Descobertas Vol. 01 - Desbeije-me - Nina Cardoso

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1 O diário de Henrique • 1ª entrada •

A vida acontece em um instante. Costumamos achar que precisamos fazer planos, mas a verdade é que as coisas que nos definem, que definem nosso futuro e nossa história, acontecem nos segundos sem planejamentos, resultado do mais puro descuido. Não admitimos isso porque queremos ter algum senso de controle, mas a verdade é o que é, e não se pode mudar. Conheci Rebeca ainda na escola. Não éramos amigos, apenas colegas de classe. Mas sua beleza e seu jeito doce sempre me atraíram. Eu sabia, é claro, que ela estava fora do meu alcance. Porque apesar de não ser exatamente do grupo dos populares, ela também não era tão invisível quanto eu... E ela tinha namorado. Um cara mais velho, que cursava Direito. É engraçado, porque estando nós no último ano do ensino médio, a realidade da faculdade estava apenas a alguns meses de distância e, ainda assim, naquela época, parecia uma barreira intransponível. Eu pensava, “como Rebeca me olharia, um garoto invisível, quando tinha o seu namorado que estudava leis e dirigia um carro

maneiro?”. Podemos ser tão ingênuos quando somos jovens... Um belo dia, encontrei Rebeca escondida atrás das arquibancadas da quadra poliesportiva, chorando. Senti as lágrimas dela descendo em meu próprio corpo, como se tivessem entrado em minhas veias e meu sangue agora fosse feito da água salgada que escorria daqueles belos olhos. Mesmo nervoso, aproximei-me delicadamente. Sempre fui péssimo em falar em momentos assim, e não tínhamos intimidade o suficiente para que eu perguntasse o que houve sem parecer intrometido demais, por isso apenas me sentei ao seu lado e fiquei observando o nada à nossa frente. Após as primeiras tentativas de esconder o choro, quando percebeu que eu não tentaria conversar nem ficaria observando-a esvair-se em lágrimas, ela apoiou a cabeça no meu ombro — assim, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se fosse algo que fazíamos sempre — e deixou a enxurrada sair de dentro dela em um fluxo mais contido. “Obrigada”, ela disse. Foi a primeira vez que ela realmente falou comigo. Não de uma forma cordial, ou por algum motivo que envolvesse o ambiente que compartilhávamos, mas realmente direcionado a mim. “Nunca pensei que o silêncio poderia ser tão reconfortante.” Arrisquei olhá-la e o sorriso tímido em seus lábios fez com que meu interior derretesse em uma poça de um sentimento morno. “Tudo bem.”, respondi e rapidamente me senti idiota por não poder

pensar em nada melhor. “Henrique”, meu coração saltou e então acelerou o passo como se tentasse fugir de meu peito. É claro que ela sabia meu nome, estudamos juntos durante anos... Ainda assim, aquela palavra nunca parecera tão bela quanto quando saída de seus lábios, em uma voz baixa e fraca, tão próxima que seu hálito tocava minha pele, arrepiando-a levemente. Então, Rebeca, a garota por quem eu tivera uma queda durante séculos — ou assim me parecia na época — fez a mais impensada de todas as coisas. Aproximou-se lentamente e tocou meus lábios com os seus, demorando-se um pouco ali. Não foi nada próximo de sensual, foi totalmente delicado, como um sonho ao despertar, que pode se desvanecer a qualquer momento. Ainda assim, foi o começo de tudo. Olhando em retrospecto, eu deveria ter previsto. Mas eu estava cego pelos sentimentos que nutrira por anos e, finalmente, tornavam-se realidade. Após o beijo, Rebeca se levantou e foi embora. Eu permaneci enraizado no mesmo ponto, incrédulo com minha própria sorte. Porém, não a vi mais naquele dia e fiquei consumido pela mistura de empolgação e medo do que acontecera e do que se seguiria. Ela faltou na escola nos dois dias seguintes, e um fim de semana terrivelmente longo se seguiu. Quando ela retornou, na segunda-feira seguinte, ela sentou-se ao meu lado no intervalo e contou-me que seu avô falecera na

quarta-feira anterior. Senti-me mal, quase como se tivesse me aproveitado dela, embora nada tenha acontecido, nem mesmo um beijo propriamente dito. Acredito que ela tenha visto o pânico no meu rosto, porque tentou sorrir para mim. Casualmente, enquanto começava a comer seu lanche, ela me informou que no dia seguinte, o Estudante-de-Direito terminara o namoro com ela. Seus olhos encontraram os meus, flagrando minha surpresa. Após uma hesitação, ela adicionou que o ex dissera ter se apaixonado por outra pessoa. Fiquei ainda mais estupefato com a notícia, é claro, porque era insensível, e nem mesmo em outras circunstâncias eu conseguiria imaginar alguém terminando com ela, deixando-a por outra pessoa. “Mas está tudo bem. Ele não era o cara certo.” Seu ombro empurrou o meu de leve e eu tinha certeza que aquilo era o ápice da felicidade. Mas eu estava errado. Começamos a nos falar mais, viramos amigos e, no fim daquele ano, tomei coragem para finalmente chamá-la para sair. Supus que se a resposta fosse não, pelo menos tomaríamos caminhos separados em algumas semanas e eu não precisaria lidar com a rejeição. Contudo, ela respondeu com um sim entusiástico. No primeiro encontro, o primeiro beijo de verdade. Na segunda semana, o pedido de namoro. No terceiro mês, a primeira vez que nos amamos. No quarto ano, o meu pedido de casamento.

Após quase dois anos de noivado, eu a esperei na igreja com nossas famílias assistindo, e um pedaço de papel era a coisa mais maravilhosa do mundo quando a mulher de branco — a mais bela do universo — e eu o assinávamos declarando nosso amor a todos. Então, qual não foi a minha surpresa quando, seis anos mais tarde, a história que parecia um conto de fadas colapsou sobre nós. Minha terapeuta (porque “terapeuta” soa muito melhor do que psicóloga) aconselhou (porque adultos não aceitam ser mandados) a escrever um diário dos meus sentimentos e da minha história com minha esposa... Mas que palavras você usa para explicar que a pessoa que você amou por mais de uma década já não sente o mesmo? Quais são as palavras que tornam aceitável que a mulher da sua vida te traia?

2 O diário de Rebeca • 1ª entrada •

A vida acontece mais no meio do que nas extremidades. Não é branco ou preto, não é sim ou não, não é bom ou ruim. É a gigante área cinza moral em que vivemos constantemente que nubla os nossos pensamentos e confunde as nossas decisões. A verdade é que não nos conhecemos tão bem quanto pensamos, e as coisas não são tão simples até que você as veja em primeira pessoa. Porque é fácil julgar, condenar, duvidar dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada. E você pode dizer o que quiser, o que for te ajudar a dormir de noite com uma consciência limpa e tranquila, mas eu te juro que você não sabe — não com cem por cento de certeza — até estar do outro lado. Você não sabe até saber. E, às vezes, quando descobre, você percebe que realmente não sabia de nada. Para Henrique, nosso relacionamento sempre foi imaculado e perfeito. Agora, não sei se ele realmente acredita nisso ou se isso é o que se força a

acreditar. Porque é impossível que ele não tenha visto os sinais. Todos dizem que o afastamento de um casal acontece de forma gradual. De certa forma, é verdade; mas antes disso costuma haver uma enorme rachadura. Você não deveria passar por ela e ignorá-la, ou arrastar um móvel na frente para tapá-la. Ela é o indicador de que a estrutura não está mais tão forte, que os tijolos que construíram aquela pequena fortaleza estão ameaçados. Se você ignora, aí há um som. É como o clique de uma chave virada na fechadura. O momento em que acontece uma reação química e tudo se transforma para sempre. Só depois disso vem a queda de temperatura, lenta e constante. Na verdade, é tão lento e tão constante, que você não percebe que está no Polo Norte até ver a camada de gelo que te cobre, os dentes rangendo e a confusão de tentar entender como raios chegou até ali sem se dar conta. Foi exatamente o que aconteceu em meu casamento. Para Henrique, eu era a garota que ele sempre quisera, a garota que eventualmente ele conseguiu. E por um tempo, isso foi legal. Por um tempo, foi interessante e empolgante. Mas então, eu virei rotina. Eu era a mulher que estava na cama dele todas as noites, a que ele via todas as manhãs ao acordar, aquela para quem ele voltava para casa todas as tardes. Com o tempo, os

fantasmas da adolescência foram exorcizados e ele se acomodou. As pessoas costumam dizer que nada mata um casamento como a rotina. Eu nunca imaginei que eles pudessem estar tão certos. Em algum momento ao longo dos anos de nosso casamento, eu parei de ser o centro do mundo de meu marido. Eu não me importava tanto, porque a rotina era algo que eu imaginava benéfico. Em algum ponto teríamos que deixar a lua-de-mel para trás e encarar o dia a dia. Mas a prática sempre é mais difícil do que a teoria. Passei a ficar esperando-o para jantares que ele não comparecia, passei a receber ligações de cancelamento de última hora e ir deitar-me sozinha depois de horas esperando-o chegar. O futebol tirou os meus domingos, a família dele tirou os sábados e os amigos levaram a sexta. De segunda à quinta ele chegava tarde demais ou cansado demais para que nós sequer conversássemos. Era comida, banho e cama. O que antes era ele deixando de me olhar com aquele brilho especial, agora era ele completamente sem perceber se eu cortasse dois palmos de cabelo ou tingisse os fios de uma cor esdrúxula. Eu estava lá, mas ele não me via. Eu estava ali, mas parecia que eu não existia. E, acredite, ninguém quer ter a relevância de uma mobília. Primeiro falei em filhos. Pensei que as emoções e desafios da tarefa nos aproximariam e trariam algo que começava a faltar entre nós. Mas ele

dispensou a ideia, porque era cedo demais para pensarmos nisso, e porque ele ainda precisava se estabilizar melhor no trabalho, e porque isso, e porque aquilo. Eram desculpas para adiar o inevitável, acho que mesmo naquela época eu já sabia. Contudo, aceitei e acabei me convencendo de que ele estava certo. Tentei fazer como ele e preencher meus dias com mais e mais trabalho, mas quanto mais eu me afundava, mais eu me sufocava. O trabalho tornou-se claustrofóbico de tanto que tentei me enterrar nele. Eu sabia que precisava reagir antes que fosse tarde. Eu amava meu marido... Céus, como eu amei Henrique! Mas não haveria mais um eu para amá-lo se eu não fizesse algo por mim mesma naquele momento. Deixei a minha vida monocromática no apartamento e parti em um vestido azul celeste na primeira sexta-feira em que deixei que minhas amigas me arrastassem com elas para a balada, após tanto tempo. Não foi uma decisão que tomei levianamente. Dei uma última chance a Henrique, tentando marcar um tempo para nós em sua agenda que cada vez parecia mais lotada, tentando me excluir. Quando ele escolheu o trabalho, eu escolhi a mim mesma. A sensação de sair de dentro das paredes que se tornaram minha prisão,

o lugar em que os sonhos morriam, foi libertador. Rir com minhas amigas, dançar e ser olhada por outros homens... Era inebriante. Eu não queria jamais ter descoberto o quanto aquilo era poderoso e viciante. E, nas primeiras vezes, foi realmente tudo o que foi: Uma sensação boa e empolgante que durou algumas horas. Porém, como todo vício, é claro que logo eu precisei de mais. E mais e mais e mais e mais e mais. Até que eu já havia ido tão longe, que eu já não sabia onde estava nem como voltar. Era o País das Maravilhas: fascinante, mas sem nenhum sentido. Eu era grande e poderosa, mas nunca me sentira menor.

3 Dois meses atrás • Rebeca •

Eu andava impacientemente de um lado para o outro. Minha hiperatividade física era apenas um reflexo fracionado do turbilhão que acontecia em minha mente. A decisão com a qual eu lutava não era nada simples... Nada daquilo era. O dilema moral ameaçava roubar a minha sanidade e até mesmo o meu ar, provocando constantes ataques de pânico. Eu me tornara uma pessoa arisca e assustada, como se carregasse uma letra escarlate escondida que, nas circunstâncias certas, pudesse ser revelada para todo o mundo. “Lá vai a mulher adúltera!”, gritariam ao me ver passar, e eu seria resumida à uma única ação, a um erro; todas as minhas qualidades seriam obliteradas por um único evento isolado. A traição seria tudo que meus amigos veriam. A traição seria tudo que meus familiares veriam. A traição seria tudo que meu marido veria.

A traição era tudo que eu via ao me olhar no espelho. Estava lá, marcada em cada centímetro sujo de minha pele corrompida. Digitais invisíveis, sussurros inaudíveis, fantasmas imperceptíveis. Cada poro gritava em silêncio e mesmo que os outros não pudessem escutá-los... Eu, eu não podia calá-los. Como ninguém ainda notara? Como todos agiam como se nada tivesse acontecido? Era algum tipo de punição? Todo aquele carinho e afeto imutável existiam apenas para fazer-me sentir remorso e sucumbir ao peso das mentiras que eu tentava sustentar? Aquilo era a mais pura tortura. A compressão exercida por minha culpa pesava mais e mais a cada dia, chegando ao ponto de ebulição. Não havia mais como esconder aquilo sem explodir. Ou eu revelava a verdade, ou a verdade me destruiria em sua tentativa de escapar.

•••

Henrique chegou do trabalho tarde, como sempre. Havia muito tempo que eu já desistira de esperá-lo acordada. Mas naquela noite não era questão de escolha. Sem saber como a situação se desenrolaria, deixei uma mala pequena

preparada com algumas roupas e itens indispensáveis. Havia grandes chances de que a melhor alternativa fosse a minha saída de cena por uns tempos, fosse em um hotel, fosse passando um tempo com alguma amiga. Por isso, quando Henrique abriu a porta, sobressaltou-se ao ver a luz fraca do abajur da sala ligado e eu ainda vestida normalmente, esperando-o. Ele sorriu, constrangido e aproximou-se cautelosamente, como se tivesse sido pego no flagra, ironia que meu cérebro tratou de registrar. — Perdão... Tínhamos planos para hoje? — Não. — uma mísera palavra requisitava toda força de vontade para ser pronunciada, drenando a minha energia no processo. — Então por que não está de pijama ainda? — acalmando-se, ele tirou o blazer e pendurou-o. — Normalmente você está dormindo quando chego tarde assim. — Precisamos conversar. Com micro expressões dignas de ganhar um Oscar, pude perceber cada pensamento na mente de meu marido refletida em suas feições. Primeiro, o olhar branco de quem processa as palavras ouvidas. Então, a inspiração de uma lufada rápida de quem sente o coração acelerar e as extremidades gelarem, mesmo antes que o cérebro termine de compreender o que está por vir. Por fim, o momento em que nossos olhares se cruzaram e algo se partiu por trás da íris dele; a forma como ele piscou confuso e incrédulo, mesmo

antes que eu começasse a nos destruir, e a maneira como ele parecia diminuir alguns centímetros diante do meu olhar. Tudo em uma mísera fração de segundos. — O que...? Mas a frase ficou suspensa entre nós, como se não houvesse ar para que ela se propagasse. Engoli a seco, levantando-me por fim. Péssima ideia. Minhas pernas bambearam, minhas mãos tremiam. Sentia meu rosto repuxar com tiques de nervoso e meus olhos começavam a embaçar pelas lágrimas que vinham ardendo desde a alma. Minha garganta poderia estar em carne-viva, tamanha era a dificuldade de produzir qualquer som. O tempo parou, acelerou e dobrou-se naqueles instantes de silêncio gélido. Uma vida transcorreu e ainda assim nada mudou. Sustentamos o olhar do outro, incapazes de quebrar a conexão, e era como se tudo já houvesse sido dito mesmo que nenhuma palavra houvesse sido proferida. Ele encolhia-se cada vez mais, a dor expandindo-se por seu semblante, enquanto eu lutava para achar a voz apenas para confirmar o óbvio. — Não. — sussurrou ele de forma quase muda. Uma palavra tão pequena, mas capaz de englobar tantos sentimentos... Não faça isso. Não nos destrua.

Não me diga. Não quero acreditar. Não é possível. Não me deixe. Não pode ser verdade. Não pense nisso. Não seria capaz. Não. — Henrique... — as lágrimas cortavam o meu rosto em um fluxo quente e constante. — Não... — ele finalmente desviou os olhos, como se me olhar pudesse queimá-lo. — Não, não, não! — Eu preciso... — Você precisa falar. Eu não quero escutar. Seja o que for, apenas não. Por favor... A expressão dele era a de um animal ferido implorando misericórdia, e até aquele momento eu nunca soube que a vida podia continuar após um coração implodir de tal forma; havia pedaços do meu voando por toda a parte, e observar a dor do meu marido machucava tão intensamente quanto ferro em brasa, ao que também virei o rosto para longe da imagem de sofrimento. — Eu dormi com alguém.

Outro silêncio milenar transcorreu. O tempo tiquetaqueava em câmera lenta, pontuado apenas pela enxurrada mais forte de lágrimas que escapavam de meus olhos e minha respiração ruidosa por conta do choro. — Por favor... — implorei quando a quietude começou a ameaçar engolir-me. — Diga algo. Qualquer coisa. Grite ou sei lá! Ele finalmente endireitou a postura, saindo do modo congelado em que estivera desde que as palavras saíram dos meus lábios. Ainda assim, ele não me olhou diretamente. Inspirou e expirou algumas vezes, como se estivesse tentando se recompor. Quando virou em minha direção, a mistura que transbordava dos olhos dele era tóxica — raiva, mágoa e traição marcadas por lágrimas silenciosas. — Como você pôde? — Eu te amo. — afirmei sem pestanejar. Era como se uma barreira tivesse sido quebrada em minha mente, todos os pensamentos inundando-me em uma enxurrada. Henrique emitiu um som estranho, entre uma tosse anasalada de desdém e uma fungada de choro. — É claro que amo. — apressei-me a defender. — É por isso que estou te contando! Eu não poderia mentir para você se quero que sigamos em frente... Não significou nada, e esconder não faria bem a nenhum de nós.

Imagine se você descobrisse anos mais tarde, o que pensaria?! — Não finja que está sendo nobre, que está considerando os meus sentimentos. — ele praticamente cuspiu as palavras. — Se você se importasse comigo, não teria... Ele abaixou os olhos e balançou a cabeça, ainda incapaz de pronunciar, ou talvez aceitar, os fatos. — Henrique, meu amor... — aproximei-me e tentei tocá-lo. — Não! — ele se desvencilhou e se afastou, como se nós fossemos ímãs de mesmo polo magnético, incapazes de fazer qualquer coisa além de nos repelirmos. Minhas mãos ficaram moles e soltas, agarrando apenas o vento por alguns instantes. De repente, senti a necessidade de abraçar-me; eu era um castelo de cartas, lutando para permanecer no lugar. — Eu... — minha voz falhou e tive que pigarrear e me esforçar mais para propagá-la em tom audível. — Eu posso ir embora. Posso ficar em um hotel, ou com a Regina por um tempo... Se você precisa de espaço, se você precisa não me ver... Qualquer coisa, Henri. Apenas me diga o que fazer. Eu não quero que isso seja mais doloroso do que já é. O sorriso que vi no rosto do meu marido ficaria marcado em minha retina para sempre. Aquela era a antítese de qualquer coisa que lembrasse mesmo remotamente a alegria. Havia uma dor profunda demais para sequer ser

nomeada, estampada por todo o seu rosto. — A única coisa que eu queria que você fizesse, está além dos seus limites. Porque para não me machucar, você teria que voltar no tempo e desfazer o que fez, parar antes de cruzar a linha. Agora... — ele deu de ombros, derrotado. — Agora é simplesmente tarde demais, Rebeca. Ele saiu em direção ao quarto, sem dizer outra palavra ou olhar novamente em minha direção. Imediatamente, caí de joelhos, ainda abraçada a mim mesma, entregando-me aos soluços que rasgavam por meus lábios. Meu coração estava naufragado e eu só podia chorar, na esperança de libertar as lágrimas que ameaçavam afogá-lo. Henrique não precisava dizer a palavra exata, nós dois sabíamos que, entre as linhas, ele havia sentenciado o que eu tanto temia: Acabou.

4 Dois meses atrás • Henrique •

Foi um dia longo e cansativo no trabalho. Quando finalmente saí da Redação, lembro-me de ter optado por pegar um táxi, porque deixara o carro para a revisão, mas estava cansado demais para enfrentar o transporte público de São Paulo. Garoava e o som relaxante das gotas contra o capô quase me fez adormecer. Lembro-me de ter pensado que pularia o jantar, pois eu só queria tomar um banho e me jogar na cama. Coloquei a chave na porta de entrada com cuidado, evitando fazer barulho. Geralmente Rebeca já tinha ido deitar-se quando eu chegava em casa, então eu tentava não atrapalhar seu sono — até porque, ela sempre parecia preocupada com os meus horários extensos. Mas assim que comecei a empurrar a porta, soube que algo estava diferente. Meu cérebro ainda demorou alguns milissegundos para perceber a luz tênue do abajur da sala. Entrei, fechei a porta atrás de mim e sorri

desconcertado para a minha esposa, que esperava sentada no sofá. Franzi levemente o cenho ao perceber que ela ainda não tinha nem mesmo colocado sua roupa de dormir. — Perdão... — tentei não parecer muito culpado. — Tínhamos planos para hoje? — Não. Ela parecia estranha, com uma rigidez nada natural em sua postura. Mesmo assim, relaxei um pouco e tirei meu blazer, pendurando-o. — Então por que não está de pijama, querida? Normalmente você está dormindo quando chego tarde assim. — Precisamos conversar. Encarei-a por um instante, o mundo desacelerando ao meu redor até finalmente parar de girar. Meu cérebro começou a ligar todas as pequenas peças: A roupa, o fato de ela ainda estar me esperando, as desconfianças que tentei calar ao longo dos últimos meses, as saídas com as amigas... A pequena mala, quase totalmente oculta pelo sofá. De repente, todo o oxigênio se esvaiu de meus pulmões e tive que inspirar uma grande quantidade de ar, forçando meu corpo a não entrar em colapso. Tudo o que eu precisava saber já estava exposto, mas mesmo assim o meu mecanismo de defesa se recusava a formar aquelas palavras, a mais óbvia das constatações.

Olhei Rebeca nos olhos e o que vi foi a pior das provas. A culpa estava estampada em seu rosto, seus olhos transbordavam a agonia de quem luta para segurar um segredo por tempo demais. Desde a primeira vez que vi a mulher que se tornaria minha esposa, muitos anos atrás, sempre amei seus olhos, aquele universo complexo que eu nunca desvendaria totalmente... Nunca achei que toda aquela magia acabaria um dia sendo substituída por cianeto, tornando-os uma arma letal. Porque foi exatamente o que aconteceu naquela noite. Com um olhar, apenas algumas gotas daquele veneno, ela destruiu tudo o que tínhamos construído durante tanto tempo, sem sequer ter dito uma palavra. — O que...? Eu ainda piscava em negação, incrédulo demais, confuso demais. A frase morreu em meus lábios, mas acertou-a em cheio. Eu podia ver a tensão aumentando entre nós a cada segundo. Rebeca levantou-se, o lábio inferior trêmulo, os olhos marejados. Minhas mãos geladas suavam e eu sentia o meu coração bater com tanta força, que temi quebrar minha caixa torácica. Ficamos ali, feito dois bonecos vazios, apenas nos encarando pateticamente. Acho que sabíamos que tão logo quebrássemos a conexão dos nossos olhares, todo o resto começaria a desmoronar junto ao nosso redor. Só existiríamos enquanto nos olhássemos. Depois disso, era o começo do fim.

A dor começou a se irradiar pelo meu corpo em um calafrio, mas eu ainda não estava pronto para acabar. Não estava nem mesmo pronto para aceitar que estávamos terminando. — Não. — a palavra escapou em um sussurro débil, sem nenhuma especificidade. Era apenas o acúmulo de minhas negações que começavam a transbordar. Porque por menor que fosse aquela palavra, ela também era a mais abrangente, a mais propícia para explanar tudo o que eu sentia. — Henrique... — os olhos de minha esposa eram como uma cachoeira imparável. — Não... — desviei os olhos, porque nunca suportei vê-la chorar... Nem quando os motivos de suas lágrimas era a dor que ela própria estava prestes a me infringir. — Não, não, não! — Eu preciso... — Você precisa falar. Eu não quero escutar. — se pensei em minha dignidade, fora em um passado distante. Naquele momento, tudo o que eu precisava era acordar, sem que nada daquilo jamais tivesse acontecido. — Seja o que for, apenas não. Por favor... Notei minha esposa se contraindo perante minhas reações. — Eu dormi com alguém. As palavras pareceram uma sentença e perduraram entre nós como se

ecoassem. Mais uma vez o mundo parou, um milhão de pensamentos colidindo em minha mente ao mesmo tempo em que eu me sentia terrivelmente oco. Permaneci enraizado no mesmo lugar, ouvindo Rebeca começar a soluçar em meio às lágrimas. — Por favor... — ela implorou e suas feições estavam esculpidas em desespero. — Diga algo. Qualquer coisa. Grite ou sei lá! Endireitei-me apesar do peso do mundo estar em meus ombros. Não virei para olhá-la, ainda não conseguia. Nem mesmo queria. Inspirei, expirei. Não era o suficiente, meus batimentos ainda eram fortes demais e eu não achava a minha voz. Tentei de novo e outra vez, como se meu cérebro não fosse capaz de lembrar-se de como articular palavras. Finalmente olhei-a. Eu não procurava mais enxergar as entrelinhas em seu rosto, eu só queria que ela visse, que ela sentisse a minha dor. Porque não era justo ela atirar em mim daquela forma e não ficar para me ver sangrar, para perceber que matou uma parte de nós que não poderia ser revivida jamais. — Como você pôde? — Eu te amo. — respondeu ela, rápido demais, como se achasse que aquilo era exatamente o que eu queria ouvir. Tentei rir, mas só consegui produzir um som de escárnio amargo, com

gosto de bile. Eu sabia que as lágrimas logo viriam com força total. — É claro que amo. — ela continuou como se estivesse se defendendo. — É por isso que estou te contando! Eu não poderia mentir para você se quero que sigamos em frente... Não significou nada, e esconder não faria bem a nenhum de nós. Imagine se você descobrisse anos mais tarde, o que pensaria?! — Não finja que está sendo nobre — meu sangue pulsava quente em indignação, porque era impossível que ela acreditasse que aquilo era justificável. —, que está considerando os meus sentimentos. Se você se importasse comigo, não teria... Abaixei os olhos, a palavra gritava em meu cérebro, mas era humilhante demais, doloroso demais admitir aquilo em voz alta. De alguma forma, tornaria real. — Henrique, meu amor... — ela se aproximou, sem perceber que o chão entre nós virara um campo-minado. — Não! — desviei, distanciando-me tanto quanto ela se aproximara. A barreira que surgira entre nós era intransponível. A cada passo que ela tentasse se aproximar, mais eu precisaria me afastar. Por alguns instantes ela pareceu uma marionete abandonada, as mãos frouxas ainda em minha direção. Por fim, ela recolheu os braços ao redor de si mesma. — Eu... — a voz dela quebrou, mas ela prosseguiu: — Eu posso ir

embora. Posso ficar em um hotel, ou com a Regina por um tempo... Se você precisa de espaço, se você precisa não me ver... Qualquer coisa, Henri. Apenas me diga o que fazer. Eu não quero que isso seja mais doloroso do que já é. O sorriso que se espalhou em meu rosto foi automático, pois àquela altura eu nem mesmo sabia que era capaz de sorrir mesmo se tentasse. Era inacreditável, hediondo, que ela dissesse aquilo. Era impossível que ela achasse que qualquer coisa tornaria aquilo menos difícil ou mais tolerável. A única coisa que eu precisava era deslembrar que aquela conversa sequer existiu. Mas eu sabia que eu me recordaria daquilo para sempre, porque aquele momento se tornava parte de mim, como cimento sendo jogado em minha estrutura. Era simplesmente tarde demais. — A única coisa que eu queria que você fizesse, está além dos limites. Porque para não me machucar, você teria que voltar no tempo e desfazer o que fez, parar antes de cruzar a linha. Agora... — dei de ombros, as lágrimas a ponto de irromper. — Agora é simplesmente tarde demais, Rebeca. Sai em direção ao quarto, sem dizer mais nada ou olhá-la novamente. Tranquei-me e esmurrei o interior da porta. A minha testa ainda estava colada ali, as lágrimas que saiam de meus olhos pareciam que jamais cessariam. Virei-me para encarar o quarto, mas só consegui escorregar com as costas

ainda contra a porta. Tudo naquele quarto zombava de mim, como minúsculas pistas que não percebi e lembranças do que eu perdi. O cheiro dela ainda estava nas cobertas e uma das estúpidas velas aromáticas que ela tanto amava chegava ao final em seu criado-mudo, deixando o quarto com o mais triste dos brilhos alaranjados. Ouvi quando, depois de muito tempo, ela abriu a porta e partiu. Eu já nem mesmo conseguia mais produzir lágrimas àquela altura. Se o corpo humano era realmente feito de sessenta por cento de água, eu alcançara a desidratação por choro. Passei a mão pelo rosto e levantei-me, apagando a estúpida vela com um sopro. O quarto mergulhou no escuro e tudo parecia condizer com o meu estado de espírito — a facilidade do fim e a escuridão que tomara conta de mim como um eclipse. Fui até o banheiro e peguei um comprimido para dormir. Se eu deixasse, os pensamentos me consumiriam vivo. Porém, o mundo seguiria em frente no dia seguinte. Contra toda e qualquer possibilidade, o dia ainda amanheceria lá fora, incapaz de se penalizar com a minha dor. Então, peguei meu travesseiro e o lençol e fui para a sala, deixando as dúvidas sobre em que cama minha mulher se metera naquela noite — e em tantas outras — me torturarem até o remédio fazer efeito e apagar tudo por algum tempo. Mas tempo nenhum seria suficiente para apagá-la de minha vida. Nem

nenhum remédio poderia apagar a dor que ela me causara.

5 A primeira sessão • Rebeca •

Vivi dois meses que duram por uma vida inteira. Desde que eu confessei a Henrique sobre a traição, nosso relacionamento passou por todos os níveis de ódio, rancor e tristeza imagináveis. De repente, todas as brigas que nunca tivemos afloraram de uma só vez, como flores espinhentas em uma primavera negra. Cada mísero segundo dos últimos anos era colocado debaixo de uma lupa, que nos observava como um urubu à espreita, julgando-nos. O sol não saía nos dias em que estávamos juntos, mas começava a chover no segundo em que nos separávamos. Não havia como ganhar, porque tudo estava errado. Cada frase tinha que ser cuidadosamente pensada, porque se não tivéssemos cuidado, entrávamos em uma guerra de espadas com apenas uma palavra impensada. Mas escolher uma alternativa também não parecia natural; frasear nossos pensamentos de forma que nunca os colocaríamos em outra situação também era uma alfinetada silenciosa, lembrando-nos o motivo pelo

qual precisávamos andar como se pisássemos em ovos. Eu tinha medo demais para perguntar o que faríamos a seguir, por quanto tempo viveríamos apenas existindo e, por vezes, sem nem mesmo coexistir. Na verdade, eu tinha medo era da resposta. Por pior que fosse a espera interminável, a construção da tensão e a anunciação do veredito, eu temia mais ainda saber que chegamos ao fim da estrada. Então, um dia, mencionei a terapia. Para a minha surpresa total, Henrique respondeu prontamente, embora sem levantar o olhar de seu celular: — Marque. Qualquer horário depois das 19h. Ou aos sábados. Por alguns instantes, até me questionei se ele realmente falara comigo ou se estivera em uma ligação e eu não percebera. Ainda assim, marquei a sessão e deixei um post-it na geladeira com a data, horário e local. Contra todas as probabilidades, ele apareceu para a sessão. Mil fogos de artifício explodiram em meu interior. Ele não iria à terapia se acreditasse que estávamos além de qualquer conserto, não é? O que nunca imaginei, era que a terapia poderia ser tão caótica.

•••

Tudo o que Henrique segurou nos últimos tempos, ele desabafou no consultório de Márcia Menezes.

A terapeuta se apresentou, explicou que aquele seria um espaço seguro, onde ambos poderíamos expressar-nos livremente, e ela apenas interferiria para garantir que tanto eu quanto ele pudéssemos falar e sermos ouvidos. Eu expliquei a situação novamente e ela perguntou o que meu marido tinha a dizer sobre aquilo. O silêncio que se instalara entre nós como um véu, finalmente foi levantado. — Como eu me senti? Como eu deveria ter me sentido? Traído, é claro! — ele fez uma pequena pausa, uma ruga do mais puro conflito se formando entre suas sobrancelhas. — Quero dizer... Eu sei que nos afastamos com o passar dos anos... Mas eu nunca achei que fôssemos tão pouco, que nos limitássemos ao sexo. — Henrique, isso não é justo... — Rebeca — Márcia chamou. —, você poderá responder depois. Mas deixe Henrique expressar o que sente e tente escutar o lado dele, ok? Esta é a intenção. Vocês não devem ficar tão preocupados em se defender ou atacar um ao outro; vocês precisam ouvir o outro lado e entendê-lo. Suspirei, contrariada, mas me calei. Era difícil guardar minhas palavras ao ouvir os pensamentos errôneos de meu marido. Eu sabia que ele estava sofrendo, mas era ainda pior saber que ele sofria por coisas que não correspondiam à realidade, sem poder lhe explicar como tudo realmente aconteceu.

— Henrique, prossiga. Você estava falando sobre com se sente. — Eu cheguei a suspeitar, sabe? — ele se recostou no sofá, a voz bem mais baixa do que antes, o que eu reconhecia como um mau prenúncio. — Ela começou a sair, a voltar tarde... Ela passou noites fora de casa. Depois ela se aproximava como se não pudéssemos existir separados, mas no instante seguinte parecia que ela era um planeta em outra galáxia, de tão distante. É claro que eu pensei nisso. Mas quando a gente casa, a gente escolhe a confiança. Se o meu trabalho consumia o meu tempo, eu não podia pedir que ela ficasse em casa sozinha me esperando, não é? Só que desde aquela noite, o meu mundo virou de cabeça para baixo. As perguntas, os pensamentos, as lembranças... Na minha mente, tudo isso está rodando de forma nauseante e eu já não sei o que é verdade e o que não é. Márcia concordava com a cabeça e deixou o silêncio se estender, para ter certeza que Henrique acabara sua narração, antes de indagar: — Quando você diz “aquela noite”... — A noite em que ela confessou a traição. — Sim. — a mulher concordou, anotando algo. — E você também disse que “não sabe o que é verdade e o que não é”. Você alguma vez perguntou algo a Rebeca? Depois que ela confessou a você sobre ter tido um caso, vocês conversaram sobre o assunto ou simplesmente tentaram ignorá-lo? — Não, é claro que não. Ao mesmo tempo em que eu preciso saber, eu

não quero saber. Henrique parou novamente, desta vez de quase forma abrupta, comprimindo os lábios e desviando o olhar para longe. Da mesma forma como se reconhece o céu amarelo antes de um furacão, eu sabia que aqueles eram os indícios de que meu marido beirava às lágrimas.

6 A primeira sessão • Henrique •

Não me admira que eu seja o jornalista e Rebeca a fotógrafa. Eu sou bom com fatos; ela, em traduzir emoções e capturar a sensibilidade que passa despercebida para o resto de nós. Ela provavelmente poderia explicar melhor, de alguma forma dar sentido à desordem que foram os dois meses seguintes àquela terrível noite. Para mim o tempo apenas passou. Em uma sucessão estranha e tortuosa. Por vezes, era inacreditável que o mundo lá fora continuasse normalmente apesar da implosão da minha vida. Em outros momentos, eu jurava que os dias se estendiam em um loop infinito, como o meu inferno particular, fazendo os ponteiros do relógio se arrastarem no mais lento possível dos movimentos. Minha mente era atormentada por momentos de pensamentos em colisão e outros de um vazio sombrio e assustador. Pensei todos os pensamentos do mundo, mas nunca estive mais vazio. Até que um dia, durante um dos estranhos cafés-da-manhã que

começavam a se tornar rotina, após quase dois meses que Rebeca retornara para casa, ela sugeriu em um sussurro tímido e incerto: — Estive pensando sobre... Terapia. Terapia de casais. — Marque. Qualquer horário depois das 19h. Ou sábados. Eu sabia que ela estava se corroendo, sabia o que aquele silêncio fazia com seus nervos, porque eu também sofria os efeitos. O problema era que eu simplesmente não sabia como seguir em frente. Eu a amava, disso eu tinha certeza, porque a minha vida seria muito mais simples se eu não a amasse tanto, e mesmo assim eu continuava amando-a como um imbecil. Entretanto, não era como se eu pudesse apertar um botão e esquecer tudo... E mesmo se pudesse, na verdade, não poderia. Esquecer seria negar, seria fingir que nunca aconteceu, ignorar o rombo que ela tinha causado em nosso relacionamento. Se nós tínhamos qualquer chance, esquecer não era a solução. Mas eu não sabia ainda se tínhamos solução. Muito menos qual poderia esta ser.

•••

Rebeca não perdeu tempo. Na manhã seguinte, vi um post-it grudado à porta da geladeira, com as informações da primeira sessão. Peguei o pedaço de papel de cor neon, que já nem se destacava no mar de tantos outros iguais.

Papeis autoadesivos na porta da geladeira se tornaram o nosso meio básico de comunicação. “Fiz compras hoje.”, ela escrevera certo dia. “O seu cereal está no armário, mas esqueci de comprar leite.” “Tudo bem, comprarei amanhã. A sua mãe ligou e pediu que você retornasse quando puder.” “Já falei com ela... Devo dar uma desculpa e avisar que não vamos ao churrasco dos Almeida?” “Fale que eu tive um problema do coração, ou algo do tipo.” “Não faça isso, Henrique. Não tem graça.” “Eu sei que não. E não fui eu quem fez.” Aparentemente, até aquelas folhas de papel adesivo, que começaram como lembretes e forma de nos evitarmos, tornaram-se dardos autoguiados.

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Quando me aproximei da entrada do prédio da tal terapeuta, naquela primeira sexta, a alegria de Rebeca foi notável. De alguma forma, aquilo apenas fez o meu estômago afundar mais em desolação. A terapeuta nos recebeu em sua sala, um sorriso contido, de forma a ser educada, mas sem ignorar os motivos que nos levaram até ali.

Ela começou com perguntas simples, que Rebeca prontamente respondeu. Percebendo que eu não responderia sem sua intervenção, a terapeuta fez a pergunta mais lógica e mais impensada: Como eu me senti. Ninguém te pergunta isso quando você é traído. Seus amigos tentam levantar seu ânimo, tomam partido e jogam toda a culpa em quem lhe traiu. Seus familiares ou realmente não sabem, ou fingem não saber, porque não querem aprofundar as suas feridas. E a pessoa que te traiu? Bem, geralmente ela implorará por perdão e tentará se reconciliar, ou ela desistirá e partirá. Seja como for, ela não lhe perguntará como você se sentiu. Nunca, em hipótese alguma, jamais. A traição é o famoso elefante na sala. Todos podem ver, mas ninguém comentará a respeito. Então, quando alguém quebra o acordo silencioso de não mencionar o óbvio, a ousadia daquele ato é impactante. E Márcia foi muito além de apontar o que tentávamos ignorar. Ela abordou cada um de nós, de diferentes ângulos, como se tentasse drenar cada gota de qualquer sentimento que pudéssemos ter em relação ao assunto. Por mais que eu tenha tentado manter a compostura, cedi às lágrimas nos primeiros minutos da sessão. Não adiantava guardar aquele peso dentro de mim. De qualquer forma, nunca acreditei em quem insiste que homem não chora. Lágrimas não têm nenhuma ligação com gênero, e sim com sentimentos. E, naquele momento, o meu coração estava aos cacos. De que adiantava mentir

para os outros, se eu não podia fugir da verdade por um momento sequer?

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Por mais que tenha sido ruim em diversos níveis a hora que passamos trancados naquele consultório, debatendo o momento mais pessoal e doloroso de nossa história com uma desconhecida, sair dali ainda conseguiu ser o pior momento do dia. Veja bem, enquanto falávamos, ainda existíamos. Enquanto falássemos e chorássemos e gritássemos, estávamos tentando algo, estávamos lutando, por mais que fosse às cegas. Só que, então, de repente, saímos de dentro daquelas quatro paredes imunes a tudo. Do lado de fora, a temperatura amena do cair da noite se transformou em uma barreira de gelo sólido entre nós dois. Agora o quê? Estávamos indo para o mesmo lugar, estávamos indo para casa. Mas definitivamente não estávamos retornando para o nosso lar. Poderíamos andar lado a lado em silêncio. Quantas noites não fizemos isso após sairmos de uma sessão tardia de cinema, ou cansados demais após um jantar com os amigos? Quantas noites não passamos calados na sala de estar enquanto ela editava suas fotos no computador, e eu preenchendo minhas

palavras-cruzadas e respondendo e-mails? Quantas manhãs de domingo não enrolamos na cama antes de levantar, nos comunicando com olhares, sem jamais fazer qualquer ruído? Então como aquele mesmo silêncio agora era um ruído alto que ecoava em meus ouvidos e preenchia cada espaço dos meus pensamentos? Talvez o silêncio só seja confortável quando não é vazio. Quando há um sentimento que preenche o espaço, a falta de barulho não faz qualquer falta. Afinal, estamos acostumados com pequenos ruídos brancos, não é? O som das luzes, da cidade, das conversas, do trânsito... Contudo se, sem aviso, surge um silêncio seco e estático, você não pode evitar de percebê-lo. Se aquela primeira sessão servira de algo, fora para remexer meus tormentos e dúvidas. Somando com o terreno fértil proporcionado pelo silêncio, eu estava à mercê das armadilhas de minha mente insegura.

7 A semana seguinte

• Rebeca •

Ao partir de meu apartamento, após ter quebrado o coração de meu marido e possivelmente esfaqueado nossa relação, passei os dois dias que se seguiram trancada em um quarto de hotel. Regina, minha prima e melhor amiga, ficou tão preocupada com o meu desaparecimento que me rastreou e me arrancou de entre as cobertas do quarto alugado, levando-me para a sua casa quase arrastada. Aparentemente, o meu próprio lar não era o único que entrara na batalha, graças aos meus erros. Até aquele momento, não me ocorrera pensar na posição delicada que colocara as pessoas próximas a mim. O marido de Regina, Lourenço, se tornara o melhor amigo do meu marido anos atrás, e obviamente agora escolhera o seu lado em nossa briga. O

conflito dele em me ver no apartamento era lastimável. Ao mesmo tempo em que queria ser educado com a hóspede, ele parecia incapaz de olhar em minha direção por mais do que alguns segundos por vez, como se eu fosse algo obsceno e desconfortável de estar próximo. De certa forma, eu entendia perfeitamente a lógica por trás daquele pensamento.

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Quando os seus dias se resumem a ficar deitada em cima de uma cama, chorando e odiando a realidade, a semana se arrasta de forma inacreditável. Cada minuto acordada é uma tortura, e chega um ponto em que apesar da tristeza avassaladora, você simplesmente não consegue mais dormir em busca de alívio temporário. Enquanto eu estivera no hotel, tive privacidade o suficiente para sofrer isolada. Com Regina, porém, as coisas mudaram. Objetivamente, eu sabia que precisava dos cuidados que ela me estendia. Comer não era algo opcional, mas de repente virara algo que me provocava lágrimas. Tentei mandar mensagens para Henrique, porque talvez a parte mais dolorosa fosse não saber como ele estava. Era terrível imaginar que ele ainda pudesse estar jogado em uma cama sem sequer se alimentar, como eu mesma estaria se não fosse por minha prima.

Regina, notando o meu pânico, despachou Lourenço para o meu apartamento no dia seguinte à minha chegada. Além de ajudar a cuidar de meu marido, ele também deixaria de se sentir em um fogo-cruzado dentro da própria casa, então ele aceitou de bom-grado. Ainda assim, Henrique não respondeu minhas mensagens. De noite, Lourenço e Regina se falaram pelo telefone e ela tentou acalmar-me com notícias de que “estava tudo tão em ordem quanto poderia estar”, o que obviamente era um eufemismo terrível e me fazia questionar qual era a verdade por trás daquilo.

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Apesar de tudo, a semana passou; arrastando-se como se a cada segundo o tempo dobrasse mais uma vez. Aos poucos, a tristeza foi substituída pela agonia, a necessidade de falar com Henrique. — Rebeca, querida, acho que preferia quando você estava deitada na cama. — Regina sorriu com delicadeza, sentada no sofá, conforme eu caminhava impacientemente para um lado e para o outro da sala, com o celular na mão. Já faziam oito dias que eu saíra de meu apartamento. — Você tem certeza de que quer falar com ele, querida? — minha prima

insistiu. — É claro que não tenho certeza. Mas eu não tenho escolha, tenho? Eu sabia que falar com Henrique poderia significar colocar um ponto final definitivo em nossa história. Mas eu precisava vê-lo, ouvir sua voz, saber precisamente ao invés de imaginar. E, de uma forma ou de outra, deveríamos tomar algum rumo, quer seguíssemos juntos ou separados. O telefone em minha mão tocou audivelmente, o bipe de uma mensagem, e sobressaltei-me. Meu olhar encontrou o de Regina, de sobrancelhas erguidas, também surpresa. — Veja logo, Beca! É Henrique? Havia uma corrente elétrica perpassando-me, fazendo minhas mãos tremerem de forma incontrolável. De repente, toda a parcela de água que compunha o meu ser fora substituída por gelo. — Então? — insistiu Regina, vendo o temor pintado em minhas feições. Tentei recuperar um pouco da certeza que eu sentira até momentos atrás, mas havia uma parcela de mim que sabia que meu casamento talvez só fosse durar o tempo de minha hesitação. Mordi o lábio inferior, tentando reprimir os sentimentos que ameaçavam me soterrar e inseri a minha senha no aparelho, desbloqueando a tela. O nome no visor confirmou meu maior desejo e meu maior medo: Henrique. Olhei de relance para Regina, que estava sentada na ponta do sofá agora,

esperando ansiosa, então inspirei mais uma vez conforme clicava para abrir a mensagem. — E-ele... — meus olhos piscavam, as sobrancelhas franzidas para a tela, conforme eu relia a mensagem para ter certeza. — Ele disse que precisamos conversar. Perguntou se eu posso ir até lá amanhã. — Bom... — Regina parecia compartilhar de minha incerteza. — É um começo.

8 O mês seguinte

• Henrique •

Rebeca e eu ficamos separados por pouco mais de uma semana. Bom, na verdade, ficamos morando em casas separadas por pouco mais de uma semana. Nos primeiros dias, eu estava um caco completo. Então, Lourenço chegou. De alguma forma, era pior tê-lo ali. Porque a primeira coisa que notei desde o olhar culpado que minha esposa tinha ao partir, foi o olhar de piedade que um de meus melhores amigos me lançava. Ainda assim, verdade seja dita, ele fez o melhor que pode. Eu não queria estar no lugar dele. Ambos sabíamos que estávamos andando em um terreno perigoso, mas ele não se deixou abalar com o tempo em que eu passava vagando pela casa, atrás de qualquer cômodo onde pudesse ficar sozinho, ou com minha recusa em manter uma conversa rolando.

Ele também nunca insistiu em falar sobre o elefante na sala, o motivo pelo qual ele, ao invés de minha esposa, estava morando comigo. Ao chegar, ele perguntou educadamente como eu estava, ao que respondi com um ruído ininteligível. Lourenço então partiu em me manter fazendo coisas básicas, como tomar banho, comer, ir ao trabalho. Ele removeu os remédios do armário do banheiro, escondeu sabe-se-lá-onde as garrafas de bebidas alcóolicas e energéticos e, embora eu apreciasse seu cuidado, não podia deixar de registrar o quão mal eu deveria estar parecendo perante aos olhos de meu amigo, ao ponto em que ele achasse que tomar tais providências fosse uma necessidade. Em todo esse tempo, Rebeca ligou e passou mensagens insistentemente. Eu ignorei, como se competíssemos para descobrir quem tinha mais persistência. Mas quase uma semana depois de sua chegada, a presença de Lourenço começava a me enlouquecer. Então, em parte para lhe provar que eu não estava planejando suicídio, em parte para fazê-lo voltar à própria casa, decidi que precisava encarar a tarefa que eu vinha protelando. Ao mesmo tempo, precisei encarar que a procrastinação não era apenas teimosia... Eu não sabia o que Rebeca e eu faríamos a seguir. Reuni coragem e enviei-lhe uma mensagem, porque a ideia de ouvir sua voz ainda era muito mais do que eu podia encarar naquele momento. Tentei manter-me curto e objetivo:

“Precisamos conversar. Você pode vir aqui amanhã?” Tentei não pensar demais. Tentei me convencer de que ela permanecia na casa de Regina, conforme Lourenço me informara, e que não tinha se escondido entre os lençóis de um amante sem rosto em minha mente. A resposta dela também foi breve, o que tornava difícil interpretar em que pé estávamos: “Estarei aí pela manhã.” Após mostrar a conversa para Lourenço, consegui despachá-lo para a própria casa. Não antes, é claro, de ele dar uma arrumada na casa bagunçada. Agradeci então seu auxílio e prometi que informaria, caso fosse necessário. Tentei me manter tão bem quanto demonstrei estar. Mas a verdade é que meu interior estava uma desordem colossal. Naquela noite, novamente não consegui dormir. E por mais que tentasse conter tais pensamentos, só podia pensar se minha esposa também se debatia na cama, acordada, preocupada, ou se já viria preparada para declarar um veredito para o nosso casamento.

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Quando Rebeca chegou, ela tocou a campainha. Ela tinha a chave, mas preferiu não usá-la, e eu não sabia se ela estava me concedendo espaço, ou se estava tentando traçar novos limites. Abri a porta e ficamos ali, parados, por

algum tempo. Nenhum de nós sorriu — sorrir parecia tão errado! —, nenhum de nós falou. Apenas ficamos ali durante algum tempo, sem nos olharmos diretamente, mas sem recuar. Por fim, abri mais a porta e dei passagem para que ela entrasse. Eu não sabia o que tinha acontecido com a minha mente, mas, de repente, eu não conseguia pensar em absolutamente nada. Rebeca observava a casa que um dia fora um lar. Ela não se sentiu confortável o suficiente para sequer se sentar sem ser convidada. Fiquei um pouco afastado, atrás dela, esperando que ela terminasse sua análise ou seu passeio pelas lembranças. — Sei que precisamos conversar. — declarei, por fim, sem rodeios, detestando ser a pessoa a quebrar o silêncio, mas detestando ainda mais deixálo se estender. — Achei que eu estava pronto, mas não estou. De qualquer maneira, essa ainda é a sua casa... Acho. Você pode ficar com o quarto, eu dormirei na sala. — Henrique? — ela se virou e senti um frio na barriga quando nossos olhos se encontraram. — Eu realmente preciso sair agora, Rebeca. E, dizendo isso, parti o mais rápido que podia. Seria difícil termos algum tipo de conversa se nem conseguíamos coexistir.

•••

Adoraria dizer que as coisas melhoraram depois daquele primeiro momento embaraçoso, mas não seria verdade. O retorno de Rebeca foi estranho. Decidimos continuar morando na mesma casa, mas aquilo estava longe de ser uma solução permanente. Estávamos apenas enrolando, tentando ignorar o fato de que estávamos cada vez mais perto de tocar o fundo do poço Nossa convivência se tornou um jogo onde tentávamos nos evitar. Era como se o mero fato de nós estarmos no mesmo cômodo pudesse desigualar a precária balança que equilibrava nossas vidas naquele momento. Mas da mesma forma como a distância não resolveu nada, a proximidade tampouco significava algo. A presença de minha esposa era vazia, como ter um fantasma pairando pelo ambiente — uma sombra feita de lembranças, um eco do que costumava ser, em sua recusa de desaparecer por completo.

9 Sessão individual

• Rebeca •

Ao final de nossa primeira sessão de terapia, Márcia pediu que começássemos a escrever nossos sentimentos e pensamentos em um diário particular. Cada vez que pensássemos ou lembrássemos algo de nosso relacionamento, deveríamos escrever — sem edições ou restrições, apenas colocar nossos pensamentos no papel. Ela nos garantiu, ainda, que este diário seria apenas nosso, nem ela nem nenhum de nós veria o diário do outro. A intenção era tentar colocar alguma ordem em nossos sentimentos, passando as ideias abstratas para algo concreto, organizando de forma a formar frases coerentes. Às vezes, ela disse, a escrita pode ser a maior de todas as terapias, ajudando você a se conhecer melhor do que poderia sonhar. Márcia disse também que precisaria falar conosco individualmente, ao que presumi que ela precisasse conseguir mais peças para tentar desvendar o quebra-cabeças que nossa vida se tornara, e ajudar-nos a reconstruir as peças

que perdemos ao longo do caminho, ou restaurar as que foram danificadas. Assim, marcamos dois dias diferentes na semana seguinte, antes de nossa segunda sessão. Fui a primeira a comparecer em uma sessão individual, vestindo meus medos como se fossem um casaco sufocante me abraçando. — Como tem passado, Rebeca? — perguntou a terapeuta educadamente, conforme eu sentava no sofá à sua frente. — Já estive melhor. — respondi com um suspiro. — Se importaria de elaborar um pouco? Como estão as coisas entre você e Henrique? — Continuam péssimas. — mordi o lábio inferior, apreensiva, pois não queria que ela achasse que eu estava questionando seus métodos, mas também com medo de não confessar nossas falhas e acabar por prejudicar-nos. — Rebeca, lembra o que conversamos? Este é um local seguro, você pode se expressar livremente. Tudo o que você falar será entre você e eu. Você pode dizer que a primeira sessão não surtiu nenhum resultado, eu não esperava que surtisse. Olhei-a confusa, mas ela concedeu-me um pequeno sorriso. — Veja bem, isto não é uma solução mágica. Não é uma poção que eu lhes darei e tudo ficará bem. Não existem atalhos. O seu relacionamento não chegou ao ponto em que chegou em um piscar de olhos, e você tem que entender que a terapia também levará algum tempo. Mesmo assim, não há

fórmula infalível. Você e seu marido precisam estar dispostos a trabalhar no que precisa ser melhorado. O que estamos fazendo aqui é aprendendo a nos comunicar, ou seja, falar e ser ouvido. — Eu gostaria que pudéssemos simplesmente retornar a um ponto anterior, quando ainda estávamos bem. — Vamos lá, Rebeca. Você acha mesmo que seria a solução? A traição ocorre porque falta algo. Vocês não podem tapar o sol com uma peneira, deletar o que aconteceu. — “Abençoados são os esquecidos”, certo? — contestei, sem olhá-la. — Até Nietzsche erra, Rebeca. — ela me ofereceu um meio sorriso. — Você nunca viu o filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”? Quando você esquece, você está fadado a cometer os mesmos erros. A intenção de nossa terapia é aprendermos com eles, evitando que voltem a se repetir. Suspirei pesadamente, mas concordei. — Está vendo o problema? Você está concordando, mas é perceptível que em seu interior você ainda tem dúvidas. Você precisa ser clara, especialmente com seu marido, e dizer o que pensa. Muitos relacionamentos falham porque ambos querem que o parceiro entenda o que não está sendo dito, que leiam seus pensamentos. Não é assim que funciona. É muito mais fácil explicar o que está sentindo, dizer o que quer, do que esperar que o outro

crie superpoderes. — Eu não sei mais o que sinto, Márcia. Como posso explicar meus sentimentos para alguém, se nem eu os entendo? — O que você não sabe? Se ainda ama Henrique? Quando deixou de amá-lo? — Eu não quero que nos separemos... Mas tampouco quero continuar como estávamos. Fiz uma pausa, tentando ordenar meus pensamentos e explicá-los claramente, como ela pedira. A terapeuta aguardou, com um olhar paciente. — O homem com quem o traí... Eu não o amava, eu não o amo. Porém, ele representava algo, sabe? Ele me lembrava Henrique quando começamos a namorar. Porque ele realmente me via, me desejava, me ouvia... Tudo era novo e empolgante. Mas não era sobre ele. Era sobre mim, o que eu sentia falta, e o que ele evocava em mim, se é que isso faz sentido. — Faz perfeito sentido. E o melhor: É algo que podemos trabalhar em sessões conjuntas. Você pode externar essas coisas que diz ter sentido falta, os pequenos motivos que causaram o afastamento de vocês e, consequentemente, levaram à traição. — Mas... As palavras ainda estavam presas em minha garganta em uma mistura confusa e nauseante. Meu coração batia acelerado com a expectativa e a

ansiedade, a vontade de lançar um milhão de frases, como um caçador lançando flechas, e tentar colocar em palavras aqueles sentimentos até que eles fizessem sentido, até que ela entendesse, até que pudesse me ajudar. Entretanto, eu não sabia se podia ser ajudada. A traição não fora um ato físico impulsivo e impensado, eu percebia cada vez mais isso. Ela representava um milhão de coisas, coisas com as quais eu não conseguia lidar. Se originalmente eu acreditara que tudo fora causado por uma ruptura entre meu marido e eu, eu estivera enganado. Não era algo tão superficial e, talvez por isso mesmo, me consumisse daquela forma e parecesse tão dolorosamente difícil de consertar; talvez, inclusive, fosse exatamente por isso que eu não tivesse conseguido calar e viver com aquelas mentiras — o problema tinha raízes mais profundas e ignorá-las era exatamente o que estava nos dilacerando. Porque no quebra-cabeças que nossa vida se tornou, eu sentia que uma parte crucial faltava, e nem Henrique, Márcia ou eu poderíamos solucionar aquela situação por completo. Meu maior temor crescia a cada dia: Talvez uma parte de nós houvesse se perdido para sempre.

10 Sessão individual

• Henrique •

Nunca pestanejei em me referir à Rebeca como o amor de minha vida. Nosso relacionamento era usado como modelo para nossos amigos, e eu tinha certeza de que éramos o mais perto da perfeição que alguém poderia chegar. Agora, era difícil aceitar os fatos. Como o amor de sua vida poderia machucá-lo tão profundamente? O amor deveria doer desta maneira? Se alguém era capaz de te ferir de forma tão inconsiderada, aquela pessoa era digna dos sentimentos que você devotava cegamente a ela? Como você seria capaz de reconstruir uma pedra depois que ela já virou areia? Olhando em retrospecto, é claro que haviam falhas em nossa trajetória. Contudo, por mais que eu pensasse a respeito e me debatesse nos corredores de minha memória, eu não conseguia encontrar algo que justificasse uma

traição. Podíamos não ser imbatíveis, mas éramos, no mínimo, bons o suficiente. Quando foi que bom o suficiente deixou de ser suficiente? Simplesmente não fazia sentido. Eu via casais que brigavam, gritos estridentes, palavras afiadas, dores que se estendiam por anos e anos. E ainda assim, de alguma forma, eles conseguiam continuar. Talvez não fosse o ideal, talvez não fosse saudável, mas mesmo assim eles seguiam em frente, se mantinham juntos contra tormentas que talvez fizesse melhor se os desmanchassem. Como podíamos ser tão frágeis de deixar-nos derrotar por pequenas mentiras e relacionamentos triviais, que nunca significaram nada? Em parte, esta era a questão. Se não houvessem significado nada, por que minha esposa arriscaria nossa vida, nossa família, por algo tão leviano? Eu não conseguia pensar em um universo onde uma pessoa, por mais atraente que fosse, valesse perder a alternativa — um casamento duradouro, uma parceria que poderia durar uma vida, amor. Naquela noite, arrastei-me até a minha primeira sessão individual. Márcia estivera com minha esposa no dia anterior, eu saberia mesmo que não tivéssemos marcado nossas sessões juntos, pois ela voltara para casa estranha. Pela primeira vez, não estava lutando para voltarmos ao normal, sequer tentara dirigir-me a palavra. Ela ficara no quarto, sozinha. Pela manhã antes de sair

para o trabalho, seu olhar estava distante, pensamentos e confusões evidentes pintando seu semblante. Minha língua coçou para perguntar como fora sua sessão, mas parte de mim sentia que isso seria ceder o poder, e eu já sentia que perdera demais naquela história toda. Por isso, guardei minha curiosidade junto com todas as outras dúvidas e fui para o trabalho, tentando não pensar em nada daquilo até a hora da terapia, naquela mesma noite. A verdade é que a terapia fora ideia de Rebeca. Eu concordara, porque estávamos em um beco sem-saída e eu não sabia o que fazer para sairmos da pausa em que estivemos desde a confissão que nos dilacerara. Mas a mera ideia de fazer terapia me atingia como uma foice. Porque ninguém vai à terapia de casal quando o relacionamento vai bem, e ninguém gosta de admitir que não consegue lidar com seus problemas conjugais. Há algo sobre nós, seres humanos, sempre competindo para mostrarmos ser os melhores, mesmo quando não somos. Nossa sociedade nos cria para escondermos falhas ao invés de admiti-las, e talvez este seja o grande problema, porque nos impede de pedir ajuda mesmo quando estamos em mar aberto, à deriva. — Como tem passado, Henrique? — Noites em claro e uma névoa de confusão que jamais deixa minha mente. — admiti os fatos. — Sobre o que você se sente confuso? A situação em geral? Seus

sentimentos? — Acho que um pouco de tudo. — empertiguei-me, desconfortável, mas as palavras vinham com facilidade, como uma avalanche que não podia ser contida. — Escrevi um pouco no diário, tentando ordenar o caos, mas sinto que isso só levantou mais perguntas em minha mente. Quanto mais eu penso, menos eu entendo. — Henrique — Márcia adotara um olhar mais sério que o de costume, então redobrei minha atenção —, preciso fazer uma pergunta, que você deve responder com sinceridade, pois será essencial para nossas próximas sessões. — Claro. — concordei, apesar do nervosismo. — Você consegue, honestamente, ainda ver um futuro para você e Rebeca? Você sente que há algo no qual possamos trabalhar, que fará com que vocês consigam um recomeço? A pergunta atingiu-me como um relâmpago. Acho que até aquele exato momento, eu esperava que ela fosse capaz de definir isso, como um médico que dá um diagnóstico, ela nos diria se tínhamos ou não solução. Inalei o ar com voracidade, então disse a verdade: — Eu espero que sim, mas eu temo que não. Se há algo que eu posso lhe dizer, genuinamente, é que eu não faço a menor ideia. Ela meneou a cabeça em concordância, como se entendesse meu dilema. — Você ainda a ama?

— Até algum tempo atrás, eu lhe responderia que ela era o amor da minha vida. Hoje, porém, o amor que eu sentia não parece o mesmo. — Você disse que normalmente responderia que ela era o amor da sua vida. Quando ela deixou de sê-lo? — Ela não deixou. — minha própria rapidez em responder surpreendeume. — Quero dizer... As coisas estão confusas, o sentimento está diferente e eu não sei como amá-la da forma como estamos, mas ainda acredito que a amo. Este é o problema. Porque amá-la dói feito o inferno. Cada pensamento sobre ela está envenenado e todas as lembranças felizes foram contaminadas. Ainda assim, eu não estou pronto para que tudo termine. Eu tenho certeza que a amo, Márcia, porque tudo seria muito mais fácil se eu não amasse tanto, se eu pudesse apenas empacotar minhas roupas e meu orgulho e sair de cena. Suspiro, frustrado com meus próprios pensamentos conflitantes, mas tento concluir: — O que quero dizer é: Uma parte de mim, talvez a parte dominante até, ainda acha que ela é o amor de minha vida. Mas eu não sei mais como amá-la, porque isto não significa mais o que costumava significar, e é exatamente por isso que tudo está tão embaralhado. Os lábios de Márcia se curvaram um pouco, em um sorriso quase imperceptível, como se a minha resposta fosse a ideal, exatamente o que ela queria ouvir.

Para mim, não passava de uma constatação amarga, um lembrete de que tudo havia mudado e, se eu pretendia sobreviver à mudança, deveria buscar uma forma de me adaptar à nova realidade.

11 Sessão conjunta

• Rebeca •

Na sexta-feira, cheguei mais uma vez sozinha ao consultório de Márcia. Achei que Henrique estaria esperando, visto que o ensaio fotográfico no qual estive trabalhando se estendeu um pouco mais do que o pretendido, mas dei de cara com a portaria vazia. Sentei-me em um dos sofás da recepção para esperá-lo. Conforme os minutos passavam, uma forte sensação e déjà vu começava a se apoderar de mim. Afinal, não era nenhuma surpresa meu marido se atrasar para compromissos. Eu só esperava que desta vez o silêncio não falasse por ele e que, caso não fosse comparecer, ele tivesse pelo menos o bom-senso de me avisar. Porém, quando deu nosso horário, Márcia abriu a porta da frente com um sorriso, mas logo sua expressão franziu-se para mim. — Onde está o Henrique? — Atrasado, acho. — dei de ombros com um suspiro.

Ela me encarou por um momento, pensativa, mas enfim estendeu um braço, chamando-me para entrar. — Venha, vamos conversando enquanto isso... Se puder mandar uma mensagem para ele, diga para que entre quando chegar. Concordei fracamente, mas o meu interior já fora encoberto por nuvens carregadas de uma chuva ácida; decepção. Ainda assim, mandei a mensagem assim que me sentei no sofá do consultório, assistida atentamente por Márcia. — Você parece cansada, Rebeca. Por uma fração de segundos, o instinto de mentir foi grande. Eu me acostumara tanto a encobrir as faltas de Henrique, fosse para nossos amigos e familiares, fosse para mim mesma em meus próprios pensamentos. Dei tantas desculpas para justificar seu comportamento inconsiderado, mas fui a única que me desculpei. Quem sabe se eu tivesse lhe confrontado, as coisas tivessem mudado? Como um vulcão entrando em erupção, respondi: — É o que sempre acontece. Ele se atrasa, ele falta, mas nunca se incomoda de sequer passar uma mensagem para justificar. A princípio eu me convenci de um milhão de coisas para aliviar a situação, sabe? “Ele deve estar tão tumultuado no trabalho”, “Acho que ele comentou mesmo que tinha um prazo apertado”, “O celular deve ter descarregado”, “Deve estar sem sinal”. Só que aí, como eu aceitava, ele nunca se preocupou ou pediu perdão pelas vezes que me deixou plantada. Eu fingi que tudo bem, que não

importava... E depois simplesmente desisti. Quando marcávamos, eu já esperava que ele não fosse aparecer ou que fosse se atrasar. O comportamento que eu tanto detestava se tornou padrão. — Isto é um problema comum. Muitas vezes é mais fácil desistir do que causar um tumultuo. Mas você não pode mudar nada, se continuar estagnado no mesmo lugar. — Acho que... Eu faria as coisas de outra forma e, por isso, acabo esperando que os outros façam por mim exatamente o que eu faria. — Sim, a maioria das pessoas tem uma ideia da pessoa perfeita na sua cabeça, mas o engraçado é que esta ideia é apenas uma versão melhorada delas próprias. A ideia que passamos a vida namorando não é uma pessoa real, porque não existe uma pessoa sem defeitos. É claro, isso não significa “jogue a toalha e se contente com menos do que merece”. Todos nós podemos achar parceiros que nos respeitem e que nos ame, mas precisaremos estar sempre trabalhando juntos para evoluirmos. — A gente acha que é o fim, não é? Todas as ficções sempre terminam com o final feliz. O casal fica junto no final. “Viveram felizes para sempre”. Acho que a gente acaba acreditando que encontrar a pessoa certa é a linha de chegada, então, se encontramos, não sabemos bem como prosseguir. — Quando na verdade, encontrar a pessoa é apenas a largada. — Márcia completou, satisfeita. — Toda a corrida que vem depois é o que define

e molda nosso relacionamento, é o que constrói a resistência e a força. O final feliz é olhar para trás um dia e ver que tudo valeu a pena. — E o que eu faço quando no meio dessa corrida eu perco o ar? Quando não sei onde devo virar? Quando minhas pernas estão cansadas? — Rebeca, eu vou voltar a insistir nisso: Você e Henrique precisam aprender a se comunicar. Mesmo quando vocês se falam, não estão estabelecendo uma comunicação; agora, provavelmente, menos ainda. Quando um falar, não precisa ser aos gritos. Quando o outro falar, não tem que ser para atacar ou defender. Vocês têm que escutar, tentar entender o quê o seu parceiro está falando, porque ele está se sentindo daquela forma. Uma batida na porta e, em seguida, o rosto de Henrique aparece, desconcertado. — Sinto muito pelo atraso.

12 Sessão conjunta

• Henrique • — Sinto muito pelo atraso. — Sem problemas. — Márcia sorriu, conforme entrei em sua sala e me sentei timidamente ao lado de Rebeca. — Só pedirei que nos avise da próxima vez quando for se atrasar, ou caso não possa comparecer. Concordei, olhando de esguelha para Rebeca, pensando em todas as vezes em que tivemos que desmarcar compromissos por conta de meus horários. — Henrique, hoje eu gostaria de ver você e Rebeca conversarem. — Sobre o quê? — perguntei, sentindo a desconfiança fluir. — O tema não é o mais importante, embora eu considere saudável abordarmos o assunto que nos trouxe aqui. A questão, como eu explicava para Rebeca antes de você chegar, é que vocês precisam reaprender a se comunicar, porque esta parece ser a maior falha, no momento. Afinal, a

comunicação é uma parte muitíssimo importante em qualquer relacionamento, apesar de muitas vezes não conseguirmos estabelecer uma conversa satisfatória. — Certo... — Muito bem. Virem-se, por favor. Preciso que fiquem um de frente para o outro. Isto é importante: Quando um estiver comunicando algo que sente, o outro deve ouvir. Sem distrações, sem ruídos. — Rebeca virou-se para mim, então fiz o mesmo, contrariado, sem querer encará-la. Então, sentime irritado, pois devia ser ela a não conseguir me olhar. — Muito bem. Agora, conversem sobre como se sentiram desde que começamos a terapia, o que vocês sentem falta, o que pode ser melhorado. Henrique, você primeiro. — Por que eu? — resmunguei instintivamente. Márcia lançou-me um olhar que fez com que eu me sentisse uma criança rebelde, mas depois sua expressão se amenizou. — Porque você rebate e defende, exatamente como fez ao lançar essa pergunta. Precisamos mudar isso. — Acho isso estúpido. — comentei, sem olhar para nenhuma delas. — Você precisa elaborar mais. E definir se está falando comigo ou com sua esposa. Palavras pela metade tendem a gerar mais danos do que palavras ofensivas. — Por que estamos aqui, Rebeca? — resmunguei, mais alto, olhando

firmemente nos olhos de minha esposa. — Estamos morando na mesma casa, mas não consigo te olhar, ou falar com você. Uma parte de mim quer voltar ao normal, ao que éramos... E outra só questiona, insistentemente, “por que?”. Eu não posso simplesmente esquecer a forma como você nos machucou. Então você acha que terapia é a solução? Por que não conversou comigo antes de tudo isso acontecer? Teríamos evitado chegar a este ponto! Os olhos dela estavam marejados, mas tentei me agarrar à minha raiva para não me sentir enojado com minhas próprias palavras. — Henrique, você expressou os seus sentimentos, o que é bom. Mas, no futuro, tente não atacar com suas palavras. — Márcia suspirou quase de forma quase inaudível. — Rebeca, você pode responder. Tente não se focar em se defender, apenas comunique o que sente, certo? Rebeca fechou os olhos e exalou, concordando com a cabeça, antes de voltar a me encarar. — Eu não sei o que fazer, Henrique. Eu só sei que não podemos ficar assim para sempre. Eu não quero voltar para como éramos antes, porque o antes foi o que causou o nosso afastamento. — Então o que raios você quer?! — Henrique. — Márcia censurou. — Para começar, que paremos com os bilhetes passivo-agressivo pela casa.

— Isto eu posso até fazer. — cedi, sentindo-a me desarmar. — Mas e depois? — Precisamos encarar a situação. — eu sentia a força que ela fazia para segurar as lágrimas. — Eu te traí. Continuarmos nos ignorando não vai mudar isso... Não vai mudar nada. — O que você sugere, então? — tentei injetar acidez em minhas palavras, mas eu realmente queria ouvir a resposta dela, pois aquilo era o mais próximo de algum progresso que chegamos em dois meses. — Ao meu ver, só temos dois caminhos: Ou nos reencontramos nessa história e saímos mais fortes... Ou tentaremos até não saber mais como, então teremos que admitir derrota. — Vamos começar tentando, então? — perguntei mais baixo, desviando o olhar, pois não queria que ela visse a ponta de esperança em meus olhos. — Acho que sim. — respondeu Rebeca e percebi que ela também tentava conter o sorriso que transparecia em sua voz.

13 O diário de Henrique

• 2ª entrada •

Não existe nada mais deprimente do que sexo pós-traição. Há quem vá tentar te consolar, dizer que a reconciliação quase vale a briga... Contudo, no meu caso, a reconciliação sequer tinha sido consolidada ainda. Rebeca foi a primeira e única mulher com quem me relacionei. É engraçado como, na época em que ficamos juntos, mesmo sabendo que eu não era o primeiro dela, aquilo não importava. Não era sobre os números, era sobre o contexto. Alguém que viera antes de mim não me fazia sentir ameaçado. Nunca tive nenhuma insegurança sobre ser bom o suficiente, ou competir com meu antecessor. Mas o jogo agora era completamente diferente. Eu não fui o suficiente para ela. Emocional ou fisicamente, não

importava. Eu apenas não fui o suficiente para fazê-la ficar. Mais uma vez as perguntas me inundaram: Como eu deveria agir? O que eu deveria temer? Como era o outro cara e o que ele fez? Ele sabia como não precisar fazê-la fingir? Ele dizia as coisas certas, nos momentos certos, ou ele a deixava totalmente sem fala? Ele era maior, ou simplesmente melhor? Ele era mais forte, mais carinhoso, mais agressivo, mais atencioso? Ele era parecido comigo? Ou eu deveria tentar ser mais parecido com ele? Mas, então, se eu me parecesse com ele, o que isso significaria? Ela se lembraria dele, se nos parecêssemos mais? Ou ela nos compararia se fossemos diferentes? O mundo inteiro deve ter parado naquela noite, pois não havia nenhum movimento fora de nosso quarto, nenhum som. Era a primeira vez que eu realmente entrara naquele cômodo desde que minha esposa revelara a verdade. A janela aberta deixava que as luzes da cidade abaixo de nós penetrassem apenas o necessário para que pudéssemos evitar que víssemos mais do que precisávamos, que enxergássemos o que queríamos ignorar. Todas as coisas que não dissemos e que queríamos dizer nos cercavam, mas não conseguíamos falar nada. Apenas nos aproximamos e nos beijamos, em um misto de alívio e aflição, pois queríamos que aquele momento tenso entre nós acabasse, estávamos desesperados para voltar ao normal... Mas acho que, em parte, também queríamos ficar presos naquela fração de tempo.

Porém, os lábios dela tinham o gosto de sua culpa. Eu posso ter deixado os sinais óbvios passarem despercebido, mas eu ainda a conhecia bem demais. Sentia suas mãos percorrerem meu corpo na tentativa de desviar meus pensamentos por tempo o suficiente. Eu tentei o meu melhor para prestar atenção nela, tentei analisar cada uma de suas reações, tentando diferir as sensações genuínas das automáticas, de forma a fazer o meu melhor. Porque o sexo não era mais um ato íntimo entre Rebeca e eu. Fisicamente, sim, éramos nós dois ali. Mas havia um homem sem rosto e sem voz em meus pensamentos, questionando cada passo que eu dava. E se eu estava pensando nele, como ela poderia não estar?

14 O diário de Rebeca

• 2ª entrada •

Conhecer alguém bem demais é uma faca de dois gumes. Eu, por exemplo, costumava saber muito bem onde estava a mente de Henrique; o tempo inteiro, a cada segundo. Mas quando transamos pela primeira vez após a minha revelação... Os pensamentos de meu marido eram quase uma formação sólida, junto conosco naquele quarto. Por um lado, foi a primeira vez em muito tempo — tempo demais — em que ele realmente prestou atenção em mim. Não havia nada de mecânico ou automático. Todas as emoções eram translúcidas e cada passo era incerto, como se fôssemos novamente adolescentes, envoltos na expectativa de nossas descobertas. Porque estávamos na bifurcação, e ele não tinha certeza sobre qual caminho seguir: O caminho conhecido, de tudo o que ele aprendera sobre mim e sobre como tocar os pontos certos nos momentos certos, ou o de tentar o novo, o que o outro poderia ter feito.

Este era o problema. A cada colisão de nossas peles, eu sabia que ele enxergava marcas invisíveis. Havia vozes entre as nossas, como uma ligação cruzada. É incrível como duas pessoas que se conhecem tão bem, podem deixar de se conhecer completamente em uma fração de instantes. Acredito veementemente que eu sequer teria pensado nele, não fossem os questionamentos de meu marido, tão visíveis quanto espelhos refletindo a luz do sol. Era impossível ignorar a dor das incertezas que ele tentava esconder e, assim, eu era forçada a lembrar os motivos das mesmas. Céus, eu nunca quis fazer aqueles paralelos! Mas é impossível despensar um pensamento, quando tudo ao seu redor te conduz a ele. Por isso, naquela noite estive em flashes. Ora em nosso quarto às escuras, com meu marido e o ar sufocante de nossos temores; ora no apartamento iluminado do homem que me extasiou de uma maneira, apenas para me destruir de outra. Nunca acreditei em comparações. Uma vez que todos são diferentes, os traços deixados pelos relacionamentos, sejam físicos ou emocionais, também irão ser distintos. Henrique era algo conhecido e confortável, de muitas formas melhor do que qualquer outro, pela intimidade, convivência e sentimento que existia entre nós. Mas o homem com quem o traí, no momento de nossa relação, também tinha características que atraíram o lado de mim que estava carente; porque a

desvantagem da rotina, é que anula o elemento elétrico e excitante das descobertas. Você pode inovar, descobrir novas facetas do seu parceiro... Mas você não pode redescobrir o que já sabe. Você jamais recupera aqueles primeiros momentos trêmulos e incertos, nos quais as reações delatam seus erros e acertos e você traça o mapa mental daquela pessoa, tentando decorar cada detalhe como um plano complexo e importante, de forma a sempre levála às alturas. Cada um dos relacionamentos tinha características únicas, que o outro não podia ter, pois eram diretamente inversas. E quanto mais eu pensava a respeito, menos eu tinha certeza sobre qual eu preferia.

15 Oito meses atrás

• Rebeca • É nosso aniversário de doze anos juntos, ou seis anos de casamento. Quando estávamos tentando decidir a data, Henrique ainda tinha o brilho do romance ao direcionar seu olhar para mim. Agora, porém, ele mal se lembra dos nossos aniversários. Algumas semanas atrás, perguntei se ele iria querer sair para jantar, ou fazer algo diferente, e fui surpreendida com um “por que?”, sem que ele sequer levantasse os olhos do notebook. Engoli em seco a sensação amarga em minha garganta e murmurei, quase desistindo, que era nosso aniversário. Ele levantou os olhos para mim e riu, mas não pediu desculpas... Acho que ele nem percebeu que aquilo me feriu mais do que o seu esquecimento. Ele então respondeu para que eu marcasse uma reserva em nosso restaurante favorito. Eu já não tinha qualquer vontade de comemorar quando peguei o telefone, mas fiz a reserva mesmo assim. É difícil sufocar a esperança quando você espera ardentemente por uma mudança.

Não falei nada nos dias que se seguiram. Embora eu soubesse que isso provavelmente o faria esquecer a data mais uma vez, eu precisava ter certeza de seu nível de comprometimento. Porque eu não me importava tanto de lembrá-lo uma vez, mas ele poderia no mínimo ter tido o bom-senso de anotar em sua agenda. Nem mesmo fiquei surpresa quando, após quatro ligações, ele finalmente atendeu. Perguntei se nos encontraríamos no restaurante e ele, com a voz culpada pelo esquecimento, anunciou que não conseguiria chegar. Menti, mais uma vez engolindo o nó em minha garganta, e disse que ligaria para desmarcar. Antes de ligar para desmarcar, liguei para Regina. Foi melhor assim, porque, caso contrário, teria quebrado aos soluços com quem me atendesse no restaurante. Após me acalmar, liguei para desfazer a reserva e, pouco após desligar, Regina batia em minha porta, seguida por duas de nossas melhores amigas. À essa altura, minha maquiagem estava manchada e vê-las bem-arrumadas apenas me fez sentir pior. — Beca, você não pode continuar assim. — Regina abaixou-se à minha frente. — Não é saudável que Henrique fique te dando esses bolos e você só chore. Venha, saia conosco. Você está arrumada, só precisamos retocar essa maquiagem. — Você acha mesmo que estou com vontade de festejar?

— Não. E é por isso mesmo que você vai. Entregar-se ao choro não vai te fazer sentir melhor... Saindo conosco, pelo menos você se distrairá. — Meninas, por favor... — implorei à Clara e Natasha, como se elas pudessem mudar as ideias de minha prima cabeça-dura. — Ela tem razão, Beca. — Clara me olhou como se se desculpasse. — Se você se sentir pior, prometemos que não insistiremos mais. — Natasha ofereceu e aquela proposta me fez soltar uma risada curta e amargurada. — Como se eu pudesse me sentir pior... Só de dizer aquilo, percebi que elas tinham razão. Se eu não podia piorar, por que não tentar me sentir melhor? •••

Naquela primeira noite, saí inebriada por minhas tristezas. Havia um sentimento que beirava a vingança, algo tóxico queimando meu interior. Entreguei-me à pista de dança, onde a música gritava mais alto do que os meus pensamentos e toda a energia ruim em meu interior era liberada através dos meus movimentos. Não demorou até alguém se aproximar de mim e começar a conversar. Eu ainda estava mergulhada na fumaça de meus pensamentos e as luzes da pista de dança faziam tudo aquilo parecer um sonho distante. Flertei de volta,

pois foi bom sentir-me desejada após uma rejeição. Mas após um pouco de conversa, me afastei do homem e voltei para a dança e para as minhas amigas. Foi algo bobo e sem significado, uma validação que fez bem à minha autoestima. Mas depois disso, a cada vez que Henrique falhava em notar-me, eu sentia a necessidade de voltar a sair com minhas amigas e buscar a atenção que me faltava em casa, na pista de dança.

•••

Eu já estava saindo com as minhas amigas todos os finais de semana, há quase um mês, quando o conheci. Havia algo diferente nele, algo por trás de sua íris escura. Quando começamos a conversar, ele disse que já me havia me visto lá antes e que quase foi falar comigo, mas acabou perdendo a coragem. Quanto mais conversamos, mais eu sinto empatia. Não tocamos em assuntos profundos e minto meu nome, tendo certeza que ele também está mentindo o dele. É fácil criar um universo paralelo com alguém que, assim como você, quer fugir e não se importa para onde. A forma como ele me olha, com o desejo e a curiosidade estampada em cada linha de seu rosto me atraí, pois me lembra os olhares que um dia

Henrique me lançava. Posso estar falando as coisas mais idiotas e superficiais, mas aquele homem se pendura em minhas palavras como se eu estivesse prestes a fazer uma descoberta científica. Rio do humor dele, mesmo quando suas piadas não são tão engraçadas, simplesmente porque me sinto mais leve ao lado dele. Não estou forçando nada, apenas estou sentindo tudo. Passamos a noite conversando no bar, em uma proximidade que não respeita espaço, porque a música nos dá uma desculpa para não podermos manter uma distância maior. No fim da noite, procuro minhas amigas e digo que vou embora. Não digo que irei acompanhada, mas vejo em seus olhares que elas sabem e, com apenas olhares, me avisam para ter cuidado, me perguntam se tenham certeza. Enquanto volto até ele, vou decifrando as palavras mudas de minhas amigas e finalmente começo a duvidar, começo a entender o que realmente estou prestes a fazer. Pela primeira vez me pergunto se ainda amo Henrique e, pela primeira vez, não sei responder. Sinto que estamos distantes demais e que não há uma ponte que possa nos ligar novamente. Apesar de tudo, ainda sinto que o amo. Quando entro no táxi, prestes a ir para a casa daquele desconhecido, estou quieta. Ele me olha, mas não retribuo. Ele segura minha mão e não tento recuar, mas é naquele momento que sinto a culpa começar a invadir-me. Percebo que não é o que quero, que é a decisão errada e estou prestes a

começar a surtar e a chorar, no táxi, com um cara qualquer, entre nomes falsos e palavras vazias. Mais uma vez, ele me enxerga da forma que tanto sinto falta. Percebo a expressão dele abrandar e descer do desejo para a compreensão, mesmo que eu não tenha externado meus pensamentos. Quando o taxista anuncia que chegamos, ele paga muito além da taxa que é cobrada e bate no ombro do homem, avisando: — Leva a moça para casa em segurança. — então, ele se vira para mim com um meio sorriso, beija-me o mais próximo aos lábios sem tocá-los e diz: —Foi um prazer fazê-la sorrir por alguns momentos. Espero vê-la de novo. Um pequeno sorriso abre em meus lábios e, sem sequer pensar no que estou dizendo, respondo: — Eu também.

16 Sete meses atrás

• Henrique • Percebo algo mudar, mas não sei apontar o quê. Há algo diferente, algo parece errado... Mas tudo parece normal, tudo parece igual. Rebeca está melhor do que nunca, como se seu sangue tivesse sido substituído por energético. Ela tem pego vários trabalhos, vai no salão toda semana, inventa novas comidas e ainda limpa a casa inteira todas as noites. Eu, por outro lado, tenho que dedicar tudo ao trabalho. Estou buscando uma promoção, enquanto estamos passando por cortes de funcionários. Agora seria um péssimo momento para perder o emprego. Faz uns seis meses, Rebeca mencionou filhos. Concordamos que é cedo, que precisamos de um pouco mais de estabilidade, então é exatamente por isso que me dedico, e amo o quanto ela tem me apoiado nas últimas semanas. Não quero passar a velhice me preocupando com trabalho, quero poder aproveitar

com ela na praia, como fazíamos anos atrás. Quero que sejamos aqueles velhinhos de passos lentos e sorrisos idênticos, caminhando de mãos dadas e fazendo os jovens sorrirem ao passar por eles. É nisso que tento focar: Em nossas futuras expressões enrugadas e filhos hipotéticos. Tento ignorar a sensação incômoda de que algo está diferente, está estranho, e apenas aproveitar o amor de minha esposa e trabalhar pelo nosso futuro perfeito.

17 Quatro meses atrás

• Rebeca (e suas amigas) • Quando tudo finalmente tomou o rumo que há tanto tempo ameaçava tomar, senti o chão ser removido debaixo dos meus pés. Clara e Natasha estavam a caminho, e Regina estava ao meu lado, conforme eu chorava compulsivamente em seu sofá, após nossos maridos terem saído. Ela alisava meus cabelos, minha cabeça em seu colo. Sei que tentava me consolar e que estava em silêncio porque não conseguia achar as palavras certas. Mas eu sabia que, em parte, ela não achava aquelas palavras porque elas não existiam. O que ninguém entenderia, o que eu não conseguia me forçar a contar, é que não fora um erro isolado. E que, naquele momento, o que acentuava a dor era o prazer, mais do que o arrependimento. Eu poderia explicar um deslize, se eu tivesse parado, ido embora, voltado para casa... Mas como eu justificaria, mesmo para mim, o fato de ter continuado aquele ciclo insano?

Pior ainda, eu nem mesmo sabia se estava preparada para romper aquilo e dar um fim à história. Talvez, pensei com pesar, era exatamente por isso que eu ainda não havia contado a verdade para Henrique. Mesmo que eu não quisesse admitir, não era apenas o meu casamento que eu estava com medo de terminar... Era, também, o meu caso extraconjugal; ou pelo menos, o que ele representava.

18 Três meses atrás

• Henrique (e seus amigos) •

Os olhos inchados de Rebeca não me passam despercebidos. É engraçado, acontece como perceber que não se está prestando atenção à leitura. De repente, sinto um afastamento estranho entre nós. Sinto-me terrivelmente culpado. Sei que estive desmarcando compromissos nos últimos tempos e que não estou dando a atenção necessária a ela. Um frio sobe por minha garganta quando percebo que não me lembro qual foi a última coisa romântica que fizemos — encontros, viagens, surpresas... até o sexo é automático e esporádico nos últimos sei-lá-quanto-tempo. Quando saio com meus amigos na sexta-feira à noite, pergunto se eles sentem isso. Diogo começou a namorar Clara há pouco tempo, por intermédio meu e de Rebeca, então é claro que as coisas ainda não esfriaram. Lourenço, porém, lembra-me o que eu sempre soube: Rebeca e eu somos o casal perfeito,

um conto-de-fadas da vida real. Quando os outros vão embora e somos apenas Lourenço e eu, pergunto se ele não se sente mal quando nossas esposas saem nos finais de semana, ao que ele dá um peteleco em minha cabeça. — Seu babacão, o que você acha que estamos fazendo agora mesmo? Estamos saindo no fim de semana. — concordo e ele bebe um gole de sua cerveja. — Além disso, estamos tentando engravidar, então sabe-se lá quando sairemos de novo. Deixe-as aproveitar e vamos aproveitar também! — Sim, eu concordo até aí, mas... Você alguma vez teve medo que Regina te traísse? Lourenço faz a cara mais confusa que já vi em minha vida. — É claro que tenho medo, eu a amo. Mas confio nela, e sei que ela confia em mim. De onde estão vindo todas essas perguntas, cara? — Sei lá... Rebeca tem andado estranha. Afastada, sabe? — Bom, você vive dando bolos nela. — lanço um olhar indagativo e fulminante para ele, mas ele dá de ombros. — Nossas esposas são melhores amigas, elas conversam. E veja bem: Eu sei que isso é um problema para Rebeca e você não sabe. Tem algo errado aí. — Devo confrontá-la? — Claro que não! Eu já disse, você e Rebeca são o casal modelo. Todos nós seguimos os passos de vocês. É a coisa mais filme água-com-açúcar do

mundo. É o clichê que inspira as novelas. Vocês se conheceram na escola, vocês nunca brigam. É claro que ela vai ficar chateada se você não der atenção, mas talvez ela só esteja tentando pagar na mesma moeda, se afastando para te fazer provar do seu veneno. Se eu acredito que algum casal pode superar algo, definitivamente são vocês dois. Suspiro, confortado com as palavras. — É, você tem razão. Não deve ser nada grave. Vou tentar focar menos no trabalho e mais nela.

19 O diário de Henrique

• 3ª entrada • Quando Rebeca aceitou namorar comigo, lembro de sentir a explosão da alegria em meu coração adolescente. Saímos correndo e rindo até a loja mais próxima para comprar alianças de compromisso, e ela não parava de dizer “você é maluco, não precisamos ver isso agora”. Todas as manhãs, quando eu acordava e via aquele anel prateado em meu dedo eu sorria, porque tinha a certeza de que era verdade. A garota que fora maravilhosa por tanto tempo em minha mente, era ainda mais perfeita na vida real, e estávamos juntos. Lembro-me, ainda, de uma ocasião em que o ex-namorado-estudante-deDireito de Rebeca tentou falar com ela. Ele vinha ligando há algum tempo, mas ela ignorava as ligações. Então, certa tarde, enquanto estávamos na sala da casa dela, encolhidos no sofá sob um cobertor, com um balde de pipoca e um filme na TV, a campainha tocou e ela foi atender. Era ele. Meu coração parou por um segundo, porque eu estivera tão fascinado pelo fato de estar com ela,

que sequer tive coragem de pensar em perdê-la até então. Mas então entreouvi-a dizer as palavras mais lindas que eu ouvira até ali: “Obrigada por ter sido um babaca, você fez eu encontrar o cara certo. Até nunca mais.” Eu era o cara certo. Agarrei-me àquelas palavras e deixei-as ecoar em minha mente mesmo após ela bater a porta e voltar para os meus braços. Eu ainda sorria e ela perguntou o motivo, mas meu interior estava derretido demais para explicar, então apenas beijei sua testa com ternura, enquanto ela dava de ombros e dava play novamente no filme. Não prestei atenção no restante do filme, mas a cada pequena conquista que se seguiu, fui tendo mais e mais certeza de que ela dissera a verdade. Eu era o cara certo, ela era a mulher certa. Éramos a combinação perfeita. Agora, mais de uma década depois, estou pensando naquele dia, debatendo-me mais uma vez para entender como a combinação perfeita deu errado, quando deixamos de ser a pessoa certa um do outro. E se as coisas vão de mal à pior, se realmente não somos mais certos um para o outro... Por que é que deixá-la é a escolha que parece tão errada?

20 O diário de Rebeca

• 3ª entrada • Cristina era uma garota que estudou na mesma sala que Henrique e eu, durante todo o ensino médio. Após as férias do meio do ano, ela não voltou para as aulas e recebemos a notícia de que ela havia se suicidado. Lembro-me dela, embora mal tenhamos trocado dez palavras em todo o nosso tempo de convivência. Ela tinha uma tristeza tão profunda em seu olhar, que parecia estar entalhada em sua alma. Mas nem eu, nem nenhum de nossos colegas de classe jamais lhe perguntou o motivo, ou pelo menos tentou fazê-la sorrir. Quando eu soube do suicídio, na adolescência, achei terrível, mas por todos os motivos errados. “Ela era tão jovem, tinha a vida inteira pela frente”, “O que poderia ser tão terrível na vida dela ao ponto de fazê-la desistir?”. Nunca pensei que eu fosse parte do problema, até anos mais tarde. Talvez Cristina não tivesse se matado por querer morrer. Talvez apenas

ninguém tenha lhe mostrado motivos o suficiente para continuar, para tentar viver. A solidão, descobri quando adulta, era uma força tão opressora que doía em partes que eu nem sabia possuir. Lidar com um problema em silêncio dá a ele uma força tremenda, faz com que ele se alimente de cada medo que vive nos cantos obscuros de sua mente, até que ele se torna mais forte do que você. Não vou comparar minha traição com o suicídio de Cristina, porque não acho que seria justo. Mas acredito que entendo melhor agora sobre cruzar linhas, implorando por atenção, implorando que alguém nos ajude e nos salve de nós mesmos. Quando comecei a sair, das primeiras vezes em que traí Henrique... Doía em mim. Eu me machucava com aqueles atos, mas não podia parar. Porque ele não notava, não lutava de volta, e eu precisava de algo; eu precisava saber que ele ainda estava ali, que eu ainda estava ali. Eu precisava que ele me notasse e demonstrasse que eu era importante para ele, que me perder seria doloroso. A solidão potencializa os medos e nos faz cruzar limites. Às vezes até sabemos que estamos dando um passo errado, que pode não ter volta... Mas, às vezes, preferimos a dor de perdermos o que estamos arriscando, à certeza de ficar na mesmice que nos levou àquele sofrimento.

21 Segurando firme

• Rebeca •

Ainda estou lembrando de Cristina quando um pensamento me atinge: Naquele momento, percebo que estive me segurando firme ao puro ar. Não há como adiar a queda, pois já estou quase tocando o chão. O homem por quem eu estive lutando, talvez ele nem mesmo exista mais. As pessoas mudam constantemente e, às vezes, mudam demais. Eu amo Henrique. Tenho tanta certeza disso quanto tenho certeza de que existo. Mas o amor, por si próprio, já não é o bastante. Eu contei a verdade para ele, porque não contar parecia errado e destrutivo. Eu falei, porque calar estava me dilacerando, e eu imaginava que sua falta de percepção era pior do que seriam seus gritos. Mas ele nunca gritou. E seu silêncio me machucou mais uma vez. Porque talvez ele simplesmente não se importasse o suficiente para se exaltar, para

lutar por nós. Meu marido me culpou e eu aceitei, porque eu já estava me culpando em silêncio há muito tempo. Eu sabia perfeitamente que o que eu fizera fora errado. Mas um pequeno pedaço de mim ainda gritava em uma voz miúda, que eu demorei a finalmente conseguir escutar. Mesmo que eu tivesse a maior parcela de culpa, eu não era a única errada. O amor, na vida real, não é uma história sobre mocinhos e vilões. E ainda assim, ele não hesitava em apontar o dedo para mim, fazendo-se de vítima e proclamando o quanto sempre me amara. Será que ele sequer pensou onde ele poderia ter errado também? Talvez ele me amasse mesmo... Mas ele já demonstrara que podia me amar à distância. Então, decido partir. Consertar meu casamento talvez não seja a solução; quem sabe, é o problema que esteve me matando todo esse tempo. É comum nos agarrarmos à qualquer coisa que nos faça sentir remotamente menos sozinhos ou mais confortáveis. Porém, muitas vezes não notamos que estamos nos segurando na exta âncora que está nos puxando para baixo. Você pode ter medo do mar, você pode achar que não pode nadar sozinho... Mas você não pode apenas aceitar naufragar sem pelo menos tentar lutar por sua vida.

22 Deixando partir

• Henrique• Além do cartório e da igreja, Rebeca e eu fizemos uma festa de casamento simbólica, com os nossos amigos. Uma reunião a céu aberto e votos escritos por nós mesmos. “Rebeca, você é o amor da minha vida. Algumas pessoas passam uma vida inteira procurando pelo que nós temos, sem nunca encontrar. Elas imploram por um milésimo deste sentimento, escrevem histórias sobre isso, cantam sobre isso, rodam filmes e novelas sobre isso... Elas recorrem à ficção para alcançar um final feliz. Mas eu sou um dos poucos felizardos que conseguiu um ‘viveram felizes para sempre’ na vida real. Porque você é tudo que eu sempre quis, e muito mais. Eu amo cada milímetro de você, desde as coisas que mais me encantam até os seus defeitos... Aliás, incrivelmente, os seus defeitos me fazem ainda amá-la mais, se isso for possível. Eles são a certeza de que isto não é um sonho, é a percepção de que mesmo quando as

coisas não são perfeitas eu continuo a te amar, me renovo para ultrapassar qualquer obstáculo. Por isso, perante aos nossos amigos, mais uma vez eu te prometo o meu amor eterno. Até que a morte nos separe, porque antes dela, nada poderá se interpor entre nós.” Nos últimos tempos, desde que descobri sobre a traição de minha esposa, fiquei em conflito com as palavras que eu proclamara naquele dia. Por um lado, eu sabia que ela também quebrara as suas promessas... Por outro, eu sentia que ainda devia uma chance a ela. Por mais manchado e corrompido que estivessem os meus sentimentos, depois de tudo, ela ainda era a pessoa que eu mais amei, de uma forma que eu nem mesmo sabia que era capaz de amar. Mas depois de nossas tentativas falhas, eu não via como podíamos continuar. O amor não deveria se arrastar como uma promessa que não deve ser quebrada, não deveria ser um fardo que carregamos apenas para honrar palavras ditas em um passado distante, sob circunstâncias totalmente diferentes. Porém, eu suponho que até faça sentido. Jurei amá-la até que a morte nos separasse. E o que é uma traição, senão uma facada mortal ao amor? De fato, amei-a até que sua traição matasse o nosso amor. Não deveria ser assim. De todas as formas que a morte poderia nos separar, eu jamais sequer parei para cogitar que ela seria a assassina, a que carregaria a arma e apontaria em meu peito.

A vida é um daqueles jogos onde cada escolha importa. Você pode escolher o rancor e a dor, porque eles são bem mais fáceis, mas, aí, você não pode esperar que eles te conduzam ao final alegre. Então, às vezes, você tem que fazer a coisa difícil. Mesmo que a vida esteja lhe batendo, você tem que aguentar firme e se desarmar. Porque é claro que as suas cicatrizes te moldarão... Mas elas não precisam te definir. Apenas respire fundo e deixe partir.

•••

Estou prestes a entrar na portaria do prédio, decidido a subir e contar à minha esposa que decidi tentar, tentar de verdade. Porque sempre foi fácil para nós, quando éramos o casal perfeito que todos invejavam, o relacionamento que todos almejavam. Mas podemos ser melhores ainda, porque podemos dar a volta por cima. Podemos ser o casal perfeito com imperfeições, através da felicidade e da tristeza. Porém, antes que eu alcance o elevador, Rebeca está saindo. Em seus olhos vejo um brilho tão triste, que por um segundo acho que ela está refletindo o que senti nos últimos tempos. Quase instintivamente, quero tocar seu rosto e dizer que ficaríamos bem, mesmo que muitas vezes eu mesmo ainda

duvidasse daquilo. Eu quero dizer que tentaremos e não desistiremos tão fácil, porque somos invencíveis e podemos muito mais quando estamos juntos. Mas, então, Rebeca — o amor de minha vida, minha esposa, a mulher que me traiu — abriu a boca e novamente proclamou o inimaginável: — Eu estou partindo. — seus olhos estão marejados, mas vejo a decisão implacável por trás das lágrimas e finalmente noto a mala em sua mão. — De verdade, desta vez. Adeus, Henrique.

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Descobertas Vol. 01 - Desbeije-me - Nina Cardoso

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