Biblioteca das Moças 07 - Por que - Elinor Glyn

344 Pages • 108,166 Words • PDF • 7.3 MB
Uploaded at 2021-09-24 11:12

This document was submitted by our user and they confirm that they have the consent to share it. Assuming that you are writer or own the copyright of this document, report to us by using this DMCA report button.


A fim de salvar seu meio-irmão, Zara aceita o ajuste proposto por seu tio, o rico financista Francis Markrute. Markrute, um homem calculista, vê em Zara a mulher ideal para seu jovem amigo Tristram, lorde Tancred. Tristram se apaixona por Zara à primeira vista, mas o passado, o orgulho e a discórdia semeada por uma antiga namorada, impede que os dois se entendam.

Disponibilização: Marisa Helena Digitalização: Marina Revisão: Bee

Elinor Glyn POR QUÊ? (The reason why)

BIBLIOTECA DAS MOÇAS VOLUME N° 7 Tradução de PAULO DE FREITAS



COMPANHIA EDITORA NACIONAL SÃO PAULO

Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela COMPANHIA EDITORA NACIONAL — São Paulo — que se reserva a propriedade literária desta tradução. Impresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brazil

CAPÍTULO I PROPOSTA ABSURDA

NINGUÉM podia atinar com a nacionalidade do grande financista Francis Markrute. Nacionalizado inglês, o seu todo era de um inglês. De compleição fina e cabelos loiros, possuía uma linha impecável, que os melhores criados jamais poderiam dar-lhe. Trajava-se com aquela inconsciente e peculiar elegância dos londrinos, e a sua voz não traia sotaque especial a despeito de um modo todo particular de falar. Entretanto, Markrute! — tal nome deveria provir de algures. Ninguém sabia nada a seu respeito, a não ser que era fabulosamente rico e há dez anos se fixara em Londres, vindo talvez de Paris, de Berlim ou de Viena. Imediatamente se tornou um dos homens mais poderosos da cidade, e dentro de um ano ou pouco mais se alcandorou à onipotência em certas rodas. Markrute possuía magnífica residência em Park Lane, um dos melhores prédios ali localizados, que se levantava precisamente ao dobrar-se a rua Grosvenor, e onde vivia com um certo recato. Pessoas que tinham vagar para cuidar de outrem — caso raro hoje em dia — notaram que desde quando chegou a Londres jamais ele fez qualquer amizade desvantajosa. Se sucedia cruzar, em seus negócios, com pessoas indesejáveis, depois de tratá-los deixava-as de um modo seco e rude, e nunca lhes frequentava as casas. Aliás as suas relações de amizade eram cuidadosamente escolhidas e mantinha-os para um definido propósito. Uma das suas sentenças prediletas era que "Somente os tolos cavam para as suas próprias necessidades". Neste instante, sentado em sua biblioteca que olha para o parque, e fumando excelente charuto, Markrute aparenta uns quarenta e seis anos ou pouco mais. No entanto, se lhe avaliarmos a idade pelos seus olhos, sagazes como os de uma serpente, podemos dar-lhe dez anos de menos. Na sua frente e defronte da luz, achava-se um rapaz afundado numa

grande poltrona de couro. Quase sempre os visitantes de Francis Markrute, quando se encontravam na biblioteca, se sentavam com o rosto voltado para a luz, ao passo que ele sempre lhe dava as costas. Não havia sombra de duvida quanto à nacionalidade desse visitante. Era um exuberante inglês. Se quiséssemos enviar um espécime da raça à Feira do Mundo com certeza de levantarmos o prêmio não encontraríamos melhor representante. Talvez fosse mais normando do que saxônio, porquanto tinha os cabelos negros, embora os olhos fossem azuis, e todos os traços de sua linhagem se ostentavam tão claramente como os de um vencedor no Derby. Francis Markrute sempre saboreava os seus charutos até o fim, bastando para isso que o charuto lhe agradasse. Entretanto, lorde Tancred — Tristram Lorrimer Guiscard, 24.° barão Tancred, de Wrayth, no Condado de Suffolk — distraidamente atirava o seu na lareira, se estivesse preocupado, por vezes, depois de algumas fumaçadas. Justamente isso é que agora fez, e riu-se com uma pontinha de amargura, quando tornou ao assunto da palestra. — Sim, Francis, meu amigo. Nada mais me resta a fazer aqui, em Londres. Com trinta anos sou forçado a emigrar para o Canadá, pelo menos por algum tempo, e ali erguer o meu rancho. — Por causa da pesada hipoteca sobre Wrayth, não é verdade? — indagou Mr. Markrute, tranquilamente. — Isso mesmo. E também por causa da propriedade do norte. Quando se verificar a partilha, e minha mãe entrar na posse dos seus bens parafernais, este ano, creio que nada me restará, uma vez que aqueles radicais bestas tornaram as coisas tão difíceis… O financista sacudiu a cabeça, e o rapaz prosseguiu: — Meus antepassados "meteram o pau" no que puderam. Não ha muito dinheiro liquido para recebermos e a gente precisa viver… Francis Markrute, com ar pensativo, continuou a puxar fumaçadas do seu charuto. Um minuto depois, observou: — Naturalmente. A questão resume-se em saber quanto vai durar esse estado de coisas. Compreendo o seu embaraço se você conseguir fixar-lhe a

duração. O que me parece desagradável é você assumir esse risco e depois assistir ao gradual desmoronamento de tudo. Já leu o Rolla, de Musset? — A historia daquele rapaz que chegou à sua última noite, e para quem a sua garota era tão carinhosa? Sim. O que tem isso? — Você me faz lembrar Jacques Rolla. — Ora essa! O que se passa comigo não é assim tão mau! — exclamou lorde Tancred, rindo-se — Ainda posso conseguir, aqui, algumas libras, e depois abalar para o Canadá. Palpita-me que lá se possa fazer uma fortuna, mediante o emprego de pequeno capital. Além disso, a vida ao ar livre é simplesmente adorável. Justamente vim procurá-lo esta tarde, de volta da Escócia, para avisá-lo de que pretendo partir em fins de novembro, de sorte que não posso fazer-lhe companhia na caça aos seus faisões no dia 20, para a qual tão gentilmente me convidou. Os olhos do financista estavam semi-cerrados. Quando isso lhe sucedia, alguma coisa de importância lhe preocupava os pensamentos. — Você, Tancred, não é um rapaz viciado. Não é um afeiçoado ao jogo, quer no Jóquei, quer nas cartas. Nem vive a sustentar mulheres de luxo. Para um desportista, é um rapaz ilustrado, e pronunciou um ou dois honestos discursos na Câmara dos lordees. Realmente, é um dos finos ornamentos de sua classe. Causa-me pena vê-lo encerrar, assim, a sua carreira e abalar para as colônias. — Qual! E nem vou encerrar a minha carreira. O que sei é que as coisas aqui me estão cheirando mal. Deixamos a escoria, os mais incapazes e ignorantes com o voto de desempate, e a máquina governamental hoje em dia esmaga qualquer homem. Conservei-me afastado da politica tanto quanto pude, e não me arrependo disso. Francis Markrute levantou-se e cerrou um bocadinho as venezianas, porquanto um miserável sol de setembro cuidava de penetrar no aposento. Se lorde Tancred não estivesse tão preocupado com os seus próprios pensamentos, teria notado a inquietação do seu hóspede. O inglês não era um tolo, mas tinha o pensamento além. Despertou de sua divagação quando aquela voz fria, deliberada, continuou a falar-lhe:

— Tenho uma proposta a fazer-lhe, Tancred, caso lhe convenha aceitála. Talvez não saiba que possuo uma sobrinha. É viúva e, pode-se dizer, atraente. Se você desposá-la, pagarei todas as suas hipotecas e a dotarei quase que com uma fortuna de princesa. — Valha-me Deus! — exclamou lorde Tancred. O financista avermelhou um bocadinho, na altura da testa, e os seus olhos despediram um brilho de aço. Aquela exclamação encerrava um mundo de coisas, o que não o impediu de indagar com toda a delicadeza: — Que ponto de minha proposta o levou a exclamar ˝Valha-me Deus˝? O sangue frio de lorde Tancred jamais o abandonava. — Que ponto? Mas toda a proposta, Francis. Primeiro, casar-me. E casarme com uma desconhecida. Depois, ter as minhas dividas todas pagas, o que é uma coisa sobremodo importante. — Nem por isso. Uma ocorrência das mais comuns. Pense no numero dos seus pares que foram à América pura e simplesmente à cata de esposas. — Mas não se esqueça que alguns deles são uns canalhas de marca! Não pretendo passar por um bom administrador dos meus bens; entretanto, possuo um dos mais antigos nomes e títulos da Inglaterra, e até agora em nossa família não tivemos nenhum canalha ou covarde. Por Deus, Francis, onde você quer chegar? Não me fale mais disso, homem! Não estou morrendo de fome, e se chegar a esse ponto ainda tenho o recurso de poder trabalhar. Mr. Markrute alisava as mãos. Geralmente não perdia a linha por qualquer coisa. — Confesso, foi um erro de minha parte fazer-lhe tal proposta desse modo. Vou ser franco para você. Minha família também é, meu amigo, tão antiga quanto a sua. De todos os meus parentes, minha sobrinha é a única pessoa que me resta no mundo. Gostaria de vê-la casada com um inglês… gostaria que ela o desposasse, com preferência a todos os ingleses, porque eu o aprecio e tenho em elevada estima as qualidades que possui. Creia-me — e Markrute levantou o dedo, como que protestando contra qualquer interrupção — há alguns anos que vivo a estudá-lo, de modo que nada existe

pessoalmente a seu respeito, ou a respeito dos seus negócios, que me seja estranho. lorde Tancred, riu-se. — Markrute, meu velho: somos amigos ha muito tempo, e uma vez que estamos falando nessas coisas de família, devo confessar-lhe que aprecio imenso o seu endemoniado, natural e frio ponto de vista em tudo. Aprecio o seu conhecimento sobre vinhos, charutos e pinturas, e você é o mais interessante dos meus amigos. Mas, palavra de honra, em absoluto desejo sua sobrinha por esposa, se ela seguir o seu exemplo. — Pensa que também ela possua este meu sangue frio? — Sem sombra de dúvida. E isto tudo é simplesmente absurdo. A meu ver, você não pesou sequer uma palavra do que me disse… dessa espécie de piada. — Acaso desde que nos conhecemos, Tancred, já lhe disse eu alguma piada? — perguntou Markrute, com toda a calma. — Não. Nunca. E isso é que acho esquisito. Que diabo realmente você pretende, Francis? — Pretendo o que já lhe disse: pagar-lhe todas as dívidas e dar-lhe uma encantadora e riquíssima esposa. lorde Tancred levantou-se, pôs-se a andar de um lado e de outro no aposento. Ele era um homem perfeitamente normal, impassível e calmo como os de sua raça, disciplinado e deliberado nos momentos de perigo ou de dificuldades, e jamais perdia o domínio de si mesmo como sucedera ao financista. Estava palestrando com um amigo e a ocasião não lhe pareceu propicia para aborrecer-se ou ocultar os seus sentimentos. — O que você me propõe, Francis, é um contra-senso, e não o cometerei. Como sabe, fui um estroina de marca, e já que afirmou estar a par de tudo o que me diz respeito, provavelmente há-de conhecer meus gostos e os meus desgostos. Nunca ando atrás de mulher que não me seduza, e jamais casarei com qualquer delas, a não ser que realmente me apaixone. Pouco importa que tenha dinheiro ou não, embora eu acredite que em qualquer circunstância

detestaria uma esposa rica, porquanto fácil lhe seria dizer-me, como aquela lady americana ao pobre Darrowood: "O automóvel é meu e você hoje não pôde ocupá-lo". — Então, você se casaria com uma mulher a quem realmente amasse, a despeito de tudo? — indagou Francis Markrute. — Provavelmente. Mas a verdade é que ainda não me apaixonei por nenhuma. De mais a mais, paixões profundas só se encontram em meras criações literárias, a meu ver. Mulheres que se importem muito com isso não mais existem, não acha, meu amigo? — Ao contrário, penso que ainda ha mulheres capazes de tal paixão — retorquiu o financista, franzindo os lábios. — Bem, mas ainda não as encontrei. E oxalá esteja bem distante o dia em que com elas me esbarre em meu caminho. Até então, estarei em segurança. Um estranho, um misterioso sorriso alumiou o rosto de Mr. Markrute. — A propósito, Francis , como é que você sabe que a sua sobrinha deseja casar-se comigo? Do modo por que você fala, é como se eu fosse o único a ser consultado. — De fato, assim é. Posso responder por minha sobrinha. Ela está pelo que eu quero e, como disse antes, você consubstancia o tipo perfeito de um nobre inglês, Tancred. Até hoje, geralmente, não se lhe deparou mulheres voluntariosas, hein? lorde Tancred, muito embora fosse homem, não era muito vaidoso, e possuía o seu tanto ou quanto de humor. Riu-se, pois. — Palavra de honra, acho divertido você ter virado agente casamenteiro, Francis. Não acha isso engraçado? — Não, parece-me natural. Você possui todas as vantagens sociais para oferecer a uma mulher, e é um rapaz bem apessoado. De outro lado, minha sobrinha é moça, possui atrativos e uma grande fortuna. Mas, não falemos mais nisto. Terei grande satisfação em colocar-me ao seu dispor naquilo em que lhe possa ser útil quanto à sua ida ao Canadá. Venha jantar comigo, logo

à noite, e aqui se encontrará com dois magnatas de estradas de ferro, que têm interesses no Canadá, os quais lhe poderão prestar algumas informações. lorde Tancred aquiesceu ao convite. Levantou-se para sair, e ao alcançar a porta voltou-se e indagou, sorrindo: — E verei a sobrinha? O financista estava de costas para o amigo, de sorte que não cuidou de ocultar o sorriso que lhe aflorara aos lábios, e respondeu: — Pode ser. Mas… não pusemos de parte esse assunto? — e despediram-se. Ao ruído da porta que se fechava atrás de lorde Tancred, Markrute apertou um botão, na sua escrivaninha. Imediatamente ali apareceu um criado, que caminhava sem fazer bulha. — Vá dizer à condessa Shulski que desejo falar-lhe imediatamente. Peçalhe para descer já. Entretanto, Francis Markrute teve que andar e desandar o aposento várias vezes, cada vez mais impaciente, até que a porta abriu e, com o andar vagaroso, ali surgiu uma mulher.

CAPÍTULO II NÃO DAREI ESSE PASSO …

O FINANCISTA, que andava e desandava pela biblioteca, parou ao ouvir a porta abrir-se, e ficou inteiramente imóvel onde se achava, com as costas voltadas para a luz. A recém-chegada adiantou-se e postou-se à sua frente, sem dizer palavra. Entreolharam-se, mas o olhar de ambos não revelava grande afeição de um pelo outro, embora a mulher que acabava de entrar merecesse ser contemplada, sob vários pontos de vista. Em primeiro lugar porque possuía aquela atração natural, aquele ímã que não se derivava quer dos seus traços ou das suas cores, quer das linhas suaves do seu corpo ou de sua própria formosura. Era uma força sutil emanada de seu caráter, um como fulgurante magnetismo que se irradiava de toda sua pessoa. Quando Zara Shulski penetrava em qualquer roda, cessava desde logo toda e qualquer palestra, e todo o mundo se punha a fazer conjeturas a seu respeito. Zara Shulski era mais alta do que baixa, e de compleição fina. Em cada voluptuosa curva do seu delgado corpo ressaltava a ideia de delicadeza. Tinha pequena a cabeça, e rosto pequeno, breve e oval, sem que os seus traços fossem finamente cinzelados. Somente a pele, imaculada na sua brancura, tinha um quê de excepcional. Não era a pureza do leite, mas a deliciosa pureza do veludo branco, ou das pétalas da gardênia. O talho da boca, um tanto encurvado, e vermelhos os lábios. Os dentes, miúdos e iguaizinhos. Quando sorria — coisa que se verificava raramente — aqueles dentes sugeriam a ideia de força, embora miudinhos e brancos. E agora nos achegamos às duas maravilhas que possuía: cabelos e olhos. Ao vermos aqueles olhos pela primeira vez, juraríamos que eram negros, negros como duas manchas de nanquim, ou como discos de veludo preto encravados sob suas largas sobrancelhas, e sombreados com o azeviche das pestanas. Entretanto, se lográssemos neles atentar em plena luz, notaríamos que eram da cor da ardósia, sem o mais leve matiz de castanho ou verde, e que o todo da iris formava uma sombra uniforme. Estranhos olhos, olhos sonhadores,

olhos ressentidos, sob espessas e negras sobrancelhas, com a expressão cheia de toda espécie de significações, mas nenhuma delas pacifica ou tranquila. Provavelmente de um antepassado judeu-espanhol, há muito desaparecido do mundo, herdara aquela soberba cabeça de cabelos vermelhos, cor da cereja madura quando se desprende do seu invólucro, ou do lustroso e bem tratado pelo de um cavalo baio. As pesadas tranças, enrodilhadas e bem apertadas em redor da cabeça, por certo lhe cairiam aos joelhos quando soltas. O modo por que se penteava dava a impressão de que Zara não se preocupava com a moda, ou que lhe mudasse o estilo de ano para ano. Mas precisamente aquela porção de cabelo, plantado pouco acima da linha da testa, e a ondear-se em largos lanços, é que lhe comunicava ao corpo a perfeição e a simplicidade próprias de uma dama grega. Nada que dizia respeito à sua pessoa nela aparecia, como se produto de conscienciosa arte. O vestido, feito de um tecido preto e aderente, era pobre. No entanto, trazia-o com os ares tradicionais de uma princesa. Na verdade, Zara Shulski parecia uma princesa genuína, desde as pontas dos seus dedos aristocráticos até aos pequeninos e arqueados pés. E foi com uma altivez própria de imperatriz, que ela perguntou, em voz baixa e estudada, sem nenhuma entonação: —

Que

deseja

de

mim?

Por

que

mandou

chamar-me

tão

peremptoriamente? O financista examinou-a durante alguns segundos. Parecia esquadrinhála em todos os pontos, com o olhar vivo e penetrante. Era como se intimamente Markrute se desse conta daquele exame, tanto que se pôs a pensar: "Você, minha sobrinha, é maravilhosa e diabolicamente sedutora. Você possui todo o orgulho de meu pai, o Imperador. E como meu pai havia de rejubilar-se revendo-se na sua pessoa! Você é capaz de enlouquecer um homem, e vai servir de penhor na partida em que estou empenhado, em benefício daquela a quem amo. E há-de encontrar a sua própria felicidade. No fim de tudo, se Elinka, do lugar em que se encontra, puder voltar as suas vistas para este mundo, não poderá dizer que fui cruel para com minha sobrinha". — Pedi-lhe para descer a fim de tratarmos de assunto de grande importância. Quer ter a bondade de sentar-se, minha sobrinha? — disse-lhe o

financista, elevando a voz num tom polido e cerimonioso, enquanto oferecia uma cadeira em que Zara prontamente se sentou. Depois, cruzando os braços esperou que ele continuasse. A sua calma era aparente, como aparente era a calma de Markrute. Mas ao passo que o tio sentia uma tensão nervosa, conscientemente recalcada, a serenidade da sobrinha se derivava de uma força latente e inativa. O pai de Zara era inglês, mas ambos — tio e sobrinha — por vezes davam ideia de duas taciturnas panteras, prontas para saltarem. — Bem… — foi tudo quanto ela disse. Francis Markrute prosseguiu: — A sua situação é precaríssima. Segundo ouvi, por vezes, mal consegue o necessário para alimentar-se. Por certo você não há-de pensar que mandei chamá-la em Paris, a semana passada, pelo simples prazer de tê-la aqui, não é verdade? Naturalmente já imaginou que fiz um plano a seu respeito. — Naturalmente — aquiesceu Zara, um tanto irônica — Nem por sombras me passou pela ideia que se tratasse de pura filantropia. — Perfeitamente. E já chegamos ao ponto que nos interessa. Lamento ter sido obrigado a ausentar-me, desde a sua chegada até ontem. No entanto, creio que os meus criados lhe tornaram bem confortável a sua permanência em minha casa. — Bem confortável — concordou friamente a sobrinha. — Muito bem. Agora, vamos ao que importa. Você não tem a menor duvida que seu marido, o conde Ladislau Shulski, morreu, não é assim? Não é possível um engano quanto à sua identidade? Creio que o rosto dele ficou irreconhecível, não acha? Tomei a precaução de pessoalmente colher informações das autoridades de

Monte

Carlo. Todavia, desejo-lhe

o

testemunho final, Zara. — Ladislau Shulski morreu — afirmou serenamente a sobrinha num tom de voz que denunciava uma certa alegria na afirmativa — Aquela mulher, de nome Feto, foi a causadora do incidente, e Ivan Larski descarregou a sua arma quando Ladislau estava nos braços dela. Ivan Larski é que arcava com as despesas de Feto, e na ocasião Ladislau era o amant du coeur. Ela caiu sobre o

corpo de Ladislau como um animal inconsolável com a perda do filho. Quando me chamaram, encontrei-a lamentando os lindos olhos de Ladislau. Aqueles olhos se fecharam para sempre, mas a gente jamais se esquecerá dos seus cabelos ondeados e das suas cruéis mãos brancas. Ah! foi um espetáculo odioso. Tenho presenciado inúmeras cenas desagradáveis, mas aquela foi a pior de todas. Não quero mais lembrar-me disso. Já se passou um ano. Feto cobriu de flores o túmulo de Ladislau, e de novo se juntou ao herói Larski, que conseguiu livrar-se do embaraço. De sorte que tudo caminhou bem. — E desde então você tem vivido do seu trabalho, e sustentado os outros — observou Francis Markrute, com a voz um tanto sombria e repassada de frio ódio. — Tenho vivido em companhia de meu irmãozinho Mirko e de Mimo. Como poderia abandoná-los? Por vezes, passamos por pedacinhos bem tristes, principalmente ao chegar ao fim do trimestre. Mas isto nem sempre sucedia, mormente quando Mimo vendia um quadro… — Não quero ouvir esse nome! — exclamou Francis, um tanto excitado — Nos primeiros dias, se eu o encontrasse em meu caminho, matá-lo-ia, como você sabe. Mas agora o patife pode viver sossegado. A partir do instante em que minha irmã fechou os olhos, risquei-o de minha lembrança, e ele não vale uma bala do meu revólver. A condessa Shulski sacudiu levemente os ombros, enquanto os olhos se tornavam mais negros de ressentimento. Todavia, não pronunciou palavra. Francis Markrute estava perto da lareira e acendeu um charuto antes de continuar na sua conversa com a sobrinha. Bem sabia ser-lhe necessário escolher palavras, porquanto não estava tratando com uma criatura qualquer. — Você está com vinte e três anos, Zara, e casou-se aos dezesseis. Até aos treze, pelo menos, eu soube que a educação que teve era aprimorada. Já deve ter algum conhecimento da vida, não é assim? — Da vida! — ecoou a voz da sobrinha, com acento de indisfarçável amargura — Meu Deus! Da vida e dos homens! — Sim, provavelmente, acredita que conhece os homens — Zara Shulski levantou um bocadinho o seu lábio superior e deixou à mostra os dentes

miudinhos e iguaizinhos, num gesto que parecia o de um animal quando está rosnando. — O que sei é que são uns fracos e ambiciosos, ou uns brutamontes cruéis e odiosos, como Ladislau, ou uns hábeis e afortunados financistas como o meu tio. É o quanto me basta! Para qualquer deles, nós, as mulheres, devemos sempre ser sacrificadas. — Bem, mas você não conhece os ingleses… — Conheço-os, sim. E lembro-me perfeitamente de meu pai. Frio e severo com minha mãe… — ao dizer isto, a voz de Zara tornou-se um tanto trêmula. — Meu pai somente pensava em si, e nas suas viagens a Londres, para entregar-se a passatempos. Durante meses e meses, deixava-a sozinha. Egoístas e vis todos eles! — Não obstante, encontrei um inglês que lhe serve para marido, e a quem você vai fazer-me o favor de acolher como tal — comunicou-lhe autoritariamente Francis Markrute. A condessa deu uma risadinha, se é que se pôde chamar de risada àquilo que ressumbrava tanta melancolia. — O senhor, meu tio, não tem nenhuma autoridade sobre mim. Não darei esse passo. — Creio que dará, se bem a conheço — retorquiu o financista com toda a calma — Mesmo porque, há condições… Zara olhou-o fundamente. A expressão daqueles sombrios olhos estava sempre alerta, como a das feras prestes a serem atacadas. Mas com esta diferença: graças a continuado treino, geralmente ela trazia meio abaixadas as pálpebras. — Que condições? — indagou. Enquanto a ouvia, Francis Markrute pensava numa pantera negra, que nas manhãs de domingo gostava de ver no Jardim Zoológico. Naquele instante, a sobrinha lhe lembrava o felino. Até então, o financista estava um tanto constrangido na palestra. Mas daqui por diante o assunto se transformara em simples questão de negócio, e

sentia-se bem à vontade para levá-lo a bom termo. Sentou-se defronte da sobrinha, e continuou a soltar aos ares, em forma de anéis, a fumaça aspirada do seu charuto. — As condições são que o pequeno Mirko, meio-irmão seu, necessita de cuidados. Viverá num meio decente, e terá recursos para desenvolver, pelo estudo, o seu talento… O financista parou abruptamente, e ficou silencioso. De seu lado, a condessa Shulski apertava convulsamente as mãos no colo e, mau grado todo o seu orgulho e domínio de si mesma, na entonação de sua voz havia uma nota de angústia, capaz de sensibilizar qualquer coração, exceto o de Francis Markrute, sempre prevenido para tais ocorrências. — Meu Deus — exclamou Zara, em voz tão baixa que o tio mal podia escutá-la — Já uma vez paguei com o meu corpo e com a minha alma o preço do bem estar dos outros. É crueldade exigirem de mim um segundo e idêntico sacrifício… — Está na sua vontade — observou-lhe o tio. Por vezes, Markrute cometia um engano nos seus métodos de lidar com as pessoas. Não confiava nem um pouco na sorte, e conduzia a conversação até o ponto em que desejava, punha fogo na mecha da bomba e depois se mostrava de uma indiferença absoluta. Para despertar o interesse alheio, quando realmente ele é que estava interessado, Markrute mostrava o seu "jogo" para o adversário. A seu ver, o interesse podia ser simulado quando fosse preciso, mas nunca exteriorizado quando real. De modo que não quebrou o silencio da sobrinha, enquanto ela ponderava sobre a transação em vista. Aliás, de antemão ele sabia qual o resultado daquilo tudo. Zara Shulski levantou-se e se apoiou no espaldar da cadeira em que estivera sentada. O seu rosto estava branco, branco como a morte à luz de uma tarde agonizante. — Acaso o senhor faz ideia do que foi minha vida ao lado de Ladislau? — sibilou a sobrinha — Antes de mais nada, um títere para os seus prazeres brutais, e um chamariz para apanhar os outros homens, conforme descobri

mais tarde. Torturada e insultada, desde manhã até a noite. Sempre o odiei. Entretanto, antes de nos casarmos ele me pareceu gentil, e sempre se mostrou bondoso para minha querida mãe, a quem o senhor deixou que morresse. A estas palavras, Francis Markrute franziu o sobrecenho, e uma nuvem de pesar cobriu-lhe o austero semblante, ao mesmo tempo que erguia a mão num aceno de protesto, e depois a abaixara, quando a sobrinha prosseguiu: — Foi quando minha mãe caiu enferma. Éramos tão pobres que não relutei em casar-me com Ladislau. Abruptamente a condessa Zara se encaminhou na direção da porta, com aquele seu ar de princesa. O vestido negro e já cocado pelo uso como que lhe serpeava atrás. Quando a alcançou, antes de abri-la voltou-se e dirigiu-se ao tio, inconsciente da cena altamente dramática a que dera origem. É que um inesperado e derradeiro raio do sol agonizante ali penetrou e caiu sobre aqueles cabelos cor de fogo, acima da linha da testa, e transformou-os numa como resplendente chama. — Afirmo-lhe, meu tio, que isso vai além das minhas forças — disse ela, quase que soluçando — Não darei esse passo… Depois saiu e fechou a porta. Francis Markrute, agora sozinho na biblioteca, recostou-se em sua poltrona, e continuou tranquilamente com o seu charuto, imerso em profunda meditação. Que seres estranhos, as mulheres! Qualquer homem poderia dirigi-las a seu talante, bastando para isso que se ajustasse ao temperamento de cada uma quando com elas tratasse, e não desse a minima atenção ao que estivessem dizendo. Francis Markrute era um filósofo. Grande parte das estantes da biblioteca estava atulhada de obras sobre filosofia, e um volume com indícios de manuseio contínuo, encerrando fragmentos de Epicuro, descansava sobre a mesa, a seu lado. Tomou-o entre as mãos e leu: "Aquele que desperdiça sua mocidade com alimentação custosa, excedendo-se em vinhos e em mulheres, se esquece de que é como o homem que gasta o seu sobretudo vestindo-o no verão". Francis Markrute não desperdiçava sua mocidade com vinhos ou com mulheres, e se limitara a estudar a ambos —

mulheres e vinhos — e os seus efeitos sobre aquilo que até o momento mais o interessara no mundo: a sua própria pessoa. E chegou à conclusão de que mulheres e vinhos podiam ser utilizados, com a maior vantagem e deleite, por um homem que soubesse dosar as coisas. Depois, substituiu o livro pelo Morning Post, que estava perto, numa mesinha, e releu a noticia que tanto lhe agradara no desjejum: O duque de Glastonbury e lady Ethelrida Montfichet ofereceram, ontem, no Palácio de Glastonbury, um banquete às seguintes pessoas… E seguia-se uma lista de títulos altamente sonantes, até que os olhos do financista se deleitaram na leitura do próprio nome — Mr. Francis Markrute. Francis Markrute sorriu, e voltou o olhar para o fogo na lareira. Naquele instante, ninguém lhe reconheceria aquele olhar severo dos seus olhos azuis, ao murmurar docemente: — Ethelrida! belle et blonde!

CAPÍTULO III TRISTES RECORDAÇÕES…

ENQUANTO o financista, sentado numa poltrona ao péda lareira, estava absorto em prazenteiros pensamentos, a sobrinha caminhava apressadamente pelo jardim, envolta em pesada capa e espesso véu. Furtivamente para ali seguira, depois de deixar a biblioteca. O sol de há muito que desaparecera, e a noite era fria e neblinosa. Folhas mortas do outono caíam, e o ar estava impregnado de umidade. Zara Shulski, posto que agasalhada em pesada capa, tremia ao encaminhar-se, por entre árvores envoltas em neblina, na direção da estatua de Aquiles. O encontro estava marcado para as seis horas, e já passavam trinta minutos das seis; era arriscado, para a saúde de Mirko fazê-lo esperar naquela friagem. Talvez já tivesse ido embora com o pai, coisa que não se verificou, porquanto, ao aproximar-se suficientemente do lugar destinado para o encontro, Zara notou duas sombras indistintas perto da estatua. Ambas se encaminharam lestamente na sua direção. Mesmo àquela semi-claridade, podia-se ver que uma delas era um menino, de pequena estatura e estropiado, de nove ou talvez de dez anos, mas aparentando menos idade, e a outra, a de um homem extraordinariamente formoso, muito embora trajasse sobretudo gasto pelo uso e trouxesse um chapéu de feltro velho e manchado. — Como estou alegre por vê-la, Chérisette! — exclamou o menino — Papai e eu o dia todo estivemos ansiando por este momento. Parecia-nos que nunca chegasse. Mas, agora que aqui a temos, quero devorá-la com os olhos! E aqueles dois bracinhos, muito finos e demasiado longos para o definhado corpo, atiraram-se afetuosamente ao redor do pescoço de Zara, ao mesmo tempo que ela o erguia e o levava até um banco, onde os três se sentaram para conversar. — Ignoro a razão desta visita, Mimo, e a única coisa que sei é que

chegaram ontem — disse a condessa Shulski — A meu ver, foi uma loucura esta viagem. Em Paris, pelo menos durante uma semana, teriam hospedagem paga, em casa de madame Dubois. Mas aqui, em meio de pessoas estranhas… — Não fique zangada conosco, Zara — implorou o homem, num encantador sorriso — Mirko e eu sentíamos que o sol desapareceu na terçafeira passada, quando você nos deixou. A partir de então, começou a chover, a chover que não parava mais, durante dois, três dias, e o canário de madame Dubois deixou-nos com os nervos à flor da pele. O céu era todo uma cascata, e aquele canário!… Como se isso não bastasse, o Grisoldi insistiu para que pusessem bastante alho em sua comida! E nós — lembra-se? — que pensávamos ter-lhe tirado esse hábito! Aquele cheiro a saturar os ares, vindo da cozinha!… Santo Deus! Tudo aquilo era para matar a inspiração. Não pude pintar, minha Chérisette, e Mirko não pôde tocar. De modo que pensamos: "Ao menos o sol do cabelo de nossa Chérisette há-de resplandecer na sombria Inglaterra, e nós, também, para lá iremos, fugindo ao alho do Grisoldi e ao canário de madame. O nevoeiro nos dará ideias novas, e criaremos coisas maravilhosas". É ou não verdade, Mirko mio? — Por certo que sim, papai — respondeu o menino. Depois, com a voz trêmula e acento enternecedor, indagou: — Você, queridinha, não está zangada conosco? Diga que não está! — Meu amor! Que ideia, a sua! Nunca eu poderia zangar-me com o meu Mirko, pouco importa o que fizesse. Nesse instante, ao apertar o frágil corpinho contra o peito e ao envolverlhe as costas com a pesada capa, as duas manchas de nanquim da pantera negra abrandaram-se na divina ternura da Madona de S. Xisto. — O que receio é permanecerem aqui em Londres. Se meu tio souber disso, vai por água abaixo toda a esperança de conseguir-se alguma coisa dele. Tio Francis disse-me textualmente que se eu viesse sozinha, passar estas últimas semanas em sua companhia, isso me seria de vantagem. Ora, qualquer vantagem que eu consiga reverte em beneficio de ambos, como sabem. Não fosse isso, acaso acreditariam que eu fosse capaz de comer o seu odioso pão? — A nossa Chérisette é tão boa para nós! — exclamou o homem, que se

chamava Mimo — Na verdade, Mirko mio, você possui uma irmã de anjo. Mas logo ficaremos ricos e famosos. Tive um sonho, a noite passada, e já dei início a um novo quadro de tons cinzentos e neblinosos, um quadro cheio deste estranho nevoeiro. O conde Mimo Sykypri era um otimista de marca. — No entanto, estão morando num quarto da rua Neville, em Tottenham Court Road. A meu ver, o bairro não se recomenda muito. — Não é pior do que a casa de madame Dubois — apressou-se Mimo a assegurar-lhe — Além disso, está-me dando novas ideias. Mirko teve um acesso de tosse, e a tosse era seca. Zara Shulski puxou-o mais para junto de si e apertou-o em seus braços. — O Grisoldi é que lhe deu esse endereço, não foi? A despeito do alho, o velhinho é uma boa pessoa — observou Zara. — Sim, foi ele quem nos indicou uma hospedagem barata, onde pudéssemos

ficar

até

que

melhorem

os

nossos

negócios.

Viemos

imediatamente, e logo lhe escrevemos. — Fiquei bastante surpresa quando recebi a carta. O senhor ainda tem algum dinheiro, Mimo? — Por certo que tenho! — e o conde Sykypri orgulhosamente tirou do bolso oito moedinhas de ouro, dinheiro francês — Tínhamos duzentos francos quando chegamos. As nossas pequenas necessidades e algumas tintas nos levaram vinte francos. Ainda nos restam oito. Oh! uma boa fortuna, que nos há-de sustentar até que eu possa vender O Apache. Amanhã mesmo vou levá-lo a um vendedor de quadros. O coração da condessa Shulski estremeceu. É que sabia, de longa data, quanto duravam vinte francos. Muito embora o cuidado de Mirko e a vigilância que este exercia sobre o pai, o formoso gentleman era capaz de dar uma daquelas moedas a um mendigo, se a cara do mendigo ou a historia de sua desdita o comovessem, e algumas das outras poderiam ser gastas num presente para Mirko ou para a própria condessa, para mais tarde ser penhorado, quando se fizesse sentir a necessidade. Nesse particular, o conde

Sykypri era um caso perdido, e a seu ver, para tais coisas é que servia o dinheiro. O próprio e escasso rendimento da condessa, que lhe era devido pela morte de Shulski, sempre lhe era entregue antecipadamente e gasto no sustento

da

família,

principalmente

do

irmãozinho

a

quem

jamais

abandonaria, conforme prometera à sua falecida e adorada mãe. Quando a encantadora esposa de Maurice Grey, o misantropo e excêntrico inglês que residia num castelo perto de Praga, fugira com o conde Mimo Sykypri, sua filha, Zara, que então contava treze anos, acompanhou-a, e ambas foram riscadas da família. Maurice Grey, depois de amaldiçoá-la, fez o seu testamento e nada lhes deixou e, trancado em seu castelo, entregou-se à bebida até morrer. O seu passamento verificou-se em menos de um ano. O irmão da encantadora Mrs. Grey — Francis Markrute — jamais lhe perdoou a falta, e terminantemente se recusou a receber, em sua casa, a irmã, ou ouvir noticias a seu respeito, mesmo depois do nascimento do pobre e franzino Mirko e da viúva de Maurice Grey já estar casada com o conde Sykypri. Do lado paterno, os Markrutes — irmão e irmã — descendiam de alta linhagem e, mau grado o modo esquerdo por que o financista encarava aquele passo de Mrs. Grey, o irmão não pôde suportar a desgraça de Elinka, sua irmã. Queria-lhe tanto! Constituía-lhe o único lado fraco de seu caráter adamantino. Parecia-lhe que a desgraça de Elinka gelara todos os sentimentos ternos que existiam em sua natureza. A condessa Shulski permaneceu silenciosa por algum tempo, enquanto Mimo e Mirko ansiosamente lhe observavam o rosto. Depois, atirando o véu nas costas, falou-lhes: — Suponha, Mimo, que o senhor não consiga vender O Apache. O dinheiro que tem consigo não dará até o Natal, e o meu já foi todo gasto e só receberei de novo em janeiro. Estamos no inverno, e o inverno não é nada bom para Mirko. O conde Sykypri mexeu-se, bastante inquieto. Um ar de tragédia espalhou-se pelo seu formoso rosto, que era como um espelho a refletir-lhe as fugitivas emoções, rosto capaz de exprimir amor e romantismo, devoção e

ternura, capaz de atrair um pássaro, de distante árvore ou o amor do coração de uma mulher. Embora Zara Shulski de sobejo soubesse o verdadeiro e insignificante valor do que ele asseverava ou fazia, mesmo assim o seu assombroso dom de atrair sempre abrandava a irritação da enteada ante a sua impassibilidade. De modo que repetiu a pergunta, desta feita mais afavelmente: — O que pretende fazer? Mimo levantou-se e gesticulou de um modo dramático. — Não pôde ser! — exclamou ele — Eu preciso vender O Apache. E, se não conseguir vendê-lo, afirmo-lhe que este estranho e cinzento nevoeiro anda a inspirar-me novos e maravilhosos pensamentos — sombrios, misteriosos — de dois seres humanos sob a névoa! Oh! mas uma prodigiosa combinação em qualquer caso redundará em êxito. Mirko atirou o braço em volta do pescoço da irmã, e beijou-lhe o rosto, ao mesmo tempo que lhe sussurrava palavras de ternura numa língua eslava. Duas grandes lágrimas brotaram nos profundos olhos de Zara Shulski, e os tornaram ternos como os de uma pomba. Tirando a carteira, a condessa Shulski dali retirou duas libras esterlinas e alguns xelins, e meteu-os na pequenina mão de Mirko. — Guarde isto, meu amor, para qualquer necessidade. É tudo quanto possuo, mas necessito… devo encontrar outro meio de auxiliá-los, e isto logo. Agora, preciso deixá-los. Se meu tio suspeitar de que vim encontrar-me com ambos, adeus qualquer esperança de auxílio por parte dele. Os três se encaminharam para o portão que dava para a rua Grosvenor, e com uma certa relutância eles a deixaram. Seguiram-na com os olhos enquanto ela se apressava em cruzar a rua, desviando-se dos táxis que passavam, e quando viram luz através da porta que se abrira, e a gentil figura desaparecer em meio dos graves criados que vieram abri-la, pai e filho suspiraram e por sua vez se puseram a caminho, à procura de um ônibus que os levasse até a pobre mansarda, alugada à rua Neville, em Tottenham Court Road. Quando chegaram ao Arco de Mármore, começou a cair cortante e gelado chuvisqueiro.

A condessa Shulski, posto que pobremente vestida, era uma pessoa para quem os criados nunca se mostravam impertinentes, pois que havia o que quer que fosse nas suas maneiras que afastava toda e qualquer ideia de familiaridade. Nem mesmo ocorrera a Turner ou a Jaime que as roupas da condessa não estavam em condições de servir para qualquer criada sair à rua. Outra, no entanto, foi a observação que o arrogante Turner fez, enquanto arranjava algumas cartas sobre a mesa do hall: — Caramba! Que senhora orgulhosa! Tem um pouco do nosso patrão, hein, Jaime? Entretanto, Zara Shulski vagarosamente se encaminhou para o elevador e subiu para o seu luxuoso quarto, com o coração cheio de tristeza e de raiva contra o destino. Sentou-se defronte da lareira, e por muito tempo permaneceu com o queixo entre as mãos, sem desviar os olhos das crepitantes brasas. Que de cenas lhe evocavam, de passadas misérias, aquelas chamas? Os seus pensamentos agora desandavam o tempo e chegavam até os seus verdes anos. Primeiro, o austero, o esquisito pai, e o sombrio castelo. As severas governantas — inglesa e alemã — e sua adorável, encantadora mãe descendo para a sala de estudos tal qual uma fada de luz, sempre jovial, carinhosa e terna. E depois aquela viagem a um distante país, onde ela viu um velho e agonizante gentleman, num palácio real, que a beijou e lhe disse que iria crescer tão formosa como sua avó, com aqueles seus cabelos vermelhos, cor de fogo. E ali, no palácio, achava-se Mimo, tão bonito e tão bondoso, metido num esplêndido uniforme de ajudante de campo. Mais tarde, Mimo por várias vezes visitara o sombrio castelo, e descia à sala de estudos em companhia de sua mãe, que parecia uma fada. E que gostosas gargalhadas não deram os três, e quantas vezes não brincaram de esconde-esconde nas extensas galerias? Depois, chegou o terrível momento, quando a sua adorada mãe fugiu do castelo. O carrancudo pai se pôs a amaldiçoá-la e a fisionomia do tio Francis parecia exprimir toda uma diabólica vingança. Então, previamente avisada, certa vez fora encontrar-se com a mãe no parque do castelo. Como se atirasse ao seu pescoço, e com gritos e soluços lhe pedisse para que a levasse dali,

Mimo e sua mãe, sempre tão bons, amorosos e irresponsáveis, aquiesceram ao seu desejo. Daí a fuga. Semanas de felicidade em luxuosos hotéis, até que o semblante de sua mãe começou a refletir grande tristeza e estava pálido. De tio Francis não chegava nenhuma carta e eram devolvidas todas as que a irmã lhe escrevia. Ficava toda receosa quando Mimo se ausentava, embora momentaneamente, pois que tio Francis era capaz de matá-lo. Infeliz e adorada mãe!… Foi quando nasceu Mirko, e toda sua alegria nele se concentrou. Depois, aos poucos, o fantasma da pobreza, quando todas as joias foram vendidas, bem como uniformes e espadas de Mimo. Só contavam com os magros vencimentos de Mimo, os quais não podiam ser-lhes tirados. A partir de então, corajosamente ele se atirou ao estudo de sua arte, em Paris. Pobre Mimo! Tentara a nova vida, mas tudo se constituía em obstáculo para um gentleman. Mirko era uma criança raquítica e, além disso, o rosto de sua mãe a cada passinho parecia tão triste… Não demorou que ela caísse gravemente enferma. Zara e Mimo desvelaram-se em cuidados para com a doente, e pediram a Deus o seu restabelecimento. Mimo chorou como uma criança, e o médico afirmou que somente o sul poderia restituir a saúde àquele anjo de bondade e doçura. De sorte que casar-se com Ladislau Shulski lhe parecia o único meio de remediar tudo, porquanto ele possuía uma vila na ensolarada Nice e ofereceu-lha. Por esse tempo o conde Shulski sentia uma certa inclinação por Zara, embora os seus vestidos ainda não estivessem suficientemente compridos, nem os cabelos convenientemente dispostos, como convém a uma senhora. Quando os seus pensamentos tocaram neste doloroso e distante episódio de sua vida, o fulgor dos seus olhos ainda era mais feroz do que o da pantera quando Francis Markrute enfiava a bengala entre os varões da jaula, nas manhãs de domingo em que ia ao Jardim Zoológico. Quantas recordações, e recordações odiosas! E o momento em que chegou a saber a verdadeira significação da palavra casamento, e desta outra — homem?! Entretanto, casando-se com Ladislau Shulski logrou sustentar a vida de sua mãe naquele inverno. Com grande custo é que conseguia algum dinheiro do marido. Mesmo assim, por algum tempo ela pôde auxiliar os infelizes amantes. Dia chegou,

entretanto, que o dinheiro de Ladislau também se acabou, dissipado em jogo ou gasto com mulheres. Sobreveio a morte de sua mãe. Expirou no desconforto e na frialdade de um miserável e pequeno estúdio em Paris, a despeito das constantes e desesperadas cartas que Zara e

Mimo endereçavam

ao tio Francis,

implorando-lhe auxilio. Bem que Elinka sabia achar-se o irmão, por aquele tempo, num distante lugar do sul da África, e que por certo as cartas lhe chegavam às mãos com bastante atraso. Isso a fazia pensar que Deus os abandonara. Zara lembrou-se da solene promessa que fizera: Mirko jamais seria desamparado, e quanto a isso a adorada mãe podia morrer tranquila. As últimas palavras da moribunda lhe vieram à memória, como que saídas daquelas crepitantes brasas: — Mau grado tudo, fui feliz com Mimo, minha Chérisette; com Mimo e com Mirko. Valeu a pena… Depois, a sua respiração tornou-se ofegante e ela expirou. Ao recordar-se da cena, os olhos de Zara encheram-se de lágrimas, que caíram gota a gota sobre as crepitantes brasas. Entretanto, já tomara uma decisão. Não havia outro remédio. Devia aquiescer à proposta do tio. Levantou-se bruscamente e atirou o chapéu sobre a cama. Quanto à capa, escorregara-lhe das costas. Sem mais hesitação, desceu as escadas. Francis Markrute ainda estava sentado, na biblioteca. Tirara o relógio do bolso e estava calculando o tempo. Eram sete e trinta e cinco e às oito horas chegariam os convidados para o jantar. E ele, que ainda não principiou a vestir-se? Acaso a sobrinha ainda não se decidira? Estava longe de pensar que Zara se resolvesse contrariamente aos seus desejos. Tratava-se de uma questão de tempo, pura e simplesmente. Mas seria muito melhor, por todos os motivos, que se decidisse imediatamente. O financista ergueu-se da poltrona, com um sorriso nos lábios, quando a viu entrar na biblioteca. Então, Zara Shulski viera! Não foi debalde que ele contara com os seus conhecimentos sobre o temperamento feminino.

A condessa Shulski estava pálida. A marmórea palidez ainda conservava a delicadeza das pétalas da gardênia, por sob aquelas sobrancelhas de nanquim que se abaixaram. — Se as condições consultarem uma certa felicidade para Mirko, estou de acordo.

CAPÍTULO IV O NOIVADO

OS quatro homens — os dois magnatas de estradas de ferro, Francis Markrute e lorde Tancred — há um quarto de hora que estavam esperando, na sala de visitas e sentados defronte da lareira, quando a condessa Shulski ali apareceu. Trajava um vestido de soirée feito de um tecido de lã preta, fino e transparente, que se ajustava ao seu esbelto corpo com a graça peculiar que emprestava mesmo às mais pobres roupas. Qualquer outra mulher inspiraria dó se metida naquele vestido, mas a distinção de Zara tornava-o um traje de deusa, pelo menos a três daqueles homens. Francis Markrute estava bastante aborrecido com aquela demora para admirar o que quer que fosse. Todavia, ao apresentar a sobrinha aos convidados, ele próprio não deixou de notar que ainda não a vira mais adorável, ou mais desdenhosamente soberana. Meia hora antes, quase que tiveram uma cena tempestuosa na biblioteca. Poucas foram as palavras da sobrinha, mas o amargor nelas contido não lhe escapara. Estava disposta a concordar com o negócio se assim o desejasse o desconhecido pretendente à sua mão, e indagou do motivo por que este assim procedia. Quando soube que se tratava de um ajuste entre os dois homens, e que teria por dote uma grande fortuna, não se mostrou mais surpresa e limitou-se a mover desdenhosamente os lábios. Para a condessa Shulski, todos os homens não passavam de uns estúpidos ou de uns tolos, como o pobre Mimo. Se soubesse que lorde Tancred lhe havia recusado a mão, e que o tio contava unicamente com o seu infalível conhecimento da natureza humana e particularmente da natureza de lorde Tancred, talvez se sentisse humilhada e não cheia de impotente raiva. De seu lado, o moço chegava exatamente ao soar das oito, um raro esforço de pontualidade para ele. É que ao deixar a casa de Park Lane sentira

uma certa curiosidade de ver a sobrinha do seu amigo Markrute a fazer-lhe pruridos nas veias. Que espécie de mulher seria aquela, que concordara em desposar um estranho, unicamente por causa do seu título e posição? Os quinze minutos de espera nada ajuntaram à sua calma. De sorte que no instante em que se abriu a porta, ele levantou o olhar com intenso interesse e quase ficou sem respiração, enquanto ela caminhava pelo aposento. Fisicamente, aquela mulher era em todos os sentidos extremamente sedutora. Contudo, quando lhe foi apresentado, e os seus olhos se encontraram com os dela, ficou um tanto surpreso ante aquele olhar sem brilho e sombreado de ódio. Que significava tudo aquilo? Francis por certo estivera devaneando. Uma vez que desejava desposá-lo, por que o olhava daquele jeito? lorde Tancred sentiu-se irritado e curioso. Zara não disse palavra enquanto desciam todos para o jantar, mas ele não era um tímido para trancafiar-se assim, em silêncio. O seu trato polido e natural logo provocou uma palestra sobre assuntos triviais, quotidianos. Por toda resposta, recebia inúmeros "sim" e "não", o mesmo não sucedendo aos magnatas de estradas de ferro, que foram um bocadinho mais felizes. Isto até que serviram as entradas. Então, mostrou-se menos fria, e interessou-se por qualquer coisa que um dos outoniços gentlemen lhe estava dizendo. O que mais irritava a lorde Tancred era a sua certeza absoluta de que aquela criatura estava longe de ser estúpida. Com um rostinho daqueles, quem é que poderia ser estúpido? De mais a mais, o inglês não estava habituado a passar despercebido pelas mulheres. Ainda não se submetera, em toda a sua vida, a idêntica provocação. lorde Tancred examinava-a, atentamente. Nunca vira uma pele tão branca. A admirável conformação dos ossos daquele divino rosto, mesmo visto sob a luz de um lado só, não originava desfigurantes sombras a cair-lhe sobre a boca e nariz, ou sobre as faces. Tudo aquilo era velutíneo e curvo. Invisível era o remoto toque judio naquelas feições, o qual somente se mostrava no esplendor dos seus olhos e das pestanas. Aquela mulher encheu-

o de desejo de tocá-la, de apertá-la estreitamente em seus braços, de desmanchar aqueles cabelos cor de ouro e de cobrir o seu rosto com os dourados fios. Contudo, lorde Tancred não era um homem sensual, desses que à primeira vista se dão conta dos encantos físicos das mulheres Quando serviam faisão, ele conseguiu arrancar de Zara toda uma sentença, em resposta à sua pergunta sobre se gostava da Inglaterra. — O que se pode dizer, quando a gente nada conhece? — disse a condessa — Aqui estive, antes, somente uma vez, quando ainda não passava de uma criança. Pareceu-me então, gelada e sombria. — Precisamos persuadi-la a que goste mais da nossa Inglaterra — retorquiu ele, cuidando de olhá-la de fito nos olhos, coisa que Zara evitou incontinenti. Nos breves instantes em que neles se fixaram os olhos do nobre, estes notaram aquela mesma expressão de ressentimento, sem nenhum brilho. — E que importa que eu goste ou não goste? — indagou Zara, olhando através da mesa. Estava aí uma coisa difícil de responder! Parecia que aquilo tudo como que o desafiava, e ele não poderia dizer com toda a segurança porque repentinamente se pôs a admirá-la tanto! Tanto, que não sabia como decidirse. Sem saber bem como e por que, deu consigo subjugado por estranho excitamento. Ainda não sentira sensação idêntica, exceto numa das suas caçadas de leões, na África, quando ao seu acampamento chegou a nova de que um excepcional e lindo exemplar fora descoberto nas imediações, e que no dia seguinte podia ir no seu encalço. Os seus instintos esportistas pareciam despertar inteiramente. Entretempo, a condessa Shulski mais uma vez se voltava para sir Phillip Armostrong, o magnata de estradas de ferro, que lhe falava acerca do Canadá. A condessa escutava-o com mostras de interesse. O magnata dizia-lhe que a região estava franqueada a todo o mundo e que os empreendedores e perseverantes lá podiam fazer grandes fortunas.

— Nesse caso, ainda não chegou a um grau de civilização para os artistas ali se fixarem, não é verdade? — indagou Zara, com grande pasmo de lorde Tancred pela vivacidade de sua voz. — Artistas modernos? — duvidou sir Phillip — Talvez não, embora os homens ricos agora já comprem quadros e lindos objetos. Contudo, num país novo só vence o indivíduo de coragem e de vontade, e não o sonhador. Aquela cabeça vermelha abaixou-se um bocadinho. O seu interesse agora parecia somente mecânico, enquanto de novo respondia "sim" e "não". lorde Tancred estava simplesmente assombrado, e notara que os pensamentos daquela estranha mulher andavam a milhas de distancia. Francis Markrute observou minuciosamente o que se passava em redor, ao passo que entretinha agradável palestra com o coronel Macnamara, vizinho da direita. Estava bastante satisfeito com o rumo que as coisas tomavam. Afinal de contas, nada poderia ser melhor do que a demora de Zara. Muitas vezes, fatos ocasionais vinham em auxilio daquele hábil e experiente manipulador. E agora, bastava que a sobrinha conservasse aquela atitude de indiferença, o que era muito provável porquanto ela não era uma atriz, e possivelmente as coisas se arrumassem nesta mesma noite. lorde Tancred não conseguiu que a condessa sustentasse uma simples, mas ininterrupta palestra durante o resto do jantar. De tão aborrecido chegou a ficar furioso, a ponto de o sangue precipitar-se em suas veias. E quando, depois de servida a sobremesa e na primeira oportunidade que se lhe oferecera, a condessa Shulski deixou a sala de jantar, no instante em que o nobre inglês lhe abria a porta e os seus olhos se encontraram com os dela, estes de novo refletiam desdenhoso ódio. Quando ele voltou ao seu lugar, o coração batia-lhe desordenadamente. Durante toda a laboriosa palestra sobre o Canadá e a melhor maneira de se empregar um capital, conduzida por Francis Markrute com grande tino e aparentemente sincera amizade, lorde Tancred sentia crescer-lhe, cada vez mais, a atração e irritação por aquela mulher. Já não se interessava, nem um pouquinho, pelos prós e contras do seu futuro na colônia. Pouco depois, quando, como os outros, subia as escadas e ouvia os distantes acordes da

Chanson Triste de Tschaikowsky, repentinamente tomou uma resolução. A condessa Zara estava sentada a um grande piano, no fundo da sala. Um enorme abajur, que espalhava uma luz suave, alumiava o seu rosto branco e lhe envolvia o pescoço; mãos e braços, que se mostravam até os cotovelos, pareciam tão pálidos como as teclas de marfim; e aqueles discos de veludo preto nelas pousavam ocultando todo um mundo de angústia em suas profundezas. É que aquela era a melodia predileta de sua mãe, e tocava-a para lembrar-se da promessa que lhe fizera e para conservar-se firme no propósito de concordar com o ajuste, em beneficio de seu querido irmãozinho Mirko. No instante em que lorde Tancred entrava, Zara ergueu o olhar para o seu lado. O conde Ladislau Shulski também era formoso. Entretanto, a condessa Zara ainda não conhecia suficientemente o tipo inglês para moralmente fazer um juízo de lorde Tancred. O que sabia unicamente é que ele era dotado de um físico esplêndido, e bastante forte. Muito provavelmente, um brutamontes, como os demais. A expressão do rosto da condessa sofreu repentina mudança, no instante em que o inglês se inclinou sobre o piano. Esvaíra-se-lhe a tristeza dos olhos, ali substituída por uma feroz desconfiança. Os seus dedos então se puseram a tocar uma tarantela de selvagens sons. — Mulher estranha! — disse lorde Tancred. — Estranha? Eu? — foi a resposta de Zara, entre dentes — Isso é o que dizem os que nos conhecem, quando nos veem de certo modo enfurecidas. Quanto a mim, penso ter razão para esta noite estar desesperada. Dizendo isto, num derradeiro acorde deixou o piano e atravessou a sala. — Espero, tio Francis, que os seus convidados me desculparão, porquanto me sinto bastante cansada — disse a sobrinha, com fria e regia polidez — Desejo-lhes, a todos, uma boa noite. E inclinou-se para os hóspedes do tio, que lhe manifestaram seu pesar e a acompanharam com os olhos, enquanto vagarosamente ela deixava a sala. — Boa noite, madame — despediu-se lorde Tancred, à porta — Algum dia

ainda cruzaremos espadas. Por toda resposta Zara lhe volveu um aniquilador olhar daqueles sombrios olhos, e ele a seguiu até que a condessa desapareceu pela escada. — Uma extraordinária e formosa mulher a sua sobrinha, hein, Markrute? — ouviu ele de um dos pomposos gentlemen, no momento em que voltava para a lareira, a cuja proximidade estavam sentados. A observação encheu-o de raiva, não sabia bem porque. Francis Markrute, que não perdia os seus momentos, casualmente começou a falar da sobrinha, dizendo ser dotada de um temperamento interessante e misterioso. Linda, linda na expressão da palavra, talvez não fosse… Não, não era. Possuía uma pele soberba, olhos e cabelos admiráveis, mas os traços nada tinham de particular. — Não concordo que Zara seja linda, meu amigo. A beleza sempre sugere a ideia de bondade e ternura. Minha sobrinha faz-me lembrar uma pantera negra, do Jardim Zoológico, mas a gente não sabe… se já foi amansada. Tais observações não foram feitas, calculadamente, para suavizar o crescente interesse e frenética atração que lorde Tancred sentia. Francis Markrute conhecia os seus ouvintes, e nunca desperdiçava palavra. Então abruptamente voltou ao caso do Canadá, até que os dois magnatas, em seu próprio terreno, trataram exaustivamente do assunto e depois se despediram. Os quatro homens desceram, juntos, as escadas. No instante em que Turner e outros criados ajudavam os magnatas a vestir o sobretudo, o financista voltou-se para lorde Tancred: — Quer fazer-me companhia a um charuto, antes de ir à sua ceia? Refestelados ambos em enormes poltronas, na confortável biblioteca, prosseguiram na sua palestra. — Espero, meu caro rapaz, que você tenha conseguido todas as informações desejadas a respeito do Canadá. Ninguém mais influente do que sir Phillip e o coronel. Eu perdi… lorde Tancred interrompeu-o:

— Não me interessa mais, nem um pouquinho, esse negocio do Canadá! Já tomei a minha resolução: se você falou seriamente no que me disse hoje, caso-me com sua sobrinha, pouco importa que tenha ou não um real de seu. Sem sombra de dúvida, os planos de Francis Markrute tornaram-se realidade mais depressa do que ele esperava. Todavia, não manifestou a menor surpresa. Limitou-se a levantar docemente as pálpebras e a dizer, em meio de espirais de fumaça: — Sou sempre sério no que digo. O que, sim, não quero, é que os outros se decidam cegamente. Agora que você viu minha sobrinha, está certo de que ela lhe convém? Já pensei nisso tudo, não nesta noite, e não há duvida que minha sobrinha é uma pessoa difícil. Não será fácil tarefa, ao homem que a desposar, controlá-la. — Não me importo com mulheres dóceis, Francis. Justamente essa qualidade, que você mencionou, é que me decidiu. Por Deus! Onde é que viu, em qualquer criatura, tamanha altivez? É de a gente dedicar toda a inteligência para descobrir a razão daquele orgulho! — Minha sobrinha é capaz de cerrar os seus dentes e, mesmo, trancar a boca quando não quiser falar. Não vá dizer mais tarde, Tancred, que o constrangi a recebê-la cegamente. — Por que me olhava ela com tanto ódio? — ia indagar lorde Tancred, quando repentinamente se calou. Era costume dele, quando tomava uma resolução, jamais descer a indagações ou pormenores, que deixava para verificar por si mesmo, mais tarde. Contudo, desejava saber uma coisa: realmente, consentira ela em desposá-lo? Se assim fosse, teria suas razões, e por certo nenhuma delas se referia à pessoa dele. Entretanto, nem de longe lhe passou pela ideia que tais razões fossem sórdidas ou mesquinhas. Sempre ele se expunha a perigosos riscos. Acaso não montara os mais indomáveis pôneis, no campo, quando os treinava para o pólo? Não cavalgara xucros? Não andara à caça de animais ferozes, para abatê-los? Por que não lidar, agora, com uma difícil esposa? Isto atê comunicaria um adorável sabor ao mister. Não obstante, era honesto para si mesmo: sabia que tudo aquilo não era puro instinto, e havia um quê de encantamento a dominá-lo. Mais ainda: devia

conquistá-la inteira e unicamente para si. — Com toda a certeza, você há-de querer a sua história — disse Francis Markrute, realmente admirado ante a rendição do amigo àquela arremetida, e que se mostrava benévolo quando queria. Havia o que quer que fosse de grandioso, de verdadeiro naquilo tudo. Aliás, o financista nunca se arriscava em pequenas "paradas". — Como você não conhece a sua historia, vou contar-lha — prosseguiu Francis Markrute — Ela é filha de Maurice Grey, um dos irmãos do velho coronel Grey, de Hintingdon, conhecido de todo o mundo, e ficou viúva de um sujeito bruto, cujo nome não vem ao caso, mais ou menos há um ano. Foi uma esposa imaculada e filha devotada. Provavelmente, o singular temperamento que possui originou-se de tal fato. lorde Tancred ergueu-se da poltrona. À simples lembrança daquela mulher e do seu temperamento, sentia uma viva emoção. Acaso estava realmente apaixonado? E apaixonado logo depois de uma noite? — Agora, meu bom rapaz, devemos regular o nosso ajuste — concluiu o financista — O dote de minha sobrinha, conforme já lhe falei, será principesco. — Recuso-me terminantemente a tratar disso, Francis. Já lhe disse que desejo a sua sobrinha para minha esposa. Você pode acertar tudo com o meu advogado, uma vez que insiste nisso, e regular com sua sobrinha a parte que lhe diz respeito. A única coisa que me interessa saber é se você tem certeza de que ela se casa comigo. — Certeza absoluta — respondeu o financista, cerrando os olhos — Se tivesse alguma duvida, não lhe teria feito, hoje, nenhuma proposta. — Bem. Então está tudo decidido e eu não lhe pergunto por quê. A única coisa que desejo saber é quando poderei vê-la de novo e quando nos casaremos. — Vá à cidade, amanhã, almoçar comigo, e conversaremos sobre isso. Falarei com minha sobrinha e lhe direi quando se avistarão. A meu ver, o casamento pode realizar-se em princípios de novembro, não acha? — Esperar ainda seis semanas inteirinhas! — protestou lorde Tancred — É

preciso tanto tempo para arranjar o enxoval? Não pode ser antes? Desejo estar aqui no início da caçada que meu tio Glastonbury vai realizar a dois de novembro e, se estivermos casados de novo, por esse tempo estaremos longe, em viagem de núpcias. Você deve tomar parte nessa caçada, Francis. A propósito, é a mais agradável de todas, à vista da quantidade de passatempos que encerra: um dia é destinado às perdizes e os outros à caça de animais de pelo. Além disso, meu tio escolheu a dedo os seus convidados, e nenhum cacete para esta temporada, porquanto coincide com o aniversário de Ethelrida. — Terei grande prazer — disse Francis Markrute, com os olhos abaixados, de sorte que lorde Tancred não pôde notar a alegria que neles reinava. Despediram-se muito cordialmente, e o novel fiancé desejou uma boa noite ao amigo, com a feliz certeza em seus ouvidos de que poderia casar-se com tempo de estar de volta, após uma semana de lua de mel, para a caçada de Glastonbury. Assim que o inglês saiu, o primeiro gesto de Francis Markrute foi sentarse e assinar um cheque de mil libras para o Asilo de Crianças Inválidas, pois que acreditava em donativos em ação de graça. Depois, esfregando suavemente as mãos, subiu para deitar-se.

CAPÍTULO V A GRANDE NOVIDADE

QUANDO lorde Tancred deixou a residência de Francis Markrute, ao contrario do que dissera, não foi cear no Savoy. Preocupava-o seriamente a decisão tomada e, por isso, dirigiu-se diretamente para o seu apartamento, à rua de S. Jaime. Sentado confortavelmente numa enorme poltrona, pôs-se a pensar. Evidentemente, agira sob um louco impulso, mas não se arguia do passo dado ou lamentava-o. Fora levado àquela resolução por uma força mais forte do que quer que até agora intimamente se conhecesse. Entretanto, que vida lhe estaria reservada com esta estranha mulher? Não podia fazer a mínima ideia de qual fosse, mas não duvidava encerrasse cenas de grande excitamento. Em todos os sentidos, ela não desmerecia dos seus parentes: sua própria mãe, lady Tancred, filha do último e irmã do atual duque de Glastonbury, não possuía maneiras mais distintas que as da condessa Shulski. Ao fazer, de si para consigo, este cotejo, lembrou-se de escrever à sua mãe a fazê-la ciente da grande novidade. Depois, começou a relembrar todas as mulheres de que gostara — ou imaginara gostar — a partir do instante em que deixara o colégio de Eton. As duas aventuras que mais o emocionaram no seu segundo ano em Oxford foram, talvez, as mais sérias; o episódio com Laura Highford, a última de suas inclinações, felizmente já se passara, e sempre lhe constituirá quase que um aborrecimento. Em todo caso, nenhuma dessas mulheres deste mundo ou, mesmo, do outro, tinha motivos para censurá-lo, e ele sentia-se livre e feliz. Se desejasse mesmo amarrar-se pelos sagrados liames, não estava em condições de servir para nenhuma de suas exnamoradas. Durante os últimos oitocentos anos, desde quando Amaury Guiscard, da casa de Hauteville, cujas ousadas façanhas ofereceram soberanos para a metade de Europa, andara pelo Velho Mundo com seu duque William, e foi recompensado com a dádiva das terras de Wrayth, tomadas aos saxãos, Amaury e William periodicamente se meteram em loucas aventuras. Talvez o

sangue aventureiro de Guiscard corresse nas veias do descendente. Depois, pôs-se a pensar na gentil figurinha da noiva, e não na sua exquisitice. Achava-a desesperadoramente sedutora. E como não lhe seria delicioso quando a tivesse persuadido a palestrar com ele, e a ensinasse a querer-lhe — porque certamente mais cedo ou mais tarde, havia de querer-lhe! Era quase com todo o seu sangue frio que ela desejava desposá-lo — a um estranho, mas ele não se permitiria pensar sempre nisso. Na verdade, com aquele rostinho a sua noiva não seria uma criatura eternamente dotada de sangue frio, mesmo porque cada traço de suas feições revelava capacidade para a emocionante paixão. Nem ao menos se tratava de astúcia ou de gesto calculado. Tudo aquilo era simplesmente adorável. E os seus beijos! A este pensamento, abruptamente deixou a poltrona e sentou-se à mesa, para escrever um bilhete à sua mãe, ferindo diretamente o assunto. O correio da manhã seguinte entregá-lo-ia em sua vivenda de Queen Street, Mayfair. Depois, ele foi deitar-se. Dizia o bilhetinho: Querida mãe: Finalmente, vou casar-me. Minha noiva é filha de Maurice Grey (irmão do velho coronel Grey de Hintingdon, que morreu o ano passado), e viúva de um polonês de nome Shulski. Condessa Shulski é o nome de minha noiva. (Neste ponto ele fez uma pausa, porque repentinamente se lembrou de que não sabia o nome de batismo da noiva). Ela é, também, sobrinha de Francis Markrute, a quem a senhora recebeu ou pareceu receber tão friamente, na estação passada, em Cowes. A condessa Shulski é formosíssima, e espero que há-de agradar-lhe. Amanhã a senhora deve visitá-la, mamãe. Mais ou menos às dez ai estarei para fazermos, juntos, o desjejum. O filho que muito lhe quer, Tancred.

Aquela orgulhosa mãe inglesa notou, logo, que se tratava de uma carta

séria, pelo modo por que estava assinada. Comumente ele terminava os seus raros bilhetes com um "todo o amor de Tristram". Ela se inclinou sobre os travesseiros e cerrou os olhos. Adorava o filho, mas acima de todas as coisas era dama da sociedade e se habituara a estabelecer os seus juízos e raciocínios. Tristram já não estava mais em idade de meter-se em embaraços, e por certo algum motivo imperioso lhe ditara aquele gesto. Apaixonado — com certeza não estava. Bem que o conhecia, e sabia quando o filho se apaixonava. ultimamente, já há coisa de anos que não mostrara indícios de paixão, e aquela sua ajuizada conduta, no tocante à amizade que devotara a Laura Highford, não se podia chamar de amor. Então, os seus pensamentos se voltaram para Francis Markrute. Sabia-o tão fabulosamente rico — e neste ponto ela não pôde conter um suspiro de alívio. Como quer que fosse, naquele casamento entrava a questão de dinheiro, embora — bem o sabia — essa não podia ser a razão principal. Conhecia, também, o ponto de vista do filho a respeito de viúvas ricas e, de outro lado, não ignorava que, mau grado todos os seus gostos desportistas e moderna irreverência pela tradição, no seu íntimo o filho era de natureza reservada e orgulhosa, intensamente orgulhoso das honrarias de seu antigo nome. Qual seria, então, o motivo deste noivado? Dentre em pouco havia de saber: eram oito e meia da manhã, e o "mais ou menos às dez" de Tristram deveria andar aí pelas dez e meia ou um quarto pra onze. Tocou a campainha para chamar a criada, e ordenou-lhe fosse dizer às filhas que vestissem o penteador e viessem ter com ela. Não demorou que as duas irmãs de lorde Tancred ali aparecessem. Eram duas mocinhas bonitas, no verdor dos anos, cujo respeito pela mãe raiava pelo temor. Ambas a beijaram e sentaram-se à beira da cama. Sentiam que iam tratar de assunto sério, porquanto jamais lady Tancred se avistava com qualquer delas se não estivesse com o cabelo já penteado, pouco importa fossem suas filhas. — O seu mano Tristram vai casar-se com uma tal condessa Shulski, sobrinha de Mr. Markrute, com quem já nos encontramos — disse-lhes a velha dama inglesa, indicando a carta sobre a colcha.

— Oh! Mamãe! — exclamou Emilia. — Não diga, mamãe — secundou Mary. — Nós já a vimos? Nós a conhecemos, mamãe? — Não. Creio que qualquer de nós ainda não a viu. Certamente ela não esteve com Mr. Markrute em Cowes, e nenhuma de nós esteve na cidade a não ser na semana passada, para o casamento de Flora. A meu ver, Tristram encontrou-a na Escócia, ou possivelmente alhures. Devem lembrar-se que ele foi a Paris na Páscoa, e novamente lá esteve em julho. — Gostaria tanto de saber como é ela! — disse Emilia. — É moça? — indagou Mary. — Tristram nada disse a esse respeito, a não ser que é formosa. — Que surpresa! — exclamaram ambas as mocinhas. — Sim, é uma coisa inesperada, — concordou a senhora — mas Tristram é criterioso, e seria incapaz de escolher uma qualquer que me desagradasse. Vocês precisam estar prontas logo depois do almoço, minhas filhas, para saírem comigo em visita. Tristram vem fazer o seu desjejum aqui, de sorte que vocês farão o seu no quarto. Preciso falar com ele. E as mocinhas, que ansiavam por fazer mil e uma perguntas à sua mãe, compreenderam que deviam retirar-se. De novo beijaram a sua austera progenitora, e dirigiram-se para o seu espaçoso quarto, no fundo da casa, onde viviam em comum com as suas alegrias e os seus pesares. — Você não acha tudo isso extraordinário, Emilia? — indagou Mary, quando ambas já estavam em seu quarto e aninhadas na cama da primeira, à espera do desjejum — Mamãe sentia-se bastante emocionada, pois que estava muito severa. Sempre imaginei que Tristram gostasse de Laura Highford. E você? — Não. Justamente o contrário. Creio até que o aborrecia. Laura importunava-o. É uma gata, e nunca pude compreender o namoro entre os dois. — Todos os homens são como o mano. Todos eles devem ter à mão uma

mulher para se divertirem, e todos têm medo de mocinhas — respondeu sensatamente Mary. — Faço votos que a noiva do mano seja como nós, não? — disse Emilia — Mr. Markrute é riquíssimo, e talvez também ela seja. Que felicidade se puderem viver em Wrayth! Que delícia abrir-se Wrayth de novo e a gente poder novamente passar lá uma temporada! — Por certo que sim — concordou Mary . Lady Tancred esperou o filho numa saleta de visitas. Tanto quanto o filho, lady Tancred era um espécime da velha aristocracia inglesa, com os seus cabelos grisalhos cuidadosamente penteados e o formoso, severo rosto de traços finos. De uma austeridade indiscutível e vestidda com apuro. Fora educada naquela escola que ensina a reprimir todas as emoções, e a isso de longa data se habituara. Essa a razão por que não batia os pés com a impaciência que a devorava. Faltavam poucos minutos para as onze quando Tristram chegou. Delicadamente apresentou suas desculpas e beijou-a na face. O seu cavalo Satã estava de uma ligeireza a toda prova, o que não era comum, de sorte que foi obrigado a pô-lo a meio trote e por duas vezes passar pelo Row, antes de vir. E o desjejum? Pronto? Estava tinindo de fome! Sim, o desjejum estava na mesa, e mãe e filho passaram para a sala de jantar, onde o velho mordomo os esperava. — Quero de tudo, Michelham — disse sua excelência — Estou simplesmente faminto. Depois, pode ir-se. Lady Tancred me servirá o café. O velho criado inclinou-se diante dele com um "prazer de ver sua excelência bem disposto" e, pondo à sua frente fumegantes pratos de fina baixela, silenciosamente se retirou e deixou-os sozinhos. Lady Tancred também se inclinou para o filho. Não pôde conter o gesto. A seu ver, ele lhe parecia perfeitamente o que devia parecer, magnificamente forte e formoso, e esplendidamente trajado. Qualquer mãe não deixaria de ficar orgulhosa com tal filho. — Tristram querido, conte-me agora tudo.

— Não há muito que contar-lhe, mamãe, exceto que vou casar-me lá para os fins de outubro, creio que a 25 e… que a senhora vai ficar encantada com minha noiva, Zara, hein, mamãe? — lorde Tancred teve o cuidado de mandar um bilhetinho a Francis Markrute logo de manhã, indagando do nome por inteiro da noiva, para que o dissesse à sua família. Por isso é que o nome de Zara ali foi pronunciado com toda a naturalidade — É uma pessoa um tanto singular, e… as suas maneiras são um tanto esquisitas. À primeira vista, a senhora não vai apreciá-la. — Verdade, querido? — disse lady Tancred, um tanto hesitante — Maneiras esquisitas, você disse? Afinal de contas, está aí uma coisa que não me desgosta. O que sempre censuro são essas liberdades dos tempos de hoje. — Não há a menor partícula de liberdade no seu modo de tratar! — retorquiu Tristram, servindo-se de uma costeleta de porco e sorrindo meio amarelo. Tinha o espírito levantado para tudo que dizia respeito à sua noiva, exceto para aquele seu modo de tratar, que o subjugava e o seduzia. Para que a mãe não o cruzasse de perguntas, achou melhor contar-lhe, de uma vez, o que lhe deveria contar. — Como vê, mamãe, tudo isso se verificou duma hora para outra. A minha decisão, tomei-a mesmo a noite passada, e imediatamente lhe escrevi. Ela é extraordinariamente rica, o que, sob um certo ponto de vista, é uma pena, embora eu pense que podemos de novo viver em Wrayth e levar uma existência como outrora. Contudo, creio não ser necessário dizer-lhe, mamãe, que não vou casar-me por essa razão. — Por certo que não. Conheço-o bem, meu filho, mas não posso concordar com esse seu ponto de vista quanto à fortuna que ela possui. Estamos numa época em que os mais antigos e mais dignificados nomes de nada valem se não possuírem dinheiro para manter-lhes as tradições, e nenhuma mulher pode comprar o título e a posição de um Guiscard, mesmo que esteja coberta de ouro. Ha inúmeras coisas que você, em compensação, pôde dar-lhe, coisas que somente centenas de anos podem produzir. Fique certo de que nada receberá de sua noiva que não possa igualmente pagar-lhe, lembre-se disto. Unicamente um falso sentimento é que o levaria a pensar de

modo contrário. — Também penso assim, minha mãe. Ela é bem educada, conforme já lhe disse, e já deu provas disso — afirmou rindo lorde Tancred. — Lembro-me do velho coronel Grey — continuou lady Tancred — Há muitos anos que ele passava sempre de carro. Mas não me recordo do seu irmão. Acaso ainda vive na Europa? Estava



uma

pergunta

embaraçosa.

O

jovem

noivo

ignorava

completamente o que quer que dissesse respeito ao sogro em perspectiva. — Sim — respondeu o filho, precipitadamente — e Zara casou-se muito criança. Ainda está muito moça, pois conta vinte e três anos de idade. O seu marido foi um brutamontes, e ela presentemente está morando com Francis Markrute. Francis é um excelente camarada, mamãe, embora a senhora não tenha simpatizado com ele. Dotado de uma sólida cultura, é terrivelmente divertido com o seu modo cínico de encarar a vida. A senhora há-de notar isso, quando o conhecer melhor. Como estrangeiro, é um excelente e curioso amigo. — De que nacionalidade é Mr. Markrute? — indagou lady Tancred. Na verdade, todas as mulheres, mesmo as próprias mães, sempre se saíam com perguntas tão aborrecidas. — Palavra que não sei — respondeu o filho numa risada forçada — Talvez austríaco, talvez russo. Nunca pensei nisso, mesmo porque Francis fala corretamente o inglês e, de mais a mais, naturalizou-se inglês. — Contudo, meu filho, uma vez que você vai entrar na família, não acha melhor sermos mais prudentes e colhermos informações nesse sentido? Ao fazer essa pergunta, lady Tancred notou o verdadeiro espírito dos Guiscards, que por vezes e debalde tentara combater em seu marido, nos primeiros anos de casada, mas a que por fim também se submetera. As sobrancelhas fortes, lisas de Tristram juntaram-se de tão franzida a sua testa, e a boca, de traços e bem modelada, cerrou-se com uma maldade. — Decidi-me ao casamento, mamãe, e vou casar-me. Estou satisfeito com a minha decisão, e peço-lhe que se conforme com o que resolvi. Não vou

procurar nenhuma informação, e rogo-lhe que, de sua parte, não se dê a esse incômodo. O que quer que os outros possam dizer, não me faz mudar de ideia. Por favor, um pouco mais de café. A mão de lady Tancred tremia um bocadinho ao despejar café na xícara do filho. Todavia, não disse palavra, e entre ambos reinou silencio durante um minuto. Entretanto, Tristram se fartava com o desjejum, porquanto o seu apetite era sem precedente. — Vou sair com as meninas imediatamente após o almoço, para aquela visita, e perguntarei pela condessa Shulski. É assim que você pronuncia a palavra, não é? — Sim. É possível que a encontre em casa. Entretanto, talvez seja melhor por hoje a senhora deixar o seu cartão de visita. Amanhã ou depois iremos juntos visitá-la. Como sabe, enquanto não sair a noticia do Morning Post, nada está definitivamente assente. Creio, mesmo, que Zara ache melhor recebê-la depois de publicada a notícia. A medida parecia-lhe acertada, mesmo porque ainda não dera à sua noiva o presente de noivado. Como não notasse que sua mãe estava profundamente desapontada, o seu temperamento jovial se expandiu. Escancarou-se numa boa gargalhada, e de um salto dela se acercou, beijando-a e lhe prodigalizou carícias próprias de crianças. Esse seu gesto, tantas vezes repetido, é que o tornava o filho predileto. — Querido — murmurou lady Tancred — se você se sente feliz, a ponto de rir-se desse modo, também eu sou feliz, e farei como achar melhor. Os seus olhos então se enevoaram e ela apertou a mão do filho. — Adorada mãe! — exclamou lorde Tancred, beijando-a de novo. E, tomando-a pelo braço, ambos entraram na sala de visitas. — Agora, preciso ir e mudar de roupa — disse ele, olhando para o seu trajo de montaria — Vou à cidade, almoçar com Markrute, e assentar todos os pontos do noivado. Bem, até logo, mamãe. Provavelmente vê-la-ei à noite. Michelham, chame um táxi — ordenou ao mordomo, que no momento entrava

na sala com um bilhete. Depois de novamente beijar a mãe e já pronto para partir, ao alcançar a porta voltou-se e recomendou-lhe: — Por favor, não diga nada a ninguém, enquanto a noticia não aparecer no Morning Post. — Nem mesmo a Ciril? Esqueceu-se de que ele está de partida, da casa do tio Charles, de volta para o Colégio de Eton? Além disso, as meninas já sabem da novidade. — Oh! Ciril! Por Deus, que me esqueci dele! Sim, pode participar-lhe. É um excelente garoto e compreenderá… Mas, escute… — e, tirando algumas libras do bolso, entregou-as à mãe, dizendo-lhe: — são para ele, com a condição de por enquanto não divulgar a noticia. E partiu, com um sorriso nos lábios. Minutos depois, um rapazinho franzino, com quatorze anos de idade, muito cheio de si e com aqueles deliciosos ares próprios dos estudantes de Eton, saltou de um táxi. Pagando-o com a insolência de um lorde, em pouco surgiu na sala de visitas de sua mãe. Houve um hiato na família depois do nascimento de Tristram, causado pela morte de outros dois rapazes, vítimas de difteria, e então nasceram as duas mocinhas, uma de dezenove e outra de vinte anos, e, por último, Ciril. Os seus grandes olhos azuis abriram-se com espanto e interesse ao ouvir a importante novidade. Por todo comentário, o caçula observou: — Ela deve ser doutro mundo, uma vez que Tristram a escolheu. Mas, que azar! Agora ele não vai mais ao Canadá e não teremos mais aquele rancho!

CAPÍTULO VI O FUTURO DE MIRKO

Francis Markrute também se avistou com a sobrinha, por ocasião do desjejum, ou pouco depois. O tio encontrou-a prestes a terminá-lo, sentada numa saleta do andar superior que lhe destinara para seu uso pessoal. Antes de entrar, bateu na porta e pediu licença. Depois de dizer que sim, Zara levantou-se com a cerimoniosa polidez que sempre lhe caraterizava a conduta diante do tio. Boa parte daquela polidez era um misto de desdém e ressentimento. — Vim procurá-la para assentarmos alguns detalhes do casamento — disse-lhe ele, acenando-lhe a mão para que se conservasse sentada e procurando uma cadeira, em que também se sentou. A palavra "casamento", estremeceram as narinas da condessa Shulski, mas ela nada disse. Difícil, extremamente difícil tratar-se com aquela mulher, por causa daqueles silêncios. Assim procedendo jamais encorajava a quem quer que com ela tratasse. Francis Markrute bem que conhecia aquele método e admirava-o, porque sempre obrigava o interlocutor a abrir-se. — Você já se avistou com lorde Tancred, a noite passada. No tocante à pessoa dele, creio que nada tem a objetar, mesmo porque se trata de um gentleman na acepção da palavra, como verá mais tarde. Novo silêncio. — Combinei com Tancred que o casamento se realizará em outubro, mais ou menos a vinte e cinco, creio eu. De modo que precisamos cuidar do seu enxoval. Você necessita de um guarda-roupa de acordo com a elevada posição que vai ocupar. Acho melhor que o encomende em Paris… Só então é que reparou nas roupas da sobrinha e ficou chocado, porquanto a que usava e a que vestira na véspera estavam bem gastas pelo uso. De si para consigo, concluiu que se ainda não atentara em tal fato era em virtude de suas maneiras soberanas e ares principescos. Francis Markrute

estremeceu de orgulho porque, afinal de contas, Zara era sua sobrinha. — Que satisfação enorme a gente sentirá em vesti-la esplendidamente! Eu já teria cuidado disso, se me lembrasse que se tratava de uma simples questão de dinheiro. Entretanto, vamos arranjar tudo, imediatamente, e todos nós seremos felizes. Não estava, na natureza da sobrinha, suplicar favores para o irmãozinho e para Mimo, sem pagá-los. E o pagamento a esses favores era o preço de si mesma. Por isso, tudo o que desejava era obter o mais que pudesse em beneficio de ambos. — A tosse de Mirko de novo voltou — disse ela, tranquilamente — Uma vez que aquiesci à proposta de meu tio, quero oferecer-lhes recursos para procurarem uma região quente, sem demora. Mirko e seu pai acham-se presentemente em Londres e morando numa casa paupérrima. — Já pensei nisso tudo — respondeu Francis Markrute, franzindo a testa à menção do nome de Mimo — Em Bournemouth, onde o clima é excelente para pessoas fracas do pulmão, existe um magnífico especialista. Já me entendi com ele, e combinamos que receberá o menino em sua casa, e o tratará com todo o desvelo. Podemos arranjar-lhe um preceptor e, aos poucos, à medida que se tornar mais forte, o menino pode voltar a Paris ou a Viena, e entregar-se ao estudo de violino. Quero que compreenda, Zara: se você concordar com as minhas condições, o pequeno terá o seu futuro garantido. Intimamente, Zara indagou: "E Mimo"?, mas achou prudente não traduzir, por agora, o seu pensamento. Conseguir o tratamento de Mirko por um médico especialista em clima adequado e com horário para deitar-se, e alimentar-se não com comida imprópria, mastigada em horas diferentes e em restaurantes, tudo isso parecia excelente e maravilhosa coisa, uma vez que o pequeno se sentisse feliz longe do pai. — Há crianças nessa casa? — indagou a condessa lembrando-se de que Mirko era um menino esquisito e não gostava de crianças. — O médico tem uma única filha, mais ou menos da idade do seu irmão. Nove anos e meio, não é? Também feia e delicada, de modo que ambos podem brincar juntos.

Isso já era promissor. — Eu gostaria de avistar-me com o médico e ver a sua casa, antes de Mirko partir — disse a sobrinha. — Perfeitamente. Você pôde fazer isso. Anualmente vou destinar uma certa quantia para ser colocada em nome do menino, de maneira que quando crescer e já tiver adquirido uma certa competência, será senhor de uma pequena fortuna. Vou redigir um documento para você assinar, e assim tudo ficará regularizado. — Pois não. Agora, dê-me algum dinheiro, a fim de que eu possa ocorrer às necessidades atuais de ambos, até que meu irmãozinho siga para esse lugar. Não consinto em entregar-me enquanto não estiver certa de que livrei da penúria aqueles a quem amo. Preciso imediatamente de mil francos, quarenta libras na sua moeda, não é? — Dentro de minutos irei buscar o dinheiro — afirmou Francis Markrute que estava de bom humor — Entretanto, fixada já essa parte da nossa combinação, peço-lhe que desde já trate de pensar em receber o seu noivo. — Não quero vê-lo — participou-lhe a sobrinha. Francis Markrute sorriu. — Possivelmente não, mas isso faz parte do ajuste. Você não pôde casar-se sem se avistar com o seu noivo! Ele virá visitá-la, logo à tarde, e certamente lhe trará o anel de noivado. Confio em sua honra, Zara, que não há-de mostrar-se desgostosa em sua presença e deixá-lo sobremodo embaraçado. Não se esqueça de que o bem-estar de seu irmão depende desse casamento. Se por qualquer motivo lorde Tancred desmanchar o noivado, a transação entre mim e você está desfeita. O olhar sombrio de um ser feroz novamente se refletiu nos olhos da condessa, e uma gélida tranquilidade dela se apossou. Contudo, pôs-se a falar um tanto apressadamente, de quando em quando, tomando fôlego, em meio das sentenças. — Bem, uma vez que o senhor deseja tanto isso, para um fim que tem em vista… e que não sei qual seja… cumpre-me dizer-lhe… que disponha as coisas de modo que eu possa ir a Paris… sozinha, longe dele, até chegar o dia

do casamento. Tanto como eu, ele deve odiar todo este ajuste. Provavelmente, ambos não passamos de marionetes em suas mãos, meu tio. Explique ao moço que nisto tudo estou longe de pretender se trate de um noivado, especialmente aqui, nesta Inglaterra, onde mamãe dizia que todo o mundo ostenta afeição e os noivos se querem muito. Mon Dieu! Representarei meu papel, quanto às visitas de cerimônia para sua família, que imagino aqui se verificarão. Mas depois disso, a partir de hoje, não mais quero encontrar-me sozinha com ele, ou com ele comunicar-me de qualquer jeito. Está entendido? Francis

Markrute

olhou-a

com

crescente

espanto.

Achava-a

magnificamente sedutora com essa disposição de ânimo. Com o seu hábito de colher observações abstratas, sempre conseguia infindáveis prazeres tirados de outras criaturas. Chegara ao ponto de observar as pessoas, através da angústia de uma emoção, como o criador observa os seus cavalos em exercícios. — Está entendido — respondeu ele, compreendendo que não devia insistir mais sobre o assunto. O temperamento da sobrinha não lhe permitia voltasse atrás, depois de tomada uma resolução, e o tio estava certo de que podia contar com a honra e o orgulho de Zara para satisfazer a parte que lhe cumpria no ajuste, se não estivesse desesperada além do que lhe era possível suportar. — Vou explicar tudo isso a lorde Tancred, no almoço, e assim você o receberá ainda esta tarde. Depois, partirá na sua viagem a Paris, e ali permanecerá até o dia do casamento. Creio que é absolutamente necessário você receber a família de lorde Tancred, não acha? — Também eu já disse isso. Faça, porém, com que a visita seja curta e que não venham todos da família. — Muito bem. Agora não mais a prenderei. Você é uma linda mulher, Zara — disse o tio, levantando-se e beijando-lhe a mão — Nenhuma das damas reais, suas antepassadas, jamais se pareceu mais com uma rainha. Inclinando-se, saiu do aposento e deixou-a silenciosa. Assim que ficou sozinha, a condessa Shulski cerrou as mãos e durante algum tempo se pôs a andar de um lado e de outro. O seu corpo de serpente

torcia-se com passional raiva e sofrimento. Sim, era uma linda mulher, e tinha o direito à vida e aos prazeres como qualquer outra. E agora estava condenada de novo ao cativeiro, e cativeiro de um esposo! — Les infames! — rugiu a condessa — Mas, quanto àquela parte, não suportarei! Até o dia do casamento, dissimularei o mais que puder. Depois… Se lorde Tancred a visse nessa ocasião, ficaria sabendo que logo necessitaria daquela sua coragem ao enfrentar o grande leão! Entretanto, antes que um criado lhe trouxesse um envelope com as quarenta libras-papel, Zara já estava calma, e preparava-se para sair. O que havia de bom naquilo tudo cumpria-lhe contar aos dois pobres queridos, no seu retiro de Tottenham Court Road. O tio lhe pusera à disposição um dos seus diversos automóveis, mas a sobrinha preferiu um táxi, por convir mais assim aparecer naquele bairro. De si para consigo, resolveu ser mais prudente e não entregar todo o dinheiro, de uma vez, a Mimo. De longa data sabia o que Mimo faria de toda a importância instantaneamente, não só cuidaria de arranjar melhor hospedagem, como também trataria de um jantar principesco no mais próximo restaurante e, além disso, certamente compraria bombons e presentinhos para Mirko e roupas novas. Renovaria todos esses gastos enquanto houvesse dinheiro e depois, de novo, cairia naquela penúria. Se Mirko aquiescesse em separar-se, por algum tempo, daquele amoroso e desajuizado pai, isto seria bem melhor para a sua saúde, e aí estava uma chance de algum dia tornar-se útil à sociedade. Mimo sempre se mostrara tão bondoso e agia tão sem juízo! Com o dinheiro que pessoalmente ela conseguira, graças ao ajuste feito, Mimo poderia morar mais confortavelmente em qualquer estúdio, em Paris, onde poderia pintar aqueles quadros que jamais venderia, e se avistaria com os amigos. Tinha-os em número reduzido, os quais, quando suas roupas estavam em bom estado, o cumprimentavam e lhe notavam o encantador e débonnaire sorriso. Mimo podia ser um divertido e agradável hóspede, muito embora estivesse um tanto mudado pelos anos e pela pobreza. Quanto a Mirko, estaria algures, restabelecendo-se. Seguramente, valia a

pena o sacrifício. O táxi parou numa rua pobre. A condessa saltou, pagou o chofer e bateu numa escura porta. Desajeitada e imunda criadinha, incumbida de todo o serviço da casa, veio atender. Não, o cavalheiro e seu filho não estavam, mas disseram que regressariam dentro de minutos. Desejaria a senhora entrar e esperá-los? Zara aquiesceu à sugestão, e acompanhou aquela desalinhada e suja criadinha pelas escadas, até alcançarem uma água-furtada, em cima. Aparentemente, aquilo dava ideia de um estúdio. Ali se abria uma grande janela por onde entrava bastante luz, na parte norte, e tudo estava bem limpo, embora os miseráveis móveis falassem de melhores dias. O asseio constituía um das peculiaridades do conde Sykypri. Onde quer que

estivesse,

qualquer

aposento

que

ocupasse,

sempre

o

trazia

irrepreensivelmente limpo. O seu instinto ordeiro parecia uma variante do resto do seu caráter versátil. O tédio de um gentleman é que jamais o abandonava. Zara reconheceu logo a velha mala de viagem, pendurada em dois cavaletes para ocultar as duas caminhas de ferro, onde Mimo e Mirko dormiam. O espanto da condessa começou nas proximidades de um terceiro cavalete. Aquilo não recomendava muito a ambos, na situação precária em que se encontravam: os violinos de Mirko e de seu pai, fechados em sua caixa, achavam-se sobre uma cadeira, ao lado de uma pilha de músicas, e o jarro de água estava todo florido com um ramalhete de crisântemos, evidentemente comprado de uma carrocinha, na rua. A condessa Shulski sofrera muitas vicissitudes em companhia de Mimo e Mirko, desde que o marido falecera, mas raramente, parece que uma só vez, desceram a tamanha miséria. Quase sempre habitavam algum pequeno apartamento em Paris ou em Florença, não raro alimentando-se mal nalgum restaurante do quarteirão. Enquanto viveu o conde Shulski, ou residira nalgum elegante vilino em Nice, ou levara uma existência de peregrinação em hotéis. Nos últimos anos, às vezes durante meses e meses, quando o marido desaparecia no seu viver escuso, deixava-a em alguma antiga fazenda normanda, onde a infeliz esposa elevava as mãos aos céus por livrar-se

daquela odiosa presença. Então, Mimo e Mirko iam procurá-la, e enquanto ambos se entregavam à pintura ou à música, Zara se punha a ler. Toda a sua vida em casa passava-a entregue à leitura. Na sociedade suspeita que o marido frequentava, era conhecida pelo nome de "A Pedra". Jamais se curvara a quem quer que fosse e, ao passo que sua beleza e singularidade de tipo seduziam todos os homens que a cruzassem em seu caminho, não demorava muito que a deixassem em paz. Diziam alguns que a condessa estava quase desamparada, mas outros acrescentavam que era de uma esperteza a toda a prova. Nenhuma outra mulher se conservaria silenciosa, como a condessa, durante horas e horas. Zara lembrava-se dessas ocorrências sentada numa miserável cadeira no aposento da rua Neville. Como detestara aquela atmosfera! Como detestara boêmios e aventureiros! Expressões não havia que lhe traduzissem tamanho ódio. Enquanto sua mãe vivia, nada disso se verificava. A despeito de sua queda, Elinka, irmã de Markrute e filha de um Imperador, sempre permanecera uma grande dama, jamais se imiscuindo ou associando-se a outrem, e limitando-se a viver na companhia dos seus queridos entes. No entanto, depois de morta, o infeliz Mimo por vezes teve por companheiros pessoas que não pertenciam à sua classe social. Mais uma vez os pensamentos de Zara se voltaram para a nova existência que iria viver. Entretanto, em sua mente descera uma cortina sobre isso. Vagamente sabia do modo de viver na Inglaterra, porquanto nunca tivera amigos ingleses. Um ou dois estroinas muitas vezes estiveram no vilino de Nice, mas a não ser que se tratava de homens bem apessoados e magnificamente vestidos, no mais Zara classificara-os entre as outras relações do marido. Lera inúmeras obras clássicas inglesas, mas praticamente nunca teve às mãos um romance, de modo que não podia figurar um estado de coisas que ignorava. Começava a impacientar-se, quando finalmente os dois voltaram. Foram avisados de sua presença, pois que se deram pressa em subir a escada e precipitadamente abriram a porta.

— Chérisette! Anjo! Mas que alegria! — exclamou Mirko e atirou-se em seus braços, enquanto Mimo lhe beijava a mão. Jamais ele se esquecia das suas maneiras palacianas. — Trago boas novas para contar-lhes — disse a condessa, tirando da bolsa duas cédulas de dez libras cada uma — Consegui que meu tio fosse razoável. Por enquanto aqui está alguma coisa, e ele tem um plano generoso e feliz para restabelecer a saúde de Mirko. Escutem, vou contar-lhes tudo. Ambos a rodearam e Zara se pôs a explicar, do modo mais atraente possível, o futuro que estava reservado ao irmãozinho. Contudo, mau grado o que ouvira, o formoso semblante da criança se entristeceu quando soube que devia separar-se do pai. — Mas a separação será por pouco tempo, meu benzinho — apressou-se Zara a ratificar — O necessário para você restabelecer-se e ficar forte, e receber algumas lições. Todos os meninos vão à escola e voltam às suas casas durante as férias. Lembre-se de que mamãe sempre quis que você tivesse uma educação de gentleman. — Mas, odeio os outros meninos, e foi você mesma que me ensinou isso. Oh! Chérisette, que devo fazer? E a quem tocarei meu violino? Quem me compreenderá? — Mirko mio. É uma oportunidade esplendida, meu filho! Pense nisso. Morar numa confortável casa e não sofrer privações — asseverou-lhe o pai — Na verdade, você tem um anjo por irmã e não deve mostrar-se ingrato. A sua tosse logo passará, e talvez eu possa morar na mesma cidade, e juntos sairemos a passeio. No entanto, Mirko estava amuado, o que fez com que a irmã suspirasse e apertasse as mãos. — Se ao menos soubesse quanto me custou conseguir isso! — observou a condessa, com a voz entrecortada de desespero — Oh, Mirko, se você me quiser bem, deve aceitar! Acaso não confia em mim, e pensa que lhe estou pedindo para ir a um lugar onde as pessoas são severas ou cruéis? Eu mesma irei, amanhã, verificar tudo isso, e pessoalmente quero fazer o meu juízo. Seja bonzinho, Mirko, e não me deixe triste!

Não podendo mais conter-se, o pequeno estropiado se desfez em soluços e beijou a irmã, encolhendo-se todo em seus braços e encostando a cabeça de cabelos encaracolados em seu pescoço. Por fim, ela conseguiu confortá-lo com aquela sua ternura de sempre, capaz de eclipsar o maior mau humor do menino. E assim foi que, finalmente, a condessa Shulski sentiu que o seu sacrifício, a respeito do qual ambos deviam permanecer alheios, tinha as suas compensações. Mirko pareceu reconciliado com a sorte, e certamente seria beneficiado com a mudança de clima. O instinto avisou-a de que não deveria dizer palavra ao tio que o menino ficaria perto de Mimo, porquanto a situação se tornaria em verdadeiro impasse se teimasse em separá-los. Contavam eles, até o Natal, somente com aquelas quarenta libras. Depois, receberiam um bocadinho mais, e aquela vida ao Deus dará, com o seu cortejo de misérias, logo desapareceria para sempre. E o irmãozinho teria conforto, provavelmente saúde e o seu tanto ou quanto de felicidade, afora educação e preparo para o futuro. Quem sabe se Mirko viria um dia a ser um grande artista! Este possível quadro que ela pintava em cores brilhantes, encheu os sombrios e nostálgicos olhos da criança de uma grande cintilação de prazer. Depois, a irmã cuidou de coisas práticas. Antes de mais nada, eles deviam mudar de habitação e encontrar uma melhor. Mas, neste ponto, Mimo interferiu. Estavam realmente com todo o conforto onde se achavam, embora a casa parecesse humilde. A mudança seria desagradável e, se pudessem comprar algumas camisas de linho e um terno de roupa cada um, era o quanto lhes bastava. Seria muito melhor ali permanecerem até que Mirko estivesse perfeitamente estabelecido em Bournemouth. — Só então é que cuidarei de mim — rematou o conde Sykypri — Aqui ninguém põe alho na comida, nem temos nenhum canário a amolar-nos a paciência.

CAPÍTULO VII IMPACIÊNCIA

QUER lorde Tancred, quer Mr. Markrute não chegaram atrasados ao encontro combinado no Savoy, onde iriam almoçar. Sentaram-se logo a uma das mesas bem no canto, onde poderiam conversar à vontade, sem serem interrompidos. A princípio palestraram sobre coisas triviais, enquanto crescia a impaciência de lorde Tancred sobre o assunto que o interessava. Não mais podia esperar, de modo que atirou laconicamente para o amigo: — Então? — Avistei-me, esta manhã, com ela e conversamos — respondeu o financista, servindo-se de caviar — Você não deve descurar deste fato que já lhe mencionei: Zara é um dificílimo problema. A tarefa de afeiçoá-la há-de proporcionar-lhe grande interesse. Para um homem nervoso, não sei de melhor entretenimento. Zara é uma mulher que restringiu toda a sua emoção por homens, e creio que é capaz do mais soberano desprezo pelo homem. Em todo caso, a você é que cabe o encargo… lorde Tancred estremeceu ao responder: — Sim, o encargo é a mim que cabe. Mas preciso saber tudo o que lhe diz respeito, para orientar-me. Antes de mais nada, quando posso vê-la? E qual foi a combinação? — A combinação foi que ela o receberá esta tarde, mais ou menos à hora do chá, segundo me parece. Então, você deve dizer-lhe que se tornou seu noivo, e não precisa pedi-la em casamento. Zara não quer saber de detalhes e está certa de que o casamento é coisa resolvida. Trate disso como se fosse um negócio, e depois deixe-a. Ela firmou a condição de vê-lo o menos possível até o dia da cerimônia. O modo por que se realizam os casamentos aqui, na Inglaterra, desgosta-a, porquanto — lembre-se disto — da parte de minha sobrinha, não se trata de um casamento por amor. Se você deseja conseguir o maior êxito com sua futura esposa, tome cuidado agora. Uma semana antes

do casamento aqui estará de volta, com o enxoval já encomendado. Então, você a apresentará à sua família. Tristram sorriu um tanto amarelo, e, voltando-se para o amigo, os olhos de ambos se encontraram e os dois riram-se. — Por Deus, Francis! Que o negocio é do outro mundo! Um verdadeiro e dramático romance aqui, em pleno século vinte. Não seria de admirar que me taxassem de louco os que me soubessem metido nesta enroscada! — As mais das vezes, os loucos dessa espécie é que o são menos — retorquiu Francis Markrute — O mundo está cheio de loucos aparentemente sãos. Mas, continuando no que diziamos, você certamente reabrirá Wrayth. Quero que minha sobrinha seja uma Rainha da Sociedade e que leve uma vida mantendo elevada posição. Desejo que sua família saiba que tenho em grande honra a ligação que ora estabelecemos e que considero isso como um privilégio e ao mesmo tempo ocorrência das mais comuns. Como somos estrangeiros, a respeito de quem você nada conhece, vou providenciar a importância necessária para o ajuste que fizemos. lorde Tancred escutava-o, e lembrou-se de idêntico argumento de sua mãe por ocasião do desjejum. — Conforme sabe — continuou o financista refletidamente — na vida o homem prudente paga de boa vontade aquilo que realmente deseja, como, por exemplo, você está agindo, recebendo cegamente minha sobrinha por esposa. A sua velha nobreza na Inglaterra é a única e verdadeira que ainda resta no mundo. O sistema usado em outros países, com respeito à transmissão de títulos dos ascendentes a todos os filhos mais moços ad infinitum, torna tudo isso uma verdadeira farsa. Um príncipe no Cáucaso é tão comum como um coronel em Kentucky. Na Áustria e na Alemanha encontram-se barões nas ruas. Houve um tempo em minha vida em que eu podia conseguir um título estrangeiro. Mas achei ridículo o gesto e recusei a mercê. Mas na Inglaterra, a despeito do seu divertido radicalismo, a nobreza se mantém com dignidade. É um ativo de grande valor, um seguro emprego de capital, comercialmente falando. Americanos e estrangeiros, como eu e minha sobrinha, empregamos maravilhosamente o nosso dinheiro quando o colocamos em casamentos que

realizamos aqui, em seu país. Que satisfação seria dada a miss Clara D. Woggenheimer com os seus milhões, se se casasse com qualquer compatriota ou com um conde italiano, comparada com a glória de sua posição na Inglaterra, como marquesa de Darrowood? Entretanto, ela se dá ares de benfeitora, e a cada passinho alude ao seu dinheiro, quando de fato o benfeitor é Darrowood, se é que se lhe possa dar esse nome. Mas, para mim, que sou um homem de negócios, a transação é vantajosa para ambas as partes. Você não vai à casa de um vendedor de quadros para comprar um magnífico Rembrandt pelo preço de venda, depois caçoa do quadro e dá o estrilo com o vendedor. O dinheiro de nada vale sem posição, e aqui, na Inglaterra, durante centenas de anos vocês estiveram livres de invasões, de maneira que tiveram tempo, coisa que não se verificou em outro qualquer país, para aperfeiçoar o seu sistema. Deixe que os radicais e outros mal informados de outras terras, ridicularizem quanto quiserem, mas a sua aristocracia inglesa é o mais fino conjunto de pensadores e de seres viventes de todo o universo. Ouvem-se sempre da escória os maiores desaforos e as mais pesadas palavras, mas nunca dos grandes e nobres seres que constituem a força da Inglaterra. — Palavra, Francis, que você está talhado para a Câmara dos lordees! Havia de acordá-los! O financista baixou o olhar para o seu prato. Sempre ele assim procedia quando penetrava no sentido das coisas. Ninguém jamais conseguiria ler o que realmente se estava passando em sua alma, e quando sentia o que estava dizendo, era ainda mais difícil, porque raciocinava. — Não sou um esnobe, meu amigo — continuou o financista depois de um bocado de salada — Não presto nenhum culto à aristocracia em abstrato, mas sou um eestúdioso, um meticuloso de sistemas e de seus resultados, e incidentemente um colecionador de espécimes raros da espécie humana que auxiliam as conclusões que tiro e, mais que isso, sou um interessado observador do progresso da evolução. — Você é abominavelmente esperto — assinalou lorde Tancred. — Lembre-se de seu tio, o duque de Glastonbury — prosseguiu o amigo

— Ele cumpre os seus deveres em todos os sentidos. Munificente senhor de muitas terras, é um estadista na acepção da palavra. Que outro país ou outra classe poderiam produzir um homem dessa envergadura? — Oh, o duque é um homem extraordinário — concordou o sobrinho — Não raro, é demais severo, coisa que aliás sucede para muitos de nós. Contudo, sabe conservar toda a sua dignidade ducal, e nisso é ajudado por minha prima Ethelrida. Ethelrida é um modelo, mas você a conhece e certamente há-de pensar como eu, não? — Lady Ethelrida parece-me uma perfeitíssima dama — concordou Francis Markrute, examinando o seu claret de encontro à luz — Bem que eu desejaria conhecê-la melhor, pois que bem poucas vezes nos encontramos. Como sabe, ela não frequenta muito a sociedade. — Se está interessado nisso, meu velho, arranjarei as coisas. Pensei que você fosse um cínico de marca a respeito de mulheres, e agora vejo também que se incomoda com o belo sexo. — Parece-me já lhe ter dito, creio que ontem, que compreendo ser possível a gente ter certa inclinação para uma mulher. Não desperdiço o meu tempo com esses papagainhos que se encontram na sociedade. Ha três classes da espécie feminina: as que têm corpo; as que têm espírito; as que têm espírito e corpo. Esta última é perigosa. As outras duas meramente despertam certa disposição de ânimo no homem. Felizmente para nós, a combinação da primeira com a segunda classe é rara. lorde Tancred ansiou por perguntar em que classe o tio classificava a sobrinha. Mas por certo conseguiu refrear o seu desejo, e pessoalmente estava seguro que era um produto da combinação das duas classes, donde se derivava todo o encanto de sua noiva. Sim, pôs-se ele a pensar, essa era a classe perigosa, e raras vezes lhe foi dado defrontar com qualquer representante dessa espécie. Em sua imaginação, deu consigo a pintar Laura Highford, com aquela sua boquinha e os dentes afilados. Era dotada de um cerebrozinho vistoso, não possuía coração, e os seus sentimentos eram iguais aos de uma gata ou de um ferret. Afinal de contas, por que se sentira atraído para aquela moça?

Graças a Deus, tudo já havia passado, e ele se sentia perfeitamente livre para fazer suas investigações a respeito de Zara, sua futura esposa! Depois que a conversação decaiu um bocadinho e ambos acendiam o charuto e tomavam licores, lorde Tancred confessou ao amigo. — Pois, meu caro Francis, digo-lhe que gostaria que minha prima Ethelrida se encontrasse, o mais breve possível, com a condessa Shulski. Não sei bem por que, mas acredito que as duas se entenderão perfeitamente. — Enquanto minha sobrinha não voltar de Paris, será escusado propôrlhe qualquer encontro. No seu regresso de Paris, deve estar com outra disposição. Quando ela veio à Inglaterra, ainda não tirara de todo o luto. Precisa, pois, substituir o seu guarda-roupa, e voltará mais acessível em tudo. Agora, receberia a todos como uma adversária. Vá procurá-la hoje à tarde e seja sensato; firme o propósito de deixar os galanteios para mais tarde, por ocasião de seu regresso e…cuidado, muito cuidadinho, até que se torne sua esposa. lorde Tancred ficou um tanto desapontado. — Demora tanto! — Estou planejando um jantar em minha casa, ao qual talvez o duque e lady Ethelrida deem a honra de sua presença, bem como sua mãe e irmãs e outras pessoas de sua família que você deseje… Vejamos o dia do regresso de minha sobrinha — e Francis Markrute tirou do bolso um livrinho de lembranças onde havia uma folhinha — será no dia 18, numa quarta-feira. Podemos fixar o casamento para o dia 25, na outra quarta-feira, uma semana mais tarde, de sorte que você pôde estar de volta de sua viagem de lua de mel a 1º de novembro, e nessa mesma noite nos encontraremos. Se o seu tio tiver a amabilidade de convidar-me para a sua caçada, nós três poderemos descer a Montfichet no dia seguinte, 2 de novembro. Que acha? Se estiver de acordo, vou tomar nota disso tudo. — De inteiro acordo — aquiesceu o sobrinho em perspectiva. Como não tivesse caderninho de notas ou uma folhinha, escreveu a lembrança num dos punhos da camisa. Higgins, seu magnífico criado, conhecia boa parte da historia do amo através dos seus punhos.

— Creio que não aguento esperar a hora do chá para vê-la, Francis — disse o inglês no instante em que atravessavam o hall do restaurante — Estou com vontade de ir já e procurá-la, se estiver em casa. Posso telefonar-lhe e pedir permissão para visitá-la? Justamente isso é que fez, e ouviu de Turner que a condessa Shulski estava em casa, mas que somente poderia receber sua excelência às quatro e meia. — Diabo! — exclamou o gentleman, pondo o fone no gancho, enquanto Francis Markrute lhe dava as costas para esconder o sorriso. — Acho melhor você ir comprar um anel de noivado, hein? Seria imperdoável um esquecimento desses. — Valha-me Deus, que me esqueci! Bem, mas tenho muito tempo para fazer isso, agora, e vou imediatamente ao joalheiro de casa. As suas joias, ao que dizem, são antiquadas, mas as pedras são finas. Despediram-se. lorde Tancred tomou um táxi e mandou tocar para a parte oeste da cidade, com aquele seu excitamento de caçador de leão apressando-lhe a circulação do sangue. Quanto ao financista, rumou para o seu escritório, passando através da obsequiosa fileira dos empregados em direção do gabinete em que trabalhava. Ali chegado, acendeu outro charuto e expediu ordens para que ninguém o perturbasse durante um quarto de hora. Refestelado numa confortável poltrona, deu asas aos pensamentos e pô-se a devanear. Todo o seu plano se tornava realidade. Não devia, pois, precipitar-se. As grandes emergências exigiam urgência, mas construir até o ápice da própria ambição requeria calma e vigilante cuidado.

CAPÍTULO VIII LADY ETHELRIDA

QUANDO anunciaram lorde Tancred, a condessa Shulski estava sentada na sala de visitas do tio. O aposento era um tanto severo e os poucos móveis que o guarneciam, de estilo puramente francês, eram verdadeiras e inestimáveis obras de arte. Não se notava, ali, o mais leve toque de mãos femininas, nem havia confortáveis sofás, como na biblioteca e numa outra sala de estar. Tudo era rígido, grave, em puro estilo. De propósito Zara escolheu aquela sala para receber o noivo. Queria que o encontro fosse breve e frio. Quando lorde Tancred entrou, com um ar de resolução impresso no formoso

semblante,

Zara

levantou-se

e

inclinou-se

ligeiramente,

cumprimentando-o. Não lhe ofereceu a mão para que a apertasse, de modo que o inglês deixou cair o braço que já se estendera para isso. Nem mesmo o encorajou, por pouco que fosse e, como sempre, permaneceu calada. Chegou ao cúmulo de desviar os olhos, fixando-os na janela, a contemplar a chuva que caia lá fora. Nesse instante é que lorde Tancred notou não serem negros, como lhe pareceram, mas da cor da ardósia. — Compreende a razão desta visita, não é assim? — indagou ele, como inicio de palestra. — Sim — respondeu a condessa, e não disse mais nada. — Como sabe, desejo desposá-la — prosseguiu o lorde. — De fato — foi a resposta. — Sim, desejo — ratificou o lorde, dizendo com os seus botões que realmente era uma mulher difícil. — É uma felicidade para o senhor, desde que vai realizá-la. As palavras da condessa não eram encorajadoras e, além disso, eram inesperadas.

— Sim, e a 25 de outubro, uma vez que concorda. — Já concordei — observou a condessa, apertando as mãos. — Permite que eu me sente a seu lado, para conversarmos? Zara indicou-lhe uma bergère estilo Luiz XVI, que estava à sua frente, e sentou-se numa pequena cadeira de braços, no outro lado da lareira. Logo que se sentaram, os olhos da condessa se fixaram nas crepitantes brasas, e os dele não se apartavam da gentil figura. Ao contrário do tio, que sempre voltava as costas para a luz, a sobrinha recebia em pleno rosto a melancólica luz daquela tarde, e assim o inglês logrou um claro e maravilhoso quadro de sua noiva. “Como é que uma criatura daquelas, na aparência tão cheia de volúpia, podia ser tão gelidamente fria?” indagava ele para si mesmo. Aqueles maravilhosos cabelos pareciam polidos como o escuro cobre, visto à luz do dia e das crepitantes brasas, e a sua pele de gardênia por si só era toda uma tentação. lorde Tancred tremia ante o desejo de beijá-la. Até então, nunca se vira tão emocionado diante de uma mulher. — O seu tio disse-me que a senhora vai ausentar-se amanhã, e que o seu regresso se dará uma semana antes do casamento. Bem que eu desejava não fosse necessária essa ausência, mas quero crer que precise ir, por causa do enxoval e de outras coisas. — Sim, preciso ir. lorde Tancred levantou-se. Não mais podia conservar-se quieto, de tão loucamente excitado. Aproximou-se da lareira e descansou o braço na parte superior que a formava, bem perto da noiva. Durante alguns segundos, os seus olhos a devoravam com a apaixonada admiração que sentia. Zara levantou a cabeça e quando notou a expressão daquele olhar, as sobrancelhas de azeviche se encontraram, e um ar de infinito desgosto se espraiou pelo lindo semblante. Tão cedo se revelara. Como todos os homens, aquele não passava de um odioso brutamontes, todo sensualidade. Bem que sabia que ele desejava beijála… beijar uma pessoa a que não conhecia! A experiência que possuía da vida não a encorajara à menor concessão ao instinto do homem. No seu modo de

ver, era simplesmente revoltante toda aquela parte da natureza humana. Entretanto, no mais íntimo recesso de sua consciência, sabia e sentia que tais carícias e outras ternuras deviam ser agradáveis, uma vez partidas de alguém a quem se amasse… e amasse apaixonadamente… mas em abstrato… e tornavam-se odiosas precisamente por causa da atração do sexo. Até agora, nenhum homem ainda conseguira conquistar-lhe a ponta do seu minguinho, muito embora fosse obrigada a mostrar-se ardentemente apaixonada, constrangida por Ladislau, seu finado marido. Tristram lhe aparecia como um sátiro. No entanto, ela não era uma tímida ninfa, mas uma feroz pantera, pronta para cuidar de sua própria defesa. lorde Tancred notou-lhe essa disposição e recuou, bastante moderado no seu primitivo ímpeto. As coisas caminhavam muito mais dificilmente do que imaginara. Agora, sabia, impunha-se-lhe conservar todo o domínio sobre si mesma. E essa a razão por que se voltou para a janela e pôs-se a olhar para o parque todo molhado. — Creio que minha mãe vem visitá-la hoje — disse ele — Avisei-a de que não esperasse encontrá-la em casa. Mas esta visita simplesmente tem por fim mostrar-lhe que minha família deseja acolhê-la com bastante carinho. — É uma gentileza da parte de sua família. — Amanhã será publicada, no Morning Post, a notícia do nosso noivado. Não se importa com isso? — Por que importar-me? — indagou, com a voz cheia de surpresa — Uma vez que é verdadeira, todas as formalidades devem ser observadas. — Pois a mim me parece que não seja verdadeira. A senhora se mostra tão pavorosamente fria — observou o inglês, com uma pontinha de ressentimento. — Não posso mudar o meu temperamento — retorquiu a condessa com extrema altivez — Concordei em casar-me com o senhor e por isso me curvo às cerimonias da praxe… à apresentação a sua família e a outras exigências…

Contudo, nada tenho que dizer-lhe e, assim, por que estarmos nós a conversar sobre coisas já resolvidas? O senhor deve aceitar-me tal como lhe pareço, ou deixar-me, aí está. O seu temperamento fê-la acrescentar, mau grado a advertência do tio: — A mim, pouco me importa! lorde Tancred voltou-se. Estava um tanto irritado e a ponto de explodir. Mas à vista daquela mulher à sua frente, magnificamente sedutora, conseguiu refrear-se. Esta era uma das fases da partida em que estava empenhado, de sorte que não devia estragar tudo com palavras irrefletidas. — Creio que não se importa, mas eu me importo e, o que é mais, estou um tanto ansioso em recebê-la tal qual é… ou será… — Bem. Isso é que era preciso dizer — observou a condessa friamente — Quanto a avistar-me com sua família, no meu regresso, combine isso com o meu tio. Cumprirei o que ficar estabelecido e agora não preciso mais detê-lo e… até logo! Inclinando-se para o noivo, encaminhou-se para a porta. — Sinto muito que precise deixar-me tão cedo — disse ele, enquanto se adiantava para abrir-lhe a porta — Então, até logo. A condessa passou sem se dignar apertar-lhe a mão. Quando ficou sozinho na sala, lorde Tancred lembrou-se que não lhe havia dado o anel de noivado, ainda em seu bolso. Olhou em derredor, à procura de uma mesinha onde pudesse escrever. Encontrando-a, sentou-se e rabiscou o seguinte bilhetinho: Era meu desejo entregar-lhe pessoalmente este anel. Se não gostar de safiras, posso trocar por outro. Ficarei obsequiado se usá-lo. Creia-me. Sinceramente, Tancred.

Enfiou-o, com a caixinha em que estava, num grande envelope e tocou a campainha, — Entregue isto à condessa Shulski — disse ele ao criado que atendera, e perguntou-lhe: — o meu automóvel está na porta? Estava, e lorde Tancred deu-se pressa em descer as escadas. — Ao Palácio de Glastonbury — ordenou ao chofer, e então reclinou-se na almofada, sem a mais leve expressão de contentamento no rosto. Ethelrida por certo ainda não tomara o seu chá. Iria fazer-lhe companhia, porque a prima sempre se lhe mostrara tão delicada e simpática. — Sim, Sua Excelência está em casa — respondeu-lhe o criado que o conduziu à salinha de estar da prima. Lady Ethelrida desde os dezesseis anos, quando sua mãe falecera, tomava conta da casa do pai, o duque de Glastonbury. Revelara-se excelente dona de casa no palácio ducal. Tinha muitos encantos e contava agora vinte e cinco anos. De compleição fina e boa estatura, possuía maneiras bastante distintas. Francis Markrute achava-a linda. O financista gostava imenso de analisar tipos e raças, e costumava dizer que havia pessoas que pareciam como se fossem vazadas em moldes mais ou menos finos ou grosseiros, e que outras davam ideia de terem sido desbastadas à faca. Apreciava um rosto de mulher que parecesse ciselé, como dizia, e esse o motivo por que não devotava grande admiração pela sobrinha, pois embora em seu caso o molde fosse dos mais finos, o narizinho de Zara não era ciselé. Inúmeros ingleses e alguns austríacos eram cinzelados, afirmava o grande observador, e ostentavam a raça que possuíam. Mas de outras nações, bem poucos. Muita gente poderia dizer que, na sua idade, lady Ethelrida estava demasiado cinzelada, e fácil lhe seria decair bastante com o correr dos anos. Entretanto, ninguém ousaria negar-lhe a aprimorada educação. A filha do duque de Glastonbury era de uma beleza admirável. Os cabelos louros tinham refulgência argentina, e não se notava, entre os

radiosos fios, qualquer mancha de amarelo. Os olhos eram cinzentos, sagazes e bondosos e a irrepreensível plástica, delgada como era, constituía o corpo que as modistas adoram: de tão esbelto, qualquer vestido se lhe ajustava maravilhosamente. Lady Ethelrida fazia tudo com moderação. Não era louca por esportes, nem se deixava levar por qualquer capricho. Queria muito ao pai, à tia e primos da família Guiscard e à sua amiga lady Anningford. Em suma, era um caráter sem jaça e uma grande lady. — Vim aqui para contar-lhe um punhado de novidades, Ethelrida — disse-lhe Tristram, sentando-se a seu lado, no sofá coberto de chita. Em matéria de mobília e enfeites nos seus aposentos, o gosto de Ethelrida era dos mais simples — Adivinhe do que se trata? — indagou o lorde. — Como posso adivinhar, Tristram? Acaso se trata do casamento de Mary com lorde Henry? — Não, não é disso, nem eu sei. Possivelmente algum dia se casem. Não. Mas… trate de adivinhar. É a respeito de casamento. — De homem ou de mulher? — indagou a prima, com ares de quem está dando tratos à imaginação. —De homem… eu! — apressou-se a afirmar, indiferente à gramática. — Você, Tristram? Você vai casar-se? Mas, com quem? — o fato lhe parecia um absurdo! E seu pensamento logo se voltou para o nome "Laura Highford", antes que sua razão lhe dissesse: "Que pensamento ridículo; Laura Highford já está casada!" Por isso é que Ethelrida repetiu: — Mas, com quem? — Vou casar-me com uma viúva, com a sobrinha de Francis Markrute, você o conhece. — Lady Ethelrida disse sim, com a cabeça. — É a mais encantadora criatura que jamais existiu, Ethelrida, um tipo diferente de todas. Você há-de concordar comigo, assim que a vir. Possui uns negros e tempestuosos olhos… não, realmente não são negros, e sim da cor da ardósia, e tem os cabelos vermelhos e o rosto branco. Palavra, é um feitiço! Como vê, minha linda criança, acredito estar loucamente apaixonado. — Você apenas acredita, Tristram. Está aí uma coisa que não lhe

recomenda muito o casamento — observou lady Ethelrida, sem disfarçar o sorriso que lhe aflorara aos lábios. lorde Tancred tomava o seu chá. Num salto, pôs-se de pé, pois que estava singularmente irrequieto. — É uma dessas naturezas femininas que dão em doido qualquer homem que a conheça bem, palavra! Como notasse expressão divertida no rosto da prima, escancarou-se numa risada infantil e prosseguiu: — Talvez não recomende mesmo, concordo, e a razão é que ainda não a conheço bem. Exclusivamente isso, Ethelrida! Mas só a você é que faço esta confissão. Escute, minha linda criança, preciso que me confortem hoje, porque ela acaba de me achatar. Mas, vamos casar-nos no dia 25 de outubro, e desejo que você seja uma boa amiguinha de Zara. Tenho certeza de que a sua vida está miseravelmente despedaçada. — Por certo que serei, Tristram, mas lembre-se de que estou completamente às escuras com respeito à sua noiva. Quando poderei avistála? Não pode dizer-me mais alguma coisa, para que eu possa confortá-lo como deseja? lorde Tancred não se fez de rogado. Sentando-se a seu lado, no sofá, abriu-se para a prima. Decidiu, repentinamente, contar-lhe tudo, convicto de que era isso que ele desejava acima de todas as coisas. Contou-lhe que era moça e formosa, riquíssima, muito reservada e um tanto fria, e que ia ausentar-se até uma semana antes do casamento. Disse-lhe mais, que tudo isso lhe parecia uma loucura, mas que "sua querida Ethelrida devia ser gentil para com o primo, compreender sua situação e não censurá-lo". Ethelrida estava longe de censurá-lo. Deduziu logo, de sua incoerente narrativa, que uma profunda e desusada corrente tocara na vida do primo, pois bem conhecia o caráter dos Guiscard. Por isso é que o confortou com uma porção de palavras gentis e fez-lhe algumas perguntas, nenhuma das quais

indiscretas,

de

modo

desapareceram e ele se acalmou.

que

aquela

irritação

e

desgosto

logo

— Desejo que tio Glastonbury convide Francis Markrute para a caçada de 2 de novembro, Ethelrida, e… consente você que Zara me acompanhe? Por esse tempo, já será minha esposa, embora eu lhe faça este pedido quando ainda somos noivos. — Os convidados são meus e não de papai, seu bobo, bem que você sabe disso. Certamente deverá levar sua esposa, Zara, e eu mesma me encarregarei de escrever a Mr. Markrute, convidando-o. Muito embora tia Jane diga que ele é um estrangeiro cínico, confesso que o aprecio.

CAPÍTULO IX LAURA HIGHFORD

CAUSOU grande surpresa, na sociedade, a noticia do noivado de lorde Tancred, publicada pelo Morning Post. Até então, ninguém ouvira uma palavra sequer a esse respeito. Comentava-se a sua ida ao Canadá, e muita gente lhe ridicularizava a propósito. Tancred emigrar! Mas, sobre um casamento em perspectiva… A mais afiada lingua de Marlborough ou de Travellers jamais se exercitara em tal assunto! E a nova explodiu como uma bomba. Lady Highford não conteve um grito, ao ler a notícia, e cerrou os seus atilados dentes. Com que então, ia casar-se e casar-se com outra! Muitas vezes ele lhe dissera que daria esse passo, principalmente no final daquelas cenas que ela gostava tanto de criar. Era verdade, então, quando lorde Tancred lhe disse, em Cowes, que tudo estava acabado entre ambos. E ela que interpretara o seu silêncio como um amuo de namorado! Mas, quem seria a noiva, Condessa Shulski, noticiava o jornal. Um nome russo ou austríaco? E filha do finado Maurice Grey. Que Grey seria esse? Sobrinha de Mr. Francis Markrute, de Park Lane. Aqui estava a razão: dinheiro! Como os homens são detestáveis, a ponto de entregar a própria alma por causa de dinheiro! Mas a mulher deveria sofrer, e Tristram também, as consequências de tal casamento. Lady Highford derramou algumas lágrimas de pura raiva. Achava-o tão adorável quando a cortejara, embora nunca realmente estivesse segura de seu amor. Foi uma felicidade ter-se conduzido, em público, com tanta seriedade! Ninguém podia dizer uma única palavra que tisnasse a sua reputação, durante o namoro com lorde Tancred, e agora ela devia "bancar" a amiga querida, generosa, que se congratulava com ele pelo passo dado. E assim foi que cheirou um pouco de sal volátil e vestiu-se com grande apuro para ir almoçar no Palácio de Glastonbury, onde por certo ouviria todos os detalhes, muito embora achasse

Ethelrida uma criatura superior,

desinteressada por novidades e tagarelices.

Quando chegou, um bocadinho atrasada, lá já se achavam três visitas: Constance Radcliffe e dois homens, um deles antigo político e outro primo da família, hospedados pelo duque de Glastonbury e por lady Ethelrida. Podia, pois, comentar o noivado de Tristram, e inteirar-se do que desejava. Mal acabavam de sentar-se à mesa quando lady Highford entrou de cheio no assunto. — Não acha simplesmente espantosa esta nova a respeito de seu sobrinho, duque? Ninguém esperava que ele desse, agora, esse passo, embora eu, como uma das suas melhores amigas nestes dois últimos anos insistisse tanto para que se casasse. Nossa querida lady Tancred deve estar encantada… — Estou convicto de que a senhora lhe deu bom conselho — disse o duque, cuidando de ajustar o monóculo, preso a um comprido cordão preto, no seu fantástico olho azul — Mas Tristram é dócil de boca, e um tanto irrequieto; mas fácil é refreá-lo pelo bridão e não pela rédea. Lady Highford abaixou a cabeça para o prato, enquanto respondia à observação de sua excelência. O gesto era uma variante aos seus próprios métodos. — Bridão ou rédea, ninguém ainda conseguiu guiar lorde Tancred. Mas, que espécie de mulher é a sua encantadora noiva? Certamente o senhor a conhece bem, não é verdade? — Não, não a conheço. O tio, Mr. Markrute, numa noite destas jantou conosco. É um homem interessante, e discretamente nos prendeu a atenção. Parece-me excelente pessoa. Entretanto, nem Ethelrida nem eu ainda vimos a sobrinha. Com toda a certeza, porque desde que começou a estação nenhum de nós pós os pés na cidade, e ela ainda não andou por aqui. Como a senhora, também nós subimos para o casamento da Flora, e descemos amanhã. — É espantoso! — exclamou lady Highford — Uma noiva desconhecida! Não sabe com o que se parece? É moça ou velha? Uma viúva sempre sugere a ideia de uma criatura atraente! — Ouvi dizer que é formosíssima — respondeu lady Ethelrida do outro lado da mesa.

Houve um pequeno silêncio, e ela acrescentou: — E Tristram parece tão feliz! A noiva é muito moça e riquíssima. Lady Ethelrida sempre se mostrava amistosamente amável e indiferente a Laura Highford. Desse jeito não procurava agrados e desagrados no círculo de suas amizades, mesmo porque reduzido era o numero dos seus verdadeiros amigos e o resto não passava de meros conhecimentos. Quanto a Laura Highford, francamente ela não a apreciava, mas a tolerava, e assim foi que, pensando em agradar a Tristram quando se encontraram em Cowes em agosto passado, convidou sua namorada para a festa de seu aniversário. Agora, defrontava com este problema: como evitar o comparecimento de Laura Highford, uma vez que Tristram e sua noiva iriam? Lady Ethelrida notou uma cintilação naqueles olhos cor de avelã, quando se referia à noiva do primo, e o seu bondoso coração fê-la imediatamente mudar de assunto. Afinal de contas, era perfeitamente natural que a pobre Laura se apaixonasse por Tristram, pois não havia rapaz mais atraente. Logo, o casamento do seu antigo namorado havia de machucá-la. Mas precisava dissuadi-la a não comparecer à festa, e disso trataria quando deixassem a sala de jantar e pudesse falar-lhe a sós. Assim decidida, com o seu perfeito tato e graça espontânea, divertiu os seus convidados discreteando sobre a situação politica, até que findou o almoço. Todavia, não foi para ouvir tais comentários que Laura a visitava. Queria saber tudo quanto dissesse respeito à sua rival, a fim de traçar os seus planos. Com esse fito, no instante em que Ethelrida estava palestrando com o velho político e o duque se voltara para Mrs. Radcliffe, ela se pôs a conversar, em voz baixa, com o primo da família. Jimmy Danvers, o primo, apenas lera a notícia, de manhã. Encontrara-se com Tristram no Turf, terça-feira passada, depois do almoço, e conversaram unicamente sobre a viagem ao Canadá. Não fez a menor alusão a essa noiva. Certamente despistou. — E quando logo de manhã eu lhe telefonei — continuou o rapaz — pedindo-lhe que me apresentasse à noiva, disse-me que ela havia partido para Paris, e que só regressaria uma semana antes do casamento.

— Quanto mistério! — murmurou Laura — Por certo Tristram também foi a Paris, hein? — Não, não me disse que ia. Pareceu-me bastante apressado, tanto que logo desligou o telefone. — Com toda a certeza, vai casar-se por dinheiro, o pobre rapaz! — exclamou penalizada a lady — Estava bastante precisado disso. — Qual o quê — interrompeu-a Jimmy Danvers — Tristram nada fez pensando em dinheiro. Imaginei que a senhora o conhecesse melhor — ajuntou bastante espantado, porque não lhe era dado apreender rapidamente quaisquer situações. — Por certo que o conheço! — afirmou Laura e depois riu-se — Mas vocês, os homens! O dinheiro sempre tenta a qualquer de vocês! — Sou capaz de apostar tudo o que tenho, Laura Highford, que Tristram está loucamente apaixonado. Não fosse isso, não permaneceria trancafiado em tal silêncio. Aquela história do Canadá provavelmente foi para encobrir a verdade, enquanto Tristram não era correspondido. Mas, agora, que conseguiu o coração da noiva, o Canadá foi posto de parte. Se o dinheiro fosse, de fato, a razão daquele casamento, fácil seria a Laura Highford suportar o golpe. Mas ouvir que se tratava de verdadeiro amor, isso quase que a enlouquecia. Seu rostinho branco e rosado, com aqueles estudados ares de

criança, repentinamente pareceu

velho e

deformado, e os olhos se tornaram amarelos à luz. — Não serão felizes por muito tempo! — sentenciou ela — Tristram não se conserva fiel a quem quer que seja. — Ignorava que ele se apaixonasse antes por alguém — continuou o disparatado primo, agora com uma certa malícia — Soube que Tristram teve inúmeros passatempos, que desapareceram como surgiram. Lady Highford reduziu a farelo o seu pão, e voltou-se para o duque. Nada mais lhe seria dado conseguir do vizinho. Por fim, o almoço chegou ao final e as três senhoras subiram para a sala de estar de Ethelrida. Não demorou que Mrs. Radcliffe se despedisse, de modo que as duas ficaram

sozinhas. — Eu estava justamente pensando em sua festa, Ethelrida — arrulhou lady Highford. Amanhã estou de partida para Hampshire, mas no fim do mês estarei de volta, e no dia 2 de novembro em sua casa, em Montfichet. — A propósito, ia perguntar-lhe Laura: depois de tudo o que aconteceu, você não ficou aborrecida? Os seus íntimos amigos, os Sedgeworths, não podem ir, porque o chefe da família morreu. Os meus convidados deste ano quase todos são da família, e não são lá muito interessantes. Emilia e Mary, Tristram e a noiva, e Mr. Markrute, o tio, e o resto como lhe disse. — Ora essa, minha querida, todos esses convidados são deliciosos! Além disso, terei oportunidade de conhecer a nova lady Tancred. Tristram e eu sempre fomos bons amigos. Preciso escrever ao pobre rapaz e dizer-lhe que fiquei contentíssima com a nova. Sabe onde ele se encontra, no momento? — Creio que está em Londres. Então, realmente você será as nossas e não se sente aborrecida? Que bondade — a sua exclamou lady Ethelrida, sem a mais insignificante mudança de entonação na voz, enquanto pensava: Que coragem, a de Laura! Talvez tenha algum plano… Em todo caso, posso preveni-lo, agora, e talvez desfazê-lo. Mas acho melhor deixar Tristram sobreavisado. São tão desagradáveis as surpresas! Então, depois de uma quantidade enorme de votos de felicidade à querida lady Tancred, com a nora em perspectiva, e muitos "querido Tristram", chegou o seu auto e lady Highford também partiu. Quando ela se foi, lady Ethelrida sentou-se e escreveu um bilhetinho ao primo. Queria dizer-lhe, simplesmente, que caso não o visse antes de voltar no dia seguinte para o campo, já lhe entregava a relação dos convidados para a temporada de novembro. Se ele quisesse incluir outros nomes que agradassem à noiva, era o bastante avisá-la. Ajuntou que alguns amigos almoçaram em sua casa, entre os quais Laura Highford, que a ele se referira com as mais encantadoras palavras e lhe desejara um mundo de felicidade. Lady Ethelrida não estava iludida quanto a tais votos, mas limitava-se a repeti-los.

Quando estava acabando o bilhete, o duque entrou na sala e se pôs a aquecer-se na lareira. — A mulher é um vampiro, Ethelrida — disse ele, sem nenhum preâmbulo. Pai e filha se entendiam tão bem, que muitas vezes pareciam começar qualquer palestra no meio duma sentença, ininteligível para um estranho que os ouvisse. — Também me parece, papai. Acabo de escrever um bilhetinho a Tristram, comunicando-lhe que ela insiste em comparecer à caçada. Nada tem que fazer lá e é capaz de estragar tudo. Pelo menos em nossa casa há-de portar-se convenientemente para com a nova lady Tancred. — Caramba! — exclamou o duque — A sua festa vai ser curiosa. Acho melhor você sair e deixar o seu cartão para a condessa Shulski e o meu para o tio. Creio que temos que aguentar com a família toda, hein? — Papai, confesso-lhe que aprecio Mr. Markrute. Conversei com ele a noite passada, e achei-o inteligentíssimo. Não devemos ser tão cheios de preconceitos simplesmente porque se trata de um estrangeiro em nossa cidade. Convidei-o, também, para a caçada. O senhor não se importa? Hoje mesmo lhe levarei o convite. Tristram particularmente deseja que ele vá. — Nesse caso, mostremo-nos bastante gentis, queridinha. Penso, mesmo, que você agiu direito, e que não devemos alimentar preconceitos sobre o que quer que seja, hoje em dia. Com umas palmadinhas na cabeça da filha, o pai deixou-a. Não demorou que lady Ethelrida saísse na carruagem ducal — o duque insistia em usar uma carruagem em Londres — rumo a Park Lane. Estava entregando os cartões de visita ao criado, quando Francis Markrute apareceu na porta. Toda a sua fisionomia repentinamente se transformou. Parecia, agora, muito mais moço. Era um homem alto e de maneiras distintíssimas. Adiantouse e cumprimentou-a. — "Como tem passado?" — através da vidraça do carro. Lamentava sinceramente a ausência da sobrinha, em viagem a Paris para cuidar do enxoval. Mas sentia-se pessoalmente bastante lisonjeado, com a

oportunidade de trocar algumas palavras com lady Ethelrida. — Ia deixar um convite para o senhor tomar parte na caçada que meu pai vai realizar em Montfichet, a 2 de novembro, Mr. Markrute. Tristram disseme que conta estar de volta de sua viagem de núpcias, para com sua esposa ser dos nossos. — Sinto-me bastante desvanecido e minha sobrinha encantada com a sua bondade, lady Ethelrida. Trocaram mais algumas palavras de cortesia, e o financista disse-lhe: — Tomei a liberdade de mandar reencadernar aquele livro de que lhe falei. Achei-o em situação tão miserável que não tive coragem de enviar-lho como estava. Não pense que me esqueci. Quer ter a bondade de aceitá-lo? — Pensei que o senhor apenas fosse emprestar-me o livro, uma vez que a edição está esgotada e não pude encontrá-lo. Estou pesarosa por dar-lhe esse trabalho — observou lady Ethelrida, com uma certa rigidez — Leve-o à caçada. Interessa-me bastante lê-lo, mas o senhor não deve privar-se dele. Despediu-se com um sorriso encantador, e quando dobrava a rua Grosvenor, Francis Markrute monologava: — Aprecio o seu estranho orgulho. Mas há-de receber o livro e… muitas outras coisas mais… daqui a pouco. Entretanto, Zara Shulski chegara em Bournemouth. Partira cedinho, de manhã, estava examinando cuidadosamente a casa. O médico lhe pareceu bondoso e inteligente, e sua esposa gentil e afável. Mirko não poderia conseguir melhor casa onde residir. A filhinha do casal estava ausente, pois fora passar seis semanas em casa da avó, mas ficaria encantada por ter a companhia de um

menino de

sua idade. Tudo, pois,

se

arrumara

satisfatoriamente, de modo que Zara ali permaneceu durante a noite. No dia seguinte, telegrafou a Mimo para esperá-la na estação, no seu regresso para Londres. Conversaram demoradamente na sala de espera de Waterloo, e o pobre Mimo dava mostras de sentir-se alegre e feliz. Então, levou-a e a sua valise até um táxi porque ela regressava para a casa do tio. Na manhã seguinte, Mirko

desceria para Bournemouth e um dia após Zara tomaria o trem para Paris. — Mas, não posso voltar para Park Lane sem ver Mirko — disse a condessa — Não contei a meu tio em que trem regressaria, e assim tenho muito tempo. Vou tomar o meu chá em companhia dos dois, na rua Neville. Faremos como outrora: poremos a chaleira no fogo, e procuraremos nos arredores bolos e outras coisas. E assim foi que Mimo também entrou no táxi, que logo partiu. Mimo agora trajava um terno novo e trazia um novo chapéu de feltro, o que lhe dava uns ares dum formosíssimo gentleman estrangeiro. As suas maneiras para com as mulheres, como sempre, eram corteses e graciosas, de sorte que Zara sorriu e por sua vez sentiu-se feliz, enquanto combinavam detalhes para o chá-surpresa que reservaram a Mirko. Naquele instante, perto do táxi e por Whitehall passava um automóvel a toda velocidade. Guiava-o um moço bem apessoado, que lançou um olhar no táxi e reconheceu os passageiros, embora duvidasse que fosse Zara quem ali estivesse. — Não pôde ser — dizia ele consigo mesmo — Ela partiu ontem para Paris. Mas, se for Zara, quem será o homem? O moço mudou de ideia, voltou para o seu apartamento e sentou-me pensativamente defronte da lareira, com a desagradável, com a pungente dor da incerteza a magoar-lhe o coração.

CAPÍTULO X PERSPECTIVAS

MIRKO estava tocando a Chanson Triste em seu violino, ligeiramente inclinado para a lareira, cujas brasas ardiam vagarosamente, quando os dois entraram no estúdio. Não havia dúvida que ele possuía verdadeiro talento musical, mas a saúde era demasiado delicada para permitir-lhe continuado estudo. Além disso, nos derradeiros anos a família não estava em condições de pagar-lhe um bom mestre. Não obstante, o coração e a alma da estranha criança vibravam em cada lamento dos seus acordes. Quando se sentia triste e solitário, sempre tocava a Chanson Triste. Contava quase sete anos de idade quando lhe falecera a mãe, de quem conservava uma viva recordação. Como gostasse

imenso

das

musicas

de

Tschaikowsky,

em

especial

dessa

composição, Mirko tocava-a de ouvido para sua mãe escutar, na tarde em que ela entrou em agonia. Desde então, para o filho como para as outras pessoas da família, a musica ficou indissoluvelmente ligada à sua memória. Lágrimas corriam vagarosamente pelas faces de Mirko. Ia separar-se do pai; sua queridíssima Chérisette não estaria perto dele, e temia e odiava pessoas estranhas. Tocando o seu violino, sentia que estava conversando com sua mãe por meio do arco. Com sua mãe, que estava no céu, em meio de santos e de anjos. Como seria aquilo, lá em cima? Talvez uma floresta como Fontainebleau, com a diferença que encerrava grande numero de pássaros, os quais cantavam como os rouxinóis no Jardim Borghese. Por certo que lá não havia canários! O sol sempre brilhava, e a mãezinha vestiria uma linda roupa azul, de gaze, provida de asas, e seu esplêndido cabelo, louro e não vermelho como o de Chérisette, deveria cair-lhe pelas costas. Certamente seria um lugar cobiçado e bastante diverso da casa em que moravam, na rua Neville. Por que não iria ele reunir-se à sua mãe, fugindo assim ao frio e às trevas? Chérisette sempre lhe dizia que Deus era muito bom e amável para com os meninos estropiados. Por isso é que ele pedia a Deus, com todo o fervor de sua música, para chamá-lo

junto de sua mãezinha. Os acordes da familiar canção provocaram um calafrio em Mimo e Zara, na ocasião subindo as escadas, e obrigaram-nos a apressar o passo. É que sabiam muito bem a disposição de ânimo da criança quando tocava aquela musica. Mirko estava tão absorvido em sua apaixonada oração-sonho, que não lhes notou o andar. Então, erguendo a cabeça, os seus lindos olhos escuros, úmidos de lágrimas, subitamente se encheram de alegria ao ver a irmã. — Chérisette adorée! — exclamou ele, e logo caiu em seus braços que o tranquilizaram, confortaram e o acariciaram. Pudesse estar sempre junto de sua Chérisette e jamais desejaria outro céu! — Vamos fazer, agora, um piquenique — disse-lhe Zara — O seu papai e eu trouxemos uma nova toalha de mesa e algumas lindas xícaras e pires, colheres, facas e garfos e — veja estes pãezinhos! Pãezinhos ingleses para torrarmos para você, Mirko mio. Você vai "bancar" o cozinheirinho, enquanto ponho a mesa. A criança batia as mãos de contentamento, ajudou a desembrulhar os pacotes e ajeitou as lindas rosas vermelhas no vaso com seu delicado dedinho indicador. Herdara do pai aquelas maneiras acariciadoras para tudo o que admirasse ou de que gostasse. Nunca se pusera a quebrar os seus brinquedos, como fazem outras crianças. Somente imprevisíveis acidentes é que deles o privavam. Sentia imenso quando isso lhe sucedia e mesmo chorava. Aqueles novos e bonitos vasos lhe mereciam especial cuidado quando os lavava, enxugava e os guardava. Estava alegre como um passarinho. Dava gargalhadas por causa do gorro de papel que Mimo fizera e da toalha que sua irmã trazia à guisa de avental. Combinaram que eles eram os criados e Mimo um lorde a quem hospedavam. Não demorou que a mesa estivesse posta e os pãezinhos já torrados e com manteiga. Zara havia comprado um vaso da mesma porcelana, em que pôs um ramo de rosas vermelhas do outono, para igualar às que nele estavam pintadas. Isto foi motivo de particular alegria.

O Apache, que ainda não encontrara comprador, permanecia no cavalete, do qual pendia o manto de viagem que se pendurava a outro, ocultando todas as coisas que não deveriam ser vistas. Mimo havia comprado, na véspera, uma cadeira de vime barata, de braços, da Tottenham Court Road, provida de almofadas vistosas de cretone, e tudo aquilo — flores e brasas crepitantes, dava ideia do conforto de um lar quando eles se sentaram para o chá. Que pensaria lorde Tancred ou seu tio, se pudessem ver aqueles tempestuosos olhos de Zara refulgentes de contentamento e de ternura, doces como os de uma pomba? Depois do chá, ela sentou-se na cadeira de vime e tomou Mirko em seus braços. Pôs-se a falar-lhe sobre a deliciosa e nova residência para onde ele ia; da bondosa senhora que iria acolhê-lo; da lindíssima vista para o mar que se lhe descortinava das próprias janelas do seu quarto; como tudo aquilo lhe parecia belo e puro, com os seus bosques de pinheiro por onde poderia passear; enfim, como já estava desejosa de descer de Londres para ir visitá-lo. Ao dizer isto, os seus pensamentos voltaram para o seu próprio destino; o que seria ela na ocasião? Sem querer, estremeceu ligeiramente, como se estivesse com medo. — Que tem, Chérisette? — indagou Mirko — No que estava pensando? Não em nós, não é verdade? — Não, em vocês não. A sua Chérisette também vai ter a sua casa, e algum dia você precisa visitá-la. Mas quando ele a cruzou de perguntas e lhe suplicou para contar-lhe tudo, ela respondeu vagamente, e cuidou de dar novo rumo aos seus pensamentos. Então, Mirko lhe perguntou: — Mãezinha não está no céu, Chérisette? Uma vez que lá se acha, deve haver lugar para nós dois e certamente você pode levar-me também, não? Quando de regresso a Park Lane, Zara entrou na biblioteca do tio, no momento sentado à sua mesa e com o telefone na mão. Cumprimentou-a com os olhos e continuou na palestra enquanto a sobrinha se sentava.

— Sim, venha jantar. Se você pôde vê-la, caso ela não tenha ido a Paris? — o tio olhou para a sobrinha, que lhe franziu a testa. — Não. Ela se sente muito cansada e não sairá do quarto em toda a tarde. Esteve hoje fora da cidade, no interior, em visita a alguns amigos. Não… amanhã, não; volta de novo ao interior, e na noite seguinte segue a Paris. Na estação? Vou perguntarlhe, mas talvez ela seja como eu, que detesto bota-fora. — o financista riu-se e continuou: — Venha jantar às oito. Até logo. Depois que enganchou o fone, voltou-se para a sobrinha, com um singular sorriso que se refletia nos seus olhos. — Bem. O seu noivo está doidinho para vê-la, segundo me parece. Que diz? — Certamente que não! Pensei que estivesse tudo bem compreendido. Se ele. insistir, embarcarei num outro trem. — Não, não insistirá. Agora, conte-me como passou o dia. Zara acalmou-se. O rosto já estava um tanto tempestuoso. — Estou bastante satisfeita com a casa que o senhor escolheu para Mirko, e vou levá-lo amanhã. Todas as roupas que o senhor me autorizou a encomendar para ele já chegaram, e tenho esperanças de que se sentirá com bastante conforto e feliz. Mirko possui uma natureza terna e um grande talento. Se conseguir apenas fortalecer-se e desenvolver-se… sim, talvez consiga, neste tranquilo clima da Inglaterra. O rosto de Francis Markrute mudou de expressão como sempre acontecia, quando ouvia o nome de Mirko ou se falava a seu respeito, pois que a presença do menino no mundo constituía iniludível prova da infelicidade de sua querida irmã. Todo o seu senso de justiça — e Markrute era geralmente um homem justo — não podia reconciliar-se com a ideia de encontrar-se com o menino ou, mesmo, de reconhecê-lo como sobrinho. Durante quase dois anos, após a morte de Elinka, perdera de vista a sobrinha. De seu lado, a sobrinha não queria de jeito nenhum comunicar-se com o tio, na crença de que

ele

deixara

sua

mãe

morrer

sem

que

lhe

perdoasse.

Entretempo, Markrute casualmente leu, num jornal estrangeiro, a noticia do assassínio do conde Shulski. Cuidou então, de aproximar-se de Zara, e de

novo com ela se carteou, explicando-lhe que estivera ausente na África e não recebera nenhuma carta. Propôs-se protegê-la e convidou-a para vir morar em Park Lane, se ela se separasse para sempre dos dois — de Mimo e Mirko, proposta que, indignada, recusou. Somente quando se achavam em extrema pobreza e quando de novo ele lhe escreveu, insistindo para que viesse passar algumas semanas em sua casa, desta feita sem nenhuma condição preestabelecida, é que Zara consentiu, pensando que talvez pudesse conseguir qualquer vantagem em beneficio dos dois. No entanto, agora frente a frente do tio, a condessa Shulski sentiu vivamente como fora enganada, mau grado tudo. — Não vamos discutir a saúde de seu irmão — observou-lhe ele com frieza — Cumprirei escrupulosamente a parte que me toca no ajuste e, quanto a todas essas coisas materiais, somente isso é que você há-de esperar de mim. Vamos, pois, tratar do assunto que lhe diz particular respeito. Tomei a liberdade de mandar à sua sala de estar, para você escolher, algumas peles de marta, pois que sentirá frio durante a viagem. Espero que escolha a que lhe agradar, e lembre-se que faço questão de um enxoval completo, encomendado em Paris. Quero que compre tudo o que uma grande dama possivelmente possa usar em visitas e passeios, e também que arranje uma boa criada parisiense, de sorte que regresse em todo o apanágio de sua posição. Zara inclinou-se e, como se tratasse de cumprir uma ordem, não lhe agradeceu. — Não lhe darei nenhuma indicação quanto ao que deve escolher — prosseguiu ele — O seu admirável gosto há-de guiá-la. Segundo me disseram, em vida de seu falecido marido você era uma mulher que se trajava admiravelmente. De modo que sabe perfeitamente os melhores lugares onde deve ir. Entretanto, é favor lembrar que, muito embora eu lhe forneça recursos ilimitados para comprar aquilo que desejar, confio em sua honra que não desviará sequer um real para esse Sykypri. O menino é que foi contemplado no ajuste, e o pai nada tem que ver com a nossa combinação. Zara não respondeu. Já pensara nisso, mas o bem estar de Mirko era de

suma importância. Com estrita economia, Mimo podia viver com o que possuía, uma vez sozinho e se encurtasse suas irresponsáveis generosidades. — Está entendido que conto com sua palavra de honra neste particular, não? — indagou o tio. Os seus ares de princesa agora se ostentaram em toda a plenitude. Levantou-se da cadeira e endireitou-se altivamente. — O senhor me conhece, pouco importa que eu empenhe ou não a minha palavra. Uma vez, no entanto, que isso o satisfaz, o senhor a tem! — Muito bem. Arrumado todo esse negócio, espero que todos sejam felizes. — Felizes? — estranhou Zara, amargamente — Mas, quem vai ser feliz? E voltou-se para deixar o tio. Mas este a deteve. — Dentro de dois ou três anos, você há-de convencer-se de que conhece quatro seres humanos que são idealmente felizes. Com esse enigmático aviso soando nos ouvidos, a condessa Shulski subiu as escadas, em demanda de sua salinha de estar. Quais seriam as quatro pessoas? Ela e ele e Mimo e Mirko? Seria possível que, depois de sua severidade para com os dois, mais tarde se tornaria generoso? Ou seria a quarta pessoa não Mimo, mas o seu futuro marido? A esse pensamento, ela sorriu ironicamente. Qual! não esperava felicidade da parte do marido!… um brutamontes, como o resto dos homens, o qual ia desposá-la com olho no dinheiro do tio… que estava disposto a casar-se, com esse único fito, sem que nunca a tivesse visto!… que estava bastante cheio daquela revoltante qualidade de seu sexo, ansioso por beijá-la e apertá-la em seus braços! Enquanto estivesse em suas forças, jamais lhe proporcionaria, a ele, qualquer felicidade! E quanto à sua própria pessoa? Que vida lhe estaria reservada? O seu futuro parecia um vazio… um abismo… com uma sombria cortina suspensa e a cobri-lo. Tudo o que podia sentir é que conseguira quem cuidasse de Mirko. Fielmente, pois, mantinha a promessa que fizera à mãe adorada, e cumpriria à

letra os desejos do tio no tocante ao enxoval… Além disso, não quis mais pensar. E em toda a noite, depois de terminar o seu breve e solitário jantar, se pôs a tocar piano em sua salinha de estar. Os seus brancos dedos passavam de uma divina canção para outra, até que por fim inconscientemente procuraram os melancólicos acordes da Chanson Triste e lembrou-se das palavras de Mirko: "Mãezinha não está no céu, Chérisette? Uma vez que lá se acha, deve haver lugar para nós dois…" Quem sabe? talvez fosse o fim disso tudo. Ao deixarem a sala de jantar, os dois homens escutaram os distantes e nostálgicos sons dos derradeiros acordes e, ao passo que o financista se sentia inquieto, a Tristram aquilo era uma pungente punhalada.

CAPÍTULO XI VOCÊ É UM HERÓI!

DE continuo e crescente excitamento foram, para lorde Tancred, as três semanas que se seguiram. Tinha que cuidar de mil e uma coisas para a reabertura de Wrayth, fechado completamente ha dois anos. Decidira que Zara pessoalmente escolhesse os seus próprios aposentos, e os mobiliasse como melhor lhe parecesse, quando lá estivesse. Mas os grandes e majestosos salões permaneceriam como se achavam. Experimentou um infinito prazer à ideia de viver novamente naquele velho solar, e ficou comovido ao notar a alegria dos aldeões e dos velhos criados e jardineiros, que foram dispensados do serviço. Ele próprio se pôs a fazer castelos, imaginando que algum dia poderia ter um filho para herdar tudo aquilo. Cada bosque e cada vasta campina pareciam encerrar um novo interesse e uma nova significação no seu pensamento. Aquele solar lhe era tão querido, a ele que nos últimos tempos lhe votara tamanha indiferença! A enorme e circular torre, a torre normanda de guarda, ainda ali se achava, ligada às paredes do prédio posterior, todo um edifício incerto construído durante anos e anos, em várias eras, e culminando num espantoso e primitivo estilo gótico, com sua ala e seu pórtico. — Creio que algum dia preciso derrubar esta parte — monologava Tristram — Zara deve ter excelente gosto, caso contrário, não se mostraria tão distinta em seus vestidos. Todos os seus pensamentos continuamente se voltavam para a noiva e para o que ela poderia desejar. E naquela noite, quando lorde Tancred ficou sozinho em seu quarto, depois de um dia afanoso com os eletricistas e operários, ele se pôs a olhar nas incandescentes achas e a devanear. A luz elétrica ainda não havia sido instalada. A alumiar os sombrios lambris de carvalho somente havia a luz dos grandes lampiões. Num nicho, ao lado da lareira, estava a armadura que um outro Tristram Guiscard usara em

Agincourt. Que homens baixinhos, os de outrora, comparados com ele, com o seu metro e oitenta e cinco de altura! Entretanto, foram grandes lordees, os seus antepassados, e ele havia de se tornar digno de sua raça. Não havia guerras em que tomasse parte, em defesa da pátria, mas lutaria pela sua ordem com o duque, seu tio, o esplêndido e antigo espécime do legislador hereditário. Francis Markrute, que era um excelente juiz, afirmou que ele pronunciara alguns decentes discursos na Câmara dos lordees. Podia, pois, continuar a pronunciá-los, melhores do que os anteriores, e Zara o ajudaria a fazê-los. Não sabia se ela gostava de ler, mormente poesia. Dotado de esplendida saúde, e esportista na acepção da palavra, sempre fora o seu tanto ou quanto tímido para que revelasse os seus íntimos te delicados gostos. Entretanto, alimentava a esperança de que Zara se interessasse bastante pelos livros de sua predileção. Em sua natureza havia um profundo romantismo, desconhecido por mulheres da espécie de Laura Highford, e com as suas solitárias noites, cheias de meditação, e com o amor crescente por um fantasma, manifestou-se aquele seu estado de alma. Planejara ir a Paris e hospedar-se no Ritz, durante a sua lua de mel. Zara, que ainda não conhecia a Inglaterra, provavelmente detestaria os solenes criados pasmados à sua frente, como nos dias de outrora, se a levasse para Orton, uma das propriedades do duque, posta à sua disposição para a deliciosa semana. Paris era muito melhor, mesmo porque de jeito nenhum deveria empreender uma viagem por mar. A todo instante lhe vinha essa ideia, e os seus olhos azuis e vivos brilhavam com o instinto de caça, e se voltavam para a imagem do Guiscard, esculpida em pedra, com os pés cruzados, simbolo dos que tomavam parte em Cruzadas, ostentando-se em toda a pompa na igreja de Wrayth. Um destorcido, vigoroso, esplêndido aristocrata inglês, no gozo de magnífica saúde — tal o aspecto de Tristram Guiscard, 24.° barão Tancred, sentado negligentemente numa poltrona defronte da lareira e sonhando com a noiva e devaneando sobre o seu destino. E quando findasse aquela semana, lá os esperava a caçada em Montfichet, onde encontraria o prazer e o orgulho de apresentar a encantadora esposa, e deveria encontrar-se com Laura. Subitamente o seu

pensamento se voltou para a antiga namorada. Pobre Laura! Devia estar contentíssima com o seu noivado, à vista da carta que dela recebera, uma carta cheia de gentilezas. Estava longe de imaginar a atitude diferente de Laura, e sentia-se com boa disposição de ânimo para revê-la. Entretanto, se apenas pudesse suspeitar o que lhe estava reservado! Depois, finda temporada e todos os prazeres que lá desfrutassem, ele e Zara viriam a Wrayth! Não teve mãos em si que não se figurasse querendo intensamente à esposa, neste romântico solar, e talvez não demorasse que lhe conseguisse também o seu amor. Quando assim se aprofundou no devaneio, lorde Tancred fechou os olhos, estendeu suas longas pernas e chamou Jake, seu solene buldogue, e se pôs a acariciar a franzida cabeça do cão. Quanto a Zara, em Paris, estava mais tranquila de espírito do que esperava. Mirko não opusera grande dificuldade em seguir para Bournemouth. Tudo estava tão lindo no dia em que o acompanhou! O sol brilhava alegremente; o oceano estava tão azul como o Mediterrâneo; Mrs. Morley, a esposa do médico, se mostrara tão gentil e delicada a ponto de conquistar imediatamente o coração do pequeno enfermo. Acariciou-o e falou-lhe de seu violino; o médico examinou-lhe os pulmões, e disse que com toda a certeza a sua saúde melhoraria graças ao excelente clima, contanto que se alimentasse convenientemente e tivesse uma assistência médica continua e não se resfriasse. A separação do pobre Mimo fora altamente emocionante. Despediram-se na mansarda da rua Neville, pois que Zara achou mais prudente não arriscarse a uma cena na estação. Ambos se beijaram e se estreitaram apertadamente, e pai e filho derramaram muitas lágrimas. Mas Mimo prometera ir logo visitálo, o mais depressa possível. E foi com essa promessa que se separaram. Uma outra triste despedida se verificou em Bournemouth, quando por sua vez se separou do irmãozinho. Esforçara-se por não pensar em sua partida até às doze horas do dia seguinte, e Mirko cuidou de ser o mais corajoso possível. Mas a lembrança da comovente e pobre figurinha de gente, que Zara avistava acenando-lhe num derradeiro adeus, de uma das janelas, arrancou-lhe as raras lágrimas que ainda tinha para chorar e que gotejaram em suas luvas, no instante em que se sentava no banco do trem.

Em sua curta existência, com os incontáveis momentos de profunda angústia, muitas vezes tivera vontade de gritar, e si se calava era porque sempre havia outros em que devia pensar primeiro. Um domínio férreo de si mesma, herdado do avô, o Imperador, sempre lhe acudia. Aquela voluptuosa, ondulante graça, e o cabelo vermelho e brilhante lhe vieram da formosa dançarina de ópera, e grande artista, sua avó. Pedira a Mrs. Morley que, se ouvisse o irmãozinho tocar continuamente a Chanson Triste, a avisasse, a fim de vir visitá-lo. Era um seguro indício de seu estado de espírito. E Mrs. Morley, que lera a noticia de seu próximo casamento, no Morning Post, indagou para onde deveria escrever-lhe. Zara estremeceu subitamente e depois respondeu que para a casa do tio, em Park Lane.

As

cartas

deveriam

levar

este

aviso:

"Para

ser

reendereçada

imediatamente". Quando ela partiu, Mrs. Morley comentou com a irmã, que viera fazerlhe companhia ao chá, a formosura da condessa Shulski e os seus ares régios. — Entretanto — concluiu Mrs. Morley — com aquele vestido simples, um tanto triste, preto; com uma pequena boina da mesma cor e com aquela magnífica pele de marta… qual, Minnie querida, essa gente tem gosto bem extravagante, não acha? Melhor lhe assentaria um lindo costume adequado ao outono, de veludo verde, e um chapéu com uma asa ou com todo um pássaro. O financista insistira com a sobrinha para que usasse o agasalho de pele de marta. E, mau grado tudo, a linda, escura e macia pele proporcionava algum prazer à sua dona. Agora, passadas três semanas, já estava de volta de Paris. Sua beleza se enriquecera com tudo o que o dinheiro e o fino gosto poderiam dar-lhe, e a folhinha marcava 18 de outubro, exatamente uma semana antes do dia prefixado para o casamento. Escrevera a Mimo, de Paris, e contara-lhe que ia casar-se. Ajuntara que assim procedia porque pensava fosse melhor para todos. Em resposta, Mimo lhe enviou algumas linhas cheias de exclamações de surpresa e de contentamento, e dissera ia dar-lhes o seu novo quadro — aquele quadro com o nevoeiro de Londres tão intensamente dramático com dois seres sob a

névoa — como presente de casamento. Pobre Mimo! como sempre, tão generoso com o que possuía. Mirko não deveria saber da noticia enquanto não se realizasse o casamento. Zara escrevera também ao tio, pedindo-lhe como grande favor que a esperasse exatamente no dia em que ia oferecer o jantar à família do noivo. Fácil lhe seria desculpá-la pelo excesso de ocupação com a compra do enxoval, ou com coisa que melhor lhe parecesse. Regressaria pelo trem das nove da manhã, de sorte que teria bastante tempo para arranjar-se para o jantar. Mais, ainda: seria de vantagem para todos se já encontrasse reunida toda a família, a fim de evitar a maçada de apresentações pessoais. Francis Markrute, concordou, ao passo que lorde Tancred ficou irritado. — Hei-de encontrar-me com ela na estação, pouco importa o que você diga, Francis! Estou ansioso por vê-la. E no instante em que o trem parou em Vitoria, Zara avistou-o na plataforma, e, mau grado todo o seu desgosto e ressentimento, não deixou de convir que o noivo era um esplêndido moço. Zara lhe surgiu como a mais encantadora criatura que jamais vira em sua vida, metida naquelas magníficas roupas parisienses e com o seu ar de grande distinção. Achara-a antes sedutora; agora, admirava-a em êxtase. Francis Markrute apressou-se ao seu encontro, enquanto Tristram franzia a testa. O financista sabia não ser prudente deixá-los sozinhos, num tête-à-tête no automóvel, quando se dirigissem para casa. O temperamento de Zara não suportaria isso. Essa a razão por que ele voltou apressadamente da cidade, muito embora odiasse a pressa, a fim de chegar com tempo à estação e servir de tertius. — Seja bem-vinda, minha sobrinha! — exclamou ele, antes que lorde Tancred pudesse abrir a boca — Como vê, nós dois viemos esperá-la. A condessa agradeceu-lhes polidamente, e voltou-se para dar uma ordem à sua criada francesa. A esperança que se refletia no rosto de Tristram, aquela alegria infantil que se lhe espalhava pelo semblante dali desapareceu

no momento em que se pôs a caminhar ao lado da noiva, na direção do automóvel que os esperava. No caminho para casa, conversaram sobre a viagem, que fora esplêndida e agradável, mormente naquela quadra do ano. Ela esteve no convés do navio e apreciou a paisagem que se lhe descortinara à vista. Paris estava divina e sempre constituía um encantador lugar para a gente ali passar uma temporada. Tristram observou-lhe que estava satisfeito por ouvir isso dos seus lábios, porque, se ela consentisse, ali é que iriam passar a lua de mel, imediatamente depois de casados. Zara inclinou a cabeça em sinal de assentimento,

mas

não

disse

palavra.

O

assunto

parecia

ser-lhe

completamente indiferente. Mau grado não o estranhasse aquela atitude da noiva, e outra coisa não pudesse esperar, o coração de lorde Tancred começou a descair em profunda tristeza e ele não desfitou os olhos de seus sapatos, até que chegaram a Park Lane. Quando entravam, Francis Markrute murmurou à sobrinha: — Peço-lhe que seja um bocadinho mais atenciosa. O rapaz não é um tolo, como você sabe. E assim foi que, quando se acharam na biblioteca e Zara lhes serviu o chá, ela própria deu inicio à palestra. Mas Tristram conservava cerrados os dentes, e um brilho de aço refulgia na luz dos seus olhos azuis. Zara estava simplesmente encantadora, naquela blusa de sarja azul, em roupas próprias de viagem. E ele que ainda não pudera beijar-lhe aquelas mãos brancas e longas! Deveria ainda esperar toda uma semana, antes do casamento. E depois? Acaso ela teimaria naquela gélida barreira aos seus desejos? Se teimasse… Mas Tristram não quis mais pensar nisso. Notou que Zara trazia, na mão esquerda, o anel que lhe dera, e que na direita nada tinha, bem como que não possuía nenhum broche ou qualquer outra joia. Sentiu-se satisfeito por isso, porquanto poderia dar-lhe tudo. Sua mãe, que conservava as esplendidas joias da família, insistira em enviar-lhas não fazia muito, e uma ou duas foram montadas de novo, para melhor se enquadrarem ao provável moderno gosto das novas noivas dos Guiscard. E

essas joias e as maravilhosas pérolas, presente do tio, estavam lá em cima, na salinha de estar, à sua espera. — Peço-lhe licença para descansar um bocadinho, até a hora de jantar — disse ela forçando um sorriso no instante em que se encaminhava para a porta. Era a primeira vez que Tristram a via sorrir. Aquele sorriso descompassou-lhe as pulsações do coração. Sentia-se furiosamente ansioso por tê-la em seus braços, para beijá-la, para dizer-lhe que estava loucamente apaixonado e que não mais queria perdê-la de vista. Mas deixou-a sair. Voltando, deu com Francis Markrute despejando licor de uma antiga, maravilhosa garrafa toda filigranada de ouro, num dos lados da mesa perto dos seus cálices. Encheu dois, e ofereceu um a Tristram, e, em meio dum sorriso, citou um trecho do Doutor Johnson: — "Claret para os rapazes; vinho do Porto para os homens, mas brandy para os heróis!" Por Deus, meu caro rapaz! Você é um herói!

CAPÍTULO XII O JANTAR LADY Tancred infelizmente estava com uma das suas mais violentas dores de cabeça e, uma hora antes do jantar, antes que o filho deixasse a casa de Park Lane, um recado telefônico ali transmitido dizia de sua tristeza e da impossibilidade de comparecer. Emilia é que o transmitiu, e falou diretamente com Francis Markrute. — Mamãe está tão aborrecida, mas está padecendo horrivelmente. Espero que a condessa Shulski e o senhor a desculparão. Ela deseja saber se a condessa Shulski consente que Tristram a acompanhe até a nossa casa, amanhã de manhã, sem nenhuma cerimônia, para almoçar conosco. Com a ausência de lady Tancred, verificou-se uma mudança na disposição de lugares. Lady Ethelrida agora se sentaria ao lado direito do anfitrião, e uma tia ao lado de Tancred; lady Coltshurst à sua esquerda, ao passo que Zara ficaria entre o duque e o noivo, como já estava assente. Emilia Guiscard teria por vizinhos sir James Danvers e lorde Coltshurst; e Mary, seu tio, o irmão do duque, também um viúvo, lorde Charles Montfichet, e seu filho, o "Menino" Billy, herdeiro de Glastonbury. Lady Ethelrida era filha única do duque. Um quarto de hora antes das oito, Francis Markrute subiu até a sala de estar da sobrinha. Ela já estava pronta, e trajava um vestido de veludo safiraazul, que era uma obra prima de simplicidade. Os presentes de Tancred, safiras e diamantes, estavam sobre a mesa, nas caixinhas abertas, bem como o esplêndido colar de pérolas de Markrute. Naquele instante Zara contemplavaos, com a mais estranha e desdenhosa resignação impressa no rosto. — O seu presente é magnífico, tio Francis — disse ela, sem agradecer-lhe — Que joia devo usar? A que o senhor me deu ou a dele? — A de lorde Tancred. Ele me lembrou, especialmente, que você a usasse esta noite. Essas joias são as menores de todas; as restantes estão sendo de novo montadas, para dar-lhe. Nada podia ser mais gentil ou mais

generoso do que o gesto de toda a família. Este broche aqui, com uma grande safira e diamante, é presente do duque. Zara inclinou a cabeça sem nenhum entusiasmo, e tirou das orelhas as suas antigas e pequenas pérolas, substituindo-as por brincos com a grande safira e diamante, e envolveu o níveo pescoço num colar em que safiras e diamantes se alternavam. — Você está um verdadeiro encanto — exclamou o tio, com admiração — Bem que eu sabia poder confiar perfeitamente em seu gosto. O vestido é uma perfeição. — Creio que já podemos descer — desconversou a sobrinha com toda a tranquilidade. Ela estava completamente calma, com a fisionomia serena, e, se os sombrios olhos encerrassem alguma tempestuosa expressão, geralmente conservava abaixadas as pálpebras. Intimamente, sentia enfurecida revolta. Esta era a primeira cerimonia de sacrifico, e mau grado em abstrato seu fino senso apreciasse joias, e a transformação por que passara em matéria de lindos vestidos e apanágios, tudo isso de jeito nenhum a fazia esquecer da odiosa degradação. A seu ver, representava um odioso papel: não passava de uma simples mercadoria que constituía parte da transação. Não podia saber qual o interesse do tio no ajuste, embora suspeitasse fosse de grande alcance, mas o de lorde Tancred saltava à vista — e era simplesmente abominável — o dinheiro! Por que não se combinara toda a odiosa transação antes que ele a visse? Ele era pior que Ladislau! Ladislau, como quer que fosse, amara-a apaixonadamente, em seu modo revoltante de animal. Na crença de que toda a família do noivo quisesse, à viva força, aquele casamento antes de conhecê-la, simplesmente por causa do dinheiro do tio, já odiava e desprezava a todos. O seu pensamento era que noblesse oblige — uma grande e antiga casa nunca deveria cair tão baixo. Francis Markrute olhou-a quando ela disse com toda a gélida calma — "Creio que já podemos descer", e sentiu-se bastante inquieto.

— Zara, está entendido, você vai ser atenciosa, não? E nem magoará a quem quer que seja, não é verdade? Por toda resposta o tio recebeu um olhar de desprezo. Já empenhara a sua palavra, e recusava-se discutir o assunto. E desceram as escadas, a tempo de estarem prontos para receber lorde e lady Coltshurst, que foram os primeiros a chegar. O lorde era um homem conservador,

nem

um

pouco

inteligente,

governado

pela

mulher

e

envelhecido, e a esposa uma corpulenta lady, que devia trazer na cabeça, à guisa de diadema, este dístico: "É proibido olhar-me". Era avantajada, curta de vista e usava um comprido lorgnon. Além disso, possuía três queixos, e não se parecia nem um pouco com os Guiscard, exceto quanto à boca e às maneiras altivas. Os modos de Zara eram como os de uma graciosa soberana recebendo estrangeiros em audiência especial. Os hóspedes agora chegavam uns após outros. lorde Charles e seu filho, o "Menino" Billy, depois Tristram e suas irmãs, Jimmy Danvers e por fim o duque e lady Ethelrida. Todos eles eram pessoas de alta sociedade, e não sentiram o menor embaraço. O velho duque beijou a mão de sua linda sobrinha em perspectiva, quando lhe foi apresentada, e disse que algum dia, como um homem velho, reclamaria o privilegio de beijar-lhe a face! Zara sorriu por apenas um instante, dominada pelo encanto do velho palaciano. Depois, colocando os seus dedos no braço do duque, desceram todos para o jantar, palestrando suavemente. Francis Markrute tinha uma teoria que certos seres humanos nasciam com uma antena moral, uma espécie de extra-combinação além do natural, no tocante ao sentido da vista, do olfato, do ouvido e da inteligência, que as fazia apreender as situações e as pessoas, mesmo quando tais pessoas e situações coincidissem pertencer a uma desconhecida raça ou desconhecidos costumes. Zara era das que possuíam esta antena altamente desenvolvida. Quase que instantaneamente verificou que quaisquer que fossem os motivos ocultos, a família do seu futuro marido mostrava acolhê-la pelo que ela era. Talvez fosse

um pouco ridículo, mas o gesto era de uma polidez a toda a prova, e não lhe restava senão conformar-se com a situação. Antes que terminassem a sopa, o duque dizia de si para consigo que nunca, nunca em sua vida encontrara mais atraente criatura! E não se admirava de Tristram achar-se loucamente apaixonado pela noiva, coisa que saltava à vista até de uma criança, atenta à exaltada admiração com que ele a devorava com os olhos. Não obstante, Zara ainda não entreabrira os lábios num sorriso. O único que Tristram lhe vira foi na sala de visitas. Lady Ethelrida, de onde estava sentada, podia vê-la através dum claro entre as flores. O financista propositadamente ordenara se arrumasse a mesa com flores de longo caule, de modo que, se por acaso Zara olhasse com altiva indiferença, melhor seria que sua expressão escapasse ao reparo de todos, principalmente

dos

vizinhos

mais

próximos!

Todavia,

lady

Ethelrida

conseguira ver-lhe as feições, através de um ângulo oblíquo, de encontro ao fundo de um xairel francês. Com o seu sereno, tranquilo julgamento das pessoas lady Ethelrida ficou atônita. Qual a razão daquele estranho olhar? Por que parecia uma corça acuada? Questão de temperamento? Ou de ressentimento? Ou apenas padecimentos morais? Tristram lhe dissera que a cor daqueles olhos era da ardósia. Entretanto, pareceram-lhe duas manchas da nanquim. — Qualquer tragédia neles se oculta — pensou a filha do duque — e Tristram está sobremodo apaixonado para que possa vê-la. Mau grado isso, sentiu-se atraída para a sua futura prima. Francis Markrute parecia perfeitamente feliz. As suas maneiras, como hospedeiro,

nada

deixavam

a

desejar.

Nem

mesmo

descuidou

da

desinteressante tia, que fazia péssimas referências a seu respeito. Quanto à sua vizinha, lady Ethelrida, fê-la sentir que lhe desejava a palestra, não porque ela fosse uma atraente moça, mas sim porque o impressionava com sua inteligência. As coisas, pois, caminhavam bem. O duque perguntou a Zara se ela sabia alguma coisa a respeito dos

políticos ingleses. — A senhora deve fazer com que Tristram fique em evidência — disse o duque — Até agora tem procedido bem, mas é um tanto preguiçoso — acrescentou num sorriso. "Tristram", pensou Zara. "Então, esse era o seu nome!" Era a primeira vez que o ouvia, e ficou toda embaraçada só à ideia de fazer algumas perguntas a respeito do nome do noivo! Era incrível! Esse nome fez-lhe brotar um horrível senso de humor e ela olhou no rosto do duque e, durante um segundo, admirou-se do que diria ele se lhe contasse o que se estava passando consigo. E o duque mereceu um sorriso, embora forçado, e continuou: — Bem vejo que a senhora notou a sua preguiça! Agora, cabe-lhe o dever de torná-lo um combatente de primeira linha por nossa causa. Os radicais presentemente querem atacar-nos, e devemos todos levantar-nos e combater. — Nada sei a respeito de seus políticos — respondeu Zara — Nem mesmo compreendo de que partido se trata, embora meu tio me dissesse que é de gentlemen e de pessoas do povo. Quer-me parecer que seja como em outros países, onde todo mundo trata de agarrar naquilo que outrem de mais elevada categoria conseguiu, sem estar na altura de administrar o que pretende agarrar. — É mais ou menos isso — sorriu o duque. — Isso teria sua razão de ser se essa gente se sentir oprimida, como em França, antes da revolução. Acaso tal coisa aqui se verifica? — Oh, não! — interrompeu Tristram — Todas as leis são feitas para beneficiar as classes baixas. Eles têm compensação em tudo, e mesmo a oportunidade de subirem alto, se quiserem Os míseros proprietários como meu tio e eu mesmo é que são oprimidos! E Tristram sorriu satisfeito, pois sentia-se feliz em escutar a voz da noiva. — Quando eu estiver a par de tudo isso, talvez ache interessante — continuou Zara para o duque.

— Nós cuidaremos de instruí-la através da nossa atividade, hein, Tristram, meu rapaz? E então será uma grande lady, e dará recepções, como as ladies do século dezoito. Nós precisamos de uma formosa moça para atrair-nos a todos em seu redor. — Bem, mas o senhor não acha que lhe encontrei um perfeito espécime, tio? — indagou Tristram. Erguendo a sua taça, beijou-lhe a borda e disse: — Querida… minha adorada noiva! Eu bebo à sua saúde. — mas era demasiado para Zara! Ele se estava excedendo! Por isso mesmo é que se voltou para o atrevido e fê-lo corar com um olhar de ressentimento e desprezo. Além do duque estava sentado Jimmy Danvers e após, Emilia Guiscard e lorde Coltshurt. O casalzinho trocava confidencias em voz baixa. — Escute, Emilia: você não a acha do outro mundo? — indagou sir James — Não parece nem um pouquinho com as inglesas, e faz-me lembrar uma… uma… Não sou forte em historia e em datas, mas faz-me lembrar algumas das mulheres nos velhos tempos florentinos. Parece-me capaz de dar uma punhalada em alguém, ou propinar uma taça de veneno a qualquer camarada, sem que estremeça um só fio do seu cabelo. — Oh, Jimmy! Que comparação horrível! — exclamou Emilia — Não acho que o seu rosto seja cruel. O que sim, tem expressão peculiar e misteriosa e… e não sorri. Pensa você que ela ame a Tristram? Talvez seja próprio dos estrangeiros… parecer tão fria! Nesse instante, sir James Danvers notou o olhar que Zara voltou ao noivo, pelo seu brinde. — Josafá! — exclamou ele. Mas notando que Emilia não o notara, calouse abruptamente — De fato, a gente nunca pôde estar seguro no tocante aos costumes dos estrangeiros — emendou sir James, voltando os olhos para o prato. Depois, pensou consigo mesmo: "O pobre do Tristram vai passar mal. No entanto, está talhado para o casamento, e dará excelente marido. É como si se atirasse o velho camarada na boca de uma pantera! Mas, por Deus! Vale a

pena a gente arriscar ser devorado por essa linda mulher". Numa das vezes em que Francis Markrute se voltou para o vizinho da esquerda, lorde Coltshurst segredou a lady Ethelrida: — A meu ver, felicíssima foi a escolha de Tristram, não acha? Mas temo que você — e o lorde olhou timidamente para a esposa — não tenha esse ponto de vista. Minha mulher tem uma verdadeira idiossincrasia por moças de cabelo vermelho, e chama-as de "Temperamentos ingovernáveis". Receio que vá encher os ouvidos de sua tia Jane. — Tia Jane não vai na opinião alheia — contraveio lady Ethelrida, que não emitiu nenhum juízo pessoal a respeito da noiva de Tristram, nem lorde Coltshurst conseguiu arrancar-lha. Nunca a filha do duque de Glastonbury se intrometia em negocio alheio, mas queria a Tristram como se fossem irmãos, e ficou um tanto receosa. Do lugar em que estava sentada, não podia ver o rosto do primo, porquanto a mesa era comprida e ovalada nas extremidades. Entretanto, também ela notou aquele relâmpago nos olhos de Zara, o qual provocou o "Josafá!" de Jimmy Danvers. O financista logo abandonou as suas maneiras cerimoniosas, ditadas pelo dever, para entregar-se ao entretenimento de uma palestra agradável, e por isso deixou lady Coltshurst para lorde Charles Montfichet. O assunto mudou para os tipos individuais. — Os tipos não estão sujeitos a contingências — afirmou Francis Markrute — Se tivermos o cuidado de fazer um exame retrospectivo, sempre encontraremos razão para justificá-los. Todo o mundo vota tamanha indiferença a tais coisas tão interessantes, lady Ethelrida, e parece que as faculdades especulativas de todos somente se exercem em assuntos já resolvidos! Tivemos grandes cientistas a investigar a nossa origem, entre os quais Darwin. Entre os alemães, muitos deles estudam o atavismo das raças, mas em regra geral, mesmo as pessoas ilustradas ignoram completamente o assunto, e esperam que o pequeno Tommy Jones e Katie Robinson, ou Jaques Dubois e Marie Blanc tenham idênticos instintos aos de seu primo, lorde Tancred, e aos da senhora, por exemplo. Qualquer que seja o indivíduo com

quem esteja tratando, a senhora deve esforçar-se por saber a que grupo originariamente pertence. Em ocasiões de grande excitamento, quando se suspende todo o controle adquirido, o indivíduo sempre atua de acordo com a natural ação do grupo de origem. — Que coisa interessante! — observou lady Ethelrida — Examinemos os que se acham em volta desta mesa, para decidir a que grupo particular cada um de nós pertence. — A maior parte é do mesmo grupo — disse ele, pensativamente — Eliminando-se a minha pessoa e a de minha sobrinha, sir James Danvers talvez seja o mais cruzado de todos. — De fato — concordou lady Ethelrida, rindo-se — A avó de Jimmy era filha de uma fiandeira de algodão, de Manchester, verdade que riquíssima, e daí é que se deriva ser ele bastante ajuizado. Receio que Tristram e nós outros da família, exceto lorde Coltshurst, não tenhamos algo de sensível, como Jimmy, durante algumas centenas de anos. Nesse caso, qual a conclusão que o senhor tira sobre o modo de atuar do nosso grupo? — Que é dotado de grande coragem e percepções finíssimas; uma força derivada de nervos altamente distendidos; cavalheirismo, gosto apurado e amplas e nobres aspirações, não muito elevadas. Nos elementos inferiores que o compõem, o seu grupo caminha para a decadência de todos esses predicados, e o que era sublimado se torna vício. Mas não me refiro à vulgaridade, ou ao mau gosto, e nem à covardia em qualquer componente do grupo. — Não — disse lady Ethelrida — espero que não. Segundo o seu raciocínio, é uma injustiça de nossa parte quando em família — talvez o senhor saiba disso — censurarmos o procedimento de lady Darrowood por provocar cenas, tornar-se dogmática e tratar lorde Darrowood com desdém? — Certamente. Essa senhora só faz tais coisas quando está excitada e então regressa ao seu grupo. Quando se acha sob o próprio controle, atua perfeitamente como marquesa inglesa. É prerrogativa da nova raça poder desempenhar bem um papel, e isso é o resultado da sagacidade e da força que foram solicitadas dos seus imediatos antepassados, a fim de facilitar-lhes a

vida sob condições desfavoráveis. Se o pai de lady Darrowood fosse um matador de rezes em Dopford, e não um açougueiro de porcos, jamais ela poderia ascender ao role de marquesa. Isto não é para os novos países. Demais a mais, não ha necessidade de bluff, nem se compreenderia o bluff, e destarte não se produziria um tipo como lady Darrowood. Nesse instante, lady Ethelrida de novo entreviu o rosto de Zara. No momento, ela estava calada, e com uma expressão de soberbo orgulho e desprezo no semblante. Quase que antes de se dar conta disso, lady Ethelrida exclamou: — A sua sobrinha tem ares de imperatriz, de uma portentosa bizantina… de uma imperatriz romana! Francis Markrute voltou os sagazes olhos para a sua interlocutora. Acaso lady Ethelrida ouvira alguma coisa a respeito do parentesco de Zara? Ficou admirado por apenas um segundo, e depois sorriu internamente à sua ideia. Não, lady Ethelrida nada ouvira sobre isso, e se ouvisse, não teria proferido aquelas palavras. Neste caso, estaria atuando em desacordo com o seu grupo. — Há certas razões para que assim pareça — concordou ele — Quanto à origem paterna, nada lhe posso dizer a respeito de minha sobrinha. É filha de Maurice Grey, creio que uma das mais antigas famílias inglesas. Mas da parte de sua mãe, Zara deve possuir em elevado grau os sentimentos de uma artista e o orgulho de um César. É um caso interessantíssimo. — Posso conhecer alguma coisa a esse respeito? — indagou lady Ethelrida — Pergunto-lhe isso, porque desejo a felicidade dos dois. Tristram é dotado de um caráter dos mais simples e finos que jamais conheci. Receio que ele a ame apaixonadamente. — Por que diz "receio"? Lady Ethelrida avermelhou um bocadinho. Um delicado, um quente rubor lhe assomou às faces e deixou-a encantadora. Nunca ela falava de amor com os homens. — Porque um grande amor é uma coisa poderosa e por vezes terrível, se

não for correspondido com igual intensidade. E… perdoe-me por falar-lhe deste jeito, mas a condessa Shulski não parece… se é que ama a Tristram… querer-lhe muito. Francis Markrute não respondeu imediatamente. Voltando-se para lady Ethelrida e olhando-a de fito nos olhos, disse-lhe gravemente: — Acredite-me, eu não consentiria que seu primo se casasse com minha sobrinha se não estivesse convencido, em absoluto, de que esse casamento vai promover a felicidade de ambos. Quer fazer-me uma promessa, lady Ethelrida? Quer prometer que me ajudará a não permitir, por algum tempo, que ninguém interfira entre eles, pouco importa o que suceder? Vamos darlhes a oportunidade de arrumarem a sua vida e o seu futuro como mais conveniente lhes parecer. Ethelrida voltou-se e olhou-o com idêntica seriedade à sua, enquanto respondia: — Prometo-lhe. Intimamente, a percepção de alguma desconhecida e oculta influência, que poderia crescer e transformar-se numa precipitada corrente, tornou-se mais forte do que antes. Entretanto, lady Coltshurst, que estivera a examinar o perfil de Zara quando pusera nos olhos o lorgnon — aquele irritante lorgnon de cabo tão comprido! — agora emitia a sua opinião sobre a noiva a lorde Charles Montfichet, vizinho da esquerda. — Não simpatizo com ela, Charles. Mesmo que tenha pintado os cabelos, e escurecido os olhos, aquela mistura não é natural, e se isso se verificar, o que é bem provável, toda ela é artificial, e não convém para a família. — Oh! Escute, minha senhora! — objetou lorde Charles — Penso que é a mais linda garota que tenho visto em todo um mês só de domingos! Lady Coltshurst ergueu mais uma vez o lorgnon, e sentenciou: — Não posso com esta sua linguagem moderna, Charles, mas a palavra garota usada literalmente é bem apropriada. É uma garota, na verdade. Receio

que o pobre Tristram, com esse tipo, não possa contar com um futuro meio feliz, ou que a própria Jane possa esperar que o nome de Tancred continue isento de qualquer escândalo. lorde Charles estava furioso e vingou-se. — Por Deus! Uma ratazana respeitável pode provocar escândalo a um nome com mais probabilidade do que esta beleza! Na família do marido de lady Coltshurst havia uma pessoa que, não tendo filhos, promovera um escândalo. Quase que chegou a bater às portas do Tribunal, num pedido de divórcio. Era uma mulher estúpida e apagada. Lady Colstshurst abruptamente pôs ponto final ao assunto, voltando um olhar aniquilador a lorde Charles. Felizmente, nesse instante, Zara ergueu-se e todas as senhoras deixaram a mesa. E assim terminou o jantar oferecido pelo tio da noiva à família do noivo. Coisa alguma poderia exceder a dignidade de Zara, quando todos se acharam na sala de visitas, que ficava no pavimento superior. Tão logo ali chegaram reuniram-se em grupo, perto da lareira do amplo aposento, Emilia e Mary tentaram dar início a uma palestra pronunciando algumas palavras gentis,

com

a

franqueza

própria

da

idade.

Ambas

admiravam

extraordinariamente a futura cunhada e, se Zara não pensasse que estavam representando o seu papel, como o que ela própria representava, por certo ficaria cativa à vista de tantas delicadezas. Com o decorrer das horas, cada vez mais esfriava internamente, embora respondesse polidamente às perguntas que lhe eram feitas. Lady Ethelrida, que a observava com toda a sua serenidade, estava simplesmente atônita. A seu ver, aquela extraordinária e linda mulher afivelara ao rosto uma máscara e, neste instante, quando lady Coltshurst — que permanecera distanciada das demais, de onde em onde fixando, ora uma, ora outra, com o seu terrível lorgnon — chamou de parte as meninas para perguntar-lhes da dor de cabeça da mãe, Ethelrida ficou sozinha e Zara então dela se aproximou, vindo sentar-se no mais próximo dos rígidos sofás franceses. E no instante em que apertava suas finas e lindas mãos, com os olhos voltados para as luvas cinzento-claro, que não cuidara de calçar novamente, Ethelrida falou-lhe

gentilmente. — Tendo esperança de que todos nós a faremos sentir que é bem-vinda em nossa família, Zara. Posso chamá-la de Zara? Acho tão bonito esse nome! Os estranhos olhos da condessa pareciam tornar-se mais negros do que nunca. Uma expressão assustadiça e desconfiada neles apareceu, como certa vez Francis Markrute notara nos olhos sombrios da pantera, quando se pusera a assobiar, perto da jaula, uma doce e enternecedora canção. Que significava tudo aquilo? — Agradeço-lhe imenso os seus votos — respondeu-lhe Zara friamente. Lady Ethelrida decidiu-se não notar a indelicadeza da resposta. Devia vencer essa barreira, em beneficio de Tristram, e faria o melhor que pudesse. — A Inglaterra e os nossos costumes parecem tão estranhos para a senhora — prosseguiu — Mas, uma vez que nos conheçam, não somos de todo em todo um povo desagradável. E lady Ethelrida sorriu, encorajando-a. — É fácil a gente ser agradável quando se sente feliz — respondeu Zara — E todos aqui parecem ser muito felizes, sans souci. Isso até é uma fortuna. Ethelrida intimamente se fez esta pergunta: "O que a torna tão infeliz, formosa mulher, uma vez que tem o amor de Tristram é jovem, goza boa saúde e é rica?" Concomitantemente, Zara também pensava: "Essa lady me parece toda delicadeza e franqueza. Mas, que posso dizer? Não conheço os ingleses. Talvez por ser bastante educada é que representa com tanta finura o seu papel". — Ainda não conhece Wrayth? — indagou Ethelrida — Tenho certeza de que ha-de interessá-la bastante… É tão antigo! — Wr… ayth? — gaguejou Zara, que nem sequer ainda ouvira alguém pronunciar esta palavra — O que vem a ser Wrayth? — Talvez eu não pronuncie a palavra como a senhora está habituada — respondeu Ethelrida gentilmente, e bastante admirada da ignorância da outra

— Refiro-me ao solar de Tristram. Os Guiscard possuem-no desde quando o Conquistador lho deu, depois da Batalha de Hastings, como sabe. É um dos mais raros casos de propriedade tão antiga pertencendo a uma única família, mesmo aqui, na Inglaterra, e o título somente passa para a linha dos varões, como sempre se verificou. Mas Tristram e Ciril são os derradeiros. Se nada lhes acontecer, serão eles os últimos com a posse do solar. Oh! todos nós estamos tão contentes porque Tristram vai casar-se! Os olhos de Zara cintilaram repentinamente, à inconsciente insinuação de tais palavras. Quem quer que tenha observado um felino em sua jaula, e tenha notado toda uma gama de emoções — taciturna tolerância, suspeita, ressentimento, ódio e raiva, bem como contentamento e felicidade — que possa aparecer em sua órbita, sem o menor auxilio das pálpebras ou das sobrancelhas, sem a menor alteração na boca ou no queixo, entenderá a linguagem daquelas duas manchas de nanquim, enquanto Zara permanecia num silencio de gelo. Compreendera

perfeitamente

o

que

as

palavras

de

Ethelrida

significavam. A linha dos Tancreds continuaria através de sua pessoa! Mas, nunca, nunca! Isso jamais sucederia! Se esperassem por isso, estavam redondamente

enganados.

O

seu

casamento

consultava

única

e

exclusivamente satisfazer uma cerimonia sem maiores consequências, e as razões que lhe deram origem eram razões mercenárias. Era preciso que não houvesse o menor engano nisso tudo. E se lorde Tancred alimentasse ideias idênticas às da prima? Zara estremeceu subitamente, e quase perdeu a respiração ante o horror desse pensamento. E quem era esse Ciril? Zara não fazia a menor ideia de quem fosse Ciril, não mais do que a respeito de Wrayth! Entretanto, não fez nenhuma pergunta. Se Francis Markrute ouvisse essa palestra, certamente ficaria aborrecido consigo mesmo, e havia de censurar-se pela sua estupidez. Com toda a certeza notaria logo que a sobrinha deveria estar a par de tudo quanto se referisse à família do noivo, para não pisar terreno incerto. Ethelrida sentiu a sensação de uma espécie de petrificado espanto. Há uma palavra francesa, ahurir, que traduz exatamente a sua emoção, mas sem

equivalente

em

português.

A

noiva

de

Tristram

por

certo

estava

absolutamente alheia aos mais simples fatos que diziam respeito ao noivo, à sua família, ou à sua casa! Os olhos de Zara refulgiram às últimas palavras de Ethelrida, como uma expressão de auto-defesa e desconfiança, e não obstante, Tristram estava apaixonadíssimo por ela. Como é que tais coisas podiam suceder? O mistério era grande. Ethelrida estava emocionada e interessada. Francis Markrute deixara que as senhoras ficassem a sós, por alguns instantes, até que o mais difícil se passasse, e abreviou o mais que pôde, auxiliado por Tristram, o prazer do vinho do Porto, do velho brandy e dos charutos que oferecera aos homens. O único desejo de lorde Tancred era estar perto da noiva. A dominadora corrente magnética, que parecia tê-lo impulsionado desde o momento em que a viu pela primeira vez, agora crescera consideravelmente e lhe constituía um quase sofrimento. Ela se mostrava cruelmente fria e desdenhosa no jantar; sempre quando ele lhe falava, os seus olhos se lhe ostentavam francamente desdenhosos, coisa que o enlouquecia e inda o excitava mais. E, quando os outros homens beberam à saúde e felicidade dos noivos, no instante em que sorvia o velho brandy de si para consigo fez este voto: "Antes que passe um ano, hei-de fazê-la amar-me tanto quanto a amo, e que Deus me ajude!" No momento em que eles apareciam na sala de visita, Ethelrida dizia: — A propriedade do norte, Norndale, não chega nem aos pés de Wrayth… Mas quando o viu entrar, Ethelrida levantou-se e cedeu o seu lugar a Tristram, que alegremente se sentou no sofá, ao lado da encantadora e misteriosa noiva. Todavia, não puderam entregar-se a um tête-à-tête porquanto Jimmy Danvers, que se julgou na obrigação de dizer qualquer coisa a respeito do casamento, se aproximou do casal e encostou-se na lareira, perto deles. — Vou ser o mais severo bestman na próxima quarta-feira, condessa. Tenho certeza de que verei Tristram na igreja de São Jorge meia hora antes da cerimônia, e que ele não enfiará o anel em seu dedo, pode acreditar!

E riu-se nervosamente, porque o rosto de Zara continuou sério. — A Condessa Shulski não conhece o cerimonial inglês, Jimmy — acudiu Tristram prontamente — Nem sabe o que é um bestman! Mas se nós dois sozinhos tivéssemos que atravessar o oceano das cerimônias, precisávamos, antes de mais nada, submeter-nos a um ensaio, como fizemos no casamento de Darrowood. — Isso deve ser uma piada, Tristram — observou Jimmy Danvers. — Sim, seria necessário, mormente se se tratasse de um casamento espalhafatoso, com as damas de honra e o mais da praxe. Mas, vamo-nos casar sem nenhum estardalhaço, não, Zara? Detesto exibições. E você, Zara? — Imensamente — foi tudo o que ela respondeu. Então, sir James que sentira ter dado um salto no escuro, depois de uma ou duas observações triviais, deixou-os. Zara novamente voltou a ser hospedeira e se pôs a palestrar com lady Coltshurst. Tristram encaminhou-se para o lado do duque, e ambos logo se meteram numa discussão política. Embora o tio parecesse nada notar de extraordinário e se mostrasse interessado pelo assunto, o seu velho e bondoso coração estava penalizado ante o sofrimento do sobrinho predileto. — Mr. Markrute, estou um tanto embaraçada — disse lady Ethelrida, ao encaminhar-se junto com o seu hóspede, para o lado de um singular Vigée le Brun, pendurado na parede — Sua sobrinha é a mais interessante criatura que jamais encontrei, mas estou convicta de que interiormente qualquer coisa a torna infeliz. Desculpe-me, mas o que significa tudo isso? Oh, bem me lembro da promessa que lhe fiz, no jantar, mas o senhor tem absoluta certeza do que me assegurou? Podem eles realmente viver felizes, algum dia? Francis

Markrute

inclinou-se,

aparentemente

para

mostrar

um

ornamento qualquer, sobre a mesa, debaixo do quadro e disse em voz baixa e com vibração: — Dou-lhe minha palavra de que alguém, há muito falecido e a quem amei estremecidamente, pode ressuscitar para amaldiçoar-me agora se eu consentisse nesse casamento com uma duvida no coração, quanto à eventual

felicidade de ambos. Lady Ethelrida olhou fundamente em seu interlocutor, e notou que aquele semblante frio estava sobremodo emocionado e compassivo. — Nesse caso, não lhe farei nenhuma outra pergunta. Confio no senhor. — Minha gentilíssima e nobre senhora, não imagina o quanto lhe agradeço! — disse o financista, não ocultando a emoção que lhe enternecera os olhos. E mudou de assunto. Depois disso, não demorou que lady Coltshurst dissesse que já era tempo de ir-se, e quis levar as meninas para casa. A carruagem do duque também já estava à espera. Despediram-se, e Francis Markrute murmurou a Jimmy Danvers: — Faça com que Tancred o acompanhe, por favor. Minha sobrinha está bastante fatigada com o esforço desta noite, e desejo que ela vá pra cama imediatamente. Para Tristram, ele disse: — Não se despeça de Zara, como os demais, meu rapaz. Não vê que ela está quase desmaiando? Acompanhe os outros tranquilamente e volte amanhã, de manhã, para levá-la à casa de sua mãe. E assim foi que todos saíram como desejava Francis Markrute. De volta para o vasto aposento onde estiveram, deu com Zara enrijecida como uma estatueta de mármore, exatamente como a deixara. Adiantando-se ao seu encontro, inclinou-se e beijou sua mão. — Minha paciente rainha e formosíssima sobrinha! — exclamou ele, e levou-a à porta e a acompanhou até o seu quarto. Zara não disse palavra. Minutos depois, quando o financista já se deitava, mau grado seu foi tomado de tremor e calafrio ao ouvir a Chanson Triste, interpretada com um acento de indizível paixão, como se traduzisse a angústia de sofredora alma. Se pudesse ver o rosto da sobrinha, notaria que aqueles grandes olhos se enchiam de lágrimas, enquanto ela orava: —

Mãezinha, peça a Deus que me dê coragem para levar esta cruz, em

benefício do seu Mirko.

CAPÍTULO XIV A VISITA

CONTRA o costume, Satã estava bastante irrequieto quando, na manhã seguinte ao jantar em casa do financista, Tristram o pôs a meio galope, numa volta do Park Lane. O ardor do animal agradara ao cavaleiro, que necessitava de qualquer coisa que lhe prendesse a atenção, tamanho o excitamento que dele se apossara. Durante as três semanas de ausência de Zara, lorde Tancred se pôs a devanear, cheio de romantismo e loucamente apaixonado pela noiva. Chegou a iludir-se acerca daquela apatia, de sua gélida aquiescência à proposta do tio, e, portanto, grande foi o choque que recebeu na noite anterior, ante o estranho procedimento de Zara. Entretanto, nessa manhã ele se convenceu de que fora um tolo em esperar coisa diferente. Com toda certeza, não passava de um grande louco, mas jamais mudaria de ideia e sentia-se preparado para pagar o preço de sua loucura. Afinal de contas, depois de casados teria bastante tempo para desfazer aquela aversão de Zara, de sorte que lhe cumpria ter um bocadinho mais de paciência. Contudo, não mais suportaria padecimentos iguais aos que sofrera a noite passada. De volta para o seu apartamento, logo de manhã, refrescou-se num excelente banho e vestiu-se com bastante apuro, afim de apresentar-se perante a noiva e acompanhá-la até a casa de sua mãe. Zara parecia mais branca do que nunca ao entrar na biblioteca, onde sozinho ele a esperava. O tio achava-se na cidade. Ela trazia fundas olheiras e Tristram logo adivinhou que passara a noite chorando. Uma grande ternura dele se apossou. Acaso a sua noiva estava triste? Por que não a confortaria? Com esse pensamento, estendeu-lhe ambas as mãos. Todavia, como Zara permanecesse tal qual uma estatua de pedra, e não lhe correspondesse

ao gesto, lorde Tancred abaixou-as e serenamente lhe desejou "bom dia". Comunicou-lhe que o automóvel os esperava à porta, e sua mãe os aguardava em casa. — Estou pronta — disse Zara. E partiram. No trajeto, Tristram contou-lhe que estivera a passeio, em Park Lane, e que se pusera a conjeturar qual a janela de seu quarto. Perguntou-lhe se gostava de andar a cavalo, ao que Zara lhe respondeu que há dez anos não montava. Quando era criança, gostava de montar, mas posteriormente nunca mais teve oportunidade para isso. — Preciso torná-la uma verdadeira amazona — observou Tristram, alegremente — Quando descermos a Wrayth, há-de permitir-me que a ensine de novo, não é verdade? Antes que Zara pudesse dar-lhe uma resposta, o automóvel estacionou defronte de um prédio, em Queen's Street. Michelham, com respeitosa expressão no idoso semblante, postou-se à porta com um criado e Tristram disse-lhe jovialmente: — Michelham, esta é a sua nova senhora, a condessa Shulski. E, voltando-se para a noiva: — Michelham é um dos meus velhos amigos, Zara. Quando eu era menino e entrava em férias, no colégio, ambos saíamos pelo mato, para caçar às escondidas. Michelham não passava de um criado, e nada sabia sobre a degradação da condessa. Essa a razão por que ela lhe concedeu um sorriso. O velho servo achou-a simplesmente maravilhosa, e assim se externou: — Desejo à senhora condessa toda sorte de felicidade, e também a meu amo. E se me permitir a liberdade, dir-lhe-ei que com um gentleman como o meu lorde, Sua Excelência seguramente as terá. Tristram troçou do antigo e leal servidor, e com sua noiva começou a subir as escadas. Lady Tancred com grande esforço conseguira refrear-se e não fazer

qualquer pergunta às filhas, quando de volta daquele jantar. Não as vira desde a manhã e, quando ambas se puseram a descrever os atrativos e singularidades da futura cunhada, lady Tancred não as deixou prosseguir. — Não me digam nada sobre o assunto, minhas filhas. Quero julgar por mim mesma, sem ser levada por opinião alheia. Entretanto, lady Coltshurst não era fácil de conter-se. Viera visitá-la logo de manhã, a fim de expender o seu juízo, com a ostensiva desculpa de indagar da saúde da cunhada. — Receio que, tão logo a veja, a sua impressão seja desfavorável sobre a escolha de Tristram, Jane. Confesso que fiquei desapontada. Ela nos tratou a todos como se nos honrasse e não fosse honrada! Além disso, é um tipo que não promete nenhuma tranquilidade doméstica para Tristram. — Basta, Julia! — protestou lady Tancred — Peço-lhe que não me diga mais nada. Tenho bastante confiança em meu filho, e quero receber sua futura esposa com mostra de grande simpatia. — Os seus esforços serão completamente desperdiçados, Jane. A moça é uma impostora de marca, e nem uma vez se mostrou à vontade ou deu mostras de inteligência durante o jantar. Além disso, para uma lady é bonita demais. — Qual, Julia! Ela não tem culpa de ser bonita. Tenho certeza de que heide admirá-la bastante, pelo que me disseram as meninas. Mas não vamos discuti-la. Foi bondade de sua parte vir ver-me; a minha cabeça está bem melhor. — Bem. Neste caso, já vou indo! — fungou lady Coltshurst, em tom de voz levemente ofendido. Realmente, que coisa aborrecida o parentesco! Os parentes nunca aceitam um conselho ou atentam na razão que o ditou, e nesse particular Jane era desagradavelmente difícil. Lady Coltshurst logo tomou o carro que a esperava à porta, felizmente antes que Tristram e Zara aparecessem em cena. No entanto, a vibração de sua voz ainda retinia aos ouvidos de lady Tancred, mau grado todo o seu esforço para esquecer-lhe as palavras.

O coração de Zara batia precipitadamente quando chegaram à porta, e ela sentiu, mais do que nunca, que devia prevenir-se para aquele encontro. Francis Markrute de caso pensado deixara-a em completa ignorância quanto aos costumes ingleses. Calculava que se dissesse tratar-se, da parte de Tristram, de um casamento por amor, a sobrinha, com a sua estranha índole e sentimento de honra, seria bem capaz de não aceitá-lo. Sabia, mais, que ela podia insurgir-se contra a proposta e atirar-lhe em rosto que não seria conivente com tamanha patifaria. O financista, com toda a sua calma, com a sua avaliadora inteligência, pesara os prós e os contras do ajuste: o seu plano consistia em arrancar-lhe o consentimento, dizendo-lhe ser em beneficio do irmãozinho e tratar-se exclusivamente de um negócio, igualmente odioso para ambas as partes; e depois deixá-la sob essa impressão e conservar o casal o mais possível afastado, até o dia do casamento. Então, aos poucos, a sobrinha despertaria para lorde Tancred. Difícil, impossível mesmo que no fim, mau grado o seu temperamento, não se sentisse inclinada para um homem como Tristram! Por isso, contava com aquilo que chamara de antena moral de Zara. Em nada prejudicaria o noivado se eventualmente a família dos Guiscard a achasse um tanto seca, porquanto já há algum tempo que ela não se mostrava desdenhosa pela aparente ansiedade de todos quanto àquele casamento. Mas a expressão de superioridade que nela notara, a noite passada, quando lhe pedira tratasse os seus hóspedes com delicadeza, reassegurou-o. Deixaria, pois, que o barco corresse e que a sobrinha por si mesma fizesse os seus descobrimentos. E assim foi que Zara entrou no quarto de sua futura sogra, com o semblante altivo e nenhum sentimento afetivo no coração. Já estava saturada dos exemplos das sogras estrangeiras. Todas elas interferiam em tudo, e traziam os filhos sob as vistas. Pareciam sempre mercenárias e estavam prontas para promover um casamento, uma vez que consultasse os interesses da família. Não havia dúvida que o primeiro passo de tio Francis fora tratar de tudo com essa lady Tancred, e não foi preciso que ela — Zara — representasse no início da comédia, com o tio e primos. Decidiu-se falar francamente com a mãe do noivo, se fosse necessário, e se por acaso viesse à baila a mesma insinuação de continuar-se a raça dos Tancreds, a que lady Ethelrida

inocentemente se referiu, diria simplesmente que essa condição não fazia parte do ajuste. Para os seus próprios fins, ela devia ser esposa de lorde Tancred, e pouco lhe importava a glória que o tio tirasse dessa situação, caso esse fosse o seu alvo. Quanto ao fito de lorde Tancred era um único: o dinheiro. E só. Tudo muito simples. As duas mulheres ficaram mutuamente surpresas quando se viram. A primeira impressão de lady Tancred foi de que "na verdade, era um tipo singular, mas parecia bem educada e era formosíssima". E o pensamento de Zara: "É possível que, mau grado tudo, talvez eu esteja enganada. Parece muito orgulhosa para ter arquitetado todo este plano. Quem sabe se a lorde Tancred é que cabe todo este maquiavelismo? Os homens são mais infames do que as mulheres". — Apresento-lhe Zara, minha mãe — disse Tristram. Lady Tancred estendeu as mãos, puxou para junto de si a nova filha, e beijou-a. Zara estremeceu. Notara que a majestosa lady estava sobremodo emocionada, e nenhuma mulher a beijara, desde que perdera a mãe. Se se tratasse, na verdade, de um ajuste, por que a beijara tão ternamente? — Sinto-me tão feliz em recebê-la, querida! — disse lady Tancred, resolvida a mostrar-se afável — Quase que estou contente por não ter podido ir a sua casa, ontem à noite. Agora, posso tê-la inteiramente pra mim, neste nosso primeiro encontro. E sentaram-se, juntas, num sofá. Zara indagou de sua dor de cabeça, e lady Tancred respondeu-lhe que já estava quase passada. O assunto quebrou a frieza e ambas se puseram a conversar. — Desejo que me conte tudo o que lhe diz respeito — continuou lady Tancred — Acredita que há-de gostar desta nossa velha Inglaterra? Com esta umidade e esta melancolia do outono, e sua linda frescura na primavera? Quero que goste de tudo isto, e também de seu futuro lar. — Tudo aqui me é tão estranho! Mas tentarei — aquiesceu Zara.

— Tristram tem feito grandes reformas em Wrayth, para agradar-lhe. Por certo já lhe falou disso. — Estive ausente durante todo esse tempo — ia Zara responder como melhor lhe parecia, quando Tristram a interrompeu: — Tudo aquilo vai constituir-lhe surpresa, mamãe. Tudo será novo para Zara, desde o principio até o fim. A senhora não deve dizer-lhe nada sobre isso. Então lady Tancred falou de jardins. Gostava que Zara gostasse de jardins, porquanto ela própria era uma grande jardineira e sempre tivera grande orgulho da sua plantação de herbáceas e das suas rosas em Wrayth. Quando estavam entretidas no assunto, Tristram notou que podia deixálas, com segurança, entregues uma à outra e, sob o pretexto de conversar com as irmãs, saiu do quarto. — Sinto-me tão feliz em pensar que o velho solar terá novos moradores! — disse a orgulhosa lady — Foi uma grande tristeza para todos nós quando nos vimos obrigados a fechá-lo, há dois anos atrás. Mas seguramente Zara vai decorá-lo para a sua reabertura, não é verdade? Zara não sabia o quê responder. Vagamente compreendera que a gente deve querer a um lar, embora não tivesse outro que não o velho castelo de Praga. A recordação fê-la suspirar. Mas, um jardim! Bem que sabia havia de gostar de jardins! Além disso, Mirko era tão louco por flores! Oh! se lhe consentissem morar em paz numa linda casa de campo, e de quando em quando Mirko ali viesse para brincar, caçar borboletas, com seu pobre e excitado rostinho, como não lhes seria grata? Seus pensamentos devaneavam nesse sonho, enquanto lady Tancred falava de mil e uma coisas, e ela lhe respondia com "sim" e "não", respeitosamente gentil. A grande dignidade de sua futura sogra lhe agradava à concepção que fazia das coisas da vida. Detestava pessoas demasiado verbosas, e agora sentia o meio em que se achava, e não havia necessidade de nenhuma explicação. Toda a família, um por um dos seus membros, cuidava de representar o mesmo papel; também ela representaria o seu. E quando viesse o despertar, a comédia seria somente entre os dois — ela e Tristram.

Sim, devia agora pensar nele como Tristram! Seus pensamentos de novo estavam longe quando ouviu a voz de lady Tancred dizer: — Quero dar-lhe um presente meu — e tirou uma caixinha duma mesa próxima e abriu-a: continha um lindíssimo anel com diamantes — É o presentinho que lhe faço, minha querida e nova filha. Há-de usá-lo de quando em quando, não é, Zara? Como recordação deste dia e como recordação de que pus em suas mãos a felicidade do meu filho, a quem mais quero neste mundo! Nesse instante, encontraram-se os dois pares de orgulhosos olhos, e Zara não acudiu com nenhuma resposta. Houvei então, um estranho silêncio entre as duas. Segundos depois, Tristram estava de volta, e a sua entrada constituiu motivo de diversão para ambas. Zara então pôde pronunciar algumas palavras convencionais sobre a beleza da pedra e agradeceu o presente. Entretanto, em seu coração estava resolvida a jamais usá-lo. Talvez lhe queimasse a mão, pensava, e nunca, nunca em sua vida seria hipócrita. Anunciaram o almoço e os três entraram na sala de jantar. Durante a refeição Zara viu o noivo sob uma nova luz, com a companhia somente do "Menino" Billy, e de Jimmy Danvers, que se dera por convidado, e com a mãe e irmãs. Tristram

estava

alegre

como

um

estudante

e

dizia

a

Billy,

impossibilitado a noite anterior de trocar uma palavra com Zara, que agora podia sentar-se ao lado dela, e tinha toda a liberdade de conquistar a nova prima! Billy, que contava dezenove anos de idade, rapaz tolo e amável, cuidou de dar início a uma laboriosa palestra, enquanto os outros conversavam alegremente e amiúde se riam, tratando de assunto que era grego para Zara. Não obstante, intimamente ela agradecia tudo aquilo, pois a evitara de falar e lhe facilitava vencer as dificuldades do momento. Findo o almoço, Tristram trouxe-a de volta para Park Lane. Também ele levantava as mãos aos céus porque tudo correra bem, e mal lhe falou durante o percurso de regresso. Seguiu-a calado pela casa, até chegarem à biblioteca, e ali esperou suas ordens.

Sempre quando se encontravam a sós, ela despia o seu disfarce e retomava aquela gélida fisionomia. — Até logo — despediu-se Zara, friamente — Amanhã vou ausentar-me de Londres, durante dois ou três dias. Não o verei senão na segunda-feira. Tem alguma coisa mais que julga oportuno dizer-me? — Vai ausentar-se! — exclamou Tristram espantado — Mas, eu não quero… lorde Tancred não concluiu o seu pensamento, porque os olhos da noiva brilharam terrivelmente. — Eu quis dizer, — emendou ele — necessita tanto partir? Está tão perto o dia do casamento! Ela endireitou-se toda e falou-lhe em voz fulminante: — Acaso preciso repetir-lhe o que já lhe disse, quando o senhor me deu o anel? Não quero vê-lo, nem falar-lhe. O senhor receberá a parte que lhe coube no ajuste: não quer, pois, deixar a minha pessoa fora da transação? O espírito austero, obstinado dos Guiscard insurgira-se completamente. Durante alguns segundos, lorde Tancred andou de um lado e de outro do aposento, cheio de cólera e ferido em seu orgulho. Contudo, a razão disse-lhe para esperar. Não pretendia desfazer o noivado, pouco importa o que ela tencionasse fazer. Estavam na terça-feira; mais cinco dias e então seria sua esposa… Olhou-a no seu escuro e maravilhoso vestido, com a grande pele de marta pendente de um dos ombros e constituindo-lhe um como régio pano de fundo para a sua beleza. E aquela formosura incendiou-lhe os sentidos, enquanto os olhos eram presos de vertigem. Inclinando-se, tomou-lhe uma das mãos. — Perfeitamente, linda e indelicada mulher. Mas, uma vez que não queria casar-se comigo, devia ter dito isso imediatamente, e eu a desobrigaria da promessa. Calou-se, ignorando que quando mais tarde chegar o instante de cruzarmos espadas, não se trata mais de saber quem será o vencedor. Zara retirou bruscamente a sua mão e com a ferocidade da pantera

negra impressa nos olhos, voltou-se para a janela e pôs-se a olhar o parque. Depois de um segundo, com voz sufocada assim lhe falou: — Quero que se realize o casamento. E agora, por favor, deixe-me. Sem mais palavras, lorde Tancred deixou-a.

CAPÍTULO XV TRISTE PRESSENTIMENTO

NO dia seguinte, no seu trajeto à estação para tomar o trem que a levaria a Bournemouth, Zara encontrou-se com Mimo no Museu Britânico. Juntos passearam ao longo das galerias do pavimento térreo, até que encontraram um banco, perto do mausoléu de Halicarnassus. Contemplaramno com infinito prazer, porquanto conheciam bastante as obras primas de toda a velha arte grega. Mimo descera a Bournemouth, mais ou menos há dez dias, para encontrar-se secretamente com o filho. Mirko, com a sagacidade de seu pequenino cérebro, logrou iludir a Mrs. Morley, no jardim, e correu para o mais próximo bosque de pinheiros, com o violino no braço. Ali o pai o esperava, e o tempo em que estiveram juntos lhes passou agradavelmente. Por certo ele melhorou, disse Mimo; engordou um bocadinho e a tosse já estava espaçada; pareceu-lhe sentir-se feliz e bastante resignado. Os Morleys eram tão gentis e bondosos, mas, pobres almas! não tinham nenhuma culpa se não compreendiam os seus sentimentos! Nem todo o mundo podia ter a compreensão de sua Chérisette e de seu paizinho, dizia Mirko, mas logo se sentiria bem melhor e voltaria para a companhia de ambos. Entretempo, estudava as suas lições, aprendia coisas enfadonhas que somente sua Chérisette

podia

ensinar-lhe

com

facilidade. O

novo

preceptor, que

diariamente vinha da cidade, era um homem razoável, mas curto de inteligência. — Corpo de Baco! — rematava o pai — A pobre criança ainda não conseguiu que o preceptor sorrisse uma vez por semana, ao menos! Depois que já se achavam juntos ha algum tempo é que Mimo notou que fora um tanto descuidado. Chovera durante toda a manhã, e depois surgiu um formosíssimo sol. Pai e filho sentaram-se num banco, sob as árvores, e Mirko tocou divinamente inúmeras canções alegres. Mas quando o viu tremer um bocadinho, e verificou que as suas roupas estavam molhadas, nesse instante desabava nova pancada d'água, e Mimo obrigou o filho a voltar. Temia que

Mirko chegasse todo ensopado, coisa que não pôde saber imediatamente. Dias depois, no entanto, recebeu um postal comunicando-lhe que Mirko estava de cama, mas que já se sentia melhor, e estava ansioso por ver sua Chérisette! — Oh, Mimo! Como o senhor foi consentir que ele se sentasse na relva! — exclamou Zara em tom de censura, quando o padrasto se calou — E por que não me avisaram? Talvez adoecesse gravemente. Pobre anjinho! E eu que preciso ficar tão pouco tempo a seu lado! Depois, este casamento… Zara calou-se subitamente, e seus olhos tornaram-se negros. É que sabia que não podia solicitar qualquer adiamento. A fim de conseguir o restabelecimento da saúde do irmãozinho devia estar pronta e resignada para comparecer ao altar da igreja de São Jorge, na praça de Hannover, na próxima quarta-feira, 25 de outubro, às 2 horas da tarde e, uma vez casada, partiria com lorde Tancred para Dover, onde se hospedariam no Hotel lorde Warden. Presa de convulsivo tremor, Zara levantou-se e pôs-se a olhar sem dar conta do que via, a uma Amazona que lhe estava próxima. Quando lhe voltou o sentido da visão, notou que a Amazona tinha o gesto de arremessar um dardo num esplêndido moço grego. Isso é que ela devia fazer ao seu futuro esposo. Os homens, com a sua avidez pelo dinheiro e suas revoltantes paixões! e o seu pobrezinho Mirko, talvez de cama e privado da carícia do pai! Como pôde este deixá-lo? Não fosse ela, o bem-estar do coitadinho estaria no fim, e a vida lhe seria um abismo. De nada lhe adiantava ralhar com Mimo. De longa data sabia que ninguém mais pesaroso do que ele, por causa dos próprios erros quanto àqueles a quem mais queria neste mundo, eternamente condenados a sofrer as consequências dos seus desatinos. Sentira uma punhalada no coração pelo que sucedera ao filho, mas ciente de que Chérisette estava sobremodo preocupada com os preparativos para o casamento, não quis incomodá-la, mesmo porque ele nada podia fazer enquanto a enteada estivesse ausente da Inglaterra. Soube, então, que ela imediatamente iria ter com o filho. Mimo estava bastante desanimado para trabalhar, e o quadro com o nevoeiro de Londres não ia muito adiantado. Receava, pois, não o ter pronto para dar-lhe como presente de casamento.

— Não se preocupe com tais coisas, Mimo! Tenho a certeza de que o senhor tudo faz para me agradar e isso é o melhor presente que me pôde fazer. Depois, sozinha ela se encaminhou para a estação de Waterloo, o coração preso de pungente ansiedade. Durante toda a viagem para Bournemouth cada vez mais se sentia desanimada. Imersa em tristes pensamentos, voltou a si quando o velho cab, puxado por um só cavalo, parou defronte da elegante casa do médico. — De fato — respondeu-lhe Mrs. Morley logo à sua chegada — o seu irmãozinho teve um ataque agudo. Ele fugiu do jardim, mais ou menos há dez dias, e desapareceu durante umas duas horas. Quando voltou, estava encharcado dos pés à cabeça, e nessa noite delirou um bocadinho e se pôs a falar de "Mamãe e dos anjos" e de "Papai e Chérisette". Por mais que eu lhe perguntasse quem o veio buscar ou com quem esteve, não me quis dizer nada. No entanto, restabeleceu-se depressa e tanto que o meu marido não julgou preciso que eu lhe escrevesse. Quando o perigo passou, certa de que a condessa estaria sobremodo preocupada com o seu enxoval, não lhe escrevera para Park Lane, conforme suas instruções. Ao ouvir isto, os olhos de Zara despediram um relâmpago, ao mesmo tempo que dizia severamente: — O enxoval é coisa secundária, comparada com a saúde de meu irmãozinho. Mirko estava em cima, no seu lindo quartinho, entretido com um jogo de paciência e acompanhado de sua ama. Ignorava por completo a visita da irmã, mas um sexto sentido que possuía pareceu informá-lo de que Chérisette ali se achava, no instante em que os seus sapatos batiam no pavimento inferior. Ambas — Mrs. Morley e Zara — ouviram-no exclamar, em voz excitada: — Vou descer… Vou descer para encontrar-me com minha Chérisette! Zara deu-se pressa em subir até o quartinho, com receio de que ele saísse precipitadamente do calor que ali reinava e se arriscasse pela fria passagem.

A intensa alegria que Mirko mostrara ao vê-la, confrangeu-lhe o coração. O seu aspecto não era doentio. O que sim parecia-lhe ter crescido e emagrecido. Em suas faces aparecia um rosado que não lhe era natural. Mirko teve que sentar-se no colo da irmã e mexer em todas as lindas coisas que ela trazia. De propósito Zara pusera os brincos com a enorme pérola, presente do tio, e um colar também de pérolas, para mostrar-lhe. Ele gostava tanto do que era lindo e distinto!… — Você parece uma rainha, Chérisette. Está muito mais bonita do que quando juntos tomamos chá, e pus em minha cabeça o gorro de papel que papai fez. Possui tantas coisas lindas! O tio deve ser riquíssimo — rematou o menino, levantando-se e examinando-lhe o vestido de veludo. Zara cobriu-o de beijos e pôs-se a acariciá-lo em seus braços, para adormecê-lo e levá-lo à cama. Estava-se fazendo tarde, e ela se pôs a cantar, em acento de indefinível doçura, uma canção eslava própria para adormecer crianças. Antes que de todo em todo adormecesse, o pequeno abriu os lindos e cismadores olhos, agora cheios de amor e de felicidade, e murmurou docemente: — Adorada Chérisette! No dia seguinte, sábado, ambos não se largaram. O tempo todo estiveram juntos, entregues a brinquedos e a jogos de paciência. A ama era uma boa criatura, mas um tanto dura de compreensão, como as demais pessoas da casa, dizia ele. Agora que tinha a irmã a seu lado, podia dispensarlhe os serviços. Quando a tarde caiu e depois de tomarem o seu chá, Mirko manifestou o desejo de tocar violino só para Chérisette escutar. Estavam perto da lareira, e durante mais de uma hora o pobrezinho arrancou do instrumento sons divinais e estranhos, que cortavam o coração de Zara e lhe enchiam os olhos de lágrimas. Por fim, ele teve um gesto esquisito, que a deixou atônita: aquela sobrenatural figurinha de gente se pôs a mover-se, como se dançasse à luz da lareira, enquanto tocava uma nova melodia, como se inspirado no momento. Depois, após um cascatear de alegres notas, repentinamente cessou de tocar. — Mamãe é que me ensinou isto! — murmurou ele — Quando eu estive

doente, muitas vezes ela se chegou à minha cama e cantou essa melodia pra mim. Quando me entregaram o violino, lembrei-me dessa canção, e agora sou feliz. Estes sons falam de borboletas nos bosques, onde minha mãe vive, e há uma borboleta que sempre a acompanha, voando em seu redor com as radiantes asas da cor do céu. Mamãe prometeu-me que esta música logo me levaria até onde ela está. Oh, Chérisette! — Não, não! — exclamou Zara em voz arquejante — Não posso separarme de você, meu benzinho. No próximo verão, terei um lindo jardim, meu mesmo, e você irá morar comigo, Mirko mio, e há-de caçar borboletas verdadeiras com uma rede dourada. Tais palavras encantaram a criança. Queria, pois, saber tudo a respeito do jardim da sua Chérisette. Casualmente, estava sobre a mesa um velho numero da revista Country Life, e como a ama naquele instante trouxesse o chá, Zara acendeu a luz e ambos se puseram a folhear a revista. Por singular coincidência, quando chegaram ao fim das séries magníficas para weekend, Zara leu o título de uma das notícias. Dizia — "Wrayth, a propriedade de lorde Tancred de Wrayth". — Veja, Mirko — disse-lhe ela, em voz baixa — Nosso jardim será igualzinho a este aqui. A criança então começou a examinar todas as ilustrações com crescente interesse. Uma estatua de Pan e suas flautas, constituindo o centro de uma estrela, num canteiro estilo italiano, agradou-lhe sobremaneira. — Chérisette, este aqui não tem a conformação de outras pessoas — observou o menino com prazer — Repare! Também ele toca música! Quando você passar por aqui e eu estiver com mamãe, lembre-se de que este sou eu! Foi com profundo pesar e com triste pressentimento que Zara se despediu de Mirko na manhã de domingo, a despeito de o médico assegurarlhe que o doentinho caminhava para pronto restabelecimento. Verdade é que ficara seriamente receoso quando o menino teve o ataque, mas agora não havia motivo para inquietação. A esse propósito ela podia partir sossegada. Ante tais palavras, a condessa se viu obrigada a ficar contente. Mas na sua viagem de regresso, no trem, não desaparecia de seus olhos

o quadro daquele canteiro estilo italiano, em Wrayth, com a estátua de Pan no centro da estrela, tocando suas flautas.

CAPÍTULO XVI O CASAMENTO

À véspera do dia prefixado para o casamento de Zara Shulski amanheceu radiante. Era uma dessas manhãs que pareciam uma volta à primavera, de tão fresco e puro ar. Desde que regressara de Bournemouth, ainda não se encontrou com o noivo ou com qualquer pessoa de sua família. Chegou, mesmo, a dizer ao tio que não estava em condições de avistar-se com que quer que seja. — Sinto-me extenuadíssima, tio Francis. O senhor, que é tão inteligente, pode inventar qualquer desculpa. Se lorde Tancred me aparecer, não posso responder por mim. O financista verificou ser verdade o que a sobrinha lhe dizia. As cordas de sua alma estavam de tal modo distendidas que se partiriam ao menor esforço, e por isso ele deixou que ela passasse tranquilamente aquela segunda-feira. Zara assinou inúmeros documentos legais, concernentes ao ajuste sobre o casamento. Não manifestou o mais leve interesse em apôr a sua assinatura naqueles papeis. Por último, o tio apresentou-lhe um documento que lhe pedia lesse com bastante cuidado. Versava sobre disposições no tocante à educação de Mirko e aos cuidados que lhe eram prodigalizados, redigido naquela enfadonha linguagem da lei. "Considerando certo ajuste" estabelecido entre tio e sobrinha, mas se o menino Mirko a qualquer tempo voltasse para o homem Sykypri, seu pai, ou se Zara desviasse da importância que lhe era consignada qualquer quantia para esse homem Sykypri, a transação entre tio e sobrinha, no tocante ao futuro do menino, seria nula de pleno direito. Isso, em suma, é o que dizia o documento. Zara leu-o de princípio ao fim, mas as expressões legais lhe fugiram à compreensão. — Se traduz exatamente o que combinamos, tio Francis, eu o assino.

Quero dizer, se estipular o tratamento de Mirko e consignar-lhe uma grande soma de dinheiro. — Exatamente disso é que trata — foi a resposta de Francis Markrute. Depois, Zara subiu ao seu quarto e passou sozinha aquela noite, a última antes do casamento. Entregou-se inteiramente à leitura de um dos seus livros prediletos, para que não se pusesse a pensar um só instante. A história que estava lendo era a de um homem que ia ser enforcado na manhã seguinte. Acaso o condenado conseguiria dormir, nessa última noite em sua cela, ou a passaria em claro, com o fantasma de seu algoz à sua frente, como ela própria? Cansada de tanto ler, abriu a janela e pôs-se a contemplar a lua. Lá estava, no alto, acima de sua cabeça a iluminando todo o parque. Fechando o registro da luz e agasalhando-se com uma pele, sentou-se à janela e pousou o olhar acima das frondes das árvores, enquanto os seus lábios se moviam em oração. Mimo viu-a, pois que se achava numa parte escura da calçada, do outro lado da casa. Ali viera ter impulsionado pela força sentimental de que era dotado, a fim de abençoá-la, e já há algum tempo que permanecia a contemplar o majestoso prédio. Pareceu-lhe um bom presságio para a felicidade de sua querida Chérisette o fato de abrir-se aquela janela e a enteada aparecer. Não era muito tarde, apenas dez e meia. De forma que Tristram, depois de um banquete de despedida à sua vida de solteiro, de que compartilharam os seus melhores amigos, destinou a noite de segunda-feira, a derradeira noite de solteiro, para sua mãe, e com ela jantou tranquilamente em Queens's Street. Sentia-se extraordinariamente emocionado e excitado, quando a deixou. Ouvira palavras repassadas de ternura daquela orgulhosa lady que raramente se mostrava carinhosa. O casamento era uma linda coisa, mas um passo sério. Devia, pois, amar a esposa e fazer por compreendê-la, e assim tornar-se digno do grande amor que sua mãe lhe devotava e enchê-la de orgulho pelo nobre nome que usava e pela sua descendência.

— Pedirei a Deus para abençoá-lo com filhos sadios e formosos, Tristram, de modo que durante muitos e muitos anos floresçam os Tancreds de Wrayth. Quando ele se encontrou na rua, um luar suave beijava o passeio. Despediu o chofer, e resolveu dar uma volta a pé. Desejava respirar ao ar livre, desejava pensar e, com essa intenção, desceu a rua Curzon e depois cruzou a Great Stanhope. Em pouco, achava-se em Park Lane. Amanhã à noite, a estas horas, a encantadora Zara lhe pertenceria! Sozinhos jantariam em Dover, e por certo não mais se mostraria tão gelidamente fria. Não! Por certo havia de corresponder ao amor que lhe devotava. No seu devaneio, surgiram-lhe outras visões, e ele apressou o passo até encontrar-se no passeio oposto ao da casa onde residia a sua lady. Veio-lhe o desejo de contemplar a janela de seu quarto. Para isso, atravessou a rua e aproximou-se do portão do prédio. E ali, na calçada, deu com Mimo, também com a cabeça erguida e os olhos voltados para a mesma janela. Com a rapidez do relâmpago, pensou ter reconhecido neste homem aquele que se encontrava com Zara, em Whitehall, quando por eles passara a toda velocidade, no seu automóvel. Ciúmes

e

suspeita

encolerizaram-no.

Todos

os

demônios

lhe

segredavam: "Aqui há coisa. Você nada conhece a respeito da mulher que cegamente vai receber por esposa. Quem é este homem? Que ligação existe entre ambos? Com toda certeza, é seu amante. Ninguém a não ser um amante poderia aqui permanecer com o olhar fixo em sua janela, numa noite de luar". Uma louca paixão de assassino sacudiu o coração de lorde Tancred. Voltou-se, então, para Mimo, e notou que os seus lábios se moviam como que murmurando uma prece, e viu-o tirar do bolso do paletó um crucifixo de prata, absolutamente alheio a que alguém o notasse. Prova disso era o êxtase, que se lia em seu rosto. Aproximando-se um bocadinho mais do homem, ouviu-o murmurar num inglês bem pronunciado:

— Maria, Mãe de Deus, orai por ela, e fazei-a feliz! — lorde Tancred sentiu-se um tanto tranquilizado. Se aquele homem fosse um amante, por certo não rezaria assim, na noite anterior ao casamento de sua amada. Não era próprio da natureza humana, em especial do homem, um gesto tão desinteressado como esse. Finda a sua prece, Mimo acenou com o macio chapéu de feltro na direção daquela janela, num gesto todo dramático. Depois, afastou-se do local. Tristram, uma presa para toda espécie de emoções, também deixou as imediações de Park Lane. A Francis Markrute pareceu que mais da metade da nobreza da Inglaterra se reunira na igreja de São Jorge, na praça de Hanover, no dia seguinte quando, com a formosa noiva em seu braço, atravessava a nave em demanda do altar. Zara trajava um vestido de veludo branco sem brilho, e seu rosto parecia refletir a mesma cor, sob uma maravilhosa e sombria criação de veludo preto e plumas, em vez de chapéu. Por única joia, trazia o magnifico colar de pérolas, presente do tio. Não se notava nenhum colorido na encantadora noiva, salvo na cintilação flamejante dos seus cabelos e no vermelho de sua encurvada boca. Todos os que ali se achavam estremeceram no instante em que Zara alcançava o altar. O seu aspecto era o de uma princesa dum conto de fadas, dali saída para entrar no mundo. Cessaram os acordes do órgão, e só então é que ela notou, como num sonho, achar-se ajoelhada ao lado de Tristram, e que o bispo juntara a mão de ambos. Maquinalmente repetiu, em voz baixa e serena, os votos que fazia. Tudo o que pôde perceber e que lhe penetrou cérebro a dentro foram as palavras, pronunciadas em voz firme, por Tristram: "Eu, Tristram Lorrimer Guiscard, recebo a vós, Zara Elinka, como minha legítima esposa". E assim terminou a cerimônia, e lorde e lady Tancred se encaminharam

para a sacristia, a fim de assinarem os seus nomes. No instante em que Zara retirou a mão do braço daquele que já era seu marido, Tristram inclinou a altiva cabeça e beijou-a nos lábios. Felizmente o cortejo de parentes e amigos estava atrás e bem distanciado do casal, e o bispo tinha o olhar voltado alhures, de sorte que ninguém percebeu a noiva estremecer e nem notou a expressão de apaixonado ressentimento espraiar-se-lhe pelo semblante. Entretanto, tudo isso não passou despercebido a lorde Tancred, que sentiu como uma punhalada no coração. Depois, pareceu-lhe que muitas pessoas a beijavam: sogra e cunhadas, lady Ethelrida e por último o duque. — Reclamo o privilégio de um homem velho — disse ele alegremente — e seja bem-vinda para os nossos corações, minha formosa sobrinha. Zara respondeu-lhe, mas mal conseguiu agradecer-lhe, mesmo num simples sorriso, aquela prova de amizade. Em seguida, de braços dados os cônjuges atravessaram a igreja, em meio de toda uma perplexa multidão, e subiram no novo e elegante automóvel que os esperava. De volta para a casa do tio, Zara encolheu-se toda num canto e semi-cerrara os olhos. Quanto a Tristram, emocionadíssimo e fatigado com todo aquele excitamento, não sabia o que pensar do procedimento da esposa. Entretanto, o orgulho fez com que Zara representasse bem o seu papel, quando já sé achavam em Park Lane. Lado a lado do marido, com gestos graciosos ela agradecia os cumprimentos de inumeráveis amigos que por eles passavam e lhes apertavam as mãos. Pouco depois de entrarem, lady Tancred, Ciril e as meninas chegaram. Foi quando Zara sorriu docemente, no instante em que o galante Ciril pé ante pé dela se aproximou, e beijou-a ardentemente. O irmão do marido era muito pequeno para a sua idade. Não obstante, muito cheio de si. — Creio que você é um número, Zara — disse ele — Dois dos meus camaradas, que são meus primos e comigo estiveram na igreja, deram-me os parabéns. E agora espero que você não demore para cortar o bolo.

Tristram

admirou-se

do

motivo

por

que

aquela

rebelde

boca

estremecera e os orgulhosos olhos se encheram de lágrimas. É que Zara estava pensando no seu irmãozinho Mirko, tão distante dali, alheio, absolutamente alheio ao que fosse um bolo de casamento. Quando todos os cumprimentaram, de novo eles atravessaram duas fileiras de pessoas, que desta feita lhes atiravam uma chuva de arroz, e inúmeros chinelos, e novamente se encontraram sozinhos no automóvel. Como antes, Zara encolheu-se num canto e não disse palavra, ao passo que o marido pacientemente aguardava que se encontrassem no trem. Mais uma vez, no salão reservado, quando o obsequioso guarda fechou a porta aos acenos amigos e aos derradeiros apertos de mão e o trem partia, Tristram procurou-a e sentou-se a seu lado, delicadamente tomando entre as suas aquelas mãozinhas enluvadas. Mas Zara retirou-lhas e afastou-se, antes que o marido pudesse falar. — Zara! — disse ele, em tom de súplica. Expressão de ódio refletiu-se no semblante da esposa. — Não pode deixar-me sossegada por alguns instantes? — sibilou a orgulhosa lady — Estou cansadíssima. Tristram notou-a toda trêmula e, embora estivesse apaixonadíssimo e loucamente exasperado, consentiu que descansasse e, mesmo, arrumou-lhe a almofada atrás da cabeça. Feito isto tomou um jornal e sentou-se numa poltrona próxima, com a intenção de ler. Zara pôs-se a olhar através da janela, com o coração palpitando em sua garganta. Bem que sabia tratar-se de um simples adiamento, porquanto, conforme certa vez lhe dissera o tio, a nobreza inglesa, como raça, era constituída de grandes gentlemen, notadamente aquele que recebera por marido. Por esse motivo, seria incapaz de provocar uma cena no trem. Mas dentro em pouco chegariam ao hotel, e deveriam jantar juntos, a sós. E então., depois… A este pensamento, fugiu-lhe todo o sangue dos lábios. Que coisa detestável, que coisa odiosa eram os homens! Visões de momentos passados com Ladislau, na sua primeira viagem de núpcias, lhe

acudiam. Enquanto viveu, o bruto nunca lhe mostrara nem cinco minutos de consideração. Todo o seu organismo estava em defensiva. Talvez não fosse justa. Porém, acreditando no vil procedimento de lorde Tancred, parecia-lhe estar defrontando um homem que recebera por marido e a quem vira somente quatro vezes em toda a sua vida, o qual não estava satisfeito com as condições estritas do honesto ajuste, e queria mais. Não estava contente com a fortuna que lhe dera e com a complacência para servir de enfeite à sua casa, mas à força ele queria dar pasto aos seus instintos bestiais. E ansiava por acariciá-la porque ela era mulher… e mulher formosa… e a lei a isso o autorizava, porquanto era sua esposa. No entanto, jamais se acurvaria ao seu desejo! Havia de encontrar meios para isso. Até agora, ainda não atentara na atração do marido, naquela atração que sempre o fazia rodeado de mulheres, mas que ainda não a seduzira. Nas raras ocasiões em que olhava para ele, notou que era um homem esplêndido, coisa que também se verificara com Ladislau e constituía atributo de Mimo. Contudo, todos os homens ou eram uns egoístas, ou uns brutamontes. Em suas veias também corria sangue inglês, e daí é que se originava aquela calma, aquele senso comum, predicado de todos os bretões e que nela atuava presentemente. Com o correr das horas, porém, revoltada contra o destino que lhe fora reservado, tinha os nervos à flor da pele. Tristram observava-a por detrás do Evening Standard, e estava bastante contrariado ao notar aquele apaixonado ódio e ressentimento e outros tempestuosos sentimentos que convulsionavam o lindo rosto da esposa. Ele era dotado de extrema sensibilidade, mau grado a sua arrojada insouciance e orgulho. Impossível procurá-la de novo e falar-lhe, no estado em que ela se encontrava. E destarte, aqueles recém-casados, que não se compreendiam nem um pouquinho, estavam sentados um longe do outro, ambos constrangidos, quando podiam achar-se estreitamente abraçados. Finda a viagem, com aquela mesma disposição de ânimo chegaram a Dover e dirigiram-se para o Hotel

lorde Warden. O criado de lorde Tancred e a criada de Zara já haviam chegado e encheram de flores a sala de visitas do seu apartamento. Tudo estava pronto para o jantar, e o quarto de dormir arrumado. — Creio que jantaremos às oito, não? — indagou Zara com altivez. Sem esperar nenhuma resposta, subiu para o seu quarto e fechou a porta. Chamou logo pela criada e pediu que lhe tirasse o chapéu. — Que coisa maçante, Henriette. Felizmente falta toda uma hora para o jantar, e quero aproveitá-la para tomar um excelente banho. Depois, você passa a escova em meu cabelo, e isso há-de me aliviar. A criada francesa, cheia de simpatia e curiosidade, enquanto cumpria as ordens da ama, estava simplesmente boquiaberta ante o desdém e a calma de milady. — Mon Dieu! Se milorde fosse o meu Raul, por certo que eu procederia de outra maneira! — dizia de si para consigo, no instante em que perfumava o banho da senhora. Faltava um quarto para as oito, hora do jantar, e silenciosamente Henriette ainda estava passando a escova no comprido, esplêndido cabelo cor de fogo, enquanto Zara olhava no espelho, à sua frente, sem nada ver. Em pensamento estava de novo em Bournemouth, e ouvia a "canção de mamãe". A visão do pequeno dançando não lhe desaparecera dos olhos, e os acordes do violino ainda lhe soavam aos ouvidos. Internamente, um feroz excitamento lhe precipitava o sangue nas veias. Bateram na porta, e Henriette foi ver quem era. Tristram passou pela criada e entrou no quarto da esposa. Zara voltou-se como uma corça espantada, e logo a expressão de seu rosto se transmudou em raiva e altivez. Ele já estava pronto para o jantar, e trazia na mão um grande ramalhete de gardênias. Não pôde continuar nos seus passos, ante o maravilhoso quadro que se lhe ostentava à vista. Por pouco que não perdeu a respiração. Nunca pôde supor que houvesse cabelos tão compridos, e nem notara que ela fosse

tão linda. E era sua esposa! — Meu amor! — exclamou Tristram, esquecendo-se da presença da própria criada, que discretamente se retirou para o quarto de banho, além — Meu amor, como está divina! Sinto-me completamente desvairado. Zara apoiou-se na mesa do toucador, e encolheu-se toda, qual uma pantera pronta para o pulo. — Como ousa entrar em meu quarto dessa maneira? Saia daqui! Era uma chicotada que a esposa lhe vibrava. Ele afastou-se e atirou as flores dentro da lareira, enquanto lhe dizia altivamente: — Vim aqui somente para dizer-lhe que já estamos quase na hora de jantar, e trazer-lhe aquilo. Mas esperá-la-ei na sala de visitas, enquanto se veste. Voltando-se, deixou o quarto pela porta onde entrara. Zara chamou a criada com certa aspereza. Arrumou o cabelo numa trança que lhe envolvia a cabeça e meteu-se logo em seu vestido. Assim que ficou pronta, vagarosamente se dirigiu para a sala de visitas. Encontrou Tristram inclinado para a lareira, olhando tristemente as chamas. Naquela posição ali já se achava há dez minutos, findos os quais tomou uma decisão. Até agora estivera bastante encolerizado, a seu ver com razão, mas sabia que amava apaixonadamente a esposa, como nunca sonhara ou imaginara pudesse amar alguém em toda a sua vida. Se pudesse confessar-lhe isso imediatamente e implorar-lhe que não se mostrasse tão fria e severa! Mas, não! Seria degradante. Afinal de contas, já lhe manifestara uma prova do seu devotado amor, concordando em desposála depois de vê-la uma só vez, durante a noite! Zara, que motivos teria para aquiescer ao seu pedido? Por certo seriam motivos imperiosos; caso contrário, não se acurvaria aos desejos do tio antes mesmo que se tivessem encontrado. Lembrou-se, agora, que na quinta-feira passada, quando lhe disse podia desobrigá-la de sua promessa, firmemente ela lhe respondera desejar que o casamento se realizasse. Evidentemente devia saber que nenhum homem,

dotado de alguma inteligência, pudesse suportar um tratamento como este! Dirigir-lhe a palavra como se ele fosse um impudente estranho que entrasse em seu quarto! Os tempestuosos pensamentos de Tristram voltaram-se para Mimo, aquele estrangeiro a quem vira sob a janela de sua esposa. E se ele fosse, de fato, seu amante? E se essa fosse a razão de sentir-se ofendida quando quisera estreitá-la em seus braços? Todo aquele orgulhoso, obstinado e belicoso sangue dos Guiscard precipitou-se em suas veias. Não se prestaria, em absoluto, a ser instrumento daquela mulher. Se continuasse a exasperá-lo, esquecer-se-ia de que era um gentleman e agiria como um homem selvagem, a prenderia em seus braços e lhe castigaria a altivez! E assim foi que, nesse instante, os olhos azuis de lorde Tancred e não os olhos sombrios da esposa é que ardiam de ressentimento. Ambos se sentaram à mesa, em silêncio, com grande surpresa e desgosto dos criados que lhes serviam o jantar. Zara sentia-se um tanto alegre porque o marido parecia zangado. Desse jeito, por iniciativa própria a deixaria em paz. Depois da sopa e do peixe é que notaram não ter trocado ainda uma palavra. A educação de ambos sugeriu-lhes ser impossível continuarem com esse propósito, e puseram-se a falar de coisas triviais, sempre quando os criados estavam na sala. A mesa era pequena e redonda, unicamente com dois lugares dispostos em ângulos retos e bastante chegados um do outro. Era a primeira vez que Zara se achava tão perto de Tristram. A cada momento que levantava a cabeça, era obrigada a ver-lhe o rosto. Não pôde deixar de convir que o marido era de uma grande distinção, muito forte e com uma plástica nobre e irrepreensível. Finda a refeição, por diferentes motivos nenhum dos dois se sentia tranquilo. A raiva de Tristram, bem como sua suspeita, esmoreceram; depois de um momento de reflexão, pôs-se a raciocinar com bastante calma. Não.

Quaisquer que fossem as razões que ela tivesse para desdenhá-lo, nenhuma delas se referia à existência de um amante. Com esse pensamento, sentiu-se de novo e cada vez mais apaixonado pela beleza e encanto da esposa. Zara constituía-lhe uma terrível tentação; pelo jeito, não nascera para nenhum homem normal. Estavam jantando juntos e sozinhos… e ela lhe pertencia! Os criados, propositadamente tossindo à porta para avisá-los de sua presença, trouxeram café e licores, e depois tiraram a mesa e fecharam as portas. Nesse instante, ela notou que se achava praticamente a sós com o seu esposo e senhor, naquela noite. Tristram andava de um lado e de outro. Não tomou nem um gole de café, nem provou o Chartreuse. Zara permanecia perfeitamente tranquila. Não tardou que ele a procurasse, e subitamente a agarrasse em seus braços e apaixonadamente a beijasse na boca. — Zara! — murmurou ele loucamente — Por Deus! Porventura você pensa que eu sou de pedra? Já lhe disse que a amo loucamente. Não quer mostrar-se gentil para comigo e ser minha esposa de verdade? Olhando-a de fito, ele notou uma expressão naqueles olhos sombrios, que lhe refreou todo o Ímpeto. — Animal! — sibilou a esposa, e pregou-lhe uma bofetada no rosto. Quando os braços do marido a largaram, Zara afastou-se arquejante e mortalmente ferida, ao passo que Tristram, louco de raiva por causa da bofetada, despedia relâmpagos dos seus olhos azuis e rilhava os dentes. — Animal! — sibilou de novo a esposa, e agora as palavras lhe borboteavam numa torrente de ódio — Não basta o senhor ter-se vendido pelo dinheiro do meu tio e consentido em receber, por esposa, uma mulher a quem nunca viu? E ainda quer exibir, dessa forma, tão revoltantes paixões? Como ousa falar-me em amor? Que ideia faz do amor? O amor é um sentimento verdadeiro, é uma coisa imaculada e linda, para ser emporcalhada dessa forma! Deve originar-se do devotamento e compreensão mútua. Que espécie

de vil paixão é essa que um homem experimenta, como o senhor sente por mim? Simplesmente por que sou mulher, não é verdade? Amor! isso não é amor: é uma simples questão dos sentidos. Qualquer outra mulher o excitaria, contanto que fosse bonita. Lembre-se, meu lorde! Não sou sua mulher! Eu não suportarei mais cenas como esta! Deixe-me. Eu o odeio, seu animal! Lorde Tancred endireitou-se todo, e cada vez mais se tornava rígido a cada palavra que Zara pronunciava. Quando se calou, também ele se achava mortalmente pálido. — Não me diga mais uma palavra, Zara! Não lhe assiste nenhuma razão para reprovar o amor que lhe consagro. E lembre-se disto: entre nós dois, as coisas se passarão como deseja. Cada um de nós viverá a seu modo, e representará o seu papel. Mas antes que eu lhe peça para ser novamente minha esposa, você há-de cair de joelhos diante de mim. Compreendeu? Boa noite. E sem dizer mais nada, saiu do aposento.

CAPÍTULO XVII AMOR OU DESEJO?

A lua brilhava esplendidamente, e soprava ligeira brisa quando Tristram deixou o hotel e rapidamente se encaminhou para o cais. Intimamente, rugia de raiva e indignação ante as cruéis ofensas recebidas da esposa. A injustiça do modo porque o tratara não lhe saía da cabeça, e posto que soubesse estar inocente naquilo tudo, e aquiescesse

à proposta do amigo pura e

simplesmente pela beleza da sobrinha, mesmo assim aquela acusação o feria e irritava o seu orgulho. Que atrevida! E como ousara o tio permitir-lhe alimentasse tais pensamentos? Um Guiscard descer tão baixo! Lorde Tancred cerrou os punhos e todo ele, da cabeça aos pés, estremeceu. Ao contemplar as águas do mar, aqui e ali ondeadas em suaves reflexos do luar, acudiram-lhe à lembrança as últimas palavras com que o chicoteara: — Deixe-me! Eu o odeio, seu animal! Um animal! Indubitavelmente! E desse jeito é que ela encarava o seu amor! Pouco depois, sobreveio-lhe um frio sentimento. Era justo para si mesmo, e intimamente indagou: e se fosse verdade aquilo que a esposa lhe dissera? Não passaria tudo de um mero desejo? Acaso perdera o juízo e intoxicara-se simplesmente pelo desejo ante aquela singular formosura? Além disso não havia mais nada? Seriam os homens realmente uns brutos? Nesse instante, ele se pôs a andar de um lado e de outro, bastante apressado. E continuou no seu solilóquio: Afinal de contas, o que era a vida? Qual a verdade que existia nesta coisa chamada AMOR? Durante horas e horas assim caminhou, raciocinando sobre tudo isso. Chegou à conclusão de que para a sua natureza não havia amor sem o desejo, e não era possível o desejo sem amor. Veio-lhe, então, à lembrança a conversa que tivera com Francis Markrute, no dia em que almoçaram juntos no Savoy e quando o financista lhe externara o seu ponto de vista sobre as mulheres.

De fato, eram verdadeiros aqueles conceitos. Qualquer mulher para ser perigosa, devia interessar ao corpo e ao cérebro do homem. Se a inclinação que sentia por Zara se limitasse ao seu corpo, não havia dúvida que não passava de um mero sensualismo. Mas, não era verdade. E a prova é que se recordava dos seus devaneios de vê-la em Wrayth; das cenas que imaginava quanto à sua futura vida, os dois juntinhos no velho solar; e da ternura com que ansiara por essa noite. Aos poucos, foi-lhe desaparecendo o ódio, substituído por uma apaixonada tristeza. Seus castelos ruíram por terra, e nada mais devia esperar a não ser um vazio, uma vida falha de sentimentos. Não lhe parecia possível agora, sob aquele álgido luar, que as coisas pudessem caminhar bem para ambos. O seu orgulho, o orgulho de um Guiscard não lhe permitia mais procurá-la para uma ampla explicação. Não cuidaria de defender-se; que pensasse como melhor lhe parecesse, até que por si mesma descobrisse a verdade. A seu ver, dificilmente isso se verificaria; com toda certeza continuaria fria e indiferente, mas não se recusaria a ser realmente sua esposa e jamais o insultaria daquela maneira. A principio, fez o propósito de fingir ignorar o desgosto da mulher e mostrar-se devotado, bastante terno, até que estivesse disposta a escutá-lo. No entanto, a chicotada que lhe vibrara obrigara-o a reagir, e daqui por diante a situação entre eles estava traçada pelas palavras que pronunciara, e não lhe era dado voltar atrás. Estabelecido o seu propósito, Tristram cuidou de sondar o ponto de vista da esposa. Ele não devia ser injusto. E concluiu que se ela fizesse, a seu respeito, juízo tão degradante, tinha o seu tanto ou quanto de razão. Não obstante, mesmo assim qualquer coisa havia de misterioso na vida da esposa, qualquer coisa sombria, cruel, opressiva. Esses pensamentos fizeram-no desandar o tempo e chegar até a noite em que a vira pela primeira vez. Lembrou-se que os seus olhos estavam cheios de ódio, de ódio e ressentimento, como se pessoalmente ele a ofendesse. Francis Markrute era um homem sagacíssimo. Que plano teria arquitetado em sua cabeça? Como diabo conseguira ele talvez forçá-la a

aquiescer aos seus desejos e desposá-lo? Mais uma vez a perturbante recordação de Mimo lhe acudiu à mente, e assim foi que a madrugada ali o encontrou. De regresso para o hotel, sentia-se cansado de corpo e de espírito, e por certo não encontraria repouso em sua cama. Sua cama! E num quarto pegado ao dela! De tanto pensar, chegou a uma firme resolução: trataria a esposa com fria cortesia e assim viveriam. Provocar uma cena dramática, logo no dia seguinte ao do casamento, era inconcebível para a ideia que fazia das coisas e impróprio de um Guiscard. Quando ele a deixou, por algum tempo Zara permaneceu imóvel onde se achava.

Incompreensível

espanto

fizera

com

que

toda

a

sua

raiva

esmorecesse. Para toda aquela sua cruel experiência da vida, Zara ainda era muito moça. Muito moça e alheia a tudo, exceto ao procedimento de vilões. Até aqui sentira que, quando os homens se mostravam gentis, era de caso pensado e para proveito próprio, e se a mulher se distraísse um bocadinho, seguramente cairia na armadilha. Para que fosse respeitada e para o sossego de sua alma, devia andar prevenida sob todos os pontos de vista. Entretanto, depois de ter-lhe mostrado todo aquele seu desprezo, ao contrário do seu falecido marido, que talvez lhe batesse, o atual lhe respondeu com bastante dignidade e saiu da sala. Lembrou-se, então do frio semblante do pai. Talvez houvesse alguma coisa mais nos ingleses, alguma qualidade mais fina que não lhe era dado compreender. A infeliz e linda criatura dava ideia de um animal judiado, pronto para morder em defesa própria, à vista do homem. O seu procedimento falava altamente do vigor e nobreza do seu caráter. Fosse outra, fosse uma mulher fraca e certamente se degradaria, tamanho o seu sofrer. Entretanto, permanecia pura como a neve, e como a neve gélida. A sua férrea vontade e o seu orgulho haviam conservado todos os seus voluptuosos instintos, que certamente permaneciam em estado latente em sua natureza, agora posta em xeque. Fria era toda a emoção que sentia pelo homem.

Naturezas humanas existem que, por serem completas, somente correspondem aos mais elevados sentimentos. Quando corpo e alma se equilibram, conhecem elas tudo o que é divino no amor humano. Quaisquer desvios verificados nos elementos dessa composição provocam ou a tristeza ou a sensualidade. A mulher perfeita prazeirosamente se entrega, de corpo e alma, ao homem a quem ama. Zara estava absolutamente alheia a todas essas coisas. Somente sabia que se achava exausta. E de aborrecida, foi deitar-se. E assim foi que nenhum dos dois nessa sua primeira noite de núpcias, conheceu o que fosse a paz ou o descanso. No dia seguinte era tarde quando se encontraram ao desjejum. Partiriam para Paris pelo vapor das 2 horas. Ambos estavam quietos e pálidos. Zara é quem primeiro chegou à sala de visitas, e estava contemplando o mar quando o marido apareceu. Somente o notou ali quando lhe ouviu um gélido "bom dia". Um estranho estremecimento perpassou-lhe pelo corpo, ao ouvir o som de sua voz. — O desjejum logo estará pronto — continuou ele, calmamente — Ordenei que o servissem às 11 horas. Pedi à sua criada que a avisasse. Pareceme que terá tempo de vestir-se. — Sim, muito obrigada — limitou-se Zara a dizer. Tristram tocou a campainha e abriu os jornais, que os criados empilharam sobre a mesa, convictos do prazer que o jovem casal teria em ler as notícias que pessoalmente lhes diziam respeito. Zara observou o lindo rosto do marido, e notou um sorriso sarcástico, desdenhoso, franzir-lhe os lábios à medida que Jia. Imaginou logo que se tratasse do seu casamento, e por sua vez apanhou alguns jornais e cuidou de ler os títulos dos artigos. De fato, ali se achavam inflamadas descrições da cerimônia. No instante em que acabara de ler os longos parágrafos, Zara ergueu subitamente a cabeça

e

seus olhos

se

encontraram

com

os

dele.

Tristram

riu-se,

riu-se

amargamente, era verdade, mas riu-se. O terror que de longa data tinha aos homens ainda não desaparecera do coração de Zara. De todo em todo ainda não se libertara da suspeita de que o marido talvez a agarrasse, se se mostrasse desprevenida. E assim foi que franziu ligeiramente as sobrancelhas, e voltou ao seu jornal. Nesse instante, os criados trouxeram o desjejum, e os dois nada disseram. Não pareciam ter grande apetite, ou cuidar do alimento que ingeriam. Como a cafeteira estivesse defronte de Zara, delicadamente ela perguntou ao marido se queria que o servisse. À sua resposta de que não desejava café, e preferia chá, Zara deu um suspiro de alívio, enquanto o próprio Tristram se servia de chá. — O vento está soprando violentamente, e dentro em pouco teremos um furacão. Não se importa com isso? — indagou ele. — Não, nem um pouco — foi a resposta. E os dois continuaram a ler os jornais, até que todo o pretexto do desjejum tivesse desaparecido. Levantando-se, Tristram perguntou-lhe se podia estar pronta mais ou menos a uma e meia, para irem a bordo, de modo a evitar a multidão que despejava do trem que chegava de Londres. Depois, silenciosamente deixou o aposento, e das janelas Zara o viu passeando no cais. Por

uma qualquer

e

inexplicável

razão

psicológica,

posto

que

aparentemente tivesse firmado as condições em que lhe seria possível viver junto do marido, Zara estava longe de sentir qualquer satisfação ou paz. Nenhum

casal

poderia

parecer

mais

adoravelmente

sedutor

e

interessante do que lorde e lady Tancred, no instante em que se dirigiram para sua cabina, a bordo! — pensava um grupo de moças de Dover, observando-os de um terreno elevado, onde se encostavam os vapores. Todo o mundo com pesar notava que aquele eletrizante par não fazia boa vida, e o numero dos que diariamente verificavam isso já estava crescido. — Que maravilhosa chinchila! Que cabelos esplêndidos! — exclamavam

as moças — Tudo isso não é doutro mundo? — acrescentavam. E a criada e o criado, transportando a caixa de joias, as malas, as almofadas e a manta de viagem, seguiam-no, com grande deleite das jovens ladies. Os apanágios de uma grande posição, quando aumentados pelo romantismo de uma viagem de núpcias, agradam sobremaneira ao coração feminino. Estava-lhes reservada uma grande cabina no convés superior do Queen. À espera de que chegasse o trem de Londres, os recém-casados saíram ao tombadilho e ali se sentaram em lugar onde não pudessem ser observados, e de onde descortinavam o Castelo de Dover. Entretanto, não pronunciaram sequer uma palavra, e cada um se pôs a ler um livro. Quando lhe pareceu oportuno dali saírem, para evitar a multidão, o marido levantou a cabeça e disse: — Acho melhor entrarmos naquela estúpida cabina; caso contrário, aqui seremos surpreendidos por qualquer cacete. Queira ter a bondade de entrar. E ambos se levantaram. — O tempo está ameaçador — continuou ele, quando a porta da cabina já estava fechada — Não quer deitar-se um pouco? Ou, o que deseja? — Não me sinto nem um pouquinho indisposta, mas tentarei dormir — respondeu Zara resignadamente, ao mesmo tempo que despia o seu casaco de chinchila. O marido arrumou-lhe os travesseiros e fê-la deitar-se. Depois, cobriu-a. A despeito de sua raiva e do orgulho ferido, sentiu o mais enlouquecido dos desejos de beijá-la e fazê-la descansar em seus braços. Por isso mesmo é que bruscamente se retirou para uma das extremidades da cabina e ali se sentou. Abriu a janela para que entrasse um pouco de ar e suspendeu a cortina, feito o que voltou ao seu livro. Entretanto, cada vibração de seu corpo palpitava de desejo, e não pôde conter-se que não a olhasse. Zara erguera-se um bocadinho, e estava tirando do chapéu os grampos providos de pequenas e magníficas safiras, todo um delicado trabalho com que a presenteara Ciril.

— Quer que a ajude? — É um chapéu tão cômodo, que penso não ser preciso tirá-lo para deitar-me — respondeu-lhe Zara friamente — Mas, qualquer coisa está me machucando, aqui atrás. Tristram tirou-lhe o chapéu com o véu, e aquelas ondas do seu flamejante cabelo por pouco que não o deixaram louco, ante o desejo de acariciá-lo. Por que divina graça poderiam eles viver daquele jeito? Para não resistir àquela tentação, devia sair da cabina e lutar consigo mesmo. Zara ficou espantada ao notar o marido tão carrancudo. Como a visse bem acomodada e o vapor se pusesse a mover, Tristram deixou-a. Felizmente o tempo estava carregado, de sorte que pouca gente por ali andava. Adiantando-se até a balaustrada do convés, nela se apoiou e inclinouse para as águas, recebendo em cheio no rosto aqueles ares salinos. Afinal de contas, por que se sentia dominado por esta selvagem paixão pela esposa, a ponto de esforçar-se para repeti-la e não conseguir calcar o amor que lhe nutria ante as cruéis palavras que lhe ouvira? Nunca cometera tamanha ignomínia. Cumpria-lhe pôr-se de parte e firmemente sufocar toda emoção. Decidiu-se vê-la o menos possível quando se achasse em Paris, e logo que findasse aquela horrível lua de mel, fato que lhe proporcionaria grande excitamento e júbilo, voltariam à Inglaterra. Então, devotar-se-ia de corpo e alma à política, e cuidaria de absorver-se inteiramente nessa ocupação. Deitada em sua cabina Zara estava absolutamente alheia a qualquer corrente direta de pensamento. Achava-se completamente inconsciente de que aquele seu jovem e formoso marido já lhe causara alguma impressão, e que no seu íntimo, até bem pouco absorvida com o irmãozinho ou consigo mesma, já se radicava a presença do esposo, cujas idas e vindas pelo convés lhe prendiam a atenção. Fortalecido no seu propósito de portar-se com a dignidade de um Guiscard, Tristram só procurou a esposa quando o vapor chegava ao porto de Calais.

CAPÍTULO XVIII CIÚMES

QUANDO os recém-casados mais ou menos às sete horas chegaram ao Ritz, em Paris, os criados — corretamente dispostos em fileiras — não notaram externamente nenhuma diferença de tratamento entre irmão mais velho e irmã, e conduziram-nos para o magnífico apartamento estilo Império, que dava para Vendôme, no primeiro andar. Tudo ali estava arrumado com grande esmero, e as flores, de tão frescas e adoráveis, arrancaram uma exclamação dos lábios de Zara: — Oh! lindas rosas! Antes de mais nada, quero cobrir o meu rosto com estas flores. Esplêndida foi a viagem que fizeram por estrada de ferro, e de tão fatigados ambos adormeceram. No automóvel, quando em caminho para o hotel, trocaram algumas palavras. — Amanhã à noite poderemos jantar num restaurante — disse-lhe Tristram — Mas hoje talvez se sinta cansada, e prefira deitar-se, não? — Obrigada — agradeceu-lhe Zara — Sim, prefiro deitar-me — acrescentou, lembrando-se de que precisava escrever ao seu irmãozinho e contar-lhe o seu novo nome e posição. Trocando as roupas de viagem por um penteador, quase às oito e meia foi encontrar-se com o marido, na sala de visitas. Se não estivessem tão estremecidos não conteriam uma gargalhada, pois ali se sentaram em grande pompa. Quando os criados entraram no aposento, o casal trocou algumas observações a esse respeito. Zara reparou que o marido nem uma vez a olhara face a face, pelo jeito friamente indiferente a tudo o que ela dissesse. —Devemos aqui permanecer por toda esta maçante semana — disse-lhe Tristram, quando os criados, depois de deixarem o café na mesa, se retiraram — Há certas obrigações a que se devem conformar pessoas de posição. Creio que me compreende. Tratarei de tornar o mais fácil possível a nossa

permanência em Paris. Quer dizer-me que teatro ainda não conhece? Toda noite podemos ir a algum lugar diferente, e durante o dia talvez tenha as lojas para a ocuparem. Quanto a mim… conheço bem Paris. Procurarei distrair-me. Zara não sentiu o menor entusiasmo pela proposta, mas agradeceu-lha em voz tranquila. Tristram tocou a campainha, e pediu a lista contendo os lugares de diversões. E com a mais inflexível e impassível disposição de ânimo, pôs-se a escolher, com a esposa, um diferente lugar onde iriam em cada noite. Deliberadamente acendeu um charuto e começou a andar pelo aposento. —Boa noite, milady — cumprimentou-a com indiferentismo, e saiu. Zara, ainda sentada à mesa, distraidamente se pôs a desfolhar uma inocente rosa. Quando notou o que estava fazendo, ficou aborrecida consigo mesma. Faltava pouco para as cinco horas do dia seguinte quando de novo ele apareceu na sala de visitas. — Milorde foi às corridas, e de manhã deixou este bilhete para milady — disse-lhe a criada. Zara, que ainda estava deitada e recostada em travesseiros, abriu-o com um ligeiro estremecimento. E leu: Não precisa preocupar-se comigo, hoje. Vou à Maison Lafitte com alguns velhos amigos. Disse-lhes que você precisava descansar da longa viagem, para justificar a. sua ausência. Já expedi as necessárias instruções para jantarmos no Café de Paris, às 7h30, e depois irmos ao Gymnase. Se não concordar com esse plano, peçolhe comunicar ao meu criado Higgins. O bilhete não estava assinado. Pelo jeito, nada tinha a recear do marido naquele dia. Podia respirar bastante aliviada. E o dia todo lhe estava reservado para um tranquilo descanso.

Contudo, quando almoçou sozinha e já escrevera cartas para o tio e Mirko, deu consigo distraidamente tamborilando na vidraça e a pensar se devia ou não sair. Não possuía amigos em Paris a quem desejasse visitar. A vida que ali levara com sua pequena família, inteiramente a ela se devotara. Entretanto, o dia estava magnífico, e sempre há alguma coisa que se fazer em Paris, embora não se decidisse qual fosse. Talvez desse um pulo até o Louvre. Afundou-se no grande sofá, em frente às crepitantes achas da lareira, e aos poucos adormecera. Dormiu a sono solto, até cair a noite, e ainda estava dormindo quando Tristram chegou. Ao entrar na sala, ele não a notou. As luzes estavam apagadas, e a rua meio escura; na lareira, quase extinto o fogo. Tristram adiantou-se pelo aposento e, voltando, virou o registro da luz. Acesas as lâmpadas, Zara sentou no sofá, esfregando os olhos. Uma trança dos seus cabelos se desmanchara, e os flamejantes fios caíram num lado de sua cabeça. Zara parecia uma criança toda rosada e estremunhante. — Não sabia que estava aqui! — murmurou o marido e, notando aquela adorável tentação, voltou-se para a lareira e pôs-se a atiçar o fogo. Como sentisse não podia confiar em si mesmo por mais um segundo, tocou a campainha e ordenou lhe trouxessem chá. Depois, foi ao seu quarto tirar o sobretudo e voltou para pedir desculpas por tomar o chá naquela sala. Zara nada sentiu de particular. Como sempre, estava na defensiva, à espera de qualquer possível ataque. E ambos se sentaram tranquilamente, sem que durante algum tempo pronunciassem qualquer palavra. Na ausência do marido, ela endireitou os cabelos, e agora parecia estar bem desperta e composta. — Tive um dia azarento — disse ele, para dizer qualquer coisa — Não consegui ganhar uma simples powle. Creio já estar saturado de corridas de cavalos. — As corridas sempre me aborreceram — respondeu Zara — Se se

tratasse de experimentar a ligeireza de um animal que a gente criou, ou se a gente é que montasse e quisesse ganhar a corrida a um adversário, igualmente montado, eu compreenderia o turfe. Mas, tratando-se de velhacarias dos jóqueis… e por causa de dinheiro! Parece-me uma coisa banal! Nunca senti o menor interesse pelas corridas. — Acaso alguma coisa a interessa? — arriscou o marido, logo arrependido por ter mostrado tanto interesse na pergunta. — Sim — respondeu Zara vagarosamente — Mas talvez poucas coisas. Minha vida tem sido sempre orientada para constituir a diversão dos outros, de modo que não tive tempo de procurar as minhas. Parou bruscamente. Não podia conceber que sua vida o interessasse muito. Entretanto, pudesse saber e verificaria que o esposo se interessava grandemente pela sua existência. Tristram sentiu-se, mesmo, inclinado a dizer-lhe isso, a confessar-lhe que a situação de ambos era ridícula e que desejava conhecer-lhe os mais íntimos pensamentos. Já principiara a examiná-la com toda a sua crítica, e sob todos os pontos de vista. Além da apaixonada admiração pela sua beleza, alguma coisa a mais havia para examinar. Que sutil mistério havia a preocupar-lhe tanto os pensamentos? Por que não lhe diria a significação daqueles insondáveis e sombrios olhos? Com o que se pareceriam, se estivessem cheios de amor e cheios de ternura? Se naquele momento desse largas à sua inclinação, quebrar-se-ia aquele gelo, e no fim da semana provavelmente um cairia nos braços do outro. Mas os fados determinaram o contrário, e um incidente naquela noite lhes provocou nova tempestade. Zara estava simplesmente adorável num novo e encantador vestido, e logo foi alvo dos olhares e da admiração de galanteadores estrangeiros, que não a deixavam jantar sossegada. Embora o jantar tète-à-tête se verificasse muito cedo, no Café de Paris, sucedeu que perto do lugar em que se sentaram havia uma grande quantidade de homens. Reconheceu logo num deles, um

conde estrambótico, que fora amigo do falecido Ladislau. Todos quantos conhecem o Café de Paris podem imaginar como isto aconteceu. O longo banco forrado de veludo, sem nenhuma divisão, e as mesinhas à frente, quando está cheio o Café, dão ideia de que todos os que ali se encontram constituem um único e grande grupo. Lorde Tancred já a isso estava habituado. Conhecia bem Paris, conforme lhe afirmara, e devia estar preparado para o que quer que acontecesse. Mas não estava. Talvez não estivesse de sobreaviso, porque ainda ali não fora em companhia de mulher a quem amasse. O vizinho de Zara era um sujeito corpulento, de catadura feroz, porventura proveniente de algum lugar distante e semi-civilizado do sul, e pelos modos estava meio embriagado. Ela entendia boa parte da língua que o brutamontes falava, mas os companheiros, na persuasão de que o inglês e sua encantadora esposa não entendessem patavina do que diziam, soltavam os maiores disparates e faziam as mais inconvenientes observações. O seu vizinho por duas ou três vezes devorava-a com os olhos, sempre ao notar que o inglês não podia observá-lo. Não demorou que se pusesse a murmurar entreprenant sentenças de amor em sua própria língua, enquanto brincava com um pedaço de pão. Zara notou que ele a reconhecera. Tristram admirou-se porque as narinas da esposa começaram a tremer e os olhos despediam relâmpagos. É que se recordava de análogas cenas quando Ladislau era vivo e nos primeiros tempos os ciúmes que dele se apossavam quando ambos saíam a passeio. De volta para casa e quando subiam as escadas, Ladislau agarrava-a pelos cabelos e a atirava na cama. A culpa era dela dizia o estúpido, quando os homens a admiravam. O horror dessa reminiscência ainda estava bastante vivo. Aos poucos Tristram ficou bastante perturbado. Embora ignorasse ser o homem a causa de tudo aquilo, percebeu que alguma coisa estava para acontecer. Já se sentia enciumado e inquieto, e quis levá-la de volta para o hotel. Com receio de um escândalo e furiosa por causa das palavras que ouvia,

Zara mostrava-se desconfiada e ressentida, e não abria a boca para dizer o que quer que fosse. Tristram estava longe de compreender a razão daquilo tudo, e sentia-se incomodado. Que teria ele dito ou feito, para que a esposa se portasse daquela maneira? A sua atitude excedia ao que lhe era dado suportar, mesmo porque, sem nenhuma razão aparente, duma hora para outra assumir aqueles ares! Zara franzira as sobrancelhas; sua boca se cerrara enraivecida; e os olhos estavam sombrios como a noite. Se

contasse

a Tristram

o que o vizinho lhe estava dizendo,

imediatamente se verificaria um escândalo. Essa a razão por que permanecia em constrangido silêncio, alheia a que o marido imaginasse não passar tudo aquilo de uma grosseria de sua parte e furioso com o seu estranho procedimento. Assoberbera-a tanto a ira contra o estrangeiro que mal respondia às poucas observações de Tristram. Levantou-se abruptamente na instante em que o marido pagava a despesa, com intenção de sair. Nesse momento, o conde estrangeiro escorregou um papelzinho dobrado na manga do seu casaco. A Tristram não passou despercebido o gesto do brutamontes. Entretanto, estava meio duvidoso, e com aquele domínio próprio dos ingleses e o horror a cenas, acompanhou a esposa que apressadamente caminhava na direção da porta. Ajudou-a subir no automóvel que os esperava. Com o gesto de apoiar-se no veiculo para entrar, o dobrado bilhetinho caiu no iluminado soalho do carro. Tristram ergueu-o. A esposa devia-lhe uma explicação. Subjugara-o a raiva. Naquilo tudo havia algum mistério, e ele estava sendo ludibriado. — Por que não me disse que conhecia aquele sujeito, sentado perto de nós? — indagou Tristram, em voz refreada. — Porque seria uma mentira — respondeu Zara altivamente — Só o vi uma vez antes, em toda a minha vida. — Nesse caso, qual a razão de permitir-lhe que lhe escreva bilhetes? —

insistiu Tristram, dominado pelo ciúme para que pudesse controlar a raiva no tom de sua voz. Zara encolheu-se toda no canto do automóvel. De novo, aquelas cenas! Afinal de contas, mau grado a sua aparente concordância em viverem o mais indiferentemente possível, o marido agora estava agindo como Ladislau! Sempre os mesmos, todos os homens! — Não conheço o homem que me escreveu o bilhete. Que quer dizer com essa pergunta? — Como pretende desconhecê-lo, quando o bilhete caiu de sua manga? — retorquiu furiosamente Tristram. Aqui está o bilhete. — Leve-me de volta para o hotel — disse-lhe a esposa em voz gelada — Recuso-me terminantemente a ir ao teatro para ser insultada. Como se atreve a duvidar de minha palavra? Se tem o bilhete em suas mãos, melhor será que o leia e veja o que diz! Lorde Tancred ordenou ao chofer que os levasse de volta para o Ritz. E ambos permaneceram calados, palpitantes de raiva. Quando chegaram ao hotel, ele a acompanhou no elevador e seguiu-a até a sala de visitas. Depois de fechar a porta, Tristram postou-se ao lado da esposa e quase rugiu quando lhe disse: — Demasiado é o que exige de mim. Estou-lhe pedindo uma explicação. Conte-me o que ha sobre isso! Aqui está o seu bilhete. Zara recebeu-o com infinito desdém, e segurando-o como se tratasse do mais nojento réptil abriu-o e leu em voz alta: Linda condessa, quando poderei vê-la de novo? — O miserável! — exclamou desdenhosamente — Desse jeito é que os homens insultam as mulheres! — e, levantando o apaixonado olhar para o marido: — Todos os homens são iguais! — Eu não a insultei — ripostou Tristram — É perfeitamente natural que me sentisse furioso com tal gesto, e se o bruto ainda lá estiver, vou mostrar-

lhe que não lhe consinto escrever bilhetes insolentes para minha esposa. Zara atirou o detestável pedaço de papel no fogo, e encaminhou-se para o seu quarto. — Peço-lhe pôr uma pedra nisso tudo — disse-lhe ela — Aquele indivíduo asqueroso estava meio embriagado. É perfeitamente desnecessário um destorço, porque só serviria para provocar escândalo e nada de bom resultaria. Mas, o senhor deve compreender uma outra coisa. Ninguém ainda duvidou de minha palavra, nem fui tratada como uma criada, como o senhor me tratou esta noite. E, sem mais dizer, entrou em seu quarto. Tristram, agora sozinho, pôs-se a andar de um lado e de outro. Estava furioso de raiva, furioso com a esposa, furioso consigo mesmo e furioso com aquele homem! Com a esposa porque ele lhe dissera, certa vez, antes de se casarem, que quando cruzassem espadas, não havia a menor duvida quanto a quem

seria

o

vencedor.

Todavia, no

terceiro

encontro em que

se

entrechocavam os arbítrios de ambos, sempre ela sairá triunfante! Furioso consigo mesmo porque não levantara a cabeça no instante em que o homem passara o bilhete para a esposa; e freneticamente furioso contra o estrangeiro, por atrever-se a erguer o insolente olhar para lady Tancred. Voltaria ao Café de Paris e, se o homem ainda lá estivesse, tiraria uma satisfação. Se já tivesse partido, pelo menos conseguiria saber o seu nome. Com essa intenção, saiu. Os garçons afirmaram que aquele cavalheiro lhes era completamente desconhecido. Os que

o

acompanharam, naquela noite,

eram

todos

estrangeiros, e não faziam a menor ideia do lugar para onde foram. E foi assim que este enraivecido moço inglês passou a terceira noite de sua lua de mel, em pesquisas nos lugares mais frequentados de Paris, sem lograr o menor êxito. Mais ou menos às seis horas da manhã voltara cansado para o hotel, sem que diminuísse a sua raiva. Entretempo, a sua esposa não conseguira dormir. Embora a raiva que também sentisse, durante toda a noite foi presa do fantasma do medo. E se os dois homens se encontrassem, e houvesse sangue? A ocorrência era

perfeitamente possível. Por diversas vezes se levantara da cama e se pusera à escuta nas portas que comunicavam o seu com o quarto do marido. Mas não notou o menor sinal de Tristram, e às cinco horas da manhã, presa de grande ansiedade, e, sentindo a injustiça com que o destino a atormentava, prostrouse em sono inquieto, para despertar novamente às sete, com um grande peso no coração. Não podia mais suportar tudo aquilo! Precisava saber se o marido já regressara! Meteu-se no seu penteador e deslisou até à porta, e com a maior precaução virou a maçaneta e espiou dentro. Sim, ele ali estava, profundamente adormecido. A janela do quarto estava aberta de par em par, com as cortinas levantadas, de modo que o sol cala em seu rosto. Estava bastante cansado para que isso o incomodasse. Zara cuidou de voltar para os seus aposentos, sem fazer o menor ruído. Com o pavor de ser descoberta, enroscou a franja de seu penteador no trinco da porta, e sem que o percebesse, um punhadinho de rosas feitas de fita se desprendeu do penteador e caiu dentro do quarto do marido. Deitou-se novamente, agora tranquila de espírito mas absolutamente apavorada do seu gesto. Que situação embaraçosa, se o marido despertasse e desse com ela em seu próprio quarto! Algumas horas mais tarde, a primeira coisa que Tristram notou quando, com o crescente calor do sol, despertara, foi o rococó de seda, caído perto da porta.

CAPÍTULO XIX LÁGRIMAS E MAIS LÁGRIMAS

Tristram saltou da cama e apanhou-o. Que diabo disto era aquilo? Evidentemente, aquelas rosinhas eram do penteador de Zara. Lembrava-se de tê-la visto com ele, na noite em que lhe levara as gardênias, em Dover. Além disso, certamente ali não se encontravam, em seu quarto, quando regressara ao hotel às seis da manhã. Caso contrario, tê-las-ia visto sobre o tapete claro. Por apenas um minutinho imaginou se tratasse de uma mensagem, e só então que notou que a seda fora arrancada e estava rasgada. Não, não se tratava de uma consciente mensagem. Mas evidenciava que a esposa estivera no quarto, enquanto ele dormia. Por que Zara fez isso? Sabia-se odiado por ela, e aquele seu gesto não concordava como esse sentimento. Além disso, quando se separam, a noite passada, as palavras que lhe ouvira estavam longe de ser cordiais. Qual o motivo, pois, que lhe encaminhara os passos até o seu quarto? Tristram sentia grande excitamento. Tratou de verificar se, como de costume, a porta que separava ambos os aposentos estava trancada. Cuidadosamente girou a maçaneta. Sim, estava trancada. Zara notou-lhe o gesto, do outro lado, e enrijeceu-se toda em seu leito, com a expressão feroz de uma loba pronta para a defesa. Sim, o perigo das maneiras dos homens ainda não desaparecera! Se inconscientemente não se lembrasse de trancar a porta, quando de volta de sua apavorante aventura, já o teria pelo quarto a dentro! E assim, naquele instante, os dois tremiam presos de diferentes emoções, e havia aquela porta trancada a separá-los. Depois, Tristram tocou a campainha e mandou que seu criado aprontasse o banho. Devia vestir-se apressadamente e indagar se por acaso ela desejava fosse servido o desjejum na sala de estar. Era muito tarde, quase onze horas. Ao meio-dia poderiam tê-

lo ali em cima, e não na sala de jantar do hotel, como ontem pensara. Precisava desvendar o mistério daquelas rosinhas; não suportara passar o dia todo com aquele pasmo e aquela duvida. Zara também cuidou de banhar-se. Era melhor, em tais emergências, estar de todo em todo prevenida para o que desse e viesse, e sentiu-se em segurança e mais tranquila com Henriette no quarto. Minutos antes do meio dia, ambos se encontraram na sala de estar. Tristram notou imediatamente que a atitude da esposa era de pura defensiva. Os criados entraram logo com o desjejum. Deveria tratar do assunto imediatamente, ou deixar para mais tarde, quando estivessem sozinhos? Decidiu-se pelo segundo alvitre, e limitou-se a dizer-lhe um frio "bom dia", absorvendo-se logo na leitura do New York Herald. Zara sentiu-se mais sossegada. Presentemente cuidavam do seu desjejum, e cada um de seu lado representava o papel que se impusera. Conversavam sobre teatros. Aquele em que decidiram ir nesta noite de sábado, provocara grandes risadas em toda Paris. — É uma das boas coisas a gente rir — observou Tristram, e Zara concordou. Durante a ligeira refeição, ele não fez a menor referência aos acontecimentos da noite anterior, e ela mal falou. Quando estava finda, os criados saíram. Tristram levantou-se, depois do seu café e licores, mas não acendeu o charuto. Foi até uma das grandes janelas que olham para a Colonne Vendôme, e depois voltou. Zara estava sentada no sofá cor de heliotrópio, estilo imperial, e de novo tinha um jornal nas mãos. Ele se postou à sua frente, com uma expressão no rosto capaz de enternecer qualquer mulher. — Zara — disse-lhe ele, em voz terna — por que razão foi ontem ao meu quarto?

Os grandes olhos da esposa encheram-se de horror e surpresa, e suas faces brancas se ruborizaram. — Eu? E a formosa mulher se pôs a torcer as mãos. Como é que ele soube disso? Acaso a vira? Evidentemente sabia do fato, e não adiantava mentir. — É que fiquei bastante receosa… Tristram adiantou um bocadinho e sentou-se a seu lado. Contava arrancar-lhe a confissão por que tanto ansiava, e já rejubilava com o fato. Zara não tinha por onde fugir. Entretanto, ela se afastou do marido, e com má vontade e relutância, prosseguiu: — Fiquei receosa de que se verificasse uma desagradável briga com aqueles horríveis homens e, como fosse muito tarde, eu… eu quis certificarme de que o senhor havia regressado. A estas palavras abaixou a cabeça e o rubor de seu rosto novamente foi substituído pela brancura da gardênia. Se a orgulhosa decisão por ele tomada naquela fatal noite do seu casamento, quanto a ser procurado pela esposa, não o contivesse, Tristram de novo se arriscaria a tudo e a tomaria em seus braços. E assim foi que insistiu à intensa tentação de agir dessa maneira e readquiriu toda a sua calma quando lhe replicava: — Interessava-a, então, de certo modo que eu não provocasse a briga? Ambos ainda estavam sentados no sofá, um perto do outro, e aquela magnética essência espiritual, dele derivada, impregnara-a. Completamente ignorante de tais emoções o que sabia era que algo a tornara bastante nervosa, a ponto de precipitar-lhe as batidas do coração. — Sim, certamente me interessava — arquejou a esposa, que depois continuou friamente, ao notar alegria nos olhos do marido — Os escândalos são tão desagradáveis… provocam cenas tão revoltantes! Outrora, tive que suportar várias.

Oh! Então disso é que se tratava! Temia um escândalo, e porque presenciara cenas desagradáveis… nem um bocadinho de interesse por ele! Tristram levantou-se abruptamente e dirigiu-se para a lareira. Grande era a magoa que lhe pungia o coração. Aquele estado de coisas, a seu ver, era extremamente desesperançoso. Esforçara-se por mostrar indiferentismo, a cada passinho sentia remorso e novamente queria ser humano e alimentar qualquer esperança. Entretanto, era um homem forte, e esta seria a derradeira provação. Não, nunca mais se torturaria. Tirando do bolso as rosinhas de seda, tranquilamente estendeu-lhas, não obstante estampar-se em seu rosto grande sofrimento. — Aqui está a prova do seu generoso interesse. Talvez a sua criada note a falta deste enfeite e queira pregá-lo onde se achava. Sem nenhuma outra palavra, deixou o aposento. Zara, que agora se achava sozinha, pôs-se a olhar o fogo da lareira. Que queria dizer tudo aquilo? Sentia-se bastante infeliz, mas nem um pouquinho alarmada ou enraivecida. Estava longe de querer magoá-lo. Acaso se portara com indelicadeza? Afinal de contas, comparado com Ladislau ele agira com admirável domínio próprio e… e se verdadeiramente não se tratasse de um bruto sensual e ela agira um tanto grosseiramente? Bem sabia o que fosse orgulho; tinha-o de sobejo em si mesma, e pela primeira vez notou o quanto o marido sofria por sua causa. Contudo, havia certos fatos que não podiam ser esquecidos. Ele se casou por causa do dinheiro do tio, e fingia-se pessoalmente tentado pela sua beleza, quando nada havia entre ambos. Zara ergueu-se e começou a passear pela sala. Por toda a parte havia um odor do marido, o odor do charuto fino que fumava. Agora, sentia-se inquieta, sem saber por quê. Acaso desejava que ele voltasse? Estava excitada? Devia sair? Nesse instante, sem nenhum motivo plausível, aqueles lindos olhos se puseram a chorar.

Encontraram-se de novo por ocasião do jantar. Zara nunca se mostrara mais fria do que Tristram agora lhe parecia. Desceram à sala de jantar, onde ele se encontrou com alguns amigos, fazendo a sua refeição em divertida companhia. Cumprimentou-os alegremente com um gesto de cabeça, e casualmente disse à esposa quem eram eles. Depois também foram jantar. Os seus modos agora já não eram mais forçados; eram simplesmente indiferentes. Mais tarde foram ao teatro e chegou a sua vez de afastar-se da esposa, o mais possível, assim que se acharam dentro do automóvel. Compraram uma frisa, e o espetáculo já se iniciara. Era uma dessas engraçadíssimas farsas parisienses, acima de toda convenção, mas tão intensamente cômica que ninguém podia conservar-se sério. Tristram riu-se à grande, e chegou a esquecer-se de que não passava de um miserável homem. Zara também riu-se. Entretanto, de nada valeu o espetáculo para operar qualquer mudança entre ambos. Os sentimentos de Tristram estavam demasiado feridos, para que qualquer circunstancia comum pudesse aliviá-lo. — Deseja cear? —indagou ele, quando deixaram o teatro. Como obtivesse resposta negativa, voltaram para o hotel. Acompanhou-a até o elevador, e aí a deixou após desejar-lhe polidamente uma "boa noite". Zara viu-o desaparecer pela porta, e notou que ele saíra novamente. Encaminhando-se sozinha para a sua sala de visitas, ali encontrou a correspondência vinda da Inglaterra. Sobre a mesa havia inúmeras cartas. Pelo menos uma dúzia endereçadas a Tristram algumas sobrescritadas por mãos femininas, e apenas duas que lhe eram dirigidas. Uma do tio, cheia de expressões amáveis e de sutis congratulações, e outra de Mirko, reendereçada de Park Lane, como se ainda ignorasse a mudança de seu estado civil. Era toda uma cartinha cheia de expressões patéticas e divertidas, que lhe tocavam o coração. Mirko estava melhor, já podia sair; dentro de quinze dias. Ágata, a filha dos Morley, estaria de volta e brincariam juntos. Sentia-se alegre com isso, porquanto as meninas não eram tão enfadonhas, e não faziam tanto barulho como os meninos! Zara foi ao piano, que ainda não abrira. Sentou-se e conseguiu distrairse um bocadinho com certas músicas que lhe agradavam. A criada que se pusera a escutar, à espera de que sua senhora fosse trocar de roupa, abriu os

olhos com espanto. — Quel drôle de couple! — dizia ela, consigo mesma. Tristram de novo se encontrou com os amigos, e em sua companhia saiu para cearem. Sua esposa estava cansada, desculpou-se ele, e foi deitar-se. Duas inglesas, que lhe eram bastante íntimas, puseram-se a gracejar e disseram-lhe que sua mulher era formosíssima. Entretanto, que espécie de homem era aquele, que espécie de iceberg deveria ser, a ponto de sair para cear e deixá-la sozinha! Ficaram perplexas ante o seu cínico sorriso. — Na verdade — dizia uma a outra, quando de regresso pra casa — a nova lady Tancred é extraordinariamente formosa! Imagine só, Gertrudes, Tristram deixá-la sozinha, por um minuto que seja! Reparou bem no rosto dele? Frio como o de uma estátua. Zara estava bem acordada quando mais ou menos às duas da madrugada, ele entrou. Ouviu-lhe os passos, e subitamente notou que os seus pensamentos se voltaram para o marido, e não para Mirko e sua cartinha, desde o instante em que se fora deitar! Imaginava que Tristram estivesse lendo as cartas que recebera. Os seus amigos eram tão numerosos e sinceros! Depois, ouviu que a porta se fechava e que ele se encaminhava para o quarto. Como os tapetes fossem muito espessos, não escutou mais nada. Acaso, se pudesse notar o que se passava naquele quarto, os seus formosos olhos se abririam? Sentir-se-ia feliz! Quem sabe! É que Higgins, com a sua mania de limpeza, esvaziara os bolsos do paletó que o amo vestira naquele dia e, em meio de uma ou duas cartas e de alguns bilhetes de visita, tirou um botãozinho de rosa de seda, um botãozinho que se desprendeu do rococó arrancado do penteador. Quando Tristram viu a florzinha, o seu coração deu um grande salto. Então, aquela ficara quando devolvera as outras! E ficara para magoá-lo, recordando-lhe o que poderia ter acontecido! Não se sentia capaz de dominar a violenta emoção que o sacudia. Foi até a janela, e abriu-a de par em par. Uma luz mortiça caía do céu, pois que a lua declinava. E lorde Tancred,

inclinando a cabeça, beijou apaixonadamente o botãozinho de seda, ao passo que os seus olhos se sentiam enevoados.

CAPÍTULO XX SUSPEITAS

FINALMENTE chegou a manhã de quarta-feira, dia prefixado para regresso à Inglaterra. Desde aquela noite de sábado até que deixaram Paris, não sofreu nenhuma alteração o modo frio, polido e indiferente que Tristram dispensava à esposa. De seu lado, ela não mais teve estremecimentos, nem qualquer receio ou demasiado ardor. Ele evitava o mais que podia estar a seu lado e, quando a isso era obrigado, parecia alheio à sua pessoa e aborrecido. Aquelas maneiras frias de Zara não mais se originavam da altivez com que se defendia, mas porque sem o saber tinha o coração entorpecido. Agora, sentia-se presa de desconhecida e acordada emoção, sempre que lhe sucedia ficar muito rente do marido. Nas suas ausências, seguia-o com o pensamento e não raro com admiração. Precisamente no instante em que se dirigiam à estação, na manhã de quarta-feira, foi entregue um telegrama à esposa. Trazia o endereço "Baronesa de Tancred", e logo ela adivinhou tratar-se de uma ideia de Mimo quanto ao seu nome. Tristram, que descia do estrado em que se levantava a mesa do porteiro, voltou-se e viu-a abrir o telegrama, com expressão de intenso nervosismo. Notou, mais, que à medida que o lia, seus olhos se abriam desmesuradamente e por um instante ficou como que atônita, enquanto o rosto se tornava excessivamente pálido. A razão disso é que Mimo lhe havia telegrafado: "Mirko não passa bem". Zara amarrotou o telegrama numa das mãos e seguiu o marido em meio do acurvado personnel do hotel para tomarem o automóvel. Conseguiu dominarse o preciso para corresponder com sorrisos aos votos de boa viagem que lhe faziam. Mas, quando o automóvel se pôs em movimento, encostou-se num canto e voltou-lhe a palidez ao semblante. Tristram estava agitado. Quem lhe telegrafara? Ela não lhe disse, nem ele lhe perguntou, mas a crença de que se tratasse de coisas e de interesses para a vida da esposa, às quais estava

absolutamente alheio, não lhe agradou. Mas, quem teria passado aquele telegrama? Um homem? Que a notícia nele contida causara na esposa funda emoção, não havia duvida. Teve vontade de perguntar-lhe, mas constrangido pelo seu orgulho e como as condições de vida entre ambos os separassem tanto, limitou-se a manifestar-lhe uma simples solicitude, que a verdade sentia. — Faço votos que não tenha recebido nenhuma notícia má. A essas palavras Zara voltou-lhe os olhos, e Tristram verificou que ela não o escutara ou não o entendera. — O que? — indagou a esposa, vagamente. De pronto, notando a confusão em que se achava, emendou: — Não… exatamente não… Trata-se de assunto que me faz refletir. Essa resposta arredava-a de uma confidência. Isso mesmo ele sentiu, e cuidadosamente cuidou de não se interessar mais por qualquer assunto que dissesse respeito à esposa. Quando chegaram à estação, subitamente percebeu que ela não o estava acompanhando, no momento em que lhe abrira passagem por entre a multidão. Verificou, mais, que Zara pessoalmente foi ao telégrafo. Esperou-a bastante encolerizado. Evidentemente tratava-se de qualquer coisa importante, a ponto de ela não desejar que ninguém lesse o que escrevera em resposta. Não fosse isso, e podia perfeitamente ordenar a Higgins, que os aguardava na sala de espera, para transmitir o telegrama. Dentro de pouco Zara estava de volta, e logo notou que o rosto de Tristram se achava bastante carregado. Não lhe pareceu que o marido estivesse enciumado por causa daquele misterioso telegrama: imaginou que se sentisse aborrecido porque ela não o acompanhara, no caso de se acharem atrasados. Por isso mesmo é que se apressou a dizer: — Temos muito tempo. — Decerto — concordou Tristram secamente — Mas é perfeitamente desnecessário a lady Tancred acotovelar-se nesta multidão e expedir os seus

próprios telegramas. Higgins podia ter-se incumbido disso, quando já estivéssemos acomodados no trem. Com inesperada brandura, ela lhe respondeu: — Sinto muito. E assim terminou o incidente, sem que deixasse nenhuma impressão embaraçosa. Tristram nem por sombras pretendeu ler os seus jornais, quando o trem se pôs em movimento. Sentou-se em seu banco, o olhar fixo à frente, com aquele formoso rosto sombreado por melancólica expressão. Qualquer atento observador que o conhecesse, teria notado a mudança que nele se operara a partir da última semana. Que grande desapontamento o destino lhe reservara! De que natureza era dotada a esposa, para viver naquele mutismo e naquela apatia? Sentia-se quase feliz por não lhe ter oferecido, mais, a oportunidade de menosprezá-lo! Nestes últimos dias pudera cumprir à risca a sua determinação, e como quer que fosse, não mais se sentiu humilhado. Quanto tempo ainda levaria para chegar o momento em que pudesse cuidar da esposa? Esperava em Deus que fosse logo, porquanto o esforço para recalcar os seus passionais desejos era dos que nenhum homem podia sustentar por muito tempo. Aquele palminho de cara silencioso, com a imaculada e atraente pele de veludo;

aqueles

lábios

doces,

encurvados,

vermelhos

e

tentadores,

admiravelmente talhados, mas frios; e o extraordinário magnetismo de toda a sua pessoa, tornavam-na uma perigosíssima mulher. Os seus pensamentos, nesse instante, se voltaram para a visão de sua esposa com os cabelos soltos, que lhe fora dado contemplar naquela noite, em Dover. Lembrava-se de ter dito, certa vez, a Francis Markrute que paixões onipotentes constituíam meras criações literárias. Santo Deus! Ele próprio conhecera uma, naqueles sete dias. Naquela viagem de regresso da sua lua de mel, pensava ele não poder ser mais infeliz, mas, embora não o soubesse, aquela provação não passava de um simples início de tortura. Horas mais tormentosas o destino ainda lhe reservara.

Quanto a Zara, sentada em sua poltrona, parecia com disposição para a leitura. No entanto, quando Tristram olhou para a esposa, verificou tratar-se de puro fingimento, e que aqueles expressivos e sombrios olhos se sentiam perturbados. Por fim, após inúmeras e incômodas horas, alcançaram Calais e subiram a bordo. Tão logo ali chegaram, Zara de novo pareceu ansiosa e cheia de expectativa. Adiantando-se um bocadinho, pediu a Higgins verificar se não havia nenhum telegrama a ela endereçado e dirigido ao vapor. Não havia. E mais uma vez teve que dominar-se e mostrar-se serena, sentada em sua cabina. Tristram não queria levar além do que determinara a sua solicitude pela esposa. Decidira-se oferecer-lhe todo o conforto, e nesse sentido era bastante escrupuloso. Por isso mesmo é que logo a deixou na cabina, e durante toda a viagem permaneceu no convés. Ao descerem em Dover, evidenciou-se de novo a expectativa de Zara. Entretanto, mal acabavam de deixar a estação quando apareceu um telegrama pela janela. Tristram recebeu-o dum menino e não pôde refrear a curiosidade de saber quem o assinara. Cresceu-lhe a certeza em seu cérebro de tratar-se do "mesmo amaldiçoado homem!" Tristram observou o rosto da esposa, entregue à leitura do telegrama, e notou-lhe expressão de alívio. Zara parecia absolutamente alheia à presença do marido e este, embora não cuidasse de apreender o que estava escrito, e sim a assinatura do telegrama, leu — "Mimo". Mimo! Então este era o nome daquele bruto! Que deveria dizer ou pensar? Eles não eram realmente marido e mulher, e enquanto Zara não desonrasse o nome dos Tancreds, não lhe assistia motivo para questiúnculas ou queixas. Contudo, ele ardia de suspeita, ciúmes e sofrimento. Veio-lhe, então, ao pensamento aquilo que ouvira de Francis Markrute, na noite em que aquiescera ao casamento. Lembrou-se que achara impróprio

de um cavalheiro, nem honroso, fazer quaisquer perguntas, uma vez que concordara cegamente com a proposta do amigo e só lhe desejara a sobrinha para esposa. Lembrou-se, mais, de que Francis espontaneamente lhe dissera que a sobrinha fora uma esposa imaculada e uma filha devotada, e que se casara com um brutamontes, com quem vivera durante um ano. Conhecia perfeitamente o financista, e sabia que ele era, com toda sua sutil sagacidade, um homem de caráter de fina têmpera. Evidentemente, pois, havia o que quer que fosse de misterioso naquilo tudo que lhe fugia à compreensão. Mas, o que seria? Embora estivesse enraivecido e desconfiado, imaginava que o procedimento da esposa não era criminoso ou degradante. Viu-a magnificamente orgulhosa, e digna sob todos os aspectos. Entretanto, as mais nobres mulheres nem sempre podiam escapar às tricas de amor. Este pensamento fê-lo saltar subitamente, com grande espanto de Zara, que viu crescerem as veiazinhas do lado esquerdo de sua testa, e ali se reuniram em nó, uma peculiaridade, como as ferraduras dos Redgauntlets, que sempre se notava na raça dos Guiscard. Só então que sentiu como era tolo, a ponto de provocar um sofrimento para si mesmo e derivado de um fato imaginário, defronte e na presença daquele pedaço de mármore branco, sentado à sua frente em apático recolhimento, enquanto ele se torturava! Subitamente lhe ocorreu um pensamento que nunca tivera antes, quando lia tais coisas nos jornais: que um homem, loucamente apaixonado, podia matar o objeto de seu amor. Zara, confortada com o teor do telegrama "Bem melhor, hoje", tranquilamente

tornou

ao

pensamento

que

nestes

últimos

dias

inconscientemente a absorvia — o seu esposo! Estava perplexa quanto àquele semblante carregado. Seu nobre e bem proporcionado rosto parecia como que de pedra esculpida. Precisamente sob um ponto abstrato, e artístico, de si para consigo confessava que o admirava e gostava imenso do tipo. Era mais fino do que qualquer outra raça poderia produzir e Zara sentia-se contente por ser meio inglesa. As linhas eram ao mesmo tempo delicadas e bem acentuadas, os ossos bem proporcionados e o todo dava a impressão de soberba saúde e vigor de atleta.

Os moços gregos, que corriam no Gymnasium de Atenas, deviam ser modelados por aquele padrão, pensava ela. De repente, mau grado seu, viu-se presa de desconhecida emoção. Se naquele instante ele a tomasse em seus braços e a beijasse, em vez de ali estar sentado, a olhar vagamente, o resto desta história jamais seria escrito. Entretanto, passou o momento, e Zara sufocou o que quer que sentisse quanto ao amanhecer daquele amor, ao passo que o marido dominava o seu desassossego no tocante à suspeita de infidelidade. E ambos saltaram do trem em Charing Cross, de regresso de sua interessantíssima viagem de núpcias.

CAPÍTULO XXI UM MISTO DE NEVE E DE CHAMAS

A antena moral de Francis Markrute que lhe constituía motivo de grande orgulho, informou-o que as coisas entre marido e mulher não caminhavam como era de esperar-se. Naquela curta semana Zara parecia ter adquirido uns ares de soberana dignidade, em que influíam as magníficas roupas que trajava. Quanto a Tristram, a sua fisionomia era austera e parecia menos jovial e mais altivo do que nunca. Além disso, ambos se mostravam tão mortalmente frios! Frios, e sem sombra de duvida, constrangidos. Não estava nos hábitos do financista duvidar de si mesmo ou das suas deduções, baseadas em profundos raciocínios. Não. Se alguma coisa havia de errado naquilo tudo, ou se ainda não evolucionara, era questão de tempo. Não era causa para inquietar-se, nem havia necessidade do deus ex machina. Impossível, moral e fisicamente, que dois seres da espécie humana tão magnificamente desenvolvidos, pudessem viver juntos, ligados pelos sagrados liames e não aprendessem a amar-se. Não obstante, como amigo e tio dos dois, cumpria-lhe ser diligente e fazer com que as coisas caminhassem sobre rodas bem engraxadas. Com

esse

propósito,

durante

o

jantar

empenhou-se

em

viva

conversação. O jantar, à trois. Contou-lhes tudo o que se passara durante aquela semana. “Somente uma semana?” marido e mulher pensaram. Corria o boato de que no próximo verão se verificaria uma eleição geral, e que os radicais planejavam arruinar o pais. Mas como não houvesse sessões no outono, como de costume o partido a que tinham a honra de pertencer estava meio adormecido. Tio e sobrinho logo se aprofundaram em discussões políticas, e Zara, depois de comer o seu pêssego, disse-lhes que os deixaria entregues à sua palestra e desejou-lhes uma "boa noite", com o pretexto de cansaço. — Pois não, minha sobrinha — concordou o tio levantando-se e — coisa

que não mais fizera depois da infância de Zara — beijou-a na testa — Sim, de fato você precisa descansar. Nós dois amanhã queremos fazer-lhe justiça, hein, Tristram? Desejamos que nossa lady desperte com a sua melhor aparência. Zara entreabriu os lábios num ligeiro sorriso, no instante em que cruzava a porta. — Por Deus, meu caro rapaz — continuou o financista — creio nunca ter reparado na estonteadora beleza de minha sobrinha. Ela se parece com uma exótica e maravilhosa flor, todo um misto de neve e de chamas. — Por certo que de neve, mas… onde estão as chamas? — indagou Tristram, inconsciente do seu cinismo. Francis. Markrute olhou-o com o canto dos olhos. Então, a sobrinha se portara friamente com o marido em Paris! Mas não estava em seu temperamento interferir. Tratava-se de mera questão de tempo. Afinal de contas, uma semana não era o suficiente para que se acostumasse com um perfeito estrangeiro. Ambos se dirigiram, novamente, para a biblioteca, e ali se puseram a fumar e a conversar de novo sobre política, durante cerca de uma hora. Por fim, Francis Markrute observou delicadamente ao novo sobrinho: — Dentro de um ano, pouco mais ou menos, quando vocês tiverem um filho, eu lhe darei alguns documentos, meu caro rapaz, para você ler, e que dizem respeito à linhagem do filho pelo lado materno. Você há-de interessarse por isso, porquanto se trata de uma questão de sangue e lhe mostra a perfeita igualdade de linhagem. Dentro de um ano, pouco mais ou menos, quando Zara tiver um filho! Sob todos os aspectos, aquela possibilidade de que Zara o privara pelo seu orgulho e desdém, embora ainda não lhe ocorresse, talvez fosse a mais cruel de todas. Ele não teria um filho! Ergueu-se subitamente e atirou na lareira o charuto ainda inacabado, gesto que lhe caraterizava os momentos de grande emoção, e respondeu em voz que o financista reconhecia forçada:

— É uma grande bondade de sua parte. Algum dia, talvez tê-lo-ei inserto na árvore de minha família. Mas, já é tempo de retirar-me. Preciso descansar os meus olhos, e preparar-me para a caçada. Cansei-me demasiado nestes últimos dias. Francis Markrute acompanhou-o pelo corredor até o primeiro andar, e, quando ali já se achavam, aos ouvidos de ambos chegaram as notas da Chanson Triste, tocada por Zara. Como? Então não fora deitar-se? — Santo Deus! — exclamou Tristram — Não sei bem por que, mas os céus bem que poderiam evitar que ela tocasse essa música. Nesse instante, os dois se entreolharam com espanto e inquietação. — Suba e leve-a para a cama — sugeriu o financista — Talvez ela não goste de ficar sozinha por tanto tempo. Tristram subiu as escadas, rindo-se amargamente de si mesmo. Não se aproximou da sala de visitas, onde estava a esposa, e dirigiu-se diretamente para o quarto que lhe fora destinado. Convulsionava-o a selvagem sensação de reconhecer-se humilhado e cheio de impotente raiva. No dia seguinte, o expresso que, por causa deles, iria parar na pequena estação de Tylling Green, donde seguiriam para Montfichet, partiu às duas horas. O financista expediu ordens para almoçarem às onze, antes que partissem. Ele próprio permaneceu na cidade durante uma hora, para ler a sua correspondência, e voltou às dez horas. Surpreendeu-o bastante, ao perguntar a Turner se lorde e lady Tancred fizeram o seu desjejum, saber que a senhora saira às nove e meia e que lorde Tancred dera ordens ao seu criado para não perturbá-lo em seu quarto até às dez e meia. — Faça com que eles tenham tudo o que desejarem — recomendou-lhe o amo ao sair. Mas quando tomou o automóvel, dirigindo-se para a cidade, ficou um tanto pensativo. Que mulherzinha orgulhosa! Pelo jeito, ainda insiste em observar estritamente as bases do ajuste! Se isso continuar, precisamos deixá-la enciumada. É um remédio infalível para o seu capricho. Entretanto, nesse instante Zara não se preocupava com tais coisas.

Ansiosamente

esperava

por

Mimo no

costumeiro

lugar

em

que

se

encontravam, no mausoléu de Halicarnassus, no Museu Britânico. Mimo estava atrasado, e devia trazer-lhe notícias novas de Mirko. Zara não recebera nenhuma resposta ao telegrama que enviara a Mrs. Morley, quando em Paris, e era muito tarde para telegrafar-lhe de novo, na noite passada. Por certo Mrs. Morley recebera o telegrama, porquanto Mimo estava de posse do que lhe enviara. Mais tarde — pensava Zara — quando talvez se tornasse mais amiga do marido, conseguiria que o tio lhe permitisse falar-lhe a respeito de Mirko. Tudo então se tornaria bastante simples, mesmo porque, desde que todos os documentos estavam assinados e não podiam ser alterados, qual a razão de conservar-se aquele mistério? Lembrava-se, no entanto, do que lhe dissera o tio na véspera do casamento: — Peço-lhe não tocar, a seu marido, no passo errado de sua mãe, nem falar-lhe desse Sykypri, enquanto a isso não se vir forçada. E ela concordou. — Porque — raciocinava Francis Markrute para si mesmo — se o menino morrer, como Morley pensa, não há nenhum motivo para Tristram ficar ciente de toda esta miséria. A desgraça de sua adorada irmã sempre o entristecia. Finalmente Mimo chegou, com a fisionomia ansiosa e aspecto macilento, perdido aquele donaire que o caraterizava. De fato, recebera aquela manhã o telegrama, e reendereçara-o, como era obrigado, em nome da enteada. Daí a confusão da resposta. Mrs. Morley respondera para a rua Neville, com grande espanto de Zara, desconfiada de que ela não conhecesse bem Londres, a ponto de telegrafar-lhe para um lugar inadequado para lady Tancred residir. Mas Mirko estava melhor, muito melhor. O ataque mais uma vez durara pouco tempo. Tranquilizada, já se dispunha a partir quando se lembrou de um dos motivos que ali a trouxera — dar a Mimo algum dinheiro, em notas que lhe reservara. Mas, conhecendo o caráter do pobre gentleman, delicadamente se propôs comprar O Apache. Tinha certeza de que, se não arranjasse um pretexto para dar-lhe o dinheiro, agora que não mais se tratava

do bem estar de Mirko, ele não o aceitaria. Fraquezas de certas criaturas, educadas com grande sentimentalismo e desabituadas a coisas práticas. Mimo estava um tanto desconfiado da transação, e Zara se viu obrigada a desfazer-lhe as dúvidas e a lisonjeá-lo, dizendo que há muito tempo deveria ter compreendido o quanto intensamente ela lhe admirava aquele trabalho! Agora que estava rica, constituiria um seu grande prazer tê-lo para si. Com tais palavras Mimo se curvou ao desejo de Zara e despediram-se, tendo combinado que, se viesse mais algum telegrama, fosse endereçado para a rua Neville, afim de que o pobre pai tivesse notícias do filho, e depois reendereçado para onde ela se encontrasse. Passava das onze e meia, e Zara deu-se pressa em voltar para Park Lane. No instante em que chegava à porta, o marido descia as escadas. — Madrugou hoje, milady — disse ao acaso. Como houvesse criados no hall, Zara achou melhor acompanhá-lo até a biblioteca. Tristram ficou um tanto surpreso e ansiava por indagar onde ela esteve. Mas a esposa não tocou no assunto, e ao invés perguntou-lhe: — A que horas chegaremos à casa de seu tio? Às cinco ou às seis? — A viagem durará três horas. Chegaremos mais ou menos às cinco. A propósito, Zara, eu desejava que você pusesse o casaco de marta. Penso que lhe assenta melhor do que o chinchila, que usou quando partimos daqui. Ligeiro rubor assomou àquelas faces de gardênia. Esta era a primeira vez que lhe ouvia falar de roupas. Para ocultar a repentina e estranha emoção que sentia, respondeu-lhe friamente: — Sim, pretendo vesti-lo. Sempre detestei aquele casaco de chinchila. Tristram voltou-se para a janela, mais uma vez magoado com as palavras da esposa. O casaco de chinchila ela o usara na viagem de núpcias, e esse era certamente o motivo por que o detestava. Tão logo lhe escaparam aquelas palavras, Zara ficou arrependida. Qual a razão por que vivia a ofendê-lo? Ignorava fizesse isso parte do seu instinto de defesa, que sempre lhe caracterizava todos os momentos de sua vida. Desta feita, no entanto, o seu inconsciente procedimento destinara-se a esconder a

nova emoção que crescia em seu íntimo, e assim defender-se. Tristram continuou com as costas voltadas para a esposa, a olhar pela janela. Passados alguns minutos ela deixou-o. Na estação eles se encontraram com Jimmy Danvers, e com um Mr., e Mrs. Harcourt, com sua irmã Miss Opie, e vários homens. Os convidados restantes, incluindo Mary e Emilia, seguiram pelo trem das onze, disse-lhes Jimmy. O casal Harcourt e sua irmã, bem como as pessoas restantes, todos eram amigos íntimos de Tristram. Mostraram-se satisfeitos por encontrá-lo, e puseram-se a troçar e sentiam-se bastante alegres. Zara notou que o próprio tio compartilhava da alegria geral do salão, e somente ela parecia estranha àquele meio e conservava-se fria. Quanto a Tristram, parecia ter-se transformado. Já não era mais aquela pessoa taciturna, constrangida, de uma semana atrás: sentado perto de Mrs. Harcourt, pôs-se a gracejar e inclinar-se para dizer-lhe coisas aos ouvidos. Zara, sentada numa poltrona, estava um tanto afastada do grupo. Mas um tipo de beleza tão provocante não podia deixar os homens frios, indiferentes aos seus encantos, e não demorou que Jimmy Danvers e um coronel Lowerby, conhecido pelo nome de Corvo, dela se aproximassem e lhe constituíssem um pequeno séquito. Entretanto, era-lhe difícil afrouxar as suas maneiras, mostrar-se espirituosa e esquecer aqueles seus modos soberanos, de tão habituada durante toda a sua miserável existência. Até aqui, os homens e, não raro, as próprias mulheres deviam ser conservados a distância, porque de um jeito ou de outro seriam capazes de mordê-la. Mais tarde, quando os viajantes se acomodaram, uns para jogar bridge e outros para dormir, Jimmy Danvers e o coronel Lowerby foram fumar num pequeno compartimento do comboio. — Então, Corvo, o que pensa da esposa de Tristram? Não a acha maravilhosa? Mas… Josafá! não lhe parece friamente mortal? — Curiosíssimo o tipo — crocitou o Corvo — Talvez, debaixo daquela

frieza, se oculte um pouco do Vesúvio. — Sim, justamente isso é que a gente pensa ao contemplá-la — concordou Jimmy, soltando baforadas de fumaça — Mas ela conserva o tempo todo a crosta por cima, e as lavas daquele vulcão não encontram oportunidade para sair! — Não me parece uma tola — continuou o Corvo — Tem uns ares tempestuosos, mas… vale a pena esperar que passe a borrasca. — O pobre do Tristram! Creio que ainda não provou o gosto do Paraíso com esta sua huri, não acha? Quando nos encontramos na plataforma, antes que o reanimássemos um pouquinho, dou-lhe minha palavra que ele parecia tão taciturno como uma coruja. Quanto à esposa, parece um iceberg o tempo todo. Ainda não a vi um pouco mais aquecida. — Tristram está apaixonadíssimo — rosnou o Corvo. — Creio que é por causa da apatia da mulher, embora não saiba como você percebeu isso. Você não esteve no casamento, Corvo, e a coisa não é fácil de verificar-se. O Corvo riu-se, riu-se com uma de suas crocitantes, cínicas risadas, tão expressivas para sua querida amiga lady Anningford. — Não estive mesmo. — Bem, mas diga-me… o que realmente pensa dessa estrangeira? — continuou Jimmy — Como sabe servi de bestman no casamento e, de certo modo, sou responsável se for intenção da mulher cavar a infelicidade do pobre rapaz. — Também ela é infeliz — afirmou o Corvo — E por ser infeliz é que é tão fria. Faz-me lembrar de um terrier que comprei, quando era rapaz, de um brutal vendedor de cães. O terrier arreganhava para quem quer que dele se aproximasse, por não saber se ia ou não levar alguns pontapés. A força do hábito, como sabe. — Então? — indagou Jimmy que, como já se disse, era de compreensão tardia. — Após um ano comigo, o terrier tornou-se o mais fiel e o mais gentil

cão que possuí. Criaturas dessa espécie necessitam de oceanos de carícias. Creio que Tristram ainda não compreendeu isso. — Ora essa! Como é que uma pessoa, que sempre teve ao seu dispor um rio de dinheiro — sobrinha de Markrute, você sabe! — e elevada posição pode ser comparada a um cachorro? Você está devaneando, Corvo! — De fato não se preocupe com o que eu disse, Jimmy. Faça o juízo que lhe parecer melhor. Você pediu a minha opinião e, como sou um velho amigo da família, dei-lha. O tempo mostrará. — Lady Highford também vai a Montfichet — observou Jimmy, depois de curta pausa — Ela não gosta de tornar as coisas fáceis para ninguém. — Como assim? Por que foi convidada? — indagou o Corvo em voz de espanto. — Ethelrida convidou-a em Cowes, quando todo o mundo supunha que o seu namoro com Tristram estivesse firme. Creio que o duque e a filha não acharam jeito de "dar o fora". Nesse momento ambos os homens se voltaram para a porta, pois que ali aparecera a cabeça de Tristram. — Chegaremos dentro de cinco minutos, rapazes — disse ele. De fato, não demorou que o trem parasse na estaçãozinha de Tylling Green onde desligaram o carro especial. O expresso seguiu para King's Lynn. Automóveis e um ônibus ali se achavam bem como o confortável cupê de lady Ethelrida — especialmente para transportar o jovem par. Com toda certeza, bondosamente pensou lady Ethelrida — os primos desejariam trocar algumas palavras a sós, antes de chegarem. Entretanto nenhum dos dois estava ansiando por este tête-à-tête. Logo que entraram no cupê, este partiu. Como o seu motor fosse potentíssimo, não demorou que se adiantasse aos demais automóveis, e os recém-casados foram os primeiros a chegar, conforme calcularam os seus hóspedes. Tristram teve o prazer de apresentar a esposa aos que ali se achavam tomando chá, sem as interrupções dos cumprimentos das pessoas restantes. Zara sentia-se excitada. Começava a verificar que esta gente inglesa era

da mesma classe do seu falecido pai, e não criaturas para as quais a gente devia andar prevenida até que se conhecesse se eram ou não fingidas ou patifes. A este pensamento ela respirou mais livremente e a expressão sombria de pantera desapareceu dos seus olhos. Não se sentia nervosa, como imaginava, e sim bastante excitada e esgotada. Tristram, de sua parte, teria pedido aos céus que Ethelrida não se lembrasse de mandar o cupê para esperá-los. Teve que suportar a terrível tentação e resistir àquele encanto, sozinho ao lado da esposa e durante um trajeto de cinco milhas em meio da poeira da tarde. Ele apertou as mãos debaixo da manta de viagem, e afastouse o mais que pôde de Zara, que o olhou um tanto admirada e um bocadinho tímida porque o marido se mostrava tão sério. — Espero que me oriente quanto a qualquer gesto especial de minha parte — disse-lhe Zara — Como sabe, só estive uma vez aqui na Inglaterra e meu tio deu-me a entender que os costumes locais são diferentes dos de outros países. Tristram sentiu que não podia volver o olhar para a esposa de tão encantado com a ternura de sua voz. Além disso, ainda não se esquecera da mágoa que ela lhe causara naquela história do casaco de chinchila. Se afrouxasse nos modos por que a tratava, era bem possível que recebesse nova ofensa. Por isso, continuou a olhar à sua frente, e respondeu-lhe sem alteração na voz: — Espero que há-de agir com a dignidade que lhe é peculiar, na certeza de que todos cuidarão de obsequiá-la e tornar-lhe agradável a sua permanência entre os meus. Certamente meu tio há-de querer mostrar-lhe a sua afeição, e não deve sentir-se enfadada com isso. Zara entreabriu os lábios num sorriso quando respondia: — Não, não me sentirei nem um pouquinho enfadada — do canto dos seus olhos, ele notou aquele sorriso e, mais uma vez, ficou tentado de apertála nos braços. Para dominar esse desejo, perguntou-lhe quase roucamente: — Não se incomoda que eu levante o vidro? — Ansiava por algum ar — estava simplesmente chocado. Zara admirouse mais e mais quanto ao que se passava com o marido e ambos se calaram

com um certo constrangimento, até que o cupê alcançou o portão do parque. Zara olhou

pela janelinha às espectrais árvores, quase

inteiramente

desprovidas de folhas pois que estavam no outono e cuidou de verificar que espécie de solar era aquele. O prédio era enorme e majestoso, pensava ela quando já o alcançavam. Caminhando com aqueles seus ares de imperatriz, e seguida do marido, finalmente chegaram à varanda recoberta de pinturas, onde estavam reunidos os que chegaram mais cedo, na ocasião tomando chá perto de uma grande lareira. O duque e lady Ethelrida foram ao seu encontro, e ambos beijaram Zara, sua formosa e nova parenta. Lady Ethelrida, tomando-a pelo braço, levou-a até onde se achavam os outros, enquanto lhe murmurava: — Linda, encantadora criatura! Toda a minha família e Montfichet lhe apresentam os seus melhores e mais ardentes votos de boas-vindas. Nesse instante, Zara sentiu uma espécie de nó na garganta. Como, na sua ignorância, fizera mau juízo de todos! Decidida a reparar a injustiça de seus pensamentos, adiantou-se com um sorriso nos lábios e foi apresentada aos que ali se achavam.

CAPÍTULO XXII OPINIÕES

GRANDE foi naquela noite o corre corre das senhoras por todos os quartos, antes que se vestissem para o jantar. Era um trocar de impressões a respeito da recém-casada que não acabava mais. As opiniões, favoráveis na sua quase totalidade. Unânimes quanto à beleza e sedução; divididas quanto ao seu temperamento. Impressão adversa, feroz e venenosa somente num estreito, num pequenino coração. Emilia, Mary e lady Betty Burns fizeram uma rodinha no quarto da última. — Achamo-la um encanto — disse Emilia — mas ainda não a conhecemos bem. É um tanto austera e nos espanta um bocadinho. Talvez seja timidez. Que acha, Betty? — Creio que se parece com as heroínas de certos livros que mamãe não me deixa ler e que levo escondido ao meu quarto, quando vou deitar-me. Não acha, Mary? Principalmente aquele que lhe dei emprestado. Emocionantíssimo, misteriosamente trágico. Lembra-se? Aquela mulher que matou o marido e fugiu com o conde italiano… Doutro mundo! — Credo, Betty! — exclamou Emilia — Que coisa pavorosa! E você pensa que nossa cunhada se pareça com essa mulher? — Realmente não sei — respondeu lady Betty, que contava dezenove anos e escrevia lúgubres melodramas, com desperdício de muito papel e desespero de sua mãe — Não sei. Pintei uma das minhas heroínas, na última peça que escrevi, justamente com aqueles olhos passionais e ela apunhalou o vilão no segundo ato! — Sim, mas Zara não está representando, e nem há nenhum vilão. Afinal de contas, Betty, na vida real mulher alguma tem tragédias — retorquiu Mary, que sentia cumpria-lhe defender a cunhada.

Lady Betty sacudiu a alourada cabeça, e continuou em tom de profecia e com ares de profunda sabedoria, o que positivamente assustou as outras mocinhas: — Guardem bem as minhas palavras vocês duas: antes que termine o ano, eles terão a sua tragédia. E vou colocá-la numa das minhas futuras peças. Com esta pavorosa ameaça soando em seus ouvidos, as duas irmãs de Tristram encaminharam-se sobressaltadas para o seu quarto. — Betty é extraordinária, não acha, querida? — indagou Mary — Mas, Emilia, não pense que seja verdade o que nos disse. Mamãe ficaria tão horrorizada se acontecesse em nossa família qualquer dessas cenas que Betty põe nas suas peças… De mais a mais, Tristram jamais consentiria tal coisa. — Por certo que não, meu benzinho — respondeu Emilia — Mas, para dizer a verdade, Zara tem uns ares misteriosos e… e… Tristram parece bastante mudado… Vi-o um tanto sarcástico, uma ou duas vezes… Nesse momento chegava a criada de ambas, que pingou o ponto final em suas confidencias. — É a niais extraordinária criatura que jamais vi, Ethelrida — confessava lady Anningford no mesmo instante, quando as duas paravam à porta do seu quarto, e lady Thornby e a jovem condessa de Melton delas se apartavam — Ela é diabolicamente linda e sedutora, mas noto qualquer coisa de esquisito, de misterioso, que me intriga. Não, não creio que seja perversa nem um pouquinho. Os seus olhos são como tempestuosas nuvens. Disseram-me que o primeiro marido era um brutamontes. Não me lembro quem me disse isso, mas creio que foi na Embaixada. — Nenhuma de nós sabe muito a respeito dela — disse lady Ethelrida — mas tia Jane logo no principio nos disse para confiarmos no critério de Tristram, como você sabe orgulhosíssimo. Além disso, seu tio, Mr. Markrute, é tão distinto! Mas, Anita… — Mas o que, querida? Tristram está loucamente apaixonado, não é verdade? — É sim. Mas, Anita… realmente você pensa que Tristram não é feliz?

Quando está calado, acho-o um tanto triste… — O Corvo viajou com eles no mesmo trem. Logo mais vou escutar-lhe a exata impressão sobre o casal, e depois do jantar lhe direi. O Corvo sempre é verdadeiro, Ethelrida. — Ela é tão sedutora… estou certa… para todo homem que a veja, Anita. Faço votos que lorde Elterton não comece com seus galanteios e deixe Tristram enciumado. Entretanto, nada direi. E ainda teremos Laura… Não lhe parece uma decisão de mau gosto ela ter insistido em vir? Anita, se pelos modos Laura quiser fazer das suas, você quer auxiliar-me a proteger Zara? Bem, já é tempo de nos vestirmos. Num outro quarto, Mrs. Harcout estava tagarelando com sua irmã e lady Highford. — Ela é simplesmente encantadora, Laura — observava Miss Opie — Os seus cabelos devem arrastar-se pelo chão quando soltos, e penteados não sugerem a mínima ideia disso; no rosto, não passa nem um pouquinho de pó de arroz. De propósito examinei-o de um lado da luz. E aqueles olhos! Josafá! como diz Jimmy Danvers. — O pobre do Tristram! — suspirava Laura sentimentalmente, ao passo que no seu íntimo confessava não gostar, nem um pouquinho, da "Menina" Opie — Acho-o bastante macambuzio para um recém-casado, não, Kate? — e Laura abaixou os olhos significativamente, como se pudesse dizer mais se quisesse — Mas, não há que admirar-se: o pobre rapaz detestava o casamento, e de repente se enroscou. Creio que esse tal Markrute tinha Tristram em seu poder. — Não diga isso! — insurgiu-se Mrs. Harcourt, que era mais simplória do que a irmã — Jimmy arregurou-me que lorde Tancred se apaixonou loucamente por ela. Essa a razão do casamento. — Jimmy sempre foi um bobo — retorquiu lady Highford. Quando as duas irmãs se dirigiam para o seu quarto, Lily Opie observou-lhe: — Kate, Laura Highford é uma detestável vampiro. Não acredito nem um pouquinho que Mr. Markrute tenha conservado Tristram em seu poder. Isso é

pura invencionice da vampiro, para justificar o seu desaponto. O duque jamais receberia Mr. Markrute aqui se tivesse a menor razão de queixa contra sua pessoa. E você bem sabe, queridinha, que é a única casa que existe na Inglaterra onde podemos hospedar-nos. Tristram aprontou-se logo para o jantar, mas ficou um tanto hesitante em bater no quarto da esposa. Se ela não mandasse dizer-lhe que estava pronta, ordenaria a Higgins que fosse perguntar à sua criada. Seus olhos brilhavam de orgulho pela esposa que possuía. De fato, ela excedera a toda expectativa. Jamais lhe passaria pela ideia que Zara pudesse ser tão graciosa, e nem podia conceber que ela condescendesse em falar tanto. Todos os seus velhos amigos estavam encantados com a nova lady Tancred e admiravam-na honestamente, exceto Arthur Elterton, cuja admiração ia além dos limites da conveniência. Esse seu arrebatamento pela esposa logo esmoreceu. Afinal de contas, não passava de uma simples manifestação exterior, quando na realidade ele nem tivera coragem de bater à sua porta! Desejava, agora, não ter dado ouvidos ao seu orgulho: aquele seu "últimatum", na noite de casamento, conservava-o escravizado às suas palavras. Não podia procurá-la de jeito nenhum e, de sua parte, Zara parecia não ter vontade de procurá-lo. Em ocorrências comuns, quando não estivessem em jogo os seus mais profundos sentimentos, saberia como ostentar um milhar de manhas para conquistar uma mulher e mesmo agradarlhe; saberia oferecer-lhe uma flor e mostrar-se hesitante depois que tivesse pronunciado o nome dela, e outras muitas e inúmeras coisinhas. Mas achavase em situação bastante delicada para não ser mais do que um homem verdadeiro, isto é, ferido pelo indiferentismo da esposa, desconfiado de si mesmo e amarrado, escravizado, à férrea cadeia do seu orgulho. Zara, do outro lado da porta, sentia-se quase feliz. Era a primeira noite em sua vida que se vestia sem a pesada carga de qualquer cuidado. Sua autoproteção e os seus instintos vigilantes por enquanto podiam descansar: os novos parentes eram de verdade — e não na aparência — tão gentis! A única pessoa que imediata e instintivamente lhe desagradou foi a lady Highford, que

logo ao primeiro encontro abriu a torneira das suas palavras e lhe disse uma ou duas amargas observações. Embora não compreendesse claramente ou literalmente o que lhe ouvira, Zara deduziu estar tratando com uma pessoa hostil. Quanto ao seu marido, Tristram… Saltava à vista que todos o apreciavam imensamente, desde o amável duque, até aquele homem velho, sentado perto da lareira. Como seria possível que todos gostassem de um homem, quando — e os pensamentos de Zara inconscientemente se voltaram para o "si" — ele fosse capaz de tamanha baixeza, casando-se com ela só por causa de dinheiro? Não seria possível um engano quanto ao juízo que fazia do marido? Na primeira oportunidade, iria perguntar ao tio. E embora soubesse que o financista somente lhe dissesse aquilo que julgasse conveniente, nesse pouco talvez estivesse a verdade de tudo. O jantar seria servido às oito e meia. Cumpria-lhe ser pontual, bem o sabia. Mas tudo o que havia em seu quarto era tão distinto, tão fino e tão de antanho, que lhe veio o desejo de examinar todo o encanto que a rodeava. Era um vasto aposento, como o que sua mãe tivera no sombrio castelo de Praga, mas cheio de coisinhas delicadas, agradáveis de se verem, além do grande, majestoso e dourado leito, que lhe despertara tamanha admiração. Intimamente concluiu que somente os ingleses sabiam como decorar os seus aposentos. Depois, levantou-se. Precisava vestir. Felizmente o seu cabelo estava mais ou menos arranjado, e não lhe tomaria muito tempo. — Milady está que é um sonho! — exclamou Henriette, quando acabou de aprontá-la. — Milorde vai ficar orgulhoso! — e ficou, de fato. Zara mandou Henriette bater no quarto do marido, no quarto que ficava no corredor e não pegado ao seu, precisamente no instante que soava a meia hora depois das oito. Por coincidência, nesse momento Tristram ordenava a Higgins fizesse o mesmo, no quarto da esposa. O seu espírito humorista, à vista do grotesco da situação, fê-lo rir-se amargamente. Ambos os criados com idêntico recado! Além disso, a ele é que cumpria lá estar, junto da esposa, ajudando-a a prender as suas joias, lidando com

aqueles cabelos, e talvez cobrindo de beijos estranhas porções dos seus ombros, quando a criada não estivesse olhando, ou acolcheteando e abotoando o seu vestido! Entretanto, tudo aquilo não passava de uma horrível farsa, e devia continuar. Depois, cuidaria da politica e seria um grande e bondoso senhor solarengo para os campônios de Wrayth. E assim viveria a sua solitária existência, e ninguém, ninguém saberia que cometera um pavoroso engano. Enquanto caminhavam ao longo do grande corredor, poucas foram as palavras que lhe disse sobre a sua magnífica aparência. Zara trajava um vestido de gaze azul-safira, e por única joia trazia o esplêndido broche, presente de casamento do duque. Aquilo era uma de suas singularidades e Tristram apreciou-lhe a delicada lembrança. Verdadeiramente, ele apreciou-a da cabeça aos pés, mas não deu nenhuma demonstração. Os convivas do duque eram mais ou menos pontuais e, depois de um silencio admirativo pela entrada de Zara, recomeçaram a conversar e a rir. Das mulheres, Laura Highford foi a única que chegou atrasada. Encaminhando-se ao longo da sala de jantar, no braço do velho duque, Zara sentiu que de certo modo voltava a um ambiente familiar, onde vinha repousar depois de longos anos de luta. Lady Ethelrida ali apareceu pelo braço de Tristram, pois que nesta primeira noite tudo devia obedecer à etiqueta. À sua esquerda sentou-se o financista. Pelo jeito, estavam reservadas as honras da noite aos novos parentes. Francis Markrute vagarosamente passeava o olhar pela mesa. Com a perfeição do seu gosto notou que tudo ali estava disposto magnificamente, e sentiu justificarem-se os seus planos. Lady Anningford sentou-se defronte de Tristram. Enquanto volta e meia ambos trocavam algumas palavras, Ethelrida tinha bastante tempo, sem descurar do primo, de conversar com o outro dos seus interessantes hóspedes. — Estou satisfeita porque o senhor gosta do nosso velho solar, Mr.

Markrute. Amanhã, vou mostrar-lhe alguns dos meus lugares prediletos. Não lhe parece triste que, no dizer de muita gente, todas estas nossas velhas coisas tendem a desaparecer e a serem divididas? — Será uma verdadeira desgraça para a Inglaterra quando chegar esse dia. Se o seu povo simplesmente pudesse estudar a evolução e a significação das coisas, não existiria nenhuma organização absurda e detestável como essa a que se refere. A lei imutável é que ninguém se assegura uma posição, a menos que esse alguém, seja homem ou mulher, não tenha nascido para isso. Em não existindo harmonia, nada perdura. Porque a Inglaterra neste momento está fora da harmonia é que se verificam tais agitações. A senhora e a sua estirpe foram talhadas para a posição que sustentam há centenas de anos, e essa a razão de ainda aí permanecerem; e sua influência, bem como a própria raça, tornaram a Inglaterra tão poderosa. — Nesse caso, como o senhor explica que todas as coisas agora se acham deslocadas? — indagou lady Ethelrida — Quanto a meu pai e a mim mesma e, pelo que sei, quanto a outras pessoas, permanecemos como somos e cuidamos cada um de cumprir o nosso dever para com o nosso semelhante, da melhor maneira possível. — Acaso a senhora já leu as leis de Licurgo, lady Ethelrida? Como ela sacudisse a brilhante e fina cabeça em gesto negativo, o financista prosseguiu: — Bem merecem ser lidas quando a senhora tiver vagar. Um imenso valor repousa sobre a disciplina. Enquanto essas leis foram observadas na sua férrea simplicidade, os espartanos constituíram a maravilha que todo o mundo sabe. Mas, após a conquista de Atenas, quando todos foram presos da luxúria e cada general queria alguma coisa para si e se esqueceu da própria dignidade, sua disciplina ficou em frangalhos. Tudo isso, aplicado de maneira moderna, é o que está sucedendo na Inglaterra. Todas as classes estão se esquecendo de suas disciplinas e, sem que se ajustem ao que aspirem, esforçam-se por agarrar no que pertence a outra classe. E o resultado é que tudo está apodrecido, à mercê de um sentimentalismo asqueroso. — É verdade — concordou lady Ethelrida, bastante interessada.

— Licurgo foi direto à raiz das coisas — prosseguiu o financista — Cuidou da saúde moral e física do seu povo, e implacavelmente eliminou os incapazes. O contrário do que se dá modernamente, em que por um verdadeiro contra-senso se encoraja a ciência a conservar os pais em perspectiva, para que a futura geração seja a mais doentia possível. O ponto de vista espartano consistia em procurar-se no indivíduo o equilíbrio moral, o equilíbrio físico e a proporção. Não lhes era permitido competirem nos jogos se não possuíssem esses três predicados. A lição que se deduz é que, para o bem público, quem não estiver na altura de qualquer cometimento, a ele não deve aspirar. Mas se estiver em condições e não o conseguir, assiste-lhe o direito de clamar. — Sim, compreendo — disse lady Ethelrida — Mas, o que o senhor quis dizer, afirmando que cada classe tenta agarrar naquilo que pertence a outra? Refere-se à classe imediatamente superior? Ou ao quê? Pergunto-lhe isto porque quanto a nós, por exemplo, tecnicamente falando, se não agarramos no que é do rei, quem mais podemos tirar? O financista sorriu. —

De propósito eu disse outra classe, em vez de uma classe superior,

por esta razão: um certo e sempre crescente número de indivíduos de sua própria classe, se assim posso dizer, estão agarrando, — do rei por certo que não, mas de todos os outros da classe inferior, em maneira e moral, e ausência de tênue e ausência de orgulho — em coisas para as quais sua classe não foi ajustada. Tais indivíduos têm os seus antigos e próprios vícios, os quais somente ferem a cada indivíduo e não o grupo, tal qual é a mancha que pôde estragar uma porção da maquinaria de uma oficina, mas não lhe entravará o seu poder de trabalho como se a gente lhe atirasse um punhadinho de areia. O que eles agora põem na máquina é areia. E as classes médias estão agarrando naquilo que acreditam ser a nobreza e ridículas pretensões quanto ao nascimento e estirpe, e se esquecem do trabalho honesto da classe de que surripiam tais coisas. De outro lado, as classes inferiores estão agarrando em tudo o que podem, mercê do lastimável rebaixamento das outras duas, e vivem a gritar que todos os homens são iguais. Se descermos a coisas práticas, encontramos o mestre de uma oficina,

por exemplo, saturado de ideias comunistas em abstrato, sobrecarregando o mais recente dos seus foguistas com trabalho que vai muito além da sua capacidade. A razão disso é que o mestre sabe que, se esse foguista o substituísse na oficina, a maquinaria ficaria parada. Os foguistas da vida precisam primeiro satisfazer aos mestres de oficinas antes de gritarem. Como lady Ethelrida parecesse concentrada com aquelas ideias e Francis Markrute fosse um individuo extravagante, a ponto de às vezes tratar de assuntos sérios com mulheres, ele prosseguiu sorrindo: — O único e realmente perfeito governo do mundo é o das abelhas e das formigas, porque formigas e abelhas estão sujeitas a implacável disciplina e a nenhum sentimentalismo, e cada individuo do grupo conhece o seu lugar! — Li alhures — observou lady Ethelrida — que o motivo determinante da queda da Grécia não foi, ao que diziam, o mau sistema de governo, e sim porque uma onda de mosquitos apareceu na pátria daqueles maravilhosos helenos e lhes trouxe a malária, enervando-os e tornando-os fracos. Por isso não puderam enfrentar os mais fortes povos do Norte. Quem sabe se a Inglaterra recebeu alguns mosquitos com malária moral, e os cientistas ainda não descobriram os meios adequados para extingui-los! Tristram, que ouviu as palavras da prima, interrompeu-a: — E não seria difícil dar o verdadeiro nome a esses mosquitos nocivos, hein, Francis? Alguns estão no Gabinete. E os três riram-se. Mas lady Ethelrida queria ouvir alguma coisa mais do seu vizinho da esquerda. — Logo, pelas suas palavras, deduz-se que devemos aspirar a estabelecer condições, de sorte que cada indivíduo tenha a possibilidade — prática e não teórica — de ajustar-se àquilo que aspira. Não é isso? — Em resumo, é isso mesmo, querida lady — respondeu Francis Markrute. Durante um minuto ele olhou de fito nos olhos de lady Ethelrida, com tamanho respeito e tão intensa admiração, que ela desviou o seu rosto.

CAPÍTULO XXIII A VAMPIRO

FINDO o jantar, Zara dirigiu-se para a sala de visitas do solar. Ali também vieram ter outras senhoras, entre as quais lady Highford, que se mostrava tão divertida e tão graciosa com os seus amigos! Segundo ela própria dissera, assistia-lhe o direito de sentar-se perto de Zara. — O seu marido e eu fomos amigos velhos e tão íntimos! — acrescentou — E que coisa deliciosa pensar-se que ele estava em condições de reabrir Wrayth! Sua mãe, a querida lady Tancred, sentia-se tão feliz! Zara limitou-se a voltar-lhe polidamente o olhar. Que mulher, aquela! Já se encontrara com muitas da quadrilha, mormente em Monte Cario e em outras classes e raças. Todas da espécie que agem arriscando-se o menos possível, e que não raro se apossam do dinheiro de outrem. — Nunca o meu marido fez a menor referência à senhora — continuou lady Highford depois de um silêncio em que se pusera a coordenar uma grande quantidade de pensamentos vitriólicos — Talvez tenha estado ausente da Inglaterra por algum tempo, não é verdade? Nesse instante lady Anningford murmurou para Ethelrida: — É escusado aqui estarmos para defendê-la, querida. Por si mesma é capaz de melhor e maior defesa! E as duas se encaminharam para o grupo das moças. Mas no fim da palestra, embora Zara usasse o seu método de silêncio em considerável grau, e a tornasse artista em rancorezinhos, conseguiu deixar atrás de si algumas ferroadas bem agudas. Era uma catedrática em matéria de indiretas. E assim foi que, quando os homens ali apareceram, e Tristram, sem recear coisíssima alguma, propositadamente procurou Laura e com ela se sentou num distante sofá, Zara repentinamente sentiu qualquer coisa desagradável em seu coração. Notou que desejava vigiá-los e, pouco importa o

que dissessem dela, sua atenção se voltava para o distante sofá, numa indagação muda e inconsciente e com certo desassossego. Laura era ladina como ninguém. Já sentira, com toda a esperteza das mulheres de sua marca, que Tristram era realmente infeliz, amasse ou não esta detestável e formosíssima viúva. Ali estava a sua oportunidade, e devia fazer uso, não de censuras, mas de simpatia e, se possível, inocular-lhe algum veneno no coração com respeito à esposa. — Tristram meu caro rapaz, por que não me contou? Pois não sabia que havia de deliciar-me com tudo o que lhe agradasse? — e Laura olhou para baixo e suspirou. — Sempre tornei meu prazer compreendê-lo e promover tudo o que me parecesse fosse para o seu bem. De tão espantado com essa atitude, Tristram se esqueceu de lembrar as constantes cenas e censuras, e os miseráveis e pequenos egoísmos de que fora vitima durante o ano de sua… amizade… Em todo caso, sentiu-se de certo modo confortado. Ali estava alguém que parecia devotar-se-lhe, uma vez que a esposa disso não cuidava. — Você, Laura, é muito gentil. — E agora quero que me diga se realmente é feliz, Tristram — prosseguiu a vampiro, articulando bem as sílabas do seu nome — Sua esposa é tão encantadora, mas parece tão fria! E bem sei, querido… — outra hesitação — bem sei que você não gosta de mulheres frias. — Deixemos de parte minha esposa, Laura. Diga-me o que você está fazendo. Deixe-me lembrar… quando é que a vi a última vez? Em junho? E o veneno começou a ferver na glândula excretora de Laura. Pois ele nem se lembrava do mês em que se avistaram pela última vez! Foi em julho, depois da competição entre os colégios de Eton de Harrow! — Sim, foi em junho — concordou ela tristemente, voltando os olhos para a biqueira dos sapatos — E você devia. ter-me contado, Tristram. Foi um choque horrível! Cheguei a adoecer seriamente. Possivelmente você já sabia que ia casar-se e com toda certeza já estava comprometido!…

Tristram não disse palavra. Como contar-lhe a verdade? — Oh, não falemos dessas coisas, Laura. Esqueçamo-nos desses velhos tempos e recomecemos a nossa amizade diferentemente. Estou certo que sempre a tive como boa amiga. Você foi… Não continuou. Sentia que tudo isso era uma grande mentira, e odiava falsear a verdade. — Certamente que fui, querido Tristram — assentiu Laura, simulando grande emoção. Do lugar em que se achava, esforçando-se para conversar com o duque, Zara notou que a mulher estremecia, e provocadoramente voltava o olhar para o chão. Notou mais, que o marido esticou as longas pernas. Uma súbita e desconhecida sensação de ódio dela se apossou e daí por diante não escutou uma única silaba do que o duque lhe estava dizendo. Entretempo, lady Anningford se afastava para uma das janelas, e ali se sentara com o Corvo. — Vai tudo bem, Corvo? — indagou. Uma das peculiaridades do Corvo era apanhar no ar o que ela lhe dizia, tal qual se verificava com lady Ethelrida e o pai. Essa a razão por que não perguntou — "O quê?" — Irá… algum dia… creio eu. A menos que ambos não se afoguem na torrente das próprias emoções. — Não a acha misteriosa, Corvo? Tenho certeza de que tem alguma historia trágica. Já ouviu alguma coisa? — O marido foi assassinado por outro homem, numa briga, em Monte Cario. — Por causa dela? — Não conheço detalhes, mas creio que não. Pode estar certa, rainha Anita, que, quando uma mulher é tão silenciosa e altiva como lady Tancred parece, e suas maneiras são tão frias e perfeitamente seguras como ela própria, nada tem de que envergonhar-se ou sentir.

— Nesse caso, qual a razão da frieza entre os dois? Repare no Tristram, agora! Creio que está horrorizado de si mesmo, sentando-se daquele jeito e conversando com Laura. Não acha? — Uma vampiro, essa Laura — crocitou o Corvo — Está tentando consegui-lo de novo, agora com a nova encadernação. — Não posso atinar porque as mulheres não podem deixar em paz os maridos das outras. A maioria, umas criaturas detestáveis. — Natural instinto da caça — observou o coronel Lawerby. Mas lady Anningford ripostou: — Você, Corvo, não passa de um grande cínico! — E a senhora realmente vai mostrar-me, amanhã, os seus lugares prediletos, lady Ethelrida? — perguntava Francis Markrute à sua hóspede. O financista insidiosamente conseguira arredá-la de uma palestra, no grupo em que se achava e, sem que o percebesse lady Ethelrida foi levada a um canto, onde, sentados, poderiam conversar sem ser interrompidos — A gente julga uma pessoa pelo seu gosto em matéria de lugares — continuou ele. Lady Ethelrida geralmente nunca falava de si mesma. Não estava habituada a meter-se nessas eletrizantes palestras com os homens, iniciadas de um modo abstrato e depois personalizadas. Inúmeras moças modernas nisso encontravam grande deleite; para Lily Opie eram fonte de particular alegria. E porque pessoalmente o financista lhe agradasse, não sabia bem o motivo, é que a conversa agora tomava o rumo que ele desejava. — Os meus são muito simples. Receio que nada exista para o seu exame — disse Ethelrida gentilmente. — Isso mesmo é que pensei que fossem — depois de uma imperceptível pausa, em que, como no jantar, ousara olhar fundo nos seus olhos, acrescentou delicadamente: — …simples, imaculadas, adoráveis… Sempre pensei na senhora, lady Ethelrida, como a consubstanciação de coisas sãs, de coisas bem equilibradas, como a perfeição. A derradeira palavra do financista era quase uma carícia.

— Sou criatura comum — contraveio a filha do duque, admirada de não zangar-se com aquele homem. — Somente as coisas perfeitamente equilibradas, se apenas pudéssemos conhecê-las, atraem o olhar são — prosseguiu o financista, levantando-se — Todo cansaço, toda saciedade produzidos na emoção, no prazer em pessoas, lugares ou coisas, se derivam da falta de equilíbrio, e como tudo o que é simples, o equilíbrio é bem difícil de encontrar-se. — O senhor faz teorias de tudo, Mr. Markrute — disse lady Ethelrida, com os olhos resplandecentes. — Talvez, e vale a pena de quando em quando. Evita que percamos a cabeça. Lady Ethelrida não respondeu, e sentiu-se deliciosamente emocionada. Várias vezes dissera a sua amiga lady Anningford, quando em palestra, que não gostava de homens maduros. Desgostava-a vê-los com o cabelo rareando, o queixo criando papadas, e com seus pequenos hábitos e maneiras pronunciando-se cada vez mais. Entretanto, agora sentia-se profundamente interessada por um deles, que deveria andar pelos quarenta e cinco, se não fosse mais, embora tivesse bastante espesso e de cor natural, o seu cabelo louro, e o corpo fosse bem proporcionado e esbelto. Lady Ethelrida imaginou que devia mudar o assunto para coisas menos pessoais: — Zara está simplesmente encantadora. — De fato — respondeu o financista, com o ar de quem se desprende constrangido de um assunto emocionante, coisa que realmente sentiu — De fato, e espero que algum dia eles serão bastante felizes. — Por que o senhor diz algum dia? — indagou lady Ethelrida incontinenti — Espero que sejam felizes agora. — Muito não, quer-me parecer. Mas, lembra-se de nossa combinação no jantar? Serão idealmente felizes se os deixarmos sozinhos. E casualmente olhou para o lado em que Tristram se encontrava com Laura.

Ethelrida também olhou, seguindo-lhe a direção dos olhos. — Sim — disse ela — Bem que eu desejava não convidá-la… Lady Ethelrida deteve-se bruscamente e ficou toda ruborizada. Notou logo a conclusão que poderia ser tirada de suas palavras e, se Mr. Markrute nada soubesse a respeito do que houve entre o primo e lady Highford, que juízo faria? Como é que lhe foram escapar algumas palavras? — Isso… não tem importância — observou ele, com o seu fino sorriso — Será para o bem de minha sobrinha. Pensei em coisa muito diversa. O que fosse, não disse. E assim passou agradavelmente aquela noite. As mocinhas e os rapazes, mais

o

Corvo

e

o

"Menino"

Billy,

enfim,

toda

aquela

gente

sem

responsabilidade se reuniu num canto do aposento e se pôs a discutir sobre a realização de um piquenique na manhã seguinte, enquanto os homens iam à caça. No seu plano entrava Zara. Tristram foi barrado. — Você agora não passa de um velho homem casado, Tristram — caçoaram com ele — Mas lady Tancred é moça e irá conosco. — E tomarei conta dela! — acrescentou lorde Elterton, com ares sentimentais e profundo desgosto de Tristram. Ethelrida parecia ter convidado uns sujeitos cacetes, pensava ele, embora fossem os mesmos convidados do ano passado, quando se divertira tanto. — Lady Thornby, Molton e Lily Opie e irmã irão almoçar com os caçadores — observou gentilmente Laura — Como você, Tristram, vai ficar privado de sua encantadora esposa, far-lhe-ei companhia na caçada. Pouco depois todos trocaram um cordial "boa noite" e as senhoras se retiraram para os seus aposentos. Zara não mais podia pensar num ambiente de paz e de alegria, como a princípio imaginara ia desfrutar. Pela primeira vez em sua vida odiava uma mulher. E Tristram, seu marido, quando uma hora mais tarde subiu, pôs-se a conjeturar se a esposa estava ainda acordada. Laura se mostrara de uma delicadeza a toda prova e ele se sentiu grandemente confortado. Pobre Laura!

Pelo jeito, queria voltar aos dias de outrora, embora ela fosse um impossível no passado. Mas, como é que ele se pusera a devanear, mesmo durante cinco minutos, que pudessem voltar aos dias de outrora? Achara-a tão envelhecida! Além disso, notara agora que os cabelos lhe estavam caindo. Para disfarçar, ela os afofava. As mulheres certamente deviam possuir espessos e lindos cabelos. Então,

todo

o

pretenso

alívio

que

experimentara

desapareceu.

Aproximando-se da porta que o separava de sua idolatrada esposa, distendeu os braços e murmurou: — Amorzinho, se você ao menos compreendesse como eu a faria feliz! Se me permitisse!… Mas não posso forçar esta detestável porta por causa do meu juramento, mas como desejo… Pelo resto daquela noite, lorde Tancred mexeu-se e remexeu-se em sua cama, preso de terrível insônia.

CAPÍTULO XXIV O PIQUENIQUE

O dia seguinte amanheceu carrancudo, mas mesmo assim os caçadores — e entre eles Tristram — logo de madrugada deixaram o solar. Quanto aos outros hóspedes do duque, depois de alegremente fazerem o seu desjejum em pequenas mesas espalhadas na grande sala de jantar, reuniram-se em conclave para decidir como levar a efeito o projetado piquenique. — Com toda a certeza vai chover — disse Jimmy Danvers — Não adianta, portanto, tentarmos ir a Lynton Heights. Por que não almoçamos no grande hall da Torre de Montfichet? Até ali, não arriscamos apanhar chuva. — Muito bem, Jimmy — concordou o Corvo que, com lady Anningford, ia tomar conta do jovial bando — Não posso de jeito nenhum molhar-me, por causa do meu ombro reumático, e disseram-me que você e o "Menino" Billy são cozinheiros de primeira classe. — Nesse caso — interrompeu lady Betty entusiasmada — podemos cozinhar o nosso próprio almoço! Oh, que coisa deliciosa! Faremos fogo na grande lareira. Tio Corvo, o senhor é do outro mundo! — Vou expedir imediatas ordens nesse sentido — aquiesceu lady Ethelrida alegremente — Jimmy, que ideia brilhante, a sua! Ao meio dia tudo estava arranjado. Na noite anterior ficou assente que Mr. Markrute acompanharia o duque na caçada, bem como os restantes homens sérios. Entretanto, logo de manhã o astuto financista enviara um bilhetinho aos aposentos de sua excelência, dizendo que não queria passar como um desmancha-prazeres, mas que esperava ser desculpado porquanto estava aguardando um telegrama de suma importância concernente ao empréstimo turco, ao qual seria obrigado a responder em carta especial, e não sabia exatamente a que horas chegaria o telegrama. Lastimava sinceramente o fato, acrescentando extravagantemente que Sua Excelência devia convir que ele não passava de um simples homem de negócios!

Ao ler o bilhetinho, o duque sorriu à ideia dos inumeráveis milhões daquele homem, comparados com sua própria fortuna. E assim foi que, antes do meio-dia, quando o jovial bando estava pronto para seguir para o seu piquenique, Markrute, depois de ter escrito a carta e têla expedido para Londres como correspondência expressa, foi procurar lady Ethelrida onde estava certo encontrá-la. Manifestando-se surpreso porque ainda não haviam partido pediu-lhe licença para tomar parte no piquenique. Também ele era um excelente cozinheiro, assegurou-lhe, e poderia servir para alguma coisa. Ambos, então, riram-se gostosamente. Se lady Ethelrida pudesse ler a importante carta concernente ao novo empréstimo turco, veria que se tratava pura e simplesmente de um pedido urgente

para

o

Bumpus remeter,

ainda

aquela noite,

alguns livros

primorosamente encadernados. Antes de mais nada, as jovens ladies impuseram que ninguém levasse criados ao piquenique. Tudo, a partir do fogo, deveria ser feito por eles próprios. Jimmy, acompanhado de lady Betty, se incumbiria do transporte dos alimentos numa carrocinha puxada por um burro. A única coisa que consentiram lhes fosse oferecida eram as panelas, caçarolas e lenha para o fogo. Todas se mostravam alegres e encantadoras, metidas em roupas adequadas, geralmente vestidos curtos de lã e algodão. Zara, que caminhava modestamente ao lado de lorde Elterton, nunca assistira a um piquenique. Sentiu-se uma como estranha criança na primeira festa em que tomava parte. Antes de sair, de madrugada Tristram enviou-lhe um bilhete. Não podia confiar à criada ou ao criado um simples recado verbal! Isso fê-la rir-se amargamente. Eram algumas linhas: "Como me pediu que a orientasse sobre qualquer particularidade dos nossos costumes, recomendo-lhe que ponha um vestido grosseiro, espesso e curto, e sapatos bem fortes de sola grossa".

Estava assinado "Tancred" e não "Tristram". Zara estremeceu um bocadinho ao ler o bilhete e então perguntou pelo marido e soube que já descera. Cumpria-lhe fazer o seu desjejum mais tarde, com os que não participariam da caçada. Não o veria, então, por todo o dia. E aquela odiosa mulher, de quem era tão amigo, estaria a seu lado o dia todo! Tais pensamentos lhe cruzaram pela mente antes que desse tento disso. Cuidou de esquecê-los, furiosa consigo mesma. Afinal de contas, que lhe importava o que quer que o marido fizesse? Ademais, no instante em que ia descer, sorriu-lhe a esperança de desabar uma boa carga d'água, de modo que as cinco senhoras que pretendiam reunir-se aos caçadores, para o almoço às duas horas na casa da fazenda, não poderiam ir! No entanto, quando descera ao salão, onde algumas pessoas estavam escrevendo cartas naquela manhã, viu lady Highford levantar a cabeça e dizer em voz alta a Mrs. Harcourt: — Sim, verdadeiramente, deixamos para acabar a nossa discussão esta tarde, depois do almoço. O pobre Tristram! Teremos muito tempo para esperar, até que verifique a batida em Fulton; ficaremos sozinhas um tempão. Voltando-se, mostrou-se toda confusa à presença de Zara e começou a falar que não parava, muito mais verbosa do que a noite passada. Contudo, não logrou a satisfação de ver aquela lady nem um pouquinho aborrecida, muito embora, ao encaminhar-se para a extremidade do aposento, Zara, enraivecida, se confessasse ansiar por saber quem era aquela mulher e o que de comum havia entre ela e Tristram. Lorde Elterton logo ficou apaixonado por Zara. Ele era um verdadeiro cavaliere servante e sabia, tanto quanto o financista, a delicada arte de manipular o temperamento de muitas mulheres. Chegava a orgulhar-se disso. Na verdade, a maior parte de sua vida ele não fizera outra coisa. O seu método consistia em mostrar-se delicadamente gentil e conseguir a simpatia da mulher que pretendesse conquistar. Havia, por aí, uma grande quantidade de sujeitos brutos, indelicados, e ele sempre conseguia impôr-se pelo contraste. A seu ver, os maridos na sua quase totalidade eram uns brutos, pelo menos na opinião das próprias esposas. O seu plano jamais falhara e, quando isso se verificava, é porque se tratava de uma devotadíssima esposa. E

assim era que, muito embora lady Tancred estivesse casada há apenas uma semana, esperava não ser-lhe totalmente indiferente, graças ao seu método de conquista. Notara, desde logo, que o casal não se queria, como era de esperarse, e que havia um certo pico em flertar-se uma recém-casada! Lorde Elterton dividia as mulheres, na sua generalidade, em quatro classes. A das impossíveis, a das recalcitrantes, a das tímidas e a das arrojadas. Para as impossíveis,

não

desperdiçava

um

minuto

do

seu

tempo.

Para

as

recalcitrantes, usava de insidiosos processos de fazer pruridos na sua fantasia feminina, como uma truta. Para as tímidas, mostrava-se terno e protetor, e para as arrojadas, com uma sutil indiferença mas sempre gentil e solicito. Ainda não estava bem certo em que classe catalogaria esta sua nova atração. Provavelmente, na segunda. Mas francamente admitia que até agora não tinha a menor experiência com tal tipo. Os seus estranhos olhos emocionavam-no; quando ela voltava aqueles discos da cor da ardósia e profundamente sombreados para ele, lorde Elterton sentia que o coração se punha aos pinotes dentro do peito. Por isso é que começou com extrema gentileza e cuidado. — Não faz muito tempo que a senhora está neste país, não é verdade, lady Tancred? Logo se nota isso pelo seu primoroso chie. E como fala perfeitamente o inglês? Sem o menor sotaque. Simplesmente delicioso. Aprendeu o inglês desde criança? — Meu pai era inglês — respondeu Zara, desarmada de sua habitual e fria reserva, e com simpatia na voz — Até aos treze anos de idade, só falei essa língua; depois, ocasionalmente. É um idioma delicado e honesto, a meu ver. — Provavelmente fala muitas línguas? — continuou lorde Elterton, admirado. — Sim, quatro ou cinco. É muito fácil a gente aprender quando se anda por toda parte. Além disso, muitas línguas se parecem tanto! O russo é a mais difícil. — Como a senhora é ilustrada! — Não, nem um pouco. Mas tive tempo para ler muito…

Zara calou-se subitamente. Não estava em seus hábitos abrir-se com ninguém, em coisas que lhe diziam particular respeito. Lorde Elterton notou aquele pequeno embaraço e mudou de tática. — Fui um rapaz vadio e não aprendi quase nada. Tristram e eu estivemos juntos em Eton e moramos na mesma casa. Não passávamos de uns ignorantes de marca. Mas ele se matriculou em Oxford, e ali continuou os seus estudos, enquanto me dirigi diretamente para o exército. Zara ansiava por indagar a respeito de Tristram. Se nem sabia que ele frequentara Oxford! Essa descoberta repentinamente lhe mostrou como a sua situação era de todo em todo ridícula. Ela se vendera num ajuste feito; não indagara o que quer que fosse a quem quer que seja sobre o marido; era seu intento desprezar-lhe toda a família e permanecer completamente afastada de todos, e agora notava que cada uma de suas intenções aos poucos caía por terra. Contudo, estava longe de admitir, fosse embora por um minuto, que estivesse apaixonada pelo marido. Seria uma coisa perfeitamente impossível de verificar, mesmo porque agora ele se mostrava de um indiferentismo absoluto. E disso a cada passinho dava mostras. Mas, que coisa revoltante ele pretender apaixonar-se logo na primeira noite em que se encontraram! De fato, com certas modificações de classes e raças, os homens eram indignos de confiança, quando não uns brutos. E uma mulher, mesmo que se encontre em segurança na companhia de alguns, a ponto de afrouxar a sua vigilância no tocante à defesa de sua pessoa e de sua virtude, jamais deve rebaixar-se e mostrar-lhes uma fração sequer das suas emoções. Durante todo o tempo em que assim esteve devaneando, Zara permaneceu silenciosa, e lorde Elterton contemplava-a, emocionado com a atração daquele impossível. Sem sombra de dúvida ela se esquecera de sua presença e, a despeito de melindrado, sentia-se cada vez mais ansioso de conquistá-la. — Eu gostaria imenso de saber no que a senhora está pensando — disse ele, docemente. Com grande cuidado afastou um ramo com espinhos, que poderia magoá-la. Estavam passeando, e acabavam de dar a volta a uma alameda além do pomar e do parque.

Zara parou. Estavam bastante distanciados. — Eu estava pensando… — disse ela, e não continuou, à procura de um subterfúgio, que não lhe acudiu. Tornou-se, então, bastante confusa, e depois de ligeira pausa, com certa hesitação, prosseguiu. — Eu estava pensando se é possível encontrar-se alguém em quem se possa acreditar. Lorde Elterton olhou-a. Que mulher estranha! — Sim, disse ele simplesmente, a senhora pode acreditar em mim quando lhe digo que nunca vi, em minha vida, pessoa mais atraente. — Oh! por isso! — retorquiu Zara, desdenhosamente — Mon Dieu! quantas vezes ouvi tais palavras! Não era isso que ele esperava. Não havia nenhuma vazia ostentação naquelas palavras, coisa que se verificaria se Laura Higford é que as pronunciasse. Lady Highford gostava imenso de demonstrar, em palavras, suas conquistas e seu poder. Entretanto, as que brotaram dos lábios de lady Tancred evidenciaram um certo cansaço, como se tratasse de alguma coisa banal e fatigante. Precisava ser mais cuidadoso. — Sim, compreendo perfeitamente — disse ele com toda a simpatia — A senhora deve enfadar-se com o amor dos homens. — Ainda não sei o que seja o amor dos homens. Acaso os homens conhecem o amor? — perguntou Zara. em tom que não revelava amargura, mas com toda a naturalidade. Lorde Elterton ficou boquiaberto. Qual teria sido o procedimento de Tristram? Há uma semana desposara esta divina criatura, que lhe estava fazendo uma pergunta saída do coração. Entretanto, de forma alguma Tristram era um tolo. Naquilo tudo havia um mistério. Mas qualquer que fosse, a oportunidade lhe era esplêndida. E assim foi que continuou, com muito tato, cuidando insidiosamente de lisonjeá-la. No final do passeio, quando já estavam de volta, Zara mostrou-se tê-lo apreciado. A Torre de Montfichet era tudo o que restava do velho castelo, destruído pelos mil cavaleiros de Cromwell. Era um vasto e extenso aposento, uma espécie de grande hall. Por muito tempo permanecera sem teto, e foi o pai do

atual duque quem o cobriu. Continha uma esplêndida lareira de pedra, de vastas proporções. Também fora assoalhado de novo e possuía aquele lugar alto, no centro, reservado para as refeições da família. O resto do velho castelo estava em completa ruína e, na Restauração, a parte nova fora reconstruída mais ou menos a uma milha além do parque. Lady Ethelrida escolhera vários moveis de grosseiro estilo e feitos de carvalho para mobilar o seu grande quarto, o qual em altura se elevava a três andares, e os suportes das lareiras dos aposentos superiores se viam nas escuras paredes de pedra. Ali é que se reunia a criançada da escola para uma festinha e no verão oferecia bailes aos seus rendeiros, porque havia uma grande extensão de verde relva além, descendo para o rio, onde eles podiam divertir-se. Em um dia de chuva, era o lugar ideal para um piquenique. O fogo ali aceso, em achas de lenha, se elevava em crepitantes labaredas por sobre as cinzas que, havia muitos anos, dali não foram retiradas. Defronte, sobressaía um grande espeto, só para dar aparência a tudo aquilo. “Como todos pareciam divertidos!” pensava Zara, sentada num banco de carvalho e vendo-os entristecidos, como as abelhas, no preparo de sua refeição. Podia fazer uma salada, e por isso sentou-se perto do Corvo. Jimmy Danvers arregaçara as mangas da camisa e diligenciava cumprir a sua parte de trabalho. O "Menino" reunira alguns ramos de feto, e fincara-os num presunto, para que se parecesse com um peru, dizia ele. E acrescentava: — Num banquete no solar de um barão seria imperdoável a ausência do peru, bem como a cabeça de um javali e um boi assado inteirinho. Subitamente Zara se lembrou do seu último piquenique, com Mimo e Mirko, na mansarda da rua Neville, quando seu pobre irmãozinho enfiara na cabeça o chapeuzinho de papel e se deliciara com os novos vasos rosados. O Corvo, que a observava de perto, pasmava ante a tristeza da formosa lady Tancred, alheia, absolutamente alheia àquela alegre cena. Como sua mãezinha havia de gostar de tudo isto — pensava ela — com toda aquela sua alegria, com sua alma terna, e com o prazer que sentia em tomar parte em divertidos piquenique. E seu pai? Esse conhecera toda esta

gente. Pertenciam à sua própria classe, e não obstante ele se retirara para viver naquele sombrio castelo, longe da pátria, e esperava que sua formosa esposa ali permanecesse sozinha a maior parte do tempo. A odiosa crueldade dos homens! E ali estava o seu tio Francis metamorfoseado, auxiliando lady Ethelrida a pôr a mesa, alegre e feliz como um rapaz. Também ela podia ser feliz?, devaneava. E livre de qualquer agonizante esforço ou cuidado? Nesse instante, a expressão de tristeza do seu rosto mudou para um estranho ressentimento contra o destino. — Rainha Anita — disse o Corvo, no momento em que se sentavam para almoçar — há qualquer tragédia na alma dessa mulher. Estava sofrendo pavorosamente, pelo menos durante uns dez minutos, e esqueceu-se de que eu estava a seu lado e mesmo que eu desejava falar-lhe. A senhora e lady Ethelrida não têm mau coração. Por que não desvendam esse mistério e não a confortam?

CAPÍTULO XXV GALANTEIOS E CIÚMES

DEPOIS do almoço, em que foram observadas todas as cerimônias usadas nos tempos de antanho, de acordo com a interpretação de Jimmy Danvers e do "menino" Billy, começou a chover. Então, estes mestres da folia disseram que já era tempo de se iniciarem as danças medievais. Com esse propósito, deram corda a um gramofone, que ali se achava num canto para divertir as crianças da escola. E Mary e seu admirador lorde Henry Burns; Emilia e um tal capitão Hume; lady Betty e Jimmy Danvers alegremente começaram a dançar, ao passo que o "Menino" Billy foi tirar lady Tancred, dizendo-lhe que, como representante do lorde do Castelo, lhe assistia o direito de dançar com a encantadora lady. E assim foi que este apalermado e confiado rapaz se adiantou a lorde Elterton. Há muito tempo que Zara não dançava, talvez há quatro anos, e não fazia a menor ideia do que fossem two-steps e barn-dances e outras espécies de acrobacias rodopiantes que eles inventaram. Entretanto, fez o melhor que pôde e, aos poucos, algo daquela excitação própria de moços a contagiou. Esquecendo de suas tristezas, pôs-se também a divertir-se. — O senhor nunca dança, não, Mr. Markrute? — indagou lady Ethelrida, que, pelo braço do velho e galanteador Corvo, vermelho e sorridente, parava perto do banco em que o financista e lady Anningford se achavam sentados — Se o senhor dança, eu, como a Lady do Castelo, convido-o para alguns passos comigo. — Ninguém pode resistir a um convite dessa natureza — respondeu ele, enlaçando-a para uma valsa. — Gosto de dançar — disse-lhe lady Ethelrida, valsando admiravelmente com o seu par, um tanto surpresa de que este "grave e reverendo senhor", como o chamava, soubesse valsar. — Também eu — concordou Francis Markrute — mas em certas

ocasiões. Esta é uma delas — depois, apertando-a um bocadinho mais em seu braço, disse sorrindo: — Aqui estamos nós com botinas grosseiras e roupas do campo, girando como os selvagens em torno de sua fogueira! Não obstante, gostamos tanto disto! — Para mim, é um delicioso exercício — observou lady Ethelrida. — Para mim, ao contrário, nada tem que ver, nem um pouquinho, com essa razão — retorquiu seu par. Lady Ethelrida estremeceu com um certo prazer, e ele não lhe perguntou qual a sua razão. Pensava saber qual fosse e seus olhos cintilaram. Eram da mesma altura, de modo que ele pôde olhá-la de fito, enquanto valsavam, e murmurou-lhe: — Eu trouxe o livro de que lhe falei e peço-lhe que o aceite como uma recordação deste dia, em que a senhora me tornou moço durante uma hora. Como cessasse a musica, eles pararam perto de um banco, do lado, e ali se sentaram. Lady Ethelrida respondeu docemente: — Sim, se… o senhor deseja… Lorde Elterton havia desbancado o "Menino" Billy, e estava valsando com Zara. Elterton, da cabeça aos pés, era todo uma intensa devoção e Zara ria-se e olhava-o rosto a rosto, contagiada ainda pela alegria geral. Nesse instante, a porta de madeira do vestíbulo, ali posta para servir de entrada, se abriu silenciosamente e alguns dos caçadores surgiram no salão. Molhado como estava o solo, tornara-se impossível prosseguirem na caça, de modo que fizeram as senhoras voltar de automóvel e, como ouvissem música, quiseram espiar. Tristram vinha na frente dos intrusos, e ali entrou precisamente no momento em que a esposa estava olhando, face a face, o seu par, sem que nenhum dos dois o notasse. Sentiu-se terrivelmente enciumado. Nunca a vira sorrir daquele jeito e muito menos sorrir-lhe. O seu desejo era arrumar uns pontapés em Arthur Elterton! Para o diabo o insolente! E, que falta de senso dançarem aquela tarde, com calçados tão grosseiros! Quando todos pararam, saudaram os caçadores e reuniram-se em torno

da lareira, ele disse em tom de irritante sarcasmo, em resposta à boutade de Jimmy Danvers de que eles voltavam à vida real de um castelo, na Idade Media: — Qual o que, Jimmy! Longe disso! Se até minha esposa se tornou uma tola, por sua causa! Repare em Arthur, com lama nas botas, e girando como um danado! Lorde Elterton sentiu-se lisonjeado. Notou que seu velho amigo estava com ciúmes e, se estava com ciúmes, é porque aquela formosa e fria lady se portara inacreditavelmente gentil para com ele, sinal inequívoco de que as coisas lhe caminhavam bem. — Você está com ciúmes de mim, porque sua encantadora esposa me prefere, jovem Lochinvar. E, rindo-se, lorde Elterton recitou: "Pois tão fiel no amor, quão destemido na guerra Nunca houve um galanteador como o jovem Lochinvar!"

Zara notou que os olhos azuis do marido cintilaram com o brilho do aço, indicio seguro de que não apreciara a brincadeira. Contudo, longe de qualquer espírito de contradição, se ele passou o dia todo com lady Highford, por que também ela não podia divertir-se? Na verdade, por que qualquer deles havia de importar-se com o que outro fizesse? Assim pensando, mas sem que fosse um capricho seu, Zara de novo sorriu para lorde Elterton, e recitou: "Então, demos alguns passos de dança, meu lorde Lochinvar".

E continuaram a dançar. Tristram, com o rosto mais sério do que o Cruzado seu antepassado, na igreja de Wrayth, disse ao tio, lorde Charles: — Estamos todos ensopados. Regressemos para casa — e, voltando-se,

saiu. Enquanto caminhava, dizia com os seus botões como ela devia conhecer a poesia inglesa, para responder a Arthur daquela maneira. Se ao menos fossem amigos e pudessem conversar sobre os livros de que ele gostava! A esse pensamento, verificou mais do que nunca a possibilidade da situação. E pensar que ele próprio é que lhe dera origem, com aquela confiança em si mesmo, com que sempre partia para uma caçada de leões! Sentia que já se estava aproximando dos limites do possível; não podia ir além. As palavras que lhe ouvira em Dover, naquela noite, fecharam todas as possíveis fontes de que poderia usar para conquistá-la. E um homem não podia, numa semana, quebrar o orgulho herdado que datava de um milênio. Antes de planejar a viagem ao Canadá, pensara em reunir-se a um amigo para uma outra viagem ao Sudão. Ainda não seria tarde levar a cabo esse seu intento, quando passasse pelo suplício das ordálias, em Wrayth, com os jantares dos seus rendeiros, os discursos e a cruel zombaria de tudo aquilo. Veria, talvez, o que lhe seria dado fazer, porquanto não podia continuar com esta vida de quotidiana tortura e o grande amor que lhe devotava ainda não diminuirá nem um pouquinho. Quando ele partiu, embora Zara não se sentisse culpada disso, desapareceu por completo a alegria que estava sentindo. Não demorou que os automóveis viessem buscá-los. Voltaram logo para o castelo e foram preparar-se para o chá. O rosto de Tristram continuava a ser de pedra. No instante em que se sentava num sofá, perto de Laura, um criado trouxe um telegrama para Zara. Ele a viu abrir o telegrama com grande interesse. Quem lhe passava tais misteriosos telegramas? Notou que a sua fisionomia mudava de expressão, como se verificou em Paris, mas não tão séria, e que a esposa amarrotou o papel e atirou-o no fogo. O telegrama dizia: "Ligeiramente febril, de novo". E estava assinado: "Mimo". — Lembro-me agora onde já me encontrei com sua esposa — disse

Laura. — Onde? — indagou Tristram distraidamente. — Na sala de espera da estação de Waterloo. Mas, talvez não tenha sido ela, porque estava pobremente vestida e conversava, muito animadamente, com um homem estrangeiro. Notou o rosto de Tristram e concluiu que, de certo modo, tocara em ponto sensível e prosseguiu: — Por certo que não era ela. Mas o tipo era tão peculiar que nenhuma outra poderia parecer-se tanto. — Certamente que não. Não podia ter sido Zara, porque na ocasião estava em Paris, e ali permaneceu até a véspera de nos casarmos. — Lembro-me perfeitamente da ocasião. Foi no dia seguinte ao da notícia do noivado, pelos jornais, porque fui ao casamento da Flora e já estava de volta para o campo. De repente, como um relâmpago, ocorreu a Tristram que ele vira, com seus próprios olhos, Zara em Whitfehall, no dia em que ela devia partir, mas não partiu para Paris. Irritante e desconfortável suspeita dele se apoderou. Laura estava contente. Não sabia bem porque ele estremecera às suas palavras, mas notava-o aborrecido, de modo que valia a pena dar mais algumas ferretoadas. — Talvez fosse a irmã, não? Agora estou pensando nisso, porque a semelhança era extraordinária. Lembro-me perfeitamente que fiquei bastante interessada, porque o homem era extraordinariamente formoso e você sabe, meu caro rapaz, que sempre tive um fraco por homens bonitos! — Minha esposa é filha única — respondeu Tristram, admirado de onde Laura queria chegar. — Nesse caso, tem o dom de ubiqüidade — riu-se lady Highford — Fiquei a contemplá-la bem uns dez minutos. Eu estava esperando minha criada, que ali devia encontrar-me, de sorte que não podia sair com receio de perdê-la.

— Que coisa interessante! — observou Tristram friamente, longe de pedir uma descrição do homem. — Talvez tudo isso tenha acontecido antes de sua esposa partir para Paris e eu esteja enganada quanto à data. Talvez se tratasse de um seu irmão. Sim, o homem era estrangeiro, mas… não, não ,podia ser seu irmão. E

lady

Highford

voltou

os

olhos

para

os

sapatos,

e

sorriu

misteriosamente. Tristram aos poucos se enfurecia, ferido com os dardos daquelas palavras, e enfurecia-se consigo mesmo. Essas mesquinhas naturezas humanas sempre calculam errado o efeito de seus gestos, e assim se lhes malogra o propósito final. — Não compreendo o que você queria insinuar Laura — retorquiu ele, em voz desdenhosa — Mas, o que quer que seja, não causa o mínimo efeito sobre mim. Adoro minha esposa e sei de tudo o que ela faz ou deixa de fazer. — Oh, o pobre, o querido amigo todo zangadinho! — riu-se Laura malevolamente — E está com ciúmes! Mas não é caso de aborrecer-se. Mas isto de um esperto marido conhecer tudo o que diz respeito à esposa! Se aparecer um, deve ser posto numa redoma de vidro, em exposição no museu! E, levantando-se, deixou-o. Tristram sentia o desejo de matar alguém. Quem fosse, não sabia. Talvez esse homem estrangeiro, esse "Mimo", muito provavelmente. Não se esquecera do nome! Se o seu orgulho lhe permitisse o gesto, iria direitinho procurar Zara, que estava retirada num canto da sala, e lhe pediria uma explicação. Depois, com toda a sua ternura, lhe diria que era um homem infeliz e suplicaria que o tranquilizasse. Agiria com toda a naturalidade e logo estaria terminado, uma vez que tratasse do assunto com critério. Todavia, ele era bastante obstinado, sentia-se demasiado ferido e loucamente apaixonado. O espectro do orgulho insultado de um Guiscard sempre o perseguiria e, como todas as tolices, ainda lhe causaria maior sofrimento do que se tivesse cometido um crime. E assim foi que mais uma vez o casal se vestiu e desceu para o jantar

ducal, com profunda tristeza no coração. Logo que ficou pronto, Tristram saiu ao corredor, e pretendeu contemplar os quadros que ali se ostentavam. Não mais tinha recados para mandar à esposa e por isso ali se achava, com um sorriso triste no formoso semblante, quando lady Anningford, saindo do seu quarto, além, parou à sua frente, para conversarem. Admirou-se de ali encontrá-lo. Lembrava-se que coisas bem diversas se passaram entre ela e o seu velho marido, logo que se casaram. Durante semanas e semanas, bem poucas vezes no dia o marido a perdia de vista. Nesse instante, Henriette espiou na porta, e notou ser escusado entregar o recado de que fora incumbida pela ama. Entrando de novo no quarto, não demorou que Zara aparecesse. Trajava um vestido cinzento-claro e trazia as pérolas que o tio lhe dera. Lady Anningford e Tristram imediatamente notaram que os seus olhos estavam resplandecentes e que neles ardia a chama do sofrimento. Recordando-se do apelo do Corvo, lady Anningford enfiou a mão no braço de Zara, e mostrou-se bastante gentil e amiga enquanto desciam ao salão.

CAPITULO XXVI CAPRICHOS DO DESTINO

SE aquela noite somente proporcionou um misto de sofrimento e desassossego ao jovem casal, diferentemente se passou para Mr. Francis Markrute e lady Ethelrida. Ao jantar, ele não se sentou pterto de sua encantadora hospedeira, mas quando o poder de manipular as circunstancias com habilidade está na natureza de um homem, e o desejo de tornar as coisas facilmente manipuladas está na natureza de uma mulher, ambos podem passar juntos agradáveis e incontáveis momentos. E assim sucedeu. Sem que aparentemente se arredasse dos outros hóspedes, e sem que propositadamente os deixasse, lady Ethelrida deu um jeitinho de sentar-se perto duma das aberturas das janelas, na galeria dos quadros, para onde esta noite todos emigraram, e ali se pôs a conversar com o seu interessante e novo amigo. Sim, amigo, bem que ela o sentia. O financista parecia compreender-lhe o sentimento e, a despeito de um tanto maravilhado, permanecia tranquilo, sutil, reservado, embora por baixo dessa circunspeção se pudessem notar o poder de que era dotado e a sua força de vontade. Graças a uma sua insidiosa sugestão, logo espalhada entre os convivas, é que ali todos se achavam, em vez de se reunirem num dos grandes salões de visita. Isto porque o aposento era bastante estreito, e mais fácil se tornava separar as pessoas. — Certamente isto aqui não foi construído quando se edificou todo o prédio, mais ou menos em 1670 — explicava-lhe lady Ethelrida — Foi um acréscimo feito pelo segundo duque, então embaixador em Versalhes no tempo de Luiz XV, com toda a certeza porque queria uma galeria de espelhos imitação daquela. No entanto, quando já se levantavam as paredes, o duque morreu, e o salão permaneceu inacabado durante trinta e cinco anos. No tempo da Regência é que o transformaram numa galeria de quadros. — São tão interessantes as marcas de individualidades que se notam em

casas senhoriais! — observou Francis Markrute — Creio que Wrayth seja toda uma série de fantasias humanas, a principiar do castelo normando, não é verdade? Ainda lá não estive. — Oh, Wrayth é muito mais interessante do que este solar — respondeu lady Ethelrida — Partes de Wrayth são antiquíssimas; algumas sacadas do pavimento superior são feitas inteiramente de pedra. Como sabe, naquele tempo os puritanos eram detestados, porque o então Tancred era um infante quando começou a guerra civil. Sua mãe era francesa, de sorte que permaneceram por muito tempo em França e só regressaram quando Carlos II voltou. Esse Tancred também desposou uma francesa. Era uma senhora extraordinária, e melhorou muitas coisas. Wrayth possui duas longas galerias, uma capela do tempo de Henrique VII, numerosas escadarias em imprevistos lugares, uma sequência de majestosos aposentos construídos por Adam e, no tempo da rainha Vitoria, a mais notável imitação do estilo gótico em matéria de alas e átrios, acrescentados ao solar em 1850 por um dos habitantes que lhe estragaram inúmeras partes. — Interessantíssimo — observou o financista. — Boa parte de todo o solar está necessitando de reparos, porque o pai de Tristram não dispunha de muito recurso monetário, e o avô, afora a horrível ala, nada mais fez. Mas com dinheiro bastante para consertar tudo isso, creio que não haja lugar mais encantador do que Wrayth. — Nesse caso, constituirá um grande prazer para os dois, no ano vindouro. Zara possui notável gosto, lady Ethelrida. Quando a senhora conhecê-la melhor, creio que gostará de minha sobrinha. — Mas, se já gosto! — exclamou ela — O que, no entanto, desejaria é que não parecesse tão triste. Permite que eu lhe pergunte se por causa do ajuste… — e lady Ethelrida fez uma pausa, com delicada timidez — Desculpe-me a pergunta, mas o senhor sabe de algum motivo especial que hoje a torne tão infeliz? Vi-lhe o rosto durante o jantar e notei que, o tempo todo em que estava conversando, havia uma expressão ansiosa em seus olhos. Francis Markrute franziu a testa durante um segundo. Estivera tão absorvido em seus próprios interesses que se esqueceu por completo da

sobrinha. Se alguma expressão de ansiedade havia em seus olhos, uma única razão que existia para isso era a saúde do menino Mirko. Pessoalmente, nada ouvira a esse respeito. Então, depois de breve raciocínio, decidiu-se nada dizer sobre o assunto a lady Ethelrida. A ansiedade de Zara referia-se à doença do menino e a doença — dissera-lhe o dr. Morley — somente poderia ter um desfecho. Não desejava à pobre criança nenhum mal, mas, por outro lado, não lhe tinha a menor afeição. Se caminhasse para a morte, o mau passo da irmã seria esquecido, e não havia necessidade de reviver, a quem quer que fosse, essa desgraça da família. — Sim, alguma coisa existe que de quando em quando a atormenta. Mas é coisa passageira. Não se incomode. E mais uma vez, como sempre iludida, lady Ethelrida mudou de assunto. — Posso entregar-lhe o livro amanhã de manhã, antes de partirmos para a caçada? — indagou o financista, depois de um momento de silêncio — Creio que seja o seu aniversário, e todos os seus hóspedes nesse dia têm o privilegio de depositar aos seus pés um presente. Era minha intenção oferecer-lho esta tarde, depois do chá, mas estive detido a jogar bridge com seu pai. Amanhã deverei receber vários livros que desejaria oferecer-lhe. — É grande bondade de sua parte. Quero mostrar-lhe minha sala de estar, no sul da ala. Vai ver que os nossos antepassados tiveram um confortável lar. — Quando posso ir? A pergunta era direta, e lady Ethelrida sentiu uma picante sensação de interesse. Nunca, nunca em sua vida marcara uma entrevista a um homem. Pensou um instantinho. — Os caçadores partirão amanhã às 11 horas, porque a primeira batida é num canto do parque, bem perto. Se lograrem êxito, todas nós os acompanharemos até o almoço, que faremos em casa. Depois disso é que irão de automóvel, para lugares distantes. Mas, qual a melhor hora? Lady Ethelrida delicadamente deixou que o financista escolhesse a hora. — Fará o seu desjejum amanhã, lá em baixo, e às nove e meia, como

hoje? — Sim, como sempre. As meninas também e, amanhã, creio que todo o mundo, porque é dia de meu aniversário. — Nesse caso, estarei exatamente às dez e meia em sua sala de estar. Espera-me? — Farei o possível. Mas, como o senhor conhece o caminho? — Tenho uma espécie de intuição a respeito de lugares e conheço bem as janelas do outro lado. Deve lembrar-se de que a senhora me mostrou-as hoje, quando nos dirigíamos para a Torre. Lady Ethelrida experimentava estranha e deliciosa excitação só à ideia da inocente entrevista. — Há uma escada… Mas, não! — riu-se a lady — Não lhe digo mais nada. Vou pôr à prova a sua sagacidade em descobrir o labirinto. —- Lá chegarei — afirmou ele, mais uma vez olhando-a de fito nos seus doces e cinzentos olhos. Lady Ethelrida levantou-se, com um movimento um bocadinho mais apressado do que o costumeiro, e seguida de Mr. Markrute foi ter onde se achavam os outros hóspedes. Entretanto, lorde Elterton não descansava em sua perseguição a Zara. Foi dos primeiros a deixar a sala de jantar, alguns passos na frente de Tristram e dos outros, e imediatamente a procurou e convidou-a para uma voltinha na galeria dos quadros. Concordara plenamente com o financista em que aqueles estreitos e extensos aposentos eram bastante úteis. Zara, agradecida por que alguém espontaneamente se propunha distraíla, aceitou de bom grado o convite, e logo se viu defrontando um imenso retrato do próprio Elterton, presente do Regente ao avô do duque, um dos seus grandes amigos. — Estive contemplando-a durante todo o jantar — disse lorde Elterton — e a senhora dava ideia de uma linda tempestade nesse vestido cinzento, os olhos como que envoltos em nuvens carregadas. — Às vezes a gente parece uma tempestade.

— Em regra geral, todo o mundo é enfadonho, coisa que facilmente a senhora pôde verificar em meia hora. Mas ninguém nem de longe pode suspeitar que pensamentos a preocupavam. — Garanto-lhe que pessoa alguma gostaria de preocupar-se com eles, se apenas os conhecesse. — São tão terríveis, assim? — e lorde Elterton sorriu; com toda certeza ela estava se divertindo. — Eu gostaria bem de tê-la encontrado ha um ano atrás, para dizer-lhe este mundo de coisas que agora me vêm à boca. Mas, Tristram ficaria sobremodo enciumado, como se mostrou à tarde. É o procedimento de todos os maridos. Zara não respondeu. Concordava plenamente com essa observação, pois que tinha experiência do que fossem ciúmes de marido! — Se eu fosse casado — continuou lorde Elterton — cuidaria de tornar minha esposa bastante feliz e havia de amá-la tanto que não lhe daria motivo para deixar-me enciumado. — Amor! — exclamou Zara — Como o senhor fala de amor! O que quer dizer isso? Prazer próprio ou devotamento a pessoa amada? — Ambas as coisas — respondeu lorde Elterton, olhando-a tão apaixonadamente em seus olhos que o velho duque, na ocasião perto dos dois e conversando com Laura, achou que já era tempo de dar um paradeiro àquilo. — Ande daí comigo, Zara, para ver alguns antepassados de Tristram do lado materno — disse-lhe ele. E com toda a afabilidade o velho duque pôs o braço da sobrinha no seu, e levou-a para mostrar-lhe as mais interessantes pinturas. — Palavra de honra — dizia ele, enquanto andavam — As coisas sofreram uma grande transformação, desde os meus verdes dias. Ande aqui, Tristram — e acenou para o sobrinho, que conversava com lady Anningford — ande aqui e ajude-me a mostrar à sua esposa alguns dos seus antepassados. E prosseguiu na sua interrompida palestra: — Sim, eu estava dizendo que as coisas sofreram grande transformação

desde quando para esta casa eu trouxe a querida mãe de Ethelrida, depois de nossa lua de mel, naqueles tempos de um mês! Palavra, eu seria bem capaz de torcer o pescoço a qualquer sacripanta que ousasse encará-la! E você, Tristram, galanteando aquela cabeça de ventoinha, Laura Highford, enquanto Arthur Elterton faz protestos de amor para a sua esposa! Palavra de honra, como tudo isto é interessante! E o velho duque riu-se desaprovadoramente. Tristram por sua vez sorriu com amargo sarcasmo. — O senhor é absolutamente dos tempos antigos, tio. Mas, talvez tia Corisante… fosse diferente das mulheres de hoje… Zara não disse palavra. O olhar de pantera negra, nos seus raros dias de indiferença quando condescendia em aparecer à frente de sua jaula, surgiu em seus olhos. Tocassem-na de leve e seria capaz de arreganhar os dentes. — Oh, você nunca deve censurar as mulheres — retorquiu o duque, aquele preux chevalier — Se são diferentes, a culpa é dos homens. Sempre cuidei que a duquesa precisasse de mim! E confesso-lhe, meu caro rapaz: pelo menos durante um ano tive ciúmes até de suas criadas! A novidade não era grande, pensava Tristram, pois que ele tinha ciúmes até do ar que Zara respirava! — O senhor deve ter sido extremamente feliz, meu tio — continuou o sobrinho com um suspiro. Entretanto, Zara não pronunciava palavra. O duque notou que havia o que quer que fosse profundamente tenso entre os dois, pois a sua camuflagem nada resultou. Voltando-se para os quadros, mudou o assunto para coisas mais leves. À primeira oportunidade, Tristram foi ter novamente com lady Anningford, agora perto de uma das grandes lareiras. Laura Highford, que ficara sozinha com lorde Elterton numa das extremidades da extensa galeria, julgou azada a ocasião para atirar nova isca. Não podia arredar-se do assunto que tanto a interessava. Agora reconhecia ter cometido lamentável erro naquilo que à tarde dissera a Tristram, e embora não soubesse como corrigir a cincada, devia conversar com alguém.

— Você tem inúmeras oportunidades antes que acabe o ano — disse-lhe ela, com um sorriso amarelo — Não precisa apressar-se tanto! Aquele casamento não durará mais do que alguns meses… sempre eles se odiarão. — Qual o quê! — contraveio lorde Elterton, fingindo-se inocente — Creio que é o casal mais unido! O moço estava convicto de que Laura plantava verde e, muito embora não acreditasse metade do que lhe ouvia, a não ser que estava caçoando, possivelmente poderia colher alguns grãos daquele verde, os quais talvez fossem úteis. — Casal mais unido? — riu-se lady Highford — Ché! Além de Tristram, há um outro. Esse tertius é um formoso gentleman estrangeiro, que se parece com ura Romeu ou Rizzio… — Ou com um outro qualquer — interromepeu-a lorde Elterton. — Exatamente, e por quem ela se achava muito interessada. Pobre Tristram! Tem muita coisa que descobrir, segundo me parece. — Como é que conseguiu descobrir tudo isso? Você é do outro mundo, Laura Highford! Sempre cheia de informações tão interessantes. — Por acaso encontrei-os na estação de Waterloo, evidentemente de regresso de algum lugar, e Tristram pensava que ela estivesse em Paris! O pobre! — Você já contou isso a Tristram? — indagou o lorde, ansiosamente. — Não. Simplesmente lhe dei a entender… — Fez bem — lorde Elterton sorriu-se brandamente, e Laura não lhe viu o piscar dos olhos — Naturalmente Tristram se mostrou grato… — Por ora não, mas dia virá que há-de mostrar-se! Os olhos de avelã de lady Highford cintilaram e lorde Elterton riu-se mais uma vez, enquanto respondia levianamente: — Com toda a certeza, o pobre rapaz ainda não compreendeu a grande dívida que contraiu com você, pela sua bondade. Fosse comigo, e eu compreenderia. Mas, já é tempo de nos irmos. Já se estão despedindo.

Quando eles se encontraram com os outros, lorde Elterton pensava consigo mesmo: — Bem, os homens podem ser uns canalhas, como eu, mas dou o meu pescoço se forem tão ordinários como as mulheres dessa marca! Lady Anningford acompanhou lady Ethelrida até o seu quarto, depois que deixaram Zara, e logo se puseram a conversar sobre o tão emocionante assunto. — Nisso tudo há algum mistério, querida Ethelrida — disse-lhe lady Anningford — Conversei por muito tempo com Tristram esta noite, e, embora ele cuidasse com grande esforço de ocultar tudo, notei-o muito infeliz, volta e meia falando "desta vida miserável" e depois mostrando-se resignado. Perguntou-me, então, com ares de quem tratava de um assunto abstrato, se Heitor e Teodora realmente foram felizes, por que ela era viúva. Quando lhe respondi afirmativamente, isto é, que foram idealmente felizes e nunca deveriam ser expulsos de Brancondale, Tristram observou com indisfarçável e profunda tristeza: — "Ora, também eu ouso acreditar. E acredito porque eles tinham um filho"! — Corta o coração, Ethelrida, vê-lo falar desse jeito, depois de uma semana. O que será? O que teria acontecido com eles depois do casamento? — Não foi depois do casamento — retorquiu Ethelrida, que começava a despir-se — Sempre foram assim. Zara tinha a mesma expressão no olhar quando a vimos pela primeira vez, num jantar que o tio nos ofereceu. Aquele mesmo olhar estranho, cheio de ódio, de dor e de melancolia, como se ela fosse toda um depósito de ressentimento contra o destino. Lembro-me de uma antiga e colorida ilustração que tínhamos num quadro, agora no quarto da governanta. Era uma dessas cenas mal desenhadas, mas tétricas, dos prisioneiros da Sibéria, arrastados através da neve, e nela aparecia uma mulher, separada do marido e do filho, a qual tinha a mesma expressão impressa no rosto. Quando eu era criança, tremia de medo daquele quadro e vivia sempre assustada, de modo que mamãe mandou colocá-lo na velha nursery. Confesso-lhe que Zara me amedronta com aquela mesma impressão.

— Ela não teve nenhum filho, não? — indagou lady Anningford. — Não ouvi nada a esse respeito. Além disso, é tão moça, vinte e três anos apenas! — De fato, é muito trágico. Mas, o que se pode fazer pelos dois! Por que você não pergunta ao tio? O tio deve estar a par de tudo. — Perguntei-lhe ainda há pouco, Anita, e ele me respondeu tão simplesmente: "Sim, alguma coisa existe que de quando em quando a atormenta, mas é coisa passageira". — Santo Deus! — exclamou Anita — Não pôde ser uma alucinação. Desequilibrada ela não é, não? Isso seria pior que tudo. — Oh, não! — acudiu Ethelrida horrorizada — Não é nem um pouquinho, graças a Deus! — Nesse caso, talvez haja algumas terríveis cenas ligadas ao assassínio do primeiro marido, ainda vivas em sua lembrança. O Corvo contou-me que o conde Shulski foi assassinado a tiro, em Monte Cario, numa rixa com outro homem e por causa de mulher. — Então deve ser isso! — ajuizou Ethelrida, bastante tranquilizada — Com o tempo se esquecerá. E com toda certeza Tristram há-de conquistar-lhe o amor, e ambos acabarão por esquecer-se de tudo. Agora, já me sinto mais sossegada a esse respeito, e posso dormir em paz. Separaram-se, confortadas, depois de dizerem "boa noite". Mas o motivo de sua solicitude não cuidou de ir pra cama quando despediu a criada. Sentou-se numa das grandes poltronas William e Mary, e com as mãos apertadas estreitamente, cuidou de pensar. As coisas se acumulavam para provar-lhe nova crise. O destino reservara-lhe uma outra cruz, pois subitamente nesta noite, quando o duque falara a respeito de sua esposa, Zara conscientemente chegou à conclusão de que… amava o seu marido. E, com o seu próprio procedimento, tornara impossível e para sempre que Tristram lhe voltasse. Na verdade, as coisas mudaram, mercê de um desses caprichos do Destino. A si mesma formulava esta pergunta: por que o amava? Censurara-o na

noite do casamento, quando ele disse que a amava simplesmente, porque, em sua ignorância, imaginava tratar-se de uma simples atração dos sentidos. Chamara-o de animal, bem que se lembrava! E agora também ela se tornara um animal! Animal, na verdade, pois não encontrava nenhuma elevada justificativa para a emoção que sentia pelo marido, como homem, tal qual ele sentira pela esposa, como mulher. Impossível — dizia de si para consigo — que aquela sua nascente paixão tivesse origem numa das razões que se lembrava ter-lhe atirado em rosto e das quais nascia o verdadeiro amor — conhecimento, ternura e devoção. Tudo isso não passava de uma ilusão, agora compreendida. O amor, o amor profundo e terno, podia nascer numa criatura humana a um simples mover de olhos. Ambos ainda eram estranhos um ao outro e já esta cruel, terrível coisa denominada amor derrubava todas as barreiras em seu coração, dissolvera o desdenhoso gelo, e fez desaparecer a severa, a endurecida expressão do seu rosto. Agora, precisava ser gentil, delicada, amorosa, sentir que lhe pertencia. E apaixonadamente ansiava para que ele a beijasse e a apertasse de encontro ao peito. Concordasse ou não em desposá-la por causa do dinheiro do tio, isso era coisa que não mais tinha a menor importância. Amara-a desde o instante em que a vira, arriscando-se a tudo; e ela repelira o seu amor. E agora só lhe restavam os ciúmes de um homem, naturalmente cioso do que lhe pertencia. — Oh, por que não pude eu saber o que estava fazendo? — indagava-se a infeliz esposa, contorcendo-se na poltrona — Devo ter sido uma criatura perversa em vida anterior, para ser torturada desta forma! Entretanto, era tarde, muito tarde. Tripudiara sobre o amor daquele homem e agora nada mais lhe restava senão o orgulho de que era dotada. Desde que malbaratara sua alegria, pelo menos podia conservar isso, e jamais permitir-lhe ver como estava sendo castigada. E nessa noite chegou a sua vez de encerrar-se com sua angústia, num quarto fechado, e mexer-se e remexer-se no leito, com o desassossego daquele crudelíssimo padecimento.

CAPÍTULO XXVII A PRIMEIRA ENTREVISTA

UMA bomba na pessoa de lady Betty Burns, explodiu no quarto de Emilia e Mary na manhã seguinte no instante em que ambas, sentadas no seu grande leito, se entregavam à leitura de sua correspondência e bebericavam o seu chá. Seriam umas oito horas. — Posso entrar, queridinhas? — indagou uma vozinha resoluta, enquanto uma cabecinha loura espiava pela porta. — Certamente que sim, Betty! — responderam as duas. E, metida num penteador de seda azul e com uma longa e loura trança caída pelas costas, lady Betty ali surgiu. Nenhum membro do Conselho dos Três, em caminho para comunicar secreta sentença, poderia andar com mais dignidade ou mais consciente da solenidade do momento. Emilia e Mary estavam emocionadas. — Preparem-se — disse-lhes dramaticamente, enquanto se acomodava nos pés da cama — É exatamente como eu lhes disse. Ela foi a heroína de um assassínio, se é que não foi a própria assassina! — Céus! Betty, quem? — quase que gritaram as duas mocinhas. — Sua cunhada! Vim imediatamente contar-lhes isso, queridinha. A noite passada, tia Muriel (a jovem lady Melton era a segunda esposa do seu tio e acompanhava-a àquela festa) chamou-me em seu quarto, e não pude vir aqui. Quando consegui escapar, vocês por certo já estariam dormindo, de modo que resolvi procurá-las logo de manhã cedo, para contar-lhes a grande novidade. Quatro olhos redondos, de tão horrorizados, se fixaram sobre a recémchegada, que prosseguiu com profunda seriedade na voz e maneiras: — Sentei-me perto do capitão Hume na galeria de quadros, antes de nos recolhermos. Acreditem-me, não pude dormir a noite toda! Pois bem,

estávamos falando daquela cena de luta num bar, gravada na tela por Teniers e pendurada ao lado de um quadro do grande Snyders. A lua… não, não podia haver lua; com toda a certeza era o arco-íris, que alumiava a entrada e alumiava de um ângulo… Como quer que seja, a sua luz era igual à do luar. Nesse instante, puxei de lado a cortina e o meu coração estremeceu com um frio pressentimento, quando ele me dizia que de quando em quando se verificavam tais brigas. Contou-me que se achava em Monte Cario quando o conde Shulski foi assassinado. Embora o crime fosse abafado pela polícia e pouco se soubesse, mesmo assim causou sensação. E, continuou lady Betty, agora levantando-se imponentemente e erguendo um acusador dedo para Emilia e Mary, a condessa Shulski era o nome de sua cunhada! — Oh! cale-se, Betty! — disse Emilia, quase zangada — Você não deve dizer tais coisas. Por certo havia uma grande quantidade de condes Shulski. Os estrangeiros são incontáveis. Mas lady Betty sacudiu a cabeça com ares de trágica tristeza e dignidade, em perfeito desacordo com o seu delicadinho, infantil e arrebitadinho nariz: — Longe de mim, queridinhas, trazer-lhes esta terrível convicção — continuou Betty, sentindo que as grandes ocasiões requeriam um estilo fino — Longe de mim! Mas o capitão Hume prosseguiu na sua narrativa, e disse-me que certamente essa era a razão do pavoroso mistério e expressão de remorso no rosto de lady Tancred. — É de todo em todo impossível, Betty — exclamou a excitada Mary — Mas, mesmo que seu marido fosse atirado, isso não prova que ela tenha que ver com o assassínio. — Certamente que tem! — interrompeu-a lady Betty, esquecendo-se momentaneamente do seu estilo — Sempre há uma cena de ciúmes, durante a qual o marido injuria o outro homem, e então cai morto. A não ser que — e este novo e brilhante pensamento agora lhe acudiu — a não ser que ela fosse uma espiã! — Oh, Betty! — exclamaram ambas ao mesmo tempo. Emilia então

observou gravemente: — Por favor, conte-nos exatamente como lhe falou o capitão Hume. Lembre-se, é da esposa do nosso irmão que você está falando, e não de uma das heroínas das suas peças. Admoestada dessa maneira, lady Betty voltou para a cama, e gradualmente desceu aos fatos, aliás resumidíssimos. Isto porque o capitão Hume incontinenti suspendeu a narrativa e limitou-se a conclui-la dizendo que, como o seu primeiro marido fora morto numa briga, lady Tancred assistia razão para ter aqueles ares de tragédia. — Betty, meu benzinho — suplicou-lhe Emilia — por favor não conte a ninguém essa excitante historia, ouviu? No geral, as pessoas são tão maldosas! Ao ouvir tais palavras, lady Betty sentiu-se bastante ofendida. — Vocês são duas ingratas! Pois não me arrisquei a encontrar-me com Jimmy Danvers, metida neste penteador, só para vir contar-lhes estas deliciosas coisas?… Com muita dificuldade Emilia e Mary conseguiram abrandá-la, fazê-la sentar-se novamente em sua cama e comer um pedacinho de pão com manteiga. Caso contrário, teria voado para divulgar a emocionante notícia antes que lhe trouxessem o seu próprio chá. — Acho simplesmente horríveis os homens, pela manhã, com o cabelo despenteado, não, Emilia? — observou lady Betty, com a boca cheia, enquanto Mary despejava um pouquinho de chá no açucareiro vazio e dava-lho — O Henrique tem sorte, porque os seus cabelos são ondulados (nesse instante Mary ruborizou-se toda), e creio que Jimmy Danvers manda o criado grudar o dele antes de deitar-se. Vocês deviam ver o que tia Muriel aguentava sempre que o tio Aubrey vinha falar com ela, de manhã, quando estive na casa deles. Na frente, o seu cabelo estava todo em desordem e, atrás, todo espetado! Está ai uma coisa em que pensei muito. Antes de casar-me insistirei para ver como o meu marido aparece de manhã. — Pareceu-me ouvi-la dizer que Jimmy é bastante cuidadoso, e que se deita com o cabelo grudado — reparou Emilia, astutamente.

— Ora essa! — exclamou lady Betty, com soberba calma — Até hoje, o Jimmy não me interessou nem um pouquinho. Ele está doidinho para flertarme, bem sei, mas tenho o Bobby Harland. Entretanto, esta manhã… — Encontrou-se esta manhã com Jimmy, Betty? — indagou Mary. — Como podia evitá-lo, meninas? — prosseguiu lady Betty, persuadida agora de que era uma heroína — Eu precisava procurá-las, tinha o dever de procurá-las, e o seu quarto está distanciado do meu algumas milhas. Ora, tia Muriel sempre quis que eu ficasse no quarto de vestir, perto do que ocupa, e, quando me mandou sair dali, tio Aubrey passava pelo corredor e ficou todo zangadinho por encontrar-se comigo. Mas, não tenho culpa se o duque mandou fazer somente três novos quartos de banho no andar dos solteiros, de modo que todo o mundo é obrigado a esperar que desocupe o banheiro para ali entrar. No instante em que eu atravessava o corredor para alcançar a porta do banheiro, sucedeu que dali saía o Jimmy. Quando me viu, apressou o passo e atirou-me um "bom dia", nem um pouquinho desconsertado! Achei que foi tolice de sua parte apressar-se daquele jeito, mas respondi-lhe ao cumprimento, rimo-nos ambos, e entrei no banheiro. Contudo, fiquei bastante contente, porque consegui vê-lo de manhã… e não o achei mau… talvez com melhor aparência do que o Bobby… Afinal de contas… casar-me-ei com ele! E vocês, queridinhas, serão as minhas damas de honra. E agora… agora preciso ir-me. A que coisas tão insignificantes — às vezes ao alinho do próprio cabelo — estava subordinado o destino de um homem! Se os homens soubessem! Quase todos os hóspedes do duque primaram pela pontualidade ao desjejum daquele dia. Desceram todos com o seu presentinho para lady Ethelrida, e houve muita alegria e muita galhofa, bem como estremecimentos de surpresa à medida que os embrulhinhos eram abertos. Não havia quem não gostasse de lady Ethelrida, desde o criado de quarto do duque até o mais humilde dispenseiro e copeira, os quais sentiam um prazer imenso, naquele dia de todos os anos, em que a presenteavam com braçadas de flores, ao passo que o correio lhe entregava uma infinidade de cartões e cartas de cumprimentos e lembranças dos amigos ausentes.

Ninguém mais meiga e graciosa do que a filha do duque, neste seu aniversário com o coração palpitante de uma nova emoção, sempre que se lembrava da entrevista marcada para as dez e meia. Acaso ele — Ethelrida não mais pensava no seu hóspede como Mr. Markrute — acharia o caminho? — Preciso deixá-las para dar algumas ordens — desculpou-se ela dos que a rodeavam, no instante em que se levantaram e se aproximaram da lareira, mais ou menos às dez e um quarto — Vamos reunir-nos, novamente, às onze horas, no hall. E saiu. Momentos antes — notara lady Ethelrida — Francis Markrute se afastara do grupo. Na noite anterior, quando o seu criado austríaco o ajudava a vestir-se para o jantar, disse-lhe o financista: — Henrique, preciso que você descubra, até amanhã de manhã, onde está situada a sala de estar de lady Ethelrida. Trate de conquistar a simpatia da sua criada de quarto, de modo que eu possa para ali transportar, com segurança e sem que ninguém me veja, alguns livros que receberei de manhã. Desempacote os livros, mas deixe com eles o papel que os embrulhar, e tragamos quando vier chamar-me. Então transmitir-lhe-ei novas instruções quanto aos livros. Compreendeu bem? Tudo foi bem preparado, pensava o financista, e lhe saiu às maravilhas, como depois ficou provado. Era sua intenção induzi-la a que o levasse à sua sala de estar, coisa que espontaneamente decidiu lady Ethelrida, para ainda maior felicidade daquele homem, quando se entretinham em conversa na galeria dos quadros. Lady Ethelrida estava olhando na janela de sua sala de estar, deliciosa na sua cor lilás e na brancura da porta e janela. O coração batia-lhe, agora, descompassadamente. Ainda não reparara nos livros, cuidadosamente empilhados debaixo de sua escrivaninha. Acaso conseguira ele desvencilhar-se do pai, que o pegara numa interminável discussão sobre política? E viria, de fato, para conversarem um bocadinho, antes de deixarem o solar e se entregarem ao divertimento do dia? Tomara a precaução de aprontar-se para

saírem — metida num vestido curto, com um leve chapéu de feltro, botinas grossas e outras coisas próprias da indumentária. Acaso ele… Mas nesse instante, o relógio de Dresde, colocado em cima da lareira, bateu a meia hora depois das dez, coincidindo com uma pancadinha na porta, e Francis Markrute entrou. Antigo

e

experimentado

criador

de

pássaros,

não

lhe

passou

despercebido que aquela ave estava alvoroçada de expectativa, e isso lhe despertou viva emoção. Conhecia perfeitamente o valor de investigar as simples circunstâncias com deleitoso mistério e notou logo que, para lady Ethelrida, se tornara momentoso fato isto de ali se encontrarem. — Como vê, descobri o caminho — disse ele docemente, externando na voz um pouco da alegria e ternura que sentia. Lady Ethelrida respondeu, um pouco nervosa, que estava contente e logo lhe disse que desejava mostrar-lhe as suas estantes de livros, porquanto tinham pouco tempo. — Somente uma breve meia hora, mesmo assim se a senhora consentir que eu aqui fique, a seu lado. Em sua mão ele trazia o volume original de que lhe falara, uma antiquíssima

edição

dos

"Sonetos"

de

Shakespeare,

cuidadosamente

embrulhado numa ou duas folhas de papel. Estava primorosamente encadernado, e trazia o monograma de lady Ethelrida magnificamente esculpido num pequeno medalhão — uma verdadeira obra de arte. Entregoulhe, primeiro, esse exemplar. — Tomei a liberdade de encomendar este trabalho, há muito tempo, para oferecer-lhe. Faz mais ou menos seis semanas, e até ontem estive receoso de que a senhora não me permitisse ofertar-lho. Não é um presente de aniversário: é uma lembrança pelo início de nossas relações. — Que beleza! — exclamou a aniversariante, abaixando a cabeça. — E um bocadinho distante daqui, perto de sua escrivaninha — inteirara-se perfeitamente do local com as informações de Henrique — a senhora encontrará os livros que constituem o meu presente de aniversário,

se se dignar aceitá-los. Ela se voltou com um pequeno grito de surpresa e prazer, maravilhada pelo lugar em que se achavam os livros. Eram uns seis volumes. Um Heine, dois volumes de Musset e três coletâneas de poemas seletos, de numerosos poetas ingleses. Lady Ethelrida apanhou-os com grande deleite. Também estes eram verdadeiras obras de arte, encadernados em marroquim malva, com o seu monograma entrelaçado como no outro, e gravação a ouro. — Como são adoráveis! — exclamou lady Ethelrida — E concordam perfeitamente com a cor de minha sala. Como o senhor pôde adivinhar…? Calou-se subitamente e de novo voltou a cabeça para o soalho. — A senhora me disse, quando jantei no Palácio de Glastonbury, que gostava da cor malva, e que as violetas eram as suas flores prediletas. Como poderia eu esquecer? Ao fazer essa interrogação, Francis Markrute aventurou-se a chegar mais perto da formosa filha do duque. Lady Ethelrida não se mexeu. Um tanto apressada, pôs-se a manusear o volume inglês, todo feito de um papel excessivamente fino. Uma verdadeira gema de arte, a impressão. Depois, erguendo a cabeça, mostrou-se surpresa. — Nunca vi, antes, coleção igual a esta — afirmou a lady, maravilhada — Tudo aquilo de que a gente gosta, reunido numa mesma encadernação! E, volvendo as páginas até chegar à primeira, para verificar de que edição era, ali notou esta simples dedicatória: À lady Ethelrida Montfichet, oferece F. M. gravada a ouro. Profundo rubor se espalhou pelo rosto de lady Ethelrida, que não ousara levantar o olhar. Enquanto isso, Francis Markrute raciocinava que talvez ainda fosse muito cedo para desvendar-lhe o segredo de seu coração. Tudo estaria perdido por um falso passo. Assim, com aquele seu extraordinário domínio próprio, resistiu à tentação de apertá-la em seus braços, e disse-lhe tranquilamente: — Pensei que seria uma coisa esplêndida, como a senhora disse "tudo

aquilo de que a gente gosta reunido numa mesma encadernação", e como tenho um amigo inteligente na oficina do meu encadernador, quando fiz a escolha dos volumes ele cuidou carinhosamente da gravação e encadernou os volumes como eu imaginei que a senhora havia de gostar. Agrada-me sobremaneira saber que ficou satisfeita. — Se fiquei satisfeita! — exclamou lady Ethelrida, agora levantando a cabeça. Só então é que lhe acudiu o tempo preciso para fazer-se aquele trabalho e a importância com ele dispendida e, de outro lado, que a não ser uma ou duas vezes em que se encontrara com ele, somente uma noite estiveram juntos, num jantar oferecido pelo pai aos seus amigos políticos. Quando encomendara ele aquele trabalho? Que queria dizer tudo isso? Francis Markrute lia os pensamentos que se sucediam no cérebro de sua gentil hóspede. — Sim — disse ele simplesmente — Desde o primeiro instante em que a vi, lady Ethelrida, para mim a senhora pareceu consubstanciar tudo o que neste mundo há de verdade e beleza, o ideal da espécie feminina. Imaginei, então, estes livros, dois dias após ter jantado em sua companhia no Palácio de Glastonbury. Se a senhora tivesse recusado a minha oferta, isso me causaria grande pena. Ethelrida, de tão emocionada com um novo e repentino sentimento, não pôde acudir com resposta. Francis Markrute observava-a com crescente e apaixonado prazer, mas por sua vez não pronunciou palavra. Devia dar-lhe tempo. — É uma grande gentileza de sua parte, Mr. Markrute — disse-lhe afinal, com toda a doçura de sua voz. E, depois de tomar respiração: — Ninguém ainda pensou em oferecer-me presente tão delicado, posto que, como o senhor viu esta manhã, todo o mundo se mostra tão gentil para comigo. Como agradecer-lhe tamanha bondade? Não sei. — Nada tem que me agradecer, graciosa lady. E agora preciso dizer-lhe que já está quase finda a meia hora e que precisamos separar-nos. Mas… posso eu… permite-me a senhora… vir de novo aqui… talvez amanhã, à tarde? Quero contar-lhe, caso a interesse, a história de um homem.

Ethelrida voltou para também olhar no relógio, e logo tornou a si. Era demasiado sincera para fingir qualquer defensiva ou arredar este jovial estrangeiro de sua própria existência. Por isso, limitou-se a dizer: — Quando os outros saírem a passeio, depois do almoço… sim, o senhor pode vir. E sem mais dizerem, deixaram o aposento. Numa volta do corredor, que dava para outra parte do prédio, subitamente ele se acurvou e numa profunda homenagem beijou-lhe a mão. Depois, deixou-a passar, e, voltando-se para a direita, desapareceu para os lados em que ficava o seu quarto.

CAPÍTULO XXVIII A CAÇADA O primeiro pensamento de Zara foi que não acompanharia os caçadores. Sentia-se com uma espécie de entorpecimento, que lhe tirava todo o ânimo de palestrar com quem quer que fosse. Recebera uma carta de Mimo, pelo segundo correio, com todos os pormenores que ele sabia sobre o estado de Mirko. A pequena Ágata, filha dos Morley, no dia seguinte voltara para a casa dos pais, fato esse que o próprio Mirko narrava à irmã, numa excitada cartinha que Mimo incluirá à que lhe escrevera. O pequeno parecia passar bem. Somente no fim, como Chérisette podia notar, ele dizia que sonhava todas as noites com a mãezinha. E, como Mimo soubesse que tais palavras significava ter-lhe voltado um pouquinho de febre, achara prudente telegrafar. Mirko havia escrito a música que a mãezinha sempre vinha ensinar-lhe e ansiava por tocá-la para seu querido papai e Chérisette ouvirem. E assim terminava a carta. O patético de tudo isso causou, a Zara, pungente sofrimento. Não ousava olhar para frente, como lhe dizia e recomendava o irmãozinho. Na verdade, olhar para frente, em qualquer circunstância, simplesmente queria dizer ser feliz. Com a carta na mão, encaminhava-se para o seu quarto, mais ou menos quando faltavam quinze minutos para as onze, quando deu com o marido que saia do seu, já de polainas e pronto para partir. Tristram parou e disse-lhe friamente — ainda não haviam trocado uma palavra em todo o dia: — Acho melhor tratar de arranjar-se. Meu tio sempre gosta de sair pontualmente. Nesse instante, os seus olhos pousaram na estranha letra da carta e ele se voltou bruscamente, pronto para deixá-la. Entretanto, segundos depois disse com os seus botões que era ridículo mostrar-se assim com inúmeros estrangeirais. Zara notou-lhe aquela disposição de deixá-la e ficou com raiva, a despeito do sentimento que agora lhe devotava. Também, ele não precisava

mostrar tão francamente o seu desprazer. E assim foi que lhe respondeu altivamente: — É minha intenção não ir. Estou cansada e, como não entendo de caçadas, não encontrarei nenhum prazer. Creio que teria pena das pobres aves. — Sinto muito achar-se cansada —

respondeu

o marido, que

instantaneamente conseguira dominar-se — Neste caso, claro que não deve ir. Entretanto,

todos

ficarão

profundamente

desapontados.

Mas,

não

se

incomode. Vou conversar com Ethelrida. — Não é nada. Um simples cansaço, quero dizer. Mas, se pensa que sua prima fique sentida, eu irei. E, sem esperar resposta, voltou-se e desapareceu em seu quarto. Tristram, depois de também entrar no seu, à procura de qualquer coisa que se esquecera, não demorou que descesse as escadas com um amargo sorriso nos lábios. Em baixo, encontrou-se com Laura Highford. Ela olhou-o fundo nos olhos e conseguiu reunir algumas lágrimas para ostentar-lhe. Lágrimas eram coisa que não lhe faltava e sempre tinha às ordens. — Tristram — murmurou a vampiro, com extrema doçura — você ficou zangado comigo ontem à tarde. Naturalmente por pensar que eu estivesse com insinuações sobre sua mulher. Mas, acaso não sabe… não compreende… o que significa para mim você dedicar-se a outra? Você pôde ter mudado, mas eu sempre sou a mesma, e eu… eu… Neste ponto, ela cobriu o rosto com as mãos e pôs-se a derramar toda uma torrente de lágrimas. Tristram sentiu-se bastante confuso e horrorizado. Detestava cenas. Céus! E se aparecesse alguém? — Laura, por amor de Deus! Laura, minha boa menina, não chore! — exclamava o pobre lorde, sentindo que nada podia fazer ou dizer para consolá-la, e com receio de que fossem vistos. Todavia, ela continuava a chorar. E chorava porque avistara lady

Tancred no topo da escada, e o seu espírito vingativo desejava feri-la, pouco importa que com sacrifício próprio. Zara já estava pronta para sair e só lhe faltava pôr o chapéu. Tratava, pois, de apressar-se para chegar a tempo e, em menos de cinco minutos depois que se encontrara com o marido, cuidava de descer. — Tristram! — soluçava lady Highford, erguendo os braços e passandoos pelos ombros do lorde — Tristram meu benzinho, beije-me uma só vez, depressa, e como despedida! Precisamente nesse instante é que Zara deu com eles, numa volta da escada. Ouviu que o marido dizia com desgosto: — Não, não quero! Viu, também, que lady Highford abaixava os braços e, quando apenas faltavam três degraus para deles se aproximar, com o seu maravilhoso sangue frio adquirido em anos e anos de sofrimento, conseguiu defrontar os dois e perguntar-lhes, em voz natural e como se nada tivesse pressentido, se não iam ao grande hall. A mulher, como ela chamava Laura, jamais teria o gostinho de notar-lhe o menor sinal de emoção, nem tão pouco o próprio marido. — Pois não — respondeu ele imediatamente. E encaminhou-se a seu lado, louco da vida. Como se atrevera Laura a arrastá-lo a um espetáculo desgracioso e ridículo como aquele! Por pouco que não torceu o pescoço àquela desavergonhada. O que pensaria Zara? Simplesmente que ele não passava de um canalha? De mais a mais, estava impossibilitado de oferecer-lhe uma simples explicação, coisa que, evidentemente, a mulher estava longe de pedir. Depois de alguns segundos, Tristram disse abruptamente: — Lady Highford, por qualquer razão, achava-se muito contrariada. Ela é histérica. — Coitada! — observou Zara indiferentemente, sem se deter. Entretanto, quando chegaram ao hall, onde já se achava muita gente, a infeliz lady Tancred sentiu como se os seus joelhos se dobrassem e foi obrigada a sentar-

se incontinenti numa cadeira de carvalho. Sentia-se doente de ciúmes, embora visse claramente que Tristram nem mesmo se curvara a ser vítima daquela mulher. Mas, que relações existiam entre eles, ou existiram, a ponto de lady Highford perder toda a compostura? Tristram contemplava-a ansiosamente. Zara devia ter presenciado a humilhante exibição. Portanto, ou ficara absolutamente indiferente ao que vira, ou se enfadara. Queria que ela o censurasse ou dissesse qualquer coisa… porque permanecer completamente indiferente era para enlouquecer. Não demorou que chegassem todos, e partiram. Alguns dos homens saíram aos grupos, para ver se conseguiam abater alguma caça, de manhã ou à tarde. A diversão do dia era em homenagem à aniversariante, lady Ethelrida; a caçada, meramente um acessório. Zara caminhava ao lado do Corvo, que nunca se entregava à caça. Sentiase saturada de lorde Elterton, saturada de todos. O Corvo era lacônico e distraía-a. Além disso, não esperava arrancar-lhe toda uma conversação. — Creio que a senhora ainda não viu o seu marido atirar, não é verdade, lady Tancred? Como ela lhe respondesse "não", o Corvo prosseguiu: — Vale a pena, porque ele é um grande atirador. Zara não sabia patavina a respeito de caça. Mas não lhe passara despercebida a particular elegância do marido, com aqueles trajes de mato, e que os sportsmen ingleses eram pessoas naturais, sem cerimônia, de quem já começava a gostar. Bem que desejava abrir o coração para este bondoso velho, e pedir-lhe explicasse certas coisas que desconhecia. Entretanto, não podia satisfazer o seu desejo. Agora alcançaram um terreno seguro, e ali se puseram a observar. Por coincidência, Tristram deles se aproximou. De fato, era um excelente atirador, bem que via. Mas, a princípio, o baque dos lindos faisões no chão fêla franzir a testa, a ela — que contemplara a cabeça esfacelada de Ladislau, seu marido, com um simples estremecer de desgosto! Mas estas aves estavam na glória de sua beleza de alegria da vida e não tripudiaram na alma de

ninguém! Seu maravilhoso semblante, que tanto interessava ao coronel Lowerby, continuava abstraído. Alguma coisa lhe revivera aquele odioso momento na sua memória: podia ouvir os gritos de Feto e ver o sangue a borbotear da ferida. Então, estremeceu subitamente e apertou as mãos. — Sente alguma coisa ao ver as aves caírem? — indagou o Corvo bondosamente. — Não sei. Eu estava pensando num outro tiro. — Porque — continuou o Corvo — as mulheres que se insurgem contra esse desporto se esquecem de uma coisa: os pássaros em absoluto não existiriam, não fossem eles preservados exclusivamente para isto. Aos poucos seriam apanhados em armadilhas, em arapucas, e exterminados, ao passo que levam uma vida feliz, são bem alimentados, são cortejados, têm a sua família, completamente alheios ao destino que lhes é reservado. E assim é que vivem em todo o esplendor de uma existência tranquila, até que lhes chegue o derradeiro momento. — Tanto melhor! Agora, sim, é que compreendo e jamais terei tais ideias a respeito dessas aves. Mas… que coisa maravilhosa! — exclama a espantada lady Tancred. É que o marido com tiro certeiro abateu um faisão, que lhes soltou à direita, e derrubou um outro, que voou à esquerda. Tancred rapidamente, de espingarda, derrubou um terceiro. Pelo jeito, a sua disposição de ânimo não lhe afetara nem um pouquinho a pontaria. — Tristram é um dos melhores caçadores das redondezas — afirmoulhe o Corvo — e tem um dos melhores corações que conheço. Acompanho-o desde quando ensaiava os primeiros passos. Sua mãe foi uma das mais lindas ladies do seu tempo, quando pela primeira vez eu vestia o meu uniforme com couraça. Zara cuidou de dominar o seu interesse e observou, por toda resposta: — Não diga! — A senhora já está pensando na recepção em Wrayth, segunda-feira

próxima? Sempre fico a matutar como uma pessoa, não acostumada na Inglaterra, há-de suportar os discursos e jantares, a fogueira, os arcos de triunfo e todas essas coisas que caracterizam a volta ao solar dos seus proprietários. Quase que uma ordália. Os olhos de Zara abriram-se desmesuradamente, e a pobrezinha arquejava: — E sou obrigada a estar presente a tudo isso? O Corvo ficou todo confuso. Acaso Tristram não a pusera a par do que lhe cumpria saber? Em que possíveis relações viveriam eles? Antes que pudesse conter-se escapou-lhe esta exclamação: — Santo Deus! — mas, voltando a si, procurou consertar o disparate — Sim, não ha dúvida. Tristram vai dizer que estive pondo medo na senhora. Afinal de contas, não é tão mau assim. Basta-lhe sorrir e mostrar-se graciosa e apertar a mão dos que lha estenderem. Se a senhora fizer tudo isso, os moradores de Wrayth logo pensarão que é uma perfeita morgada. Não obstante, mesmo entre eles há uns radicais bestas. Contudo, a velha Inglaterra ainda se inclina diante de uma linda mulher! Zara não respondeu. Já ouvira se referirem à sua beleza em quase todas as línguas europeias desde que contava dezesseis anos, e isso era a coisa que menos lhe importava. Logo o Corvo mudou de assunto, enquanto se encaminhavam para outro sítio. Acaso ela sabia que lady Ethelrida resolvera que todas as senhoras se trajassem para o jantar dessa noite, o do seu aniversário, com fantasias improvisadas, e que todos os homens aparecessem com roupa de caça? Os personagens surgiriam de duas alas diferentes do solar, e depois havia um baile, na galeria dos quadros. — Os convidados deste ano são bem divertidos — rematou o Corvo e, como em resposta, Zara lhe dissesse ter ouvido falarem nisso tudo, perguntou-lhe ele como pretendia aparecer — Por que não nos aparece com o cabelo solto? Bem que a senhora poderia deliciar-nos com essa visão.

— Deixei tudo isso aos cuidados de lady Ethelrida e de minhas cunhadas — respondeu-lhe Zara — Depois do almoço, vamos empregar a tarde toda nesses preparativos. Nesse momento Tristram deles se acercava, vindo por trás. O Corvo parou. — Eu estava dizendo à sua esposa que ela devia dar-nos o prazer de soltar os seus cabelos, esta noite, para o jantar à fantasia. Entretanto, não logrei sequer uma simples promessa. Precisamos, pois, apelar para você, a fim de que exerça sua autoridade marital. Não podemos privar-nos de um regalo dessa espécie! — Receio bastante não gozar de nenhuma influência ou autoridade — respondeu Tristram brevemente, pois, sentira excruciante dor ao lembrar-se da única vez em que vira a flamejante beleza daqueles cabelos, espalhados em suas costas como uma capa no instante em que ela se voltara e o expulsara do quarto, em Dover. Também Zara se recordou do fato, e igualmente se entristeceu. De sorte que se puseram a caminho, com o olhar perdido à sua frente, quando, se tivesse um grãozinho de juízo, deveriam ambos se olhar face a face e ler a verdade em seus olhos, de modo que a história de seu amor logo fosse narrada. Entretanto, deviam seguir o seu fadário. E o Destino, que zomba dos tolos, ainda não consentira que eles o fizessem. Lá no alto, as nuvens se ajuntavam, como juntas já se achavam em seus corações, e não demorou que começasse a chover, de maneira que as senhoras correram para a casa. Durante a caçada, a gentil hóspede não ficou ao lado de Francis Markrute. Algum tímido prazer fê-la com que o evitasse no momento. Queria devanear um bocadinho, com a recordação da sua grande alegria dessa manhã, e com a certeza de que no dia seguinte, domingo, depois do almoço idêntico prazer lhe estava reservado. Durante todo esse tempo, deleitou-se pensando em tudo o que ouvira dele, na sutileza do presente que lhe fizera e da maneira por que lho dera. Nada preocupava tanto a cabeça de uma mulher, extremamente sensível, como a intoxicante lisonja derivada do gesto de um homem quando este lhe

rende uma homenagem, mormente se esse homem é uma pessoa séria e grave, que nunca prestou nenhuma homenagem a qualquer mulher. Ethelrida estava no ar, e nunca parecera tão meiga e graciosa. Francis Markrute contemplava-a silenciosamente, com grande ternura em seu coração e sem o menor receio. Devagar e seguro — era a sua divisa, e assim ele puxava sempre a corrente do êxito e do contentamento. A única inquietação era o semblante da sobrinha, que não lhe saía da retina. Parecia não haver nenhum progresso nas relações do casal, a despeito de a sobrinha ter sobejadas razões para sentir ciúmes do marido por causa de lady Highford, sua rival. Elinka, sua irmã, também tinha dessas atitudes estranhas e desarrazoadas, e isso é que a tornava tão atraente. Mas por que Zara e este distinto nobre inglês, com quem o tio a casara, não iam bem? Ao fazer-se esta interrogação, o financista riu-se da impossibilidade de seus cálculos saírem errados. Certamente, era questão de tempo. Todavia, antes que os dois partissem para Wrayth, na próxima segunda-feira, ele diria à sobrinha, agora que arrumara as suas próprias coisas, que Tristram só aquiescera ao casamento depois de vê-la, tendo antes recusado o ajuste. Isso com toda a certeza iria provocar-lhe alguns péssimos momentos de humilhação, talvez imerecida, embora a fizesse penitenciar-se do seu procedimento, e… caísse nos braços do marido. Entretanto, como estivesse bastante preocupado com as suas próprias coisas, e um tanto descontrolado pelo amor. Francis Markrute calculava mal de quanto era capaz o orgulho de uma mulher. A única ideia de Zara era ocultar de Tristram os seus íntimos sentimentos, na crença, coitadinha! — de que ele não mais se importava com ela e acreditando, com o seu procedimento, ter extinto o amor que o esposo lhe devotava.

CAPITULO XXIX A POÇÃO DO AMOR

DURANTE o lanche, havia o que quer que fosse de misterioso entre as senhoras. Todas regressaram com tempo de se reunirem em conclave, antes da merenda, e combinaram tudo satisfatoriamente. Lady Anningford, que não as acompanhara na caçada, fez um esboço completo de tudo o que desejavam levar a efeito, de modo que, em meio de aclamações, disso lhes deu parte assim que voltaram. Decidiram-se representar o maior número possível de personagens do "Os idílios do rei", os mais fáceis de se caracterizarem com as suas vestimentas simples que as criadas poderiam improvisar de uma hora para outra. Além disso, melhor que todas aparecessem com os caracteres de uma mesma peça, ao invés de se darem ao trabalho de empoar o cabelo e cuidarem de outras coisas estrambóticas, que todo o mundo lembrava em tais ocasiões. Faltava somente distribuir os personagens. Lady Anningford imaginou logo que Ethelrida estava talhada para o papel de "Guinevère", e que Zara, mais do que ninguém, calhava para o de "Isolda". — Muito bem! muito bem! — aplaudiam todas, unanimemente, enquanto os olhos de Zara se tornavam negros. "Tristram e Isolda"! Que esplêndido! pensavam. — E serei a "Brangaine", para ministrar a poção de amor — prosseguiu lady Anningford — Embora esse detalhe não apareça no "Os idílios do rei", é preciso que assim seja. A timidez de Tennyson é que ali não o colocou, minhas senhoras! Estive verificando tudo isso no "A morte de Artur", na biblioteca, e na linda edição de "Tristram e Isolda", nas estantes de Ethelrida. — Que coisa encantadora! — exclamou lady Betty — Quanto a mim, representarei "A dama do lago", que é a parte mais dramática de toda a peça. É preciso tirar a grande espada da panóplia, para o "Excalibur"! Posso carregála e brandi-la no instante em que fizer minha entrada em cena.

— Nada disso, querida Betty! — contraveio lady Ethelrida — Você é o verdadeiro retrato de Lynette, com seu encantador narizinho arrebitado, como a terna pétala de uma flor, e com vergonhoso tratamento que dispensou ao pobre Jimmy! Depois de insurgir-se contra a ideia, por alguns segundos, lady Betty acabou por concordar. Foram distribuídos os outros papéis. Emilia seria a "Enid" e Mary a "Elaine", ao passo que lady Melton, lady Thornby e Mrs. Harcourt representariam as "três louras rainhas". — Serei a "Ettarre" — disse Lily Opie — Todas as outras personagens são dotadas de bom coração e insípidas, coisa que não se verificava com "Ettarre". Essa a razão por que a prefiro. Evidentemente, lady Highford será "Vivien"! Tem exatamente o seu tipo, vestido com um dos seus penteadores! Laura gostou imenso da ideia de "Vivien". A seu ver, encerrava certo cachet. Estava no seu fraco bancar a misteriosa feiticeira, cuja ternura, rodeada de um certo mistério, lhe agradava. E assim estavam distribuídos todos os papéis, com alegria geral, exceção feita de Zara, que não se sentia contente. Tristram podia pensar que ela é que o escolhera, como que para provocar uma reconciliação entre ambos. Logo começaram as discussões quanto às roupas que deveriam usar. Convieram que inúmeros adornos e alguns penteadores serviriam para o fim que tinham em vista. Entretanto, com sua costumeira e prática previdência, lady Anningford se lembrara de pedir a um chofer, que fora a recado a Tylling Green, para na sua volta trazer alguns metros de merinó claro e brilhante e pano próprio para hábitos de freira, que se ostentavam na vitrina de uma das grandes lojas ali existentes. Em meio, pois, de exclamações de prazenteira curiosidade, por parte das moças, o grande pacote foi desembrulhado. Continha maravilhas em tecidos branco e creme, e um deles declarou-se logo servir para "Isolda". Era um merinó azul-celeste esplêndido, um tanto desmaiado, exatamente do tom azul do anil de "Richkett", anunciado para

lavar roupas. Durante anos e anos que permanecera na loja, à espera desta ocasião, uma relíquia perfeita dos anilinos olhos da falecida rainha Vitoria. — Isto há de assentar-lhe maravilhosamente. É o bastante passar-lhe uma fita dourada na cabeça, e desprender aqueles seus adoráveis cabelos vermelhos — observou lady Anningford para Ethelrida. — Não é preciso vestirmos qualquer camisa por baixo — afirmou categoricamente lady Betty, fazendo piruetas defronte de um espelho, no quarto de lady Anningford onde todas se achavam. Envolvia-lhe o corpo de menina alguns metros de merinó. — As roupas devem dar idéia do que eram antigamente — compridas, austeras com mangas enormes e talvez um cinto — continuou lady Betty — Escolho a cor creme e você, Mary como "Elaine", deve escolher a branca. Mas a Emilia assentará melhor este malva, como "Enid", que era casada. — Por que "Enid" deve vestir malva, simplesmente por ser casada? — indagou Emilia, que não gostava dessa cor. — Não sei — respondeu lady Betty — Mas parece-me que, se você banca a casada, possivelmente não deverá vestir-se de branco, como eu e Mary que não o somos. É tão diferente uma casada de uma solteira, e a cor malva é bastante respeitável para si — ajuizou lady Betty, que não se importava nem um pouquinho com a gramática quando expendia sua valiosa opinião sobre coisas e sobre a vida. — A meu ver, "Enid" foi uma boba — observou Emilia, mal humorada. — Não tanto como "Elaine" — retorquiu Mary — "Enid" segurou o seu Geraint, ao passo que Elaine estupidamente se apaixonou por Lancelot, que não lhe dava confiança. — Gosto muito mais dos personagens que Lily e eu representamos — disse lady Betty — Vou proporcionar ao meu Jim — "Gareth" uns agradáveis momentos, como quer que seja. Precisamente como se tratasse da vida real. — Compreendo — disse a tia rindo-se — Você vai fazer não o que devia, mas o que está na sua vontade. Entretanto, avistaram-se os caçadores que se adiantavam pelo parque, e

o bando das ladies, muito cheias de si, desceu para o lanche. Lady Anningford sentou-se perto do Corvo e contou-lhe o que ficou combinado. Naturalmente que lhe pediu segredo. — Vamo-nos divertir à grande, Corvo. Planejei toda a cena. Na sobremesa, vou empunhar uma grande taça de ouro, onde despejarei um copo daquele velho e original Chartreuse do duque, para o jovem par beber, como se brindassem à própria saúde. Depois que os dois beberem, vou mostrar-me pesarosa pelo engano que cometi oferecendo-lhes, em lugar de vinho, uma poção de amor. Precisamente como está na história. Não posso jurar, mas acredito que isso há-de reconciliá-los. — Rainha Anita, a senhora é doutro mundo! — exclamou o Corvo. — Como vê, é uma ideia deliciosa e incongruente — continuou lady Anningford — Todos nós vestidas com roupas da era anterior à medieval, com os cabelos soltos, e os homens nas suas modernas roupas de caça. Gostaria bem que Tristram ficasse preso numa cadeia de ouro. O Corvo crocitou um "muito bem". — Ethelrida vai dar um jeitinho para que os dois se dirijam, juntos, à sala de jantar. Dir-lhes-á que é a última oportunidade que têm antes de comparecerem à presença do rei Marcos. Não acha tudo isso bem pensado? — Bem, mas a senhora melhor do que eu é que sabe — disse o Corvo, com a ajuizada cabeça voltada para um lado — Entretanto, eles atravessam uma fase de incerteza em sua vida e… e não se esqueça de que não deve tornar as coisas muito difíceis para ambos, além dessa prova de bondade que lhes vai mostrar. — Você é impossível, Corvo! Nunca eu posso fazer uma coisa sem que você me venha com esses conselhos. Deixe isso comigo. Admoestado dessa maneira, o coronel Lowerby voltou ao seu lanche. Os olhos de Zara mostravam-se mais tempestuosos do que nunca, no instante em que seu marido com eles cruzou. Tristram estava sentado na sua frente, e dava tratos à cabeça para saber no que a esposa estaria pensando. Ele estava cheio de uma concentrada amargura, derivada dos acontecimentos

da manhã; a sua profunda indiferença ao incidente com Laura irritava-o insuportavelmente, embora dissesse consigo mesmo, como sempre se reconhecia, o quanto era inconscientemente tolo para a cada instante procurar novos sofrimentos pela contínua prova do desprezo que Zara lhe ostentava. Então, uma vez que estava certo disso, por que não se preparava para receber essas provas de inequívoca apatia? Possuía uma vontade inquebrantável; devia, pois, dominar a emoção que sentia pela esposa. Pelo menos deveria tratá-la, externamente, com a mesma aparente insolência com que era tratado. Já se decidira, mais uma vez, que só lhe falaria o estritamente necessário, como nos últimos três dias que passaram em Paris. Acurvar-se-ia a esse estado de coisas até que seguissem para Wrayth e ali dessem a recepção do costume. Depois, certamente arranjaria meios de partir para a África, em caçadas de leões ou cuidaria de viajar, enfim, procuraria distrair-se. Nada mais havia "talvez" para ele. A vida, com aquele agonizante desejo pela esposa, vendo-a diariamente e diariamente repelido, já se lhe tornara insuportável. O que quer que fosse no tipo de Zara — o inexcedível encanto daquela pele de gardênia; a plástica irrepreensível e cheia de volúpia; a tempestuosa sugestão de amoroso sentir naqueles sombrios olhos — despertava as emoções dos homens e tornava-o absolutamente enfurecido. Tristram, que era um inglês normal, reservado, de há muito habituado a conter-se, bastante são de corpo para tão elevadas excitações, cada vez que a olhava sentia despertarem-lhe sensações até então desconhecidas. Evitava, pois, o mais possível olhar para a esposa. Compreendia, agora, o que significava uma obsessão, todos aqueles estados do amor que lera em romances franceses e que taxara de baboseiras. Zara não só lhe despertara uma vibrante paixão física como também uma obsessão de pensamento. Sofria pavorosamente. Cada dia que passava parecia-lhe não mais ser-lhe possível suportar esse estado de coisa, e o dia seguinte lhe trazia novo padecimento. Há apenas dez dias que estavam casados e a ambos, por diferentes razões, parecia datar de uma eternidade o seu consórcio. A natureza de Zara cuidava, agora, de quebrar os círculos de ferro com que a sua experiência a protegera. Uma vez convicta de que amava o esposo,

seu sofrimento tornou-se tão profundo como o dele. A diferença é que era mais prática na arte de dissimular emoções. Não causava admiração, pois, que ambos parecessem pálidos, sérios e indiferentes um ao outro. Os caçadores partiram de novo imediatamente após o lanche, e as senhoras tornaram ao seu delicioso entretenimento. Quando novamente se reuniram para o chá, quase tudo já estava assente. Impossível a Zara resistir à contagiosa alegria que reinava no ambiente e agora sentia-se bem melhor. Essa a razão por que consentiu que lorde Elterton se sentasse a seu lado, no chá, e lhe prestasse a habitual homenagem. Escutou-o com os modos de uma imperatriz, a quem um cortesão de longínqua colônia protesta a sua lealdade. Entretempo, o Corvo recostava-se confortavelmente em sua cadeira e ria-se consigo mesmo, com grande enfado de lady Anningford. — Por que está rindo, Corvo? Quando você se ri dessa maneira, é porque alguma ideia cínica e diabólica está flutuando em sua cabeça, fato que não o recomenda nem um pouquinho. Diga-me já e já no que está pensando. Mas o coronel Lowerby recusou-se a confessar-lhe o seu pensamento, e levou Tristram até a sala de bilhar. Ficou combinado que todos os homens, mesmo os casados, descessem no grande salão de visitas antes dos demais, de modo que as senhoras pudessem ter o prazer de ali surgirem em bando, para maior efeito. Quando, pois, o grupo de ingleses, tão elegantes no seu casaco vermelho de caçada, se postara nas imediações da lareira, os criados abriram de par em par as portas do salão, enquanto o cavaleiro da câmara do rei anunciava: — Sua Majestade a Rainha Guinevère e as damas do paço. Ethelrida então adiantou-se, com os seus lindos cabelos louros divididos em duas longas trancas e na cabeça a coroa rodeada de diamantes da duquesa, sua falecida mãe, trajando um vestido de brocado branco, com um manto de merinó azul, franjado de arminho e de prata. O seu aspecto era perfeitamente régio. Linda como nunca. Para os olhos extáticos de Francis Markrute, lady Ethelrida eclipsava as outras. Após a entrada da rainha e à medida que os seus nomes eram anunciados, apareceram "Enid" e "Elaine", ambas louras e encantadoras;

depois "Vivien" e "Ettarre"; após "Linette", caminhando sozinha, com o seu petulante e arrebitadinho nariz fungando o ar, e os louros cabelos espalhados pelo manto creme, toda uma linda criaturinha. Vários

passos

distanciados

surgiram

as

"três

rainhas

louras",

maravilhosamente caracterizadas em suas roupas e com o seu enevoado e flutuante véu. Finalmente, a cerca de dez passos atrás, vinha "Isolda" acompanhada de sua "Brangaine". No instante em que o grupo de homem, perto da lareira, deu com aquela estonteante visão, por pouco não perdiam o fôlego. É que Zara excedera a todas as expectativas. Aquele intenso e ruidoso azul da sua longa e pendente capa, que tiraria todo o encanto de nove mulheres em dez, realçava extraordinariamente a imaculada brancura de sua pele e os maravilhosos cabelos cor de fogo. A impressão que se tinha era a de um cintilante manto vermelho a envolvê-la, apenas seguro por um fio de ouro, ao passo que os seus escuros olhos brilhavam com um novo excitamento. Desta feita Zara afrouxou o domínio de si mesma, e surgia a natural e triunfante mulher num dos seus grandes dias. Pela primeira vez em sua vida esquecera-se de tudo quanto fosse tristeza e preocupações, e rejubilava-se com sua própria beleza e com a sensação que despertava nos outros. — Josafá! — foi a primeira expressão articulada que se ouviu, em meio daquele oh! que quebrava o silencio do local. Depois, houve um coro geral de admiração, em que as próprias senhoras tomavam parte. Somente o Corvo se lembrou de olhar para o rosto de Tristram, e notou-o branco, branco como a morte. Depois, os dois grupos, umas vinte pessoas ao todo, começaram a chegar de outros aposentos, em meio de prazenteiras exclamações de surpresa ante o esplendor daqueles trajes imaginados na hora. Logo foi anunciado o jantar, e todos se passaram para a outra sala. — Meu lorde Tristram — disse Ethelrida para o primo — Peço-lhe que acompanhe ã minha mesa de banquete a sua encantadora lady Isolda. Lembrese! Na segunda-feira o meu lorde vai deixar-nos com sua esposa, rumo ao reino do rei Marcos, de modo que esperamos nos consagre todo o tempo que

lhe resta entre nós. Voltando-se, pôs Zara por diante e colocou a sua mão na do esposo. De tão preocupados com tanto excitamento e alegria, ninguém pôde notar o profundo sofrimento nos olhos de Tristram. Ele conservou entre a sua mão a da esposa, até que o cortejo se pôs em marcha. Entretanto, nenhum dos dois pronunciou sequer uma palavra. Zara, ainda arrebatada pela alegria que reinava, sentia unicamente uma selvagem excitação. Estava contente porque ele podia notar a sua beleza e o seu cabelo. Chegou a levantar a cabeça e atirá-la para trás, no instante em que se punham em movimento, com um ar de provocação. Mas ele não disse palavra. Tão logo chegaram ao hall do banquete, parte de sua exaltação descaiu, e a formosa "Isolda" sentiu-se arrefecida. Os seus cabelos eram tão longos e espessos que foi obrigada a puxá-los de lado para sentar-se. Quando fez esse gesto, uma daquelas madeixas tocou no rosto do marido. O Corvo que estava observando atentamente todo aquele drama, notou que Tristram estremecera e, se possível, tornara-se mais pálido. Voltando-se para o seu próprio criado, postado atrás de sua cadeira para auxiliar a servir a mesa, ordenou-lhe em voz baixa: — Ponha a garrafa de brandy perto de lorde Tancred imediatamente, antes da sopa. Começou o banquete. Do outro lado de Zara sentou-se o duque, e "Brangaine" estava perto de Tristram. Ethelrida é que assim dispusera os lugares, para o plano que tinham em vista. Depois de tomar um pouco de brandy, bastante admirado porque ali o puseram, ao seu alcance, Tristram achegou-se à esposa e cuidou de palestrar. Zara estava entretida com o duque. Abandonara completamente o habitual silêncio e ria-se. A sua fisionomia era tão divinamente sedutora que aquele esplêndido e velho gentleman quase perdeu a cabeça. Chegou a pensar duramente que, se fosse o sobrinho, logo depois do jantar com ela desaparecia para gozar, como seu marido, todos aqueles encantos. Entretanto, estes rapazes modernos não possuíam nem a metade da sua coragem, nos áureos tempos da sua mocidade. Por fim chegou a sobremesa, com os brindes à rainha Guinevère. Não

obstante, o jovem par ainda não havia trocado uma única palavra! Lady Anningford, que os observava, começou a recear malograsse o seu plano. Todavia, de nada adiantava voltar atrás. E assim foi que, em meio de gracejos de toda espécie e portando-se com o espírito do Camelot e da Mesa Redonda, "Brangaine" levantou-se. Empunhando a taça de ouro, pronunciou as seguintes palavras: — Eu, "Brangaine" nomeada pela Rainha-Mãe para conduzir lady Isolda em segurança para o rei Marcos, sob a cavalheiresca proteção de lorde Tristram, agora proponho que bebamos à saúde de ambos, e todos nós devemos agir do mesmo modo, lordes e ladies da Corte do Rei Artur. E bebeu na sua própria taça, enquanto entregava a taça de ouro ao duque, que a passou para o casal. Tristram, como todos os olhos estivessem fixos nele, foi obrigado a continuar com a brincadeira. E assim é que se levantou e, tomando a mão de Zara, após inclinar-se deu-lhe a taça para beber. Depois, levou-a aos seus próprios lábios e esgotou-a. Todo o mundo se pôs a gritar em meio de grande excitamento: — À saúde e à felicidade de Tristram e Isolda! Cessado

um

bocadinho

o

tumulto,

"Brangaine"

fingiu

um

estremecimento. — Misericórdia! O que fiz! — exclamou "Brangaine" — Eles beberam na taça errada! Aquela taça continha uma poção de amor… destilada de plantas exóticas, pela rainha, e destinada para o vinho esponsalício de Isolda e do rei Marcos! E agora que lorde Tristram e ela beberam na mesma taça, por engano, jamais os dois partirão. Infeliz de mim! O que fui fazer! Em meio de boas e gostosas gargalhadas, em que sobressaía a do Corvo, em frio silêncio Tristram levantou a mãozinha da esposa. Entretanto, segundos mais tarde — tal como na noite de seu casamento, na presença de criados — a educação de ambos fez com que continuassem a comédia. E os dois também se puseram a rir e, com a assistência do duque, o jantar foi até o fim. Depois, todos se levantaram e saíram, dois, a dois, cada homem conduzindo sua lady pela mão, como haviam entrado.

E, como se de fato aquela taça contivesse uma poção destilada pela feiticeira rainha irlandesa, as duas vítimas nunca se viram tão loucamente apaixonados. Contudo, o orgulho de Tristram mais uma vez prevaleceu. Nessa noite, nem por um olhar ou meneio da cabeça deu a perceber à jovem esposa como a sua soberba atração lhe ateara fogo no sangue. Quando se iniciaram as danças, ele dançou primeiro com outras senhoras, e depois foi à sala de fumar. Dali saiu somente para dançar a quadrilha final com sua "Isolda", e não uma valsa. Contudo, necessitou de uma grande, de uma impossivel força de vontade para resistir à valsa! Mesmo assim, ao contacto daquela mãozinha de veludo, à aproximação daquele corpo, das delicadas curvas de sua delgada compleição e daqueles flutuantes cabelos — à vista de tudo isso sentiu indescritível angustia. E assim foi que, quando os restantes convivas se despediram e seguiram para os seus aposentos, Tristram subiu ao seu quarto, trocou de paletó e sozinho, dentro da noite, se pôs a vagar pelo parque.

CAPÍTULO XXX POR QUÊ?

QUASE todos estavam com tanto sono e tão cansados na manhã de domingo, após a noite passada na corte do rei Artur, que somente lady Ethelrida e Laura Highford, sempre pronta para fingir-se bastante religiosa, acompanhadas do duque e do "Menino" Billy foram à igreja. Francis Markrute observava-os de sua janela, que olhava para a entrada da casa solarenga, e pensava no porte majestoso e digno de sua loura lady, a qual jamais permitia interferisse nos seus deveres uma noite passada em claro e em meio de alegria. Sua loura lady. Francis Markrute decidira-se confessar o seu amor a lady Ethelrida, se as coisas caminhassem como pensava. Um homem deve ser em tudo previdente, e nunca precipitar-se. Cuidadosamente preparara todos os acontecimentos e conseguira que o duque

lhe

desse

grande

importância.

De

quando

em

quando,

propositadamente mostrava cintilações de espírito, de sorte que convenceu Sua Excelência de que seria de grande utilidade para o partido a que este pertencia. Não cuidou mais de se insurgir contra quaisquer conceitos de Sua Excelência, uma vez que estava certo do amor de sua filha. Que ele a amava, com todo o domínio de sua controlada natureza, era coisa fora de dúvida. O amor, em regra geral, pouco se importa da conveniência do objeto sobre que incide, quando transtorna todo um coração humano, mas em alguns poucos casos constitui peculiar encanto. Francis Markrute havia esperado até os quarenta e seis anos de idade, firme quanto ao seu ideal, até que o encontrou, num grau de perfeição com que jamais sonhara. A teoria que sempre sustentava e pusera à prova em toda a sua existência, era que nada, nada neste mundo estava fora do alcance de um homem senhor de sua vontade e das próprias emoções. Todavia, mesmo aqueles nervos de aço sentiam a tensão do seu excitamento, quando todos já

estavam quase no fim da lanche e daí meia hora, disperso o bando, de novo ele deveria encaminhar-se para a salinha de sua lady. Ethelrida

não

olhou

para

ele.

Como

de

costume,

mostrava-se

encantadoramente graciosa para os seus vizinhos e solícita para Tristram, no momento preso de forte dor de cabeça. Mal acabava de ali aparecer e já mostrava o que lhe ia por dentro: era todo ruínas. Ethelrida logo se interessou por algumas noticias publicadas nos jornais de domingo, há pouco chegados, de modo que ninguém nem de leve suspeitou do estremecimento que lhe passava pelo corpo, das suaves palpitações daquele coraçãozinho ante a primeira e real emoção que experimentava em toda a sua vida. O próprio Corvo, tão cheio de interesse pelos jovens recém-casados, nada notou de anormal na atitude da hóspede para com os seus convidados. — Acho simplesmente encantador esse Mr. Markrute, hein, Corvo? — observou-lhe lady Anningford, no instante em que deram inicio ao seu passeio. Depois do lanche de domingo, dar um giro até Lynton Heights era um quase invariável costume em Montfichet — Não sei bem o que seja — continuou lady Anningford — mas noto nele um quê de sutil e extraordinário, idêntico ao que se observa na sobrinha… Que acha disso tudo? O coronel Lowerby parou, chocado pelas palavras de sua amiga, perfeitamente de acordo com o fato que tanto o preocupava no tocante àquele estrangeiro, na verdade, um homem interessante. — Dou-lhe minha palavra que nunca pensei nisso! — respondeu o Corvo — Mas, agora que está falando em tal coisa, concordo com a senhora e acho-o, mesmo, um homem extraordinário. — É de um temperamento tão calmo — prosseguiu lady Anningford — e sempre quando fala dá gosto a gente ouvi-lo. Se com ele tratarmos de assunto explanado em livros, vê-se que é uma perfeita enciclopédia. Deu-me a impressão de todas as forças e poderes concentrados num homem. Admirame quem realmente seja esse homem. O seu estofo não se parece nem um pouquinho com o dos homens atuais. Acredita que haja qualquer toque judio em sua pessoa? O tipo não mostra qualquer traço judio, mas quando os estrangeiros são fabulosamente ricos, quase sempre têm qualquer coisa dessa

raça. — Certamente que possui qualquer traço de sua remota origem, uma vez que é tão inteligente — crocitou o Corvo — Se a senhora reparar, há-de notar que numerosas famílias inglesas, que mostram inteligência, lá muito no fundo têm qualquer marca judia. Uma vez que tais vestígios sejam bastante remotos, pessoalmente não alimento o mínimo preconceito quando a tratar com eles. Prefiro lidar com pessoas que não sejam estúpidas. — Quanto a mim, não tenho o menor preconceito sobre isso — afirmou lady Anningford — Uma vez que uma pessoa me agrade, não me importa o que haja em seu sangue. — De fato, tudo irá bem enquanto a senhora não arranhar essa pessoa, quando então se ostentará esse vestígio. Mas, como eu dizia, se o traço for bastante remoto, o sangue judio comunicará à futura raça dos Tancreds extraordinário poder, uma vez que o critério em matéria de negócios, há de circular em suas veias. Conheci, há muitos anos, Maurice Grey, pai dessa senhora. Era tão indiferente ao dinheiro e às coisas materiais como o próprio Tristram. De sorte que o bem, para a futura raça dos Tancreds, virá da parte de Markrute. — Às vezes fico a pensar, Corvo, se veremos de fato a continuação da raça dos Tancreds. Creio que a noite passada tivemos um grande fracasso, e que tudo o que imaginamos de nada serviu para o interesse de ambos. Nem mesmo creio se se encontraram, no dia seguinte. Simplesmente horrível, tudo isso. — Já lhe disse que eles chegaram a uma situação delicada em sua existência — lembrou-lhe o Corvo — e, palavra de honra, não apostarei nem um real quanto ao rumo que tomarem as coisas entre os dois. Detesto as minhas dúvidas, como dizem os escoceses. Entretanto, com o pretexto de escrever algumas cartas, lady Ethelrida retirou-se para a sua salinha de estar e, ao bater das três e um quarto, ela esperava… esperava o quê? Não ousava confessar se se tratava de seu próprio destino: punha areia nos olhos e dizia consigo mesma que não passava de uma agradável palestra.

Para os seus vinte e seis anos, lady Ethelrida parecia muito moça, com aquela sua delicada compleição, o seu tanto ou quanto de patrícia no instante em que se sentava no sofá, com almofada de chita e os vivos desenhos de lilás em fundo delicadamente verde. Tudo ali se harmonizava perfeitamente, até o próprio vestido que ela trajava, cor de violeta e guarnecido de pele. Mais uma vez, coincidindo com as batidas do relógio, Francis Markrute entrava na salinha. — Isto é simplesmente divino — disse ele ao entrar, com os olhos cintilantes e o pestanejar gaiato de um estudante que excedia em astúcia a própria companheira — Toda aquela gente está caminhando milhas e milhas a pé, sob a ação do frio e do nevoeiro, enquanto nós dois aqui nos achamos ao pé de excelente fogo e entregues a amistosa palestra. Tais palavras tranquilizaram o nervosismo de lady Ethelrida, e deramlhe tempo para voltar a si. — Posso sentar-me perto da senhora, lady Ethelrida? — indagou ele. Como por toda resposta recebesse um sorriso, tomou uma cadeira, mas não se sentou muito perto da lady. Coisíssima alguma devia ser apressada fora do devido tempo. E assim foi que durante um quarto de hora conversaram sobre livros, assunto predileto de ambos. Os dela eram tão simples e castos, e os dele de toda espécie, uma vez que tivessem estilo e fossem obras primas de gosto e de critério. No momento em que uma grande acha de lenha caiu na grelha aberta do fogão e produziu faíscas, ele se inclinou um bocadinho e perguntoulhe se poderia contar-lhe, agora, a razão por que ali viera, isto é, contar-lhe a história de um homem. A luz do dia ali penetrava em borbotões, de sorte que tinham toda uma hora à sua frente. — Sim — disse Ethelrida — mas primeiro arrumemos o fogo, e acendamos isto aqui — e apontou um abajur que era toda uma grande coruja de porcelana cinzenta, a qual por única pintura trazia alguns lilases no dorso — Depois disso, não precisamos mais mexer-nos, mesmo porque estou curiosa de ouvir a "história de um homem".

Francis Markrute acurvou-se ao desejo de sua lady e também puxou um bocadinho as cortinas de seda. — Agora, certamente estamos bem… pelo menos eu estou — disse ele. Lady Ethelrida recostou-se na sua almofada de musselina bordada, e preparou-se para ouvir a historia. Havia um certo êxtase em seu semblante. Francis Markrute permaneceu algum tempo perto da lareira, e logo começou: — A senhora precisa acompanhar-me no meu retrocesso aos dias de outrora, minha doce lady, e entrar num palácio de sombria cidade, onde nos encontramos uma artista, uma dançarina, mas ao mesmo tempo uma grande musicienne e bondosa e formosíssima mulher, dotada de cabelos vermelhos, esplêndidos cabelos vermelhos, como os de minha sobrinha. Naquele palácio ela residia, longe do mundo e devotada a seus dois filhos. Aquele que a amava era um Imperador, pai dos seus dois filhos, de sorte que os quatro ali viviam bastante felizes. Os filhos eram um menino e uma menina, e já os encontramos crescidos. O rapaz logo começou a pensar na vida e a fazer raciocínios tirados de suas próprias observações. Talvez que tivesse herdado esta faculdade do seu avô materno, que foi um notável filósofo espanholjudeu. De sorte que sua mãe, a linda dançarina. era meio judia, e parte daquela faculdade do rapaz lhe adveio de sua avó, que era uma espanhola meio nobre, porquanto o filósofo fugiu com a filha de um alto dignitário do reino, logo riscada da família. Não é para fatigá-la, lady Ethelrida, que fui tão longe nestas minhas reminiscências, mas para que possa compreender que forças raciais atuaram na formação do caráter do rapaz. A própria filha deste casal tornou-se uma artista e dançarina, de uma educação finíssima e extraordinária beleza, mulher que possuía todo o encanto de Zara e com os traços

infinitamente

mais

bem

modelados.

No

país

em

que

vivia,

devotadamente a amou o seu Imperador. Não entro no aspecto moral do assunto; um grande amor não cuida de aspectos morais, e limito-me a dizerlhe que o casal foi idealmente feliz, enquanto viveu a formosa dançarina. Ela morreu quando o filho andava pelos quinze anos, para grande e continuada tristeza do pequeno órfão. Sua irmã, um ou dois anos mais criança, constituíalhe

seu

grande

amor,

porque

naquele

país impediam

que

o

filho

continuamente se avistasse com seu pai, o Imperador. — O rapazinho foi cuidadosamente educado e, como já lhe disse, cedo começou a raciocinar por si mesmo e… a sonhar. Sonhava com todo o fausto de sua vida se realmente fosse o herdeiro do trono, como filho do Imperador, e não filho da formosa dançarina, que lhe parecia ser a maior senhora do reino e a verdadeira rainha. Pouco depois, no entanto, concluiu serem todos esses devaneios, que repousam em tristezas, perfeitamente inúteis, e só serviriam como fator de degradação do homem. O rapazinho logo reconheceu que daquela meiga progenitora, embora todo o mundo a taxasse de mulher impudica, ele herdara algo de maior valia que a coroa imperial — a faculdade de percepção e de equilíbrio, físico e moral, que toda a família do Imperador, seu pai, não podia reivindicar. Daí, os dois — irmão e irmã — terem herdado um obstinado, um indomável orgulho, que a senhora, lady Ethelrida, ainda pode notar em Zara, filha da irmã. — Quando o rapaz chegou aos vinte anos de idade, decidiu-se exigir para si mesmo uma carreira, e fazer uma grande fortuna, de modo a construir o seu próprio e pequeno reino, que não estaria sujeito a nenhum outro país ou raça. O seu preceptor era um inglês. Sempre tivera um preceptor inglês, de modo que nos seus estudos sobre países, povos e atributos peculiares, a raça inglesa lhe pareceu a mais fina de todas. Era mais sã, mais compreensível, mais adaptável às coisas do que qualquer outra, mais prática quanto ao modo de levar a sua existência e a que mais criteriosamente sabia viver. — Assim, esse rapaz, que não tinha pátria e nem o menor patriotismo pelo seu berço natal, livre do vínculo de qualquer nacionalidade, resolveu que tão logo fizesse fortuna emigraria para a Inglaterra e se esforçaria para conseguir um lugar em meio desse orgulhoso povo, a quem tanto admirava. Este foi o seu alvo durante muitos anos de aturado trabalho, em que cada vez mais pôde compreender o valor do caráter do indivíduo, sem cogitar de nacionalismo ou de crença. Quando finalmente aqui chegou, não veio para procurar, mas para mandar. Neste ponto de sua narrativa, Francis Markrute, senhor de fabulosa fortuna e do destino de incontáveis seres humanos, quase tanto como seu pai, o Imperador, ergueu a cabeça. E lady Ethelrida, em cujo sangue corria a

nobreza de centenas de anos, verificou não ser seu pai, o duque, mais orgulhoso do que aquele homem, do que o filho da dançarina espanhola. Algo de sua finíssima sensibilidade para ele se voltara, e lady Ethelrida, com a luz suave daquele abajur coruja prateando os seus cabelos, estendeu-lhe uma das mãos. Francis Markrute ternamente a levou aos lábios, e depois sentou-se perto da sua interlocutora. — Minha meiga e santa lady — disse ele — A senhora bem me compreende. — Sim, sim! — aquiesceu lady Ethelrida — Oh, por favor, continue! — suplicou, de novo recostando-se em sua almofada, sem que, no entanto, cuidasse de retirar a mão que ainda tinha presa à do financista. — Sobreveio uma grande tristeza na vida do moço, que por esse tempo já era homem feito. É que sua irmã dera um mau passo e depois morreu, em circunstâncias extremamente penosas, que não vêm ao caso aqui relembrar. Disso resultou tornar-se a existência desse homem sombria e amargurada. Francis Markrute fez ligeira pausa, e voltou os olhos para o fogo da lareira, com expressão de profunda tristeza e saudade em seus traços varonis. Ethelrida inconscientemente fez ligeira pressão com seus dedos na mão do financista. Este, quando sentiu aquela gentil prova de simpatia, acariciou-lhe a mãozinha. — O moço portou-se com muita severidade, querida lady — prosseguiu ele — E agora sente profundo remorso, pois que o maculado anjo, que até esse dia reinava em sua existência, com seus meigos olhos de divina piedade e gentileza, lhe ensinara muitas lições. E o seu remorso durará a vida inteira. Entretanto, o que a irmã fez feria o seu orgulho profundamente, feria aquela qualidade que ele herdara do pai, ainda não de todo em toda educada e sempre pronta para manifestar-se. O orgulho deve constituir um fator de ações nobres, um atributo dos grandes espíritos, e não para deprimir a falta dos outros, bem que agora conhecia. Se esta lady, a quem adorava, algum tempo quisesse conhecer todos os detalhes de sua vida, ele lhe contaria, custasse embora o preço de seu orgulho. Entretanto, na ocasião melhor era que tratassem de coisas mais agradáveis.

— Sim, sim, quero! — murmurou lady Ethelrida. — Durante toda a sua vida, desde rapazinho até homem, este moço de quem estamos falando conservara puro o seu ideal de uma mulher a quem amasse. Devia ser delgada e bem proporcionada, nobre e livre, terna e devotada, graciosa e boa. Mas toda a mocidade lhe passara e ele chegou à meia idade sem que visse a sombra do seu ideal. Todavia, há dezoito meses passados, num baile da corte a que assistira, deu com o seu ideal passeando pelo braço de um duque real. Sem querer, roçou o seu sobretudo no delicado vestido que ela trajava, e a partir de então reconheceu-a como tal, depois de anos e anos de espera. Desde logo, cheio de esperança, construiu os seus castelos, e encontrou-a depois mais uma vez ou duas. Mas o destino não o ajudava, de modo que imaginou logo um plano. Sua sobrinha, a filha da falecida irmã, também levava uma vida infeliz, e, a seu ver, também podia vir residir na Inglaterra e aí encontrar a própria felicidade. Era uma mulher formosa, orgulhosa e boa, portanto um excelente partido para o primo da lady a quem adorava. Desse jeito, conseguia ele aproximar-se do seu ideal, e também pagar o débito contraído com a falecida irmã, assegurando a felicidade da filha. Primeiramente, no entanto, o seu desejo era aproximar-se daquela a quem adorava. E foi o que aconteceu. Francis Markrute fez uma pausa, e olhou de fito o rosto de lady Ethelrida. Notou, então, que aqueles meigos olhos estavam enevoados de ternura, cheios de lágrimas felizes. Inclinando-se, tomou a outra mão da moça, beijou-as a ambas e levou ambas as palmas aos lábios. Depois, murmurou quase que roucamente, com a voz trêmula da emoção que sentia: — Ethelrida, querida, amo-a! Amo-a com toda a minha alma. Diga-me, querida lady, quer ser minha esposa? A filha do duque de Glastonbury não respondeu e deixou-se apertar pelos braços de Francis Markrute. E assim, à luz das crepitantes brasas da lareira e sob o olhar contemplativo daquela coruja cinzenta, os dois permaneceram esquecidos dos outros, entregues à sua própria felicidade.

CAPÍTULO XXXI EU O AMO! BATA-ME, SE QUISER!

QUANDO lady Ethelrida desceu para o chá, seu meigo semblante deliciosamente se ruborizara, pois que estava completamente desabituada a carícias e beijos de homem. Os ternos e cinzentos olhos brilhavam com a felicidade que jamais sonhara e, mais do que tudo, emocionava-a o segredo que guardava em seu coração. O segredo daquilo que mesmo a sua amiga íntima, lady Anningford, ignorava! O santo segredo, somente dela conhecido e do seu amor. Lady Anningford, que estava longe de pensar que a amiga passara a tarde com o financista, e a imaginara escrevendo religiosamente as suas cartas, admirou-se da razão porque Ethelrida parecia tão radiante e nem um pouquinho fatigada, como a maioria do pessoal. A seu ver, Ethelrida se tornara mais formosa com o adiantar dos anos, e sempre era a mais preciosa criatura do universo. Mas, parecer tão feliz e com o rosto todo ruborizado, era coisa um tanto misteriosa, e exigia a opinião do Corvo. E assim foi que arrastou o coronel Lowerby a um sofá, e logo começou: — Corvo, repare no rosto de Ethelrida! Você já viu tamanha expressão de felicidade, a não ser quando uma mulher é beijada pelo homem a quem ama? — Como sabe que tal coisa não se tenha verificado com a nossa querida Ethelrida? — crocitou o Corvo — Lembre-se que ela não saiu conosco, no passeio. Melhor é que a senhora investigue isso, e saiba quem mais aqui esteve, na casa. Lady Anningford pôs-se a rir. Aquilo era um impossível. Em todo caso, iria pensar. — Havia lorde Melton, mas ali estava o breque de lady Milton. Quanto aos Thornby, eram carta fora do baralho. Além desses, Tristram achava-se na sala dos fumantes, curtindo sua forte dor de cabeça, e Mr. Markrute, que

estava com o duque. — De fato, estava ele com o duque? — indagou o Corvo. — Corvo! — quase exclamou lady Anningford — Acaso você pretende que o rubor no rosto de Ethelrida tenha sido provocado por um estrangeiro? Meu caro amigo, acho melhor você abandonar os seus cinco sentidos. Lady Anningford não prosseguiu, porquanto lhe acudiram à lembrança inúmeras coisinhas ligadas àqueles dois. Com a suspeita que lhe levantara o Corvo, tais coisinhas começaram a assumir considerável proporção. Lembrava-se de que Ethelrida cometera inúmeros fatos relevantes durante todas as suas palestras, à noite, exceto do que acontecia com Zara, e nunca mencionara pessoalmente Mr. Markrute ou expendera alguma opinião sobre o financista, a despeito de ter conversado por muitas vezes e bastante com Mr. Markrute, conforme lady Anningford notara. Devia haver qualquer coisa naquilo, mas não bastava para justificar a súbita transformação verificada no rosto de Ethelrida, usualmente pálido e agora ruborizado daquele jeito! E, como lady Anningford bem sabia, somente os beijos de homem eram capazes de operar tal mudança. Se se tratasse de Lily Opie, não estaria bem segura, embora até certo ponto tivesse confiança em muita mocinha bonita. Mas, com respeito a Ethelrida, seria capaz de jurar. Entretanto, qualquer coisa de extraordinário teria sucedido com Ethelrida, bastante descorada por ocasião do almoço e que não era dessas que adormecem perto da lareira. Mas, o que seria? — Meu caro Corvo, nunca fiquei tão emocionada em minha vida — disse ela, depois que os seus pensamentos regressavam daquela divagação — A pavorosa tragédia do casalzinho não se compara, nem de longe, com o interesse que sempre me desperta o que quer que diga respeito à minha meiga Ethelrida. Por isso você precisa dar tratos a essa imaginação horrivelmente sagaz e cínica, e desvendar-me todo este mistério. Olhe, Mr. Markrute aí vem vindo! Reparemos em seu rosto! Contudo, a despeito de examinarem a fisionomia do financista sob todos os ângulos, ali não encontraram o menor indício, nem Markrute lhes ofereceu qualquer indicação. Sentou-se tranquilamente e se pôs a conversar

com as pessoas em redor da mesa, enquanto metodicamente passava manteiga no pão. Chás deliciosos como aqueles, que lhe faziam lembrar os que tivera no tempo de estudante, somente na hospitaleira casa dos Montfichet! Entretanto, não parecia dirigir-se a Ethelrida. O que seria? — Creio que me enganei redondamente, Corvo — observou lady Anningford desapontada — Repare! Ele está perfeitamente tranquilo. O Corvo deu uma das suas risadas, ao mesmo tempo que respondia vagarosamente, em meio de goles de chá: — Um homem não lida anualmente com milhões e nem pode manejar, a seu talante, metade de todos os governos da Europa, se não puder conservar a fisionomia fechada a isso que a senhora quer descobrir! Por Deus, rainha Anita, Mr. Markrute não é nenhuma criança! E riu-se de novo. — Você, Corvo, pode pensar com razão — retorquiu a lady, com uma certa severidade — mas é completamente leigo em matéria de amor. Quando um homem está apaixonado, mesmo que se trate do próprio Machiavel, descobre-se isso nos seus olhos, se os fitarmos por algum tempo. — Nesse caso, minha boa rainha, continue a observar — replicou-lhe sorrindo o Corvo — Quanto a mim, quero verificar como se passam as coisas com o jovem par. Eles são os meus prediletos, e estou longe de imaginar que passaram uma agradável tarde de domingo! Tristram, com a sua dor de cabeça, na sala dos fumantes; e a esposa passeando, ora ouvindo os protestos de amor de Arthur Elterton, ora do "Menino" Billy, alternativamente. Pelo jeito, a mulher é mais cuidadosa consigo mesma do que o próprio Tristram, seu marido! — Então, ainda pensa que Tristram esteja apaixonado por ela, Corvo? — perguntou lady Anningford, mais uma vez interessada em sua primitiva emoção — A noite passada, não lhe notei o menor sinal, e por que não agarra ele a mulher em seus braços e a devora inteirinha, com todo aquele esplêndido cabelo solto e as primorosas e esculturais linhas do corpo, que se mostram através do vestido? Tristram deve ser frio como o gelo, nunca o supus assim. E você?

— Não, ele não é nenhum gelo. Digo-lhe, minha boa menina, que existe qualquer coisa misteriosa a separar o casal. A esposa é dessas mulheres que inspiram a mais feroz das paixões. De seu lado, se for possível dar largas aos seus ciúmes, Tristram está em condições de matá-la algum dia. — Corvo, que coisa horrível! — exclamou a lady, e notando que o rosto do amigo estava sério, longe de caçoar, também ela se tornou séria — Nesse caso, o que vai suceder para os dois? — Não sei. Desde que aqui vim, estive pisando e repisando esse pensamento. Encontrei Tristram na sala dos fumantes, com o olhar perdido à sua frente e sem a menor vontade de ler. Pálido, marmoreamente pálido, de tanto pensar na sua tortura. Quando notou ser eu quem ali entrava e ao perguntar-lhe se estava melhor da dor de cabeça e se não desejava tomar um pouco de brandy com soda, respondeu-me simplesmente: — "Não, obrigado, tudo isto é devido a um demo… uma indisposição". — Como sabe, desde criança que o conheço, de modo que não mais se importou com minha presença, e recolheu-se a si mesmo. Depois, disse-me que sim, que queria beber. E despejou um pouco de brandy no cálice. Logo ao primeiro gole, lembrou-se que precisava escrever algumas cartas e saltou do lugar onde se achava sentado. Deixei-o, então. Palavra, lamento sinceramente o estado do pobre rapaz, pode crer. E se não se tratar de um capricho do destino, e sim capricho de mulher, a esposa merece uma boa sova por ter feito o rapaz sofrer tanto. — Por que você não conversa com ela, Corvo? Todos nós queremos tanto a Tristram, e parece que alguma tragédia pende sobre a cabeça de ambos e devemos evitá-la. Por que não a procura, Corvo? Mas o coronel Lowerby sacudiu a cabeça. — O encargo é por demais delicado. Talvez disso resulte um bem, talvez um mal. É perigoso a gente interferir. — Bem, estou vendo que você não quer sair de sua comodidade. Não faz mal. Eu mesma vou procurar Tristram esta noite e ver o que se pode fazer. — Nesse caso, rainha Anita, tudo o que lhe posso dizer é isto: tenha

bastante cuidado, muito cuidado. Como o duque deles se aproximasse, terminou aquele tête-à-tête. Zara não apareceu ao chá. Desculpou-se com o seu cansaço e disse que permaneceria em seu quarto. Se ela descesse, Francis iria chamá-la de parte e contar-lhe a verdade sobre o procedimento de Tristram, coisa que não mais havia motivo de ocultar-lhe. Mas, como a sobrinha não descesse, nem o marido, o tio pensou que estivessem juntos e, neste caso, de todo em todo desnecessária seria a sua interferência. Todavia, se notasse o mesmo estado de frieza por ocasião do jantar, certamente iria procurá-la. Assim resolvido e em parte tranquilizado quando à sua dúvida, mais uma vez ele se encaminhou para a salinha de sua amada. — Francis! — murmurou lady Ethelrida, depois que o financista a tivera de encontro ao seu coração — você precisa sair logo, dentro de dez minutos. Lady Anningford ou lady Melton entrarão dum momento para outro, e receio especialmente Anita, que me esteve olhando com uns olhos de censura, por tê-la abandonado a tarde passada, quando estivemos juntos. — Que me importam milhares de Anitas, Ethelrida minha? — disse ele, docemente, depois de beijá-la — Se ela aqui entrar, que importa isso? Acaso não deseja inteirá-la do que se passa conosco? — Não, não desejo. Não quero que ninguém saiba de nada enquanto você não me pedir a papai. Vai pedir-me hoje… ou espera até amanhã? Eu… eu não seii… tenho tanta vergonha, e creio que ele vai ficar bastante surpreso! Lady Ethelrida não acrescentou o seu secreto receio de que o pai ficasse muito zangado. Sentaram-se ambos no sofá, sob a luz bondosa da coruja cinzenta, e Francis Markrute, satisfeito consigo mesmo, acariciava os cabelos de sua lady, enquanto respondia: — Penso em pedi-la se puder aqui ficar até o trem da tarde, mesmo porque tenho importante negócio para discutir com o seu pai. Portanto depois que tivermos tratado desse assunto, esperarei que ele fique sossegado e, quando os outros já se tiverem ido, falar-lhe-ei sobre o assunto. Não é assim

que você deseja, meu amor? Farei exatamente conforme sua vontade, Ethelrida. Desde já, quero que você compreenda isto: em nossa vida, você agirá com inteira liberdade naquilo que lhe concerne. — Você bem sabe, Francis, que jamais eu desejaria qualquer coisa que não merecesse a sua aprovação — como era musical o seu nome pronunciado por aqueles lábios! — Acho-o bastante criterioso, e será simplesmente uma delícia a gente ser orientada por um homem como você. Tais expressões meigas da sua gentil Ethelrida lhe mostravam que ela não era uma dessas noivas modernas. E assim ficou combinado. Aquele homem de meia idade, mas rejuvenescido no seu amor, iria falar com o futuro sogro no dia seguinte, e por aquela noite deixaria que o solarengo senhor dormisse em paz. Destarte, depois de deliciosos momentos em que juntos permaneceram, a despeito de sua alegria de se encontrarem a sós, lady Ethelrida estava um tanto nervosa, com receio de que ali surgisse, inesperadamente, lady Anningford. Francis Markrute levantou-se, então, e disse-lhe boa noite, talvez o último boa noite que trocavam a sós, antes de ele partir. — E você não me fará esperar muito tempo, não é querida? — implorou o financista — Como sabe, cada momento em que me vejo longe do meu amor é um momento desperdiçado. Nem mesmo sei como pude suportar sozinho os anos que vivi! Lady Ethelrida prometeu-lhe tudo o que ele desejava, pois Francis Markrute, com os seus quarenta e seis anos de idade, era mais atraente do que muitos mocinhos apaixonados. Nenhuma ternura, qualquer sutileza que servisse para lisonjear ou homenagear a sua amada, enfim, o que quer que fosse sempre agradável para o coração de uma mulher, por ele era esquecido. Na verdade, Francis Markrute adorava Ethelrida, e o seu modo de mostrar-lhe os seus sentimentos era pensar, primeiro, no que ela poderia desejar. Isso provava que, se a atitude de sua amada era diferente da de quaisquer outras mulheres modernas, em análoga situação, a dele ainda era mais diferente que a de todos os homens. Tristram mais uma vez saira sozinho a passeio depois que o Corvo o

deixara. Precisava assentar todos os pormenores da recepção que deveria dar na semana entrante, e cuidar do modo por que melhor deveria apresentar-se. Ele e Zara deveriam partir no seu próprio automóvel para Wrayth, mais ou menos às onze horas. Wrayth distanciava de Montfichet, por estrada, umas quarenta milhas. Situava-se em Suffolk. Nesse percurso gastariam umas duas horas, caminhando sem pressa, e chegariam ao primeiro arco do triunfo que se levantava no parque, mais ou menos a uma hora. Então, em meio de aclamações dos campônios, continuariam o caminho para o solar, onde, no vasto salão dos banquetes, relíquia do tempo de Henrique IV, presidiriam a um grande almoço oferecido aos principais rendeiros enquanto os outros também se banqueteavam num vasto pavilhão, armado num dos pátios exteriores. Infindáveis discursos seriam pronunciados no momento. Deveriam ouvilos e simular alegria, e tomar parte na geral hilaridade. Depois, dirigir-se-iam aos vastos aposentos que os caseiros haviam arrumado para recebê-los, onde não poderiam sentir-se em liberdade enquanto não chegasse a noite, pois deveriam estar presentes ao baile dos criados e dos empregados, isto depois de um jantar a sós, com toda a cerimônia tradicional, em que o menor dos seus gestos seria observado e comentado por milhares de olhos. De fato, tudo aquilo era uma terrível ordália, e não causava nenhuma admiração que ele desejasse o ar frio, enevoado da tarde, para envolvê-lo. Depois de pisar e repisar tais pensamentos, chegou à conclusão de que só lhe restava uma coisa a fazer: falar com a esposa, logo à noite, e dizer-lhe como devia conduzir-se em toda aquela maçada. "Felizmente ela é corajosa, embora fria como uma pedra, monologava o pobre marido. É o bastante apelar-lhe para o orgulho, e há-de ajudar-me a sairmos desta enroscada". Assim

resolvido,

Tristram

voltou

logo

para

casa,

e

dirigiu-se

diretamente para o quarto da esposa. Padecera muito, com aquela angústia que dia e noite lhe martirizava o coração, para recear, agora, ser tentado. Todavia, ficou apavorado ao bater na porta e ouvir uma voz indiferente responder-lhe: — Entre.

Descerrando a porta no espaço apenas de alguns centímetros, disse-lhe: — Sou eu, Tristram. Desejava tratar de importante assunto. Posso entrar? Ou prefere descer e nos encontrarmos numa das salas de visita? Querme parecer que encontremos uma vazia, onde possamos estar a sós. — É favor entrar — disse Zara, consciente de que toda ela, da cabeça aos pés, estava trêmula. O marido obedeceu-lhe. Depois de fechar cuidadosamente a porta atrás de si, encaminhou-se para a lareira. Lá estava a esposa, recostada num sofá e vestida com um penteador delicadamente azul, e com os cabelos repartidos em duas longas trancas. Sempre que lhe era possível, assim ela os trazia, tamanho o peso que sentia na cabeça. Zara soergueu-se da posição em que se achava, e sentou-se no canto do sofá. Depois de olhá-la durante o espaço de um segundo, Tristram desviou os olhos e, inclinando-se na lareira, começou numa voz fria e grave: — Vim para pedir-lhe um favor. O de auxiliar-me na recepção de amanhã e, nos dias que se seguirem, do melhor modo que possa e de acordo com o que já estabelecemos. É tradição na família, quando um Tancred leva ao solar a sua esposa, ali verificar-se toda sorte de estúpidas manifestações de regozijo. No parque levantar-se-ão arcos de triunfo, e esperam-nos quase todos os vilarejos. Depois, haverá um banquete para os rendeiros, com muitos discursos e outras coisas aborrecidas. À tarde, devemos jantar a sós na majestosa sala de jantar, com todos os criados a observar-nos atentamente, a que se seguirá o baile dos criados e dos rendeiros. Conforme vê, tudo isso é horrível. Depois de ligeira pausa, ele prosseguiu, sem mudar o tom deliberado de sua voz e sem a olhar. Chegara ao ponto delicado da tarefa. — Toda essa gente, que é minha gente, pensa num mundo de coisas a nosso respeito… isto é, que sou seu marido e você é… minha mulher. Sempre reinou a maior cordialidade entre o povo de Wrayth e minha família e ali todos adoram minha mãe. Por isso é que nos esperam ansiosos ao solar, para que o reabramos e… e… o mais… e… Nova pausa. Parecia-lhe, agora, que tinha a garganta seca, pois lhe

acudira a lembrança dos seus sonhos quando ali estivera, não fazia muito. Dos seus sonhos ao contemplar a armadura de Tristram Guiscard, usada em Agincourt; dos seus devaneios, no velho aposento todo revestido de lambris de carvalho, quando lá chegasse com a esposa. No entanto, todo o escarnio da realidade ali estava, à sua frente. Zara apertava as mãos. Se Tristram olhasse para a esposa, naquele instante, notaria todo o amor e angústia que a convulsionavam e se refletiam no brilho dos seus olhos tristes. Tristram conseguiu dominar a emoção que lhe tornava a voz rouca, e prosseguiu quase que no mesmo tom: — O que lhe peço é que represente o seu papel, ostente-se com os mais lindos vestidos, mostre-se risonha como se tudo aquilo lhe agradasse. Se eu julgar necessário segurar em sua mão, ou, mesmo beijá-la, não se mostre zangada comigo, nem pense que estou agindo deliberadamente. Suplico-lhe, porque acredito que seja tão orgulhosa quanto eu, suplico-lhe que, por favor, represente bem o seu papel! Nesse instante, ele ergueu o olhar para a esposa, mas a terrível emoção que ela estava sofrendo fê-la abaixar a cabeça. Então não a beijaria e nem lhe tomaria a mão… deliberadamente! Tais palavras eram o maior golpe que se poderia vibrar no coração de uma mulher, o maior golpe que a retalhava, como se fosse uma faca. — Pode contar comigo — disse Zara, em voz tão baixa que mal ele pôde ouvir. Depois, levantou sua orgulhosa cabeça, olhou resoluta para a frente, e não para o esposo, enquanto asseverava, agora com mais firmeza: — Farei tudo o que deseja; farei tudo o que sua mãe teria feito. Como sabe, não sou fraca, e, como exatamente afirmou, sou tão orgulhosa quanto o senhor. Tristram não ousou olhar para a esposa, uma vez que estava combinada a farsa. Antes, cuidou de deixá-la e, quando estava próximo da porta, voltouse e disse-lhe:

— Eu lhe agradeço… mostrar-me-ei grato, pouco importa o que aconteça. Mas, acredite-me, nada do que lhe falei consulta o meu desejo de aproximar-nos, como se realmente fossemos marido e mulher, e não sou culpado. Além disso, pode contar comigo para tornar-lhe o mais fácil possível o seu modo de agir e, quando toda essa ridícula manifestação de júbilo estiver finda, poderemos discutir o nosso futuro modo de viver. Muito embora estivesse ansiando por gritar com todo o seu apaixonado sofrimento — "Eu o amo! Eu o amo! Volte, e bata-me, se quiser, mas não se mostre tão frio!" — Zara não disse palavra. O estranho e férreo hábito de toda sua vida refreou-a, e o marido tristemente deixou o seu quarto. Depois que a porta de novo se fechou, Zara não mais conseguiu controlar-se. Esquecida da própria criada, que ali poderia entrar a qualquer instante, e da hora do jantar, que se aproximava, atirou-se sobre o divã com a pele de urso branco, perto da lareira, e apaixonadas lágrimas lhe rolaram pelas faces. Voltando a si, levantou-se sacudida de verdadeiro ódio contra o destino, contra a civilização, contra os preconcoitos, contra a própria vida. Não, nem mesmo podia chorar cm paz! Cumpria-lhe representar o seu papel. Para isso, banhou os olhos, abriu a janela de par em par, para que ali penetrasse o ar frio da noite, e por fim conseguiu sossegar. O seu aspecto era de quem sentisse dor de cabeça, no momento em que chegou a criada e soou o gongo, para avisar a todos que já era tempo de se aprontarem para o jantar.

CAPÍTULO XXXII TRISTE VERDADE!

O derradeiro jantar em Montfichet foi o mais tranquilo de todos. Os convivas talvez ainda estivessem sob a ação da festa da noite anterior, e não havia quem não aborrecesse à ideia de que iam separar-se na manhã seguinte, muito embora se tratasse de uma simples e alegre reunião, já finda. Duas pessoas se encontravam divinamente felizes e duas outras profundamente tristes, e um infeliz coraçãozinho estava cheio de amargura e de malícia, sem cura. Quando findou o jantar, mais uma vez todos se encaminharam para o salão branco de visitas, onde se reuniram em grupos. Lady Anningford chamou Tristram de parte, e com grande tato e muito carinho, cuidou de levantar-lhe o espírito. Mas Tristram mostrou-se severo e repreendeu-a pelo incômodo que se dava, coisa que a magoou mais ainda, porque notara a profundeza de seus padecimentos e não a ofensa que recebera. Pouco depois, Laura se aproximou do antigo namorado, e despediu sua derradeira seta: — Você parte amanhã, Tristram, para a sua nova vida. E quando inteirarse de tudo quanto diz respeito à sua esposa e ao seu formoso amigo, lembrese de que ha uma mulher que o ama verdadeiramente. E deixou-o, sentado onde

se

achava, bastante

enfurecido para

emocionar-se. Depois disto, seu tio veio procurá-lo e puseram-se a tratar de política. No fim da palestra, como o bondoso e velho gentleman não pudesse estar frio, indiferente a uma linda porção de carne e sangue, como a sua nova sobrinha, disse-lhe ele: — Tristram, meu caro rapaz, eu não sei se se trata de espírito moderno ou não, mas dou o meu pescoço à forca se, em seu lugar, consentisse que

aquela divina criatura, sua esposa, ficasse fora de minhas vistas, de dia ou de noite! Quando vocês estiverem sozinhos em Wrayth, beije-a até que ela perca o fôlego, e há-de ver que tenho razão. Com este conselho, positivamente sensível, o velho duque deu uma palmada no ombro do sobrinho, ajustou o seu monóculo e saiu da sala. Tristram ali permaneceu sentado, com os seus olhos azuis encovados de tanto sofrimento. Depois, riu-se, riu-se de um riso amargo, e foi jogar bridge, coisa que detestava, com os Melton e Mrs. Harcourt. Para ele, estava finda a noite. Francis Markrute chamou de lado a sobrinha, para contar-lhe parte de fatos que muito a interessavam. Queria que a palestra entre ambos fosse a mais rápida possível e para isso levou-a até um sofá, quase que atrás de um biombo, onde não seriam muito observados. — Todos nós aqui passamos agradáveis dias, Zara, mas você e Tristram pelo jeito ainda não se tornaram bons amigos, como eu desejava. Depois de ligeira pausa, como Zara nada dissesse, conforme seu costume, ele prosseguiu: — Há uma coisa que você deve saber. Creio que ainda não notou isso, a menos que Tristram lhe tenha dito. Agora, a sobrinha levantou a cabeça, com expressão de quem indagava — o que é que não sei? — Deve lembrar-se da noite em que fizemos o ajuste sobre o seu casamento — continuou o tio — Pois bem, naquela noite, Tristram, seu marido, com desprezo recusou sua mão e a fortuna que eu lhe oferecia. Segundo me disse, jamais se casaria com mulher rica, ou com mulher a quem não conhecesse ou não amasse, com o fito em sua fortuna. Mas eu estava convicto de que ele mudaria de opinião assim que a visse. De sorte que não desanimei nos meus planos. Você, minha sobrinha, conhece os meus métodos. O fulgor dos olhos de Zara e a miséria que neles se notava eram uma resposta. — Pois bem, os meus cálculos estavam certos. Ele veio jantar conosco aquela noite, e logo ficou apaixonado por você. Imediatamente manifestou o

desejo de desposá-la, insistindo para que a fortuna fosse toda sua e de qualquer filho que porventura tivessem. Consentiu unicamente que eu levantasse a hipoteca de Wrayth. Impossível que outro homem procedesse com mais retidão. Pensei, portanto, que você deveria ficar a par de tudo isso, caso ainda não soubesse. Mas… — Francis Markrute agora estava ansioso: — Mas, Zara, minha boa menina, o que tem? — indagou o tio, ao ver que a cabeça orgulhosa da sobrinha descaía sobre o peito, presa de um súbito e mortal desmaio. Aquela revelação era por demais tremenda para que a ouvisse com o espírito alevantado. Sua voz chamou-a a si, e ela encarou-o. Pelo resto da vida, Francis Markrute nunca mais se esqueceria daquele olhar. — E o senhor fez com que eu me casasse com ele, enga-nando-me desse jeito? E o senhor fez com que eu arruinasse ambas as nossas vidas? Que fiz eu para o senhor, meu tio, para que fosse assim tão cruel para comigo? Acaso vinga-se de minha mãe, por ter ferido o seu orgulho? Se a sobrinha o tivesse censurado, se lhe descarregasse todo o seu ódio ou fizesse coisa parecida, mais fácil lhe seria suportar a tempestade do que aquela profunda, gélida calma em sua voz e aquela expressão de verdadeiro desespero impressa no rosto. Francis Markrute ficou comovido; vibraram as cordas daquele seu coração, recentemente fora do seu mumificador envoltório e humanizado pelo onipotente Deus do Amor. Como se sentira capaz de friamente fazer os seus cálculos, baseando-os nesta criatura humana, feita de sua própria carne e do seu sangue? Acaso, com o seu procedimento, erguera alguma intransponível barreira entre ambos? Pela primeira vez em sua vida, Francis estava cheio de duvida e de temor. — Zara — suplicou ele ansiosamente — diga-me querida criança, o que significam essas suas palavras? Fiz com que você fosse enganada, conforme afirmou, porque sabia que jamais eu teria o consentimento para o ajuste, a não ser que houvesse uma compensação para ambas as partes. Conheço o seu sentimento de honra, querida, mas… calculei, e os meus cálculos saíram exatos, que Tristram logo se apaixonaria por você e que a desenganaria quanto ao propósito que o levou a desposá-la tão logo ficassem sozinhos. Nunca me passou pela ideia que qualquer mulher pudesse ser tão fria e

resistisse ao encanto de um homem como ele. Zara… o que aconteceu? Quer contar-me o que aconteceu, Zara? Mas a sobrinha transformara-se em estátua. Não tinha nenhum pensamento para censurá-lo. O que sim, a sua alma estava em pedaços. — Zara, quer que eu faça alguma coisa? Posso explicar tudo a Tristram? Posso ajudá-la a ser feliz? Afirmo-lhe que me sentirei bastante acabrunhado se as coisas logo não entrarem nos seus eixos. Você não pôde viver eternamente fria para o seu marido. Tristram é um homem esplêndido! Posso fazer alguma coisa por você, minha sobrinha? Só então é que Zara olhou para o tio. Os seus olhos, em sua profunda tragédia, tinham um fulgor estranho naquele rosto marmoreamente branco. — Não, meu tio, muito obrigada. Nada mais existe que se possa fazer. Já é muito tarde — depois, ajuntou no mesmo tom monótono de voz: — Estou muito cansada. Creio que já é tempo de ir-me. Boa noite, tio Francis. Com imensa dignidade deixou-o e, com inexcedível graça, apresentou suas desculpas ao duque e a lady Ethelrida, e saiu da sala. Francis

Markrute,

que

a

contemplava,

sentiu-se

grandemente

emocionado e penalizado. — Meu Deus! — dizia ele consigo mesmo — É uma esplendida mulher e é necessário… é preciso… que tudo lhe caminhe bem, pelo menos daqui por diante. Em pouco, aquele privilegiado cérebro se pôs a fazer cálculos de como auxiliá-la. Não demorou que o seu poderoso raciocínio lhe voltasse e logo conseguiu tranquilizar-se com as deduções a que chegou. A sobrinha ia partir, sozinha, com aquele apetecível moço, para o romântico solar de Wrayth. A humana e física paixão, para citar só o mais insignificante dos motivos, era demasiado forte para eternamente deixá-los separados. De sorte que o tio podia, com toda a segurança, deixar à discrição do tempo a aproximação daqueles dois soberbos exemplares da espécie humana. Quanto a Zara, livre dos olhos de amigos ou criados, atirou-se sobre o

divã com a pele de urso, defronte da lareira, cuidou de pensar. Então, fora oferecida como bem móvel e fora recusada! A este pensamento, quebrava-se o seu orgulho com tamanha humilhação. O tio, conforme há muito tempo disso estava ciente, dela se utilizara como um penhor em arriscada parada. Mas, qual seria a parada? Ele não era um esnobe; a simples posição de tio de lorde Tancred por si só não o tentara. E nunca fazia qualquer coisa sem consultar um motivo, e motivo muito sério. Acaso estava apaixonado por lady Ethelrida? Sentia-se tão preocupada com a sua própria desdita para reparar nos negócios dos outros. Mas, agora que recordava todas as passagens em Montfichet, acudiu-lhe que nunca o tio se mostrara tão interessado por mulheres. Como sua mãe lhe queria, a esse seu extraordinário irmão! Padecera cruelmente até os derradeiros instantes, porque o irmão não lhe perdoara. E talvez, embora lhe parecesse impossível, lady Ethelrida também se sentira atraída por ele. Sim, devia ser isso. Para relacionar-se com a família e tornar-se um poderoso aos olhos do duque é que cometera aquela maldade. Mas, tratar-se-ia de fato, de maldade, se ela fosse humana e diferente? O tio a tirara da luta e da pobreza, dera-lhe este esplêndido moço por marido e cumulara-a de riquezas e de posição. Não, não cometera qualquer maldade, como gesto calculado, pois que procurara dar-lhe ao coração aquilo que lhe faltava. Fora ela, ela que encaminhara as coisas para o estado em que se achavam, por causa de sua ignorância •— e aqui é que estava a crueldade do gesto do tio — consentindo que partisse com Tristram alheia a tudo. Nesse passo, recordou-se das palavras do tio, quando lhe dissera que, ao oferecer-lhe a mão, Tristram a recusara e mesmo ridicularizara a proposta, e que somente a aceitou porque por ela se apaixonara. E que motivo teria ele imaginado para que ela, Zara o desposasse? Pela primeira vez lhe ocorreu esse pensamento, e então notou como o marido procedera infinitamente com mais dignidade, porquanto não lhe passou pela ideia que ela ia casar-se por puro mercenarismo e desejo de posição. Nunca, nunca ele lhe fizera a menor alusão a esse respeito, coisa que poderia ter feito, e, mais que isso, podia atirar-lhe em rosto. Agora, dando largas aos seus padecimentos, pôs-se a soluçar. Depois, adormeceu.

Alta hora da noite, quando estavam extintas as brasas na lareira, Zara despertou toda trêmula e com mortal pavor, pois sonhara com Mirko e via-o ir-se precipitadamente, tocando a Chanson Triste. Em pouco, já acordada inteiramente, lembrou-se ser aquele o começo do dia novo, do dia em que devia seguir com o marido para o seu novo solar. Lembrou-se, mais, que o acusara de todas aquelas baixezas que um homem pôde cometer, enquanto ele se portara como um gentleman e ela é que se vendera em beneficio da saúde do irmãozinho, e vendera aquilo que jamais deveria constituir objeto de transação, e sim de amor. Pois bem, nada mais lhe restava fazer, senão "representar o seu papel". A tantas vezes repetida sentença lhe veio à memória; fora ele quem a pronunciara, e por isso seria sagrada. Sim, tudo o que lhe seria dado fazer era "representar o seu papel", pois que… o resto… era demasiado tarde.

CAPÍTULO XXXIII O PEDIDO DE CASAMENTO!

NA manhã seguinte, quase todos os hóspedes de Montfichet deixaram o velho solar, uns de trem, outros de automóvel. Dois ou três ainda ali permaneceram e assistiram à partida dos jovens esposos no seu novo e lindo carro, acompanhados de elegantes criados que vieram buscá-los para conduzilos em Wrayth. Tal

qual

como

sucedera

em

Dover,

quando

algumas

moças

presenciaram, extasiadas, o seu embarque, com todo o apanágio devido à posição e à romântica aparência do casal, os que lhe assistiram à partida, em Montfichet, igualmente ficaram perplexos. Sem sombra de dúvida, o casalzinho era ideal. Zara

empregou

o

melhor

dos

seus

esforços

para

vestir-se

primorosamente. Recordava-se que Tristram a admirara com aquele vestido azul-safira, na primeira noite em Montfichet, de modo que vestiu a mesma roupa de veludo; agasalhou-se no casaco de pele de marta, que também ele apreciava, e adereçou-se com brincos de safira e um colar. Nenhuma recémcasada poderia parecer mais formosa e distinta, com aquelas suas rosadas faces e os flamejantes cabelos, realçados pelo traje de veludo e pela escura pele. Entretanto, assim que a viu, Tristram não mais olhou para a esposa. Receava contemplá-la. Tranquilamente fizeram as suas despedidas e, no beijo que Ethelrida deu à sua nova prima havia um desusado calor, que se justificava plenamente. Se Zara soubesse! No entanto, o feliz segredo ainda permanecia trancado no coração daquelas duas ditosas criaturas. — Por certo que logo se entenderão, pois são tão formosos! — inconscientemente exclamou lady Ethelrida, ao acenar-lhes num derradeiro adeus, quando o automóvel já se punha em movimento. — Sim, por certo — murmurou Francis, a seu lado. Ethelrida voltou-se

para olhá-lo de fito. — Dentro de vinte minutos, os demais terão partido, exceto o Corvo, Emilia e Mary, e lady Anningford, que ainda aqui permanecerão. E, oh, Francis! como passarei esta manhã, sabendo que você vai falar com papai? — Irei procurá-la em sua salinha, antes da merenda, minha querida. Não se apoquente; tudo irá bem. Depois todos voltaram para casa. Lady Anningford, que agora já alimentava fortes suspeitas, segredou ao Corvo: — Creio que você tem razão, Corvo. Estou convicta de que Ethelrida está gostando de Mr. Markrute! Mas, seguramente o duque não há-de permitir isso! Um estrangeiro, a quem ninguém conhece! — Nunca eu soube que houvesse alguma objeção ao casamento do sobrinho com Zara. O duque pareceu até rejubilar-se, mesmo porque alguns estrangeiros são pessoas distintíssimas, especialmente austríacos e russos. Além disso, o duque não aparenta ser de raça latina. — Bem. Com toda a certeza Ethelrida há-de contar-me tudo, agora que ficamos sozinhas. Estou contentíssima por ter decidido aqui ficar com a nossa querida amiga até quarta-feira, e você também tem que ficar, Corvo. — Como sempre, estou às suas ordens — crocitou ele, acendendo um charuto. Depois, sentou-se numa grande poltrona, disposto a ler os jornais, ao passo que lady Anningford se dirigiu para o salão de visitas. Nesse instante, quando a maioria dos hóspedes já havia partido, Ethelrida travou do braço de sua amiga e levou-a até sua salinha. — Tenho um mundo de coisas para contar-lhe, Anita! — disse-lhe empurrando-a docemente numa grande e baixa poltrona, ao passo que se sentava num canto do seu sofá. Ethelrida não era dessas moças que gostam de aninhar-se em meio de almofadas, ou sentar-se sobre peles ou em mochos. Todas as suas atitudes, mesmo nos seus Íntimos e afetivos momentos com a amiga, eram distintas e reservadas. — Querida, estou vivamente emocionada — respondeu-lhe lady Anningford — Adivinho que se trate de Mr. Markrute e… Ethelrida, quando é

que a coisa começou? — Há muito tempo que ele pensava em mim, Anita. Mais ou menos há ano e meio, segundo me disse. Mas eu… — e Ethelrida abaixou o olhar, enquanto um leve rubor lhe assomava às faces — eu comecei a ficar interessada na noite que jantamos em sua companhia, há coisa de quinze dias, no jantar de noivado de Tristram. Disse-me uma porção de coisas que nunca ninguém ainda me dissera e encontramo-nos de novo no dia do casamento. Depois, como você sabe, ele veio para cá. Anita, nunca em minha vida gostei tanto de uma pessoa. — Ethelrida, minha querida, estou certa disso! — inclinando-se, lady Anningford abraçou-a. Depois prosseguiu: — E sei que você se sente bastante feliz, à vista da radiante expressão com que se apresentou, ontem, ao chá. O seu rosto estava transformado, benzinho! — Então, portei-me como uma tola, Anita? — indagou Ethelrida. Lady Anningford riu-se jovialmente, enquanto respondia com malícia nos olhos: — Não era precisamente isso, meu amor, mas as suas faces estavam ruborizadas, como se fossem adoravelmente beijadas. — Oh! — exclamou Ethelrida, avermelhando e rindo-se, enquanto cobria o rosto com as mãos — Talvez ele saiba como despertar tais emoções. Não sou juiz em tais coisas. Como quer que seja, estremeci de prazer. Anita, digame, é essa… essa curiosa sensação que enternece a gente e nos faz estremecer, que toda mulher sente quando está apaixonada? — Ethelrida, minha doce criança! — exclamou Anita. Depois disso, Ethelrida contou à amiga do presente que recebera e mostrou-lhe os livros. Falou-lhe, também, das sutilezas daquele homem e como se sentira atraída para ele. — Anita, ele me tornou perfeitamente feliz e assegurou-me tudo, de modo que não preciso mais decidir o que quer que seja, por mim mesma, em toda a minha vida. — A meu ver, o aspecto dele é magnífico — observou Anita — e as suas

roupas são das mais finas. Aprecio imenso um homem que se vista com aquela sua elegância, peculiar a muitos ingleses, mas privativa de Tristram e também de Mr. Markrute. Se você soubesse do meu desespero porque o meu "velho" é indiferente a tais coisas! É o único teirózinho que tenho com o meu bom marido. — De fato — concordou Ethelrida — Também os aprecio bastante elegantes e, mais do que tudo, com bastante cabelo. Anita, você já reparou nos cabelos de Francis? São bonitos, e aparecem pouco acima da linha da testa, como os de Zara. Se fosse careca como papai, tenho certeza que jamais poderia gostar dele. E assim foi que, mais uma vez, o destino de um homem se decidiu pelo seu cabelo! Enquanto as duas se entretinham em tais confidências e Emilia e Mary davam um pequeno passeio com o Corvo e o "Menino" Billy, Francis Markrute encontrava-se na biblioteca com o pai de sua lady. O financista deu início ao assunto sem nenhum preâmbulo e perfeitamente calmo. O duque, que acima de tudo era um gentleman cortês, a principio ouvira com silenciosa consternação e ressentimento, e depois com crescente interesse. Francis Markrute manipulara situações infinitamente mais difíceis, quando o equilíbrio de algumas potências europeias dependia de seus nervos. Entretanto, reconhecia que ao tratar com este galanteador e velho nobre, nunca defendera tamanho interesse, e nessa certeza encontrava estímulo para agir da melhor maneira possível. Narrou brevemente a historia de sua vida, de que lady Ethelrida já estava a par. Não se desculpou pelo seu infeliz nascimento, porque imaginou não houvesse necessidade disso. Bem sabia, e o duque também, que quando um homem sai ao mundo e consegue o que ele conseguiu, tais ocorrências se desfazem no espaço. Depois, com seu portentoso gosto e discrição, aludiu à imensa fortuna que possuía e seria admiravelmente administrada pelas mãos de lady Ethelrida, graças aos seus métodos ordeiros e para o bem da humanidade.

Sua Excelência, habituado aos debates e a observar os métodos dos homens, não pôde deixar de pasmar ante a prodigiosa reserva e força deste estrangeiro. Por fim, quando o financista acabou de falar, o duque ergueu-se e postou-se defronte da lareira. Fixando o seu monóculo falou-lhe em sua antiga e bem articulada voz: — O senhor expôs admiravelmente o seu caso, meu caro Markrute. Deixou-me sem nenhum argumento e meramente com os meus preconceitos, que ousou taxar de injustos, pois confesso que são bastante favoráveis aos meus próprios concidadãos e se insurgem fortemente contra este casamento, embora de outro lado a felicidade de minha filha seja a mais importante coisa que me preocupa neste mundo. Ethelrida completou ontem vinte e seis anos, e é moça de caráter forte e de fina têmpera, o que afasta a possibilidade de ser influenciada por qualquer emoção tola. Portanto, se o senhor logrou a fortuna de prender-lhe a atenção, em suma, se minha filha o ama, nada tenho a opôr. Vamos tomar um cálice de vinho do Porto! Pouco depois, ambos os homens já estreitamente ligados por forte amizade, subiam as escadas em demanda da salinha de lady Ethelrida, onde a encontraram conversando com Anita. Seus meigos olhos se abriram interrogativamente quando os dois homens apareceram na porta. Então, precipitou-se nos braços do pai e cobriu o rosto em seu casaco, enquanto, com o monóculo úmido de emoção, o velho duque a beijava com muito afeto e lhe murmurava: — Ora essa, Ethelrida, minha filha, isto é novidade! E se você é feliz, querida, é tudo quanto desejo! E assim passou o terrível momento em meio de grande júbilo, e logo lady Anningford e o amoroso pai deixaram a sós os noivos. — Oh! Francis, não é uma delicia este mundo! — dizia lady Ethelrida, nos braços do noivo — Papai e eu sempre vivemos juntos e felizes, e agora seremos três, porque você também o compreende e não há-de querer ver-me separada dele por muito tempo, não é?

— Nunca, meu benzinho. Já pensei em propor ao duque, se você consentir, que eu o substitua neste condado, que eventualmente lhe pertencerá. Assim, deixarei Thorpmoor, minha casa em Lincolnshire, meramente para caçadas. Nesse caso, você sempre se sentirá em casa, e talvez o duque venha passar temporadas conosco, em Montfichet. Numa hora de viagem aqui estaremos. Entretanto, tudo isto é mera sugestão, e você é que decidirá como melhor lhe parecer. — Francis, que bondade a sua! — Meu amor — murmurou ele, beijando-lhe os cabelos — levei quarenta e seis anos para encontrar a minha pérola. Depois, assentaram todos os detalhes de sua futura vida. Francis disselhe ser sua intenção presentear Zara com sua casa em Park Lane, que não seria bastante grande para os dois, e que iria adquirir um dos históricos palácios que davam para Green Park, dentro em pouco à venda, conforme sabia. Uma vez que a noiva deixava o teto ducal, para viver com o seu amor, era justo que encontrasse um palácio de seu gosto e à sua espera. Francis Markrute já restabelecera quase completamente o seu equilíbrio transtornado um pouquinho a noite passada, pelo momentâneo e inquieto receio que sentira por causa da sobrinha. Zara e Tristram haviam combinado passar duas noites em Park Lane, no fim da semana, para se despedirem de lady Tancred, em viagem para Cannes com as filhas. Se ainda notasse que as coisas entre ambos continuavam no mesmo pé, o financista contaria a Tristram toda a historia do juízo que dele Zara fizera, e talvez lançasse alguma luz na sua conduta para com o marido e se esclarecessem as dúvidas. Entretanto, alimentava grande fé de que a mocidade de ambos cuidaria de harmonizá-los, independente do seu auxílio, e por isso pôs de parte tais cuidados. Entretempo, o casalzinho seguiu para Wrayth, de automóvel. De todas as ordálias a que deveria sujeitar-se Tristram, a partir do seu casamento, as piores eram as que sofria quando se achava ao lado da esposa, num automóvel. Um homem qualquer que não a amasse, ficaria loucamente apaixonado sentindo a sua proximidade. E o que dizer-se de Tristram,

apaixonadíssimo pela esposa? Felizmente Zara gostava de janelas completamente abertas, e não se incomodava com o fumo. Mas não era brincadeira ali permanecer durante duas horas, ao lado daquela adorável criatura que era seu marido e com tamanha humildade no próprio rosto. Após meia hora de silêncio e proximidade, Tristram cuidou de não distrair-se e não apertá-la em seus braços. Era a mesma velha história, contada e recontada, de dois jovens, de duas criaturas humanas, naturais, normais, lutando contra barras de ferro. Zara alimentava análogos sentimentos, além de extremamente angustiada por confessar-se injusta e ter certeza, agora, de que lhe cabia inteira culpa pela miserável situação em que se encontravam. Mas, como aproximar-se dele e confessar a sua falta? Não sabia como. O seu sentimento de honra ordenava-lhe esse gesto, mas o estranho hábito de silêncio, em sua vida, ainda a conservava acorrentada. E assim foi que, até chegar às proximidades de Wrayth, ambos continuavam naquele mutismo. Só então é que ele, olhando através da janelinha do carro, lhe disse: — Precisamos conservar as janelas descidas. Por favor, sorria e cumprimente os que a saudarem, enquanto atravessamos a vila. Os moços não farão isso, mas os velhos amigos de minha mãe não deixarão de cumprimentá-la. E assim foi que Zara se inclinou logo que um dos criados arriara a capota da landaulette te cuidou de mostrar-se radiante. Iniciava-se, pois, o primeiro ato de sua triste comédia.

CAPÍTULO XXXIV O PRINCIPIO DO FIM

EMOÇÕES das mais desencontradas convulsionavam o coração da nova lady Tancred à medida que o automóvel se aproximava do parque e da vila de Wrayth, bem chegada aos seus portões, e que já se via do outro lado. Então ali estava o solar de seu marido e senhor! E ambos ali deviam penetrar de mãos dadas, dando a entender que ali iam viver, juntos, com o coração cheio de amor!… Sim, o seu coraçãozinho estava cheio, mas cheio de outra coisa — de angústia e de padecimento, pois Tristram, pessoalmente, temendo qualquer fraqueza, se mostrava de uma atitude friamente desdenhosa, que tirava todo o ânimo, toda a coragem à esposa de confessar-lhe que procedera injustamente para com ele. Nesse instante, passavam em meio de joviais campônios, em South Lodge, o mais afastado ponto da vila, e debaixo de um arco de triunfo todo com bandeiras flutuando e cheio de dizeres, como estes — "Que Deus abençoe os recém-casados" ou "Saúde e longa existência a lorde e lady Tancred". Tristram tomou-lhe uma das mãos e com toda firmeza pôs um braço em volta de sua cintura, enquanto o automóvel parava um instantinho e o marido, tirando o chapéu e agitando-o alegremente, dizia com muita gentileza: — Meus amigos, lady Tancred e eu lhes agradecemos de todo o coração os votos de felicidade e de boas vindas que nos fazem. Sentaram-se de novo e o carro partiu. O seu rosto de novo se tornou rígido e ele largou-lhe a mãozinha. No arco seguinte, próximo da ponte, repetiu-se a cena, mas desta feita mais cuidadosamente elaborada e levada a efeito. Os que saudavam o casal agora eram cavaleiros montados, todos fazendeiros e caçadores, que encontravam em Tristram o seu defensor. As expressões de carinho e o acenar de mãos não tinham mais fim, e depois a cavalgada se pôs a segui-los até a torre normanda, onde se situava a ponte levadiça.

Esperavam-nos ali todas as crianças da vila e todas as velhas do asilo local, em suas capas escarlates e graciosos gorros pretos. Votos de boas vindas e de felicidades ali se ouviram, em exclamações delirantes. "Deus que abençoe a formosa esposa e que lhe dê muitos filhos e filhas também", gritou a voz esganiçada de uma velha, exclamação que foi acolhida com muitos aplausos. Nesse momento, Tristram largou a mãozinha de Zara, pois sentira que o queimava. Instantaneamente voltando a si, tomou-a de novo. Ambos estavam pálidos de excitamento e emoção quando por fim alcançaram a porta do hall, que se abria naquela feia e moderna ala estilo gótico, e ali novamente foram saudados pelos servos enfileirados, dois dos quais velhos e de cabelos grisalhos Estes é que ficaram tomando conta do solar durante o tempo em que permaneceu, fechado. Ali se achava também Michelham, de volta para a antiga casa do seu lorde, com um elegante criado de quarto como seu imediato. Tristram era um magnífico amo, e sabia exatamente como devia encaminhar as coisas. A majestosa caseira, metida num vestido de seda preta, adiantou-se e em seu nome e no das subordinadas, apresentou cumprimentos à sua nova senhora, dizendo-lhe que esperava não se sentisse fatigada e presenteando-a com um buquê de rosas brancas "porque Sua Excelência, o esposo de nossa lady, nos disse a todos, quando aqui esteve aprontando o solar, que lady Tancred era linda como uma rosa branca"! Lágrimas velavam os olhos de Zara, e sua voz estava trêmula quando lhes agradecia o mimo e tentava sorrir. — Ela está inteiramente subjugada, a encantadora senhora — diziam uns aos outros — e não há de que se admirar. Qualquer mulher indiscutivelmente ficaria apaixonada por lorde Tancred. Como todos gostam dele, pensava a pobre Zara. E ele afirmou ser a esposa linda como rosa branca! Se disse isso é porque o sentia, e ela que desdenhara todo o seu amor e toda a sua caricia, agora ali o tinha a encará-la com ódio e desprezo! Nada, nada mais existia que pudesse fazer para reconquistar-lhe o amor.

Nesse momento, o marido lhe tomou a mão e colocou-a em seu braço. E de braços dados caminharam através do longo corredor e em direção do esplêndido hall, construído pelos irmãos Adam, com sua portentosa escadaria que levava para os aposentos superiores. — Preparei os majestosos quartos para Sua Excelência, nossa lady, mas não sei bem se a disposição que lhes demos vai agradar-lhe — disse Mrs. Anglin — Lá em cima acha-se o boudoir, o quarto de dormir e o quarto de banho ligado ao quarto de vestir do nosso amo, lorde Tancred, e espero que lady Tancred há-de encontrar tudo a seu gosto, como é desejo de seus servos. Zara abraçou-a e disse-lhe algumas palavras afetuosas. Quando chegaram ao enorme quarto de dormir, com suas janelas olhando para o jardim francês e para o parque, mobilado e decorado pelos próprios irmãos Adam com inexcedível gosto, lorde Tancred, gentil e elegantemente, se curvou e beijou-lhe a mão, dizendo-lhe: — Espero no boudoir, enquanto tira o seu casaco. Mrs. Anglin lhe mostrará o serviço de toalete todo em ouro, presente de Luiz XIV à minha avó, que era francesa, usado sempre por todas as ladies Tancred quando se hospedam em Wrayth. Creio que vai encontrar as escovas bastante duras… Riu-se e saiu. Zara, dominada por todo este fausto, beleza e tradição, sentou-se num sofá e cuidou, momentaneamente, de controlar o seu sofrimento. Estava enraivecida consigo mesma, desprezava-se ao recordar-se que insultara este homem, este nobre gentleman, proprietário de todas estas coisas, e o escarnecera atirando-lhe em rosto que se casara unicamente por causa do dinheiro do tio! Como não fora amada por ele, no princípio, a ponto de querer dar-lhe tudo isto e depois de vê-la uma só noite! E Zara contorcia-se de angústia. Não há maior padecimento que o de uma perda irreparável causada pela própria pessoa. Tristram estava perto da janela do boudoir quando a esposa entrou. Zara, que ainda estava quase que absolutamente alheia às coisas inglesas,

admirara grandemente o estilo de Adam, e, como no momento discretamente Mrs. Anglin os deixasse, para dizer alguma coisa ela manifestou, timidamente, a sua admiração. — Sim, é um estilo fino — concordou secamente o marido. Depois prosseguiu mudando de assunto: — Precisamos descer para aquele horrível almoço, mas acho melhor que ponha o seu boá de marta, porque o hall é enorme e inteiramente de pedra, e, portanto, bastante frio. Vou buscá-lo eu mesmo. Trouxe-o e a envolveu nele distraidamente, como se a esposa fosse uma estátua de pedra. Depois, abriu a porta para ela passar. O orgulho de Zara estava à flor da pele, porque sabia que o marido estava agindo como ela, em seu lugar, exatamente agiria. De modo que, ao invés daquela atitude dócil, que assumira inconscientemente momentos antes, agora caminhava a seu lado com a antiga expressão de orgulho impressa no semblante, com grande pasmo de Mrs. Anglin, que os observava a descer a escadaria. — É tão orgulhosa como a nossa lady — dizia consigo mesma — Não sei como o nosso lorde Tancred aprecia isso! O grande hall era uma reminiscencia de Henrique IV, com o seu estrado onde se erguia a mesa de honra, a magnífica lareira toda de pedra e um antigo biombo e galeria que datavam de dois séculos. As outras mesas estavam dispostas em baixo, em cada lado do estrado, como nos tempos de antanho, e ali se viam as majestosas poltronas para o "lorde" e para a "lady", todas de entalhado carvalho, onde os dois se sentaram, tendo ao lado de ambos um dos principais rendeiros com sua esposa. Para servi-los, criados com a cabeça empoada. Durante o almoço, quando sucedia um ou outro incidente cômico, ela ansiava por olhar ao marido e rir-se, mas ele mantinha sua atitude de fria reserva. De quando em quando abria a boca numa ou outra observação espirituosa para causar efeito nos seus comensais, isto mesmo quando julgasse absolutamente necessário. Depois começaram os discursos, os piores momentos que lhes estavam reservados. O administrador de Wrayth, que os brindara, disse-lhes toda sorte

de gentilezas, e Zara notou como todos aqueles homens adoravam o seu marido. Consequentemente, aumentou toda a sua raiva contra si mesma. Em cada discurso, pronunciado por diferente rendeiro, sempre havia qualquer amistosa e íntima alusão a lady Tancred, e essas alusões é que mais a magoavam. Após todos os discursos, levantou-se Tristram para responder-lhes no seu nome e no da esposa. O seu discurso foi esplêndido. Disse-lhes que voltava para residir no meio de sua gente e que lhes trazia uma formosa e nova lady. Nesse momento, voltou-se e beijou-lhe a mão. Prosseguindo, afirmou-lhes que sempre pensara no interesse de todos e os acolhia como velhos e bons amigos. Assegurou que tanto ele como lady Tancred se esforçariam para promover a felicidade geral, tanto quanto os radicais (a estas palavras, ele riu-se), porquanto os habitantes de Wrayth eram homens verdadeiramente leais. Nesse instante, vozes gritaram: "Não queremos nenhum desses cachorros aqui", exclamação que alegrou a lorde Tancred, Depois de algumas palavras, em que lisonjeou os seus concidadãos, sentou-se em meio de vivas e de aplausos. Cessadas as palmas e os vivas, ergueu-se um velho fazendeiro com bochechas cor de maçã, e pronunciou uma longa dissertação por ali ter estado, como homem e como menino, e antes dele os seus antepassados, durante duas centenas de anos. Mas era capaz de jurar que ninguém de sua família ainda contemplava uma tão encantadora esposa como a que ora chegara a Wrayth e a quem nesse instante brindavam! E bebia à saúde de lady Tancred, na esperança de que dentro em breve de novo teriam um outro grande banquete para festejar o nascimento do seu herdeiro! E neste deplorável espírito bucólico e mostra de grande amizade, o rosto de Tristram ficou tão pálido como a morte. Para disfarçar, levou o guardanapo à boca. Quanto a Zara, ruborizou-se e ficou da cor das rosas que lhe estavam à frente. Assim findou o almoço. E em meio de inumeráveis apertos de mãos cordiais, apressados pelo vinho do Porto e pela champanha, o casal, seguido do administrador da propriedade e de mais alguns rendeiros, continuou na sua recepção. De novo eles tiveram que escutar outros discursos, agora

proferidos por pessoas de condições inferiores, no pavilhão armado num dos pátios. Agora, eram mais vivas as alusões à felicidade conjugal, e Zara notou que a cada passinho, quando Tristram as ouvia, um fugitivo brilho de aço, cheio de amargo sarcasmo, perpassava pelos seus olhos. Mais ou menos às cinco horas, cansados de tanto calor no pavilhão e com todas aquelas emoções do dia, o jovem lorde pôde conduzir a esposa aos seus majestosos aposentos, onde ficaram a sós. O momento era oportuno para Zara fazer a sua confissão, se para isso tivesse coragem. A resolução de Tristram lhe orientava todos os gestos. Ninguém podia ser mais friamente polido e desdenhoso do que ele no tratamento que dispensara à esposa, tamanha a perfeição com que "representava o seu papel", depois das amargas humilhações por que passara. Sim, ela lhe confessaria tudo, dir-lhe-ia do seu engano e… só. Mas conter-se-ia e não lhe mostraria nenhuma emoção. Ambos se sentaram em poltronas, na proximidade da lareira, com um suspiro de alívio. — Graças a Deus! — exclamou Tristram, no instante em que levava a mão à testa — Que odiosa ridicularia tudo isto, e ainda não chegamos ao fim. Receio que você esteja muito fatigada. Precisa deitar-se um pouco e descansar até a hora do jantar. Então, peço-lhe que se vista com grande apuro e ponha alguma joia, dentre as que propositadamente já devem ter chegado de Londres e as que usou em Montfichet. — Sim, pois não — respondeu Zara, negligentemente, enquanto despejava o chá nas xícaras e o marido silenciosamente permanecia sentado defronte da lareira, com a expressão de grande cansaço e desânimo impressa no varonil semblante. Tudo, tudo quanto o rodeava magoava-o. Todo o prazer que encontrara em aprontar Wrayth, as coisas que fizera, esperançado de agradar-lhe, tudo, tudo isso ali estava como um escarnio. Sem dizer palavra, ela lhe entregou a sua xícara de chá. Lembrava-se do seu gosto em matéria de creme e açúcar, em Paris, e, como o gélido silêncio continuasse, Zara não mais pôde suportá-lo.

— Tristram — disse ela o mais naturalmente possível. Ao ouvir o seu nome, pela primeira vez pronunciado pela esposa, ele ergueu a cabeça meio atônito. Para dominar a comoção que não ousava mostrar, Zara abaixou a cabeça e se pôs a esfregar as mãos, constrangida. — Preciso falar-lhe e pedir que me perdoe. Soube agora da verdade, isto é, que o senhor não se casou comigo por causa do dinheiro do meu tio. Sei exatamente,

agora,

como

de

fato

as

coisas

se

passaram.

Sinto-me

envergonhada, humilhada ao lembrar-me do que lhe disse, porquanto pensei que aquiescesse ao ajuste antes de ver-me. E isso me pareceu tão baixo, tão revoltante! Lamento sinceramente o desgosto que lhe causei. Agora conheço que realmente é um grande gentleman. O rosto de Tristram, se Zara erguesse a cabeça e o visse, a princípio iluminara-se cheio de esperança e de amor. Mas como ela prosseguisse friamente o calor que o aquecera dali desapareceu e maior sofrimento lhe encheu o coração. E assim era que, ciente de tudo o que sucedera, muito embora não o amasse ainda, não tivera a menor expressão para desculpar o resto dos seus insultos, principalmente quando o chamara de animal, e nem o mais leve reparo à bofetada que lhe dera! A recordação de tudo isto subitamente o chicoteou de novo, e fê-lo levantar-se, com todo o orgulho de sua raça circulando mais uma vez em suas veias. Abandonando a sua xícara de chá na lareira, mesmo antes de prová-la, Tristram disse roucamente: — Casei-me com você porque eu a amava. Ninguém, ninguém tão arrependido de um gesto qualquer, como eu. E voltando-se, deixou o aposento. Zara, agora sozinha, sentiu que aquilo era o princípio do fim.

CAPÍTULO XXXV PROPÓSITOS

MINUTOS antes das oito, uma pálida e infeliz esposa aguardava o marido em seu boudoir, completamente desanimada mesmo para continuar na representação do papel que a si mesma se impusera. O cetim do vestido que trajava não era, em toda a sua imaculada alvura, mais branco do que o seu rosto. Como se isto não bastasse para atormentar a infeliz esposa, o chefe dos jardineiros de Wrayth lhe havia mandado algumas gardênias, para que as prendesse ao vestido. Bastou que as visse para que sentisse profunda mágoa, porquanto não eram flores como aquelas que Tristram lhe trouxera na noite do casamento, há quinze

dias passados, e

que

atirara na lareira?

Automaticamente Zara prendeu algumas no vestido, enquanto a criada lhe passava pelo pescoço um esplêndido colar de diamantes e lhe ajustava um diadema na cabeça. Só agora é que reparava como eram lindas essas joias, e não havia jeito nem ao menos de agradecê-las ao marido! Doravante, quaisquer palavras que trocassem sempre seriam para salvar as aparências e, portanto, somente na presença de outrem. Para sua maior tristeza, lembrou-se do que o marido lhe dissera: "Quando estiver finda esta ridícula recepção, podemos tratar do nosso futuro". Que significavam tais palavras? A seu ver, a intenção dele era de se separarem. Por que as contingências da vida lhe eram tão cruéis? Que fizera para ser tão infeliz? Sentou-se para esperar um bocadinho e apertou as mãos. Nesse instante, todo o apaixonado ressentimento de que sua taciturna natureza era capaz se insurgiu contra o destino, de modo que nunca antes a expressão no seu rosto mais se parecera com a da pantera negra. Essa sua disposição de ânimo modificou-se ligeiramente, decaindo em taciturno e sombrio rancor. Como ainda permanecesse sentada, o seu aspecto era o de uma fera pronta para o pulo. Assim a encontrou Tristram, quando abriu a porta e entrou no boudoir. Vendo-a nessa atitude, tão esquisita, tão bárbara, sentiu-se preso do

selvagem excitamento próprio de caçador de leões. Durante um segundo perpassou-lhe pela mente a ideia de logo à noite agarrá-la, tratá-la como se de fato fosse a pantera negra com que tanto se parecia, conquistá-la pela força bruta, maltratá-la se fosse preciso, e beijá-la, beijá-la até tirar-lhe a respiração! Pusesse em prática a sua ideia e o plano seria bastante sensato. Entretanto, os hábitos cavalheirescos,

religiosamente observados durante

centenas e

centenas de anos para com mulheres e coisas, ainda se faziam sentir em seu sangue. Tristram, 24.° barão de Tancred, não era nenhum bruto ou sensual, e sim um magnífico espécime de sua antiga e fina raça. E assim foi que, com o coração palpitando de incontrolável excitamento e o da esposa cheio de taciturno rancor, ambos desceram as escadarias de braços dados, com grande admiração das criadas que os espiavam e maior orgulho da criada de quarto de lady Tancred. Toda a criadagem feminina de Wrayth correu à balaustrada para dali apanhar de cheio a deliciosa cena que lhe seria dado contemplar. Segundo corria entre os fâmulos, era tradição na família, observada durante gerações e gerações, que quando o lorde de Wayth conduzisse a esposa à suntuosa e enorme sala de jantar, para sua primeira refeição a sós, devia beijá-la antes que ali aparecesse qualquer pessoa e darlhe as boas vindas ao seu novo lar. Portanto, estava-lhes reservado espetáculo inédito e emocionantíssimo: o do jovem gentleman beijar a esposa. Qual não foi espanto de todos quando lhe ouviram dizer friamente à esposa, enquanto desciam as escadas: — Estúpida tradição obriga-me a beijá-la no instante em que entrarmos na sala de jantar e dar-lhe esta chavinha de ouro, ridículo emblema de toda sorte de felicidades terrenas. Os criados certamente nos estão espiando; peçolhe, pois, que não se sobressalte. Erguendo a cabeça notou aquelas caras cheias de curiosidade e, mau grado seu, a antiga, encantadora e diabólica expressão própria de criança lhe surgiu no rosto. Riu-se, então, para os fâmulos e acenou-lhes com a mão. Nesse momento, a raiva de Zara também se transformou em selvagem excitação. Tinham que atravessar o hall, e depois de caminharem uns sessenta passos, ele devia beijá-la. Com o que se pareceria aquele beijo? Enquanto perfaziam os sessenta passos, o rosto de Zara cada vez mais se tornava

branco, e Tristram decidiu não resistir à tentação. Ao invés de beijá-la na testa, como tencionava, uniria os seus aos lábios da esposa no seu primeiro e no seu único beijo. Que lhe importava que os criados vissem! Era a sua única oportunidade. E assim foi que, no momento em que transpunham os umbrais da enorme porta de duas folhas, Tristram inclinou-se à frente da esposa e ofereceu-lhe a chavinha de ouro. Depois, colou os seus lábios quentes, jovens e apaixonados de encontro aos dela. Oh! a alegria louca daquele beijo! Embora se tratasse somente de uma obrigação; embora aquilo fizesse parte do papel que representava, Zara não pôde resistir ao marido como em outra ocasião. De seu lado, ele se sentiu repentina e absolutamente intoxicado, tal qual como lhe sucedera na noite de casamento. Por que… por que esta horrível barreira a separá-los? Acaso nada existia que pudesse quebrá-la? Volvendo o olhar para a esposa, enquanto se encaminhava para a mesa, notou que ela estava mortalmente pálida e parecia que ia desmaiar. A embriaguez proveniente do amor afeta as pessoas, de diferentes modos. Para Zara, aquele beijo encerrava a doçura da morte. — Sirva lady Tancred de champanha imediatamente — ordenou ele ao mordomo e, ainda com os olhos cintilantes, voltou-se para a esposa e disselhe: — Precisamos beber à nossa própria saúde. No entanto, Zara ainda não erguera as pálpebras. A única coisa que o marido pôde observar foi que as asas do seu narizinho estavam trêmulas, e pelo arfar do formoso peito concluiu que aquele coraçãozinho estava palpitando loucamente como o seu. Dominou-o, então, selvático triunfo. Pouco importava a emoção que Zara tivesse sentido, fosse de raiva ou de desprezo, ou fosse por um sentimento que ele não ousava esperar, o certo é que a emoção era nova e forte. Zara não se mostrava, agora, gelidamente fria! Como Tristram desejava que houvesse mais costumes ridículos na tradição da família! Que vontade de ordenar aos criados para deixarem a sala de jantar e poder desde logo manifestar o quanto queria à esposa! À parte a diabrura que agora lhe caracterizava os gestos, Tristram sentia grande prazer em "representar o seu papel". Assim era que, quando os observadores olhos de solenes criados neles pousavam, mostrava-se de uma gentileza a toda a prova,

fascinante para a esposa. E quando a cada passinho ficavam a sós, fingia voltar à antiga frieza, a fim de que ela não pudesse dizer que o marido estava faltando ao ajuste. E, com grande excitamento de ambos, findou o jantar. Zara alternativamente era presa de tortura e de prazer, o que não sucedia ao marido, que, pela primeira vez depois do casamento, não sentia o menor padecimento. A razão disso é que estava convicto de que a esposa lhe sentia alguma

afeição,

embora

ela

estivesse

"representando

o

seu

papel".

Gradualmente, enquanto passavam os minutos e chegava o momento da sobremesa,

cada

vez

mais

crescia

a

convicção

de

Zara

de

que

propositadamente ele a torturava, exagerando o seu "papel" quando os criados estavam presentes. A prova disso é que há três horas atrás dissera têla amado, empregando o verbo no pretérito, acrescentando que ninguém se arrependera tanto de um gesto qualquer, como ele! Quem sabe se quando a beijara notou que ela o amava! e castigava-a daquele jeito e ria-se porque com o seu coração a dominara!… De novo incendiou-se o orgulho de Zara. Pois bem, não se prestaria àquela brincadeira. Havia de ver como ela se conservaria adstrita ao ajuste e novamente gélida, finda a recepção. Assim decidida, quando por fim os criados deixaram a sala de jantar e antes do café, incontinenti Zara se mostrou de semblante carregado e permaneceu silenciosa. Tristram sentiu logo percorrer-lhe um calafrio. Já tivera o seu momento de felicidade e de novo regressava ao purgatório. Destarte, recomeçou a comédia. Logo mais os dois compareceram ao baile, que se iniciou com a presença de ambos, os quais mereceram opiniões desvanecedoras

dos

seus

primeiros

pares.

Zara

dançou

com

a

entroncadíssima autoridade policial da região e lorde Tancred com a mulher da autoridade. — Embora seja estrangeira, Agnes, mal a gente nota isso — observou Mr. Burrs à sua mulher, quando de volta para casa — É a mais encantadora lady que jamais encontrei em minha vida. — Mas não tanto quanto lorde Tancred — replicou a esposa — Confesso-lhe, William, que Sua Excelência me fez sentir moça de novo. Todo o mundo esperava que o jovem casal dançasse a segunda contradança e depois deixasse o baile, porquanto era bastante natural que

quisessem ficar a sós. — Sinto muito que você seja obrigada a dançar comigo, Zara — disse-lhe Tristram. E, sem esperar nenhuma resposta, enlaçou-a e se puseram a dançar uma valsa. De novo aquela embriaguez dos sentidos se apoderou de ambos, agora entregues

ao

caprichosos

giros

de

uma

deliciosa

valsa,

absurda

e

extravagantemente encantados com aquele prazer. Isto até que cessou a musica. Contudo Zara, mais controlada por longos anos de sofrimento, logo se desprendeu dos braços do marido e disse-lhe severamente, com aquele enraizado instinto de auto-defesa, agora também para defender o segredo do seu amor e possivelmente para dar-lhe justa ideia de sua verdadeira atitude: — Creio que já podemos ir-nos. Parece-me que "representei bem o meu papel". — Sim, e terrivelmente bem — aquiesceu ele, subitamente voltando à realidade — Isso me mostrou o que irremediavelmente perdemos. E, oferecendo-lhe o braço, ambos passaram por uma fileira de admiradores e afeiçoados convivas. Ao chegarem à porta do boudoir, ele a deixou sem lhe dizer qualquer palavra. E assim foi que, sozinha com a sua angústia, naquele enormíssimo e majestoso leito, se passou aquela noite para a nova lady do solar de Wrayth, e a aurora nasceu para um outro dia. É que mais uma vez o deus do orgulho transformara em bobos aqueles seus adoradores. O dia seguinte amanheceu chovendo, fato que não alterou em absoluto a atitude dos que viviam abrigados sob o nome de Tancred. Marido e mulher continuaram na representação do seu papel, e de certo modo aumentou a frieza entre ambos. O casal vivia numa atmosfera de absoluta restrição, e parecia impossível que se entregasse mesmo a uma simples e banal palestra. O seu segundo jantar mal lhes ofereceu a oportunidade de dissimularem a sua apatia na presença dos criados e, livre já de banquetes, quase que

imediatamente após o café Zara se retirou. Antes, no entanto, que o deixasse, Tristram disse-lhe: — Amanhã, se melhorar o tempo, creio que deve dar uma volta pelos jardins e conhecer o solar por dentro, caso queira. A governanta e os jardineiros pensarão que é um pouco caso de sua parte se você não se der a esse incômodo. Que coisa horrível, estas convenções! Talvez fosse melhor a gente voltar à vida selvagem. Algum dia, talvez eu volte… Como a esposa parasse, antes de alcançar a porta, a fim de ouvir mais alguma coisa que ele tivesse para dizer-lhe, Tristram continuou: — Amanhã teremos um dia de descanso. Naturalmente pensarão que precisamos de repouso. De sorte que se você estiver pronta mais ou menos às onze horas, poderei mostrar-lhe os jardins e os lugares de que minha mãe gostava mais. Nesta quadra do ano creio que tudo esteja lúgubre, mas é da natureza! — Estarei pronta — respondeu Zara. — Quarta-feira iremos à vila para a recepção aos seus habitantes — continuou ele, encaminhando-se para a porta, a fim de abri-la — Quinta-feira seguiremos para Londres, a fim de despedir-nos de minha mãe. Espero que você não ache tudo isso muito difícil ou impossível, mesmo porque logo estará tudo findo. — A vida toda é difícil. A gente nunca sabe para que ela presta — retorquiu Zara. E sem mais dizer, transpôs a porta e, tomando pelas escadarias, atravessou os solitários corredores até alcançar o boudoir. Ali chegada, abriu o piano e pela primeira vez tentou tocar um bocadinho. Logo se entreteve, e tocou algumas de suas musicas prediletas. De propósito não tocou a Chanson Triste, pois que sentia não poder suportá-la. A musica falava-lhe ao coração. Do jeito que as coisas iam, que seria de sua vida? E se no fim não pudesse mais controlar o seu amor? O que aconteceria se de uma hora para outra o seu orgulho se abatesse e ele a notasse arrependida de sua ação passada, ansiosa por cair em seus braços? A

cada momento a admiração e respeito que por ele sentia aumentavam, porquanto a cada passinho descobria novos traços em sua individualidade e já começava a compreender o que o marido representava para toda aquela gente, de quem era o lorde. Que opinião insignificante que ela fizera da Inglaterra! Da própria pátria de seu pai! E como ridiculamente nulo era o seu conhecimento pelos homens! A ideia que fazia é que todos eram brutamontes, como Ladislau e seus amigos, ou uns sonhadores como o pobre Mimo. E que estranha atitude a que sempre ostentara, de arrogante ignorância! Alguma coisa devia dizer-lhe que estes ingleses não se pareciam com o finado marido e sua trempe. Alguma coisa devia avisá-la, logo no seu primeiro encontro com Tristram, estar ele a milhões de milhas distanciado de qualquer outro homem que ela conhecera. Abruptamente Zara parou de tocar, e deliberadamente foi até o espelho e mirou-se. Sim, certamente era formosa e muito moça. Talvez vivesse até os setenta ou oitenta anos, e a existência toda lhe seria um inominável desperdício se não pudesse ter o amor do esposo. Pensando bem, o orgulho não valia lá grande coisa. E si se mostrasse gentil para o marido e se esforçasse por agradar-lhe de um modo amistoso? Um gesto dessa natureza não lhe parecia uma indignidade, nem que ela estava se atirando a seus pés. Se fosse possível, começaria amanhã. Lembrou-se, então, das palavras que ouvira de lady Ethelrida, por ocasião do jantar em casa do tio. Seria possível que somente três semanas fossem passadas desde aquela noite? Lady Ethelrida inconscientemente aludira à sucessão dos Tancreds, e francamente lhe deixara ver os receios da família de que Tristram e Ciril fossem os derradeiros varões de Wrayth. Recordava-se do quanto se enrijecera e se revoltara àquela ideia. Agora, que estava a par de tudo, compreendera perfeitamente as palavras de sua prima e simpatizara, até, com o ponto de vista de todos. Nesta parte de suas meditações, seus olhos se enevoaram e tornaram-se meigos enquanto se perdiam além. A divina expressão da Madona Sistina neles aparecera, como sempre sucedia quando tinha o irmãozinho em seus braços. Sim, a vida encerrava coisas de grande valia, muito mais do que o

orgulho. Confortada com a sua decisão, Zara foi deitar-se. Quanto a Tristram, sozinho na sua sala de estar e sentado defronte da lareira, tinha os olhos pregados na armadura do outro Tristram Guiscard. Também ele tomara uma decisão, mas de diferente espécie. Conversaria com Francis Markrute quando chegassem a Park Lane, na quinta-feira à noite, e descansadamente e sozinhos tratariam do assunto. Dir-lhe-ia que tudo aquilo foi um terrível fracasso, mas que a culpa inteira lhe cabia e não censurava a ninguém por ter-se metido naquela enroscada. O que sim, francamente lhe pediria para que fizesse uso de seu privilegiado cérebro e inventasse qualquer meio de se separarem, sem provocar escândalo, até que pudesse ficar absolutamente indiferente à esposa, para voltar a seu lado e eventualmente viverem na mesma casa. Não havia duvida que ele não passava de um homem como outro qualquer, e impossível lhe era continuar como viviam. Todas as noites devia sofrer a angústia daquele arremedo de consórcio, e isso simplesmente o horrorizava. Continuando nesse fio de ideias, lembrou-se de Laura e de suas últimas palavras. E se houvesse alguma verdade naquilo tudo? Pessoalmente ele vira duas vezes o homem, em circunstâncias bem suspeitas. E se fosse, de fato, um amante? Como podia Francis Markrute conhecer toda a existência da sobrinha, quando afirmara que ela foi uma esposa imaculada? Aos poucos, acudiram-lhe à lembrança outras misérias, outras ninharias, leves como o ar, que só serviriam para torturá-lo, até que tudo isso se concatenou e evidenciou a existência de um amante! Preso de grande raiva, sacudiu violentamente a sua cadeira e disse entredentes: — Se for verdade, eu o matarei e a matarei também! Bem próximos dos selvagens são todos os seres humanos quando certas paixões deles se apoderam. Não obstante, lorde e lady Tancred estavam longe de adivinhar que o destino logo lhes inutilizaria as decisões tomadas, como se nunca existissem.

CAPÍTULO XXXVI PRESSENTIMENTOS

OS jardins de Wrayth eram famosos. A beleza natural de sua disposição e o carinho com que foram tratados durante gerações e gerações, tornaramnos um verdadeiro monumento da natureza construído pela habilidade humana. No século XVIII, por uma felicidade escaparam às mãos do célebre jardineiro inglês Brown. Cada senhor de Wrayth, ao invés de aumentá-los ou alterar o gosto de seu antecessor, construía novos jardins de acordo com a sua fantasia. Destarte, os canteiros com rosas inglesas e com os podados teixos dos tempos de William e de Mary estavam intactos, bem como o canteiro italiano. Mas novembro não é tempo para se fazer uma ideia do que sejam jardins, e Tristram ansiava para que logo aparecesse o sol. Ele esperava a esposa ao pé da escadaria de Adam. Às onze horas, Zara desceu. Tristram observava-a enquanto os seus pezinhos pousavam num e após noutro degrau, e pela primeira vez notava como eram pequeninos e mimosos. Do tamanho dos pezinhos de uma criança, mesmo calçados em sapatos fortes. Certamente que a esposa sabia como vestir-se e adaptar-se aos costumes da região, atento ao vestido de sarja, ao casaco de astracã e ao chapéu, perfeitamente adequados à ocasião. Com as mãozinhas metidas em prodigioso regalo, o seu aspecto era simplesmente adorável, e tanto que o marido de novo começou a desejar ardentemente tê-la nos braços. Todavia, conteve-se e disse-lhe friamente: — O céu está nublado e horrível. Não deve julgar os nossos jardins como hoje lhe aparecem. No verão têm outro aspecto. — Estou certa disso — respondeu Zara meigamente. Como não lhe ocorresse mais nada que dizer, ambos caminharam em silencio através do pátio e deram uma volta por um caminho em declive, passando sob um arco que conduzia para a parte sul de um lado do

monumento de Adam, cujos pilares constituíam o centro da peça. À sua frente ostentava-o belíssimo jardim. Esta parte diziam ter sido construída fora dos planos de Le Notre, o artista que aquela lady Tancred francesa, amiga de Luiz XIV, trouxera da França. Aliás, no próprio solar, Zara encontrou inúmeros indícios de que por ali andara o gosto da francesa. Mesmo em novembro, com o tempo carregado e nubloso, a cena que se lhes descortinava à vista era esplêndida e majestosa, com os grupos de estátuas sobressaindo por entre o verde da relva e aquele todo que fazia lembrar Versalhes. Imensa era a vista: Zara podia enxergar longe, até um declive através de uma extensa clareira do parque, com um campo visual que ia além, muito além, até a torre da igreja de Wrayth. — Como tudo isto é lindo! — exclamou ela, respirando a plenos pulmões e apertando as mãozinhas sob o regalo — E como é agradável saber-se que todas estas coisas esplêndidas são devidas unicamente à sua família! Compreendo que o senhor deve ser um homem muito orgulhoso. Tais palavras constituíam a mais extensa sentença que ele ouvia da esposa, a primeira que encerrava propriamente um pensamento pessoal: Tristram olhou-a, momentaneamente admirado. No entanto, à lembrança do que decidira a noite passada, conseguiu conter-se. Receava encontrá-la carinhosa por alguns instantes, e pouco depois novamente fria. Por isso mesmo é que podia mostrar-se graciosa o quanto quisesse, sob aqueles ares brumosos e frios, e ele se conservaria indiferente. —- Sim, quero crer que eu seja um homem orgulhoso, mas isso não é bom para mim. Com a idade, a gente se torna cínico. Depois, com ocasional indiferença ele se pôs a explicar-lhe tudo o que se referia aos jardins e a datas, enquanto caminhavam. O modo por que lhe falava dava ideia de um enfadado hospedeiro servindo de cicerone a um hóspede comum. O coração de Zara descompassava-se em suas batidas, e ela não pôde manter o seu propósito de mostrar-se gentil e meiga. Limitava-se novamente aos "sim" e "não". Logo alcançaram uma estufa, e ali foi apresentada ao chefe dos jardineiros, um escocês, a quem manifestou toda admiração de que estava possuída. O jardineiro apanhou-lhe alguns cachos de esplêndidas uvas, que Zara trincou com bastante agrado. Na presença do

escocês, de novo Tristram "representou o seu papel", mostrando-se jovial e divertido. Ao deixarem a estufa, tomaram por um caminho todo cercado de árvores podadas até chegarem a outro portão, nos muros, que se abria para a parte este, a mais antiga de toda a propriedade. Subitamente, aos olhos de Zara surgiu o canteiro italiano. Onde quer que olhasse, em pensamento ela o identificava com o que vira na Country Life, mas tudo o que observava lhe parecia tão diferente da realidade, com os efeitos da atmosfera, bem outros que os da fria ilustração na revista. Entretanto, não havia possível engano quanto ao canteiro italiano: era o mesmo que vira na Country Life. De repente Zara sentiu um aperto no coração, ao lembrar-se de Mirko e do último dia em que estiveram juntos. Tristram pasmava ante aquela súbita mudança no rosto da esposa, e percebeu que ela sofria, talvez com a recordação de fatos tristes ligados à cena. Não lhe passou despercebida, também, a sua atitude de indecisão sobre se devia continuar no passeio, como se receasse defrontar algum fantasma. O que seria? A resposta veio-lhe do malévolo espírito que estava bem próximo de Tristram e lhe segredou: — É o canteiro italiano. Talvez ela tenha visto um igual, em outras terras. Quem sabe se o homem é italiano! Ele é moreno. Essa a razão por que, em lugar de mostrar-se solícito e gentil para com a esposa, pelo que quer que lhe causasse sofrimento, ele lhe disse um tanto rudemente, contrariando suas maneiras, comumente de extrema delicadeza: — Isto aqui a faz pensar em qualquer coisa que ignoro. Pois bem continuemos na visita e vejamos o resto, para que você possa logo voltar para casa! Ele não se prestaria, em absoluto, a servir-lhe de companheiro enquanto ela estivesse com aquelas recordações sentimentais de outro homem! Os lábios de Zara tremeram, e Tristram notou, com alegria, ter-lhe tocado nas cordas sensíveis. Cresceu o seu rancor enquanto continuavam no passeio. O seu desejo era magoá-la de novo, se pudesse, pois que os ciúmes transformaram um anjo em cruel demônio. Caminhavam em silêncio. Expressão de um quase receio crescia nos olhos trágicos de Zara, horrorizada ante a ideia de aproximar-se de Pan e suas flautas. Todavia, à medida que

desciam os degraus de pedra, cada vez mais ficava à vista a estátua com as costas voltadas para ambos, isto porque sempre Pan tocava as suas selvagens músicas para deleite das coisas que germinavam. Zara esqueceu-se de Tristram, esqueceu-se de que passionalmente se preocupava com o marido e o amava apaixonadamente, e esqueceu-se, mesmo, de que não estava sozinha. De novo lhe surgiram aos olhos a lareira e a infeliz figurinha de gente, que era o irmãozinho, inclinado sobre a revista, e apontando com o sensitivo dedinho indicador a figura de Pan… Podia ouvir a sua enternecida voz de criança dizer-lhe: — "Repare, Chérisette, ele é diferente de outras pessoas. Veja! também está tocando música. Quando eu estiver com mamãezinha e você passar por aqui, deve lembrar-se de que sou eu"! Tristram, que a observava, não sabia que pensar, porquanto o rosto da esposa se tornara mais branco do que o costume e os profundos olhos estavam nadando em lágrimas. Deus do Céu! Como devia amar àquele homem! Em sua grande raiva, ele se aproximou silenciosamente de Zara até que ambos chegaram rente à estátua, no centro do canteiro e rodeada de seu caramanchel de pilares, o qual no verão era alegre, com suas rosas trepadeiras. Tristram adiantou-se com uma exclamação de grande aborrecimento, pois que as flautas de Pan estavam quebradas e jaziam no chão, — Quem seria o autor do estrago? Um grito de dor escapou dos lábios de Zara, quando notou a mutilação da estátua. Para a sua estranha natureza, aquilo era de mau agouro. Partiramse as flautas de Pan e Mirko não mais podia tocar. Com um gemido igual ao de animal ferido, ela se abateu num banco de pedra, e cobriu o rosto com o regalo. Toda aquela luta de sua alma, que mantivera desde quando conhecera o esposo, como que culminou naquele instante e Zara derramou amargas lágrimas, lágrimas de angústia. Tristram estava simplesmente perplexo. Não sabia que pensar ou que fazer. Qualquer que fosse a causa daquelas lágrimas também ele sofria

horrivelmente ao vê-la chorar… chorar daquele jeito… como se tivesse o coração despedaçado. Todo o padecimento de Zara provinha de recordações. Recordava-se que estivera absorvida em seus próprios interesses e no seu amor, a ponto de ultimamente ter-se esquecido por completo do irmãozinho, daquela figurinha de gente que estava longe, talvez enfermo, talvez morto! Zara soluçava angustiosamente e apertava as mãos. Tristram não mais podia suportar aquela cena. — Zara! — disse ele, um tanto comovido — Por Deus, não chore assim! Do que é que se trata? Posso confortá-la, Zara. E, sentando-se ao lado da esposa, envolveu-a com um dos braços, e cuidou de puxá-la junto de si. Precisava confortá-la, pouco importa o motivo de seu desespero. Entretanto, ela se levantou incontinenti e fugiu. O marido era a causa do seu esquecimento. — Não! — exclamou apaixonadamente, ostentando em seu gesto toda aquela parte de sua natureza herdada da linha materna, agora no relaxamento do próprio controle — Basta-me saber que é o senhor o culpado de tudo! Por pensar sempre no senhor é que eu me esqueci do coitado! Pode ir-se! Quero ficar sozinha! E tal qual uma corça ela desceu correndo por uma das clareiras, até alcançar um grupo de árvores podadas, onde desapareceu de vista. Quanto a Tristram, de novo se sentou no banco de pedra, sobremodo irritado para poder caminhar. Aquilo era uma confissão da esposa, deduziu ele quando pôde coordenar as ideias. Não mais se tratava de conjecturas e suspeita, havia alguém na vida de Zara. Alguém a quem ela devia amar e a quem esquecera, por causa do marido. A esta certeza, abruptamente se partiu a corrente dos seus pensamentos. O que queria dizer tudo isso? Acaso, a despeito de tudo, ela sentia alguma afeição por ele, e realmente pensava em sua pessoa? Era este o segredo que havia em seu estranho e misterioso rosto que o seduzira e

que sempre o deixara perplexo? Acaso se travava alguma batalha no coração da esposa? Mas a confortadora ideia que momentaneamente lhe acudira por dedução de novo lhe voltou ao raciocínio, e ele concluiu que nada havia que provasse fossem de amor os pensamentos que ela tivera a seu respeito. E assim, alternativamente cuidando de tirar uma conclusão de tudo aquilo, e preso de grande paixão, suspeita e padecimento, por fim Tristram voltou para casa, na esperança de fazer sozinho o seu lanche. Todavia, quando soou o gongo de prata, vagarosamente Zara desceu as escadas. À parte a extrema palidez do rosto e olheiras azuis por sob os profundos olhos, nada mais se notava naquela máscara. Zara sentia-se perfeitamente calma. Quando defrontou o marido, não lhe pediu desculpas pela cena que provocara, nem a isso fez a menor alusão. Pelo jeito, parecia até que nada tivesse havido. Trazia uma carta numa das mãos entregue pelo segundo correio enquanto se achavam fora. Escrevera-a o tio, de Londres, e continha suas alegres novas. Tristram olhou para a esposa e de novo ficou espantado. Sem sombra de dúvida, era uma extraordinária mulher! Parte de sua raiva descaiu e ele resolveu não lhe pedir nenhuma explicação e esperar que se findasse a detestável recepção. De volta para Londres, na próxima quinta-feira, fácil lhe seria investigar toda a verdade. Não obstante, a mínima parte do seu padecimento provinha da incerteza no tocante ao que as palavras da esposa pudessem dizer-lhe respeito. Se por felicíssimo acaso Zara tivesse uma paixão em seu passado e agora amasse o marido, Tristram receava poder perdoarlhe. Receava que o seu próprio orgulho não o arredasse da felicidade que tinha diante de si, da felicidade que sentia com a esposa, irresistível e amorosa, em seus braços. E assim foi que com olhos tempestuosos e forçada tranquilidade, o casal sentou-se para o lanche e Zara entregou-lhe a carta do tio. Dizia:

Querida sobrinha. Tenho um punhado de novidades para contar-lhe, novidades que me são particularmente caras, e que por certo também lhe provocarão algum prazer… Lady Ethelrida Montfichet deu-me a honra de aquiescer ao meu pedido de casamento, e o duque, seu pai, bondosamente consentiu que eu desposasse a filha. O casamento realizar-se-á o mais depressa possível, tão logo todas as coisas estejam dispostas para a cerimônia. Espero que vocês dois cheguem com tempo de acompanhar-me ao jantar no Palácio de Glastonbury, na noite de quinta-feira, onde você poderá dar os parabéns à minha querida noiva, que a espera com grande simpatia e afeição. Como sempre, querida sobrinha, seu devotado tio, Francis Markrute.

Quando Tristram acabou de ler, exclamou: — Santo Deus! Absorvido em seus próprios interesses, nunca notou as peregrinações do financista. Então, olhando de novo a carta, acrescentou pensativamente: — A meu ver, os dois vão ser inexcedivelmente felizes. Ethelrida é uma menina tão desprendida, tão sensível, tão carinhosa! Tais palavras magoaram a esposa, mesmo na disposição em que se achava, pois notara o contraste com o seu procedimento, muito embora o tom de voz do marido não revelasse um cotejo. — Meu tio nunca faz o que quer que seja sem demorado cálculo, para que a ação lhe saia perfeita — observou Zara amargamente — Entretanto, por vezes sucede lançar mãos de inadequado penhor para os seus fins. Tristram admirou-se do a que vinham tais palavras. Ele e ela certamente serviram de penhor nas habilidosas mãos de Markrute, e só neste instante é que começava a compreender tudo, como Zara já compreendera ou pelo menos suspeitara. Foi quando lhe veio o pensamento de perguntar-lhe agora, diretamente, a razão por que ela o desposara. De nada lhe adiantava aos seus

desejos ou à sua situação saber dessa verdade, mas… por que Zara quis desposá-lo? E assim, no instante em que os criados deixaram a sala para ir buscar o café, depois de uma intermitente palestra sobre aquele noivado, Tristram perguntou-lhe friamente: — Você me disse, na segunda-feira, que sabia a razão por que a desposei. Permite que eu lhe pergunte por que você se casou comigo? Zara convulsamente apertava as mãos. A pergunta fazia-a voltar a antigos dias, à existência de seu pobre irmãozinho e ela ainda não estava liberta da promessa que fizera ao tio. Jamais faltaria à palavra empenhada. Expressão de profunda e trágica ansiedade refletiu-se naquelas duas manchas de nanquim, ao mesmo tempo que ela respondia com um estranho soluço na voz: — Acredite-me, a isso fui levada por uma forte razão, mas agora não posso dizer-lhe qual seja. Nesse momento os criados de novo entravam na sala, de modo que Tristram não pôde perguntar-lhe — por que? Partiu-se-lhe a corrente dos pensamentos. Mas, que inesperadas deduções as da esposa em assuntos que lhe diziam particular respeito! Que mistério, aquele! Ele estava emocionadíssimo de suspeita e de terrível interesse. De uma coisa, no entanto, tinha a certeza: Francis Markrute não estava a par desse segredo da sobrinha. Mau grado toda a corrente de seu raciocínio sobre a existência desse provável amante, Tristram ficou um tanto duvidoso, pois que Zara lhe parecia sobremodo pura e tinha o aspecto bastante orgulhoso. Depois que os criados serviram o café, com o pretexto de escrever uma carta ao tio e, na verdade, para evitar outras perguntas, Zara deixou-o e foi diretamente para o seu quarto. Apoiando a cabeça nas mãos, o infeliz esposo cuidou de pensar. Sentia-se simplesmente perplexo e não havia jeito de sair daquela perplexidade. Se a procurasse agora e lhe pedisse uma explicação de tudo, era

bem possível que se confirmasse toda aquela sua pavorosa suspeita. Neste caso, como poderiam apresentar-se na manhã seguinte para a recepção aos habitantes da vila de Wrayth? Como quer que fosse, não lhe assistia razão para teimar no assunto. Porque se casara cegamente com essa mulher estrangeira, acurvando-se a uma selvagem paixão, não tinha o direito de provocar um escândalo e desgraça sobre o seu imaculado nome. Noblesse oblige era a inscrição gravada em sua alma. Não. Devia esperar até quinta-feira à noite, depois do jantar em casa do tio. Então, podia procurá-la e exigir-lhe toda a verdade. Quanto

à

esposa,

acompanhada

de

Mrs.

Anglin,

examinou

cuidadosamente todas as dependências do lindo e antigo solar. Notou as antigas e pendentes cortinas, os lambris de carvalho esculpido, e ouviu toda a historia do solar. Olhou nos quadros, muitos dos quais de homens esplêndidos como Tristram, pois a raça dos Tancreds era forte e viril. O seu coraçãozinho palpitava de dor e de orgulho alternativamente. Por fim, deparou com o retrato do marido, quando no verdor dos anos, maravilhoso trabalho de Sargent, o grande artista que parecia ter comunicado à tela a verdadeira alma de Tristram. Ali se achava, envolto numa jaqueta vermelha de caçador, desempenado, forte e verdadeiro, com toda a promessa de uma nobre e útil existência estampada nos formosos olhos azuis. De repente, aquela orgulhosa mulher levou a mão à garganta para reprimir o soluço que por ali queria irromper. E, mais uma vez através dos olhos neblinosos, Zara viu a estátua de Pan com suas flautas quebradas.

CAPÍTULO XXXVII NOVAS SUSPEITAS

TRISTÃO passou aquela tarde fora de casa, inspecionando os estábulos e em visita aos seus retiros prediletos. Voltou tarde, justamente à hora do chá, mas com tempo de alcançar o correio. Escreveu uma carta para Ethelrida e outra para o tio por afinidade… Que parentesco ridículo! De um lado, Francis Markrute era seu tio, pois que se casara com a sobrinha; e agora ia tornar-se seu primo, uma vez que ia desposar a prima, Ethelrida. Quando a gentil figura da prima lhe veio à lembrança, ele se deu pressa em enviar-lhe um telegrama cheio de expressões carinhosas e de congratulações, porquanto lhe queria mais do que às próprias irmãs. Redigido o telegrama, entregou-o a Michelham, que ali viera em busca das cartas para pôr no correio. Mal o antigo servo deixara o aposento, com as cartas e o telegrama, quando Tristram se lembrou de que o endereçara para Montfichet onde provavelmente Ethelrida não mais se encontrava. Devia, pois, modificar o endereço e por isso foi à porta e gritou pelo antigo criado: — Michelham, traga-me esse telegrama. O austero servo, que estava retirando da caixa de correspondência, no hall, todas as cartas que deveria expedir, voltou para onde se achava o amo e entregou-lhe um grande envelope azul. Sempre havia envelopes azuis sobre as mesas de Wrayth, onde se colocavam os telegramas que deviam ser transmitidos. Tristram cuidou logo de redigir um outro, e entregou-o ao criado, que logo deixou o aposento. Distraidamente rasgou o envelope que imaginava contivesse o telegrama com endereço errado, e antes de fazê-lo em pedaços olhou para as linhas escritas. Sem que notasse o que estava fazendo, os seus olhos leram: Ao conde Mimo Sykypri — quero notícias suas imediatamente amanhã. — Chérisette.

Tristram não reparou no endereço. Impotente para conter-se, a grande raiva de que estava possuído explodiu numa terrível praga, ao notar que o telegrama ia com resposta paga. Amassado o papel com violência, atirou-o ao fogo. Não havia mais de que duvidar ou que perguntar: qualquer mulher não se assinaria — Chérisette — exceto quando se dirigisse ao homem a quem amasse! Tamanho o seu ódio que, se Zara ali aparecesse naquele instante, ele a estrangularia. Chegou a esquecer-se de que já era tempo de vestir-se, para o jantar. Esqueceu-se de tudo, dominado pela cólera. Pôs-se a andar de um lado e de outro do aposento até que aos poucos voltou a si. A lei agora não podia protegê-lo, desde que a esposa certamente não lhe fora infiel durante a sua curta vida de casados. Ademais, a lei quase sempre não pune faltas cometidas anteriormente à vigência do casamento. Nada agora podia ser intentado contra a esposa nem lhe serviria de corretivo; o que quer que fizesse só serviria para provocar um escândalo. Não, cumpria-lhe continuar no seu papel até que pudesse consultar a Francis Markrute, saber toda a verdade e então tomar uma decisão. Embora isso constituísse a ruína de sua vida, pelo menos o seu nome não sossobraria. Após mais alguns instantes de concentrada agonia, por fim ele conseguiu dominar-se suficientemente para dirigir-se ao seu quarto e vestir-se para o jantar. No entanto, o conde Mimo Sykypri não receberia, aquela noite, o telegrama! Nem por sombras passou pela ideia de Zara que os seus gestos e palavras pudessem dar margem a escandalosa interpretação. De tão inocente no seu modo de agir, jamais lhe ocorreu tal pensamento. Ela era a última pessoa capaz de conservar algum mistério em sua vida ou mostrar-se de qualquer forma dissimulada, dar origem a certas bagatelas que provocavam situações delicadas, e ocultar aparências sombrias e misteriosas, coisa muito do agrado de Laura Highford. Se apenas suspeitasse derivar-se das suas atitudes alguma dúvida que magoava o marido, iria procurá-lo e com toda a naturalidade lhe contaria a historia toda, porventura atraindo para si a cólera do tio. Entretanto, não fazia a menor ideia disso. O que unicamente sabia é

que Tristram se mostrava severo e frio e lhe ostentava desdém. Posto que fizesse tenção de mostrar-se gentil e com sua amizade reconquistá-lo, isso agora lhe parecia impossível. Notara que durante o jantar a sua apatia se transformara em desprezo, como se fosse um protesto mudo pela cena de lágrimas daquele dia. Quando chegou o café ele o bebeu apressadamente e levantou-se. Não podia mais ficar sozinho com a esposa, mesmo durante alguns minutos. Zara lhe parecia tão encantadora, tão meiga, tão trágica… Receava não poder conter todas aquelas emoções que sentia e, assim, duma hora para outra, perder a cabeça e cometer qualquer desatino. Por isso mesmo é que, com a indispensável polidez, ele lhe disse: — Tenho que examinar alguns documentos. Desejo-lhe uma boa noite e até amanhã. E afastando-se precipitadamente daquela tentadora presença, foi ter à sua sala de estar, na outra parte do prédio. Entrementes, esmagada pela ansiedade e tristeza por causa do irmãozinho, e sentindo-se atrozmente infeliz pelo modo por que era tratada pelo marido, sozinha Zara se encaminhou para o seu solitário quarto. Ali chegada, despediu a criada e foi à janela, para contemplar a noite. Desaparecera a neblina, e algumas estrelas imaculadas brilhavam no longínquo azul. Lá é que estava a mamãezinha? E Mirko logo iria procurá-la? Deixaria este mundo cruel, que só encerrava tristezas e padecimentos? E, na verdade, como certa vez ele lhe dissera, lá em cima havia um lugar para ambos. Entretanto, Zara não era pessoa dotada de uma sentimentalidade mórbida. Em suas veias corria um sangue forte e quente, e bem que sabia cumpria-lhe enfrentar a vida e ser verdadeira para si mesma, pouco importando o que lhe sucedesse. Minutos depois, encontrou consolo naquela linda noite e ajoelhou-se para rezar. Em seguida, deitou-se. Mas Tristram, seu esposo, passeava de um lado e de outro do seu quarto, até que raiou a aurora. O dia seguinte passou como os anteriores. A única diferença é que de

novo se apresentaram em público, devido a novas festividades locais. Ambos representaram admiravelmente o seu papel, agora como experimentados atores, e um único incidente assinalou a aflição do dia, afora as costumeiras. Foi na escola de Wrayth, para onde a substituta da professora, uma rapariga jovial casada no ano passado, levava o seu primeiro filho para mostrar a lorde e lady Tancred, porquanto a criança nascera no dia que eles se casaram. Justamente há quinze dias! Zara estava pálida e a ponto de desmaiar, embora parecesse extasiada e feliz, de sorte que Tristram disse imediatamente que ele e lady Tancred podiam batizar a criança. Zara pegou-a em seus braços, naquele encolhidinho e rosado projeto de gente e, erguendo a cabeça e olhando para o marido, notou que os olhos dele estavam cheios de lágrimas. Entregando-a de novo para a mãe, por alguns instantes a infeliz lady Tancred não pôde articular uma sílaba. Finalmente chegou a ocasião de regressarem para o solar. Ninguém mais infeliz no mundo que aquele par cheio de vida e cheio de mocidade. Zara mal podia conter sua impaciência para ver se lhe viera algum telegrama de Mimo, na ausência de ambos. Tristram notou-lhe o desassossego e sorriu horrivelmente para si mesmo. Desta vez não receberia do amante nenhum telegrama em resposta ao que passara. Aborrecida com tudo isso, ela se voltou e perguntou-lhe se havia algum inconveniente em que, de tão cansada, não comparecesse ao jantar. — Todavia, descerei se for preciso para a nossa "representação" — acrescentou a esposa. — Não. Por hoje está finda a representação. Pode agir como bem entender. E assim foi que tristemente Zara seguiu para o seu quarto e somente se avistou com o marido no dia seguinte de manhã, quinta-feira, no dizer de Tristram "o começo do fim". Ele dispôs as coisas de modo que seguissem de trem e não de automóvel, como usualmente vencia aquele percurso. A razão disso é que gostava imenso de viajar de automóvel e grande o risco por que passava com aquela miserável contiguidade dentro do veículo, mesmo agora que ele

esperava detestá-la, odiá-la. Com essa decisão, logo depois do almoço tomaram o trem e às cinco estavam em Park Lane. Não chegara nenhum telegrama para Zara. Mimo devia estar algures. Em qualquer caso, essa ausência de noticias era indicio de que algo de anormal se verificara, a menos que Mimo não fosse chamado em Bournemouth pelo próprio Mirko e se dera pressa em atender ao chamado. Torturava-a tanto esta ideia que ao chegar a Londres não mais podia suportar a sua impaciência. O seu desejo era voar para a rua Neville. Mas, como ir? Francis Markrute esperava-os na biblioteca. O seu aspecto era de quem se achava no sétimo céu, de modo que a sobrinha não pôde deixá-lo imediatamente, enquanto não lhes serviu o chá, o qual demorou uma eternidade. A transformação que se operara naquele homem reservado chocara os sobrinhos. Ele parecia ter rejuvenescido e ser todo um reservatório de inesgotável bondade. Tristram lembrou-se do seu próprio aspecto, quando acompanhou o financista até Vitoria, onde foram esperar Zara, de regresso de Paris. Nesse dia, de tão contente com a vida, ele, Tristram, dera uma moeda de ouro a um mendigo. A razão disso é que a felicidade e o vinho abrem o coração do homem. Não, não traria com o amigo dos seus próprios aborrecimentos. Deixaria isso para amanhã, depois que se realizasse aquele jantar no Palácio de Glastonbury. Não devia inquietá-lo com tais coisas justamente na noite do seu jantar de noivado. Finalmente, Zara pôde escapar. Estava de sobreaviso, à espera de oportunidade. De tão desesperada, num instante em que achou o hall deserto, apressadamente cruzou a porta. Eram seis e meia e o jantar no Palácio de Glastonbury seria realizado às oito. Rapidamente entrou num táxi, na rua Grosvenor. Receava tomá-lo em Park Lane, onde poderia ser observada, e mandou que a levasse a toda pressa para a rua Neville. Ali chegada, tocou a barulhenta campainha. A desalinhada criadinha disse que o cavalheiro estava ausente, mas que madame podia entrar e esperá-lo. Ele não devia demorar, pois dissera que ia

apenas passar um telegrama. Zara entrou imediatamente. Um telegrama! Talvez para ela. Sim, seguramente lhe telegrafara. Bem sabia não haver outra pessoa a quem Mimo telegrafasse. Com estas reflexões, subiu para o miserável estúdio, na água furtada. Na lareira, o fogo estava quase extinto, e a criadinha trouxera uma vela acesa, que pôs numa mesinha. O frio era intenso; novembro garoava. A mansarda emocionou-a pelo seu aspecto miserável, a ela, que vinha da grandeza a que se habituara. O pobre, o querido, o tolo Mimo! Devia fazer alguma coisa por ele, e logo veria o quê. O aposento tinha o aspecto de irrepreensível limpeza, coisa que sempre verificava com o que pertencia ao padrasto, e lá estava O Apache, à espera de que ela o levasse, num caixilho novo e dourado. Quanto ao London Fog, estava bem adiantado. Evidentemente estivera trabalhando naquele quadro, porque palheta e pincéis, ainda molhados, se achavam numa caixa ao lado, sobre uma cadeira e perto do seu violino. Mimo não nascera com a vocação musical de Mirko, mas tocava admiravelmente. A palheta e os pincéis mostravam que precipitadamente foram largados. Por quê? Acaso ele recebera algum recado? Recebera algumas novas? Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Olhou em derredor, a ver se Mirko escrevera alguma carta ou lhe mandara algum dos seus interessantes postais. Não, não havia nada, nada que pudesse ver, exceto um postal com a vista da cidade. Poucas palavras nele escritas: "Agradeça a Chérisette por sua carta. Ágata é très jolie, mas não me compreende o violino. Ela mesma quer tocá-lo e… céus! que barulho!" Como o pequeno podia remeter aqueles postais, era um mistério. Talvez escondesse algures, à espera da primeira oportunidade que saísse a passeio para colocá-los numa caixa postal da rua. Este era datado de dois dias atrás. Alguma coisa lhe sucedera a partir de então? Zara já estava impaciente quanto à demora de Mimo. Um reloginho ordinário bateu sete horas. Onde estaria Mimo? Os minutos pareciam arrastar-se com a lentidão das horas. Toda espécie de possibilidades lhe veio à mente, então conseguiu controlar-se e tornar-se calma. Ali estava uma grande fotografia de sua mãe, que Mimo colorira com admirável gosto. Estava num caixilho de prata, sobre a lareira, e atraira a

atenção de Zara. Por muito tempo dali ela não desviou o olhar, enquanto murmurava no sombrio aposento: — Adorada mãezinha, cuide de seu filhinho, mesmo que ele tenha de voltar logo para junto da senhora. Ao lado daquela fotografia estava a de Mimo, tirada na mesma ocasião, quando Zara e sua mãe foram ao palácio do Imperador, naquela distante terra. E que lindo, os dois! Que atitude de insouciance, metido naquele uniforme branco e enfeitado de ouro! Aliás, Mimo sempre parecia um gentleman, mesmo com o seu cocado sobretudo. Agora que sabia o que fosse o verdadeiro amor, melhor compreendia como sua mãe o amara. Nunca ela julgou o procedimento de sua mãe, mesmo porque não estava em sua natureza julgar a quem quer fosse. E debaixo daquela armadura de aço em que se adaptara a sua miserável existência, palpitava um coração tão terno quanto o de um anjo. Nesse instante, lhe acudiram as palavras do Evangelho: "e os pecados dos pais recairão sobre os filhos". Acaso os dois pecaram? E se assim fosse, que coisa terrível aquela ameaça do Evangelho, assegurando que inocentes crianças pagariam a culpa de outrem! Mirko e ela certamente deviam sofrer qualquer castigo. Mas o Deus para quem a mãezinha fora, a quem adorava e de quem, segundo lhe disseram, também era filha, realmente não era cruel, e algum dia talvez ela própria, Zara, pudesse encontrar a paz na terra. E Mirko? Mirko estaria lá em cima, feliz e em segurança com a mãezinha. O reloginho mostrava que eram quase sete e meia. Não podia mais esperar um minuto sequer. Ocorreu-lhe que se Mimo fosse passar algum telegrama, seria para Park Lane. Ele sabia que a enteada descera de Wrayth. Por isso mesmo, quando ali chegasse, receberia o telegrama. Não obstante deixou-lhe uma linha escrita, dizendo-lhe que ali estivera e da razão de sua visita. Acrescentou que queria notícias imediatas de Mirko e saiu da mansarda, de volta para a casa do tio. Quando ali chegou, faltavam vinte minutos para as oito. Sua criada de quarto estava sobremodo embaraçada, porquanto não recebera nenhuma ordem quanto ao que sua ama ia vestir. Mas Henriette,

inteligente como era, tirou do guarda-roupa o vestido que lhe parecera mais adequado para o jantar. Contudo, não pôde refrear a sua impaciência quanto à demora de lady Tancred, e volta e meia espiava pela escadaria, a qualquer barulho que ouvisse. Ali é que a encontrou Tristram, no instante em que saía do seu quarto, já pronto. Perguntou-lhe o que estava fazendo. — Estou à espera de milady, que ainda não veio. Estou bastante receosa de que milady chegue tarde. Tristram sentiu que o seu coração momentaneamente parara de bater, a despeito de sua fortaleza de ânimo. Milady ainda não entrara! Mas, enquanto falavam, ele a percebeu em baixo, dirigindo-se apressadamente pela escada, sem esperar o elevador. Foi ao seu encontro, ao passo que Henriette voltava para o quarto. — Onde você esteve? — indagou ele, com o semblante carregado e pálido. Sentia-se bastante furioso e desconfiado para que a deixasse passar em silêncio. Notou que suas faces estavam coradas de excitamento nervoso e que a sua respiração era ofegante, coisa bastante natural, de vez que ela voava pelas escadas. — Não posso agora parar para responder-lhe — arquejou Zara — Mas, com que direito me fala desse modo? Deixe-me passar, ou ficarei atrasada. — Que me importa que você fique atrasada ou não! Você há de me responder! — retorquiu-lhe furiosamente Tristram, barrando-lhe a passagem — Você usa o meu nome e por todos os motivos tenho o direito de saber onde esteve! — O seu nome! — repetiu Zara vagamente, e pela primeira vez vislumbrou alguma dúvida insultuosa em tais palavras. Erguendo-lhe um olhar fulminante de escarnio, e com ares de imperatriz dando ordens a um subordinado, ela objetou: — Deixe-me passar imediatamente! Mas Tristram não se mexeu. Durante um segundo eles se entreolharam; depois, Zara adiantou um passo, para forçar a passagem. Nesse momento ele a agarrou raivosamente pelo braço. Mas Francis Markrute precisamente naquele instante saía do seu quarto, de modo que Tristram deixou-a passar, pois queria evitar qualquer cena. E Zara passou, com a cabeça erguida em toda

sua altivez, encaminhando-se para o seu quarto. — Notei que esteve de novo brigando — disse-lhe o tio, bastante irritado. Depois, rindo-se enquanto descia, acrescentou: — Creio que chegará atrasada. Se não estiver no hall quando faltar quinze para as oito, não esperarei. Quanto ao marido, aguardava-a no corredor em que se situava o seu quarto, sentado num grande e cômodo sofá. Toda aquela concentrada essência de sua raiva e sofrimento, por que ainda ha pouco passara, parecia agora localizar-lhe no coração. Mas, que significavam aqueles ares de soberbo desdém? O seu modo de olhar não era o de um esposa culpada. Faltavam seis minutos para as oito quando Zara abriu a porta e saiu do quarto. Simplesmente mudara de roupa, e isso em dez minutos! Seus olhos ainda estavam negros como a noite, de tão ressentidos, o peito lhe arfava e duas manchas vermelhas lhe assomaram às faces. — Estou pronta — disse ela altivamente — Podemos ir. E

sem

esperar

pelo marido, desceu

apressadamente

a escada,

precisamente no instante em que o tio abria a porta da biblioteca. — Muito bem, minha pontual sobrinha. Você é mulher de palavra. — Em tudo e por tudo — respondeu Zara ferozmente, encaminhando-se para a porta da rua, onde o automóvel os esperava. E os dois homens, enquanto a seguiam, intimamente se perguntavam qual o significado de tais palavras.

CAPÍTULO XXXVIII O MÉDICO, DONA!

O jantar de noivado de Ethelrida estava longe de parecer-se com o de Zara e Tristram, exceto em que esses dois corações não se sentiam constrangidos em compartilhar do regozijo geral. Quanto aos noivos dessa noite, mostravam-se radiantes de felicidade, e não cuidavam, nem podiam dissimular os seus sentimentos. Lady Tancred, a mãe de Tristram, chegou minutos antes do filho. Zara notou que a sogra estava emocionadíssima quando exclamou: — Tristram… meu pobre filho! — entretanto, conseguindo disfarçar a sua tristeza, continuou em voz natural, embora um tanto ansiosa: — Espero que você esteja bem. Assim, ele pareceu mudado para os olhos daquela que não mais o vira depois do casamento. Para certificar-se de sua observação, Zara voltou o olhar para o marido e notou mesmo, que ele estava mudado. O semblante tinha-o sério e um tanto carregado, e o aspecto um pouco mais envelhecido. Não era de estranhar-se, pois, que sua mãe ficasse surpresa. Depois, lady Tancred voltou-se para Zara e beijou-a. — Seja de novo bem-vinda, minha filha. Zara cuidou de responder-lhe gentilmente. Acima de tudo, esta orgulhosa lady, que tão ternamente lhe confiara a felicidade do filho, não devia saber de toda a verdade quanto ao erro que ambos cometeram. Entretanto,

lady

Tancred

não

era

nenhuma

simplória.

Notou

imediatamente que o filho passara por grandes provações e sofrera imenso. Mas, por quê? Ante essa certeza, sentia despedaçar-se-lhe o coração, mas conhecia de sobra o filho para não tocar, nem de leve no assunto. De modo que continuou a conversar alegremente com eles. Tristram fez um grande esforço para mostrar-se jovial, alegre com sua mãe, e não demorou

que todos fossem para a mesa. Lady Tancred sentou-se ao lado de Francis Markrute, empregando o melhor de sua boa vontade para desfazer a má impressão que o financista lhe causara. Se Ethelrida o amava tanto é porque realmente se tratava de um homem digno. Zara sentou-se entre o duque e lady Anningford; à sua frente estava o "Menino", com toda a sua idiotice tentando flertá-la. Todo o mundo achava aquilo engraçadíssimo. O jantar decorreu animadamente e com grande e geral alegria. Depois de servida a sobremesa, as senhoras, que eram velhas amigas, se dispuseram em grupos alegres numa das salas de visitas, todas à vontade porque não havia estranhos entre eles. Ali tomaram o seu café. Ethelrida chamou Zara de parte, para conversarem a sós. Tomando-lhe delicadamente a sua mãozinha branca, a noiva do tio lhe disse: — Zara, sinto-me bastante feliz com o meu noivo e quero que você também seja. Querida Zara, não acha que agora devemos ser amigas, amigas verdadeiras? Zara, conquistada pela ternura de Ethelrida, com a outra mão apertou a da prima, e respondeu-lhe: — Sinto-me tão contente! Nada que meu tio tenha feito até hoje me alegrou tanto como esse passo. Sim, por certo que serei sua amiga, e amiga verdadeira, minha boa Ethelrida. Sinto-me feliz e emocionada ante o seu desejo de ter-me como amiga. Curvando-se, a filha do duque beijou-a. — Quando a gente é feliz como eu sou — prosseguiu Ethelrida — tem-se vontade de fazer tudo quanto é possível neste mundo e dele apagar toda sorte de tristezas. Algumas vezes tenho pensado, querida Zara, que você não parece feliz como… como eu gostaria que fosse. Felicidade! palavra escarnecedora! — Ethelrida — murmurou Zara incontinenti — não… não me pergunte nada sobre isso. Ninguém pode valer-me. Devo continuar sozinha nesta minha existência. Mas vocês, da família de Tristram, e especialmente você, minha boa Ethelrida, a quem ele quer tanto, não faça mau juízo de mim. É possível que

também creia que eu o tornei infeliz. Se ao menos soubesse do que se passa comigo!… Sim, talvez inconscientemente eu lhe tenha cavado a infelicidade, porquanto eu não sabia nem compreendia… Mas, agora, se fosse preciso, eu morreria por ele… agora que é tarde, muito tarde. Outra coisa não podemos fazer senão "representar o nosso papel" na vida. — Zara, não diga tal coisa! — exclamou Ethelrida, bastante aflita — O que teria acontecido entre vocês dois, nascidos um para o outro? Tristram adora-a, minha querida. — Sim, outrora ele me amou — retorquiu Zara tristemente — Outrora, e não hoje. O seu desejo é de nunca mais me ver, de afastar-se de mim. Mas… por favor, não falemos mais nisso! Não posso suportar tais recordações. Ethelrida notou logo que aquele rostinho estava cheio de ansiedade, e agora com expressão de desespero, certamente refletindo a angústia que lhe ia pela alma. De outro lado, a infeliz Zara não podia abrir-se para a prima, porquanto, uma vez que Ethelrida ia casar-se com o tio, jamais deveria contarlhe a história da desdita do irmãozinho. Como estivesse mais ou menos alheia ao ponto de vista dos ingleses, receava que talvez o duque, inteirado daquela desgraça da família, não consentisse no casamento da filha. Neste caso, ficaria em ruínas a vida da meiga Ethelrida. Quanto a Ethelrida, com a fina percepção de que era dotada, notou logo que não devia insistir no assunto. O que quer que sucedesse entre o casal, o momento não era oportuno para qualquer interferência. E assim foi que mudou de assunto, conversando agora sobre coisas triviais até que se puseram a tratar do seu próprio noivado. A orgulhosa lady Tancred estava longe de indagar, de quem quer que fosse, qualquer coisa a respeito do filho, muito embora estivesse conversando a sós com lady Anningford e fácil lhe seria tratar do assunto. A única pessoa com quem poderia conversar a esse respeito era o irmão, o duque. Mais tarde, quando se encontraram sozinhos, lady Tancred perguntou-lhe simplesmente: — Tristram parece-me pálido e infeliz, Glastonbury. Pode dizer-me alguma coisa sobre isso? — Querida Jane, o que se passa com ele é a coisa mais assombrosa do

mundo. Ninguém, ninguém sabe do que se trata. Em Montfichet, quando notei que ambos estavam estremecidos, dei-lhe alguns conselhos. Pelo que me foi dado observar, esta noite, as coisas continuam na mesma. Esta mocidade moderna parece-me tão fria… Entretanto, segundo me disseram, o casal se portou admiravelmente em Wrayth, quando da recepção que ali deram. — Sinto-me bastante entristecida, Glastonbury, em sair de Londres e deixar o meu filho neste estado. A culpa é dela? Que acha você? — Palavra que não sei como responder-lhe. O próprio Corvo não pôde desvendar o mistério. Laura Highford — com todos os demônios! — esteve em Montfichet. Acaso tem alguma coisa que ver nisso? Não sei! Nesse instante a palestra de ambos foi interrompida e não trocaram mais uma palavra sobre o assunto. Finalmente todos se despediram, e aquela pobre mãe partiu sem encontrar consolo para a sua angústia. No dia seguinte, Tristram e Zara iriam fazer-lhe companhia ao almoço e despedir-se. No trem da tarde, lady Tancred partiria para Paris. Como Francis Markrute ainda ficasse para fumar um charuto com o duque e presumivelmente conseguir um delicioso "boa noite" da noiva, Tristram e Zara tiveram que voltar sozinhos para Park Lane. Agora chegara o momento de uma explicação. Mas a esposa adiantara-se ao marido e mal acabavam de entrar no automóvel quando, recostando-se na almofada do carro, assim lhe falou: — O

senhor fez algumas insinuações esta tarde, quando nos

encontrávamos na escada, e a princípio não pude compreender a vilania de suas palavras. Aviso-o de que não estou disposta a ouvir outras insinuações desse gênero — fez ligeira pausa, e prosseguiu com a voz: subitamente desfalecida e emocionada: — Ah! sofri tanto esta noite! Por favor! Por favor, não fale agora comigo. Deixe-me sozinha! Tristram permaneceu silencioso. O que quer que fosse, certamente logo ela lhe explicaria. Por isso, não devia torturá-la nessa noite. A despeito de sua raiva, de sua desconfiança e de seu sofrimento, ficou bastante emocionado quando, penetrando repentinamente um raio de luz no interior do carro, ele a notou encolhida num canto, com os olhos iguais aos de uma corça ferida.

— Zara! — murmurou por fim, em voz bastante gentil — Que terrível sombra a envolve! Se você apenas me dissesse… Nesse instante o carro parou em Park Lane. Imediatamente abriram a porta do automóvel e ela desceu, tomou o elevador sem dizer palavra e subiu para o seu quarto. Aliás, o que poderia dizer-lhe? A infeliz esposa não podia mais suportar aquele estado de coisas. Tristram evidentemente notara que ela guardava algum doloroso segredo. Por isso, iria procurar o tio e pedir-lhe que a libertasse de sua promessa, pelo menos na parte em que o marido estivesse interessado. Odiava essas coisas misteriosas, e se o tio ficasse aborrecido e lhe dissesse para deixar a confissão para mais tarde, ela iria confiar ao marido toda a verdade. Contar-lhe-ia a historia de Mirko e o resto. Sem sombra de dúvida Tristram estava bastante aborrecido, mas pela segunda vez, desde aquela cena nos jardins de Wrayth, ele se preocupava com as aflições da esposa. Os motivos que lhe ditavam aquele procedimento eram tão inocentes que até agora nem de longe lhe passara pela ideia pudesse levantar suspeita no espírito do marido. Se ele ficara zangado é porque ela se atrasara, e se fizera aquelas insinuações, certamente fora levado pelos ciúmes. Segundo o seu modo de ver, todos os homens são ciumentos, mesmo quando completamente indiferentes a uma mulher. O que realmente a deixara perturbada nessa noite foi o telegrama que encontrara em seu quarto, ali levado pela criada conforme suas instruções. Era de Mimo, e dizia que Mirko de novo estava com muita febre. Desta vez, segundo parecia a Mimo, o pequeno adoecera gravemente. Por tudo isso, a infeliz Zara passou em claro toda aquela noite de angústia com os lábios continuamente se movendo em preces e quase que alheia ao que estaria reservado no dia seguinte. Tristram logo de manhã foi ao Turf, cuidando de procurar distração e esquecer-se dos seus aborrecimentos. De nada mais lhe adiantava fazer perguntas à esposa. Cumpria-lhe aguardar uma explicação espontânea, a qual deveria verificar-se naquela manhã, e não depois. E assim foi que raiou aquele dia, cheio de tragédia.

Zara levantou-se cedo e vestiu-se logo. Precisava estar pronta para sair assim que pudesse, depois de engolir o seu desjejum, para encontrar-se com Mimo. Desceu com o chapéu na cabeça. Queria primeiro falar a sós com o tio, e imaginava que Tristram ali não estivesse, pois era tão cedo — apenas nove horas. — Você é sacudida, minha sobrinha! — exclamou Francis Markrute. Entretanto, Zara mal lhe respondeu, e assim que Turner e outro criado deixaram o aposento, imediatamente ela feriu o assunto. — Tristram ficou zangadíssimo comigo, a noite passada, porque cheguei atrasada. Fui obter notícias de Mirko. Estou bastante ansiosa por causa dele, e não posso dizer nada a Tristram a esse respeito. Peço-lhe meu tio, que me liberte da promessa que lhe fiz, de modo que possa dar uma explicação a meu marido de tudo isso. O financista franziu as sobrancelhas. O momento era inoportuno para reviver as misérias da família. Entretanto, ele era um homem justo, e verificou logo tratar-se de um caso sério se qualquer suspeita surgisse no espírito de Tristram. — Muito bem, Zara. Conte-lhe o que você achar melhor — assentiu o financista, com expressão de desesperada desdita — Conte-lhe o que for conveniente para vocês dois. Durante todo este tempo, Zara, você se conservou de armas nas mãos contra o seu marido? Pergunto-lhe isto porque, minha criança, se assim continuar, você o perderá. Um homem com a educação de seu marido não pode ser tratado dessa maneira. Se você persistir nesse propósito, ele a deixará. — Não, não persisti nesse propósito. Ele é que persiste. Já lhe disse em Montfichet que agora é muito tarde… Nesse momento, o mordomo entrou na sala. — Alguém deseja falar imediatamente a lady Tancred, pelo telefone. Zara, esquecida de toda a sua dignidade, ergue-se precipitadamente e voou para a biblioteca. Com toda a certeza era Mimo. Voltando-se para o mordomo, que ainda estava na porta, ordenou-lhe:

— Chame um táxi, depressa. Zara tomou o fone. De fato, era a voz de Mimo, terrivelmente angustiada. Pelo que Zara entendeu, através da incoerente narrativa do padrasto, a pequena Ágata brigou com Mirko e depois quebrou-lhe o violino. De tão excitado com o incidente e ainda preso de febre, o menino esperou que todos estivessem adormecidos, inclusive a sua governanta. Com aquela sua sagacidade sobrenatural, desceu da cama, vestiu-se e apanhou o dinheiro que sua Chérisette lhe havia dado no parque para qualquer necessidade, cuidadosamente escondido em sua mesa de estudos, e fugiu para a estação. Fugiu sozinho naquela noite! Coitadinho! E lá esperou o primeiro trem que o trouxesse a Londres, para encontrar-se com o pai, e lhe apareceu com o violino quebrado envolto na sua capa de baeta verde. E tossindo… tossindo que cortava o coração! Felizmente tinha o dinheiro necessário para tomar um táxi, e chegou à rua Neville mais ou menos às cinco da manhã. Como batesse na porta para que lha abrissem, Mimo, que ouvira as batidas, desceu e lá em baixo encontrou o anjinho e trouxe-o para dentro, deitando-o em sua própria cama. Antes de ir a um telefone público, cuidou de aquecer um copo de leite para o filho. Oh! o pobrezinho estava muito doente… muito… doente… Por isso lhe pedia que viesse logo… que viesse imediatamente! Tristram, que entrava naquele momento, notou o rosto de Zara, com expressão de indefinida angústia, e ouviu-lhe dizer: — Sim, sim, querido Mimo, irei imediatamente. Antes que ele voltasse a si do espanto, Zara passou à sua frente com grande precipitação, atravessou o hall e desceu, entrando imediatamente no táxi. No instante em que o chofer fazia a volta na rua Grosvenor, Zara enfiou a cabeça pela janelinha do carro e deu-lhe o endereço para onde devia tocar. De novo aquele nome "Mimo" deixava Tristram furioso. Por alguns instantes ficou sem saber o que fazer, e depois, rapidamente, apanhando sobretudo e chapéu, apressou-se no encalço da esposa e foi ter à rua Grosvenor, com grande espanto dos criados. Ali chegado, chamou por gestos outro táxi. Entretanto, o que levava a esposa já estava distante, na rua Park

Lane. — Siga aquele táxi! — gritou para o chofer — Siga aquele táxi verde, que está à sua frente. Dou-lhe uma libra se você não o perder de vista. E a corrida começou. Ele devia saber onde a esposa ia. "Mimo!", "Conde Sykypri", para quem ela telegrafara! E ousara falar com o amante em casa do próprio tio! De tão furioso, se os encontrasse juntos seria capaz de matá-la. O seu táxi seguia o táxi verde, sem o perder de vista, primeiro pela rua de Oxford, depois pela rua da Regente e finalmente pela Mortimer. Acaso a esposa se dirigia para a estação de Euston? Talvez um outro encontro, na sala de espera, como Laura lhe descrevera. Profundo desgosto, bem como cega fúria dele se apossaram, a ponto de o dominarem e não lhe permitirem raciocinar. Não, não era para Euston que se dirigia, pois que o táxi virou para Tottenham Court Road e meteu-se por uma rua transversal. Nesse instante estourou um pneu traseiro do automóvel, e o chofer parou. Quase espumando de raiva, Tristram viu o táxi verde desaparecer numa esquina de uma rua miserável, e verificou que o perderia de vista antes que o maldito pneu fosse trocado. Olhou em derredor, a ver se avistava um outro automóvel. Nenhum. Atirando ao chofer algum dinheiro, saltou do carro e se pôs em louca disparada, rua abaixo. Quando alcançou a esquina, notou o táxi verde a distância, no instante em que parava defronte de uma porta. Ainda o apanhara, afinal de contas. Agora, não precisava continuar em tão louca disparada. Zara entrou naquela casa uns cinco ou dez minutos antes de Tristram ali chegar. Saltava à vista que o bairro era miserável, imundo, infecto. Tristram sentia náuseas. E Zara, a formosíssima Zara, a distintíssima Zara, toda ansiada para encontrar-se o amante num lugar destes. Provavelmente o sujeito estava de cama, e essa a razão por que ela se mostrara ansiosa. Por duas ou três vezes ele passou e repassou pelo passeio fronteiro, até que decidiu atravessar a rua e tocar a campainha. O táxi ainda estava à porta. Quase que imediatamente lha abriram. E apareceu-lhe a desalinhada criadinha, mais suja do que o costume, porquanto era muito cedo ainda. Tristram controlou a voz e perguntou muito polidamente se podia ir ter com a senhora que acabava de ali entrar. Com fingida tristeza Jenny

convidou-o para segui-la. Enquanto subiam as escadas, a solerte criadinha ialhe dizendo: — Posso afirmar-lhe, doutor, que tudo está perdido. Com minha mãe aconteceu o mesmo. Depois de "rompido o vaso", não durou nem mais uma hora. Quando Jenny acabou de falar, já se encontravam à porta daquela mansarda. Sem bater, e sem pedir licença, a criadinha abriu-a bastante para enfiar a cabeça, e anunciou, mais uma vez com fingida tristeza: — O médico, dona! E Tristram entrou no quarto.

CAPÍTULO XXXIX A MORTE DE MIRKO

E foi isto que Tristram viu. O pobre, o humilde quartinho, com todo o seu escrupuloso asseio, mas um tanto desarranjado, evidentemente porque ali se fervia leite e aquecia-se um pano de flanela. Zara estava ajoelhada perto de uma pequena cama de ferro, onde jazia o corpinho de uma criança, pois Mirko nestas últimas semanas constantemente esteve com febre, de modo que aquela constituição franzina, já de si em desacordo com a idade, dava ideia de um menino de seis anos. O pobrezinho agonizava. Zara ergueu a sua mãozinha, e a expressão de divino amor e de profunda tristeza impressa no formoso semblante tocou na alma de seu marido. Uma toalha ensopada de sangue cairá no chão e ali estava a horrível evidencia do "vaso rompido" de que lhe falara Jenny… Mimo, com o seu porte elegante e militar, sacudido por soluços refreados, permanecia do outro lado, enquanto Zara murmurava em voz terna e cheia de angústia: "Meu amorzinho! Meu Mirko!" Entregue à sua dor, estava completamente alheia a qualquer presença estranha. Nesse instante, o pequeno moribundo abriu os olhos e sussurrou docemente: — Mãezinha! Foi quando Mimo notou Tristram. Encaminhando-se para a porta, levou um dedo aos seus lábios trêmulos. — Ah, senhor! Ai de mim! O senhor chegou muito tarde. Meu filho neste momento entrega sua alma a Deus! Quaisquer que fossem os sentimentos que ali o levaram, naquele instante o coração do infeliz lorde era todo piedade. Ali se verificava profunda tragédia para que se subordinasse ao julgamento humano, demasiado profunda para obrigar ao esquecimento ideias de vingança. Sem dizer uma única palavra, Tristram voltou-se e silenciosamente deixou o quarto. Enquanto descia aquela escada estreita e escura, aos seus ouvidos chegaram os acordes da Chanson Triste, tocada por violino. Ele estremeceu,

como que sentindo frio. É que Mirko de novo abrira os olhos, aqueles seus olhos ternos, e com dificuldade suplicou ao pai: — Papai… toque para mim aquela música… de mãezinha. Estou vendo… suas asas de gaze… azul… Nesse momento, o rostinho da criança ficou radiante como se tivesse à sua frente a adorada visão. Depois, caiu inanimado, morto, nos braços de Zara. Quando Tristram alcançou a rua, durante um minuto ele olhou de um lado e de outro, como se estivesse cego. Não demorou que lhe voltassem os sentido, e o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi este: o que poderia fazer por ela, pela infeliz mãe que se achava lá, naquele quarto, com o filho moribundo? Que o menino era filho de Zara, não havia dúvida para ele. Filho de Zara… e de seu amante… pois não o ouvira chamá-la de "Mãezinha"? Esta, portanto, a horrível tragédia na vida da esposa. De tão chocado com a terrível cena e agoniado de tristeza, outros pensamentos não lhe acudiam afora os derivados daquela revelação. Um desejo agora sentia: ajudá-la, ajudar a infeliz mãe em tudo o que fosse possível e estivesse ao seu alcance. O táxi verde ainda ali se achava. No entanto, ele não o tomou, imaginando que fosse preciso para a esposa. Desceu a rua e encontrou um táxi. Mandou tocar para o seu antigo apartamento, na rua de S. Jaime. Queria ficar sozinho e pensar. O porteiro ficou admirado de vê-lo. Não estava arrumado para receber lorde Tancred. Entretanto, sua mulher subiria imediatamente… Mas Tristram não desejava coisíssima alguma. Queria ficar sozinho. Quando entrou em seu quarto, não notou que o fogo estava extinto na lareira e fazia muito frio. Com a alma feita em pedaços, estava absolutamente alheio a desconfortos materiais. Retirando a capa de uma das suas grandes poltronas, ali se sentou. Pobre Zara! Pobre e infeliz Zara! Foram os seus primeiros pensamentos.

Depois, repentinamente se enrijeceu. Aquele homem devia ter sido seu amante, mesmo antes do seu primeiro casamento, pois Francis Markrute lhe dissera que a sobrinha se casara muito cedo. Se contava, agora, vinte e três anos de idade, e a criança deveria ter uns seis anos, com toda a certeza nasceu quando Zara andava pelos dezessete anos! Que diabólica paixão a daquele homem, a ponto de desencaminhar uma menina com aquela idade! Certamente, este era o segredo de Zara, e Francis Markrute de nada sabia. Por alguns pavorosos instantes, ocorreu-lhe que talvez o seu primeiro marido não estivesse morto e fosse aquele… Mas, não! O nome do marido era Ladislau, e Mimo o do homem. E, se de fato o menino fosse filho do casal, nenhum motivo justificava aquele mistério sobre a sua existência. Não havia outra solução: esse conde Sykypri fora seu amante quando ela não passava de uma menina, e provavelmente tratou de esconder o seu adultério para o primeiro marido. Não havia mais dúvida quanto à razão que a levara a desposá-lo, uma "forte razão", segundo ela própria dissera: ter bastante dinheiro para dar ao filho e ao homem. Uma asquerosa, esquálida tragédia, em suma! No entanto, Zara lhe parecera tão orgulhosa e tão pura! Recordou-se da expressão de escarnio, quando ele provocara aquela cena de ciúmes, a noite passada. Não podia lembrar-se de um simples movimento, de um simples gesto da esposa que não lhe parecesse próprio de uma rainha imaculada. Que terríveis atrizes eram as mulheres! Toda a sua crença agora jazia na poeira. E o pior de tudo, o que mais lhe parecia horrível é que, a despeito de tudo, ele ainda a amava. Amava-a desesperadamente, amava-a com uma paixão arruinada, capaz de resistir a tudo. Submetera-a a mais amarga de quantas provas e chegou a esta conclusão: qualquer que fosse o procedimento da esposa, jamais ele poderia amar outra mulher. Estava finda, pois, a sua vida. O futuro lhe aparecia como um vazio, um inexprimível caos, que deveria defrontar durante anos e anos. De jeito nenhum voltaria para o lado da esposa, e muito menos viveria com ela sob o mesmo teto. Ali estavam todos aqueles fatos recentes, todas aquelas cenas a separá-los e para sempre.

Não mais deviam encontrar-se. Se de todo em todo fosse necessário, somente a avistaria uma derradeira vez, para tratarem de interesses materiais e depois se separariam, sem escândalo para qualquer deles. Pelo menos durante uma semana não voltaria a Park Lane. Deixá-la-ia sossegada para tratar do enterro do filho, sem que acrescentasse aos seus padecimentos o de sua presença. O homem tomara-o pelo médico e ela estava alheia à sua presença naquele quarto. Portanto, voltaria sozinho para Wrayth e lá pensaria em algum plano. Assim decidido, Tristram procurou entre os móveis cobertos a sua escrivaninha, e ali achou algum papel. Sentou-se e escreveu dois bilhetes, um dos quais para a sua mãe. Hoje não se sentia com forças de avistar-se com sua mãe, de modo que ela deveria partir sem vê-lo. Entretanto, sabia que a orgulhosa lady o amava estremecidamente, e que mesmo nas mais delicadas situações jamais lhe fazia qualquer pergunta quanto ao seu procedimento, embora não o entendesse. O bilhete que lhe escrevera era bastante conciso. Limitou-se a dizer-lhe que momentaneamente se sentia bastante mortificado, de modo que nem ele, nem Zara iriam fazer-lhe companhia ao almoço. Pedia-lhe para confiar no seu discernimento e não dizer palavra sobre o assunto a quem quer que seja, até que pessoalmente ele lhe contasse tudo. Talvez na própria semana fosse visitá-la em Cannes. Depois, escreveu o bilhete a Zara, concebido nos seguintes termos: Já sei de tudo. Agora compreendo, e embora eu a censure pela grande decepção que me causou, espontaneamente lhe ofereço toda a minha simpatia em sua profunda dor. Vou desaparecer por uma semana, de modo que não precisa ficar angustiada à ideia de encontrarse de novo comigo. Quando do meu regresso, vou solicitar-lhe para que nos avistemos, aqui ou em casa de seu tio, para tratarmos de nossa separação. Tancred.

Escritos os bilhetes, Tristram chamou pelo telefone um mensageiro e entregou-lhos. Novamente foi ao telefone e ordenou ao seu criado, em Park Lane, que arrumasse todas as coisas e as trouxesse para o seu antigo apartamento. Se lady Tancred já estivesse em casa, que o criado verificasse se ela já recebera o bilhete que naquele instante lhe enviava. Francis Markrute aquela hora devia estar na cidade, e ele, Tristram, iria almoçar com Ethelrida. Com essa ideia, telefonou para o escritório do financista e soube que no momento ele se achava fora. Deixou-lhe, pois, o recado de que ia ausentar-se por uma semana e que mais tarde lhe escreveria. Com toda a certeza, o primeiro gesto de Zara seria consultar o tio. Mas, consultasse ou não, também ela devia resolver-se, porquanto o marido não queria tornar-lhe a existência mais difícil do que naturalmente devia ser. Dispostas, assim, todas as coisas, o apaixonado ciúme de um homem de novo o dominava, e quando o seu pensamento se voltou para Mimo, mais uma vez desejou matá-lo.

CAPITULO XL AMOR!… AMOR!…

NAQUELE dia, Zara voltou tarde para a casa do tio. Estava bastante perturbada com o rude golpe que sofrera para cuidar dessa questão de tempo ou importar-se com o que poderiam pensar de sua ausência. Momentos depois da morte do irmãozinho chegaram alguns frenéticos telegramas dos Morley, consternados com a sua fuga. Mimo, completamente prostrado de dor, tal como se verificara por ocasião da morte de Elinka, deixou à enteada a tarefa de tratar de tudo. Nenhum médico ali aparecera. Mimo incoerentemente dera endereço errado pelo telefone. E assim foi que, cheio de angústia, os dois passaram aquele dia ao lado do pequeno cadáver. Com o correr das horas, no entanto, Zara voltou a si de seu entorpecimento mental. Cumpria-lhe ir procurar o tio e pedir-lhe que cuidasse de tudo, pois que ela não podia. Francis Markrute, bastante apreensivo com o recado de Tristram e com a ausência da sobrinha, quando a viu no hall foi ao seu encontro e levou-a à biblioteca. O mordomo lhe havia entregue o bilhete do marido. Zara recebeu-o com gesto maquinal e conservou-o na mão, sem abri-lo. Sentia-se bastante alquebrada de tanto padecimento para inteirar-se de assuntos comezinhos. O tio imediatamente notou que algo de terrível sucedera. — Zara, minha pobre criança, conte-me o que aconteceu! — disse ele, abraçando-a carinhosamente. A infeliz lady não mais tinha lágrimas para verter, mas a sua voz tremia como sob o império daquela tragédia. — Mirko morreu, tio Francis. Ele fugiu de Bournemouth porque Ágata, a filha dos Morley, lhe quebrou o violino. Como sabe, o pobrezinho tinha uma verdadeira adoração pelo violino porque era presente de mamãe. Ele chegou à

noite, sozinho, ardendo em febre, à procura de Mimo, e esta manhã deitou sangue pela boca e morreu em meus braços, no humilde quartinho onde mora o pai. Francis Markrute puxou a sobrinha até o sofá e pôs-se a acariciar-lhe as mãos. Sentia-se profundamente comovido. — Minha pobre, minha meiga criança! Pobre Zara! Com a mais patética das súplicas, a sobrinha continuou: — Oh, tio Francis, por que não perdoa, agora, ao infeliz Mimo? Mamãe está morta e Mirko está morto e, se algum dia o senhor tiver um filho, há-de verificar o quanto está sofrendo esse pai. Quer auxiliar-nos, tio Francis? Mimo sempre tem sido um tolo, um sonhador, alheio a coisas práticas, e agora está completamente perturbado, prostrado de tanta dor. O meu tio, que é um homem tão forte, não quer cuidar do enterro de meu irmãozinho? — Por certo que cuidarei, querida criança. Você não deve sofrer mais. Deixe tudo a meu cuidado. Inclinando-se, beijou aquela face pálida e delicadamente se pôs a tirar os alfinetes do seu chapeuzinho guarnecido de pele. — Muito obrigada, agradeceu gentilmente a sobrinha — tomando o chapéu da mão do tio e pondo-o a seu lado, no sofá — Sofro muito porque eu o amava bastante, ao meu irmãozinho. Sua alma era toda uma divina música, e não havia lugar, aqui na terra, para acolhê-la. E mamãe! Quanto a amei, também! Mas reconheço que foi melhor assim; agora ele está lá em cima, com ela, livre de todos estes padecimentos. Nos seu últimos momentos, o pobrezinho viu-a. Depois de uma curta pausa, Zara continuou: — Tio Francis, o senhor ama estremecidamente a Ethelrida, não é verdade? Pense um bocadinho, e veja como mamãe amou a Mimo e como ele a amou. Pense em todos os padecimentos daquela criatura tão gentil, tão meiga, tão amorosa, e quando o senhor encontrar-se com Mimo tenha pena do coitado. Subitamente Francis Markrute sentiu um nó na garganta. Era o bastante

recordar-se daquela sua queridíssima irmã para sentir um grande peso no coração. E agora, porventura já compadecido pela narrativa da sobrinha, extinguiu-se o restante rancor que guardava de Mimo. Aqueles olhos sagazes se umedeceram e, com um acento trêmulo em sua voz, comumente fria, deliberada, ele respondeu à sobrinha: — Querida criança, esqueceremos e perdoaremos a tudo. A minha única preocupação, agora, é de oferecer-lhe algum conforto. — Há uma coisa, meu tio, que o senhor pode fazer para mim — disse Zara, agora com uma certa animação no semblante — Quando estive a última vez em Bournemouth, Mirko tocou no seu violino uma divina música. O pobrezinho me disse que mamãe sempre lhe aparecia em sonhos quando se achava doente, isto é, quando estava febricitante, como o senhor sabe, e que foi mamãe quem lhe ensinou aquela música. A música lhe falava de bosques onde ela se encontra e de lindas borboletas; a de mamãe era azul e havia uma branca, para Mirko. Mirko escreveu a música e tenho-a comigo. É tão linda! Quer fazer-me o favor, tio Francis, de mandar essa musica para algum grande artista de Viena ou Paris, para que a arrume convenientemente? Depois, quando eu a tiver comigo, toco-a no piano e poderemos ver mamãe. De novo os olhos de Francis Markrute se umedeciam. — Querida criança!— exclamou o financista — Algum dia você quer perdoar-me pela severidade, pela arrogância com que tratei a ambos? Nunca pude saber, nunca pude compreender, a não ser ultimamente, o que o amor significa na vida. E você, Zara, você, minha criança, nada pode fazer em seu beneficio e no de Tristram? Ao ouvir o nome do marido, Zara ergueu a cabeça, com o olhar bastante espantado. Não demorou que o espanto fosse substituído por expressão de profunda tragédia, no instante em que a sobrinha se levantava. — Não falemos mais nisso, meu tio. Nada mais pode ser feito, porque o amor que ele me devotava morreu. Eu mesma o matei, em minha ignorância. Nada que o senhor ou eu possamos fazer pôde adiantar alguma coisa. É muito tarde.

Francis Markrute ficou sem ter que dizer. A ignorância da sobrinha era culpa sua, o único erro que cometera fora em seus cálculos, porque manejara com

almas

como

se

fossem

coisas,

em

ocasião

que

desconhecia

completamente o que fosse amor, que ele próprio agora sentia. Não obstante, ela não o censurara, embora se sentisse o culpado de toda a infelicidade. Indubitavelmente, Zara era uma mulher nobre. Conduzindo-a até a porta, inclinou-se em profunda homenagem e beijou-lhe a testa. Ninguém, ninguém no mundo que o conhecesse seria capaz de acreditar que naquele instante Francis Markrute chorava. Quando Zara entrou em seu quarto, lembrou-se de que ainda tinha um bilhete na mão. Reparou no sobrescrito. A letra era de Tristram. A despeito de sua tristeza, e da completa apatia a outras coisas, Zara sentiu aguda emoção. Abriu-o rapidamente e leu as poucas e frias palavras que continha. Pareceulhe, então, que os seus joelhos se dobravam, como em Montfichet, quando Laura Highford a deixara enciumada. Não podia pensar claramente no que lhe diziam

aquelas palavras, nem

compreender-lhes perfeitamente

a sua

significação. Somente um ponto lhe ficou bastante distinto: deviam encontrarse, uma derradeira vez, para cuidarem de sua separação. O ódio que agora ele lhe sentia devia ser enorme, a ponto de nem mesmo querer mais viver com ela na mesma casa. Toda a angústia por que passara naquele dia lhe pareceu insignificante à ideia daquela separação. Leu de novo o bilhete. Acaso ele sabia de tudo? Quem lhe teria contado? O tio Francis? Não, porque o tio não sabia que Mirko morrera. Ela é quem contou ao tio. Aquilo era um mistério, mas sem importância, e no momento, com aquele seu entorpecimento mental, não podia desvendá-lo. O que mais lhe importava era que o marido estava zangadíssimo porque ela o decepcionara. Talvez fosse essa a razão do seu desejo de se separarem. Que coisa singular sempre lhe acontecia por conservar-se fiel à sua palavra e agindo de acordo com os seus princípios! Sempre era punida. Não pensava, com amargura em tais coisas, e sim com íntima desesperança. De nada lhe adiantava tentar a reconquista do esposo; evidentemente a felicidade não existia para ela, e cumpria-lhe aceitar as coisas como lhe parecessem, trouxessem-lhe a vida ou a morte, pouco importa. Mas como os homens eram injustos! Jamais ela poderia ser inflexível para quem

quer que fosse, em virtude de uma pequena falta, de uma falta que não existia. Inflexível e imperdoável, como aquele estranho Deus escrevera em seus Mandamentos. Zara sentiu que lhe ardiam as faces e o corpo todo tremia. Quando ali a encontrou sua criada, esta notou que a ama não só estava bastante angustiada, mas enferma. Levando-a incontinenti para a cama, Henriette foi procurar Mr. Markrute. — Creio que é preciso chamar um médico, monsieur. Milady não está passando bem. Francis Markrute, bastante aflito, imediatamente telefonou ao seu médico. Sua noiva voltara para o campo, logo depois do almoço, de modo que não podia confortar-se com a sua presença. Quanto a Tristram, não sabia por onde andava. Durante quatro dias Zara ficou de cama, seriamente enferma. Segundo dissera o eminente médico, ela estava com um começo de influenza e com toda certeza sofrera um grande golpe moral. Todavia dotada de esplêndida organização, mau grado todas as suas tristezas e desespero, na terça-feira já estava de pé. Francis Markrute disse com os seus botões que de certo modo a enfermidade da sobrinha era uma felicidade, pois que o enterro do irmãozinho se realizou enquanto ela se achava de cama. Zara aceitou tudo sem nenhum protesto. Nem mesmo manifestou o desejo de ver Mirko uma derradeira vez. Não alimentava nenhuma fantasia mórbida; o que amava em vida do pequeno fora a sua alma e dela é que ainda se recordava e não do infeliz e franzino corpo. Sentiu-se bastante confortada quando soube que o tio e Mimo se avistaram e apertaram-se as mãos, reconciliados, e que nessa mesma tarde Mimo vinha despedir-se da enteada. Imediatamente ia deixar a Inglaterra e voltar para a sua pátria e para sua gente. Em sua grande tristeza, nada mais ali existia que o prendesse, e esperava que lá o recebessem. Um único objetivo ele tinha, agora, em sua vida: era continuar a sua existência como pudesse, até que chegasse o feliz instante em que se reunisse àqueles a quem tanto amava,

num mundo mais feliz. Foi isso, em resumo, o que ele disse a Zara, quando se encontraram em Park Lane. Padrasto e enteada se beijaram e se abençoaram, e Mimo partiu, talvez para sempre. O Apache e o London Fog, que ainda se achava inacabado e que talvez não se concluísse, tamanho o sofrimento do artista, seriam entregues à sobrinha. Era uma recordação dos anos que viveram juntos e profunda cadeia que os unia, na saudade comum daquelas duas criaturas encerradas em túmulos diferentes. Zara, em toda a sua fraqueza, derramou copiosas lágrimas antes que Mimo partisse. Depois que ele se foi, a infeliz notou que nada mais lhe restava na vida, e o que quer que ainda lhe existisse não lhe acenava com a menor esperança. Francis Markrute telegrafou a Wrayth, na expectativa de ali encontrar Tristram. Mas Tristram não se encontrava no solar. Nem mesmo ali estivera. A razão disso é que ele mudou de ideia no último momento, pois não tinha coragem de voltar a Wrayth. Imaginou uma viagem por mar, sozinho. Como o tempo estivesse bastante carregado, com prenúncios de uma grande tempestade, coisa que se ajustava perfeitamente à sua disposição de ânimo, Tristram deixou o seu criado em Londres, e partiu para um selvagem lugar à costa de Dorsetshire, onde não teria notícias de ninguém. Voltaria na próxima quinta-feira, e na sexta procuraria a esposa, conforme lhe escrevera. Entretanto, sozinho cuidaria de afastar dos pensamentos ou mesmo aniquilar os fantasmas de suas ilusões. E que fantasmas! Na manhã de sábado, Francis Markrute foi obrigado a deixar a sobrinha. Os seus vastos planos de financiamento lhe requeriam a presença em Berlim. Dentro de uma semana estaria de volta e então desceria a Montfichet. Ethelrida escrevera cartas das mais ternas a Zara. O noivo lhe contara toda a sua tristíssima história, e só agora é que compreendia aquela tragédia nos olhos de Zara, e ainda a amava mais, pelo seu silêncio e elevado sentimento de honra. Entretanto, tais palavras carinhosas de nada lhe valiam, porquanto a única pessoa que agora lhe importava na vida, pensava de modo diferente.

Seu marido estava enfadado de tudo e não lhe mostrava nenhuma simpatia ou pena; somente lhe tinha palavras de censura. Agora, que estava melhor de saúde e podia pensar, preocupava-a continuamente esta ideia: como é que Tristram possivelmente chegou a saber de tudo? Acaso ele a seguira? Tão logo lhe fosse permitido sair, dirigir-se-ia para a casinha da rua Neville, onde Jenny lhe tiraria as dúvidas. Enquanto isso, Tristram, em alto mar, com aquela tempestade que se ajustava à sua disposição de ânimo, eventualmente chegava a certas conclusões. Voltaria para encontrar-se com a esposa e lhe diria que deviam separar-se, que estava a par de todo o seu passado e era sua intenção não mais afligi-la. Não lhe faria a menor censura, mesmo porque qual o alcance, agora, dum gesto dessa natureza? Além disso, ela já sofrera bastante. Depois, imediatamente partiria e iria encontrar-se com sua mãe, em Cannes. Contarlhe-ia que ele e Zara resolveram separar-se, sem lhe dar as razões disso, e depois seguiria para a Índia ou para o Japão. Os seus planos chegavam até aí. O resto era vago. Parecia-lhe impossível antever a sua vida além desse ponto. E agora que podia calmamente pensar na esposa, estava em condições de voltar à Inglaterra. Na manhã de sábado, depois que o tio partira para Dover, um bilhete era entregue a Zara. O portador esperava a resposta. Continha poucas palavras, simplesmente para perguntar-lhe se ele, Tristram, podia vê-la às duas horas, pois que às três seguiria, de automóvel, para Wrayth, e deixaria a Inglaterra na manhã de segunda-feira. Sua mão tremia bastante para que pudesse escrever uma resposta. — Diga ao portador que eu o esperarei — respondeu Zara. E por muito tempo ali ficou sentada, em triste solilóquio. De repente, lhe veio um pensamento. Estivesse ou não em condições de sair, devia procurar Jenny e fazer-lhe perguntas. E assim foi que, com grande desespero de Henriette, Zara se agasalhou num casaco de pele e saiu. Quando se encontrou na rua sentiu-se bastante enfraquecida, mas a sua vontade era forte. Assim que chegou à casinha da rua Neville, Jenny tirou-lhe todas as dúvidas.

Sim, um homem alto, um homem bonito ali viera, minutos depois que ela chegara. Jenny levara-o lá em cima, pensando que fosse o médico. — Dona, ele não demorou nem um minutinho e saiu de casa quando o conde estava tocando seu violino. Confirmara-se, pois, as suas suspeitas. Tristram ali estivera. Os seus pensamentos estavam em grande confusão, de sorte que não lhe acudiu nenhum raciocínio. E quando, de volta para Park Lane, de tão enfraquecida e perturbada não pôde nem tomar o elevador. Henriette acudiu prontamente e retirou-lhe o casaco. Depois, levou-a até a biblioteca e ajudou-a a sentar-se num sofá. Ali mesmo, depois de muita insistência, fê-la tomar um caldo de galinha. Zara sentia-se entorpecida, e somente voltou a si ao ouvir a campainha tocar. Palpitou-lhe que fosse o marido e, por isso, com o coração batendo descompassadamente, sentou-se no sofá. Tentou levantar-se, mas notou que suas pernas trêmulas não a suportariam quando Tristram entrasse. Apoiou-se, pois, no espaldar de uma cadeira. Nesse instante, com a fisionomia grave e as faces descoradas, tamanha a tortura por que havia passado, Tristram entrou na biblioteca.

CAPÍTULO XLI LAR, DOCE LAR!

ELE parou, bastante aflito, ao vê-la tão pálida e com mostras de extrema fraqueza. — Zara, o que é isso? Esteve doente? — Sim — respondeu a esposa, arquejante. — Por que não me disseram? — apressou-se a indagar, e só então se lembrou de que ninguém poderia dar-lhe essa notícia, porquanto o seu próprio criado lhe ignorava o paradeiro. Zara recostou-se negligentemente no sofá. — TioFrancis telegrafou-lhe para Wrayth, mas ali não o encontrou. Tristram mordeu os lábios, tão grande a comoção que sentia. Como tratar, agora, com a esposa, do assunto que ali o trazia, vendo-a tão digna de dó e tão meiga? Naquele instante, um único desejo lhe palpitava no coração: apertá-la de encontro ao peito, confortá-la e fazê-la esquecer os seus padecimentos. De tão fraca, Zara receava não poder escutar o toque de finados do grande amor que sentia pelo marido. Se ao menos pudesse esperar ainda algum tempo! Exquisitice de sua parte era que jamais lhe ocorrera defenderse, mesmo porque não fazia a menor ideia de que o marido suspeitasse ser Mimo seu amante. A seu ver, o ódio do marido se derivava de ser ele um inglês, e inglês cheio de dignidade e bastante simples, que não podia suportar qualquer decepção. Se não fosse muito tarde e se não se sentisse bastante enferma, e se todas as suas faculdades estivessem em pleno vigor, talvez lhe ocorresse alguma ideia e lhe fosse possível desfazer toda aquela dúvida. Entretanto, como tivesse a alma limpa de qualquer procedimento menos digno, estava longe de sonhar com a desconfiança do marido, de modo que persistia de

lado a lado aquela situação embaraçosa. — Tristram — disse-lhe Zara, em tom de voz tão triste, tão enternecedor que por pouco não arrancava lágrimas do marido — Tristram, bem sei que o senhor está zangado comigo, porque nada lhe disse a respeito de Mirko e de Mimo. E se nada lhe disse foi porque empenhei a minha palavra. Agora, no entanto, que a infeliz criança está morta, desobriguei-me de minha promessa e posso contar-lhe tudo. Mas, suplico-lhe, neste momento não me faça nenhuma pergunta! Se o senhor tenciona deixar-me logo, não me assiste o direito de retê-lo. Mas… mas, por favor, fique a meu lado pelo menos hoje! Leve-me para Wrayth, até que eu melhore! Meu tio está ausente e sinto-me tão sozinha… tão sem ninguém neste mundo! Os seus olhos eram súplicas e tinham impressão assustadiça, tal qual um criança medrosa com medo de ficar sozinha no escuro. Tristram não pôde resistir. Afinal de contas, o crime de Zara datava de anos e anos, e desde que se casaram o seu procedimento foi exemplar. Por que, pois, não a levaria para Wrayth? Ali podia ficar por algum tempo, depois que ele partisse. No entanto, uma coisa desejava saber. — Onde se acha o conde Sykypri? — indagou ele, roucamente. — Mimo partiu, de volta para a sua pátria — respondeu-lhe Zara simplesmente, admirada do tom da sua voz — Talvez jamais nos encontraremos de novo. Uma pétrea sensação de espanto se apoderou de Tristram. Com toda aquela sua humildade e ternura, a esposa ainda conservava a atitude de uma inocente criatura. Talvez fosse porque em seu sangue corria algum sangue inglês e os estrangeiros sustentassem diferentes pontos de vista sobre tais coisas. O homem, pois, afastara-se da vida da esposa… Sim, podia levá-la para Wrayth, se nisso ela encontrasse algum conforto. — Mas você está em condições de viajar? — indagou ele, controlando a voz num tom de severidade, que estava longe de sentir — Pergunto-lhe isso porque não deve absolutamente expôr-se à friagem da tarde. Quanto a mim,

irei num carro aberto, que eu mesmo guiarei. Dentro de quatro horas, chegarei a Wrayth. O carro fechado, como sabe, não está em Londres. Mas… mas está certa de achar-se em condições de viajar hoje? Está tão pálida! — acrescentou ele, ao reparar no aspecto da esposa. Realmente, era grande a transformação que se verificara no rosto de Zara, agora com aquela sua brancura de neve e com olheiras, e não mais com a velutínea maciez das pétalas de gardênia. Os lábios tinha-os menos vermelhos. — Sim, sim, estou pronta para seguir — respondeu-lhe Zara, levantandose para mostrar-lhe como estava disposta — Em dez minutos mudarei de roupa. Henriette pode seguir de trem com as minhas coisas. E encaminhou-se para a porta, que Tristram se apressou em abrir. Ao alcançá-la, descansou um bocadinho e depois se dirigiu para o elevador. Tristram acompanhou-a de perto. — Tem certeza de que pode subir sozinha? — indagou ele ansiosamente — Quer que eu a acompanhe? — Por certo que posso. Sinto-me bem — respondeu-lhe Zara, num meigo sorriso — Não quero incomodá-lo. Espere-me. Não me demorarei. E tomou o elevador. Quando desceu, bem agasalhada numa esplêndida pele, encontrou o marido com uma garrafa de vinho do Porto, pronto para encher-lhe um cálice. — Você precisa beber isto, um cálice cheinho — disse-lhe ele, entregando-lhe. Zara sorveu-o sem dizer palavra. Quando alcançaram a porta da rua, em vez do carro aberto do marido, ali se achava um fechado, do seu tio, com almofadas e manta de viagem, de modo a sentir-se confortada e não apanhar nenhum resfriado. — Muito obrigada… pela sua bondade. Tristram ajudou-a a subir e depois o mordomo de Park Lane distendeu a manta de viagem enquanto ele lhe arrumava as almofadas. Nesse momento, Zara recostou-se na almofada traseira do automóvel e fechou os olhos. Sentiase meio atordoada.

Tristram estava com bastante cuidado pela esposa. Com toda a certeza, ela adoeceu gravemente, mesmo em tão pouco tempo, e padecera cruelmente com a morte do menino, pois que todas as mães amam estremecidamente os filhos. Este pensamento de novo o magoou. Odiava lembrar-se daquela criança. Zara continuava recostada nas almofadas. Até a saída de Londres não disseram uma palavra. Na fraqueza em que se encontrava, o cálice de vinho provocou-lhe sono. Aos poucos ela adormeceu e, sua cabecinha descaindo de lado,

apoiou-se

num

dos

ombros

de

Tristram,

naquele

momento

pavorosamente emocionado. Aquela formosa e orgulhosa cabeça, com suas espessas e flamejantes ondas, aparecia-lhe sob a boina. Como estivesse para breve a separação de ambos e a adormecida esposa não lhe reparasse no gesto, Tristram cuidou de puxá-la um bocadinho niais para junto de si e tornar-lhe mais confortável a posição. Assim decidido, com bastante cuidado para não despertá-la, ele escorregou o seu braço sob a almofada, e muito delicadamente conseguiu abraçá-la, de sorte que sua cabecinha repousasse em seu peito. Nesta posição eles fizeram duas horas de percurso. Que de pensamentos lhe sucederam no cérebro, enquanto o automóvel corria! Amava-a loucamente. Que lhe importava, pois, o crime que ela cometera? Sentia-se bastante enferma e sozinha, e por isso podia tê-la em seus braços, unicamente nesse dia. Entretanto, realmente não podia tê-la em seu coração, pois que o passado era demasiado terrível para que isso fosse possível. De mais a mais, ela não o amava. A sua atual meiguice provinha do estado de fraqueza em que se encontrava e com o tempo logo desapareceria. Não obstante, como cruelmente terna Zara lhe parecia! Estava com uma grande, com uma enorme tentação de beijá-la, mas resistiu ao desejo. Quando alcançaram uma passagem de nível e um trem apitou, Zara despertou um tanto sobressaltada. Agora estava bem no escuro e ela disse, com voz bastante assustada: — Onde estou? Onde estive?

Tristram imediatamente retirou o braço que a envolvia e acendeu a luz interna do carro. — Você está num automóvel, em caminho para Wrayth. E estou contente por dizer-lhe que esteve dormindo. Isso há-de fazer-lhe bem. Zara esfregava os olhos. — Ah! estive sonhando. E estivemos todos juntos — Mirko, mamãe e eu, todos felizes! — disse ela, como se falando consigo mesma. Tristram franziu a testa — Estamos perto de casa… isto é, perto de Wrayth? — indagou Zara. — Por enquanto, não. Temos que caminhar ainda hora e meia. — É preciso conservar acesa esta luz? — continuou Zara — Incomodame tanto os olhos! Tristram apagou-a. De novo ficaram no escuro, sem dizer palavra, até que ele se inclinou sobre a esposa e notou-a de novo adormecida. Como devia estar fraca! Estava ansioso por tê-la, mais uma vez, entre os braços, mas não queria perturbá-la. Segundo lhe parecia, a esposa encontrara posição confortável entre as almofadas, de modo que ele se limitou a contemplá-la ternamente. Pouco depois chegaram aos portões de Wrayth e, com a parada do automóvel, Zara acordou e sentou-se. — Parece-me que dormi muito tempo e agora me sinto muito melhor. Foi bondade de sua parte trazer-me em sua companhia. Estamos no parque, não é verdade? — Sim. Dentro de um minuto estaremos às portas do solar. Nesse momento, Zara não conteve um grito: — Olhe, um veado! É que um audacioso e valente veado saltara à frente do carro e, ofuscado pela poderosa luz dos faróis, ali permaneceu durante um instantinho e depois fugiu. — Você precisa ir para a cama, tão logo tomemos o chá — disse-lhe Tristram — São seis e meia. Telegrafei para que lhe preparassem um quarto.

Não aquele majestoso aposento em que esteve antes, mas um menor, do outro lado da casa, onde permanecemos quando nos achamos sozinhos. Creio que a sua criada deve ficar num quarto contíguo ao seu, uma vez que se acha tão doente. — Muito obrigada — murmurou Zara em voz apenas perceptível. Que bondade a dele! E como se mostrava cuidadoso para com ela! Sentia-se até feliz por estar doente. Pouco depois chegaram às portas do solar. Assim que entraram, tomaram pela esquerda antes de alcançar o hall de Adam e continuaram pelo corredor em direção aos antigos aposentos recobertos de lambris. Entraram logo na própria sala de estar de Tristram, bastante confortável e aquecida, onde tomariam o seu chá. Com aquele seu sono durante a viagem, Zara sentiase melhor. O tom azulado de seu rosto já desaparecera em parte. Quando examinara toda a casa, ela não estivera neste aposento. Achavao o melhor de todos, com aquele odor de lenha queimada e de finos charutos. Jake rosnou de contentamento ao ver de novo o amo. Inclinando-se, Zara afagou-lhe a cabeça. Todavia, todos aqueles gestos da esposa enchiam Tristram de novas amarguras e sofrimentos. Mostrar-se tão meiga, tão gentil, agora que tudo estava acabado entre eles! À espera do chá, ele se pôs a abrir as cartas que lhe chegaram. Ali estava o telegrama de Francis Markrute, enviado uma semana antes, para avisá-lo da enfermidade de Zara, e muitas cartas de amigos. Depois de ler algumas, deu com um bilhetinho de Francis Markrute. Fora escrito na véspera e dizia que, como supunha, mais cedo ou mais tarde chegaria às mãos do seu destinatário. Contava-lhe que Zara tinha um grande arrependimento em sua vida e por certo pessoalmente iria confessá-lo ao marido. Acrescentava confiar nos modos por que Tristram iria tratá-la, à vista da tristeza e enfermidade da sobrinha. Recomendava-lhe uma certa indulgência e bondade. Principalmente bondade. Então, o próprio tio sabia de tudo! Era incrível! Talvez Zara lhe tivesse dado parte, em sua primeira aflição.

Erguendo a cabeça, ele olhou para a esposa. Viu-a sentada numa grande poltrona de couro, tão frágil e tão fatigada que não sabia o que fazer. Nesse momento, preguiçosamente Jake se levantou, pôs as duas patas dianteiras no colo de Zara, e rosnou, hábito antigo que não largava quando gostava de alguém. Zara inclinou-se e beijou a larga e enrugada testa do cão. Aquela cena era tão própria de família e tão tranquila! Subitamente, lágrimas escaldantes brotaram nos olhos de Tristram, que abruptamente se encaminhou para a janela. Foi quando os criados chegaram com o chá e o bolo assado na grelha. Zara serviu o chá, em silêncio. Depois, disse algumas palavras a Jake, algumas palavras disparatadas e gentis, perguntando-lhe se gostava mais de bolo ou de pão assado. Tristram achava-a simplesmente adorável, com aquele ar pensativo, subjugado pela tristeza e naquele vestido inteiramente preto. O seu desejo era que a esposa se lembrasse de ir para o quarto. Ele não aguentava mais. Zara estava espantada quanto à inquietação do marido. Certamente que o achava mudado; notava-o pálido e infeliz, muito mais do que antes. Recordou-se, então, como lhe parecera magnificamente forte e esplêndido no seu jantar de noivado. A essa lembrança, sentiu um nó na garganta. — Henriette já deve ter chegado — disse ela, depois de alguns minutos — Se indicar-me onde fica o meu quarto, vou retirar-me já. Tristram levantou-se, e Zara seguiu-o. — É aquele ali adiante, com damasco chinês, precisamente no fim desta escadinha. Adiantando-se, chegou até o fim da escadinha e dali lhe disse: — É este aqui. E a sua criada já chegou. Zara subiu os poucos e curtos degraus da pequena escada, e quando se encontraram em cima, ela parou. — Boa noite — disse-lhe Tristram — Vou mandar-lhe um pouquinho de sopa e mais alguns pratos próprios para doente. Depois de alimentar-se deve dormir bastante, e não deve levantar-se cedo. Estarei bastante ocupado

amanhã. Tenho muita coisa que fazer antes de segunda-feira. Depois, deixarei a Inglaterra por um longo tempo. Zara encostou-se na balaustrada por alguns minutos. Mas as sombras eram tão enganadoras, com todo aquele carvalho negro, que o marido não estava certo da expressão que via nos olhos da esposa. As palavras que lhe ouvira foram pronunciadas em voz baixa: — Muito obrigada… Vou tentar dormir. Boa noite. E entrou em seu quarto, enquanto Tristram descia a escadinha, com o coração palpitante de tristeza como nunca sentira.

CAPITULO XLII "TU SAIS QUE JE T'AIME"

NO dia seguinte, somente à hora do almoço é que Zara deixou o quarto. No seu entender, o marido não mais queria vê-la, de sorte que se viu forçada a permanecer encerrada entre as quatro paredes daquele estranho, antigo e lindo quarto, com a cabeça cheia de tristes pensamentos, entre os quais avultava o naufrágio de ambas as existências. Recordava-se, também, de Mirko e de sua mãe, e os seus olhos estavam cheios de lágrimas. Entretanto, esta última tristeza já lhe passara, e foi muito melhor que assim sucedesse. A partida de Tristram é que agora lhe despedaçava a alma, e absorvia todas as suas demais tristezas. — Não posso, não posso suportar isso! — dizia a infeliz para si mesma. Tristram estava sentado perto da lareira quando timidamente Zara entrou na sala de visitas. De tão infeliz com os seus próprios padecimentos, a coitadinha não pôde dormir bastante, e novamente estava muito pálida. Ele parecia falar-lhe como num sonho. Sentia-se bastante entorpecido com sua crescente miséria e constante luta em seu cérebro. Precisava deixá-la, pois que a situação de ambos, era insustentável. Não podia ficar porque, com aqueles modos delicados da esposa, era possível que ele perdesse o domínio de si mesmo e se pusesse a acariciá-la, e ela se lhe entregasse. E, se isso sucedesse, não mais havia no mundo coisa que pudesse arredá-la de seu coração. Contudo, Zara nunca devia ser realmente sua esposa. A princípio, essa possibilidade lhe sorria, mas sempre ali estava o odioso fantasma do seu passado a interpôr-se entre ambos, a espreitar ocasião azada e zombar dos dois. E… se tivessem filhos? Eram tão moços que com toda a certeza isso lhes aconteceria. Este pensamento, que certa vez lhe dera origem a tanto devaneio e lhe causara tanta alegria, agora lhe despertava uma nova e mais cruel tortura, porquanto uma mulher, com um tal passado, jamais poderia ser mãe de um Tancred de Wrayth.

Tristram não era um puritano, mas o arraigado orgulho ao seu antigo nome ele não podia eliminar do sangue, e por isso é que se conservava em férrea reserva. Ainda não olhara uma só vez para a esposa, e falava-lhe com a frieza do gelo. E assim se passou aquele almoço. Mais tarde, Zara lembrou-se de ir à igreja. Eram três horas, e sem discutir-lhe o propósito, Tristram ordenou que trouxessem o automóvel. A esposa ainda não estava em condições de caminhar pelo parque. Não podia deixá-la ir sozinha, de sorte que mudou de ideia e acompanhou-a. Durante o caminho, não trocaram uma única palavra. Era a primeira vez que Zara entrava naquela igreja, e logo ficou encantada com as suas lindíssimas janelas, os monumentos dos Guiscard e o famoso túmulo do Cruzada na parede do coro e próximo do lugar em que se sentaram. Durante toda a cerimônia, Zara não desviou os olhos daquele rosto esculpido, exatamente igual ao de Tristram e com o mesmo semblante carregado. Nesse momento, uma intima e miserável rebelião dela se apossou, a que sucedeu um frio receio. Depois, fervorosamente orou a Deus para proteger o marido. Na verdade, e se lhe sucedesse alguma coisa na perigosa excursão de caça que pretendia empreender, e se ela nunca mais o visse? No instante em que cantavam o hino final, Zara levantou-se e acompanhou o canto religioso. Em meio de uma pausa, não conteve um soluço que lhe irrompia pela garganta. Bastante apreensivo Tristram olhou para a esposa, e se pôs a imaginar se um novo sofrimento dela se apossava, ou se a sua miserável situação chegara ao extremo limite. Todos os fieis ali reunidos estavam sobremodo interessados em ver o jovem casal, destarte obrigado a trocar aqui e ali fortes e amistosos apertos de mão. O que pensaria toda essa gente, conjecturava com amarga diversão o infeliz marido, quando soubesse que ele ia empreender uma longa viagem, deixando aquela esposa sozinha, antes de um mês de casados? Mas, pouco se lhe dava o que os outros pensassem do seu procedimento. Quando de volta para o solar, Zara de novo se trancou em seu quarto.

Ao descer para o chá, o marido ali não estava. Somente deparou com Jake. Zara ficou toda receosa de descer para o jantar. Evidentemente, Tristram cuidava de evitá-la. Nos seus momentos de incerteza, Henriette trouxe-lhe um bilhete: Peço-lhe não descer… pois que eu não suportaria a sua presença. Antes de partir podemos encontrar-nos amanhã, às 12 horas, em minha sala de estar.

Nessa noite, mais infeliz do que nunca, a desgraçada esposa foi deitarse. Na manhã seguinte empregou toda a sua força de vontade para conseguir dominar-se. Não devia mostrar-lhe qualquer emoção, uma vez que o marido não se importava com os seus sentimentos. Se assim procedia não era porque ainda conservava qualquer orgulho, nem porque não desejasse cair nos braços dele. Não. O seu gesto derivava-se de que nenhuma mulher podia agir dessa forma, oferecendo-se, quando o homem francamente lhe mostrava desdenhá-la. E assim foi que aqueles dois infelizes mais uma vez se encontram na salinha de estar. — Resta-me apenas dez minutos — disse Tristram com constrangimento — O meu automóvel espera-me à porta. Vou empreender uma viagem através de Bury St. Edmunds. Estou atrasado em cerca de uma hora, e devo chegar a Londres às cinco, de modo a apanhar o noturno para Paris. Queira ter a bondade de sentar-se e serei o mais breve possível. Em vez de sentar-se, Zara caiu sobre a cadeira. Os seus ouvidos zuniam. Contudo, não devia desmaiar, a despeito de muito enfraquecida pela recente enfermidade. — Dispus as coisas de modo que você fique aqui, em Wrayth, e possa com sossego tratar dos próprios interesses — começou ele, evitando olhá-la e falando em voz fria e resoluta — Mas, se achar melhor, quando eu daqui partir, hoje, jamais nos veremos. Não há necessidade de nenhum escândalo

público; não é preciso que o povo comente a nossa separação, muito embora pouco me importe o que pensem de mim. Vou dizer a minha mãe que o nosso casamento foi um engano e que concordamos em separar-nos. É só. Portanto, você pode viver como melhor entender, da mesma forma que eu. Não a censuro por ter arruinado toda a minha vida. O culpado fui eu, que em condições tão insensatas a desposei. No entanto, eu a amava tanto!… Ao fazer essa confissão, sua voz repentinamente foi substituída por um soluço. Estendendo os braços, ele prosseguiu passionalmente: — Meu Deus! Estou castigado! E castigado porque ainda a amo, amo-a com toda a minha alma, embora ainda eu os veja com os meus olhos… o seu amante… e o seu filho! Ao ouvir tais palavras, Zara estremeceu. Entretanto o marido se afastava da sala, sem ousar olhar para a esposa, com medo de voltar atrás à sua deliberação. Zara levantou-se e cuidou de chamá-lo. Os seus lábios moveramse, mas nenhuma palavra lhe acudiu. Abatendo-se pesadamente na cadeira, ali permaneceu desacordada. Tristram não voltou. Subiu logo no automóvel e o pôs em movimento, afastando-se daquele lugar como se se afastasse dos demônios do inferno, que de fato ali se achavam, oriundos do seu atroz sofrimento. Quando Zara voltou a si já se passara uma hora. O marido estaria distanciado de Wrayth milhas e milhas. Ela sentou-se e deu com Jake lambendo-lhe a mão. Lembrou-se, então, de tudo. Ele partira, e ainda a amava, e fazia aquele juízo errôneo a seu respeito! Ergueu-se repentinamente. O sangue voltava a circular-lhe pelo cérebro. Devia agir. Olhou em derredor, pelo aposento, momentaneamente confusa. Depois, notou um guia dos viajantes. Debruçou-se sobre a mesa e pôs-se a folheá-lo com febricitante pressa. Sim, havia um trem que partia às duas e meia e chegava a Londres às cinco e meia. Era um trem vagaroso, mas o único que lhe servia, porquanto o expresso das três e mais chegava a Londres quase às seis.

Este não lhe servia, pois, e aquele talvez chegasse demasiado tarde. Em todo caso, devia tentar. Assim decidida, levou uma das mãos à cabeça, de tão agoniada. Se nem ao menos sabia para onde ele fora! Acaso se dirigira para a casa da mãe, ou para o seu velho apartamento da rua S. Jaime? Como quer que fosse, Zara ignorava os números de ambas as casas. Tocou a campainha e chamou por Michelham. O velho criado notou logo que sua ama sofria e, por intermédio de Higgins, sabia que lorde Tancred tencionava partir para Paris naquela mesma noite. Deduziu que qualquer tragédia lhes sucedera, e ardentemente desejou ajudá-los. — Michelham, lorde Tancred seguiu para Londres. Você sabe onde foi hospedar-se? Preciso segui-lo; é questão de vida ou de morte que eu o veja antes de partir para Paris. Faça com que o meu automóvel esteja na porta, para levar-me à estação. Quero apanhar o trem das duas e meia. Creio que a viagem por trem é mais rápida. — Sim, senhora. Tratarei de tudo imediatamente. Lorde Tancred foi para o seu apartamento, à sua de S. Jaime n.° 460. Permite que eu a acompanhe? lorde Tancred não havia de gostar que sua esposa viajasse sozinha. — Muito bem — aquiesceu Zara — Mas, escute: não há nenhum lugar, por aqui, para onde eu possa dirigir-me de automóvel e apanhar um outro trem que chegue antes a Londres? — Não, senhora. O das duas e meia é o que chega primeiro. Como ainda temos uma hora de espera, a senhora não quer almoçar um bocadinho? Bem sei que o seu criado Jaime deve acompanhá-la, mas se a razão dessa viagem é ponderosa, como um velho servo da casa e, se me permitir a liberdade de confessar-lhe, como um humilde mas sincero amigo de lorde Tancred, consinta a senhora que eu a acompanhe, em lugar de Jaime? —

Sim,

sim,

Michelham



respondeu-lhe

Zara,

deixando

apressadamente o aposento. Assim que chegaram à estação, ela enviou um telegrama com o endereço de rua S. Jaime:

Não é verdade o que pensava de mim. Não siga viagem antes de minha chegada. Quero explicar-lhe tudo. Sou sua inteiramente. Zara.

E começou a viagem. três horas de agonia, com aquelas constantes paradas, e um único pensamento a martelar-lhe o cérebro. Ele acreditava que a esposa tivesse um amante e um filho, e mesmo assim ainda a amava! Santo Deus! Isso era verdadeiro amor, e talvez ela não chegasse com tempo de alcançá-lo. Finalmente o trem chegou. Seguida de Michelham, sem perda de um minuto Zara tomou um automóvel e mandou tocar para a rua S. Jaime. Sim, de fato lorde Tancred era esperado às cinco, mas ainda não aparecera. Estava atrasado. Michelham explicou a Higgins que lady Tancred ali se achava e ia esperar o marido, enquanto ele ia dar um pulo até Park Lane, para ver se o amo lá se encontrava. Michelham conseguiu atiçar esplêndido fogo na lareira da sala de visitas e disse a Higgins para ali não entrar, a fim de não perturbar lady Tancred, nem mesmo com chá. E o velho e bondoso servo partiu nas suas pesquisas, com a cabeça bastante preocupada. Passaram-se dez minutos, e Zara sentiu não mais poder com aquela expectativa. E se Tristram estivesse atrasado e se dirigisse diretamente para a estação? Impossível, lembrou-se, porque o trem para Paris partia às nove e ainda não eram seis horas. Sim, seguramente ele viria. Não podia mexer-se de sua poltrona, mas os seus sentidos conduziamna através do aposento. Como era confortável, e com que gosto fora mobiliado e decorado, embora com sinais de recente abandono! Quando ali entrara, viu dois ou três telegramas sobre a mesinha do hall, à espera do destinatário. Com toda a certeza, o que lhe enviara estava no meio dos outros. Nesse instante, ouviu o ruído de um automóvel que parava à porta da rua. Ah! se fosse ele! Entretanto, ruídos como aquele se ouviam às centenas na rua de S. Jaime. Zara teve vontade de espiar, mas estava muito escuro e neblinoso.

Sentou-se de novo, com o coração pulsando na garganta. Sim, agora ouvia uma bulha de chave virando na fechadura da porta. Era Tristram que entrava, depois de demorar-se um bocadinho, para apanhar os seus telegramas. Naturalmente que não esperava ninguém no seu velho apartamento. Zara levantou-se para ir-lhe ao encontro, no instante em que dos lábios do marido brotava uma exclamação de surpresa e… de dor. — Tristram! — arquejou a pobrezinha. Parecia que sua voz de novo lhe faltava, e que as palavras lhe saíam sem articulação. Todavia, num esforço supremo e com os braços estendidos em misericórdia súplica, conseguiu dizer-lhe: — Tristram, vim aqui para explicar-lhe que nunca tive um… amante. Mimo é que o foi de mamãe e com ela se casou mais tarde. Mirko era filho de mamãe e de Mimo, meu padrasto. Era meu irmãozinho. Tio Francis fez-me prometer que eu nada lhe diria a esse respeito, porque… era a desgraça da família. Como Tristram desse um passo ao encontro da esposa, radiante de felicidade, ela prosseguiu: — Tristram, naquela noite você me disse que, antes de me pedir de novo para ser sua mulher, eu cairia de joelhos à sua frente. Veja! Eu me ajoelho, porque… o amo! Juntando o gesto à palavra, Zara ajoelhou-se defronte do marido e inclinou sua orgulhosa cabeça. Entretanto, não permaneceu sequer um segundo naquela posição, pois que Tristram a ergueu e tomando-a entre os braços, cobriu de beijos triunfantes e ardentes aqueles deliciosos e encurvados lábios, murmurando: — Finalmente… meu amor… minha mulherzinha… Quando diminuiu um bocadinho aquela delirante alegria, com toda a delicadeza Tristram tirou o chapeuzinho e os agasalhos de pele da esposa, e fê-la sentar-se em seu colo, defronte da ladeira. Como se sentia feliz, felicíssimo, por tê-la em seus braços, irresistível, entregue às suas carícias, e com aqueles olhos, outrora tempestuosos e ressentidos, a fixarem nele com

toda a meiguice!… Parecia que ambos estivessem no sétimo céu. Por algum tempo, não podiam dizer coisa com coisa; as palavras lhes saíam incoerentes, e o muito que podiam entender é que um amava o outro loucamente. Pelo jeito, Tristram não se cansava de ouvir-lhe confessar o seu doce amor, e a cada passo se punha a fazer-lhe perguntas sobre isso, bem como não encontrava sedativo nos beijos que lhe dava, naqueles beijos ardentes em que sua alma se inclinava sobre os deliciosos e encurvados lábios… Por fim, ele conseguiu dominar-se, com a absoluta certeza de que Zara agora o adorava. Veio-lhe o desejo de brincar com os seus cabelos. De desmanchá-los e examiná-los, para esquecer a lembrança de quanto a proibida beleza neles contida o torturava. Zara continuava nos seus braços, com os olhos úmidos de amor. Depois de algum silêncio, bem achegadinha ao marido ela lhe disse: — Tristram, quer ouvir, agora, a história que devo contar-lhe? Não quero que nunca mais paire um mistério entre nós. Somente para contentá-la, o feliz esposo desceu do céu e dispôs-se a ouvir-lhe aquelas coisas terrenas. — Entretanto, aviso-a de que todas essas coisas foram por mim postas de parte, uma vez que consegui aquilo realmente me importava na vida. Estamos certos de que nos amamos muito e… não vá suceder que de novo nos separemos, por uma hora que seja, quando temos bastante tempo para tratar das coisas de que você quer falar-me. E o seu rosto levantou-se radiante de alegria, e subitamente ele o cobriu com o cabelo de Zara. — Veja, meu benzinho, agora posso brincar com esta exquisita rede para armar um laço ao meu coração, e você está proibida de ficar horas e horas sozinha, naqueles majestosos aposentos de Wrayth. Oh! querida! doravante, que outra musica poderei eu ouvir senão o murmúrio dos seus lábios dizendo que me ama e que é minha, inteiramente minha? Não obstante, Zara conseguiu que Tristram lhe ouvisse toda a sua

história, desde o principio até o fim. Quando ele soube da sua infeliz existência, de toda a existência trágica de sua mãe, da vida de tristeza e de miséria e do motivo que a levara a desposá-lo, com o juízo que ela fazia dos homens e, por isso, dele próprio, e finalmente de como aos poucos ela despertara para o seu grande e único amor, Tristram sentiu pela esposa uma reverente ternura. — Oh, meu amor! Meu amorzinho! Como ousei desconfiar de você, duvidar de você. Agora, parece-me incrível! Depois, também ele lhe contou a sua história. Disse-lhe porque suspeitara do seu procedimento e confessou-lhe que, mau grado a sua desconfiança, aumentava o amor que por ela sentia. Uma hora se passou com essas íntimas confidencias, de modo que clarearam todas as sombras. Ambos ternamente sorriram, ao lembrar-se do equívoco em que viveram e que por pouco não lhes arruinava as vidas. — E pensar, Tristram, que com um bocadinho de senso comum nada disso teria sucedido! — Não, não foi isso — respondeu-lhe ele orgulhosamente, com expressão maliciosa nos olhos — Nada disso teria sucedido se eu não me tivesse incomodado, nem um pouquinho, com a sua altivez em Paris ou mesmo em Dover, e continuasse a mostrar-lhe quanto a amava. Se eu assim procedesse, há muito que já nos teríamos entendido. Não obstante — prosseguiu alegremente — esqueçamo-nos de todas essas tristezas, porque amanhã vou levá-la de volta para Wrayth e ali passaremos nossa verdadeira lua de mel, em perfeita paz. Nesse momento, como os seus lábios de novo se encontrassem com os de Zara, novamente ela murmurou com doçura: — Tu sais que je t'aime! Que intensa alegria a daquela segunda lua de mel para o venturoso casal! Que delícia, para ambos, procurarem os lugares favoritos de Tristram e vagarem pelos antigos e majestosos aposentos, cuidando de melhoramentos! E à noite, depois do jantar, sentarem-se ao pé da lareira e esboçarem quadros

de suas alegrias futuras, sempre juntos, juntinhos! Nessas ocasiões, ele lhe contava dos seus sonhos, que lhe parecera condenados a se desfazerem, mas que agora estavam destinados a completa e feliz satisfação. O seu grande deleite não parecia ter fim e nem encontrava expressões para manifestar-se, pois que cada vez mais ele se inteirava de como era ilustrado o espírito da esposa, e puros, imaculados, os seus pensamentos. De seu lado, Zara lhe mostrava toda sua ternura, inclinando-se em esquisita e meiga submissão, porquanto os seus modos sempre foram de inexcedível orgulho. Ambos estavam certos de que encontraram a maior felicidade possível neste mundo, e com a certeza de que lograram satisfazer os seus anseios depois de muita angústia e sofrimento, tinham em conta de divino dom aquela ventura. Quando de novo estiveram em Montfichet, por ocasião do Natal, o velho duque estava radiante. Dois anos são passados. No segundo aniversário de casamento de Tancred, Mr. Markrute e lady Ethelrida foram jantar com os sobrinhos. À sobremesa, no instante em que levantavam suas taças pela saúde de todos, o financista inclinou-se para Zara e disse-lhe: — Proponho um brinde pela minha profecia, querida sobrinha, um brinde pela suprema felicidade de quatro pessoas! E enquanto bebiam, as quatro mãos se reuniram.

Fim 
Biblioteca das Moças 07 - Por que - Elinor Glyn

Related documents

344 Pages • 108,166 Words • PDF • 7.3 MB

307 Pages • 101,230 Words • PDF • 921.7 KB

2 Pages • 268 Words • PDF • 635.8 KB

16 Pages • 3,591 Words • PDF • 964.2 KB

5 Pages • 2,368 Words • PDF • 2.1 MB

49 Pages • 8,383 Words • PDF • 2.3 MB

100 Pages • 47,153 Words • PDF • 16.8 MB

70 Pages • 22,809 Words • PDF • 334.6 KB

242 Pages • 58,520 Words • PDF • 1.2 MB

11 Pages • 3,687 Words • PDF • 537.3 KB

98 Pages • 68,566 Words • PDF • 1.8 MB