou catártica. Assim como os significados do termo, os usos do desenho são também um problema. Sabe-se vagamente que ele está profundamente ligado às artes, que a sua importância no passado esteve subordinada a da pintura, da escultura e da arquitetura para as quais serviu como etapa preparatória de realização e que, a partir do século XX, certos desenhos são tratados como objetos de arte em si mesmos. Mas é sabido também que os usos do desenho ultrapassam amplamente o campo artístico. Ele sempre foi muito útil em diversas áreas de conhecimento, que dele se servem para atender às suas próprias necessidades. Mas a relação nesses casos é meramente instrumental e pouco se fez no interior dessas áreas de conhecimento no sentido de descrever e analisar as estruturas gerais e modos de funcionamento do desenho para se tentar compreender e explicar a sua ampla capacidade de desempenhar funções comunicativas das mais diversas. É no campo da arte que essa discussão se deu com maiores resultados, mesmo que haja, ainda, muito por ser feito. Não tenho a pretensão de resolver esse problema. Em lugar disso, proponho discutir os seus termos e algumas de suas implicações, para que tenhamos uma maior consciência da complexidade do assunto que vamos estudar. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a palavra “desenho” é usada atualmente com significados muito díspares e pouco integrados entre si. Ela se refere a um certo tipo de objeto, mas também a uma prática social e pressupõe um conceito geral. O objeto é o próprio “desenho”, no sentido mais trivial, que corresponde à definição provisória dada acima, geralmente um conjunto de rabiscos, manchas ou configurações gráficas, de caráter representativo, organizadas de acordo com determinadas regras e finalidades sobre um pedaço de papel. Como referência a uma prática, a palavra indica um certo tipo de atividade, bem como os procedimentos e saberes relativos a ela. Nesse sentido, desenho é um ofício ou um fazer específico, profissional ou não. Muito mais complexa é a tarefa de definir o conceito de desenho, pois isto exigiria explicitar em que consiste a sua natureza geral, trabalho que está ainda por ser feito. Retomemos, então, a nossa definição provisória. Muitos desenhos correspondem a ela, mas as coisas não são necessariamente assim! Um desenho pode ser feito com outros materiais, além do lápis, e sobre outros suportes, que não seja o papel. Ademais, pode-se produzir desenhos mecanicamente e digitalmente, além dos meios estritamente manuais. Devemos admitir também um entendimento amplo de desenho que inclua a possibilidade de que ele não seja representativo e que possa se dar, também, no espaço tridimensional.

1.1. Uma tentativa de definição É possível dizer que as diferentes noções de desenho em circulação dependem de três aspectos: a materialidade, o referente e a finalidade. Comecemos com o aspecto da materialidade: ele diz respeito aos materiais e suportes de que são feitos os desenhos, bem como às técnicas de feitura. Logo, percebemos que a nossa definição provisória de desenho como representação gráfica feita com lápis sobre papel, se apoia quase que totalmente sobre o aspecto da materialidade. Mas mesmo aqui ela é aceitável somente para descrever algumas possibilidades restritas: ora, um desenho pode ser feito também com canetas, pincéis, penas, giz e vários outros instrumentos, e não apenas com o lápis. Mesmo se feito manualmente, pode contar com o apoio de vários outros instrumentos adjuvantes como réguas, esquadros, compassos, gabaritos, etc. Nesses casos, ainda que feitos manualmente, a caligrafia – chamemos assim às qualidades gráficas que identificam o traço individual de uma mão – sofrerá evidentemente os efeitos do usos desses instrumentos. Mas mesmo se todo o trabalho for realizado com o uso desses instrumentos, não restando nada da caligrafia do indivíduo, ainda assim temos um desenho. O que quero dizer é que a presença da caligrafia não é imprescindível para se ter um desenho. Tampouco é imprescindível a presença da manualidade, que é totalmente suprimida nos casos em que a produção gráfica se dá por meio de recursos digitais. Podemos, então, reformular a nossa primeira definição, tornando-a um pouco mais abrangente: um desenho é, então, “a representação de algo real ou imaginário, realizada com meios gráficos sobre papel”. Verificamos que esta definição dá conta de incluir um espectro maior de possibilidades: podemos incluir aqui um conjunto de traços que configuram um rosto ou uma árvore, independentemente de considerá-lo artístico ou não. O projeto arquitetônico de uma casa ou hospital, tal como disposto graficamente em grandes folhas de papel também. A curva que descreve num gráfico as oscilações da bolsa de valores no decorrer de um determinado tempo, um mapa topográfico e o esquema que mostra o organograma de uma empresa são também desenhos por esta nova ótica, cada um a seu modo. São igualmente desenhos os rabiscos que por vezes fazemos distraidamente sobre um papel qualquer enquanto falamos ao telefone. Esse raciocínio faz do meio gráfico prioritário na definição de desenho. Mas, do mesmo modo que esses meios são muitos, e podem variar, os suportes também podem ser muitos outros, além do papel. É possível desenhar sobre tela, madeira, placas metálicas, paredes, chão etc. Aqui começam os problemas de definição e de limites, nunca totalmente resolvidos, ligados à percepção das diferenças entre desenho, pintura, grafite e outras manifestações. Mas, independente disso, logo percebemos que os recursos materiais são muito numerosos e passíveis de ser combinados de diversos modos, no que resulta que o aspecto material não é decisivo em uma tentativa rigorosa de definição do desenho. Se o material não é fundamental, pensemos, então, nos próprios elementos gráficos e visuais constitutivos dos desenhos, independente de sua materialidade, como sendo os aspectos verdadeiramente importantes na definição de desenho. Estes são linhas, pontos, tramas, manchas e texturas. Mas o que pensar quando se observa ao longe, por exemplo, as curvas de um rio ou as ondulações de uma cordilheira de montanhas? Não poderíamos dizer que tais linhas e contornos configuram também uma espécie de “desenho natural”, originado pela própria dinâmica geológica, à força de erosão, juntamente com intervenções humanas, ao longo dos séculos? A mesma pergunta pode ser feita a respeito do entrecruzamento de galhos e folhas de uma árvore, ou da ondulação das dunas de areia em uma praia. Não se deve desprezar tais possibilidades apressadamente, embora não se possa admitir que uma árvore seja o “desenho dela mesma”. De todo modo, esses exemplos ajudam a perceber que o desenho pode acontecer fora do suporte plano e ser constituído de uma materialidade distinta dos meios gráficos tradicionais. As linhas formadas pelos galhos da árvore, assim como a textura formada pelas nuanças de claro e escuro das areias da praia lavadas pelas ondas, levam a pensar que é possível fazer, voluntariamente e com finalidades artísticas, desenhos no espaço tridimensional, com linhas e formas materializadas de outros modos. O segundo aspecto ligado ao desenho, isto é, o referente, diz respeito ao assunto ou tema do desenho. Vocês notaram que partimos do princípio de que o desenho é sempre uma representação.

Se isso é verdade, então todo desenho é uma espécie de retrato de algo, ainda que este algo não exista concretamente. Mas o desenho pode também manifestar-se como expressão de si mesmo, como pura presença sensível, cujo significado não depende de um ente exterior a ele, concreto ou imaginário. Neste caso, ele será um desenho abstrato, ou puramente formal. Este último seria constituído de formas, cores, texturas, sem que esses elementos configurem alguma coisa reconhecível além deles mesmos. O tema geral desses desenhos seria o conjunto das relações internas entre os seus próprios componentes visuais. Podemos, inclusive, olhar os galhos da árvore e a ondulação dos contornos da montanha não como galhos e montanhas, mas como puras tramas ou ondulações rítmicas, independentemente de serem árvores ou montanhas. O desenho representativo, se assim definido, tem a sua ênfase na função de retratar, enquanto o desenho abstrato tem a ênfase nas suas próprias qualidades plásticas. No entanto, obviamente, o desenho figurativo tem também qualidades plásticas e, não raro, estas são mais significativas que a própria função representativa. Os desenhos abstratos, por sua vez, apesar de abstratos, não são aleatórios, desprovidos de ordem ou feitos de qualquer modo. Eles possuem também um certo tipo de estrutura, que tem uma lógica interna e própria, ainda que nem sempre esta seja imediatamente apreensível. A função representativa e as qualidades plásticas são coisas efetivamente distintas, que se misturam na prática, mas não se confundem conceitualmente. As qualidades plásticas, por não serem representativas, por não se referirem a nada, a não ser a si mesmas, são muito afeitas à experiência sensorial pura e imediata. Nisso reside o seu grande potencial poético. Mas a função representativa tem em si a sua própria potência poética. Basta ver que não existe uma forma única de representar. Há, por fim, o aspecto da finalidade, provavelmente o mais decisivo, embora seja talvez também o mais controverso, pois a finalidade não está necessariamente inscrita no desenho, e sim numa intencionalidade a partir da qual ele é produzido e numa destinação que lhe é dada após a produção. Apesar da intenção e da destinação não fazerem parte material do desenho, elas acabam por determinar decisivamente as condições de sua leitura. Assim sendo, um desenho pode ser realizado por meio de técnicas e materiais ligados à produção de mapas ou de projetos arquitetônicos, mas com a finalidade de ser uma peça de arte. 1.2. O desenho como gesto O desenho pode ser compreendido a partir do gesto inaugural que dá origem a ele, que é o atrito de um material sobre uma superfície. Esta definição parte de uma compreensão do desenho como sendo uma operação física que, como tal, depende das condições concretas dos materiais utilizados. No entanto, pode-se entender que o gesto originário do desenho não é o gesto manual que produz o atrito, mas o gesto mental que reconhece uma certa ação ou coisa como desenho. Assim como os desenhos feitos com lápis sobre papel, a escrita manual é um grafismo. Cada palavra é uma linha contínua, que faz curvas, voltas e laçadas. Se pudéssemos esticar uma palavra sem rompe-la como linha, teríamos um segmento de reta. Não é absurdo dizer que a escrita cursiva é um desenho. Ha alguns anos atrás, o hábito de escrever manualmente – agora em vias de desaparecimento em função da informatização das práticas de comunicação – levava as pessoas a desenvolver caligrafias personalizadas espontaneamente. A “letra” das pessoas se aperfeiçoava com a prática, se tornava regular e identificável pelas suas características plásticas e pelo seu estilo. É possível fazer abstração do significado das palavras escritas e apreciar apenas as suas qualidades lineares. Desse modo equiparamos a escrita ao desenho. As pessoas aprendem a escrever e desenvolvem caligrafias regulares de modo espontâneo, mas em geral não são capazes de assimilar um aprendizado do desenho com a mesma desenvoltura. De modo geral, as pessoas não habituadas a desenhar seguram o lápis do mesmo modo como o fazem com a caneta para escrever. Os dedos ficam muito próximos da ponta da caneta; o punho fica solidamente apoiado sobre o papel. A escritura se dá a partir de movimentos ligeiros, curtos e sutis dos dedos, enquanto o punho desliza sobre o papel. O corpo do sujeito que escreve não participa efetivamente do ato de escrever. Este é, em geral, um corpo estático, ausente do próprio

ato; apenas uma pré-condição para que uma mão funcione orientada por um olho, que cuidará para que seus movimentos se atenham aos limites da pauta. Um desenhista iniciante necessita, primeiramente, reeducar as suas relações com os instrumentos gráficos, os suportes e os próprios movimentos do corpo. É preciso se libertar dos condicionamentos gestuais ligados às práticas da escrita. É preciso experimentar diferentes modos de empunhar o lápis, fazer com que a mão se mova de modo fluido acima do papel, roçando-o apenas suavemente por vezes. É preciso se ater à pressão que se exerce com a ponta do lápis sobre o papel. Diferentes efeitos pedem diferentes graus de pressão e é preciso ter um controle sobre isso. É preciso se familiarizar com as linhas longas e contínuas, retas e curvas, sem interrupção do movimento e sem que a ponta do lápis se separe do papel. É preciso uma maior participação do corpo no ato de desenhar. A mão pode se movimentar com o antebraço e o braço, formando uma unidade com ele. Se o desenho é de grandes proporções, o corpo inteiro deve participar.
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