Ariela Pereira - Predestinados

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PREDESTINADOS Ariela Pereira

PRÓLOGO

Era mais uma noite de calor abafado, como quase sempre naquela região do país, quando os cinco cavaleiros aproximaram-se, sorrateiramente, do pequeno sítio, localizado há cerca de dez quilômetros de distância da cidade de Serra Azul, no interior do Maranhão. Tratava-se de um lugar isolado, desprovido de água e energia elétrica, de onde ninguém jamais antes se atrevera a se aproximar. Já passava da meia noite e o silêncio macabro, era quebrado apenas pelos burburinhos incessantes dos insetos e pelos sons dos cascos dos cavalos, sobre o solo arenoso, ressecado pela ausência prolongada de chuva. Aqueles cinco homens tinham em mente apenas um objetivo: destruir a maldita família de monstros incestuosos que, há anos, vinham aterrorizando os moradores da cidade, destruindo suas lavouras, violentando as mulheres, matando e devorando as pequenas criações de gado. Colocando em prática o plano que vinham elaborando nos últimos dias, eles saltaram dos cavalos, segurando pesadas latas de querosene, carregando espingardas carregadas presas às suas costas por amarras. Em silêncio, começaram a espalhar a querosene em torno da pequena moradia, construída de tijolos, sem rebocar, com janelas e portas de madeira tosca e teto de palha. Derramaram o líquido por toda a parte, encharcando as paredes, as portas e as janelas. O teto de palha ajudaria o fogo a se espalhar mais rapidamente. Após espalharem toda a querosene, voltaram a montar os animais, empunhando suas armas, colocando-se, como combinaram, diante de cada uma das saídas da casa, prontos para atirar em qualquer um dos monstros que tentasse fugir, pois nenhum dos membros daquela família poderia sobreviver, eram perigosos demais. Ainda seguindo o plano, acenderam o fogo, afastando-se alguns metros, enquanto as labaredas espalhavam-se rapidamente, acompanhando o percurso da querosene, destruindo tudo por onde passava. Eles permaneceram imóveis, por um longo momento, ainda empunhando suas armas, mirando-as diretamente para a casa, enquanto observavam as chamas se espalharem, o calor tornando-se quase insuportável, quando, de repente, alguém surgiu do interior da residência, pela porta dos fundos, seu corpo completamente em chamas, correndo e gritando, desesperadamente, em direção às infinitas chapadas do sertão. Pelo som da voz, que gritava, em tom de súplica e desespero, constataram que tratava-se de uma mulher, a qual, embora se movesse com uma inacreditável rapidez e agilidade, não conseguiu chegar muito longe, logo o homem que guardava aquela saída, mirou a espingarda em sua direção e disparou, um tiro certeiro, que lançou-a no chão, de bruços, completamente imóvel, seu corpo sem vida, ainda em chamas. Apreensivos, eles continuaram aguardando em seus postos, até que o fogo destruiu quase toda a casa, deixando de pé apenas a parte inferior de algumas paredes, enegrecidas pela fumaça, entre as quais não restava mais nada que não as cinzas do que antes foram os corpos daqueles que ali residiam, surpreendidos pela morte, enquanto dormiam. Quando o último vestígio de fumaça desapareceu no ar, concomitante ao nascer do sol, os homens entreolharam-se com satisfação, sentindo-se gloriosos pelo seu feito, afinal libertaram a população

do terror que há muito os assombrava. Mergulhados no profundo silêncio daquele novo dia que começava a nascer, eles deixaram o local, cavalgando de volta para Serra Azul, onde, graças a eles, a paz voltaria a reinar

CAPÍTULO I

Sequestro

Rio de Janeiro, 20 anos depois. Nas movimentadas calçadas de Copacabana, eu cumpria, mais uma vez, minha incessante rotina de todas as noites. Era mês de julho e a cidade encontrava-se empinhada de turistas, vindos de vários locais do país e do exterior. O tráfego de carros era intenso, assim como a movimentação de pedestres. Ali, muitos olhares se voltavam para mim, alguns com malícia, outros com hostilidade. Porém, o prazeroso torpor em meu corpo, causado pelo efeito da cocaína, permitia-me permanecer alheia à maior parte deles. Enxergava apenas os motoristas que se encontravam sozinhos em seus carros de luxo, para os quais me insinuava discreta e sensualmente, afim de seduzi-los e conseguir alguns programas, o que, para mim, não era difícil, especialmente aquela noite, quando usava um dos meus trajes mais sensuais: um minúsculo vestido de tafetá cor de vinho, frente única, o qual se colava ao meu corpo, ressaltando minhas curvas bem definidas, até a altura dos quadris, onde terminava em dois babados pequenos e esvoaçantes; as costas nuas e o decote em V, ajudavam a atrair a atenção dos homens. Para completar a sensualidade do traje, usava botas de couro, pretas, com cano até os joelhos e saltos altos, além da minha inseparável bolsa coberta com lantejoulas, da mesma cor das botas. Meus cabelos densos, longos, tingidos de vermelho e desfiado nas laterais, proporcionavamme um ar um tanto selvagem e sensual. Nas ruas, as demais garotas me atribuíam o apelido de boneca, por causa da minha pele muito clara e do castanho esverdeado dos meus olhos. Elas afirmavam que, embora eu usasse roupas econômicas em tecido e uma maquiagem escura, não conseguia parecer vulgar, mas apenas exótica e atraente. Como era típico do mês de julho no Rio de Janeiro, a temperatura estava baixa, cerca de quinze graus positivos, o que, embora para uma nordestina como eu, fosse considerado um frio gélido, não conseguia me atingir, já que me encontrava completamente entorpecida pelo efeito da droga em meu sangue, não sentia absolutamente nada. E era justamente este o efeito que eu esperava do entorpecente: manter-me dormente, para suportar minha realidade, principalmente o momento em que meu corpo era tocado e possuído pelos homens. Eles não percebiam a frieza da minha pele, pois ansiavam, cegamente, pelo próprio prazer. Ao meu lado Janaina, a morena de curvas voluptuosas, reclamava que o movimento estava fraco, embora estivéssemos ali há apenas dez minutos. Mas era o limite de tempo que ela aguardava por um cliente, queria movimentar-se o mais rapidamente possível, para que a noite passasse depressa e ela pudesse voltar para a companhia dos seus três filhos. Janaina não era viciada em cocaína como eu, investia todo o dinheiro que ganhava, se prostituindo, na educação dos seus filhos, para que eles pudessem ter um futuro melhor que o seu. Já passavam das três horas da madrugada e o tráfego diminuíra consideravelmente, apenas alguns poucos carros ainda circulavam por ali, a maioria ocupados por jovens que voltavam das agitadas baladas da noite carioca.

Janaína encontrava-se na companhia do seu terceiro cliente da noite e eu encontrava-me completamente só, sentindo-me apreensiva com a ausência de movimentação na rua, pois a calmaria acentuava a possibilidade de perigo. Mas ainda não podia voltar para casa, precisava do dinheiro de mais um cliente para comprar toda a cocaína de que meu organismo necessitava para a noite posterior. Afinal sustentava também o vício de Sérgio, meu namorado. Pensando nisso, recostei-me a um poste e acendi um cigarro, soltando uma grande baforada de fumaça. Há alguns metros de distância, dois travestis iniciavam uma discussão, proferindo os mais vulgares palavrões, por causa de um cliente perdido. Receosa que sua ira se estendesse até mim, preparava-me para deixar o local quando, de repente, um Sedam preto freou à minha frente, no acostamento, bruscamente, cantando pneus no asfalto. Imediatamente, percebi que havia algo errado e tentei correr, mas antes que pudesse me mover, o motorista me puxou abruptamente para o interior do veículo, através da porta de passageiro, fechando-a atrás de mim, dando novamente a partida, da mesma forma brusca com que havia parado, seguindo em alta velocidade, ultrapassando, perigosamente, os demais automóveis. Fechei meus olhos com força, tentando compreender o que se passava, tentando assimilar a nova realidade na qual me encontrava. Apavorada, olhei para o motorista, que mantinha sua atenção dividida entre a direção e o retrovisor do carro e gritei: — Ei cara, pára esse carro, eu quero descer! Mas ele não respondeu, tampouco me obedeceu, continuou concentrado nas duas direções, enquanto fazia o carro correr velozmente, como se fosse voar a qualquer momento. — Se for sequestro, quero que saiba que pegou a pessoa errada! Não tem ninguém para pagar o meu resgate. — Insisti. De repente, ele empunhou uma pistola cromada, que se encontrava presa ao cós do seu jeans, virou-se para mim e gritou: — É melhor calar a boca, antes que eu meta uma bala na sua cabeça. Neste momento, senti todo o meu corpo se estremecer de pavor, pensei em abrir a porta e pular, mas provavelmente me espatifaria no asfalto, pois o carro se encontrava a 150 quilômetros por hora. Ao longe, ouvi sons de sirenes de viaturas policiais, aproximando-se rapidamente, seguindo-nos. Não sabia se comemorava ou lamentava a descoberta daquela perseguição, pois, se a polícia o estivesse perseguindo, não deixaria de atirar por causa da minha presença, afinal eu era apenas uma prostituta viciada, minha vida valia muito pouco para a sociedade Numa tentativa desespera da de me livrar daquele pesadelo, falei: — Olha cara, se está pensando em me usar como refém pra se livrar da polícia, pode ir tirando o cavalinho da chuva, eles não vão nem pensar antes de atirar. O raptor nada respondeu, continuou dirigindo, com a arma em uma das mãos, completamente concentrado, hora adiante, hora para trás. Graças à ausência de intensidade no tráfego, atravessamos, rapidamente, toda a zona sul e o centro da cidade, seguindo pela Rodovia Presidente Dutra, em direção à Baixada Fluminense, quando ele aumentou, mais ainda, a velocidade do carro, o que antes parecia impossível. Aos poucos, os sons das sirenes foram se distanciando, até silenciarem-se de vez: o raptor os havia despistado, embora não diminuísse a velocidade do carro. Há cerca de 30 quilômetros de distância do município de Queimados, na Baixada fluminense, deixamos a rodovia, seguindo por uma pequena estrada de chão, aberta entre o matagal.

Enquanto o pavor crescia dentro de mim, podia visualizar, mentalmente, meu corpo estendido sobre a relva, apodrecendo no meio do mato, pois ali, naquele lugar tão isolado, dificilmente eu seria encontrada, meus restos seriam devorados pelos urubus. Ninguém procuraria por mim. As únicas testemunhas do meu suposto seqüestro foram os travestis, os quais jamais se atreveriam a chamarem a polícia, pois temiam por si próprios, já que também eram usuários de cocaína. À medida em que avançávamos mata a dentro, ele diminuía mais a velocidade do carro, por causa da precariedade da pequena estrada, a qual era quase inexistente. Era a oportunidade de que eu precisava para fugir. Sem pensar, abri a porta do carro e me atirei para fora, meu corpo rolando sobre a relva, machucando-me. Porém, antes mesmo que eu pudesse me levantar do chão, o raptor já estava ao meu lado, agarrando meu braço com mão de aço, erguendo-me do chão, ao mesmo tempo em que encostava o cano da arma na minha cabeça. Eu soltei um grito agudo. — Eu devia te matar agora mesmo!—Ele gritou, rispidamente, enquanto começava a me arrastar de volta para o carro, ignorando meus protestos. — Se tentar fazer isso de novo, será o seu fim, entendeu?! Mas eu não respondi indefesa, deixei-me ser jogada para o interior do veículo novamente, com brutalidade, enquanto que um pavor incontrolável tomava conta do meu corpo, fazendo-me tremer sobre o assento. Ainda assim, estava decidida a tentar de novo. Na primeira oportunidade, eu fugiria. Alguns metros mais adiante, o raptor parou o carro em meio a uma pequena clareira, lançou a cabeça para trás, recostando-a ao acento e soltou um longo suspiro. Permaneceu imóvel por um breve momento, então virou-se para mim, como se, subitamente, se recordasse da minha presença ali. Sem uma palavra, ele se dirigiu para o banco de trás, onde, de uma sacola, tirou um par de algemas. — O que você vai fazer?— Perguntei, em pânico, olhando para as algemas nas mãos dele. — O que você acha que vou fazer? —Ele esbravejou. Em seguida, algemou os meus pulsos em torno do volante, sem que eu reagisse, pois sabia que seria inútil lutar contra sua força física. — Por que está fazendo isso comigo?— perguntei, esforçando-me para conter as lágrimas. Mas ele me ignorou. Em silêncio, foi até o banco de trás e esparramou-se sobre ele, permanecendo totalmente imóvel. Eu ajeitei-me, desconfortavelmente, nos bancos dianteiros, prevendo que passaria horas assim. O dia começava a clarear, era mais um dia frio e cinzento de inverno. À medida em que o efeito da cocaína desaparecia do meu organismo, o frio intenso começava a me atingir, causando novos tremores em meu corpo. Enquanto as horas se transcorriam, interminavelmente, um turbilhão de indagações povoava minha mente. Me perguntava quem seria aquele sujeito e por que me sequestrara, afinal eu não tinha condições de lhe pagar um resgate, por menor que fosse o preço, pois não dispunha de dinheiro algum, tudo o que ganhava me prostituindo, era gasto com cocaína, para sustentar o meu vício e o de Sérgio, meu amor, meu companheiro, a pessoa que me fazia sentir viva novamente após uma noite de trabalho. Vasculhei mentalmente meu passado em busca de uma explicação para o que estava acontecendo, algo que eu fizera que pudesse ter me levado àquilo, mas nada justificava. Percorri meu olhar ao redor, vislumbrando a paisagem verde e, subitamente, recordei-me da pequena Serra Azul, minha terra natal, onde jamais me sentira acolhida ou amada, era desprezada pelo meu pai Adalcino, um agricultor de subsistência, rígido e tradicional e pelos demais membros de minha família, excerto por minha mãe, Lucilene, uma dona de casa, extremamente submissa ao

marido. O motivo para tamanha indiferença acreditava eu, consistia no inexplicável fenômeno de que eu nascera com uma aparência física diferente dos demais: tinha cabelos louros escuros; olhos castanhos esverdeados; pele branca e alta estatura, enquanto que todos os demais membros da minha família tinham a pele morena olhos e cabelos negros e uma estatura, visivelmente, menor que a minha. Não apenas meus parentes, mas também os moradores da pequena cidade me detestavam, por causa do meu jeito afoito de ser. Jamais me comportara como as outras meninas da minha idade, gostava de montar a cavalo e percorrer, por várias horas, as extensas terras do sertão, o que era considerado, pela cultura local, como uma atividade exclusivamente masculina. Jamais conseguira me adaptar às normas comportamentais impostas pela sociedade serrazulense, pois era livre demais, o que levara alguns membros, de tal comunidade, a terem verdadeira aversão por mim. Tal fator, unido ao meu jeito impulsivo de ser, me levara, inúmeras vezes, a me envolver em confusões, devido às quais, fora expulsa da única escola da cidade, quando havia concluído apenas alguns meses do primeiro ano do Ensino Médio. Certa tarde, quando eu tinha dezessete anos de idade, meu pai me flagrara fumando maconha, na roça, com um dos rapazes da cidade e, finalmente, encontrara o motivo tão esperado para me expulsar de casa. Através de uma conhecida de minha mãe, encontrei uma vaga de empregada doméstica no Rio de Janeiro, para onde parti, com apenas o dinheiro da passagem no bolso, o qual fora-me fornecido por minha mãe, sem o conhecimento do meu pai. Por ele, eu poderia morrer de fome. No entanto, minha permanência nesse emprego durara pouco tempo, logo conheci, durante uma caminhada na praia de Copacabana, Margarida, uma agenciadora de garotas de programa. A proposta que ela me fazia era irrecusável, me prometia um mundo de diversões e muito dinheiro para gastar com o que eu desejasse, entre outras mordomias. Na ocasião, decidira me submeter à prostituição apenas por algum tempo, até que juntasse dinheiro suficiente para comprar um pequeno apartamento e, então, conquistar, minha tão sonhada independência. Porém, o que seria temporário, já durava por mais de dois anos, como se eu estivesse presa a uma bola de neve, que crescia a cada dia. Logo que começara a me prostituir, me tornara viciada em cocaína, precisava da droga para suportar os homens e todo o dinheiro que ganhava era consumido pelo meu vicio, jamais conseguira guardar um centavo para meu apartamento. Eu morava em uma vaga — um pequeno apartamento de dois cômodos —, alugado em Copacabana, o qual, há um ano, dividia com Sérgio, um jovem entregador de pizzas que, por minha causa, também se tornara viciado em cocaína. Sérgio tinha apenas dezoito anos de idade, dois anos a menos que eu, mas gostava de estar com ele, era como um sol que iluminava minha vida obscura, por isso não me importava em sustentar também o seu vício. Além do mais, eu o tornara viciado, durante as inúmeras vezes em que ele viera entregar pizza em meu apartamento. A lembrança de Sérgio, quase levou as lágrimas aos meus olhos. Se não estivesse presa ali, estaria nos braços dele agora. O dia avançava lentamente, enquanto o raptor dormia no banco traseiro. Após permanecer por várias horas em uma posição extremamente desconfortável, com os pulsos algemados ao volante, sentia todo o meu corpo latejar de dor. O efeito da cocaína passava rapidamente, dando lugar a uma irritação crescente, a qual viria seguida da depressão. Características peculiares de um viciado sem a droga. A sensação me era insuportável e se tornava ainda pior unida ao frio intenso e ao fato de que minha bexiga se encontrava a ponto de estourar. — Ei cara, acorda, me tira daqui, preciso fazer... ir ao banheiro.— eu gritei. Por fim, após algumas tentativas, consegui despertá-lo do seu sono profundo. Movendo-se com a precisão e agilidade de um felino, ele saiu do carro, afastando-se alguns metros, como se ignorasse, completamente, minha presença

ali. — Me tira daqui, eu preciso sair! —gritei, insistentemente. Ele demorou-se alguns segundos, então veio até a mim e me libertou das algemas, com movimentos hábeis e precisos. Rapidamente, corri para trás de uma moita de arbusto, suspendendo a saia do vestido, até a altura dos quadris. O raptor me seguiu. — Será que dá pra virar pra lá!? Eu preciso de privacidade. – falei, com irritação crescente. Ele observou-me em silêncio por um momento, depois virou-se. Após esvaziar minha bexiga, vesti-me e me pus diante dele, decidida a confrontá-lo. Sob a luz do dia, pude observá-lo mais detalhadamente: era mais alto do que eu pensara, tinha a pele branca, cabelos louros dourados. Usava um jeans surrado e uma camiseta de malha preta, a qual salientava os músculos bem delineados do seu peito. Seu rosto era perfeito, como que esculpido à mão: o nariz afilado, o queixo másculo, boca ampla e bem desenhada, os olhos, de um verde claro, expressavam uma frieza assustadora, a qual eu já vira em muitos assassinos antes. Eram como olhos de um demônio presos ao rosto de um anjo. Apesar daqueles olhos, os quais ainda me pareceram estranhamente familiares, ele era extremamente atraente. Exprimia um magnetismo, tão irresistível, que quase me fez perder o fôlego. Ele também me observava atentamente, estudando cada detalhe do meu rosto e do meu corpo. Talvez finalmente se dava conta de que sequestrara a pessoa errada. Após me observar por algum tempo, seus olhos, profundamente verdes e frios, encontraram os meus, permanecendo unidos por um longo momento, em que o silêncio era quebrado apenas pelo som das batidas aceleradas do meu coração. Não conseguia entender como podia me sentir atraída por um homem tão perigosamente ameaçador. Talvez estivesse ficando louca, por causa das atuais circunstâncias, unidas ao frio intenso e à insuportável ausência da cocaína. De súbito, ele avançou um passo na minha direção. Vi a pistola que se prendia ao cós do seu jeans e, instintivamente, recuei alguns centímetros. — E aí? Vai me matar agora ou vai esperar mais um pouco?—indaguei, com tom de ironia, a irritação crescendo dentro de mim. Ele aproximou-se mais um passo, enquanto eu novamente recuava, sentindo todo o meu corpo se estremecer de pavor e de frio. — Pra falar a verdade, não vou te matar... por enquanto. — ele disse, com voz suave e ao mesmo tempo firme. Tinha um sotaque diferente, com certeza não era carioca.—Tenho um trabalho pra você. Nesse instante, visualizei, mentalmente, uma cena na qual eu empunhava um fuzil, estava em uma favela, atirando incessantemente, contra policiais... — Que trabalho?—perguntei, afastando o devaneio. — Você vai saber na hora certa. —- ele falou, depois, agarrou meu pulso com mão forte e começou a me arrastar para perto do carro. — Não vou fazer trabalho nenhum pra você.— falei, me debatendo, tentando, sem sucesso, livrar meu pulso da mão dele. — Acontece que você não tem escolha. Ao alcançarmos o carro, ele pegou as algemas e continuou me arrastando, desta vez, para perto de uma árvore. — O que você vai fazer, agora? — perguntei assustada. Mas ele nada disse. Encarando-me com frieza e, às vezes, uma fúria assustadora no olhar, algemou os meus pulsos para trás, em torno do tronco de uma árvore, relativamente, pequena. Em

seguida, entrou no carro e partiu, ignorando, completamente, meus protestos. Quando não ouvi mais o ronco do motor do sedam, comecei a gritar por socorro, o mais alto que minhas forças me permitiam, mas um longo tempo se passou e ninguém apareceu, não havia ninguém por perto que pudesse me socorrer. Mesmo após me sentir dominada pelo cansaço, continuei a gritar, até me convencer de que meus esforços eram em vão. Algumas horas depois, o raptor estava de volta em um outro carro, um Gol branco, semi novo. Ele estacionou o veículo próximo ao local onde eu me encontrava e saltou, vindo até a mim, libertando-me das algemas. Movia-se com muita elegância e exatidão. — A essa hora, meu namorado já percebeu que eu desapareci e deve estar me procurando, tenho até pena de você quando ele te pegar.— eu falei, com a voz rouca pelos gritos. Mas eu estava blefando, Sérgio jamais viria atrás de mim, pois era uma pessoa extremante pacífica, tinha aversão a situações de perigo, tampouco procuraria a polícia, já que era usuário de cocaína. Ignorando minhas palavras, o raptor começou a me arrastar novamente na direção do carro, enquanto os saltos das minhas botas se prendiam à relva, quase me fazendo tropeçar. Chegando ao carro, ele me empurrou para o seu interior, pela porta do motorista, entrou, pelo mesmo lado, e deu a partida, seguindo por entre a mata densa, por onde não havia uma estrada definida. Quando parou novamente, estávamos próximos a um pequeno lago de águas cinzentas, localizado tão próximo à rodovia, que eu podia ouvir os sons dos roncos dos motores dos carros que trafegavam por ali. Movendo-se com a precisão e leveza de um felino, o raptor saltou do veículo, foi até o porta malas, de onde tirou uma imensa toalha de praia e a estendeu ao chão, espalhando sobre ela, uma grande variedade de alimentos. Os enlatados pareciam ser seu prato preferido, pois haviam em extensa quantidade, havia também pão fresco, café, presunto, queijo, leite e bolo. Ele sentou-se sobre a toalha e começou a fazer sua refeição, enquanto eu o observava, de dentro do carro, fascinada: jamais vira antes uma criatura tão linda e perfeita, possuía um charme e elegância irresistíveis em cada um dos seus movimentos, porém, eu não devia me esquecer de que também era perigosamente mortal. Ele estava há cerca de cinco metros de distância de mim, comendo distraidamente, era uma boa oportunidade para fugir, poderia correr até a rodovia e pedir socorro, no entanto, era muito arriscado, pois com o carro, ele logo me alcançaria. Esperaria uma oportunidade mais segura, por enquanto, faria o jogo dele. — Vem comer!— ele gritou, após morder uma grande fatia de bolo, com modos surpreendentemente refinados. Hesitantemente, aproximei-me de onde ele se encontrava, sentando-me na outra extremidade da toalha de praia. O cheiro da comida causou-me uma náusea, era a manifestação do efeito da ausência do entorpecente em meu organismo, o qual também me despertava uma crescente irritação. — Não vai comer?— ele perguntou, observando minha expressão. — Não estou com fome— falei.— Você por acaso não tem um cigarro? Meus cigarros, assim como meu celular, haviam ficado na minha bolsa que caíra da minha mão no momento em que ele me raptara, puxando-me bruscamente para dentro do carro. — Cigarro faz mal pra saúde. É melhor você comer alguma coisa antes que fique fraca. — ele falou. — Mas que droga de bandido fajuto é você que não tem um cigarro?!— eu falei, me arrependendo logo em seguida por insultá-lo, era perigoso demais. Esse era o meu segundo pior defeito: falar as coisas sem pensar. O primeiro maior defeito era a aversão que sentia por normas comportamentais impostas pela sociedade, o que, provavelmente, me trouxera às atuais circunstâncias. — Eu estou dizendo pra você comer.— ele falou, com tom de ameaça, fitando-me com seus olhos

assustadoramente frios. Sem escolha, servi-me de um sanduíche de queijo com presunto e café, apenas para não despertar a fúria dele e, assim, antecipar minha morte. O cheiro de pão quentinho, me fez lembrar de Sérgio, dos momentos em que tomávamos o café da manhã juntos, depois de uma longa noite de trabalho. Enquanto eu comia, percebi, pelo canto do olho, que o raptor estudava cada um dos meus movimentos, minuciosamente, como se os gestos de um ser humano fossem algo novo para ele. — Você não é carioca, é?— perguntei, puxando assunto, apenas para tentar amenizar a tensão que pairava no ar. Ele permaneceu em silêncio por um longo momento, então respondeu: — Não. — De onde você é? — Paraná. — Por que a polícia estava atrás de você?— me arrependi por ter feito a pergunta no instante em que meus lábios pararam de se mover. Ele não respondeu, em vez disso segurou a garrafa térmica e me ofereceu mais café. Para prosseguir a conversa, fui obrigada a encará-lo, mas logo desviei meu olhar do seu rosto, assustada com a expressão com que ele me observava: um misto de fúria e frieza, além de uma estranha familiaridade. — Parece que já conheço você. — deixei escapar a frase. — Isso é impossível, essa é a primeira vez que venho ao Rio de Janeiro.— ele falou, com seu sotaque paranaense. — Mas nem sempre eu morei aqui, morava em Serra Azul, Maranhão. É de lá que te conheço? Ele permaneceu em silêncio por um longo momento, fitando o vazio à sua frente, depois encarou-me com um brilho ainda mais gélido no olhar. — Não. — disse ele, rispidamente, entredentes. —- Você não me conhece de lugar nenhum, Luana. Senti um calafrio percorrer minha espinha ao ouvi-lo pronunciar meu nome. Estava provado o fato de que ele não me sequestrara por acaso, havia um propósito para tudo aquilo, o qual não conseguia imaginar. — Como você sabe meu nome?—— perguntei, apenas para confirmar o que já sabia. — Sei tudo sobre você.—- a voz dele era tão sombria quanto seu olhar. Neste instante um turbilhão de indagações invadiu minha mente, entre outras questões, me perguntava quem sequestraria uma pessoa tão pobre, sem recursos para pagar o mais mísero dos resgates e, porque aquele estranho me parecia tão familiar. Talvez se tratasse de um cliente insatisfeito que viera se vingar. Eu não me recordava do rosto de todos os homens com quem saía, portanto, havia essa possibilidade. E que trabalho poderia ter ele para mim? Afinal, eu não pertencia ao mundo do crime, o mais perto que chegara fora quando subira ao morro para comprar cocaína, ocasião na qual fora presa pela polícia, passando uma noite inteira na cadeia. No instante em que pensei em abrir minha boca para investigá-lo um pouco mais, sons estridentes de sirenes de viaturas policiais nos alcançaram, aproximando-se rapidamente. Com uma agilidade excepcional, o raptor recolheu a toalha do chão, sem deixar cair os alimentos, jogando-a na porta malas do carro, ao mesmo tempo em que, com a mão livre, me arrastava para o interior do

veículo. Ele entrou e deu a partida, seguindo por entre a mata, pelo mesmo trajeto por onde viemos, porém agora mais rapidamente. As viaturas se aproximavam rápida e perigosamente, enquanto o raptor empunhava sua arma com uma das mão e segurava o volante com a outra. Senti o pânico tomar conta de mim, novamente. A perspectiva da morte agora era ainda mais próxima. — Por favor, não atira neles, é mais de uma viatura, vão matar a gente! — gritei, como que numa súplica desesperada pela vida. O raptor permaneceu em silêncio, sua atenção fixa na direção do carro. No instante em que pude enxergar as duas viaturas policiais que nos seguiam, o carro alcançou a autoestrada e atingiu tamanha velocidade que parecia voar. Mas as viaturas também eram velozes e logo estavam próximas novamente. Os policiais começaram a atirar contra nós, incessantemente. Um projétil de bala atingiu o espelho retrovisor do lado em que eu me encontrava, estilhaçando-o. Apavorada, soltei um grito agudo e encolhi-me mais no acento. O raptor começou a revidar aos tiros, com a pistola cromada. Embora usasse apenas uma das mãos, já que com a outra conduzia o carro, conseguiu acertar o pára-brisa de uma das viaturas, no momento em que o gol quase saía da estrada, por falta de plena atenção na direção. — Não posso atirar e dirigir ao mesmo tempo. — disse o raptor — Pula pra cá e dirige. Gesticulei negativamente com a cabeça, já que o pânico me roubara à voz, porém quando um outro projétil atingiu o pára-brisa traseiro do gol, mudei de idéia e troquei de lugar com o raptor, rapidamente, assumindo o controle do volante, acelerando o máximo possível, pois era uma questão de vida ou de morte. Mesmo tendo me avistado dentro do carro, os policias não se detiveram em atirar, provavelmente já sabiam onde eu fora sequestrada. O raptor pulou para o banco traseiro do Gol e passou a atirar, incessantemente, contra os policiais. Em questão de segundos avistei, através do espelho retrovisor, uma das viaturas saindo da estrada, invadindo o mato, descontroladamente. A outra viatura não se demorou para sair da estrada também, o rosto do seu motorista transformado em uma mancha vermelha. Embora não estivéssemos mais sendo perseguidos, continuei dirigindo em alta velocidade, minha mente entorpecida por causa do que acabara de presenciar. Havia passado muito perto da morte e a sensação era tão desagradável que talvez fosse melhor entregar-me, apenas para que esta se cessasse. — Faça o retorno ali na frente e volte para o Rio. — disse o raptor, sua voz despertando-me para a realidade. Numa atitude impensada, parei o carro no acostamento e saltei, sentindo-me completamente atordoada, não podia acreditar no que acabara de fazer: ajudara o raptor a assassinar aqueles policiais e, embora o fizera por falta de escolha, nada podia negar minha culpa. Acabara de me tornar cúmplice de um assassino. Se não terminasse morta por ele, certamente terminaria na cadeia. Com tais pensamentos, caminhei com passos largos pela rodovia, em direção ao Rio de Janeiro, os saltos finos das minhas botas ressoando sobre o asfalto, ruidosamente. O raptor se pôs em minha frente, detendo-me em minha fuga inconsciente. Ele ainda empunhava a pistola, embora a mantivesse apontada para o chão, diante do seu corpo, discretamente, para não atrair a atenção dos poucos motoristas que passavam por ali, a maioria caminhoneiros. — Onde você pensa que vai?! — ele perguntou. No entanto, não tive mais medo de enfrentá-lo, já havia esgotado todo o meu estoque de adrenalina daquele dia, nada mais poderia me amedrontar.

— Não vou voltar pra aquele carro! — falei, decidida, com meu coração acelerado no peito, a adrenalina ainda solta em nas minhas veias — Então se vai atirar em mim, atira logo! — eu o desafiei, sem compreender claramente o que estava fazendo. Por um longo momento, ele me observou em silêncio, procurando segundas intenções por trás das minhas palavras, buscando compreender o que elas realmente significavam, pois não acreditava como ninguém acreditaria que eu abriria mão da minha vida. — Você acha que eu não tenho coragem? — ele perguntou, sem desviar seus olhos dos meus. Eu o encarei de volta, fitando firmemente seus olhos verdes, frios como gelo, num gesto desafiador. Talvez o tiroteio tivesse me deixado louca, mas preferia morrer que permanecer ao lado daquele sujeito, correndo constante perigo. — Nunca duvidei de você. Ele agarrou o meu braço com sua mão forte, arrastando-me para o matagal às margens da rodovia. Recostou-me ao tronco de uma grade árvore e encostou o cano gelado da pistola em minha testa. Fechei os meus olhos a espera do tiro que tiraria minha vida. Tentei pensar em Sérgio, mas minha mente insistia em me levar a Serra Azul, às verdes chapadas por onde eu costumava cavalgar quando criança e durante minha adolescência. Um longo momento se passou e nada aconteceu. Impaciente, abri os olhos e deparei-me com o rosto do raptor, perfeito como o de um anjo, bem próximo ao meu. Seus olhos já não estavam mais tão frios, pelo contrário, expressavam um ardor surpreendente. — Atira logo que já estou perdendo a paciência. — falei inconsciente do estado de choque que me motivava ao suicídio. — Você não tem medo? – ele perguntou, num sussurro rouco. — Não. E anda logo com isso antes que eu decida dificultar as coisas para você! — Acho que prefiro te beijar — ele sussurrou. E antes que eu pudesse evitar, inclinou sua cabeça para baixo, para a frente, cobrindo os meus lábios com os seus, num beijo tão sôfrego quanto inesperado. O raptor comprimiu seu corpo forte, grande, contra o meu, encurralando-me de encontro ao tronco da árvore, enquanto seus lábios, insistentes, tentavam entreabrir os meus. Senti o calor do seu corpo contra o meu, os lábios explorando minha boca, avidamente, e, subitamente, fui tomada por um desejo intenso, inexplicável, o qual jamais experimentara antes. Como se estivesse hipnotizada, enlacei os meus braços em torno do pescoço dele, puxando-o mais para mim, intensificando o beijo. Naquele instante o quis como jamais desejara um homem em minha vida. Queria ser possuída por ele, ali mesmo, no meio do mato, sobre a relva verde, como os animais. No entanto, eu não podia fazer aquilo, precisava controlar meus instintos, pois se tratava de um homem perigoso, um assassino, procurado pela polícia e que, provavelmente, me mataria. Apegando-me aos últimos vestígios de minha sensatez, tentei afastar-me do contato dele, mas não pude recuar, pois o tronco da árvore, em minhas costas, me impedia. Cerrei meus pulsos e os comprimi contra o peito dele, mas não consegui afastá-lo, ele era forte demais. Porém, ao sentir a pressão dos meus punhos contra seu peito, ele recuou, agindo como um cavalheiro, que certamente não era. Encarou-me em silêncio por um longo momento, seus olhos refletindo um misto de ardor e confusão, até que, por fim, deu-me as costas, afastando-se alguns metros. Pensei em aproveitar a distância dele e fugir, mas minhas pernas não obedeciam às ordens da minha mente. Com meu corpo trêmulo, pelo desejo, permaneci imóvel. — Precisamos de um outro carro. – ele falou, após um longo momento de silêncio, ainda de costas

para mim. Subitamente, senti o desejo cedendo lugar à raiva que crescia dentro de mim. Sem pensar, falei: — Nós não! Você precisa de um carro. Eu estou pulando fora. Então, dirigi-me em direção à rodovia, com dificuldade, pois os saltos finos das minhas botas afundavam-se no solo fofo. Em um segundo, ele estava ao meu lado, segurando meu braço com sua mão forte, interrompendo meu percurso. Me perguntei como ele chegara perto de mim tão depressa, se a pouco estava a alguns metros de distância. — Você não vai a lugar nenhum!— ele falou, abruptamente, o brilho gélido novamente estampado em seu olhar. — Me larga! Ta me machucando! – gritei, tentando, sem sucesso, desvencilhar o meu braço da mão dele.— Eu quero voltar pra casa! Voltar pra minha vida! Me deixa em paz!. — eu começava a ficar descontrolada. — Voltar pra sua vida?! – ele falou, rispidamente. – Você gosta da sua vida? De se deitar com um monte de homens na mesma noite? Neste instante, a raiva explodiu dentro de mim. Durante aqueles dois anos prostituindo-me nas calçadas de Copacabana, deparara-me e fora vítima, inúmeras vezes, da descriminação por parte da sociedade, porém jamais me acostumara com ela, ainda me sentia magoada quando esta me era desferida. As palavras daquele estranho, me pareceram impregnadas de descriminação. Como ele podia me tratar assim, após ter me beijado? — Gosto da minha vida sim e daí? – eu menti, apenas para confrontá-lo, sem conseguir conter a raiva dentro de mim. — E quem é você pra me julgar?! Pra polícia estar te perseguindo, tão insistentemente, deve ter matado muita gente! Eu pelo menos não prejudico ninguém com o que faço! — Cala essa boca, você não sabe de nada! – ele falou, com tom de ameaça, seus olhos expressando um brilho ainda mais gélido, seu rosto contorcido de fúria. Então, segurou o meu pulso com sua mão, que parecia de aço e arrastou-me mata à dentro, detendo-se diante do tronco fino de uma árvore. Tirou o par de algemas do bolso do seu jeans e algemou-me ao tronco novamente, com as mãos para trás, desconfortavelmente. Depois, sem uma palavra, ele desapareceu rumo à rodovia. Embora eu soubesse que seria inútil, comecei a gritar por socorro, na esperança de que alguém aparecesse, mas o tempo se passou e ninguém veio ao meu auxílio. Cerca de uma hora depois, o raptor estava de volta. Aproximou-se de mim, sem olhar-me no rosto e libertou-me das algemas, arrastando-me na direção da rodovia. Chegando lá, um novo carro nos aguardava um Audi A3, cor de vinho, novinho em folha. Não havia sinal do Gol, semi destruído pelas balas. — Puxa! Você é muito eficiente pra roubar carros! – falei, com ironia. — E quem foi que disse que eu roubei? – ele falou. — Então fez o quê, pediu emprestado? Mas ele não respondeu, após forçar-me a entrar no carro, sentou-se ao volante e partiu, em alta velocidade, em direção ao Rio de Janeiro. — Pra onde vamos agora? – perguntei, desanimada, a depressão começava a tomar conta de mim, por causa da ausência da cocaína em meu sangue. — Vamos para Campos dos Goytacazes. – ele falou, sem olhar para mim. — Se queria ir pra lá, então por que pegou a estrada no sentido de São Paulo?

— Pra polícia pensar que fui para o sul, da mesma forma que você pensou. – - ele falava sem olhar para mim. Desanimada, recostei a cabeça no encosto do banco do carro, enquanto o raptor dirigia, rapidamente, pela Rodovia Presidente Dutra, sentido ao Rio de Janeiro. Ao alcançarmos o perímetro urbano, ele foi obrigado a reduzir a velocidade, devido à intensidade do tráfego de carros na estrada. Quando o Audi passou a seguir em baixa velocidade, pensei em pular e fugir, mas o raptor pensara naquela possibilidade, permanecia na pista esquerda, sendo que se eu me atirasse para fora do veículo, seria atropelada pelos carros que seguiam pela pista lateral. Em algumas horas, atravessamos a ponte Rio Niterói, São Gonçalo e a Região dos Lagos, seguindo pela BR 101, que nos levaria a Campos. O raptor dirigia com cautela e atenção, sem tirar os seus olhos da estrada, enquanto eu continuava recostada ao assento, sentindo-me cada vez mais depressiva. Aquele era o segundo estágio causado pelo efeito da ausência da cocaína, no organismo de um usuário, o próximo seria o desespero, fase em que muitos viciados faziam qualquer coisa para adquirir a droga. Nas horas seguintes, forcei minha mente a trabalhar rapidamente, em busca de uma forma de fugir daquele sujeito. Eu não sabia o que ele queria de mim ou que crimes cometera, mas provavelmente era muito perigoso, já que a polícia o perseguia tão insistentemente. Não era apenas um ladrão de carros, pois se os policiais abriram fogo contra nós, durante a perseguição, tratava-se de um perigoso assassino. O pensamento causou-me um calafrio, na espinha. Olhei para ele, que estava totalmente concentrado na direção do carro, tinha o olhar frio como sempre e o rosto contraído de tensão. Inevitavelmente relembrei o beijo e, de súbito, meu coração bateu mais forte no peito. Jamais antes eu havia experimentado as sensações que aquele beijo me despertara, era como se eu estivesse enfeitiçada. Esforcei-me para me concentrar em um plano de fuga, mas minha mente insistia em repassar, repetidamente, as emoções que sentira quando ele me beijara. De repente, como se sentisse o peso do meu olhar sobre ele, o raptor se virou para mim, fitando-me fixamente nos olhos. Seu olhar era frio e furioso, lembrava o de um animal selvagem. Com um tremor, desviei meu olhar do rosto dele. Comecei a me perguntar, que trabalho, a que ele se referira, estava reservado para mim. Certamente não seriam favores sexuais, pois se quisesse me possuir, o teria feito, no momento em que me beijara e sem muitas dificuldades. Neste momento, me recordei do filme, no qual Tom Cruise sequestrava uma ladra profissional, para determinada missão, a qual, ele descobria mais tarde, após se apaixonar por ela, que se tratava de uma missão puramente sexual. No meu caso, a estória era ao contrário. Percorremos mais alguns quilômetros pela BR 101. Quando nos aproximávamos de Campos o raptor deixou a autoestrada e seguiu por uma pequena estrada de terra, aberta entre o matagal. A noite começava a cair e a assustadora e silenciosa penumbra era dissipada apenas pelas luzes dos faróis do Audi. Alguns metros adiante, ele parou, próximo a um lago de águas escuras. Me perguntei quantos lagos haveriam às margens das estradas cariocas. Sem desligar os faróis, o raptor inclinou sua cabeça para trás, recostando-a ao encosto do banco, fechou os olhos e soltou um profundo suspiro, permaneceu imóvel por um longo momento, então, virou-se para mim e convidou: — Vamos comer? — Eu não estou com fome. – falei, secamente. Com movimentos muito ágeis e precisos, ele saiu do carro, foi até o porta malas, de onde

tirou a toalha de praia, forrou-a no chão, sobre as folhas secas, próximo ao lago, espalhou ali alguns alimentos e sentou-se, servindo-se de um sanduíche de mortadela com pão e um copo de refrigerante. — Vem comer. – ele gritou para mim, que o observava de dentro do carro. Hesitantemente, deixei o veículo e sentei-me no chão, recostada ao tronco de uma árvore, o mais longe possível do raptor. O cheiro da comida causou-me uma náusea. Era mais um dos efeitos da ausência de cocaína em meu organismo, logo eu estaria desesperada, precisava de uma dose da droga, urgentemente. Minha aflição era tamanha, que atenuava a dor em meu corpo, causada por ter passado horas algemada ao volante do carro, numa posição extremamente desconfortável. Olhei para o raptor, que comia em silêncio, sua silhueta parcialmente oculta pela penumbra. — Ei, você por acaso não tem cocaína aí, tem? – perguntei, numa atitude quase desesperada. — Não, por quê? – ele disse, mordendo um pedaço do sanduíche, distraidamente. — Porque eu preciso da droga, cara, urgentemente, se não vou morrer. Ele se virou para a minha direção, interrompendo o trajeto do sanduíche até sua boca. — Então quer dizer que você é viciada em cocaína? – a pergunta dele foi quase uma afirmação. — Por que está me perguntando isso, você não disse que sabia tudo sobre mim? — Você não respondeu minha pergunta. — Sou sim, e daí? — Daí que você não devia fazer isso, é muito prejudicial à saúde. — Olha só quem fala, — comecei, mas achei melhor não provocá-lo.— Por favor, arranje a cocaína pra mim... eu faço qualquer coisa … — supliquei, comprimindo as palmas das minhas mãos contra as minhas orelhas, como se, assim, amenizasse meu desespero. Jamais antes, havia me sentido assim, pois jamais me faltara dinheiro para comprar a droga. Presenciara vários casos de viciados que chegavam àquela situação e faziam qualquer coisa para conseguirem cocaína. Muitos deles compravam fiado, nas mãos dos traficantes e acabavam pagando com a própria vida, pois não tinham de onde tirar a quantia que prometiam aos bandidos em troca da droga. — Esquece isso e vem comer. – o raptor falou. Sem dar-lhe ouvidos, afundei meu rosto entre meus joelhos, erguidos na frente do corpo, e tentei pensar em outra coisa que não no meu desespero. Mas só um pensamento me vinha à mente: o calor do corpo do raptor de encontro ao meu, seus lábios macios sobre os meus, as sensações indescritíveis e desconhecidas que me invadiram. De repente, senti o toque de uma mão pousando em meu braço. Assustada, ergui a minha cabeça de entre os meus joelhos e vi o raptor, em pé à minha frente. Ele segurava um pequeno comprimido e um copo com água. — Engula isso, você vai se sentir melhor. – ele disse, oferecendo-me o comprimido. — Como vou saber que não é veneno? – perguntei, desconfiada. –- Fala sério! Se eu quisesse te matar não precisaria de um comprimido. — E que comprimido é esse? – perguntei ainda não convencida da prestatividade dele. — É só um antidepressivo, vai fazer você relaxar. Eu aceitei o comprimido e o engoli, junto com a água, depois disse: — Que raio de bandido é você que carrega antidepressivos? — Eu não sou bandido.— ele estendeu a toalha de praia perto de mim, dizendo: – Deite aqui, que logo você vai se sentir melhor. E eu o obedeci sem protestar, esparramando-me sobre a toalha de praia, que tinha um

agradável cheiro de suor misturado com lavanda, era o cheiro do raptor. Encolhi meu corpo sobre a toalha, tentando me proteger do frio que fazia meu queixo bater, incessantemente. Após observar-me por um instante, o raptor, foi até a porta malas do carro e voltou com um cobertor nas mãos, estendendo-o sobre mim, em seguida, afastou-se, sentando-se sobre o chão coberto por folhas secas, há alguns metros de distância. Ele usava apenas a calça jeans e uma fina camiseta de malha, apesar da baixa temperatura, parecia totalmente à vontade. Talvez estivesse familiarizado com aquele tipo de clima, pois o estado de Paraná, seu local de origem, era muito mais frio que o Rio. Aos poucos, meu corpo foi relaxando, proporcionando-me uma agradável sensação de leveza. A ausência da cocaína já não mais me incomodava tanto e as dores se tornaram mais amenas. Enquanto minhas pálpebras se tornavam cada vez mais pesadas, passei a observar o raptor, que sentado no chão, manuseava um notebook. Parecia completamente relaxado e alheio à minha presença. Era, realmente, a criatura mais perfeita na qual já pusera os meus olhos, mesmo sob a luz faca do farol do carro, eu podia ver os músculos bem definidos dos braços dele, desejei, ardentemente, ver o restante daquele corpo. Seu rosto, sério, concentrado na tela do computador, exprimia um carisma irresistível, que me atraía como, um ímã. Por sorte, ele não agia como um homem comum, ou já teria me tomado em seus braços e arrancado meu minúsculo vestido. Por outro lado, tal atitude dele, poderia estar relacionada com o motivo pelo qual me sequestrara, o qual não me passava pela cabeça qual era. Talvez estivesse a mando de alguém, pois se tratasse-se apenas de um cliente insatisfeito, como eu chegara a imaginar antes, provavelmente já teria me matado, afinal oportunidade não lhe faltara. Mas a coisa não era tão simples, havia mais por trás daquele sequestro que eu pudesse supor, tudo estava relacionado com o tal trabalho que ele mencionara ter para mim, o qual eu, por mais que tentasse, não conseguia imaginar qual era. Com tais pensamentos em mente, eu adormeci. Em meu sonho, encontrava-me em Serra Azul, cavalgando livremente pelas terras do sertão, quando um vulto negro, distante, me chamou a atenção. Curiosa, aproximei-me dali, constatando que se tratava de um lobo enorme, cinzento, o que era muito estranho, pois no sertão nordestino, não existiam lobos. De repente, o animal, que até então se mostrava alheio à minha presença, arreganhou o focinho e rosnou, ameaçadoramente, em minha direção, arrancando-me um grito de pavor. Fiz meia volta com o cavalo e parti, numa corrida veloz, mas o lobo era mais rápido, logo me alcançou e atacou meu cavalo, fazendo-o cair ao chão. Enquanto o lobo terrível acabava com a vida do cavalo, aproveitei sua distração para fugir e pus-me a correr, em meio ao cerrado baixo. Em um minuto o lobo pulou em minha frente, arreganhando o focinho novamente, exibindo suas presas afiadas, enormes. Quis correr, mas o medo me paralisava, enquanto via o lobo aproximar-se de mim, perigosamente. Quando despertei do pesadelo, tinha o meu coração acelerado no peito e o meu corpo banhado de suor. Ainda podia visualizar, mentalmente, o terrível lobo e senti um indescritível alívio por perceber que era apenas um sonho, muito real, mas apenas ilusão. Percorri os olhos ao redor e percebi que ainda me encontrava na floresta, o vento frio fazia os galhos mais altos das árvores balançarem, emitindo um som sombrio, fantasmagórico, revelando a claridade de mais um dia sem sol. Eu ainda estava deitada sobre a toalha de praia, havia um travesseiro sob minha cabeça e meus pés estavam descalços das botas de couro. A ausência da cocaína em meu organismo, já não era tão incômoda, pois me sentia invadida por uma estranha sensação de prazer, certamente causada pelo efeito do antidepressivo. Uma lufada de vento frio me fez estremecer e sentei-me sobre a toalha, só então percebi a

presença do raptor sentado ao meu lado, bem próximo, sobre o chão forrado pelas folhas secas. — Com o que você estava sonhando? – ele perguntou, fitando o meu rosto banhado de suor. — Por que você quer saber? – não compreendia o interesse dele por meu pesadelo. — Nada, — ele desviou seu olhar do meu rosto — só fiquei curioso, porque você estava gritando muito. — Tive um pesadelo com um lobo. — falei um tanto constrangida. – Que horas são? — Dez e meia da manhã. — ele respondeu, examinando o relógio em seu pulso. Eu o fitei incrédula e disse: — Minha nossa! Eu dormi tanto assim? O que você me deu? Um sossega leão? Os lábios dele se abriram num largo sorriso, revelando uma fileira de dentes brancos e perfeitos. Era a primeira vez que o via sorrindo e era o sorriso mais encantador do mundo. — Com fome?– perguntou ele. Eu não estava com fome, mas me sentia muito fraca, comer me ajudaria. — Eu acho que estou – falei. O raptor deu-me as costas, afastando-se, retornando segundos depois, com um grande sanduíche de presunto e um copo de refrigerante nas mãos. Eu não compreendia e estranhava bastante o fato de ele se mostrar tão prestativo, sendo eu sua refém. O que enfatizava minha desconfiança de que ele estava a serviço de alguém. Enquanto eu comia o sanduíche, ele observava, atentamente, cada um dos meus movimentos, como se jamais vira antes um ser humano comendo. — O que você está olhando? — perguntei, sem pensar. — Nada. —- ele disse sorrindo. — Ás vezes acho que já conheço você. É estranho, porque sei que nunca te vi antes. Suas palavras podiam ser minhas, pois eu também tinha a impressão de que o conhecia, o que no mínimo, era estranho, considerando o fato de que ele jamais viera antes ao Rio de Janeiro, como afirmara e eu jamais estivera no Paraná. — Quer mais? — ele perguntou, ao me ver terminar a refeição. — Não já chega. – falei. Ele levou o copo vazio de volta ao carro, retornando em seguida com o notebook nas mãos. Entregou-o a mim, dizendo: — Quero que você veja isso. – em seguida, afastou-se, novamente, recostando-se ao carro, há alguns metros de distância, sem desviar os seus olhos de mim. Segurei o pequeno computador e observei sua tela. Exibia uma página com as últimas notícias. Havia uma foto do raptor estampada no alto da página, na qual ele parecia bastante diferente: tinha a barba feita; os cabelos bem penteados; a fisionomia relaxada e um leve sorriso nos lábios. Seu olhar estava sereno, sem vestígios da frieza que eu já conhecia, parecia outra pessoa, mas era ele, apenas mais feliz que atualmente. Ao lado da foto, havia o seguinte letreiro: “DANIEL FERNADES BLANCK, FAZ MAIS VÍTIMAS, DESTA VEZ NO RIO DE JANEIRO”. Mais abaixo, com letras menores, havia uma narrativa da fuga dele do Rio de Janeiro, na madrugada do dia anterior, na ocasião em que me raptara, embora não houvesse nenhuma menção à mim. De acordo com narrativa da reportagem, ele havia assassinado três policiais durante sua passagem pela cidade. Mas sua trajetória de crimes era longa, não começava ali. Li atentamente o relato que se seguia, de acordo com o qual, Daniel tratava-se de um estudante de medicina, filho único de uma das famílias

mais ricas e influentes de Curitiba, Paraná. Sempre fora um filho exemplar até que um dia, aos vinte anos de idade, sem mais nem menos, saíra pelo país, assassinando pessoas que, aparentemente, não tinham nenhuma ligação com ele. Sua primeira vítima fora Anselmo Braga de Souza, proprietário de uma revendedora de carros usados, na capital de São Paulo, onde também residia. Após assassinar Anselmo, friamente, diante da esposa e filhos dele, partira para o interior do estado, onde tirara a vida de Gonçalo Ferreira dos Santos, vereador de uma pequena cidade do interior paulista. Em seguida, partira para a capital mineira e assassinou o comerciante, Francisco Fonsêca Neves, há um mês atrás. Além de assassinar essas pessoas, por onde passava ele deixava um rastro de sangue, matando os policiais que o perseguia. De acordo com os investigadores do caso, as vítimas dele eram encontradas com seus corpos dilacerados, em pedaços, como se fossem vítimas de ataque de animal selvagem e não de um ser humano. Aparentemente, os homens assassinados tinham em comum apenas o fato de terem nascido na mesma cidade, a pequena Serra Azul, localizada no interior do estado do Maranhão, não tinham relação alguma com Daniel ou sua família. Quando terminei de ler a página on-line, eu tinha todo o meu corpo trêmulo de pavor. Aquele homem era ainda mais perigoso do que eu imaginara, era um assassino frio e cruel. Eu seria sua próxima vítima, pois como as demais, era nascida também em Serra Azul. Conhecia pessoalmente todos os homens assassinados, eram amigos íntimos do meu pai. Só não entendia o que eles haviam feito de errado para merecerem tal destino, ou porque aquele assassino ainda me mantinha viva. Agora, tinha a certeza, porém, que aquele sequestro estava relacionado com meu passado, embora não conseguisse imaginar o que o motivava a fazer o que fizera ou que ligação eu poderia ter com aqueles homens, afinal eles haviam deixado Serra Azul muito antes que eu, para tentar melhorar de vida na cidade grande. Depois que deixei Serra Azul, jamais tive contato com nenhum deles. Inevitavelmente, relembrei a fuga do dia anterior, quando ele matara, — com habilidade espantosa para atirar —-, os policiais que nos seguia, a forma como suas vítimas eram encontradas, com seus corpos estraçalhados e forcei minha mente a trabalhar rapidamente, em busca de um plano para escapar daquele destino. Se não fugisse logo, certamente me tornaria a próxima vítima da crueldade dele. Olhando para ele que, recostado ao carro, a uma certa distância, ainda me observava, percebi que eu tinha uma chance, pois ele era um homem, muito perigoso, mas ainda assim um homem e me desejava, o que ficara evidente no momento em que me beijara, às margens da rodovia. Elaborei rapidamente meu plano e já o colocando em prática, forcei meus lábios, trêmulos de pavor, a se abrirem num largo sorriso. Olhei para o raptor e, tentando parecer o mais sedutora possível, disse: — Que nome lindo o seu... Daniel. — fiquei em pé, movendo meu corpo com sensualidade — Sabe... sempre me senti atraída por homens como você, assim corajoso, destemido. – aproximei-me mais dele, enquanto tentava ocultar o tremor em minhas pernas, esforçando-me por manter o tom firme. – Eu não consigo resistir a um homem assim como você... — Você não está com medo de mim? – ele perguntou, me encarando com seus olhos frios. — De jeito nenhum, pelo contrário, depois que li a reportagem, passei a te admirar ainda mais. – intimamente eu torcia para que ele acreditasse em minhas mentiras descabidas, minha vida dependia disso. Aproximei-me do lago de águas escuras e comecei a despir-me, lentamente, do minúsculo vestido de tafetá. — Vamos apostar uma corrida até a outra margem? – propus. Ele aproximou-se de mim, percorrendo seu olhar frio por todo o meu corpo, agora,

vestido apenas pela minúscula calcinha de tecido transparente. — E qual vai ser o prêmio? — ele perguntou, sem desviar o olhar do meu corpo desnudo. — Isso você só vai saber quando chegar do outro lado. — Falei, depois, atirei-me nas águas geladas do lago, sentindo um frio, insuportável, como se mil facas perfurassem o meu corpo. Como eu já esperava, ele aproximou-se da margem, despiu-se da calça jeans e da camiseta de malha e atirou-se na água. Ótimo! Havia mordido a isca. Embora a água estivesse gelada, ele não parecia sentir o mesmo frio que eu, mostrandose bastante à vontade. Sob a claridade daquele dia cinzento, pude observar, mesmo que rapidamente, ante de atirar-se nas águas, seu corpo desnudo, constatando que tinha o físico mais glorioso que eu já vira: os músculos bem torneados, as pernas grossas e firmes, o peito másculo, ligeiramente peludo. Parecia mais um deus grego que um assassino. Ele aproximou-se de mim, quase aquecendo-me com o calor do seu corpo. — Vamos ver quem chega do outro lado primeiro. – falei, dando, início a uma sucessão de braçadas frenéticas, enquanto o raptor me seguia. Quando alcançamos a outra margem, eu estava sem fôlego, por causa do esforço. O raptor, que chegara alguns segundos à minha frente, não demonstrava sinal de cansaço. Permanecemos imersos na água gelada, com apenas nossas cabeças do lado de fora. — Então, qual vai ser o meu prêmio? – ele perguntou, encarando-me com malícia no olhar. –- Vem até aqui que eu te mostro.— falei, num sussurro muito sedutor. Então, ele aproximou-se mais de mim, seu corpo se colando ao meu, inclinou a cabeça para baixo e começou a roçar seus lábios na pele do meu pescoço. Inesperadamente, fui invadida por um turbilhão de sensações indefiníveis, as quais faziam meu coração disparar dentro do peito, quase tirando-me a respiração. Era como se eu estivesse enfeitiçada. O raptor afastou-se alguns centímetros para me encarar, fitou-me profundamente nos olhos, por um longo momento, quando seu olhar já não mais expressava a frieza de antes, mas um ardor intenso. — Por que você tinha que ser tão linda... ? — ele disse, num sussurro quase inalditível. Depois, comprimiu os seus lábios sobre os meus, como se tentasse me devorar. Senti o contato do corpo nu dele contra o meu, seus lábios entreabrindo, insistentemente, os meus e mergulhei em uma espécie de transe, no qual nada mais importava a não ser nós dois. Com facilidade, ele ergueu-me da água, em seus braços fortes, estendendo-me, nua, sobre a relva, às margens do lago e começou a explorar meu corpo, incendiando-me, fazendo-me esquecer de tudo o mais, inclusive do meu plano. Naquele momento, já não mais sentia o frio, pelo contrário, era invadida por um calor intenso, indescritivelmente prazeroso, apaixonante. Jamais antes me sentira, assim, nem mesmo quando estivera nos braços de Sérgio, a quem acreditara amar. Percebia agora o quanto estava enganada, jamais antes experimentara o verdadeiro amor, como experimentava neste momento. Algum tempo depois, eu abri os meus olhos, fingindo despertar de um sono profundo. Ainda encontrava-me nua, aquecida, nos braços de Daniel, que dormia profundamente. Ergui a minha cabeça e fitei o seu rosto, os olhos fechados, completamente relaxado, sereno. Era o rosto mais perfeito que eu já vira e exprimia um magnetismo, tão irresistível, que me fazia desejar ficar. No entanto, eu precisava ir, ele era perigoso demais.

Relembrando a reportagem sobre ele na página da internet, cautelosamente, me afastei, cuidando para não despertá-lo, já colocando em prática a segunda parte do meu plano. Com passos sorrateiros, para não emitir nenhum som que o acordasse, aproximei-me do lago e invadi suas águas, nadando, com braçadas largas e silenciosas, até a outra margem. A noite começava a cair e a escuridão era assustadora. Chegando à outra margem, dirigi-me, rapidamente em direção ao carro, mas antes que o alcançasse, choquei-me, brutalmente, contra uma rocha sólida, que quase me fez cair ao chão. Porém, não era rocha alguma, apesar da negra penumbra, reconheci Daniel, ainda nu, imóvel em meu caminho. Sem conseguir acreditar no que meus olhos viam, olhei para o local onde o deixara, há poucos minutos, para me certificar de que era realmente ele. Verifiquei, aturdida, que o local se encontrava deserto e, naquele instante, duvidei de que ele fosse humano. — Você pensou mesmo que podia me enganar? — ele esbravejou, abruptamente, seus olhos verdes fitando-me com um misto de fúria e frieza. Ainda pensei em correr, para escapar de sua fúria, mas seria inútil, pois logo ele me alcançaria. Apenas encolhi-me, esperando o tapa que certamente viria. — Está pensando que vou te bater?! — ele esbravejou novamente, como uma trovoada quebrando o silêncio da noite. — É isso mesmo que você merece, mas não vou bater numa mulher. – Ele entregoume meu vestido, enquanto vestia-se de sua calça jeans e da camiseta. — Vista-se. — ordenou. Vesti-me rapidamente, pensando que pelo menos quando meu corpo fosse encontrado eu não teria que enfrentar o constrangimento de estar nua. Ele agarrou o meu pulso com sua mão forte, arrastando-me para o carro. Abriu o porta luvas, pegou uma fotografia e a entregou-a à mim, iluminando-a com uma lanterna. Imediatamente, reconheci o rosto de Orlando, na fotografia, um grande amigo de meu pai, o qual deixara Serra Azul dois anos antes de mim. Não fazia idéia de onde ele morava atualmente, ou como vivia. Quando deixara nossa pequena cidade, era delegado de polícia. Jamais o vira depois que ele partira. — Você conhece esse cara? — Daniel perguntou. — Não. Nunca vi na minha vida – menti. — Pára de mentir pra mim, eu sei que você conhece. — Se sabe então por que pergunta?! – se eu o enfrentasse, pelo menos morreria com um pouco de dignidade. Por um longo momento, ele fitou o meu rosto em silêncio. Seus olhos expressavam uma frieza assustadora. — Você achou mesmo que eu cairia naquele seu plano ridículo!? — ele esbravejou, como se lesse meus pensamentos.— Embora não tenha dado certo, seu desempenho foi ótimo. Meus parabéns, você é uma excelente atriz. — as últimas palavras soaram com tom de sarcasmo. Neste momento, não consegui mais sustentar o olhar dele e desviei o meu rosto para o chão. Gostaria de poder revelar-lhe meus verdadeiros sentimentos, dizer-lhe o quanto gostara de estar em seus braços, o quanto desejara que aquele momento jamais terminasse, o quanto meus sentimentos eram, inevitavelmente, reais, muito mais intensos do que eu queria ou podia controlar. No entanto, não daria esse gostinho a ele, só por vingança, pelo que fazia comigo, o deixaria pensar que estivera fingindo. — Muito obrigada, foram dois anos de ensaio. Aprendi a suportar qualquer coisa. – Eu menti, com o mesmo tom irônico que ele me desferira, voltando a encará-lo. Um brilho ainda mais gélido passou-se em seu olhar, por um instante acreditei que

havia chegado a minha hora de morrer, porém ele gesticulou para a fotografia de Orlando em minha mão e falou: — Quero que você traga Orlando até aqui. — O quê?! — É isso mesmo que você ouviu. Vai atrair esse sujeito até a mim. — Sem chance, não vou fazer isso. – fitei-o desconfiada – Você pretende matá-lo também? — É sim, pretendo. Finalmente, eu pude compreender o motivo pelo qual ele me raptara: queria me usar como isca para fazer mais uma vítima de sua crueldade. Eu só não compreendia porque ele precisa de mim, se já matara tantas pessoas sozinho, sem ajuda de alguém. — Não vou fazer isso, pode esquecer. Ele aproximou-se de mim, lentamente, fitando-me ameaçadoramente. — Você não tem escolha. — ele disse. — Vai fazer o que, se eu não te obedecer? – eu perguntei, incentivando-o a continuar. Ele agarrou meu pescoço com sua mão, fazendo uma leve pressão. — Se não fizer o que estou dizendo, vou até Serra Azul acabar com a vida do seu pai Adalcino, sua mãe Lucilene, e seus irmãos Adriana e Adailson. – a voz dele era ligeiramente rouca e extremamente ameaçadora. Ao ouvi-lo pronunciar os nomes dos meus familiares, os quais eu não via e com os quais não falava desde que deixara Serra Azul, há três anos atrás, não consegui conter mais o pranto e uma torrente de lágrimas começou a escorreu dos meus olhos, deslizando pela minha face, molhando a mão firme de Daniel em torno do meu pescoço. — Por que está fazendo isso comigo? – perguntei, entre soluços. — O que foi que eu fiz pra você? Neste momento, ele desvencilhou sua mão do meu pescoço, afastando-se um metro, dando-me as costas. — Não foi você Luana, você não fez nada. — ele falou, em seguida, se virou novamente para mim, seus olhos brilhando de fúria e prosseguiu: – Foram eles que fizeram, todos eles. Inclusive seu pai. — Fizeram o quê? — perguntei, confusa, esforçando-me por conter o pranto. Ele hesitou por um momento, como se as palavras lhe fugissem à mente. Seus olhos se perderam no infinito, como se relembrasse algo há muito esquecido. Lentamente, sua fisionomia se contraiu, a frieza de seus olhos cedendo lugar a uma angústia tão profunda que me fez querer afagálo. — Eu nasci no sertão nordestino, próximo a Serra Azul. — ele começou a falar. — Quando eu era ainda recém nascido, alguns moradores da cidade incendiaram a casa da minha família, durante a noite, enquanto dormíamos, matando a todos. – eu o ouvia atentamente, enquanto percebia a angústia se intensificar em seu olhar. – Minha verdadeira mãe, só conseguiu me salvar porque correu de dentro da casa, com seu corpo em chamas, antes de receber o tiro que a matou. Mas os assassinos não perceberam que ela me carregava em seus braços. — ele fez uma breve pausa, a angústia crescendo em seu olhar. – Meus pais adotivos faziam uma pesquisa numa aldeia indígena próxima dali e presenciaram todo o massacre. Tiveram medo de interferir, é claro, e acabarem sendo mortos também. Quando os malfeitores se afastaram, eles se aproximaram e me encontraram, ainda vivo, nos braços de minha mãe. Segundo eles, eu tinha queimaduras em cerca de 80% do meu corpo e estava quase morto, mas com muito tratamento, consegui sobreviver. Eles me levaram para o Paraná e me adotaram como filho legítimo. Jamais me revelaram a verdade, até alguns meses atrás, quando

comecei a ter pesadelos terríveis com o incêndio e com minha família. Quando comecei a investigar o caso, descobri os nomes dos cinco assassinos... Ele continuou falando, mas eu já não podia mais ouvi-lo, minha mente completamente absorta por lembranças do passado, as quais me causavam um terror intenso. Eu conhecia a estória que aquele homem me contava, mas de um outro ângulo. Cresci ouvindo, desde muito pequena, a estória sobre a família de terríveis lobisomens, que apavoravam os moradores da cidade de Serra Azul. Inúmeras vezes meu pai me colocara em seu colo e narrara com orgulho como, juntamente com seus amigos, havia destruído aquela família medonha, libertando toda a população de sua ameaçadora presença. Segundo o meu pai Adalcino, tratava-se de uma família composta por oito membros, todos originados de uma só geração, quatro homens e quatro mulheres, os quais viviam como marido e mulher, praticando incesto, o mais imperdoável dos pecados. Mesmo os mais jovens viviam assim. Nenhum deles frequentava a escola, moravam em um sítio, isolado, no sertão e raramente apareciam na cidade. Eram temidos por toda a população, pois, como castigo pelo incesto que cometiam, seus machos, considerados responsáveis por tal relação pecaminosa, transformavamse em terríveis lobisomens, os quais destruíam as plantações das roças, roubavam os animais e violentavam as mulheres da cidade. O sítio que eles habitavam, era localizado há cerca de dez quilômetros de distância de Serra Azul, em meio ao cerrado, onde não havia água e de onde jamais alguém se atrevera a se aproximar. Tal propriedade fora construída pouco antes da chegada de seus moradores, os quais ocuparam o local apenas durante cinco anos, antes de serem destruídos. Eu me lembrava, claramente dos autores da chacina, eram meu pai e seus amigos: Anselmo, Francisco, Gonçalo e Orlando. Tais constatações, provocaram uma nova onda de pavor em meu corpo. Os assassinatos cometidos por Daniel, tratavam-se de um caso de vingança e meu pai fazia parte da lista negra dele. Além disso, agora eu podia compreender também a crueldade com que suas vítimas foram mortas: “seus corpos eram encontrados estraçalhados, como se sofressem ataque de animal selvagem”, era o que dizia a notícia na página da internet; porque ele nadava tão depressa e atirava tão bem: não era um ser humano, mas uma criatura sobrenatural. A polícia jamais o apanharia, pois desconhecia tal realidade. — Será que você pode compreender meus motivos? – a voz do raptor penetrou minha mente, despertando-me para a realidade. Sem conseguir controlar o pavor que fazia todo o meu corpo tremer, incessantemente, afastei-me alguns passos dele e perguntei: — Você vai matar o meu pai também, não vai? — Isso só depende de você. — a voz dele era calma e ameaçadora, lembrava uma trombeta vinda do inferno, anunciando minha morte. — Se me ajudar com Orlando, posso poupar a vida do seu pai. — Por que precisa de mim para pegar Orlando, se você conseguiu matar os outros sozinho? — Porque ele leu as notícias e sabe que será o próximo. Ele se cercou de seguranças. Nem as forças armadas conseguiriam chegar perto dele. — E o que te faz pensar que eu conseguiria? —Você conseguirá. – ele se aproximou, fitando-me mais de perto, com um brilho assustadoramente gélido no olhar. – Da mesma forma que conseguiu me atrair para as águas daquele lago! O tremor em meu corpo se intensificava, gradualmente. — E porque poupar a vida de meu pai, e não a de Orlando? — Porque foi ele quem encabeçou a chacina, é o que mais merece morrer. — ele fez uma pausa

examinando a expressão do meu rosto. – Além do mais, eu tenho você. Vou fazer você pagar pelo que seu pai fez. Assim, já me sentirei vingado. Eu estava encurralada como ele queria. Se me recusasse a ajudá-lo com Orlando, mataria a mim e ao meu pai. Se fizesse o jogo dele salvaria meu pai, mas não a mim. Com certeza a vida de Adalcino faria mais falta que a minha, levaria sofrimento e dor à minha mãe e aos meus irmãos. Quanto à minha vida, não faria falta a ninguém. Podia apostar que ninguém sequer notaria minha ausência, nem mesmo Sérgio, provavelmente a essa altura ele já tinha outra mulher em seus braços. Além do mais, a morte seria apenas a extensão de minha existência, pois jamais me sentira realmente viva. Decidida a assinar minha sentença de morte, encarei o assassino diretamente nos olhos e disse: — E como vou saber que depois de te ajudar, você não vai mudar de idéia e matar o meu pai? Ele encarou-me de volta, com um brilho de triunfo expresso nos olhos verdes. — Você tem a minha palavra. — ele disse. — E você acha mesmo que a palavra de um assassino vale alguma coisa pra mim? O brilho que se passou pelo olhar dele era apavorantemente gélido. Acreditei que a própria morte tinha aquele olhar. — Você vai ter que confiar em mim, – ele disse. – não tem outra escolha. — Então seja feita a sua vontade. O que devo fazer? — Ótimo, — ele falou, depois foi até o porta-malas do carro de onde tirou um pequeno embrulho e entregou-o a mim. — Vista isso. Eu o fitei aturdida, precisava ganhar tempo, pensar em uma forma de mudar as coisas, de fugir de tal missão. — Você quer que eu vá buscá-lo... agora?! — Claro. — Mas já é noite, ele deve estar dormindo. — Não. Ele tem uma casa noturna, em Campos, deve estar acordado a essa hora. Sentindo-me mergulhada no mais profundo poço de angústia, abri o pacote em minhas mãos. Era um vestido de seda bege claro, muito curto e pequeno. Sem uma palavra, despi-me do meu próprio vestido, diante do olhar atento do raptor, e vesti a outra roupa, a qual se colava ao meu corpo, destacando, ainda mais, minhas curvas. Depois, ele me entregou um par de sandálias de saltos altos e finos, que me serviu perfeitamente. — Como você sabia o meu número? – perguntei, tentando ganhar tempo, pensar em como fugir do seu plano. — Isso não importa. — Daniel falou, secamente. — Você está linda. — A sua opinião não me interessa. — disse eu, com tristeza. Ele ergueu a mão para tocar meus cabelos. Eu me esquivei ao contato, dizendo: — Não me toque! — Tudo bem, não vou te tocar. Eu só queria ajeitar seu cabelo. Está muito despenteado, mas ainda assim está … Bem, você vai conseguir trazer Orlando aqui. Agora vá.— Enquanto eu tomava a direção do carro, ele entregou-me um pedaço de papel, com algumas palavras rabiscadas e disse: — Este é o endereço dele, fica no centro da cidade, não vai ser difícil encontrar. Vou esperar vocês aqui mesmo, até o dia clarear. — ele fez uma pausa, estudando a expressão dos meus olhos. — Se o dia

amanhecer e você não estiver de volta, vou direto para Serra Azul. Aquelas últimas palavras, causaram-me um calafrio na espinha. — E se ele não quiser vir comigo, o que eu faço? — Acredite, ele virá. Você vai dizer a ele que viu as notícias sobre mim, e precisa de proteção. — E se ele não me reconhecer? Já faz muito tempo que não o vejo. — É claro que ele vai te reconhecer. Agora vá e não volte aqui sem ele, OK? Vasculhei minha mente em busca de algo mais a dizer, tentando adiar o máximo possível a terrível tarefa de trazer um homem à morte, mas não consegui pensar em mais nada. Sob o olhar atento do assassino, liguei o carro e parti, em meio ao matagal, rumo à rodovia. Eu dirigia vagarosamente, o carro a 50 quilômetros por hora, precisava ganhar tempo, pensar em uma forma de fugir daquele homem tão perigoso, salvar a vida de Orlando e, principalmente, a vida de meu pai. Cogitei procurar a polícia, mas era arriscado demais, se eu não levasse Orlando ao local combinado, antes do raiar do dia, Daniel cumpriria sua ameaça e mataria meu pai. Talvez eu devesse verdadeiramente pedir a proteção de Orlando, me esconder atrás de seus seguranças, depois ligar para Serra Azul e avisar Adalcino do perigo que corria, mas eu conhecia meu pai, era um homem teimoso, cabeça dura, preferiria enfrentar a ira de Daniel a fugir covardemente e, se o enfrentasse, encontraria a morte, seria seu fim. Quando adentrei a cidade de campos, com o Audi em baixa velocidade, tinha chegado à conclusão de que não havia outra saída a não ser seguir as ordens do raptor, ou seja, sacrificar a minha vida e a de Orlando, para salvar a de meu pai. Tudo bem que Adalcino jamais me amara como filha, sempre me tratara com desprezo, mas ainda assim era meu pai, sangue do meu sangue. Não podia permitir que fosse assassinado, tão violentamente, como foram as demais vítimas de Daniel. Devido ao horário, a cidade se encontrava quase que completamente deserta e silenciosa. As pequenas casas de alvenaria, pintadas de branco, muito parecidas, enfileiravam-se ao longo da rua. Era uma típica cidade interiorana bem desenvolvida: ruas limpas, casas organizadas. Em alguns minutos, encontrei o endereço rabiscado por Daniel em um pedaço de papel. Tratava-se de uma danceteria, de cujo interior, partia o som de uma música agitada, muito alto. Ali em frente, haviam muitos carros e motos estacionados. Alguns grupos de adolescentes se espessavam por ali, enquanto dois seguranças parrudos, guardavam o portão de entrada. Olhei para os grupos de adolescentes e senti muita inveja deles, tão tranqüilos, sem preocupações que não a de se divertirem. Aquela era realmente a melhor fase da vida de um ser humano. Após estacionar o carro, com certa dificuldade, por causa da falta de espaço, dirigi-me para o portão de entrada, percebendo, ao me aproximar, que os dois seguranças estavam armados. Um deles deteve minha entrada, dizendo: — Ei, você tem que comprar o cartão de entrada, ali na bilheteria. — ele gesticulou para um pequeno buraco na parede. Porém eu não tinha dinheiro algum. Daniel não pensara naquela parte de seu brilhante plano. — Eu quero falar com Orlando. Diga a ele que é a Luana, filha de Adalcino, de Serra Azul quem está aqui. — eu precisei alterar o tom da minha voz, para sobrepô-la ao som da música dançante, que vinha do lado de dentro. Um dos seguranças, elegantemente vestido de paletó e gravata, sumiu-se para dentro do clube, retornando minutos depois. — Venha comigo. — disse ele e, sem esperar resposta, voltou para o interior da danceteria. Sem pensar duas vezes, eu o segui. Atravessamos, primeiramente um pequeno corredor,

que nos levou a um salão enorme, iluminado por jogos de luzes, das mais variadas cores, onde jovens dançavam freneticamente. O lugar era imenso, a um canto, havia um bar, empinhado de gente e nas laterais, haviam salas íntimas, guardadas por seguranças armados, os quais espalhavam-se por toda parte. Ali o som da música era ensurdecedor. Após o salão, atravessamos outro corredor, ainda mais estreito que o anterior, onde haviam algumas portas fechadas, uma das quais o segurança abriu, colocando-se ao lado, permitindo minha entrada. No interior da sala havia uma mesa, em torno da qual, muitas pessoas conversavam e bebiam uísque, descontraidamente, enquanto os seguranças armados os guardava. Havia um segurança para cada canto do cômodo. As paredes grossas, impediam o alcance do som estridente da música, deixando-a mais amena. Rapidamente, reconheci o rosto de Orlando, entre os demais. Ele estava muito mais velho que quando o vira pela última vez, há cerca de sete anos atrás, em nossa cidade natal. Tinha os cabelos tingidos de preto; era alto, magro e possuía um nariz tão grande que parecia que iria cair para a frente a qualquer momento. Usava uma camisa de seda azul marinho, com os botões abertos até o peito; calça social branca e sapatos da mesma cor. Seu visual me lembrava um dos bicheiros do Rio de Janeiro. Hesitantemente, aproximei-me dele, sentindo-me insegura demais para começar a tentar seduzi-lo, pois não tinha certeza se ele me reconheceria ou se acreditaria em minhas mentiras. No entanto, minha insegurança se dissipou, no instante em que ele ergueu seu olhar para mim e, com um largo sorriso nos lábios, disse: — Minha nossa! Então é você mesmo! Mal pude acreditar quando Ricardo falou!— ele ficou de pé – Veja só, se tornou uma mulher linda! Sem que ele esperasse, eu o abracei, roçando, maliciosamente, meu corpo no dele. Sua reação foi imediata, a virilidade masculina comprimindo-se contra meu ventre. Percebi que seria mais fácil do que eu imaginara. — Como vai você, Orlando? — perguntei, abrindo o sorriso mais largo que conseguia. — Sente-se. —- ele apontou para uma cadeira vazia à mesa. — Aceita uma bebida? — É claro. – falei, aproximando mais minha cadeira da dele, sentando-me. Ele serviu-me de um copo de uísque, em seguida apresentou-me aos seus amigos, um grupo de pessoas de meia idade, distintas e bem vestidas. — E então, o que a trás a Campos? — ele perguntou, após as apresentações. Nervosa, eu solvi um grande gole de uísque e disse: — Bem, eu recebi um telefonema de Isabel, a viúva de Francisco. — observei o rosto enrugado de Orlando se contrair de tensão. —Ela disse que seu marido foi assassinado por causa de algo que fez no passado, em Serra Azul e me alertou de que eu também estou em perigo, pois meu pai também está envolvido. Por isso estou aqui, para te pedir proteção. —solvi outro gole do uísque. — Não sei se você sabe, mas estou morando no Rio de Janeiro atualmente e não posso voltar para casa, meu pai me expulsou. — Entreguei o copo de uísque a Orlando, incentivando-o a beber. — É, eu entendo, na verdade todos nós estamos em perigo. Há um assassino à solta nos caçando, por causa de uma bobagem que fizemos no passado. —- ele falou, bebendo o uísque. Seguindo o plano, elaborado por Daniel, cruzei minhas pernas, sensualmente, permitindo que meus joelhos tocassem os dele. Depois falei: — Ah, é, eu estou sabendo, vocês deram fim a uma família mal assombrada. Meu pai me contou a estória toda. — E o que foi que ele disse? — Que vocês são uns heróis. — eu novamente entreguei o copo de uísque a ele, incentivando-o a se

embriagar, enquanto o fitava profundamente nos olhos, fingindo um grande interesse. Acendi um cigarro e, na terceira tragada, me senti ligeiramente tonta, pois fazia muito tempo que não fumava, desde que caíra nas garras de Daniel. A lembrança dele me causou um aperto no coração, inacreditavelmente, desejei que ele estivesse ali, no lugar de Orlando, roçando suas pernas nas minhas. Talvez eu tivesse um tipo de psicopatia masoquista, ainda desconhecida, era a única explicação lógica para o fato de eu desejar a presença de um assassino, meu próprio carrasco ao meu lado. À esta altura eu tinha toda a atenção de Orlando, que já acariciava minha perna com suas mãos enrugadas. Enquanto conversávamos, eu o fazia beber cada vez mais. Ele quis saber por que fui expulsa de casa, usei toda a minha imaginação para seduzi-lo, enquanto lhe desferia um turbilhão de mentiras a respeito de minha vida. Algumas horas depois, as quais me pareceram intermináveis, os amigos de Orlando começavam a se retirar, em pequenos grupos, até que restamos apenas nós dois à mesa, além dos seguranças ao nosso redor. Ele já estava como eu precisava: completamente bêbado. — Vamos sair daqui, gatinha... procurar um lugar mais sossegado. — a proposta partiu dele. Era o momento que eu esperava para dar o bote. — Claro, eu estava só esperando você convidar. — falei, roçando meu corpo no dele. – E para onde vamos? — Pra minha casa. — ele declarou, com a voz enrolada por causa do efeito do álcool. — Ah, não! — protestei, imitando o comportamento de uma criança mimada. — Não quero esses caras seguindo a gente. — gesticulei na direção dos seguranças, que entreolharam-se, desconfiados. Diferentemente do seu patrão, eles encontravam-se sóbrios e farejavam a minha armadilha, porém, eu tinha o controle total sobre o chefe deles agora. — Pede para eles irem embora, não consigo ficar à vontade com eles aqui. — Saiam todos. — Orlando ordenou, enquanto os homens permaneciam imóveis, nos observando.— Agora! — desta vez ele gritou e os seguranças saíram rapidamente. Quando o último segurança deixou o recinto, Orlando partiu para mim, como um sedento de água no deserto, começando a despir-me do vestido. Era o momento crucial do plano, quando eu poderia lograr êxito ou falhar. — Aqui não. – protestei, erguendo novamente o vestido. — E pra onde você quer ir, gatinha? Na verdade, meu desejo era de sair dali correndo, no entanto, precisava seguir com o plano, afinal a vida do meu pai dependia disso, estava nas minhas mãos, nesse momento, decidir se ele viveria ou morreria. — Quando estava vindo pra cá, vi um lugar maravilhoso na beira da pista. — eu falei, seguindo o plano. — Gostaria de te levar lá para conhecer. — ele abriu a boca, mas antes que pudesse dizer “não” eu o interrompi. — Sabe, eu sempre fantasiei fazer amor no meio do mato, não com qualquer homem, mas com alguém especial, como você... — segurei a mão dele e a coloquei entre minhas pernas. — É claro, meu bem, vou adorar realizar todas as sua fantasias, inclusive essa. — ele declarou, tentando tocar-me mais intimamente, quando eu o detive, colocando-me de pé. — Então vamos lá. Vamos no meu carro. Eu o observava colocar-se de pé, com dificuldades, por causa do efeito do álcool em seu sangue e constatei, mais uma vez, o quanto os homens eram tolos. Não conseguiam raciocinar

quando se encontravam diante da perspectiva de uma transa, com uma mulher desejável. Me perguntei como ele não era capaz de perceber que havia algo errado ali, que nenhuma mulher se entregaria a um homem, a quem não amava, em troca de nada. Talvez ele estivesse pensando que eu me oferecia a ele em troca de proteção, mas não, ele simplesmente não estava pensando em mais nada, que não no sexo, em saciar seu próprio prazer. Alguns minutos depois, eu dirigia pela rodovia, com Orlando ao meu lado, acariciando, insistentemente, minhas pernas, seguindo em direção ao local onde Daniel nos aguardava. Com muita insistência, consegui convencê-lo a sair pelos fundos da danceteria, por onde passamos desapercebidos aos seguranças. O plano havia dado certo, Orlando mordera a isca, tão facilmente, era realmente um idiota. No entanto, quanto mais nos aproximávamos do homem que daria fim à vida dele, mais meu coração se apertava no peito. Talvez eu devesse desistir de tudo, levá-lo de volta para Campos, ainda não era tarde demais, ainda podia salvar sua vida. Por outro lado, não podia me esquecer de Adalcino, meu pai. Era Orlando ou ele. Entre os dois eu escolhia aquele que me trouxera ao mundo. Sacrificaria a vida do outro para ele viver. Em meio à escuridão daquela madrugada fria, aumentei a velocidade do carro, pondo-o a 100 quilômetros por hora, para que tudo terminasse o mais depressa possível. Em poucos minutos Orlando estaria morto e eu seria uma assassina. Chegando ao local combinado, parei o Audi em meio à mata, onde a escuridão era ainda mais negra e saí, seguida por Orlando. Percorri meu olhar ao redor, mas a penumbra me impedia de avistar Daniel. De repente, Orlando me estreitou em seus braços finos, forçando-me a deitar sobre o capô do carro, enquanto se inclinava por cima de mim, percorrendo seus lábios úmidos através da pele do meu pescoço. — Ah, Luana, não posso mais esperar, quero você agora. — ele sussurrou, tentando, insistentemente, alcançar os meus lábios com os seus, enquanto eu desviava meu rosto de suas investidas, relutantemente. Ele começou a acariciar o meu corpo, por sob o tecido do vestido, ao passo em que eu me sentia invadida por uma repulsa já conhecida, porém, sem o efeito da cocaína em meu sangue, esta me era ainda pior. Intimamente, eu suplicava para que ele parasse de me tocar, a repulsa me era insuportável. — Tira logo esse vestido, gostosa, o que você está esperando? — Orlando falou, com respiração ofegante, tentando arrancar-me a roupa. — Como eu já disse, não suporto esperar nem mais um minuto... — Acho que vai ter que esperar mais um pouco. — A voz calma e ao mesmo tempo firme, partiu da escuridão. Vi o brilho do cano da arma encostado no ouvido de Orlando, imobilizando-o de tensão. — O que está acontecendo aqui!? — Orlando gritou, virando-se para seu matador, o cano da arma agora contra sua testa. — Entre no carro, Luana. — Daniel ordenou, sem desviar seu olhar do rosto de Orlando. Levantei-me de sobre o capô do carro, erguendo as alças do meu vestido, quando vi o rosto aflito de Orlando, deslocando seu olhar do meu rosto para o de Daniel, do de Daniel para o meu. — Você armou essa cilada pra mim sua vaca?! — ele gritou, encarando-me com os olhos faiscando de raiva.

— Cala essa boca ! — desta vez foi Daniel quem gritou, com os olhos cravados em sua vítima. — Já te mandei entrar no carro Luana! Olhei mais uma vez para Orlando, certamente pela última vez e antes de me afastar murmurei: — Desculpe. – Então, entrei no carro e me encolhi sobre o banco traseiro, espalmando minhas mãos sobre os meus ouvidos, como se assim não pudesse ouvir o tiro que tiraria a vida de Orlando. Logo tudo estaria acabado. Um longo momento se passou e nada aconteceu, não ouvi o estampido do tiro. Afastei minhas mãos dos ouvidos e, ao longe ouvi os gritos de súplica de Orlando. Eram gritos terríveis, como se ele estivesse sendo brutalmente torturado. Relembrei as manchetes do noticiário, onde dizia que as vítimas de Daniel eram encontradas com seus corpos dilacerados, estraçalhados em pedaços e compreendi o que se passava com Orlando, ele sofria o ataque de um ser inumano, descendente de uma família de lobisomens. Constatei que eu era culpada pelo seu terrível sofrimento e, subitamente, deixei as lágrimas banharem meu rosto, num pranto de pura angústia e remorso. Eu não poderia ter permitido que isso acontecesse, deveria ter lutado contra aquele assassino cruel, ao invés de cumprir suas ordens. Os gritos de Orlando se prolongaram por mais algum tempo, ecoando pela floresta, até que se silenciaram, repentinamente. Estava tudo acabado, ele estava morto e eu nada fizera para impedir. Agora seria a minha vez. Outro longo momento se passou, em que o silêncio era completo e estranho. De repente, a porta do carro se abriu e alguém entrou, sentou-se ao volante e deu a partida. Apesar da claridade do dia, que começava a surgir, não consegui identificar de quem se tratava. Estava sem camisa e tinha os ombros salpicados de sangue e de suor, mas não era Daniel, pois ele tinha os cabelos louros dourados, não cinzentos e densos como os daquele estranho. Por uma fração de segundos, ele olhou para trás, fitando-me fixamente. Pelos seus olhos, verdes e frios como gelo, eu pude reconhecê-lo, era Daniel, embora não se parecesse com ele. Tinha o rosto peludo, contorcido por uma fúria bestial, presas enormes saltavam de sua boca, parecia um monstro saído de um filme de terror. Os cabelos densos, cinzentos, emaranhados, também não eram dele. Talvez eu estivesse vendo uma alucinação, causada pelo choque em minha mente. Enquanto o estranho Daniel dirigia o carro, por entre o matagal, provavelmente a procura de outro local, para repetir comigo o mesmo que fizera a Orlando, fechei os meus olhos com força e agarrei-me ao meu próprio corpo, notando o quanto a temperatura caíra, estava muito frio, anormalmente frio. Imóvel sobre o banco traseiro do carro, minha mente repassava, repetidamente, os ecos dos gritos desesperados de Orlando. Jamais me perdoaria por ter contribuído com tamanha crueldade. Em breve eu conheceria a tortura pela qual ele e todas as demais vítimas de Daniel passaram, logo eu estaria morta, e toda a minha culpa se perderia... ou partiria comigo.

CAPÍTULO II

Transformação

Eu havia perdido a noção de quanto tempo me encontrava deitada no banco traseiro do carro, meus olhos fechados, perdida em meus pensamentos, esperando a morte prometida. O frio era tão intenso que fazia todo o meu corpo tremer descontroladamente, impedindo-me de ficar imóvel. Abri os meus olhos e tudo o que consegui ver foram imagens turvas, seguida de sons fantasmagóricos. Talvez eu já estivesse morta e não sabia. Era comum a pessoa morrer e demorar algum tempo para se dar conta disso, como no filme Sexto Sentido. Eu comecei a piscar meus olhos, repetidamente, tentando assimilar a realidade na qual me encontrava, mas nada fazia sentido para mim, via apenas imagens dançando à minha frente, do que parecia um céu se movimentando. Mas isso era impossível, pois céu não se movimentava. Subitamente, uma voz grave partiu de minha frente, do alto de mim, mas não consegui distinguir o que ela dizia, pareciam apenas sílabas desconexas. Com muito esforço, ergui meu olhar na direção da voz e, como num sonho indefinível, daqueles que não se consegue lembrar quando se acorda, vi o rosto de Daniel, voltado na minha direção, ao mesmo tempo em que ele dirigia o carro. Sua boca se movia, como se me dissesse algo, mas as palavras não alcançavam meus ouvidos, apenas os sons fantasmagóricos indefiníveis. Tentei percorrer meu olhar ao redor, em busca da criatura que antes dirigia o carro, mas me sentia cansada demais para concretizar qualquer movimento, então fechei os meus olhos novamente, me entregando ao persistente cansaço. Me ocorreu que eu deveria perguntar ao raptor para onde estávamos indo, ou porque ainda não tirara minha vida, como prometera fazer, mas eu me sentia fraca demais para pronunciar qualquer palavra. Lentamente, entreguei-me à deliciosa e reconfortante escuridão que parecia me engolir, esperando, sinceramente, nunca mais poder abrir os meus olhos. De repente eu não estava mais só, encontrava-me no sertão nordestino, a terra onde nasci e cresci. Percorri os meus olhos ao redor, através das infinitas chapadas, a procura do caminho de casa, mas nada avistei a não ser um gigantesco lobo cinzento que corria ameaçadoramente em minha direção, com seus enormes caninos expostos, rosnando furiosamente. Ele queria me matar, fazer meu corpo em pedaços, como os corpos dos homens que Daniel matara. Meus olhos insistentes procuraram alguém que pudesse me socorrer daquele lobo terrível, mas não havia ninguém. Ainda pensei em correr e salvar minha vida, mas era tarde demais, o lobo estava muito próximo. Lentamente, despertei do meu pesadelo. Ao abrir os meus olhos avistei, ao longe, as copas das árvores balançando ao sabor do vento, emitindo um som peculiar, o único que eu podia ouvir. Não havia mais ruído algum por perto, tudo estava calmo e tranquilo. Encontrava-me confortavelmente deitada sobre uma cama macia, limpa, sob um edredom cheiroso que me aquecia. Os calafrios e o cansaço, já não existiam mais em meu corpo, tudo estava bem. Agora eu estava em casa e as folhagens das árvores não passavam de um sonho tranquilo. Fechei meus olhos novamente, apertando-os com força, certa de que veria o teto do meu apartamento quando os abrisse. No entanto, quando tornei a abri-los, as árvores ainda estavam lá, obrigando-me a aceitar que eu ainda me

encontrava na mata, longe de casa. Percorri meu olhar ao redor e, como já esperava, avistei o raptor a uma certa distância, sentado sobre a toalha de praia, manuseando seu nootebook, mostrando-se completamente alheio à minha presença. Percebi que eu já não mais usava o vestido bege de antes, mas um confortável conjunto de moletom lilás e um par de meias de lã, que aqueciam meus pés. Me espantei ao ver que havia uma agulha presa à uma veia de minha mão, a qual se ligava, através de um estreito tubo transparente, a um soro amarelado, preso a um suporte igual aos encontrados nos hospitais. A cama, na qual há pouco eu acreditara me encontrar, se tratava de um colchão de solteiro, pousado ao chão. Tentei sentar-me sobre o colchão, mas uma leve tontura me fez deitar novamente. Ao perceber meu movimento, o raptor veio rapidamente em minha direção. Ele parecia diferente, tinha a barba bem feita, os cabelos lavados, bem penteados e usava roupas limpas: uma camiseta de malha verde, da cor dos seus olhos; jeans e tênis surrados, porém limpos. Um aroma de loção pós barba emanava do seu corpo. — E aí, como está se sentindo? — ele perguntou, aproximando-se de mim, com um largo sorriso nos lábios. Sentou-se na beirada do colchão. Senti o calor do corpo dele, tão próximo, que eu podia ouvir sua respiração e meu coração bateu descompassado no peito. Desejei poder me afastar, evitar os sentimentos que a presença dele me despertava. — Sei lá como estou me sentindo. —- falei — O que aconteceu? — Você teve o princípio de um colapso nervoso. – Ele respondeu.— Teve uma febre muito alta. Precisei de muito esforço para trazê-la de volta. — Colapso nervoso? — perguntei, apreensiva. – Então quer dizer que não estou morta? — Não. — disse ele sorrindo. – Você vai ficar bem. Já está medicada. — A é? E quem foi que me medicou? — Eu mesmo. — Como assim? Você não é médico. — Sou quase. Se esquece que cursei três anos da faculdade de Medicina? Relembrei a reportagem sobre ele, a qual dizia que abandonara tudo no terceiro ano da faculdade de medicina. Olhei o soro em meu braço, preso a um suporte de metal e, curiosa, perguntei: — Onde conseguiu essa parafernália toda? — Comprei, em Vitória. Eu o fitei perplexa e perguntei: — Vitória...? Do Espírito Santo?! — É sim, nós estamos a quarenta quilômetros de distância de Vitória. Estive lá esta manhã para comprar as coisas para você. — Esta manhã?! Que horas são afinal? — Duas horas da tarde. Você dormiu por oito horas seguidas. — Que foi? Me deu outro sossega leão? — Eu me sentia cada vez mais confusa. Não conseguia compreender porque ele me tratava tão bem, cuidara de minha saúde, quando, na verdade, queria me ver morta. — Não. Você só dormiu muito porque estava muito doente. Mas logo estará se sentindo melhor. Ele estendeu sua mão para tocar o meu rosto. Virei a cabeça para o outro lado, evitando o

contato. Minha mente se recusava a apagar a lembrança dos gritos de Orlando, antes de ser assassinado. — Não toque em mim. — falei, entredentes. — Desculpe só queria verificar se ainda está com febre. – ele falou, recuando sua mão. Eu o fitei diretamente nos olhos, a fúria crescendo dentro de mim. Graças a ele eu havia me tornado uma assassina. Me tornara cúmplice de sua vingança cruel. — Nunca mais encoste suas mãos em mim! – ordenei, ainda pensando em Orlando. Ele afastou-se num gesto muito rápido, como se acabasse de receber um violento golpe físico. — Não entendo porque tanto ódio, Luana. Não sei por que você se importa tanto com o Orlando. Ele quase violentou você, já se esqueceu disso? Eu vi a sua cara quando ele estava te agarrando. Eu te fiz um favor em tirar ele de cima de você. A raiva crescia dentro de mim, descontroladamente. Daniel era uma pessoa tão fria que, em sua concepção, tirar a vida de uma pessoa tratava-se de algo muito simples, sem a menor importância, coisa de rotina. — Você não entende o valor de uma vida humana. — falei. — Tira a vida de uma pessoa com a mesma facilidade de quem come um sanduíche. Ele afastou-se um pouco mais, sua fisionomia se contraindo de tensão. — Eu não tirei a vida de nenhum inocente, Luana. As únicas vítimas nessa estória foram meus familiares. Todos aqueles que matei eram piores do que eu, mereciam ser castigados pelo que fizeram. O que estou fazendo é apenas prevalecendo a justiça. — Justiça?! – eu o fitei aturdida. — O que você está fazendo não é justiça, trata-se de vingança, o mais baixo e vil dos sentimentos. — Pois que seja. Mas ainda assim não me sinto culpado pelo que fiz, todos eles mereciam morrer, eram criminosos. Matar minha família não foi o único crime deles, quando os investiguei descobri muitas outras coisas. Como, por exemplo, o fato de terem fraudado os cofres públicos de Serra Azul, antes de fugirem de lá. — Isso não é verdade. — Mas é claro que é. Ou que motivo você acha que eles tiveram para deixar a cidade? Como você acha que eles se tornaram grandes homens de negócios, logo que saíram de Serra Azul? — ele fez uma pausa, seu olhar brilhando de ódio. — Seu querido Orlando, esse que você se sente tão culpada por ter me ajudado a matar, assassinou uma garota de programa, pouco antes de deixar Serra Azul. Ou você acha que alguém deixaria de ser delegado assim de uma hora pra outra, sem um motivo muito grave? Eu pensei em abrir minha boca para desmenti-lo, no entanto, de súbito, relembrei o assassinato, ocorrido em Serra Azul, de uma menina, de quatorze anos de idade, que se prostituía em troca de alimentação, já que não possuía família. Ela fora encontrada morta, estuprada e estrangulada no território dos índios Nirvana, como se alguém tentasse culpá-los pelo crime. Embora a polícia de São Luís tenha sido designada para investigar o caso, este jamais fora solucionado e ocorrera pouco tempo antes de Orlando deixar a cidade, abdicando, repentinamente, do cargo de delegado. Houveram, na época, alguns boatos a respeito da suposta culpa dele, mas não passaram de suposições, ninguém jamais conseguira provar nada. — Não foi provada a culpa dele. — eu falei, desacreditando em minhas próprias palavras, pois havia uma possibilidade, quase uma certeza, de que Orlando assassinara aquela menina. Eu podia ter

essa comprovação na forma agressiva como ele me tratara, quando tentava despir-me de minhas roupas, pouco antes de ser morto. — Mas é claro que foi ele. Eu investiguei o caso. Tive essa confirmação. Não passava de um bandido, como todos os outros. — Daniel falou. Embora já não mais me considerasse tão culpada pela morte de Orlando, senti uma pontada no coração ao perceber que ele se referia também ao meu pai, quando mencionava o termo bandido. — Pois se você descobriu a verdade, deveria ter procurado a polícia, ao invés de matá-lo.— eu o desafiava, recusando-me a aceitar a realidade. — Na verdade, você está procurando uma justificativa para seus crimes, mas não há, Daniel. Nada pode justifica o que você fez. Nada! O ódio em seu olhar deu lugar a uma angústia profunda, quando ele disse: — Luana, se ponha um pouco no meu lugar. Imagine se você descobrisse, de repente, que toda a sua família foi assassinada, enquanto dormia, sem motivo algum... — ele se interrompeu, observando a expressão que surgia em meus olhos. —— Você provavelmente tomaria as mesmas atitudes que eu, qualquer um faria o mesmo. Lembra-se de que há poucas horas você abriu mão de sua vida pela de seu pai? Por um breve instante, imaginei-me no lugar dele, o que sentiria se meus familiares fossem assassinados. Provavelmente eu agiria como ele. Naquele instante, aconteceu o que parecia impossível: eu consegui compreendê-lo, entender sua dor e sua revolta. Qualquer pessoa, em tais circunstâncias, sentiria o mesmo. Por outro lado, a família dele não fora destruída sem um motivo, havia um, o qual me fazia estremecer ao recordar, pois era terrível demais. — Sua família não foi morta... sem um motivo. — falei, hesitantemente. Ele fitou-me em silêncio por um longo momento, seus olhos expressando a mais nítida incompreensão. Então, vagarosamente, seus lábios se abriram em um sorriso. — Não vai me dizer que você acredita nessa estória absurda de lobisomem? – ele falou, com ar de deboche. — E não é verdade? — É claro que não! Aquela gente precisava de um pretexto para nos destruir! Não encontraram nenhum, então resolveram inventar essa estória absurda. — Mas eu vi você transformado... — hesitei antes de continuar a frase. — , quando terminou de matar Orlando... — Não Luana, você não viu. Você provavelmente teve uma alucinação por causa da febre, isso é normal no estado em que você estava . Minha mente digeria, lentamente, cada uma das palavras dele, buscando a verdadeira compreensão. Fazia sentido a suposição de que o povo de Serra Azul inventara uma lenda sobre a família dele, pois como não haviam muitas opções de divertimento na cidade, o passatempo preferido dos moradores era falar da vida alheia. Quando não tinham uma boa fofoca, inventavam uma. Provavelmente, fora o que acontecera. Além do mais era mais fácil acreditar nisso que na existência de lobisomens. Apesar de tudo, de todos os seus motivos e de toda a sua dor, era inaceitável o que ele fizera, a crueldade com que assassinara suas vítimas, estraçalhando seus corpos, como um animal selvagem. Era inconcebível, terrível demais para ser relevado. Provavelmente o corpo de Orlando fora encontrado no mesmo estado, eu ouvira os gritos de súplica dele, fora brutalmente torturado. Tal obra não podia partir de um ser humano, mas de um verdadeiro monstro. — Mas agora acabou, Luana.— Daniel falou, como se lesse meus pensamentos. — Minha vingança

está terminada. Encerrou. — Ele voltou a se sentar na beirada do colchão, bem próximo a mim, fitando-me profundamente, com expressão de ardor no olhar.— Não vou mais atrás do seu pai, pode considerar isso como um perdão. Não por ele, mas por você. Pensei em todos os acontecimentos dos últimos dias, desde o momento em que ele me sequestrara em Copacabana, suas ameaças, como me coagira a seduzir Orlando e guiá-lo até a morte. Cheguei à conclusão de que não podia confiar em suas palavras, era um ser baixo e maligno, indigno de qualquer manifestação de afeto. — Não, isso não é perdão, você apenas está cumprindo o trato que fizemos, quando me obrigou a trazer Orlando até você. Você é incapaz de ter um sentimento tão digno como o perdão.— fiz um esforço para conter as lágrimas que ameaçavam aflorar em meus olhos. — E você, é capaz de perdoar? Neste momento, não consegui sustentar mais seu olhar, sem saber o que responder. Não sabia se seria capaz de perdoar, assim como ele não fora, mas tinha quase certeza de que não. Tentando mudar de assunto, voltei a fitá-lo e falei: — Por que você me trouxe de volta? Por que cuidou de mim se na verdade pretende me matar? Eu não estou te entendendo. — Ah, Luana, eu não vou matar você... — Ah é?! — eu o interrompi. — E quando decidiu isso? Ontem? Há um minuto? — Eu decidi isso no momento em que pus meus olhos em você, há exatamente três dias atrás. — ele fez uma pausa, como se escolhesse as palavras. — Luana... durante toda a minha vida, jamais consegui sentir nada. Tive muitas namoradas, confesso, mas jamais amei alguém antes. Porém, quando vi você doente, tão próxima da morte, fiquei desesperado, sem o chão sob os meus pés. Jamais havia me sentido assim antes.— as palavras dele eram um sussurro rouco.— Sempre senti um vazio dentro de mim, como se me faltasse algo, embora eu tivesse tudo o que uma pessoa pode querer. Agora percebo que era você que me faltava.— Ele fitou-me com um profundo ardor expressado em seus olhos verdes. — Eu estou apaixonado por você, Luana. Pela primeira vez em minha vida, sou capaz de amar. Você entende isso? Enquanto ele falava, eu sentia meu coração acelerar dentro do peito, como se fosse me sufocar, minhas faces ardiam, de pura emoção. Poderia fazer minhas as palavras dele, pois também sempre me sentira mergulhada em um vazio constante, que fazia minha vida parecer completamente sem sentido. Jamais fora capaz de amar verdadeiramente, ou sentir algo parecido como o que sentia por ele agora. Por mais que eu tentasse evitar, guardava em minhas entranhas um desejo ardente por Daniel, o qual me fazia tremer cada vez que ele me tocava, me tirava o fôlego cada vez que ele se aproximava. Era um sentimento novo e inesperado. Mas não podia ceder a tal, pois os seus atos contradiziam-se a todos os meus princípios. Eu era incapaz de entregar meu amor a um homem que tirara a vida de tantas pessoas. Quantas famílias de policias sofreram com suas perdas? Quantas crianças ficaram sem pai e esposas sem marido? Quantas vidas Daniel destruíra com sua vingança cruel? Não foram apenas as vidas dos assassinos de sua família, muitos policiais foram mortos durante suas fugas, estava escrito nas notícias dos jornais. Por mais que todas as fibras do meu corpo me ordenassem que me atirasse em seus braços, eu não podia relevar o que ele fizera, pois era grave demais. — Bem, se decidiu que não vai mais me matar, pode me deixar ir embora. —- eu falei, forçando minhas palavras a assumirem um tom firme, desviando meu olhar para as árvores, esforçando-me para não deixar transparecer o que realmente sentia. — Você já conseguiu o que queria de mim, pode

me libertar. Neste momento, vi todo o corpo dele se estremecer, como se recebesse uma descarga elétrica. Observou-me em silêncio por um longo tempo, então disse: — Tudo bem, você está livre. Assim que melhorar pode voltar para sua vida, bem longe de mim. Mas enquanto estiver doente, vou cuidar de você. É o mínimo que posso fazer para me redimir com você. — ele partiu na direção do carro, não mais o Audi, com o qual fora até Campos atrás de Orlando, mas agora um Ford Fiesta Sedan, cinza, semi novo. Por mais incrível que pudesse parecer, a perspectiva da liberdade, tão próxima, já não mais me parecia tão sedutora, pelo contrário: a idéia de deixar Daniel, de nunca mais voltar a vê-lo, despertava uma inexplicável angústia em meu coração. Talvez eu estivesse apaixonada por ele, mas jamais admitiria isso. Quando me sentisse saudável o bastante para ficar de pé, voltaria para minha vida e em pouco tempo o esqueceria. Em um mês já nem mais me lembraria do seu rosto e tudo voltaria ao normal. Embora em meu íntimo eu desconfiasse de que ele estava blefando, de que não me deixaria partir tão facilmente, já que eu sabia demais sobre seus crimes, podendo prejudicá-lo, daria um jeito de escapar, esperaria ele adormecer e fugiria na calada da noite. Desta vez não cometeria mais a tolice de tentar levar o carro, como fizera em minha última tentativa de fuga, sairia na ponta dos pés e me esconderia na mata, até encontrar a oportunidade de seguir para a rodovia, onde, facilmente pegaria uma carona e voltaria para o Rio. Era tudo uma questão de tempo, por enquanto me mostraria muito frágil, mais do que realmente estava. Daniel voltou do carro com um marmitex nas mãos, o delicioso aroma da comida alcançou minhas narinas, fazendo-me salivar. Há muito tempo não sentia fome, como naquele momento, o efeito da cocaína não me permitira antes. — Huuum. O que é isso? — perguntei, com água na boca. — É uma sopa de legumes que comprei pra você. — ele entregou-me a marmita, sentando-se ao meu lado, na beirada do colchão, sua proximidade impedindo-me de raciocinar claramente.— Ainda está quentinha. Tentei sentar-me sobre o colchão, mas não consegui, pois me sentia muito fraca. Ao observar-me, Daniel veio ao meu auxílio, ajudando-me a erguer o meu corpo. O toque das mãos dele em meu braço, despertou-me um súbita onda de calor. Enquanto eu saboreava a deliciosa sopa de legumes, ele me observa em silêncio, estudando minuciosamente cada um dos meus movimentos. — Você não vai comer? — perguntei, evitando fitá-lo no rosto. — Eu já comi. —- ele falou, depois continuou me observando, como se nunca vira um ser humano comendo antes, deixando-me desconcertada. — E então, o que pretende fazer agora que terminou sua vingança? — perguntei, num impulso, arrependendo-me pela intromissão, no momento em que fechei a boca. — Sei lá, eu não planejei nada antes começar toda essa loucura. — ele soltou um longo suspiro. — Acho que vou arranjar alguns documentos falsos e sair do país. — Onde se consegue documentos falsos? — praguejei a mim mesma por não conseguir ficar de boca fechada. — Em tantos lugares. Meu pai, o adotivo, me enviou um e-mail há algumas horas, com o endereço de um falsificador, o mais próximo de onde estou, em Vitória. — Que loucura! — O que? — Seu pai apoiar o que você faz.

— Ele não apóia, apenas está tentando salvar o que restou de mim. Percebi uma tristeza profunda nas palavras dele. — E então, como está se sentindo depois de concluir sua vingança? – me praguejei intimamente outra vez, por não conseguir manter minha boca fechada. — Sei lá. Não sinto nada. É como se estivesse vazio por dentro... — Você acha que valeu a pena? – droga! — Acho que sim, pois tudo isso me levou a você... a única coisa boa que aconteceu em minha vida. Eu não mais consegui encará-lo, temendo ceder ao impulso de atirar-me em seus braços. Continuei a refeição em silêncio, até a última colherada da sopa, quando Daniel recolheu o vasilhame das minhas mão e me trouxe um copo de suco de laranja. Quando o soro em meu braço se esvaziou, ele trocou por outro, dizendo que eu precisava da vitamina, ali contida, para recuperar minhas forças. Enquanto a tarde avançava, lentamente, voltamos a conversar, sobre os mais diversos assuntos, eu deitada sobre o colchão e ele sentado ao meu lado, próximo o suficiente para me impedir de pensar em qualquer outra coisa que não no calor do seu corpo. Em meu íntimo, desejava, ardentemente, que ele se deitasse comigo e aquecesse meu corpo com o seu, mas seria uma proximidade perigosamente irresistível. Durante nossa conversa, descobri que havia uma imensa afinidade entre nós, a qual nos deixava ainda mais próximos. Sem o desejo de vingança queimando em suas entranhas, enfurecendoo, ele era uma pessoa ainda mais cativante, carismático, inteligente, carinhoso, e, visivelmente, triste. Falou-me sobre sua vida antes de descobrir que era filho adotivo, sobre o curso de medicina e os planos que fizera para o seu futuro, revelando-me que planejara se casar logo que terminasse a faculdade e ter muitos filhos, no mínimo cinco. Quando me perguntou sobre os meus planos para meu futuro, eu não soube o que responder, pois há muito havia desistido dos meus sonhos, do meu desejo de comprar meu apartamento, arranjar um emprego de verdade e conquistar minha independência. Disse-lhe apenas que sonhava em encontrar meu verdadeiro amor, como nos contos de fadas. Não precisava ser um príncipe, como nas estórias, bastava que estivéssemos perdidamente apaixonados um pelo outro. Mas eu estava mentindo, pois já havia encontrado o meu verdadeiro amor, ele estava bem ali, diante de mim, embora jamais fosse viver esse amor, era uma estória com o final triste, a nossa estória, impossibilitada de dar certo. Falamos também sobre nosso passado, nossas famílias e nossos amigos. É claro que eu não tinha nenhum amigo, como ele afirmava também não ter, afirmou ter apenas muitas namoradas, era muito popular entre as mulheres, principalmente entre as garotas da faculdade, do que eu não duvidava nem um pouco. Por fim, descobrimos que tínhamos muito em comum, embora ele tivesse crescido no seio de uma família rica, convivendo entre a alta sociedade paranaense, desfrutando de todas as regalias e prazeres que o dinheiro podia oferecer, enquanto que eu, havia crescido trabalhando na roça, cavalgando livremente pelas chapadas do sertão nordestino. Apesar de todas essas diferenças, em nosso íntimo, em nossa maneira de ver a vida, éramos, indiscutivelmente, parecidos. Se não o tivesse conhecido em tais circunstâncias, poderia acreditar, piamente, que havia encontrado o homem da minha vida, mas ele não poderia ocupar essa vaga, pois eu era incapaz de perdoá-lo. A noite caiu e continuávamos conversando, alheios a tudo ao nosso redor. Era como se nos conhecêssemos há muito tempo e apenas estivéssemos afastados, muitos anos sem nos encontrarmos. Por volta das oito horas da noite, quando eu já me sentia bem mais forte, caminhando para a completa

recuperação, Daniel me serviu uma canja de galinha, a qual aquecera em um pequeno fogareiro que carregava no carro. Juntos, fizemos a refeição, ele comendo, com muito apetite, alguns sanduíches de hambúrgueres com refrigerante. — Para um estudante de medicina, até que você não cuida muito de sua alimentação. — eu falei, ao observá-lo dar uma grande mordida no sanduíche. — Eu preciso de calorias para me vingar de anos comendo as saladas de minha mãe. Apenas uma pequena palavra contida em sua frase, foi o suficiente, para me fazer relembrar, repentinamente, a realidade na qual me encontrava, voltando meus pensamentos para os gritos de Orlando, para as notícias da internet, ou seja, para a crueldade de Daniel. — O que foi? — Ele perguntou, observando minha reação. — Nada. — respondi, evitando seu olhar. Ele refletiu em silêncio por um momento, então falou: — Ah, me desculpe, Luana. É que a sua companhia me é tão agradável que esqueço da realidade. —Ele fez uma pausa, buscando os meus olhos com os seus. — Se eu tivesse conhecido você um pouco antes de dar início a essa loucura, eu jamais teria feito o que fiz, Luana. Deus sabe o quanto eu gostaria de poder voltar atrás e desfazer tudo, apenas para ter uma chance de... de... merecer o seu amor. Mais uma vez, não consegui sustentar o olhar dele. Cabisbaixa, terminei rapidamente minha refeição, bebi um copo de refrigerante e deitei-me de lado no colchão, dando-lhe as costas. Fechei os meus olhos, tentando, desesperadamente adormecer, para só assim conseguir ignorar os meus sentimentos, mas o sono não vinha, pois minha mente recusava-se a parar de trabalhar, pensando na proximidade de Daniel e ao mesmo tempo nos assassinatos cometidos por ele. Este pensamento me impedia de concretizar aquele. Ele se encontrava deitado sobre a toalha de praia, ao lado do meu colchão, movendo-se de quando em quando, como se também não conseguisse dormir. Apesar de estar a quase um metro de distância, eu tinha a impressão de que ouvia as batidas descompassadas de seu coração, o som de sua respiração. Jamais, em toda a minha vida, desejara algo a tal ponto, como desejava tocá-lo e ser tocada por ele, naquele momento. Em meu interior, eu travava uma batalha contra meus sentimentos, obrigando-me a reprimi-los, em nome dos meus princípios e da consideração pela própria lei de Deus, aquele que nos dera a vida, tornando-se, portanto, o único que poderia tirá-la. Mas Daniel violara essa lei, condenando, irremediavelmente, sua alma. Eu não podia render-me aos meus sentimentos por ele, pois assim estaria consentindo com seus atos, estaria fazendo parte do seu pecado, de sua crueldade... de sua impiedosa crueldade. Á medida em que a noite avançava o frio se intensificava. Por fim Daniel parara de se mover sobre a toalha, certamente pegara no sono. Virei-me para observá-lo e verifiquei que dormia profundamente, sobre a toalha de praia, agarrando-se ao seu próprio corpo, desprovido de lençol. Contemplei seu rosto sereno, completamente relaxado, os olhos fechados, e, mesmo sob a negra penumbra, constatei, mais uma vez, que era o rosto mais bonito que já vira, exprimia um magnetismo tão irresistível que me fazia querer tocá-lo. Mas eu não podia violar todos os meus princípios, ir contra tudo aquilo em que acreditava. Já estava decidida: iria fugir enquanto ele dormia. Fugir dele e, principalmente de mim mesma, dos meus sentimentos, antes que me rendesse a eles, a tentação era muito grande. Com muito esforço, consegui desviar meu olhar do rosto dele, em seguida, movendo-me o mais agilmente que minhas forças me permitiam, – o que não era grandes coisas, considerando o fato

de que eu estivera deitada, doente, durante as últimas dezoito horas – fiquei de pé e puxei a agulha do soro de minha veia, abafando um gemido de dor. Dirigi um último olhar para o rosto de Daniel, certa de que era a última vez que o via, depois, afastei-me, em direção à escuridão da mata fechada, caminhando na ponta dos pés, evitando provocar qualquer ruído que o despertasse. Após me afastar alguns metros, comecei a caminhar mais depressa, pois a distância já era segura o bastante para emitir os sons dos meus pés sobre a as folhagens, ali até já poderia correr, mas me sentia fraca demais para tal esforço, lograria êxito em minha fuga, apenas caminhando. Percorri mais alguns metros de mata fechada, sentindo-me muito próxima da liberdade, já podia até ouvir os roncos dos motores dos carros na rodovia, em questão de minutos estaria lá, diante da liberdade. De repente, imaginei a reação de Daniel quando acordasse e não me visse mais ao seu lado, apenas o colchão vazio. Eu podia visualizar a expressão de espanto no rosto dele, seus olhos verdes, decepcionados, derrotados, tristes... profundamente tristes. A imagem do rosto dele triste veio, muito nitidamente, à minha mente e algo me fez deter-me em minha fuga. De repente, minhas pernas já não mais obedeciam às ordens da minha mente, recusando-se a me levarem para a frente. Visualizei novamente seu rosto, tão amado, as pálpebras longas, a pele branca, os olhos de um verde profundo e, subitamente, me dei conta da tolice que estava cometendo: eu simplesmente estava abrindo, mão do único amor de toda a minha vida, se o deixasse para trás, talvez jamais teria outra chance de amar, de ser feliz ao lado de um amor verdadeiro, continuaria vivendo na obscuridão que sempre fora minha realidade, às margens de uma sociedade hipócrita e excludente, sem vida, sem amor, perambulando pelas calçadas de Copacabana, como um zumbi, sem sentir nada a não ser a repulsa pelos homens que usavam meu corpo para o próprio prazer, jamais amaria novamente, como amava Daniel. Se fosse embora, jamais teria outra chance de ser feliz, de amar e ser amada. Com tais pensamentos em mente, dei meia volta e parti rumo ao local onde deixara Daniel dormindo, há poucos minutos atrás. Tentava caminhar o mais depressa que minhas forças me permitiam, ansiosa por reencontrá-lo, mas o trajeto era longo demais, eu havia me afastado mais do que imaginara. Tentei correr, para chegar mais depressa, mas não consegui, ainda estava muito fraca por causa do colapso nervoso. Eu estava decidida a ficar com ele, esquecer todos os seus crimes, afinal o perdão era também uma dádiva de Deus, deixada aos seres humanos, cabia a mim perdoá-lo, relevar tudo o que ele fizera. Alguns minutos depois, avistei o brilho do carro destacando-se na escuridão, estava muito perto do meu amor, do meu futuro tão sonhado, o qual eu quase deixara passar desapercebido. Ao aproximar-me, notei que ele ainda dormia, imóvel, desconfortável, sobre a toalha de praia. Com meu coração acelera do no peito, a respiração ofegante por causa do esforço, deitei-me lentamente sobre o colchão, de frente para Daniel, meu rosto a apenas alguns poucos centímetros de distância do seu, de onde eu podia sentir seu cheiro delicioso, sua respiração quente acariciando minha face. Mal conseguia conter minha ansiedade, pelo momento em que ele acordaria, quando me refestelaria em seus braços fortes e lhe declararia todo o amor que explodia em meu peito. Alguns minutos depois, ele abriu os seus olhos, num gesto súbito, apreensivo. — Você estava acordado. — foi o que consegui dizer. — Você não foi embora. — Eu decidi... bem, eu pensei bem … e — a emoção daquele momento, roubava-me a voz. — Sheee... – ele tocou os meus lábios, muito suavemente, com a ponta do seu dedo.— Não precisa dizer nada, posso ouvir as batidas do seu coração, elas me dizem tudo. — a voz dele era um sussurro quase inaditível. Ele segurou minha mão, e a pousou do lado esquerdo do seu peito, dizendo: —

Sinta o meu coração, ele responde ao seu. O coração dele estava acelerado e suas mãos ligeiramente trêmulas, como as minhas. Permanecemos imóveis, nos fitando, com ardor no olhar, nossos rostos e corpos bem próximos. — Eu te amo Daniel. — falei eu, finalmente conseguindo retomar minha voz — Quero passar o resto da minha vida com você. Não me importo mais com o que você fez. Nada mais me importa a não ser você. O rosto dele se iluminou num sorriso, enquanto seus olhos se marejavam de lágrimas. Sem uma palavra, ele puxou meu rosto para si e tomou os meus lábios, avidamente, com o mais apaixonado dos beijos. Movida pelo desejo, rolei para a toalha de praia, colando meu corpo ao seu, fazendo uma suave pressão. Era o momento que eu tanto esperava, o momento de estar em seus braços, tocá-lo e ser tocada, saciar o desejo ardente que me consumia. Assim, enfiei minha mão por sob sua camiseta de malha, acariciando seu peito musculoso, enquanto ansiava que ele também me tocasse, mais intimamente. Com um gemido, ele deslizou os seus lábios através da pele do meu pescoço, atravessando meu colo, até alcançar os meus seios. — Ah, Luana, você está doente... tem certeza de que não prefere repousar? — ele sussurrou, com respiração ofegante. — Temos a vida inteira para isso... — Não. Nunca me senti melhor em minha vida, — eu falei — quero ser sua agora. Então, ele me abraçou com mais força, explorando meu corpo com as mãos e com os lábios, deixando um rastro de fogo por onde me tocava, ao mesmo tempo em que eu expressava-lhe as sensações que me dominavam, tocando-o e acariciando-o, com a mesma voracidade. Algum tempo depois, estávamos imóveis, abraçados, aconchegados nos braços um do outro, confortavelmente, sobre o colchão ao chão, sem precisar do edredom, pois nos aquecíamos com o calor um do outro. Eu me sentia invadida por um misto de felicidade e paz, indescritíveis, jamais antes experimentadas. Acreditava que até este momento eu desconhecia o significado da palavra amor, atribuindo a ele todo o turbilhão de sentimentos que nutria por Daniel. Se ainda me restava alguma dúvida, esta se dissipara, pois eu tinha em meu íntimo a certeza de que ele era o homem da minha vida, o amor que eu desacreditara existir. Como se, subitamente, despertasse de um transe, ele começou a acariciar os meus cabelos com a ponta dos dedos, suavemente, num gesto de pura ternura. — Eu te amo tanto... — ele sussurrou. — É o mesmo que sinto por você. — me ocorreu que nos conhecíamos há tão pouco tempo, mas era como se nos conhecêssemos há anos. — O amor é extraordinário, não é? — De todos os ângulos possíveis. — ele falou. — A gente se conhece apenas há poucos dias e estamos... apaixonados. — Acho que foi amor à primeira vista. Jamais vou me esquecer a primeira vez que te vi. Apesar de minhas ameaças, das quais agora, acredite, eu me arrependo profundamente, você nunca se mostrava assustada. E transmitia essa confiança para mim, como um anjo que iluminava meu caminho. Relembrei o momento em que pusera meus olhos nele pela primeira vez, à luz do dia, às margens da Rodovia Presidente Dutra, na Baixada Fluminense, o quanto me sentira atraída por ele, incondicionalmente atraída, apesar do perigo que ele representava. Depois, ali próximo, aconteceu nosso primeiro beijo, selando de vez nosso amor. Na verdade, eu o amara no instante em que o vira,

apenas não conseguira assimilar esse sentimento, até então desconhecido. — É, acho que foi amor à primeira vista.— Concordei. Ele deitou-se de lado, apoiando a cabeça sobre o cotovelo. Fitou-me profundamente, com ardor expressado nos olhos verdes e disse: — Você me ama a ponto de largar tudo por mim? — Como assim? Eu não tenho nada para largar. Você é minha vida agora. — Então venha embora comigo, para outro país. Eu o fitei com um misto de surpresa e alegria. Não sabia o que pensar, pois era tudo muito novo para mim, não havia planejado nada daquilo. — Ta falando sério? – perguntei. — Claro que estou. E por que não? Se consigo documentos falsos para mim, também posso conseguir para você. — E por que você acha que eu vou precisar de documentos falsos? — perguntei, apreensiva. — Olha, eu sei que você não vai gostar muito disso... mas a essa altura já chegou ao conhecimento da polícia que Orlando saiu da boate com você ontem a noite. O corpo dele já deve ter sido encontrado. Eu deveria me enfurecer com a possibilidade de estar sendo procurada pela polícia, mas me sentia feliz demais para me abalar com isso. Decidida, fitei os olhos do meu amor e disse: — O K, e pra que país nós iremos? Com um largo sorriso nos lábios, ele voltou a me abraçar, dizendo: — Você escolhe. — Quer dizer que eu posso escolher qualquer lugar do mundo? — Claro, a escolha é toda sua. — Então vamos para o Himalaia. — Por que o Himalaia? — Por causa das montanhas. Quero escalar o monte Everest. Ele soltou uma sonora gargalhada e disse. — Você por acaso já escalou uma montanha? — Não, mas nunca é tarde par aprender. E você vai me acompanhar. — Então está combinado, vamos para o Himalaia. Pegaremos a estrada para Vitória logo que o dia amanhecer. Agora durma um pouco, você ainda está doente, precisa descansar. Eu recostei minha cabeça no ombro dele, sentindo-me imensamente confortável e aquecida. Começava a me considerar uma pessoa de sorte, pois viajaria para uma região exótica do planeta, a qual sempre desejara conhecer, ao lado de um homem que amava perdidamente. Era como o conto de fadas tornado-se realidade em minha vida. Ali, estreita nos braços de Daniel, logo peguei no sono, um sono tranquilo, como a muito eu não tinha. Em meu pesadelo, reencontrei o lobo medonho. Encontrava-me no sertão nordestino, em meio ao cerrado, sem conseguir enxergar o caminho de volta para casa. O extraordinário animal de pelos cinzentos, aproximava-se de mim, lentamente, enquanto o pânico me imobilizava, impedindome de fugir. Porém, o lobo já não mais expunha suas presas afiadas, ameaçadoras, mantinha o focinho sereno, enquanto chegava cada vez mais perto de mim. A apenas meio metro de distância, ele parou, ergueu sua cabeça para cima e fitou-me fixamente, com olhar de súplica, como se implorasse por minha ajuda. Imediatamente, reconheci os seus olhos, eram os olhos de Daniel. Pensei em perguntar o que ele queria mas antes que pudesse pronunciar as palavras, despertei para a realidade.

O dia já estava claro, embora não houvesse sol. Era mais um dia frio de inverno. Não tinha noção de que horas eram ou por quanto tempo dormira. Olhei o rosto de Daniel, que ainda dormia, profundamente, e relembrei o lobo do meu sonho, tinha os olhos dele. Era a terceira vez que sonhava com aquele lobo, não sabia o que significava, talvez uma reação do meu organismo à ausência de cocaína em meu sangue, mas isso era irrelevante, nada mais importava para mim que não Daniel. Desviei meu olhar do seu rosto, percorrendo-o pela mata fechada, quando, de súbito, avistei um vulto movendo-se em meio aos arbustos, silenciosamente. Curiosa, vesti-me rapidamente do conjunto de moletom e dirigi-me àquela direção, arrastando-me, cautelosamente, sobre as folhagens, meus pés e minhas mãos me levando para a frente. O vulto se moveu novamente, oculto pelos arbustos, impedido-me de identificar do que se tratava. Talvez fosse um animal, pela altura em que os galhos se moveram, um animal bem grande, provavelmente um cavalo. Tentando verificar o que era, aproximei-me mais rapidamente do vulto, ainda sem ficar de pé, minhas mãos e meus joelhos no chão, até alcançar os arbusto, onde deparei-me com um par de pernas humanas, usando calças jeans e botas de couro. Pensei em gritar e alertar Daniel do perigo, mas antes que minha voz saísse, a mão forte de um homem cobriu-me a boca, abafando-me o grito, enquanto que, com a outra mão, ele ergueu-me do chão, imobilizando-me contra seu corpo robusto, minhas costas de encontro ao seu peito. Comecei a me debater, na tentativa de me libertar e avisar Daniel, antes que fosse tarde demais, mas o homem era muito forte, me segurava com facilidade. Outros homens armados, com metralhadoras, surgiram de entre as folhagens verdes, esgueirando-se em direção ao local onde Daniel se encontrava, aproximando-se lenta e perigosamente, como cobras prestes a darem o bote. Eram cerca de dez homens, todos armados e usando coletes à prova de balas. Certamente eram policiais, à procura de Daniel. Eles seguiam as instruções daquele que me segurava, o qual dava as ordens com meneios de cabeça, incentivando os outros a prosseguirem. À medida em que os homens se aproximavam de Daniel, o desespero crescia dentro de mim. Sentia-me o mais impotente dos seres, por não ter feito nada para salvar meu amor das garras daqueles invasores. — Ele não está aqui, Brandão. — ecoou a voz de um dos homens, rompendo o macabro silêncio.— deve ter fugido. O homem que me segurava, arrastou-me, rapidamente, até o local onde Daniel, há menos de um minuto, se encontrava, dormindo tranquilamente. Ele percorreu seu olhar furioso ao redor e gritou: — Procurem! Vasculhem tudo. Ele ainda deve estar aqui por perto. Vou ver o que consigo arrancar da garota. Enquanto os demais homens se espalhavam aos redores, vasculhando cada moita de arbusto, aquele que me segurava atirou-me, brutalmente sobre o pequeno colchão, ainda aquecido pelo calor do corpo de Daniel. — Onde ele está?! — o homem esbravejou, sem desviar seu olhar severo do meu rosto, enquanto eu percorria meus olhos aflitos aos redores, em busca de Daniel. Há apenas poucos segundos eu o deixara dormindo ali, sobre o pequeno colchão, não houvera tempo de ter fugido, ainda estava por perto. — Sou o detetive Paulo Brandão, você está presa por cumplicidade no assassinato de Orlando Pereira de Souza. Você tem o direito de... O detetive, muito alto, robusto e de aparência tão grotesca quanto seus modos, continuou falando, recitando meus direitos de prisioneira, mas eu não ouvia uma palavra do que ele dizia, minha mente completamente absorta pela ausência de Daniel e pelo perigo que ele corria. Parecia

impossível ele ter desaparecido dali tão depressa, fora questão de segundos o espaço de tempo entre eu sair do seu lado e os policiais chegarem àquele local, não houvera tempo de fugir, ele ainda estava ali, escondido em algum lugar. — Onde ele está?! — o grito brusco do detetive me despertou dos meus pensamentos. Fiquei de pé e ergui o meu queixo, num gesto desafiador, encarando o tal detetive de frente, altivamente e falei: — Pode me prender se quiser, mas jamais o pegará. Neste momento, ele desferiu-me uma bofetada no rosto, tão brutalmente que quase me fez cair ao chão. Porém, fiz questão de permanecer em pé, apenas para confrontá-lo. — Você poderia se safar dessa encrenca se colaborasse com a gente. — ele falou. — Vai pro inferno! — foi a minha resposta. Ele ergueu sua mão novamente, para me desferir outro tapa, mas antes que pudesse concluir seu ato, um vulto negro pulou, repentinamente, entre nós dois, vindo de cima, da copa das árvores. Tratava-se de uma fera enorme, de corpo peludo, cinzento, não era um ser humano, nem um animal, talvez uma mistura dos dois. Tinha cerca de 1,90 metros de altura, tronco musculoso, orelhas pontiagudas, garras afiadas, presas saltando para fora da boca. A pele do seu rosto era enrugada, extremamente grossa, escurecida. Lembrava um monstro de um filme de terror. Com apenas um golpe, de sua garra afiada, a criatura cortou a garganta de Paulo Brandão, fazendo-o cair ao chão, seus olhos ainda atônitos, incrédulos, pelo que viam. Vi o sangue jorrando abundantemente do seu pescoço, a vida esvaindo-se do seu corpo. Após observar sua vítima cair ao chão, seu corpo completamente sem vida, a criatura se virou para a minha direção, fitando-me diretamente no rosto, estendendo-me sua mão, como se me convidasse a segui-lo. No entanto, apavorada, corri para trás do tronco grosso de uma árvore, tentando esconder-me dela, pois seria inútil correr, ela logo me alcançaria. De onde estava, eu a observei mais atentamente e, pelos seus olhos profundamente verdes, eu a reconheci: era Daniel, transformado em lobisomem, tão terrível e assustador quanto era descrito na lenda sobre sua família, a qual, eu constatava agora, não era lenda alguma, mas a pura realidade. O lobisomem, observou a expressão de pavor em meu rosto, seus olhos verdes demonstrando confusão, como se não compreendesse minha reação. Seguindo o meu olhar, ele começou a explorar seu próprio corpo, com as mãos e com os olhos, como se, só então, tomasse consciência de sua forma terrível. Após examinar seu corpo, dando-se conta, o que parecia pela primeira vez, de sua estranha transformação, a criatura voltou a olhar para mim. Novamente, tinha sua expressão confusa, atordoada, até que, por fim, eu o compreendi: Daniel desconhecia a metamorfose pela qual passara, a qual não era a primeira vez que ocorria, pois o vira transformado, no momento em que entrara no carro, após sacrificar Orlando à sua vingança. Em sua mente ele acreditava que ainda era um ser humano. Relembrei a notícia na página da internet, a qual descrevia a forma como os corpos de suas vítimas eram encontrados: “… esquartejados, como se tivessem sofrido ataque de animal selvagem.” Daniel não tinha consciência de que, em momentos de fúria, se transformava em lobisomem. O que provava o fato de que a transformação não ocorria como castigo pelo pecado do incesto, como afirmava a lenda, isso era impossível, já que Daniel não tinha nenhum parente vivo. Ele estendeu sua mão peluda para mim novamente, convidando-me a acompanhá-lo, seu focinho se moveu, tentando dizer-me algo, mas tudo o que proferiu foi um grunido selvagem, bestial, incompreensível, que atraiu a tenção de um dos policiais que o caçava, nas proximidades, o qual

correu para ele depressa, apontando-lhe a metralhadora, seus olhos arregalados, incrédulos, aturdidos com o que viam: — Por Deus, o que é isso?! — gritou o policial, sem desviar seu olhar da fera. Quando o lobisomem se moveu, caminhando ameaçadoramente em sua direção, o homem abriu fogo contra ele, dando início a uma sucessão de estampidos de tiros de metralhadora, os quais atingiam a fera mas não a feriam. Assim, sem interromper sua jornada, em meio a uma sucessão se balas, o lobisomem agarrou o atirador pelo pescoço, cortando-lhe a garganta com sua garra afiada, deixando seu corpo sem vida cair ao chão. Outros policiais surgiram de dentro da mata, atraídos pelos tiros da metralhadora. Quase que ao mesmo tempo, todos eles abriram fogo contra a criatura, sem que as balas a ferissem. Instintivamente, encolhi-me, mais, atrás do tronco da árvore, espalmando minhas mãos sobre os meus ouvidos, enquanto estampidos de tiros partiam de todos os lados. Com movimentos anormalmente ágeis, a criatura partiu ao encontro dos atiradores, aniquilando-os, um a um, com golpes certeiros de suas garras afiadas, tirando-lhes a vida. Nenhum dos tiros o haviam ferido, embora o atingissem. Quando o último policial caiu morto ao chão, o silêncio voltou a reinar na floresta, porém agora um silêncio mórbido, intensamente macabro, como a celebração das muitas vidas que se perdiam ali. A criatura permaneceu imóvel, em meio aos corpos ensanguentados e sem vida dos policiais, seus olhos percorrendo os arredores, certificando-se de que nada mais o ameaçava. Então, vagarosamente, seu corpo deu início à mais incrível metamorfose: lentamente, os pelos que lhe cobriam a pele começaram a desaparecer, enquanto seu corpo diminuía de altura e largura; suas presas sumiram-se para dentro da boca, seu focinho se transformou em rosto. Em questão de segundos ele era novamente humano, era Daniel, estava completamente nu, seus pés descalços, a respiração ainda ofegante por causa da luta, seu corpo salpicado de sangue. Ele permaneceu imóvel, observando os corpos dos policiais, os quais espalhavam-se por todos os lados. Parecia confuso, incrédulo. Eu continuava encolhida atrás do tronco da árvore, meu estômago embrulhado pelo que meus olhos presenciavam. Jamais antes vira tantas pessoas serem mortas ao mesmo tempo, tão rapidamente, por um só assassino, nem mesmo nos filmes de terror. Não sabia o que me chocava mais, se a transformação de Daniel ou se a presente chacina. — Desculpe Luana, mas eram eles ou nós. — disse Daniel, caminhando em minha direção, desviando minha atenção dos corpos ao chão. Sem conseguir conter o tremor em meu corpo, permaneci encolhida atrás da árvore, olhando para ele, meus olhos arregalados de pavor. — Precisamos sair daqui. Logo outros virão. — disse ele, vestindo-se da calça jeans. Depois estendeu-me a mão. — Venha.— finalmente, ele percebeu a expressão do meu rosto e perguntou: — O que é que você tem? Ele parecia ainda não ter se dado conta da transformação pela qual passara, ou tentava me fazer acreditar nisso. — Você não se lembra? — perguntei, hesitantemente, com a imagem do lobisomem em minha mente. — Me lembro de que? — Do jeito que você estava. — De que jeito? Do que você está falando? Ainda com meu corpo trêmulo, fiquei de pé, embora não conseguisse aproximar-me de

Daniel. O temor pela criatura, da qual ele tomara a forma, me impedia de chegar perto. — Você mentiu pra mim a respeito da lenda sobre sua família. — falei. — Não estou te entendendo, o que tem esta lenda? Não havia mais dúvidas, ele realmente desconhecia a transformação pela qual passara. Acreditava ter matado todos aqueles policiais na pele de um ser humano. — Acontece que não é lenda alguma. — falei, esperando sua reação. — Luana, você está bem? – ele falou, aproximando-se de mim. Instintivamente, recuei um passo, fazendo-o deter-se em sua aproximação, observando-me, confuso. — Agora... há pouco... —- eu hesitava em minhas palavras. — você estava transformado em um... animal. — Não, eu não estava. — Tava sim! Neste momento, o olhar dele se perdeu no infinito, como se buscasse algo guardado no fundo de sua mente. Permaneceu imóvel por um longo momento, fitando o vazio à sua frente, seus olhos verdes totalmente concentrados. Até que, num sobressalto, voltou a me encarar, dizendo: — Agora me lembro, eu estava... diferente.— olhou para as palmas de suas duas mãos e em seguida para seu corpo, como se procurasse algo. — Como eu estava? — Estava todo peludo, parecia um... lobisomem. — meneei a cabeça, confusa — Você não é um ser humano. Ele aproximou-se novamente de mim, desta vez não recuei, sentindo-me irresistivelmente atraída pela expressão dos olhos dele: um misto de ardor e angústia. — Sou sim, olhe só para mim, não pareço um ser humano? — Não parecia há um minuto. — Luana... — a voz dele era um sussurro rouco. —, o que sinto por você é racional e humano. Eu o fitei em silêncio por um longo momento, constatando o quanto o amava. Nada no mundo, real ou irreal, seria capaz de destruir meu amor, nem mesmo sua inumanidade. Eu era dele e seria enquanto existisse e nada mudaria isso. Observei o profundo ardor expressado nos seus olhos verdes, claros como a luz do dia, percebendo o quanto era amada também. — Vamos sair daqui antes que mais alguém apareça. – falei, decidida. Num gesto rápido, ele foi até mim, tomando-me em seus braços encharcados de suor e salpicados de sangue, num abraço apertado. Senti o cheiro do seu corpo, de sua transpiração e uma onda de desejo me invadiu. — Obrigado, meu amor. — ele sussurrou. — Pelo que? — Por não me abandonar mesmo sabendo que não sou um ser humano normal. Ergui minha cabeça para fitá-lo nos olhos e disse: — Jamais me afastarei de você, aconteça o que acontecer, pois te amo mais do que tudo na vida. No instante em que pronunciei a última sílaba de minhas palavras, ele cobriu os meus lábios com os seus, avidamente, intensificando o desejo que me dominava. Embriagada pela paixão, percorri a ponta dos meus dedos pelos músculos do seu peito, atravessando o abdômen, até alcançar o zíper da sua calça jeans, mas ele me afastou, desvencilhando seus braços do meu corpo e disse: — Ainda estamos em perigo meu amor, precisamos sair rápido daqui.

Ainda pensei em lembrar-lhe de que ele não corria perigo algum, já que era imortal, já que as balas das armas dos policiais não podiam feri-lo, ele era mais forte que todos, invencível aos seres humanos. No entanto, permaneci em silêncio, enquanto ele me conduzia pela mão, em direção ao carro, recolhendo, no caminho, alguns de seus objetos espalhados pelo chão, aqueles que não se encontravam banhados pelo sangue dos policiais. O colchão, sobre o qual nos amamos e dormimos abraçados, durante a noite anterior, ficou para trás, pois estava encharcado, completamente avermelhado, comportando um corpo. Atravessamos rapidamente o local onde se encontravam os corpos dos policiais, passando por cima deles, eu me esforçando para não vomitar com a visão da cena. Entramos no carro e Daniel deu a partida, ao mesmo tempo em que se vestia da camiseta de malha verde, limpando, com o tecido, o sangue salpicado em seu rosto. Conduziu-nos ruma à rodovia, seguindo pela BR 101, sentido a Vitória do Espírito Santo, o carro em alta velocidade. A estrada encontrava-se pouco movimentada, apenas alguns poucos caminhões trafegavam por ali. O dia continuava frio e nublado, não havia sinal de sol no céu. Daniel dirigia em silêncio, seu rosto sério, seus olhos distantes, pensativos. Daria dez anos da minha vida para conhecer os pensamentos dele. Talvez, como eu, estivesse temeroso a um novo ataque dos policiais. Eu temia mais pelo que aconteceria a eles que com a nós. — O que mais você sabe sobre a estória de minha família? — Daniel perguntou, ainda sem olhar para mim, revelando-me o que lhe roubava os pensamentos. Certamente ele estava totalmente confuso com os últimos acontecimentos, havia acabado descobrir que não era um ser humano, pelo menos não um ser humano normal. — Bem... — comecei a falar, esforçando-me para recordar os detalhes da estória que tantas vezes ouvira, durante minha infância e adolescência. — Todos em Serra Azul conhecem essa estória, ouvi muito sobre isto quando era criança. Diziam que os membros de sua família cometiam incesto, relacionado-se uns com os outros e por esse terrível pecado, os machos, considerados responsáveis por tal relação, eram punidos, transformando-se em lobisomens horríveis, que saqueavam as fazendas, roubando os animais e destruindo as plantações. Diziam também que eles costumavam violentar as mulheres da cidade, quando estavam transformados. Daniel fez um longo momento de silêncio, como se digerisse cada uma das minhas palavras, depois disse: — Mas isso não faz sentido, eu jamais cometi incesto em minha vida. Isso seria impossível, não tenho nenhum parente vivo e ainda assim me transformei. — ele fez uma pequena pausa – E, acredite, jamais passou pela minha cabeça violentar uma mulher. — Você nunca se transformou antes? — Claro que não. — Mas há uma possibilidade de você ter se transformado sem perceber. Quando você entrou no carro depois de... — hesitei antes de continuar — acabar com Orlando, você estava transformado, não tanto quanto hoje, mas estava diferente. — Você tem razão. Mas se eu tivesse me transformado antes desse dia, acho que perceberia. — ele fez outra pausa, como se constatasse algo novo. — Quando estava com Orlando, foi estranho, num momento ele estava vivo e no minuto seguinte estava morto. Não me lembro de tê-lo matado. Nós nos entreolhamos, num gesto de cumplicidade, certificando-nos de que a transformação ocorrera realmente na referida ocasião. — Como foi quando você se transformou hoje? – perguntei.

— Sinceramente não sei. Só me lembro de ter visto aquele detetive batendo em você e a fúria tomou conta de mim. — Então é isso! — eu falei, juntando os pedaços do quebra-cabeça. — O que? — Você se transforma em momentos de fúria ou de perigo. Ele refletiu por um momento antes de falar: — É, isso faz sentido. Não me lembro muito bem do que houve com Orlando, só sei que eu estava tomado pela fúria. — E quanto às outras pessoas que você...matou? — Também estava furioso com eles, mas foi diferente. — Em que sentido? — Não sei explicar. — A reportagem que eu li, dizia que suas vítimas foram encontradas com seus corpos estraçalhados, como se tivessem sofrido ataque de animal selvagem. — E você acha que eu estava transformado quando fiz aquilo...? — É, eu acho que estava. É a única explicação lógica para a forma como você os deixou. Acho que você se transformou em todas aquelas ocasiões, só não se lembra disso. — eu fiz uma pausa, relembrando a longa conversa que tivemos sobre nossas vidas, quando ele me falara sobre seu passado em Curitiba. — E antes de você começar a se vingar dos assassinos de sua família, não ocorreu algo parecido? — Não. Jamais antes me senti tão furioso. Além do mais se isso tivesse acontecido alguém teria percebido, raramente eu ficava sozinho, nossa casa estava sempre ocupada pelos empregados. — Quando você investigou o caso, não descobriu nada a esse respeito? — Descobri, mas não acreditei. – ele fez uma pausa – Quem acreditaria que alguém é capaz de se transformar em lobisomem?! No silêncio que se seguiu, ambos refletíamos a respeito daquela nova descoberta, o quão absurda parecia. Se alguém me contasse eu jamais acreditaria. Mas era absoluta realidade, Daniel era realmente um lobisomem, tudo o que falavam sobre os antepassados dele era verdade, não foram assassinados em vão. No entanto, Daniel era diferente deles, havia cometido muitos crimes, mas não o pecado do incesto, o qual, de acordo com a estória, os levava a se transformarem. Também não tinha jeito de estuprador, isso eu podia afirmar, pois conhecia um estuprador apenas pelo olhar, estava acostumada com eles, já que tivera alguns clientes de programas assim. Talvez essa parte da estória fora inventada pela população serrazulense, como um pretexto para tirar a vida dos lobisomens, apenas por temerem sua forma diferente. Por outro lado, talvez realmente fossem criminosos, cruéis como na estória narrada. Em fim, nada se sabia ao certo, tínhamos certeza apenas da existência da criatura inumana, a parte mais inacreditável da estória. Seguimos pela rodovia BR 101 por mais alguns quilômetros, parando em Vila Capixaba, uma pequena cidade, para tomarmos o café da manhã. Em seguida, deixamos aquela rodovia, partindo pela BR 206, rumo à Vitória. Aproximávamos-nos de Alto Lage, o último município antes de Vitória, quando, ao longe, avistamos uma barreira policial. Cerca de dez viaturas das polícias rodoviária e militar bloqueavam a rodovia, abordando e revistando os motoristas que passavam. Rapidamente, Daniel freou o carro, partindo em marcha ré, pela contra mão, seu rosto subitamente se contraindo de tensão. Mas era tarde demais, as buzinas dos carros que tentavam se desviar de nós, atraíram a atenção dos policiais, os quais, logo que puseram seus olhos sobre o

Ford, entraram em suas viaturas e avançaram em nossa direção, velozmente, ultrapassando os demais veículos, fazendo ressoar os sons de suas sirenes. — Droga! — Daniel praguejou, entredentes e, com uma manobra perigosa e precisa, fez o carro dar meia volta e seguir pela pista lateral, agora na mão correta, na direção oposta, voltando por onde vínhamos, enquanto as viaturas se aproximavam rapidamente. Mais adiante, deixamos a rodovia, pegando uma estrada pequena, com o asfalto esburacado, por onde o carro corria em alta velocidade, saltando por sobre os buracos, quase levantando vôo. Com meu coração acelerado no peito, por causa da adrenalina, olhei para trás e não avistei mais as viaturas. — Parece que os despistamos. — falei. — Eu não tenho certeza disso. — Daniel falou, sua atenção aflitamente dividida entre o retrovisor e a direção do veículo. Segundos depois, os sons das sirenes nos alcançaram novamente. Daniel acelerou ainda mais o carro. Ele tinha seu rosto contraído de tensão, sua atenção agora fixa apenas na estrada, seus olhos em alerta, sua mente trabalhando rapidamente. — Se nos pegarem, vão nos matar. — ele balbuciou, entredentes, sem desviar sua atenção da estrada. De repente, um projétil de bala atingiu o carro, estilhaçando o para brisa traseiro. Em pânico, encolhi-me entre o painel e o acento do automóvel, deixando escapar um grito agudo. Com uma das mãos, Daniel abriu o porta luvas e empunhou a pistola, pousando-a sobre seu colo, talvez esperando o momento propício para revidar aos tiros, que vinham incessantes contra nós, destruindo algumas partes do carro. Do meu esconderijo, eu não conseguia desviar meu olhar aflito do rosto de Daniel, temendo que uma bala o atingisse a qualquer momento. Mais adiante, deixamos o asfalto e seguimos por uma pequena estrada de chão, a qual se estendia por entre uma plantação de eucaliptos, onde o carro já não podia mais correr como antes, devido à precariedade da estrada. Apesar de diminuirmos a velocidade, os sons das viaturas se distanciaram, talvez tivessem desistido de nos perseguir, o que era bastante improvável, mas não impossível. Ainda com meu corpo trêmulo pelo pânico, sentei-me novamente no banco do carona, dirigindo meu olhar para trás, em busca das viaturas, mas não vi nada, a não ser a sucessão de eucalipteiros. — Nós os despistamos? – perguntei, com voz embargada de medo. — Eu não sei, eles estavam muito perto, talvez desligaram as sirenes para me fazer reduzir a velocidade. — Daniel falou, sua face visivelmente tensa. O local por onde seguíamos tratava-se de uma área de veraneio, onde belas casas estendiamse ao longo da estrada, localizadas a cerca de dois quilômetros de distância umas das outras. Provavelmente eram casas onde os ricos, moradores da cidade, passavam temporadas de férias. Como era mês de julho, certamente a maior parte delas se encontravam ocupadas. Alguns minutos depois, ouvimos novamente os sons das sirenes das viaturas policiais, ainda mais próximas que antes, ressoavam como os sons das trombetas do inferno anunciando-nos a morte. Praguejando, entredentes, Daniel deixou seu pé afundar no acelerador, mas o carro não tomou velocidade, pois tinha um dos pneus furados, por um projétil de bala. Não havia mais como fugirmos, seríamos apanhados, provavelmente mortos, pois Daniel havia assassinado muitos policiais, jamais o deixariam viver. Eu não sabia se ele resistiria às balas sem estar transformado na fera.

Com uma agilidade anormal, ele abriu a porta do carro e saiu, empunhando a pistola com uma das mãos, enquanto que com a outra mão, segurava-me pelo pulso, fazendo com que eu o seguisse. No entanto, não consegui acompanhá-lo, afinal eu era apenas um ser humano, fraco e covarde, desprovida da inumanidade que ele possuía. Assim, tropecei em minhas próprias pernas e caí ao chão, meu rosto chocado-se contra os pedregulhos, fazendo-me gritar de dor. Daniel ainda tentou me levantar do chão, mas não houve tempo, os policias encontravam-se muito próximos, há apenas poucos metros de distâncias, trajeto que poderia ser percorrido em questão de segundos. Deixando-me para trás e fazendo uso de sua agilidade inumana, Daniel pulou por sobre a cerca branca, de quase dois metros de altura, que protegia um pequeno chalé, localizado diante do local onde paramos o carro. O ressoar de um estrondo ensurdecedor, indicava que ele arrombara a porta da moradia e entrara. Sentindo-me ainda tonta pela queda, ergui meu rosto do chão e procurei por Daniel, mas não consegui mais avistá-lo. Tentei levantar-me e segui-lo, mas no instante em que me movi, muitos canos de revólveres se apontaram para a minha cabeça, enquanto as vozes rudes dos policiais ordenavam que eu não me movesse. Olhei em direção ao chalé no qual Daniel entrara e vi os policias que o seguiam recuarem, receosamente, de dentro da residência, sem que eu compreendesse o por quê de sua desistência. Talvez o lobisomem os assustara, fazendo-os desistirem de sua perseguição. Enquanto um policial, uniformizado, algemava meus pulsos, atrás das minhas costas, ao mesmo tempo em que me dirigia insultos vulgares, eu mantinha meus olhos pousados no chalé onde Daniel entrara. Queria, desesperadamente, estar com ele, saber se estava bem ou se estava machucado. Era insuportável a angústia de desconhecer o que se passava. Um policial me arrastou em direção a uma das viaturas, lançando-me sobre o assento traseiro, enquanto os demais permaneciam diante do chalé, próximos às suas viaturas, empunhando suas armas. A viatura na qual eu me encontrava, partiu em baixa velocidade, rumo à rodovia, com um policial na direção e outro no banco do carona. Por mais que eu insistisse em perguntar sobre Daniel, sobre o que acontecera com ele, os homens nada respondiam, permaneciam alheios às minhas indagações, conversando entre si dirigindo-se a mim apenas de vez em quando, para me mandar calar a boca, ou para me insultar. Enquanto nos afastávamos do chalé, o desespero crescia dentro de mim, cegando-me a ponto de não perceber para onde estava sendo levada, ou o que os policiais diziam. Em poucos minutos eu sequer mais os ouvia, minha mente completamente absorta pela ausência de Daniel. Onde estaria ele? Estaria ainda vivo? Esperava que tivesse conseguido fugir e já se encontrasse a caminho de outro país, mesmo que, para isto, precisasse me deixar para trás.

CAPÍTULO III

Cativeiro Algumas horas depois, a viatura, na qual me encontrava, adentrou as ruas da cidade de Vitória, seguindo rapidamente em direção ao centro urbano. Estacionou diante de um prédio antigo, com a pintura velha, se descolando da parede, onde um letreiro, preso no alto da sacada, avisava que se tratava de uma delegacia de polícia. Ainda sem me libertar das algemas, os dois jovens policiais uniformizados conduziram-me para o interior do prédio, abandonando-me em uma carceragem, minúscula, suja, onde um cheiro fétido se espalhava por todo o pequeno ambiente, incomodamente. Por mais que eu tentasse argumentar com eles, não obtinha resposta, era ignorada, quando não, insultada. Sozinha na pequena cela, deitei-me sobre um velho e sujo colchonete, sem conseguir relaxar, meu coração apertado no peito por causa de Daniel, por não saber o que se passava com ele. Mas ele era forte, anormalmente invencível, superaria qualquer obstáculo que surgisse em seu caminho, diferentemente de mim que ali, tinha negados todos os meus direitos de cidadã, inclusive o de ser interrogada. Simplesmente fora jogada naquela cela, sem nenhum direito à defesa. Provavelmente tal tratamento se devia ao fato de os policiais já terem descoberto que eu era uma prostituta, um ser sem direitos, alguém que não precisava de julgamento para ser condenada. Não era tratada daquela forma por causa de minha participação na morte de Orlando, embora tal crime pesasse sobre mim, mas pelo que eu fizera antes. Até os homicidas tinham o direito à defesa, a um julgamento, a serem ouvidos, mas não alguém como eu, cujos atos eram, indiscutivelmente, condenados. Pouco tempo depois, fui despertada dos meus devaneios por um homem baixinho, de meia idade, que destrancou as grades da cela, entrou e algemou-me, consentido, em seguida, que eu o seguisse para fora. — Desculpe-nos por ter demorado tanto para falar com você, mas o detetive encarregado do caso mora em São Paulo, só agora chegou aqui. – o homem falou, enquanto caminhávamos por um estreito e escuro corredor. Era o primeiro ali a me tratar com o mínimo de educação. Após atravessarmos o corredor, adentramos uma pequena sala, mal mobiliada, com uma escrivaninha a um canto, um computador, um armário velho de madeira e ar condicionado. Atrás da escrivaninha, havia um homem de cerca de quarenta anos de idade, gordo, pele clara e rosto redondo, de feições grotescas, ainda mais feio por causa do bigode grosso, emaranhado. Sua aparência me lembrava um Víckei, de um filme épico. — Sente-se. — ordenou o homem, gesticulando, com o queixo para a cadeira na frente da escrivaninha, fitando o meu rosto com olhar duro. – Pode tirar as algemas, Ilário. O baixinho, libertou-me das algemas, deixando a sala em seguida, sob a ordem do outro. Senti-me assustada ao me encontrar sozinha com aquele sujeito, pois ele parecia uma péssima pessoa, certamente me trataria mal, como os policiais que me conduziram até ali, porém, eu ignoraria meu medo e o confrontaria, estava pronta para enfrentá-lo. — Sou o detetive Luiz Carlos. Sou responsável pelo caso... — Onde está Daniel? — Eu o interrompi, sem conseguir conter minha aflição.

O detetive encarou-me com expressão ainda mais dura no olhar. — Você é Luana Pereira da Silva? — Sim, sou eu mesma. — E você sabe por que está aqui? — Não, mas era a minha próxima pergunta. – eu falei, com um leve tom de ironia. Ele ficou de pé e esmurrou, brutalmente, a escrivaninha. Estranhei que o móvel não tenha se despedaçado sob seu punho, pois o homem era muito grande e forte, só agora, vendo-o em pé, pude perceber o seu tamanho. — Não brinque comigo, garota! — ele gritou. — Você é cúmplice de assassinato, se eu quiser, posso te deixar o resto da vida na cadeia! — Então faz isso! — eu falei, esforçando-me para conter o meu medo e manter o mesmo tom de voz alterado que o dele. Ele voltou a sentar-se, secando o suor da sua testa com um lenço encardido. Embora se tratasse de um dia frio de inverno e o ar condicionado estivesse ligado, o homem transpirava como um porco. — Como foi que você conheceu Daniel? — ele perguntou, com tom de voz mais brando. — Desculpe, mas só vou falar na presença do meu advogado. — retruquei, cruzando meus braços na frente do corpo, num gesto de desdém. A rudeza, subitamente se dissipou do olhar do detetive, dando lugar a uma expressão de gravidade, quase de aflição, quando ele disse: — Não pense que quero o seu mal, porque não é isso que eu quero. — ele estudou o meu rosto por um instante, como se esperasse uma reação. Como não obteve, continuou – Você tem idéia do quanto aquele sujeito é perigoso? Você tem noção de quantas pessoas ele já matou? E de que forma matou? — É, eu tenho idéia sim. — falei, tentando manter o tom firme, forçando minhas palavras a atravessarem o nó que se formava em minha garganta. No fundo, aquele detetive tinha razão. Os assassinatos cometidos por Daniel, foram muitos e foram cruéis, eram imperdoáveis aos olhos de qualquer ser humano, como exceção dos meus, pois o amava demais para ser capaz de condená-lo. Na verdade, já o havia perdoado. — E mesmo sabendo o que ele fez, você ainda o defende?! — Eu não estou defendendo ninguém. — menti — Não consigo defender nem a mim mesma. — Escute, eu estou atrás desse sujeito já faz algum tempo, desde que ele fez sua primeira vítima em São Paulo, e nunca consegui sequer me aproximar dele. Não faço idéia de porque ele está matando estas pessoas, se há mais alguém em sua lista. Mas você pode me ajudar, pode me dar informações. Você deve saber muito, já que convive com ele há algum tempo. Sei que você não está envolvida nos outros assassinatos e que foi sequestrada por ele, em Copacabana. Se colaborar posso te ajudar a se livrar facilmente das acusações, por ter sido cúmplice na morte de Orlando. — Desculpe, mas não tenho nada para falar. Ele voltou a esmurrar a escrivaninha, num gesto de pura irritação. Os olhos com os quais me fitava eram ferozes e ameaçadores. — Pois saiba que vai passar o resto da sua vida na cadeia! — ele gritou. Eu também fiquei de pé, fitando-o desafiadoramente e disse: — Pois pode me trancar numa cela! O que está esperando?! O detetive sentou-se novamente, jogando o lenço encardido, molhado com seu suor, sobre

o móvel, abruptamente. — Ele está fazendo uma família como refém. – ele declarou, com a voz mais calma agora. – Tem uma mulher, o marido e os dois filhos deles. Disse que aceita libertar apenas as crianças, em troca de você. Sem mais sentir minhas pernas, deixei-me cair sobre a cadeira. A descoberta de que Daniel ainda se encontrava em perigo, correndo risco de vida, me causava um profundo aperto no coração. No fundo eu esperava que ele já estivesse longe, talvez a caminho de outro país; que tivesse se transformado em lobisomem e escapado dos policiais. Embora fosse sofrer com sua distância, seria melhor que vê-lo sofrendo, aflito, correndo tamanho risco. — OK. Vamos fazer a troca. — eu declarei, esforçando-me por conter as lágrimas que insistiam em aflorar em meus olhos. Luiz Carlos observou o meu rosto por um longo momento de silêncio, estudava minha expressão, tentando decifrar minha reação. Era desconhecido a ele, e a qualquer ser humano, que eu e Daniel estávamos apaixonados, que tínhamos uma ligação mais forte que a própria vida. Tive esperanças de que o detetive pensasse que as lágrimas em meus olhos se tratassem do medo de voltar às garras do homem que me sequestrara, mas o olhar dele era de desconfiança. Como tira que era, farejava algo que ele próprio desconhecia. A verdade talvez. Cerca de três horas depois, eu, o detetive Luiz Carlos e mais dois policiais à paisana, saltamos do carro em frente ao chalé no qual Daniel matinha seus reféns em cativeiro. Era noite e o frio aumentava com o passar das horas. Ali, diante do cativeiro, havia se formado uma pequena multidão de repórteres, policiais e curiosos, todos com sua atenção fixa na pequena moradia. Atiradores de elite posicionavam-se sobre os galhos das árvores mais próximas, seus rifles sofisticados apontados na direção do chalé. Ao nos aproximarmos, os repórteres vieram ao nosso encontro, correndo, ofuscando-nos os olhos com os flashes de suas câmeras fotográficas, desferindo, a mim e a Luiz Carlos as mais variadas indagações, as quais nenhum de nós dois respondíamos. Logo atravessamos a linha demarcada, com uma faixa amarela, colocada a cerca de um metro acima do chão e dez metros de distância da entrada do cativeiro, através da qual, somente os policiais podiam passar. Um outro detetive entregou um auto falantes a Luiz Carlos, este direcionou o objeto para sua boca e gritou: — Daniel, aqui quem está falando o detetive Luiz Carlos. A garota está aqui. Agora deixe as crianças saírem. Do interior da residência, a voz de Daniel partiu, muito fraca e baixa, por causa da distância. — Deixe que ela entre primeiro, depois liberto as crianças. — Daniel falou, o som de sua voz, fazendo meu coração disparar dentro do peito. Luiz Carlos praguejou, entredentes, em seguida trocou algumas poucas palavras com o outro detetive, o qual, pude perceber, então, se tratava de um negociador. — Vamos fazer assim: — Luiz Carlos voltou a falar no auto falantes, sua voz ecoando estrondosamente. — você deixa as crianças saírem e ao mesmo tempo a garota vai, OK? — Nada feito. — Daniel falou. — A garota primeiro Luiz Carlos virou-se novamente para falar com o negociador, parecia totalmente alheio à minha presença. Aproveitei seu minuto de distração e, seguindo a um impulso incontrolável,

caminhei até o portão de entrada da casa. Os olhares dos policiais se voltaram para mim, mas não aguardei que eles me alcançassem, rapidamente atravessei o pequeno jardim que separava a cerca da sacada do chalé, alcancei a porta e entrei, fechando-a novamente atrás de mim, cessando, aos meus ouvidos, os murmúrios da multidão, perplexa diante do meu ato. Com exceção do detetive Luiz Carlos, ninguém conhecia o meu envolvimento no assassinato de Orlando, aos olhos da mídia e, consequentemente, da sociedade, eu era apenas mais uma vítima de Daniel, sua prisioneira. Pelo menos era nisso que eu acreditava. Certamente, minha entrada no cativeiro fora considerada um ato de bravura, por meio do qual entregava minha liberdade em troca da de duas crianças. Do lado de dentro da pitoresca moradia, deparei-me com uma pequena sala, decorada em estilo colonial, muito escura e silenciosa. Percorri meu olhar ao redor, em busca de qualquer vestígio da presença de Daniel, mas não havia sinal dele ou dos reféns. Da sala, partia um estreito corredor, por onde segui, hesitantemente, minha mente povoada por um turbilhão de pensamentos sombrios. Temia que os policiais me seguissem e, numa tentativa de me deterem, acabassem por apanharem Daniel. Talvez estivesse cometendo um erro indo até ali. Respirando fundo, segui em frente. No corredor, haviam duas portas laterais, cada uma de uma cor diferente, provavelmente dando acesso aos quartos. Do interior de uma delas partiu o som ruidoso, do que parecia um móvel pesado sendo arrastado, para onde me dirigi, caminhando mecanicamente, meu coração acelerado no peito, a ansiedade por rever Daniel crescendo dentro de mim. Repentinamente, a porta se abriu e mãos fortes me puxaram para o lado de dentro, abruptamente. Era Daniel. Ele tomou-me em seus braços, apertando-me tão forte que quase me impedia de respirar. — Luana, você está aqui... você não me abandonou. — ele sussurrou, ao meu ouvido, com respiração ofegante. Como eu poderia abandoná-lo, se sem sua presença mal era capaz de respirar? Tentei dizerlhe o quanto sentira sua falta, o quanto me angustiara com a perspectiva de não revê-lo mais, mas não consegui pronunciar as palavras, minha mente e meu corpo entorpecidos pelo calor dos seus braços fortes em torno de mim, emergindo-me em uma espécie de transe. Naquele instante percebi que sua ausência me afetara mais do que imaginara, que me tornara incapaz de viver sem sua constante presença. — Daniel, cumpra sua parte do acordo. Deixe as crianças saírem! – era a voz de Luiz Carlos, ecoando através do auto falantes, despertando-me para a realidade. Daniel desvencilhou-me dos seus braços, fitou-me em silêncio por um longo momento, uma angústia profunda expressada em seus olhos verdes, então afastou-se, voltando-se para as duas crianças próximas à porta do quarto. Tratava-se de dois meninos, um deles tinha cerca de dez anos de idade e o outro parecia um pouco mais jovem, ambos encontravam-se em prantos, talvez por serem obrigados a distanciarem-se dos seus pais. — Podem ir, logo estaremos com vocês novamente. — falou uma mulher, que encontrava-se sentada a um canto do cômodo, seus pulsos presos atrás das costas, junto a um homem, também com seus pulsos amarrados, um de costas para o outro. Sob o olhar atento de Daniel, as duas crianças deixaram o quarto, seguindo para o lado de fora, de onde partiram murmúrios da multidão ali presente. Daniel trancou a porta novamente, empurrando, para diante dela, um pesado guarda roupas de madeira de lei. Observando-o mais atentamente, percebi que ainda usava as mesmas roupas da manhã anterior: jeans desbotado e camiseta de malha verde, salpicadas com o sangue dos policiais que assassinara,

quando se encontrava transformado na mais inacreditável das criaturas, uma mistura de homem e animal. A lembrança daquela fera, despertou-me um calafrio na espinha. Ele tinha seus cabelos emaranhados, o rosto abatido, contraído de tensão e seus olhos expressavam uma angústia tão profunda que me fazia desejar afagá-lo. Não compreendia porque ele não se transformava na fera e fugia dali. Naquela forma, estranha e assustadora, as balas das armas dos policiais não conseguiriam feri-lo, seria fácil para ele escapar. Por que continuava ali, correndo o risco de ser morto a qualquer momento? Perguntei-me. O local onde nos encontrávamos estava na mira de dezenas de policiais armados, os quais poderiam invadi-lo a qualquer momento. Tratava-se de um quarto pequeno, mobiliado com uma cama de casal ao centro, uma estante, que comportava um aparelho de televisão de 29 polegadas, som, e DVD, além do imenso guarda roupas que bloqueava a porta de entrada. Em uma das paredes, havia uma janela com vidraças, parcialmente oculta por uma cortina de cetim cor de salmão, a qual dava acesso ao lado de fora e através da qual Daniel se comunicava com Luiz Carlos. Em outra parede, uma porta dava acesso a um pequeno banheiro. Apesar de se tratar de um lugar refinado e aconchegante, havia uma tensão pairada no ar, impregnando todo o ambiente, tão intensa que eu quase podia tocá-la. Olhei para o casal de reféns, sentados a um canto, com seus pulsos presos atrás das costas. A mulher tinha a pele rosada, muito delicada, com densos cabelos louros cascateando-lhe os ombros. Tinha cerca de trinta anos de idade. O homem parecia um pouco mais velho, tinha a pele morena, os cabelos negros, bem cortados, os olhos castanho escuros e inteligentes. — Quem são eles? – perguntei, sentando-me na beirada da confortável cama, sem desviar meu olhar do casal de reféns. — Não sei. Acho que moram aqui. — Daniel respondeu, distraidamente. Ele encontrava-se próximo à janela, observando a multidão do lado de fora, através de uma pequena fresta aberta pela cortina. Mantinha seu corpo oculto da mira da polícia, pela parede e empunhava a pistola com uma das mãos. — Eu sou Débora, e esse é meu marido Thális. — a refém respondeu, sua voz tão delicada quanto sua face. — Nós moramos em Vitória, estamos aqui apenas para passar as férias. — O que vocês fazem? — tornei a perguntar, como se, inconscientemente, tentasse verificar o grau de inocência daqueles que, hipoteticamente, se tornariam as futuras vítimas de Daniel. — Thális é advogado e eu não trabalho. — foi a loura quem respondeu novamente. — Por favor, posso ir ao banheiro? — ela pediu-me. — É claro! — falei, depois voltei meu olhar para Daniel, que não fez nenhuma menção em libertar a mulher, permanecendo imóvel próximo à janela. Fui até ele, colocando-me de pé diante de si. Num gesto muito rápido e brusco, Daniel arrancou-me de diante da janela e gritou: — Não fique aí, pode ser perigoso. O susto pela abruptalidade do seu gesto fez todo meu corpo tremer descontroladamente. — Desculpe... — falei, com voz trêmula. Ele desviou seu olhar para o chão, soltando um longo suspiro. Logo voltou a me fitar, dizendo: — Eu é que te peço desculpas, não devia ter te puxado com tanta força. Eu te machuquei? — Não. Está tudo bem. — falei, compreendendo, naquele instante, o que se passava com ele: Daniel havia perdido o controle da situação, já não sabia mais o que fazer, pois não planejara nada daquilo quando dera início à vingança pelo massacre de seus antepassados. Começava a sentir-se desesperado, por isso a angústia em seu olhar. Desejei, ardentemente trocar de lugar com ele, estar

em sua pele, apenas para não vê-lo sofrer, pois sua aflição era para mim insuportável. — Fique calmo, vai terminar tudo bem. Nós ficaremos bem, você vai ver só. — disse eu, tentando amenizar sua aflição, porém desacreditava em minhas próprias palavras. Eu acariciei o seu rosto com a ponta dos dedos, como se tentasse dissipar a sua angústia, ele aproximou-se mais de mim, inclinando sua cabeça para a frente, para baixo, tomando-me os lábios num beijo sôfrego, avidamente. Entreabri os meus lábios para receber os seus, sentindo-me invadida pelas mais inexplicáveis e desconhecidas sensações, as quais somente aquele homem era capaz de me despertar. — Por favor, preciso ir ao banheiro. — era a voz delicada e meiga de Débora, penetrando minha mente, despertando-me do transe no qual eu começava a mergulhar. Daniel interrompeu o beijo, afastando-se alguns centímetros, fitando-me profundamente nos olhos. Seu olhar já não mais expressava a angústia de antes, mas um profundo ardor, que denunciava a paixão que o inebriava. Era a mesma que eu sentia. — Você pode libertá-la para que vá ao banheiro? — perguntei, desviando finalmente meu olhar do dele, relembrando as súplicas de Débora. — Está bem. — Daniel falou, secamente. Então foi até o casal e libertou os pulsos da mulher. Débora levantou-se rapidamente do chão, dirigindo-se em direção ao pequeno banheiro. Ao vê-la de pé, percebi, aturdida, o volume de sua barriga, por sob o tecido da camisola de algodão branca que usava. — Minha nossa, ela está grávida?! — indaguei, espantada. — Sim, ela está. — Foi Thális quem respondeu, a hostilidade presente tanto em seu olhar quanto no tom de sua voz. — Está de quantos meses? — perguntei novamente. — E o que lhe interessa isso, sua vadia?! — Thális respondeu, a hostilidade ainda mais evidente em suas palavras. Mas quem poderia culpá-lo? Afinal tivera sua casa invadida por um estranho que agora lhe fazia de refém, ameaçando sua vida, a de seus filhos e de sua esposa. Daniel foi até ele, rapidamente, movendo-se com a precisão e agilidade de um animal selvagem que atacava sua presa. Ergueu a mão que segurava a pistola, apontando-a para o rosto apavorado do homem. — Cuidado com o que fala! Você pode morrer a qualquer momento!— gritou Daniel, ameaçadoramente. Neste momento, Débora saiu do banheiro, detendo-se em seu trajeto de volta ao marido. Ao ver Daniel apontando a pistola para a cabeça dele, seu rosto rosado tornou-se subitamente pálido. — Por favor, não faça isso. — ela falou, com tom de súplica. — Tudo bem, ele não vai atirar, fique calma. — Eu falei, mais para acalmá-la que por convicção. A fúria de Daniel era imprevisível e cruel, conduzida pela fera selvagem que residia dentro de si, a qual o faria, facilmente, puxar o gatilho daquela arma e tirar a vida de Thális. — Não é Daniel? — eu insisti, enquanto ele permanecia imóvel, segurando a pistola diante do rosto de Thális, encarandoo com uma frieza assustadora e muito familiar para mim. — Não é Daniel?! — dessa vez eu gritei. Então, ele finalmente abaixou a arma, deslocando seu olhar, primeiro para o meu rosto, depois para a barriga volumosa de Débora, em seguida, afastou-se de sua presa, retornando para próximo à janela. Débora correu para perto do marido, sentando-se ao seu lado, acariciando-lhe os cabelos com as pontas dos dedos, como se tentasse acalmá-lo. — Por que você chamou ela de vadia? — Perguntou ela.

Ele abriu a boca para responder, mas deteve-se em suas palavras quando seu olhar encontrou o de Daniel. Apesar de em meu íntimo guardar a certeza de que Daniel não machucaria aquelas pessoas inocentes, não pude deixar de me sentir apreensiva, pelo temor de vê-lo, hipoteticamente, perder a cabeça, afinal se encontrava mergulhado num poço de tensão, que o abalava; encontrava-se descontrolado, como jamais vira antes. Apreensiva, sentei-me na beirada da cama, observando-o imóvel diante da janela. Ele tinha o rosto muito abatido e cansado, com olheiras profundas em torno dos olhos. Talvez, como eu, ainda não se alimentara durante aquele dia, pois não havia nenhuma comida ali. Certamente não tivera tempo de ir à cozinha procurar alimentos, quando invadira a casa. Tentei visualizar este momento: Daniel entrando na casa, repentinamente, surpreendendo a família durante o sono, implantando o terror em suas vidas, principalmente na das crianças, pois eram ainda muitos jovens, provavelmente se tratara de um choque para elas, o qual, influenciaria, negativamente em seu desenvolvimento psicossocial. — Tem alguma comida ali dentro do guarda roupas. — Débora falou, como se lesse meus pensamentos. — Podem comer se quiserem. — Quem guardaria comida no guarda roupas? — perguntei, impulsivamente, como quase sempre, falando sem pensar. — É que nós chegamos ontem à noite para as férias, não tivemos tempo de arrumar a dispensa. — ela respondeu, com seu tom de voz calmo e meigo. Dirigi-me até o móvel e o abri, percebendo, pelo volume de sua porta, que era ainda mais pesado que parecia, pesado demais para ser arrastado por um ser humano, mas Daniel não era um ser humano, pelo menos não um ser humano normal. Em meio às roupas encontrei duas caixas de papelão lacradas, pousei-as sobre a cama e as abri. Haviam muitos pacotes de biscoitos, geléia de mocotó, enlatados, sucos em caixa e bombons de chocolate, além de mantimentos os quais não nos serviria agora, tais como arroz, feijão, açúcar, etc. Não pude deixar de notar que a sorte estava do nosso lado, pelo menos nesse aspecto. Voltei a guardar os mantimentos no móvel, espalhando sobre a cama os biscoitos, o suco e a geléia. Virei-me para Daniel e falei: — Vem, vamos comer. — Não. Coma você. É perigoso demais sair de perto da janela, eles podem tentar invadir a casa a qualquer momento, preciso estar atento. Suas palavras despertaram-me um calafrio na espinha. Se os policiais invadissem o cativeiro, matariam a todos, até os reféns, apenas para culpar Daniel, pois ele assassinara muitos policiais, seus companheiros de profissão eram leais e vingativos, empenhariam-se em prejudicá-lo o quanto pudessem. — Se você não vai comer então eu também não vou, morreremos juntos de fome. — falei, cruzando os braços diante do corpo, decidida. Ele observou-me em silêncio por um momento, então falou: — Está bem, vou me lavar um pouco. — ele respondeu, percorrendo seu olhar por seu próprio corpo, ainda salpicado pelo sangue dos policiais e pela sujeira da mata, em seguida, enfiou a pistola, a qual empunhava todo o tempo, no cós do seu jeans e dirigiu-se até o pequeno banheiro, retornando segundos depois, quando sentou-se ao meu lado, na beirada da cama, de frente para a janela e serviuse de um sanduíche de biscoito com geléia e suco de laranja. Eu também comecei a me servir, quando percebi que Débora mantinha seu olhar fixo nos alimentos, principalmente nos bombons de chocolate

— Pode vir comer, Débora. — Falei. Ela fitou o rosto de Daniel, com olhos de súplica, como uma criança assustada que pede permissão ao pai. — Eu posso? — perguntou ela. — Você pode, mas nem me peça para soltar seu marido, porque isso eu não vou fazer. — Daniel respondeu. A mulher foi até a cama, apossando-se de alguns pacotes de biscoitos e dos bombons, em seguida, retornou para perto do marido, sentando-se ao seu lado, servindo o alimento na boca dele, enquanto comia também. Débora parecia uma esposa dedicada e submissa ao marido, como eu jamais seria a homem algum, mesmo se saísse dali viva. Aparentemente, ela era o tipo de mulher que desempenhava o papel que, na concepção de muitas pessoas, era nossa função na sociedade: não trabalhar fora de casa e viver à sombra do marido. Daniel comia em silêncio, seus olhos atentos em cada movimento dos reféns e ao mesmo tempo na direção da janela. Eu não conseguia desviar meu olhar dele, admirando cada um dos seus movimentos, os quais eram precisos, elegantes, como os de um animal felino. Apesar da tensão crescente, que tomava conta de todo o ambiente, eu precisava de um grande esforço para não ceder ao impulso de me atirar em seus braços, tocá-lo e ser tocada por ele. Embora ele usasse roupas sujas, com cheiro fétido, não conseguia parar de desejá-lo, era algo muito mais forte que eu. — Daniel, você já provou ter boas intenções, soltando as criança, agora se entregue e as acusações pesarão bem menos sobre você... — A voz partiu do lado de fora, através do auto falantes, era a voz do negociador. Apesar de Daniel ignorar ao chamado, percebi que todo o seu corpo se contraía de tensão. Sua fisionomia se tornou ainda mais carregada, a ruga no meio da sua testa se aprofundou. — Você não vai responder? — perguntei, sem interromper a refeição. — Não. Deixe que eles gritem o quanto quiserem. Não os ouvirei até que me dêem o que eu quero. — E o que é que você quer? — Eu exigi que me trouxessem um carro para fugir e em troca não matarei os reféns. — Vamos lá Daniel, sabemos que vocês estão sem comida e sem água, quanto tempo você acha que vão suportar? — a voz insistiu, do outro lado da parede. Desta vez, Daniel curvou os seus lábios no mais perfeito dos sorrisos. — O que foi? — perguntei. — Eles pensam que estamos morrendo de fome. Eu não vi graça nenhuma naquilo, pois poderíamos realmente estar com fome. Se não fosse pela boa vontade de Débora, em nos avisar sobre os biscoitos, estaríamos de estômago vazio. No entanto, vê-lo sorrindo me era o mais rico dos presentes, o qual eu jamais contestaria. Continuamos fazendo a refeição em silêncio, enquanto eu observava, fascinada, a maneira como ele se movia: ágil e elegantemente. Era a criatura mais perfeita na qual já pousara os meus olhos. Como poderia se transformar em uma criatura tão errônea? Talvez os seus antepassados também eram assim: lindos num momento e terríveis no outro. Eram como os vampiros dos filmes, criaturas cujo poder de sedução camuflava sua verdadeira natureza. Mas não era o momento de pensar nisso, precisava pensar em uma maneira de sairmos dali, escaparmos de uma possível e fatal invasão da policia. — Você já cogitou... se entregar? — perguntei, hesitantemente. — Mesmo que eu fizesse isso eles jamais me deixariam sair daqui vivo, Luana, pois eu matei muitos

policiais. Dariam um jeito de colocar a pistola em minha mão antes que a imprensa pudesse perceber. Senti todo o meu corpo estremecer com aquelas palavras. Perder Daniel seria o mesmo que perder minha própria vida. — Mas se você estiver transformado na criatura, as balas não poderão atingir você. Foi assim esta manhã. — a menção da criatura, despertou a atenção dos reféns, principalmente a de Débora. — Você pode se transformar e sair daqui facilmente. Ele balançou a cabeça, negativamente, desviando seu olhar para o chão, enquanto sua face assumia um leve tom de rubor. Percebi que se sentia constrangido por ser capaz de se transformar em uma criatura inumana. Não deveria ter tocado no assunto, mas era necessário falar. — Luana, eu sinceramente não sei como me transformar. — ele falou, enquanto os reféns se entreolhavam, seus olhares apavorados. — Como foi da última vez? — Eu não sei. Só me lembro de ter visto o detetive te batendo e tudo se tornou muito confuso. — Talvez eu deva fazer algo para te enfurecer, e então você se transformará e sairá daqui em segurança. — Acontece que eu seria incapaz de me enfurecer com você. Talvez fosse verdade, mas não custava muito tentar. Estava decidida: no momento certo faria Daniel se transformar na criatura bestial e sair dali em segurança. Precisava apenas pensar em uma forma de fazer isso. Ao terminarmos a refeição, ele voltou para perto da janela, permanecendo ali, imóvel e silencioso, seu rosto novamente contraído de tensão. Pouco a pouco a claridade do dia foi invadindo o quarto, era mais um dia frio de inverno. Eu encontrava-me sentada na beirada da cama, meus olhos fixos em Daniel. Apesar de sentir minhas pálpebras muito pesadas, não podia dormir, não queria deixá-lo sozinho, afinal eu era a única pessoa que ele tinha neste momento. Não seria justo que eu adormecesse e ele ficasse acordado, sozinho, aflito e cansado. Tudo o que eu queria naquele momento era trocar de corpo com ele, tomar posse dos seus sentimentos, para que suas angústias se transferissem para mim, deixando-o em paz, pois qualquer coisa seria melhor que vê-lo aflito daquela forma. Com o objetivo de despertar o sono que tentava, a todo custo, tomar conta de mim, fui até o banheiro, em busca de uma chuveirada fria. Chegando lá, deparei-me com minha própria imagem no pequeno espelho embutido na parede. Eu tinha uma aparência péssima: meus cabelos densos, longos e ruivos encontravam-se completamente emaranhados, como um ninho de ratos; haviam escuras olheiras em torno dos meus olhos; meu rosto parecia diferente, era o mesmo: a pele clara, um pouco mais pálida que o normal, talvez ainda por causa do colapso nervoso, os olhos castanhos esverdeados, afundados nas órbitas, mas ainda assim, diferente, como se algo lhe fora acrescentado, embora eu não conseguisse distinguir do que se tratava. Após o longo e relaxante banho, vesti um jeans e casaco de moletom preto, encontrados no guarda roupas, provavelmente de Débora, mas como ela estava dormindo, em um cobertor forrado ao chão, ao lado do marido, não tive oportunidade de lhe pedir permissão para usar a roupa. Senteime novamente sobre a cama, desta vez com as pernas estendidas sobre o colchão e as costas recostadas na cabeceira. Me sentia extremante cansada, precisava de um grande esforço para não dormir. Olhei novamente para o rosto de Daniel e percebi que parecia tão cansado quanto eu. Quanto tempo suportaríamos permanecer naquela situação? Ele já estava ali há quase vinte e quatro horas e

eu há oito horas. — Por que você não vem dormir um pouco? — perguntei — Pode deixar que eu vigio o lado de fora. — Não. Eu estou bem. — a voz dele era fraca, tão cansada quanto sua fisionomia. — Não. Estou vendo que você não está bem. Está cansado e fraco. Ele desviou seu olhar para o chão, pondo-se cabisbaixo e disse: — Pela primeira vez, desde que comecei tudo isso, não sei o que fazer. Me sinto totalmente impotente. Fui até ele, acariciando-lhe o rosto com a ponta dos dedos, como se tentasse reconfortá-lo. — Eu entendo como você está se sentindo. Mas não suporto vê-lo assim. No fundo, sei que vai terminar tudo bem. — eu falei. — Daqui a alguns dias estaremos no Himalaia, e riremos de tudo isso. — Você acredita mesmo nisso? — ele perguntou, fitando-me profundamente nos olhos. Em meu íntimo, carregava as mesmas incertezas que ele, mas não podia revelar-lhe e desanimá-lo ainda mais. — É claro que eu acredito. — afirmei, tentando parecer o mais convincente possível. — Agora por que você não vai tomar um banho? Vai se sentir melhor, mais relaxado. — Não. É perigoso demais me afastar da janela. — Pode ir, eu tomo conta da janela. Ele não mais respondeu, desviou o seu rosto para a janela, enquanto seu olhar se perdia no infinito. Desanimada, comecei a vasculhar o recinto, a procura de algo que me ajudasse a permanecer acordada. Revirei a estante em busca de um filme para assistir, mas não havia nenhum que valesse à pena, apenas alguns longas metragens de ação e de faroeste, os dois gêneros que menos me atraíam. Liguei o aparelho de televisão, onde era exibido um programa de desenhos infantis, comecei a mudar os canais, em busca de algo mais interessante, quando uma notícia no telejornal me chamou a atenção. Era uma reportagem sobre Daniel, transmitida ao vivo de diante do cativeiro. O repórter dizia que o sequestro do famoso advogado Thális Itiel e de sua esposa, já se estendia por quase vinte e quatro horas. Após serem descritos os rumos das negociações entre a policia e o sequestrador, começou a ser exibida uma reportagem sobre toda a trajetória de crimes de Daniel, desde que deixara sua família no Paraná e saíra pelo país assassinando pessoas que, aparentemente, não tinham nenhuma ligação com ele. Mais uma vez, foram exibidas as fotos dos corpos das vítimas, encontrados completamente estraçalhados, inclusive o corpo de Orlando, o mais dilacerado de todos, como se fora vítima de ataque de um animal feroz e não de um ser humano. Descreviam Daniel como o mais cruel, frio e incompreensível dos assassinos, enquanto exibiam uma foto sua, na qual ele estava sorrindo, tinha o rosto totalmente relaxado e parecia bastante feliz. Embora se tratasse de uma foto recente, ali ele parecia ainda mais jovem. O repórter fez uma narrativa de suas fugas pelo país, ocasiões em que assassinara vários policias. Depois foi exibida uma foto antiga minha, enquanto o narrador me descrevia como mais uma de suas vítimas, afirmando que, de acordo com o depoimento dos seguranças de Orlando, eu fora até seu patrão para pedir proteção. Eles acreditavam que o fato de Daniel ter nos encontrado juntos, pouco ante de assassiná-lo, não passava de simples coincidência. Durante a longa reportagem, não houve menção ao massacre da família de Daniel, como se o fato fosse ainda desconhecido. Enquanto eu assistia, atentamente à reportagem, um ruído estranho, às minhas costas, chamou-me a atenção. Virei-me para aquela direção e vi Débora sentada ao tapete, ao lado do marido que ainda dormia. Ela tinha todo o seu corpo trêmulo, seus olhos arregalados de pavor, pois

também assistia ao noticiário. O ruído que eu ouvira, era emitido pelos seus dentes se batendo, descontroladamente. Ao passo em que conhecia Daniel, sua trajetória de crimes, ela se dava conta de que o risco que corria era ainda maior do que pensara. Acabava de constatar que Daniel era infalivelmente mortal. — Você está bem? — perguntei, temendo pelo bem estar da criança em seu ventre. — Mais ou menos. — ela respondeu, com voz trêmula. O som de uma voz feminina, madura, partiu da televisão. Virei-me para ela constatando que se tratava da mãe adotiva de Daniel, dando um depoimento, durante o qual apelava, desesperadamente, para que o filho se entregasse à policia, assegurando-lhe a disposição dos melhores advogados do país. Ao fim de sua fala, ela tinha o rosto banhado de lágrimas e lembrou-lhe o quanto o amava. Instintivamente, virei-me para fitar o rosto de Daniel, só então percebi que ele também mantinha sua atenção fixa no noticiário da TV. Não soube se fora minha impressão, ou se uma lágrima solitária escorria pelo rosto dele. Arrependida por ter ligado o aparelho, desliguei-o e voltei a sentar-me na cama, sentindo-me cada vez mais cansada. — Por que seus pais adotivos não revelam à policia o que levou você a fazer o que fez? — eu perguntei. — Por que não contam a eles sobre o assassinato de sua família biológica? — Antes de sair de casa eu os fiz prometer que jamais fariam isso, mesmo que eu fosse apanhado. — Mas por que não? Isso ajudaria a reduzir sua culpa. — Jamais haverá perdão para o que fiz, Luana. E eu sabia disso quando comecei tudo. Não esperava sair vivo dessa, eu não sabia que... amaria você. — as últimas palavras dele soaram um tanto trêmulas. — A família dele foi assassinada? — Débora perguntou, seus olhos azuis fitando-me complacentemente. Olhei para Daniel, como se pedisse sua autorização para falar a respeito de um assunto que era só seu. Ele meneou a cabeça, afirmativamente. — Foi sim. A mulher que estava falando na televisão é mãe adotiva dele. — eu falei. — Sua verdadeira família foi destruída pelos homens que ele matou. — E por que eles fizeram isso?! Novamente, meu olhar encontrou o de Daniel. Ele tornou a assentir para que eu continuasse. — É uma longa história. — Mas não estamos fazendo nada mesmo, não é? — ela ajeitou-se sobre o tapete, ao lado de Thális, que acabava de despertar de seu sono intranquilo, também se preparando para ouvir a estória. Rapidamente, narrei-lhe todos os acontecimentos sobre o massacre que destruíra a família de Daniel, deixando de fora apenas o fato de ele ter se transformado na criatura descrita pela “lenda”, pois certamente isso a assustaria ainda mais e prejudicaria o bebê, fiz parecer que a população de Serra Azul inventara toda a estória como um pretexto para dar fim àquela gente. Ao final de minha narrativa, Débora se mostrava ainda mais amistosa conosco e o olhar de Thális já não expressava mais tamanha hostilidade. Eles agora podiam compreender os motivos que levaram Daniel a cometer tantos crimes, a agir de forma tão violenta. De certa forma, aquelas duas pessoas se tornaram nossas cúmplices, pois eram os únicos, além de nós dois e dos pais adotivos de Daniel a conhecerem a verdade. Quando o silêncio e a tensão voltaram a reinar no aposento, fiz com que minha mente

trabalhasse rapidamente, em busca de uma maneira de enfurecer Daniel, de fazê-lo se transformar em lobisomem e sair dali em segurança. Ele falava em morte, mas eu não permitiria que ele fosse morto, encontraria uma forma de salvar sua vida, sua liberdade, para juntos prosseguirmos em nosso sonho de felicidade, de fugir para o Himalaia e construirmos uma família. No entanto, por mais que eu pensasse, nada me ocorria. A única forma que eu conhecia de irritar um homem, a qual me fora ensinada desde cedo, era negar-me a ele. Mas como me negaria a Daniel se ele mal me tocava? Cogitei esmurrá-lo, esbofeteá-lo, mas não funcionaria com ele, logo perceberia o meu plano e não se transformaria. Enquanto eu pensava, o dia se arrastava lentamente, as horas pareciam intermináveis. Daniel permanecia, todo o tempo, em pé, diante da janela do quarto, seu rosto evidenciando cada vez mais cansaço e fraqueza. Os biscoitos não eram suficientes para mantê-lo forte. Livre das amarras, Débora encontrava-se completamente solta pelo quarto, comendo bombons de chocolate e visitando o banheiro a todo momento. Ela mostrava-se bastante simpática e amigável, diferentemente de Thális, que continuava com o rosto severo, hostil. Do lado de fora, a movimentação de repórteres, policiais e curiosos continuava frenética, incessante. A todo instante o detetive Luiz Carlos fazia contato com Daniel, através do auto falantes, tentando, insistentemente, convencê-lo a se entregar ou a libertar pelo menos a mulher grávida, alegando que esta poderia perder o bebê, diante de tais circunstâncias. Daniel, por vezes lhe respondia, por vezes o ignorava, mantinha-se decidido a libertar Débora apenas em troca de um carro para fugir, levando Thális consigo até encontrar-se em segurança. Mas os policiais se recusavam a atendê-lo, alegavam que só lhe disporiam o carro em troca da liberdade de pelo menos um dos reféns. Já haviam percebido que Daniel não os mataria, ou o teria feito. Eu me sentia cada vez mais exausta, sobressaltada, tinha o pressentimento de que a qualquer momento os policiais invadiriam o quarto e matariam a todos. O primeiro alvo deles seria Daniel, depois as testemunhas. Eu temia mais pela vida dele que pela minha própria. Quando a noite caiu a tensão e a exaustão me eram quase insuportáveis, por mais que Daniel insistisse em me convencer a descansar, eu me recusava a adormecer e deixá-lo sozinho, era o mínimo que eu podia fazer para ajudá-lo: permanecer ao seu lado. Gostaria de poder fazer mais, mas sequer fui capaz de fazê-lo se transformar na fera imortal. Com o avançar da noite, os olhos dele assumiram uma nova expressão, algo indefinível, parecia um misto de tristeza e angústia. Passou a me observar com mais frequência, mas sempre que eu tentava encará-lo, ele desviava seu olhar. Por volta das dez horas da noite, ele veio até a mim, de repente, tomando-me em seus braços, apaixonadamente. Tinha seu corpo ligeiramente trêmulo, coberto por um suor frio, provavelmente pela fraqueza. — Me desculpe por tudo, Luana. — ele falou, num sussurro, sem desvencilhar-me dos seus braços. — Por Deus, Daniel! Te desculpar por quê? — Por ter envolvido você nessa história toda. Você não merecia estar passando por isso. Eu afastei-me alguns centímetros, fitando-o diretamente no rosto, forçando-o a me encarar. — Entenda uma coisa, Daniel, te conhecer foi a melhor coisa que já me aconteceu. — eu falei, com sinceridade. — Eu não me importo com nada disso que está acontecendo, só me importo em estar ao seu lado. Você é tudo o que eu quero, entende? Não me importo com o preço que tenha que pagar. O olhar dele se tornou ainda mais triste, algo que eu não consegui compreender. Ele abraçou-me novamente, recostando seu rosto no meu. — Eu te amo, Luana. — Também te amo.

— Eu te prometo que você vai ficar bem, que você vai ser feliz... — Mas é claro que eu vou! Ao seu lado. Nós seremos felizes juntos. O corpo dele se estremeceu de encontro ao meu, então ele se afastou, apenas alguns centímetros. Fitou-me profundamente nos olhos, com uma expressão indefinível no olhar e disse: — Quero que você me prometa uma coisa. — O que? — Que se algo de ruim me acontecer, você vai mudar a sua vida, vai tentar ser feliz. Subitamente, senti o sangue fugir da minha face, o chão parecia desaparecer debaixo dos meus pés. Do que Daniel estava falando? Ele pretendia se entregar? Deixar-se ser morto pela policia? — Por que você está falando isso? — consegui perguntar finalmente, forçando as palavras a atravessarem o nó que se formava em minha garganta. Mas ele não respondeu, fitou-me em silêncio por um longo momento, depois, tomou os meus lábios com os seus, num beijo arrebatador. Ele jamais antes me beijara com tamanha paixão e voracidade, parecia estar faminto por aquele beijo. Dominada pelo mais primitivo dos desejos, enlacei os meus braços em torno do pescoço dele, puxando-o mais para mim, apertando o meu corpo contra o seu, tomando consciência da virilidade masculina que se comprimia contra o meu ventre. Quis, naquele instante, como jamais quisera algo antes, que ele me despisse ali mesmo e carregasse meu corpo nu até o conforto da cama, porém, ele me afastou, desvencilhando meus braços do seu pescoço. — O que foi? — perguntei, desapontada, só então dei-me conta de que Débora nos observava com um sorriso malicioso nos lábios. — Eu... eu preciso tomar um banho, estou fedendo mais que um gambá. — Daniel falou, com respiração ofegante, em seguida, dirigiu-se para o banheiro, sem esperar minha resposta. Ao passo em que meu coração voltava a bater em seu ritmo normal, mais calmamente, as palavras de Daniel me voltaram à mente. Ele tornara a falar em morte, queria me fazer prometer que reconstruiria minha vida sem ele, o que seria impossível, pois sem o seu amor eu não seria nada, absolutamente nada. Não permitiria que ele me deixasse, mesmo que para isso precisasse me colocar entre ele e os policiais. Não tiraria meus olhos dele até sairmos dali, até estarmos em total segurança. Se ele pensava em se entregar, em se deixar ser morto pela policia, eu correria na sua frente para receber as balas a ele direcionadas. Minha única certeza, naquele momento era a de que não ficaria sem ele, antes disso me entregaria à morte. Alguns minutos depois, ele retornou do banheiro. Tinha seus cabelos molhados e usava apenas a toalha de banho em torno dos quadris, deixando à mostra os músculos bem definidos do peito e das coxas. Com passos largos e vagarosos, foi até o guarda roupas, de onde tirou duas gravatas, dirigiu-se para os reféns, vendando-lhes os olhos, em seguida, veio em minha direção. — Nossa! Você parece ter planejado tudo. — falei. Ele tocou os meus lábios com a ponta dos seus dedos, silenciando-me, fitou-me profundamente, com uma infinita tristeza expressada em seu olhar, cujo motivo eu não compreendia e, sem uma única palavra, ergueu-me em seus braços, que pareciam de aço, estendendo o meu corpo sobre a cama. As batidas do meu coração eram tão aceleradas que eu podia ouvi-las. Depois, ele deitou-se ao meu lado, afastando, suavemente uma mecha de cabelo que me caía na testa. — Eu morreria por você. — disse ele, num sussurro rouco. Quis perguntar-lhe porque falava de morte, durante um momento tão mágico, mas antes que

pudesse proferir minhas palavras, seus lábios cobriram os meus, num beijo apaixonado, agora mais suave e lento que antes, porém não menos intenso. Como se estivesse hipnotizada, comprimi minha mão contra sua nuca, puxando-o para mais próximo, fazendo-o deitar-se sobre mim. Logo me senti invadida pelo desejo ardente que queimava em minhas entranhas, incendiando-me. Até poucos dias atrás, eu desacreditava existir um sentimento tão intenso quanto aquele, o qual me fazia esquecer de tudo o mais, deixando-me consciente apenas do calor do corpo de Daniel sobre o meu. Com uma das mãos arranquei a toalha de banho que enlaçava seus quadris, permitindo-lhe me despir do jeans e do moletom. Após contemplar o meu corpo, completamente nu, percorrendo seu olhar, brilhante de ardor, por cada detalhe da minha intimidade, ele beijou-me novamente nos lábios, avidamente, deslizando seus lábios úmidos através da pele do meu pescoço, até alcançar o meu colo, dado início ao momento mais belo e indescritível de toda a minha existência... Aquele foi o amor mais inesquecível que eu e Daniel fizemos. Estivemos por horas consecutivas nos braços um do outro, saciando o prazer que nos consumia, até que mergulhei na mais profunda exaustão e adormeci... De repente, encontrava-me no sertão nordestino, próximo a Serra Azul. O lugar me era muito familiar, era o mesmo onde encontrara várias vezes o lobo cinzento, de presas terríveis. Percorri meus olhos ao redor, tentando avistá-lo, mas ele não estava em parte alguma. Comecei a me perguntar onde ele estaria, se estava bem, ou machucado. Não conseguia compreender o motivo da minha preocupação com aquele animal que tantas vezes me ameaçara. Era um mistério inexplicável, o vazio que sua ausência me causava. Como uma louca desvairada, comecei a correr pelo cerrado, meus olhos e meus ouvidos atentos, à procura do animal. Subitamente, sons de estampidos agudos atingiram meus ouvidos e eu abri os meus olhos. Encontrava-me novamente no quarto, deitada sobre a cama, meu corpo estranhamente vestido. Não me recordava de ter me vestido antes de dormir. Outro estampido ecoou ao longe, desta vez pude distinguir que eram estampidos de tiros. Aturdida, sentei-me rapidamente sobre o leito, percorrendo meu olhar ao redor, em busca de Daniel, mas ele não estava ali. Débora e Thális encontravam-se em pé, diante da porta do quarto, que se encontrava aberta, escancarada. Só então, minha mente, compreendeu o que se passava: o pior acontecera, Daniel se entregara, à polícia e à morte. Todos os meus temores se materializavam na mais inaceitável realidade. Com um só movimento, pulei de sobre a cama, lançando-me na direção da porta do quarto. Precisava alcançar Daniel, colocar-me entre ele e as balas das armas dos policiais, antes que fosse tarde demais. Porém, antes que atravessasse a única saída, Thális me segurou em seus braços, imobilizando-me. — Nããããooo!!! — eu gritei, um grito agudo, enquanto me debatia, tentando, sem sucesso, libertar-me dos braços de Thális. — Fica calma Luana. Ele fez isso por você. Se vocês dois fugissem juntos, a policia mataria você também. Ele se entregou para que você sobrevivesse. — a voz, delicada partia de alguém bem próximo, de Débora talvez, mas minha mente já não mais processava informação alguma, completamente absorta pelo objetivo de salvar Daniel. Depois de muito esforço, consegui finalmente libertar-me dos braços de Thális, arrancando, o mais depressa que minhas pernas me permitiam, em direção à porta, mas antes que a atravessasse, choquei-me, brutalmente, contra alguém, quase caindo para trás. Era um policial uniformizado, o qual me imobilizou novamente, com mais facilidade, agora. — Não! Me larga! Por favor, me solta! — eu gritava, enquanto me debatia contra o peito rochoso do

policial. Outros policiais entraram no quarto, empunhando pistolas e metralhadoras, vasculhando cada canto do local. Thális dizia algo a eles, mas eu não conseguia distinguir do que se tratava. Um dos policiais dirigiu-se a mim, com arrogância no olhar, mas eu não pude ouvir o que ele dizia, minha mente atordoada pelo desespero, pelo temor do que acontecera a Daniel. Logo, dois policiais me conduziam para fora da casa, segurando meus braços com força, um de cada lado. Rapidamente atravessamos o pequeno corredor e a sala, alcançando, finalmente o pequeno jardim. Da sacada da casa eu consegui avistar o corpo de Daniel, caído ao chão, próximo ao portão da cerca de madeira, ainda do lado de dentro. Estava completamente imóvel e coberto de sangue. Fazendo uso de uma força física que eu desconhecia possuir, consegui libertar-me dos dois policiais e corri até Daniel, ajoelhando-me ao seu lado, tentando verificar se ainda estava vivo, ele precisava estar vivo. Olhei o seu rosto de perto, estava banhado de sangue, havia um buraco em sua testa de onde o sangue jorrava abundantemente, ainda assim, sua fisionomia parecia tranquila, serena, como se estivesse dormindo. Espalmei minhas duas mãos sobre o seu peito forte, ainda quente, e chamei o seu nome, como se tentasse acordá-lo, mas ele não se moveu. Me preparei para uma nova tentativa, mas antes que a colocasse em prática, mãos fortes seguraram-me, obrigando-me a me levantar do chão, a me afastar do meu amor. — Ele está morto agora... — uma voz pronunciou tais palavras, levando-me ao mais profundo dos desesperos, ainda assim minha mente se recusava a aceitar o que meus olhos viam e o que meus ouvidos ouviam. Daniel não podia estar morto. Eu ainda estava sonhando, tudo não passava de um pesadelo. As mesmas mãos fortes que me obrigaram a me levantar do chão, me arrastavam rumo a uma multidão de pessoas, ignorando, completamente, minhas tentativas de me libertar. Eu mantinha meus olhos fixos em Daniel, enquanto me afastavam cada vez mais dele. Logo não consegui mais enxergálo, minhas vistas ofuscadas por flashes de câmeras fotográficas, dos repórteres, eu supus já que não conseguia vê-los, enxergava apenas Daniel, seu corpo ensanguentado, caído ao chão. Embora não estivesse mais ao alcance dos meus olhos, a imagem ficara gravada em minha mente, cegando-me para tudo mais. Contra a minha vontade, fui empurrada para o interior de uma viatura policial, lançada sobre o banco de trás, onde também sentaram-se dois policias uniformizados, um de cada lado de mim. Outro policial sentou-se ao volante, dando a partida, seguindo para um rumo desconhecido, afastando-me cada vez mais de Daniel. Num impulso, lancei o meu corpo contra uma das portas da viatura, numa tentativa desesperada de fugir, de voltar para onde Daniel se encontrava, precisava revê-lo, só mais uma vez, mesmo que fosse pela última vez. Porém fui detida em minha fuga pelos dois homens ao meu lado, os quais me seguraram ao mesmo tempo, enquanto dirigiam-me palavras, incompreensíveis aos meus ouvidos. Aos poucos tudo foi ficando muito silencioso, até que eu já não ouvia mais nada, apenas via o corpo de Daniel, ensanguentado, caído ao chão, sem vestígio de vida.

CAPÍTULO IV

Reabilitação

Rio de Janeiro, um mês depois. Encontrava-me deitada na cama, no meu pequeno apartamento em Copacabana, completamente imóvel, meus olhos fitando fixamente o teto, embora não o enxergasse realmente. Não tinha noção de quanto tempo encontrava-me ali, paralisada, naquela posição, sem conseguir dormir, ou me alimentar. O efeito do excesso de cocaína em meu organismo me impedia de sentir fome ou sono. Sentia apenas uma dor insuportável em meu coração, que latejava, aterradoramente, como se tentasse me destruir. Ainda podia visualizar, claramente, o corpo de Daniel, ensanguentado, caído ao chão. Quanto tempo fazia que ele partira? Uma semana? Duas? O tempo não importava. Em meu íntimo era como se tivesse acontecido ontem. “Eu morreria por você”. Foram suas últimas palavras, depois, proferira apenas uma sucessão de sussurros desconexos ao meu ouvido, enquanto fazíamos amor. “Eu morreria por você”. As palavras ecoavam, repetidamente, em minha mente, enquanto a imagem de seu corpo, sem vida, era nítida. De súbito, houve uma batida brusca na porta. Permaneci imóvel, esperando que o indesejado visitante fosse embora, mas ele não foi, em vez disso, bateu novamente, insistentemente. Esforçando-me para me equilibrar sobre minhas pernas dormentes, fiquei de pé, arrastando meu corpo, entorpecido pela cocaína, através dos dois cômodos que me separavam da porta, os quais encontravam-se sujos e desorganizados. Ao abrir a porta, deparei-me com o proprietário do apartamento que eu alugava, um homem rústico, com cerca de quarenta a nos de idade, parecia usar roupas menores que seu manequim, as quais ressaltavam sua barriga volumosa. — Vim buscar o dinheiro do aluguel. — ele disse, bruscamente. Recordei-me de que gastara todo o dinheiro, que ganhara na noite anterior, comprando cocaína. Eu já não ganhava tanto dinheiro quanto antes, me prostituindo, pois tinha meu corpo magro demais, por não me alimentar com a frequência necessária; meus cabelos foram cortados na altura do queixo e tingidos de preto, idéia de Margarida, para que eu não fosse reconhecida nas ruas. Já fazia algum tempo que os jornalistas cessaram o assunto sobre os assassinatos cometidos por Daniel, assim como meu suposto sequestro, mas ainda assim, de vez em quando, eu era reconhecida por alguém, ocasiões em que era condenada e hostilizada. Embora a mídia tivesse me retratado como mais uma vítima de Daniel, e embora Tháli e Débora confirmassem tal pressuposto no tribunal, no dia do meu julgamento, a população se recusara a acreditar. Mas quem acreditaria? Haviam fotos e gravações do momento em eu deixara o cativeiro e correra em direção ao corpo sem vida dele, o desespero que tomava conta de mim naquele terrível momento. Mesmo a polícia desacreditava em minha inocência, porém os depoimentos de Débora e Thális foram decisivos para que eu me livrasse de todas as acusações, permitindo-me a liberdade condicional. O casal fora subornado pelo pai adotivo de Daniel, recebendo uma grande quantia em dinheiro para deporem ao meu favor, afirmando

que eu era tão prisioneira quanto eles no cativeiro. Revelaram à polícia os motivos que levara Daniel a assassinar aquelas pessoas e como me coagira a conduzir Orlando até o local de sua morte. Graças a tais depoimentos, e à ineficácia da legislação brasileira, eu me livrara de anos de prisão. Me recordava, como que num sonho distante, de que a mãe de Daniel me convidara para ir morar com eles no Paraná, prometendo-me a possibilidade de uma vida melhor que a que eu levava me prostituindo nas calçadas de Copacabana. Mas eu não poderia aceitar tal convite, pois era incapaz de conviver no mesmo ambiente onde Daniel crescera e vivera toda a sua juventude, me deparar com suas fotos, suas roupas, seu cheiro. Seria ainda mais insuportável para mim a sua ausência em meio à tantas lembranças suas. Preferia voltar para as ruas e esperar que o torpor da cocaína me fizesse esquecer minha dor. Porém, o plano não estava dando certo, nem mesmo toda a cocaína do mundo era capaz de me fazer esquecer a imagem de Daniel morto, meu sonho de felicidade destruído, meu amor arrancado de mim, de forma tão brusca. Jamais me livraria de tal dor, enquanto vivesse. Embora tivéssemos ficado juntos por apenas poucos dias, jamais conseguiria esquecê-lo, fora meu único e verdadeiro amor. Também não podia perdoá-lo por ter me deixado sozinha no mundo, por ter se entregado à policia, mesmo sabendo que seria morto. Se ele se entregara à morte para salvar a minha vida eu destruiria o que ele salvara. — Vou lhe pagar amanhã. —- falei eu, diante do homem muito gordo e alto à minha frente. Ele percorreu seu olhar por todo o meu corpo, com expressão severa. Eu sabia exatamente o que ele estava pensando: diante da minha repentina perda de peso, acreditava, como muitas outras pessoas, que eu estava com AIDS. Como costumava dizer Margarida: se uma garota de programa engorda é porque está grávida, se ela emagrece é porque está com AIDS. Essa era a opinião de todos. Mas felizmente, esse não era o meu problema, Margarida me levara para fazer o exame, logo que saíra da cadeia. Me recordava disso, como se tivesse ocorrido em um sonho irreal, como eram todos os acontecimentos da minha vida, desde que Daniel partira. Tudo parecia ilusão, não a realidade. As imagens não eram muito claras para mim: os dias que passara na cadeia; a mudança no meu visual; a despedida de Débora; os pais de Daniel; a partida de Sérgio do meu apartamento, alegando falta de atenção de minha parte. A única lembrança nítida em minha mente, era o corpo de Daniel, sem vida, caído ao chão. Todas as vezes que fechava os meus olhos era ele quem eu via, nas raras ocasiões em que conseguia adormecer, ele estava presente em meus sonhos, não conseguia pensar em mais nada a não ser nele, na dor insuportável causada por sua ausência. — Tudo bem, vou esperar até amanhã. — disse o senhorio, abruptamente. — Mas se não tiver o dinheiro, vai ter que desocupar o apartamento, OK? — Claro. Mas fique tranquilo, eu terei o dinheiro amanhã. — menti, pois sabia que todo o dinheiro que ganharia seria gasto com o meu vício. Quando o homem saiu, fechei a porta e me dirigi até a janela, só então percebi que já era noite, mais uma noite longa para mim. Recostei-me na mureta da pequena varanda, contemplando o mar do lado de fora, a brisa suava acariciando meu rosto. Se não estivesse tão entorpecida pela droga, provavelmente sentiria o delicioso cheiro da brisa. Fechei os meus olhos e, mais uma vez, visualizei o rosto de Daniel, ensanguentado, o sangue jorrando de sua testa. Por que eu não conseguia recordar os bons momentos que passara com ele? Abri os meus olhos novamente, minha cabeça estava inclinada para baixo e eu pude ver a rua lá embaixo, muito distante, já que eu me encontrava no sétimo andar. Comecei a me perguntar, quanto tempo levaria para morrer se eu pulasse dali; se eu reencontraria Daniel em outra vida. Subitamente, dei-me conta do absurdo dos meus pensamentos e

afastei-me da janela, antes que seguisse meus impulsos, como costumava fazer. Percorri meus olhos ao redor, a procura de algo, que não conseguia distinguir o que era. O apartamento estava um verdadeiro pardieiro: havia uma pizza velha, com cheiro fétido sobre a mesinha de centro da sala; roupas sujas espalhadas por toda parte; pontas de cigarros transbordavam de um cinzeiro. De repente, detive meu olhar sobre minha bolsa de paetês, recordando-me do que procurava: precisava de mais uma dose de cocaína antes de sair para as ruas. Então, sentei-me no chão, ao lado da mesinha, abri a pequena bolsa e retirei um papelote da droga, espalhei-a sobre o móvel e, habilidosamente, preparei o canudo com uma cédula de dois reais, aspirando a primeira carreira do pó, sentindo que meu corpo se entorpecia ainda mais. Uma suave dormência tomou conta de uma das minhas pernas, fazendo-a formigar. Ainda assim, consumi, toda a cocaína do papelote, guardando outros dois para mais tarde, antes de conseguir o dinheiro para comprar mais. Meia hora depois, eu caminhava pelas calçadas de Copacabana, minhas pernas dormentes, esforçando-se para se equilibrarem sobre os saltos finos das botas de couro. Encontrei Margarida em um barzinho de esquina, tomando cerveja gelada, na companhia de outra garota. Ela criticou minha aparência desmazelada, afirmando que meus cabelos estavam mal tratados, minhas roupas velhas e desbotadas, a maquiagem mal feita. Queria que me esforçasse mais ao me produzir antes de sair às ruas. Para Margarida a profissão era tudo, mais especificamente o dinheiro que ela trazia. Não ganhava muito arranjando clientes para as garotas, mas tinha paixão pelo que fazia. Na sua concepção, o valor de uma mulher era medido pela quantidade de clientes que ela arranjava em uma noite. Num passado recente, eu era uma garota de muito valor, aos olhos de Margarida, Mas como ela mesma afirmava, me encontrava em decadência. Deixando-as, caminhei mais alguns quarteirões, até alcançar o meu ponto de parada preferido: o mais longe possível do ponto dos travestis. Desanimada, recostei-me a um poste, enquanto os minutos se passavam lentamente. Outrora, eu não demorava tanto tempo no ponto, parada, aguardando a chegada dos clientes, pois era muito cobiçada. No entanto grande parte da minha beleza física fora roubada pelo emagrecimento e pela dor incessante que latejava em meu coração. Cerca de uma hora depois, eu começava a pensar em procurar um beco escuro para cheirar mais cocaína, quando um carro luxuoso estacionou no acostamento, á minha frente. Abri a porta do veículo e vi o rosto do seu motorista, um rosto já conhecido para mim, um homem com quem saíra inúmeras vezes, embora não me recordasse seu nome, nem onde morava ou o que fazia da vida. Ele balbuciou algumas palavras em cumprimento e eu entrei no carro, melancolicamente, forçando os meus lábios a se curvarem em um sorriso. Ele mencionou algo a respeito do emagrecimento do meu corpo, em resposta, abri minha pequena bolsa e lhe entreguei o resultado do meu teste de HIV, como Margarida me instruíra a fazer. O homem continuou falando, murmurou o que me pareceu um pedido de desculpas, mas eu não conseguia me concentrar no que ele dizia, pensava apenas no mármore da pia do banheiro da luxuosa suíte de motel onde ele costumava me levar, sobre a qual eu poderia espalhar e aspirar grande quantidade da cocaína guardada em minha bolsa. Chegando lá, imediatamente lhe pedi licença e me dirigi ao banheiro, trancando a porta pelo lado de dentro. Como havia planejado, espalhei todo o conteúdo de um papelote da droga sobre o mármore da pia, organizando-a em quatro pequenas fileiras. Com o canudo improvisado com a cédula de dois reais, aspirei a primeira fileira, a dormência em meu corpo se intensificando, quase obrigando-me a cair ao chão. Cheirei a segunda fileira do pó e já não mais consegui sentir o meu corpo, totalmente adormecido. Movendo-me com dificuldade, como se meu corpo se recusasse a obedecer as ordens da minha mente, cheirei a terceira fileira. Preparava-me para consumir a quarta e

última fileira da droga, quando senti meu corpo ser puxado pela gravidade, para o chão, fazendo-me cair desastrosamente, descoordenadamente, sobre a cerâmica gelada do banheiro. Tentei gritar por socorro, mas minha voz não saiu, minha língua e minha garganta adormecidos demais para cumprirem sua função. Pouco a pouco, tudo à minha volta foi se tornando escuro e antes que a penumbra me envolvesse de vez, fechei os meus olhos e vi Daniel, desejei, ardentemente, estar ao lado dele quando despertasse. Eu abi os meus olhos. Encontrava-me em uma cama muito confortável, com um grosso edredom me protegendo do frio. Por que estava tão frio, se já era mês de setembro? Percorri meu olhar ao redor, constatando que me encontrava em um quarto, amplo e bem mobiliado, com um armário compensado, ar condicionado, uma mesinha ao canto com flores. Quem me traria flores? Tentei sentar-me na cama mas uma leve tonteira me obrigou a deitar-me novamente. Inclinei minha cabeça para a frente, pra a parede, deparando-me com uma parafernália de aparelhos médicos e remédios sobre um balcão recoberto por cerâmica branca, embutido na parede, só então percebi que não me encontrava em quarto algum, mas em uma enfermaria de hospital. Uma enfermaria luxuosa, admitia, bastante diferente das dos hospitais, públicos, onde estava acostumada a ir, nas raras ocasiões em que precisava de atendimento médico, mas ainda assim uma enfermaria. Comecei a especular, mentalmente, quem me trouxera ali, há quanto tempo estava desacordada e, principalmente, quem estaria pagando a conta. Uma enfermaria tão bem equipada, que parecia mais um quarto de hotel, provavelmente custava muito caro. De repente, a porta de entrada se abriu e duas mulheres entraram. Uma delas tinha cerca de quarenta e cinco anos de idade, embora tivesse o corpo esbelto de uma jovem de vinte anos; cabelos grisalhos, cortados na altura da nuca e a pele do rosto bem tratada. A outra parecia muito mais jovem, com cerca de vinte e cinco anos, tinha cabelos lisos, negros, presos em um coque no alto da cabeça; sua pele era clara e os olhos castanhos. Ambas usavam jalecos brancos. — Olá, como vai você? —- perguntou a mulher mais velha, com tom de cordialidade e um largo sorriso nos lábios. Pigarreei para desfazer o bolo que se formara em minha garganta, provavelmente por ter passado muito tempo sem falar, depois perguntei. — O que aconteceu? — Você tomou uma overdose de cocaína. — respondeu a mulher mais velha. — Mas agora está bem. O Sr. Douglas trouxe você para cá. — Quem? — perguntei, confusa. As duas mulheres se entreolharam, num gesto de cumplicidade. Depois a mais velha voltouse novamente para mim, sua face corada, visivelmente embaraçada. — Bem... —- Começou ela. — O Sr. Douglas é o homem que estava com você naquele quarto de motel, ele te socorreu e te trouxe para cá. — E onde é que eu estou? — Você está na “Clínica Para Recuperação de Dependentes Químicos Dra. Valentina Aguiar”. Eu sou a Doutora Valentina e esta é a enfermeira Mônica. Eu já ouvira falar daquele local, era muito conhecido pela população carioca. Um lugar que atendia aos dependentes químicos integrantes da classe média social. Pelo que eu ouvira dizer, tratava-se de uma clínica muito cara. — Eu não tenho dinheiro para pagar uma internação aqui. — Falei eu.

— Oras! Não se preocupe com isso, o Sr. Douglas está arcando com todas as despesas. Você poderá ficar aqui até se recuperar. Ele pagará tudo. — Onde está esse Sr. Douglas? — Ele está trabalhando, é um homem muito ocupado, mas assim que ligar para ele e disser que você já acordou, aposto que virá para cá correndo. — ela aproximou-se mais de mim, pousando sua mão gelada sobre a minha. — Sinto muito ter que te dizer isso minha querida, mas não conseguimos salvar seu bebê. Eu a fitei aturdida. — O que?!— perguntei apenas pra confirmar se ouvira corretamente. As duas mulheres se entreolharam novamente. A enfermeira dirigiu-se rapidamente em direção ao balcão com medicamento, escolheu um pequeno frasco cheio com um líquido branco, enfiou uma agulha em sua extremidade, sugando o líquido para o interior da seringa. — Me desculpe, mas o bebê não resistiu à overdose. — Mas do que é que a senhora está falando? — minha mente recusava-se a aceitar a realidade. — Ah, meu Deus, você não sabia! — ele fitava-me com espanto no olhar. — Você estava grávida de quatro semanas. Lentamente, meu consciente digeriu aquelas palavras e eu finalmente compreendi o que se passava: eu ficara grávida de Daniel, na última vez em que fizemos amor, poucas horas antes de sua morte, há exatamente quatro semanas atrás e matara nosso bebê inocente, ainda em meu ventre. Eu destruíra o único vínculo real que ainda tinha com Daniel, a única certeza de que ele existira. Num impulso incontrolável, pulei de cima da cama, meus pés atingindo o chão desequilibradamente, meus olhos vendo todo o quarto girar. Esforçando-me para me manter de pé, dirigi-me rapidamente para a porta, atravessando-a, seguindo por um longo corredor. Precisava voltar para Copacabana, precisava de outra overdose de cocaína, desta vez uma overdose fatal, pois eu não merecia viver, era assassina do meu próprio filho, fruto do único amor da minha vida. Daniel partira, de maneira brutal, mas deixara em meu ventre o fruto do nosso amor, o qual eu destruíra com meu vício mundano, com minha fraqueza em enfrentar a vida. Realmente eu não merecia viver. Ao final do corredor, deparei-me com uma grande sala, mobiliada com vários jogos de sofás, onde dois homens, vestidos de branco, vieram ao meu encontro, segurando-me, um de cada lado, detendo-me em minha fuga, enquanto eu me debatia, tentando, sem sucesso, me libertar da suas mãos. — Não! Me deixa! Me solta! Eu preciso sair daqui! — eu gritava, desesperadamente, enquanto os dois homens me arrastavam de volta para o quarto, sob o olhar aturdido, de várias pessoas desconhecidas. Na enfermaria, eles forçaram-me a deitar-me novamente no pequeno leito e continuaram a me segurar, enquanto a enfermeira Mônica injetava, em minha veia, a injeção que antes estivera preparando. Enquanto o medicamento se espalhava em meu sangue, o cansaço foi, pouco a pouco, me dominado, minhas pálpebras se tornaram pesadas, meus músculos se relaxaram, proporcionando-me uma agradável sensação de tranquilidade, até que, lentamente, eu adormeci. Quando despertei do sono profundo, sentia-me calma, anormalmente calma, talvez ainda pelo efeito do medicamento. Ainda me encontrava na cama da enfermaria, enrolada com o edredom. Havia uma agulha enfiada na veia de minha mão, a qual se ligava a uma bolsa de soro, através de um pequeno tubo transparente. Relembrei a revelação feita pela Dr. Valentina, sobre o meu filho morto e, instintivamente, espalmei minha mão sobre o meu ventre, sentindo-o vazio, como jamais sentira

antes. — Você está bem? — a voz grave, masculina, partiu do meu lado, de bem próximo. Virei o meu rosto na direção da voz e imediatamente reconheci o rosto do homem com quem estivera no momento em que tomara a overdose de cocaína. Ele estava sentado em uma poltrona, ao lado de minha cama; usava um terno cinza, muito elegante e formal; tinha cerca de quarenta anos de idade, mas o corpo musculoso, visivelmente bem definido, por sob os tecidos das roupas, lhe conferia menos idade; a pele era clara e contrastava com os olhos e os cabelos negros. Sua postura imponente, lhe emprestava um ar quase arrogante. — Você é Douglas? — perguntei, apenas para me certificar do que já sabia. — Bem, acho que a doutora Valentina já lhe falou sobre mim. — ele disse, observando-me com evidente desinteresse. — Sinto muito pelo seu bebê. Senti todo o meu corpo estremecer com a menção ao meu bebê, morto ainda em meu ventre. Uma torrente de lágrimas ameaçaram aflorar em meus olhos, mas, com esforço consegui contê-las. Não havia mais nada a ser feito, eu estaria marcada pela dor e pela culpa para o resto da minha vida, tempo que eu esperava ser curto. — Por que você está me ajudando? — perguntei ao homem ao meu lado. Não conseguia compreender as atitudes dele, os motivos que o levavam a pagar uma clínica tão cara para mim, afinal, mal nos conhecíamos, apenas nos encontramos algumas vezes, nas suítes dos motéis, ocasiões em que o diálogo era pouco, entre nós acontecia apenas o sexo, mecânico e sem amor. — Porque fiquei preocupado com você. — ele respondeu. Realmente gostaria de acreditar naquilo, que alguém ajudaria ao próximo sem segundas intenções, sem cobrar nada de volta ou pensar no próprio benefício, mas eu havia perdido a fé na humanidade. Sentei-me na cama para que pudesse fitá-lo diretamente nos olhos e disse: — OK, vamos ser francos um com o outro. Nós dois sabemos que ninguém ajuda ninguém sem querer algo em troca. Então pode falar, o que você quer de mim? Os lábios dele se abriram num largo sorriso, revelando dentes brancos e perfeitos. Quando ele sorriu, duas covinhas se formaram em suas bochechas, atribuindo-lhe um ar quase angelical. — Não quero nada de você. Afinal o que você tem que ainda não tenha me dado? Apesar de sentir minhas faces corarem com as palavras dele, o admirei por sua sinceridade. Ainda assim, me recusava a acreditar na voluntariedade de sua generosidade. — Ninguém paga uma clínica tão cara a troco de nada. — insisti. — Dinheiro não é problema para mim, Luana. — ele falou, seu rosto sério novamente. — Bem, acontece que eu não suporto ver você naquela situação, saindo com qualquer homem que te pague. Isso dói em mim. Você pode não acreditar, mas gosto de você, quero que mude sua vida. — E como eu faria isso? Você por acaso pretende me sustentar, em troca de favores sexuais? O rosto dele ficou corado, seus olhos assumindo uma expressão indefinível. — Não, não é nada disso. Na verdade, queria. —- ele hesitou. Assenti, com um meneio de cabeça, para que continuasse. — Tenho uma proposta de emprego para você. Mas primeiro terá de se recuperar totalmente. — E que emprego seria? — Bem, eu tenho um sítio em Itatiaia, onde crio cavalos, para vendas, sabe? — Sei. — E estou precisando de uma pessoa para trabalhar lá. Como sei que você aprecia os cavalos, acho

que será a pessoa mais indicada para o cargo. — E que cargo seria esse? — De ajudante. Lá tem serviço demais, os funcionários andam se queixando que precisam de alguém para ajudar. Eles moram lá mesmo, em uma casa. Você poderá morar com eles. São uma família muito receptiva. E então, o que acha? Neste momento, eu não pude deixar de sorrir, pois enxergava diante de mim uma nova perspectiva de vida, uma maneira de sair, de uma vez por todas, da prostituição e da cocaína que matara meu filho. Vivendo em um local isolado da civilização, em meio aos cavalos, que desde a minha infância eram a minha paixão, eu certamente encontraria a paz que me abandonara já fazia alguns anos. — Eu aceito. — falei decidida. — Tudo bem, mas só quando você se recuperar. Não se preocupe com as despesas da clínica, eu pagarei tudo, quero apenas que você se interesse em ficar boa, OK? — Eu não sei nem como te agradecer, por tudo o que está fazendo por mim. — Não precisa me agradecer, apenas fique curada... —- neste instante, o seu celular tocou, interrompendo suas palavras. Ele atendeu ao pequeno e sofisticado aparelho, falando com tom de voz arrogante e autoritário, diferente de quando se dirigia a mim. Falou por alguns minutos, depois desligou o aparelho, voltando-se novamente para mim. — Agora eu tenho que ir. — ele falou, tocando minha testa com seus lábios, num beijo muito suave, quase paternal. — Volto para te ver depois. — e ele saiu do quarto, deixando-me absorta em meus pensamentos e incertezas. Douglas parecia um competente homem de negócios, os quais eu distinguia por sua perspicácia e inteligência, não faria um negócio que não lhe trouxesse lucros futuros. No entanto, eu não tinha nada para dar a ele, como ele próprio dissera, que já não havia dado. Ele não precisaria pagar aquela clínica tão cara ou me oferecer um emprego para, em troca, possuir o meu corpo, o único bem que eu possuía, bastava apenas me procurar nas calçadas de Copacabana, como sempre fizera. Talvez eu estivesse exagerando em minha desconfiança, talvez ele realmente gostasse de mim, como afirmara, ou que outro motivo teria para me ajudar? Porém, ainda assim era perigoso, pois poderia exigir que seus sentimentos fossem correspondidos e isso seria impossível, pois em meu coração havia lugar para um homem apenas, e embora estando ele morto, jamais o esqueceria, jamais cederia a outro, seu lugar em meu peito Durante os dias que se transcorreram eu perambulava pela clínica como um zumbi, um corpo sem vida. Fazia psicoterapia, embora não falasse abertamente com a psicoterapeuta, uma experiente profissional que, como todos os demais, acreditava que eu fora sequestrada e torturada por um assassino frio e cruel, o que, de acordo com seu diagnóstico, me deixara irreversíveis sequelas emocionais. Jamais revelei a ela, ou a mais alguém, que este mesmo assassino fora meu único e verdadeiro amor, que ainda o amava e que sua ausência era o único motivo de todo o meu sofrimento. Ali, participava também de terapia de grupo, sessões durante as quais todos os internos expunham, aos demais, sua estória de vida, os tormentos e tragédias que seu vício causara a si e às pessoas próximas. Apenas eu evitava falar sobre mim, às vezes inventava algumas estórias e outras vezes me mantinha apenas como ouvinte, permanecendo em silêncio durante toda a sessão. Em uma de tais reuniões, a estória de uma jovem chamada Amanda me atraiu especial atenção: ela era viciada em heroína e em uma ocasião em que não dispunha da droga para usar, saíra de casa, desesperada, dirigindo seu carro, em alta velocidade, fazendo-o capotar na estrada, tirando a vida de seu irmão

caçula que lhe acompanhava. Ela carregava a culpa pela morte do menino, atormentando-se com esta. Amanda tinha sempre uma bíblia em suas mãos e uma palavra amiga a oferecer. Já estava ali há quase um ano e há muito recebera alta, mas se recusava a deixar o local por temer voltar ao vício. Todos os dias, no horário de visitas, ela se produzia e esperava que alguém viesse vê-la, mas ninguém aparecia. Ela fora a única pessoa de quem consegui me aproximar, pois tínhamos muito em comum. Ninguém vinha me visitar também, já eu não havia revelado a ninguém onde estava, nem mesmo a Margarida, pois, certamente, investiriam em me convencer a voltar às ruas, o que seria uma perigosa tentação. Com exceção de Douglas, que raramente aparecia, quase sempre fora do horário de visitas e atendendo frequentemente ao telefone celular, ninguém mais me visitava. Eu e Amanda tínhamos esses dois pontos em comum: ela matara seu irmão com seu vício e eu matara meu filho com o meu. Por isso, nos tornamos boas amigas, a única pessoa com quem eu conseguia conversar, apesar de não ser abertamente. A clínica Dr. Valentina Aguiar, ocupava todo um quarteirão da Gávea; possuía quadras de esportes como vôlei, tênis e basquete além de duas grandes piscinas para natação, esporte que eu escolhi praticar, por se tratar de uma atividade individual. As refeições eram servidas todos os dias no mesmo horário, numa sala imensa e bem decorada, onde os internos dividiam as mesas em grupos de no máximo quatro pessoas. O tratamento dos funcionários para com os internos era dos melhores, como se nos encontrássemos em um hotel cinco estrelas e não em uma clínica de reabilitação. Apesar de tudo, por várias vezes pensei em fugir dali, em voltar para as ruas e para as drogas, mas a lembrança do meu filho morto, pelo meu vício, me dava força para ficar, para suportar a ausência da cocaína em meu organismo. Com o passar do tempo, as medicações mostraram resultado e pouco a pouco fui esquecendo da droga, banindo-a completamente da minha memória. Quando três meses se passaram eu me encontrava totalmente recuperada, já não mais pensava na cocaína, embora a tristeza de perder Daniel sempre me acompanharia. Em uma ensolarada manhã de quarta feira, recebi alta da instituição e ao sair à rua, uma limusine, enviada por Douglas, me aguardava. Era a primeira vez que eu deixava aquele local desde que entrara ali, a frenética movimentação das ruas me incomodava mais do que imaginara. Pedi ao motorista da limusine que seguisse pela beira mar, para que eu me despedisse das praias, pois tão cedo não voltaria àquela cidade, estava decidida a me isolar da civilização, vivendo no mato, em meio aos cavalos, onde suportaria melhor a dor em meu coração, onde, certamente, ninguém a perceberia. Partimos em direção à Baixada Fluminense, seguindo pela Via Dutra, rumo ao sul do estado. Ao passarmos em frente ao local onde Daniel e eu nos beijamos pela primeira vez, senti um aperto tão forte no peito que achei que sufocaria, mas constatei que, no fundo, era bom ter uma lembrança boa dele, já que a visão de seu corpo sem vida, ensanguentado, caído ao chão, era a que permanecia mais nítida em minha memória. O sol encontrava-se bem no meio do céu, indicando o meio-dia, quando nos aproximamos de Itatiaia, onde o motorista deixou a rodovia, seguindo por uma pequena estrada asfaltada. Mais adiante, abandonou o asfalto, partindo por uma estrada de pissarra. Alguns quilômetro à frente, finalmente avistamos os portões do sítio. Uma gigantesca porteira de madeira, pintada de branco, onde, ao alto, se encontrava o seguinte letreiro: SEJA BEM VINDO AO SÍTIO BOA ESPERANÇA. Ao atravessarmos a porteira, logo avistei a sede da propriedade, há poucos metros de distância. Tratava-se de uma imponente mansão, de dois andares, pintada nas cores púrpura e branco. Tinha janelas de vidro transparente e terraços nos cômodos do segundo andar. Era toda rodeada por uma imensa varanda em estilo colonial. Diante da qual, estendia-se um jardim muito bem podado, com

belas roseiras floridas e pequenos coqueiros. Mais adiante, havia um espaço com cerca de cem metros quadrados, todo gramado, com uma grande piscina ao centro. Alguns metros mais à frente, podia-se avistar um curral, de madeira, todo pintado de branco, onde alguns cavalos se encontravam em uma espécie de treino, por dois habilidosos cavaleiros, ali haviam também os estábulos, construídos de madeira, pintados de branco, como o curral. O motorista da limusine, passou diante da mansão e dos estábulos, seguindo rumo a uma casa menor, construída de alvenaria, pintada de verde escuro, muito mais simples que a primeira, diante da qual ele estacionou. Ao sair do veículo, ele dirigiu-se até o banco de trás, abrindo a porta para mim e segurando minha bagagem, a qual consistia apenas em uma pequena mochila, contendo as poucas peças de roupas usadas que me foram doadas pelas demais internas da clínica. Quando nos aproximamos da porta de entrada da casa, uma mulher, com cerca de cinquenta anos de idade, afro-descendente e de corpo robusto, veio ao nosso encontro. — Boa tarde. — disse ela, olhando para o motorista, como se ignorasse minha presença. — Boa tarde, como vai você? — disse o homem. Depois ele se virou para mim. — Esta é Luana. Acho que o patrão avisou que ela viria. Virando-se para mim, pela primeira vez, a robusta mulher me examinou dos pés à cabeça, sua expressão severa, ligeiramente hostil. Virou-se novamente para o homem. — É, ele avisou sim. — disse ela. — Pode deixar que eu mostro a casa pra ela. — Ela pegou minha mochila das mãos do motorista, gesticulando para que eu a seguisse, partindo para o interior da moradia. Toda a casa consistia em dois minúsculos quartos, uma sala pequena, um banheiro e uma cozinha. A mulher pousou minha mochila sobre a pequena cama de solteiro de um dos quartos, dizendo: — Você vai ficar aqui. Foram ordens do patrão. — Você mora aqui sozinha? — perguntei, apenas para puxar assunto, tentando amenizar a hostilidade que ela me desferia. — Não. Moro com meu marido e meus filhos. — Onde eles estão? — Minha filha está na escola, em Itatiaia e os outros dois estão trabalhando. — ela fez uma pausa, percorrendo seu olhar ao redor, como se verificasse algo. — Agora preciso voltar ao trabalho. Você precisa de alguma coisa? — Não, obrigada. — apressei-me em responder. Embora sentisse meu estômago doer de fome, já que não tinha almoçado, não queria incomodar, provocar ainda mais sua hostilidade, cujo motivo eu não compreendia. Talvez ela assistira aos noticiários da TV e, como muitas pessoas, não acreditava que eu fora apenas uma vítima de Daniel, como afirmava a imprensa. Quando ela deixou-me sozinha, percorri meu olhar pelo pequeno cômodo. Era mobiliado apenas pela cama e por uma cômoda de madeira antiga. Porém, apesar da simplicidade, era adequadamente limpo e arrumado. Dos lençóis da cama emanava um agradável odor de limpeza. Abri a pequena janela, que dava acesso ao lado de fora, de onde pude avistar a parte mais alta da mansão, o curral e os estábulos. Agora dois homens, um jovem e outro mais velho, espalhavam cestos com ração dentro do curral, para alimentação dos animais. Certamente se tratavam do filho e do marido da mulher que me recebera. Ansiosa por ver os cavalos mais de perto, guardei, rapidamente, minhas poucas peças de roupas na cômoda, troquei o vestido de linho azul que usava por uma bermuda jeans e top de malha,

saindo, em seguida para o quintal. Aproximei-me do curral, onde os dois homens pareciam treinar os cavalos, para serem montados. O mais velho era magro e alto, tinha cabelos grisalhos e cerca de cinquenta anos de idade, sua pele negra brilhava sob os intensos raios do sol. O outro aparentemente, seu filho, tinha cerca de dezessete anos, era alto como o pai e forte como a mãe. Eles continuaram concentrados em sua tarefa, ignorando completamente minha presença. Os cavalos, dos quais não conseguia desviar meu olhar, eram os mais belos que já vira; haviam ali, as mais variadas raças: Andaluzes; Appoloosas; Campolinas; Crioulos; Holsteiners; Selas francesas; quarto de milhas; etc. Um deles em especial atraiu-me a atenção: um Puro Sangue inglês completamente negro, seus pelos reluzindo à luz do sol. Parecia o mais indomável de todos, por isso me fascinava. Me perguntei quem teria o privilégio de montar aqueles cavalos tão belos Ao terminar sua tarefa, o rapaz mais jovem, finalmente pareceu ter notado minha presença e veio me cumprimentar. — Oi. — disse ele sorrindo. — De onde você saiu? — Sou a nova funcionária da fazenda. — falei, sem desviar meu olhar dos cavalos. — Você é Luana? — a voz dele agora era mais grave. — Sou sim. — falei, ignorando a súbita mudança no tom de voz dele ao pronunciar o meu nome. — Será que posso montar um deles? — perguntei, gesticulando para os animais. — Você vai ter que pedir ao patrão. — E quando é que ele vem aqui? — Eu não sei. Mas agora que você está aqui, acho que ele não vai demorar a vir. Espantada, encarei pela primeira vez o jovem rapaz, pensando em lhe perguntar qual o fundamento de suas palavras, mas ele não esperou que eu abrisse minha boca, deu-me as costas e afastou-se. Continuei ali, imóvel, recostada ao curral, até que os dois homens saíram. O mais velho, que, seguia na frente, passou a poucos centímetros de distância de mim e sequer me cumprimentou, fazendo-me sentir, ainda mais indesejada ali. Desanimada, me dirigi em direção à mansão, à procura da velha mulher, em busca de fazer o que me trouxera ali, ou seja: ajudar com o serviço. Encontrei-a regando as plantas do jardim. — Oi. Me desculpe, mas, qual é mesmo o seu nome? — perguntei, sem saber como chamá-la. — Josefa. — ela respondeu secamente, sem desviar os olhos do jato de água que jorrava da mangueira em sua mão. — Bom... — comecei, sentindo-me desconcertada, com a indiferença dela. — Qual será o meu serviço? Ela finalmente ergueu seus olhos para mim, parecia espantada. — Eu não sei. O que o patrão lhe disse que faria? — Que eu seria ajudante. Ela percorreu seu olhar ao redor, como se procurasse algo, então, entregou-me a mangueira em sua mão, dizendo: — Nesse caso, pode terminar aqui enquanto eu vou limpar os estábulos, quando terminar, pode vir me ajudar, se quiser. Trabalhei arduamente, durante toda a tarde. Douglas não estivera mentindo quando dissera que havia muito serviço ali. Todos os funcionários estiveram ocupados durante as horas. No entanto, eu não me intimidava com trabalho árduo, pois estava acostumada com ele. Em Serra Azul crescera trabalhando na roça, sob o sol escaldante, típico daquela região. Nas horas de folga — quando eu mesma me dava folga, fugindo da roça —, cavalgava durante horas consecutivas, o que também era

uma tarefa cansativa, mas tão prazerosa que fazia valer a pena a surra que eu levava depois, por ter abandonado o serviço. Por volta das seis horas da tarde, quando o sol acabara de se por no horizonte, Josefa chamou para o jantar. Deixei de lado a tarefa de limpar o curral e segui diretamente para o pequeno quarto, peguei uma toalha, uma muda de roupas limpas e fui para o banheiro. Antes de sair do banho, ouvi duas pessoas discutindo do lado de fora, na sala, talvez. — Mas mãe, bota ela na sala e me deixa no meu quarto. — Não dá Rosa, o patrão deixou bem claro que ela deve ficar no quarto. — Quem ela pensa que é pra chegar aqui e roubar o quarto dos outros?! — Fala baixo menina! Ao sair do banheiro, encontrei as duas na sala. A adolescente, que tinha cerca de quinze anos, era magra e alta, desviou seu olhar para o chão ao me ver me aproximar. — Você pode ficar no quarto comigo, Rosa. — falei. — Não. — retrucou Josefa. — Ela vai dormir aqui na sala com o irmão. E não se fala mais nisso. Perfeito! Eu havia conquistado a inimizade de mais uma pessoa, pelo menos dessa, eu conhecia os motivos. Logo após o jantar todos se recolheram. Eu tive que fazer o mesmo, já que a sala, onde ficava a televisão, o único meio de distração na casa, era ocupada pelas redes de Rosa e de seu irmão Abraão. Durante horas consecutivas, rolei de um lado para o outro da pequena cama, sem conseguir adormecer, pois era tudo muito novo para mim. Eu não estava acostumada a dormir tão cedo, na clínica, passava boa parte da noite, assistindo filmes no DVD, apenas filmes de comédia, os romances e terrores eram proibidos lá, para não aflorar as emoções das pessoas. Rolei por mais algumas horas, enquanto travava uma batalha incessante contra os pernilongos, até que, por fim, adormeci. Ainda estava quase escuro quando ouvi a movimentação das pessoas caminhando pela casa, iniciando sua rotina de trabalho. É claro que eu detestaria me levantar tão cedo da manhã, mas precisava mostrar serviço e conquistar a confiança da família de empregados e, principalmente, de Douglas. Ainda meio sonolenta, tomei um banho e sentei-me à mesa para o café da manhã. Todos já haviam feito a refeição e tive que comer sozinha. Mas era melhor assim, pois não teria que me submeter aos olhares hostis que me foram desferidos durante o jantar, na noite anterior. Após saborear o delicioso mingau de fubá, parti em busca de Josefa, perguntando-lhe quais seriam minhas tarefas daquele dia. Trabalhei arduamente até ao meio dia, sem pausa sequer para ir ao banheiro. Varri o jardim da mansão e o quintal da casa menor; limpei os estábulos; reguei novamente as plantas; trouxe água para os cavalos; etc. Enquanto isso, Josefa fazia uma faxina na mansão, seu marido Sebastião e seu filho Abraão cuidavam dos cavalos e Rosa tratava dos afazeres domésticos da casa menor. Ao meio dia, encontrava-me recostada à cerca do curral, sentindo-me completamente exausta, observava os cavalos, quando Josefa gritou o meu nome, de dentro de casa, chamando para o almoço. Durante a refeição, a cena se repetia: ninguém falava comigo, como se eu não estivesse ali. Apenas me respondiam, secamente, quando eu tentava iniciar uma conversa ou participar de outra. Eu não conseguia compreender o que aquela gente tinha contra mim, me sentia como uma invasora de lares. Após o almoço, Josefa e Sebastião se recolheram para seu quarto, Abraão foi levar Rosa ao colégio, com o jipe velho da família e eu fiquei completamente só. Voltei para o curral e sentei-me sobre sua cerca de madeira. Observando, fascinada, os cavalos, em especial o Puro Sangue negro, do

qual não conseguia desviar meu olhar. Faria qualquer coisa para ter o privilégio de montar aquele cavalo de postura imponente, indomável e pelos reluzentes. Subitamente, lembrei-me de que, quando limpava os estábulos, vira algumas celas de montaria ali, as quais eu poderia apanhar antes que alguém chegasse a tempo de me impedir. Assim, agindo por impulso, fui até o estábulo e escolhi uma das selas, a maior de todas, pois era a que melhor se encaixaria no lombo do Puro Sangue, voltei ao curral e selei o animal com facilidade e o montei, deixando o curral, seguindo rumo às extensas terras de Boa Esperança, as quais pareciam estendiam-se até o infinito. Eu seguia com o cavalo em uma corrida veloz, enquanto o vento batia em meu rosto, esvoaçando meus cabelos, agora crescidos até a altura dos ombros, em sua cor natural: louros escuros. A sensação de liberdade, que me invadia, era indescritivelmente prazerosa, incomparável. Era como se eu voltasse no tempo, se estivesse novamente em Serra Azul, cavalgando livremente em meio ao cerrado. Cavalguei quilômetros e mais quilômetros de terras planas, cobertas pelo capim baixo, como no cerrado. O que era bem estranho, considerando o fato de que o relevo do estado do Rio de Janeiro era composto, quase que completamente, por morros de diferentes tamanhos. Como eu já esperava, encontrei uma área repleta por morros baixos, os quais fiz o cavalo escalar, subindo e descendo, sucessivamente. Lá embaixo, do outro lado dos morros, avistei uma pequena floresta, há cerca de um quilômetro de distância de onde eu me encontrava. Curiosa, cavalguei até lá, penetrando o matagal, o cavalo agora num trote lento, para desviar-se das imensas árvores. Em meio à escuridão da mata deparei-me com um lago de águas escuras, que me fez relembrar Daniel, dos momentos em que estivemos escondidos em meio ao mato, às margens de um lago como aquele, quando o seduzi para tentar fugir, quando fizemos amor pela primeira vez e eu descobrira que estava apaixonada por ele. Com tais pensamentos, saltei do cavalo e aproximei-me da margem do riacho, sentando-me sobre as folhas secas, imóvel, paralisada, meu coração latejando de dor, a dor por não tê-lo mais ao meu lado, por não ter tido mais tempo com ele, por ter deixado meu vício levar nosso filho. A angústia me era insuportável. Naquele instante dei início a um pranto irrefreável, que arrancava-me soluços descontrolados. Era a primeira vez que eu chorava desde que Daniel partira, vinha suportando minha dor em silêncio, esperando que um dia ela se dissipasse, mas não se dissiparia jamais, para sempre carregaria o desespero de ter perdido o único homem que amara e o fruto desse amor. Continuei ali durante horas consecutivas, imóvel, petrificada, meus olhos inchados pelo pranto. De súbito, dei-me conta de que o sol já começava a se por e eu precisava voltar. Não me importaria se recebesse uma punição por montar o cavalo sem permissão, valera a pena o passeio, a solidão que me fizera reencontrar Daniel, relembrar os bons momentos que passamos juntos e não apenas o momento de sua morte, como vinha fazendo. Relembrar aqueles momentos, me trouxera uma imensa paz interior, pois soube que poderia guardá-lo para sempre em minha memória, viver eternamente o nosso amor. Cavalgando velozmente, retornei à sede do sítio. Já estava escuro quando a alcancei. Após retirar e guardar a cela do cavalo, entrei na casa dos empregados, encontrando toda a família reunida em torno da grande mesa de madeira na cozinha. — Desculpem pelo atraso, eu... — comecei a falar. — Vai lavar as mãos e venha jantar antes que a comida fique fria. — Josefa me interrompeu, firmemente. Após lavar as mãos, sentei-me à mesa e comecei a fazer a refeição em silêncio, minha

mente absorta pelas lembranças de Daniel, pelos momentos bons que passamos juntos. — O que é que você tem? — a pergunta partiu de Rosa, despertando-me dos devaneios. — Eu? Hã... nada, por quê? — Porque parece que você estava chorando. — Cala essa boca e come, menina. Pára de se meter na vida alheia. — a repreensão era de Josefa. E Rosa não se dirigiu mais a mim, durante todo o restante da refeição. Nos dias que se seguiram, minhas cavalgadas se tornaram diárias. Ajudava nos afazeres do sítio até ao meio dia e à tarde, saía para cavalgar, pelas infinitas terras do lugar. Felizmente, não recebi repreensão alguma por usar o cavalo. Cada dia descobria um lugar novo, ainda desconhecido, lugares lindos, onde, em minha solidão, eu encontrava a paz e a tranquilidade. Descobri um local, uma pequena colina, de onde o por do sol se tornava um verdadeiro espetáculo. Todos os dias encerrava os meus passeios ali, apreciando o por do sol, o qual também indicava a hora de voltar para a casa, a hora em que seria servido o jantar. A família de empregados continuava me hostilizando ou, quando não, me ignorando, mas eu não ligava para eles, não significavam nada para mim. Só me importava com os meus momentos de solidão e tranqulidade, quando eu podia pensar em Daniel, relembrar nossos melhores momentos, imaginar como teria sido se ele e nosso filho não tivessem partido. Provavelmente seríamos uma família muito feliz, apaixonada. Todos os dias eu chorava, pensando em como teríamos sido felizes, se ele não tivesse partido. A dor em meu peito, me era quase insuportável. Era noite de sábado quando a tempestade me veio interromper a bonança. Por volta das dez horas da noite, eu havia acabado de adormecer, quando uma batida fraca na porta me despertou. — Quem é? — perguntei, apreensiva. — Sebastião. Abre a porta.— a voz partiu seca e firme. Em meio à penumbra, vesti-me de um roupão de tecido entoalhado, ocultando a pequena camisola de cetim e abri a porta. Sebastião se encontrava em pé, à minha frente, segurando um lampião, cuja luz era a única em toda a casa. — O patrão está aí e quer ver você. — ele disse, a expressão dos seus olhos era um misto de hostilidade a repreensão. — O que é que ele quer? — perguntei, embora, no fundo, já soubesse qual era a resposta. — Eu sei lá. Vamos logo que ele está com pressa. Sem compreender muito bem o que se passava, segui Sebastião até a mansão, onde entramos. O primeiro cômodo da casa se tratava de uma sala imensa, maior que toda a casa dos empregados. Era mobiliada com móveis sofisticados e muito bem decorada, em estilo indiano. Dali partia uma grande escadaria, por onde seguimos, Sebastião na frente e eu atrás. Ao alcançarmos o segundo andar, o homem bateu em uma das inúmeras portas que se estendiam ao longo de um largo corredor, a qual logo se abriu e Douglas apareceu. Ele usava uma camisa social branca, com os primeiros botões abertos até o peito, deixando à mostra uma fina camada de pelos negros, não usava o paletó nem a gravata formal de sempre. Ele tinha um copo de uísque, quase vazio, em uma das mãos e parecia totalmente relaxado, como não era de costume. — Aqui está ela patrão, como o senhor mandou. — Sebastião falou. — Obrigada Sebastião, agora pode ir. — Douglas disse e, após observar o outro homem se afastar, virou-se para mim, dizendo: — É muito bom vê-la, Luana. Agora entre. — suas últimas palavras possuíam um tom imponentemente autoritário. Hesitantemente, entrei no quarto, enquanto o ouvia fechar a porta atrás de mim. Me

perguntava o que estaria acontecendo de tão urgente para que Douglas me chamasse ali, àquela hora, mas, em meu íntimo, eu já sabia a resposta: chegara o momento de pagar por todos os favores que ele me fizera; por ter custeado a clínica de reabilitação; por ter me dado um emprego e um lugar para morar e, principalmente, por ter me dado a chance de sair das ruas. Percorri meu olhar ao redor, constatando que o quarto era tão grande quanto a sala, mobiliado com móveis caros e luxuosos. Um imenso armário embutido ocupava toda uma parede; a um canto haviam duas poltronas, em volta de um criado mudo; ao centro encontrava-se uma imensa cama de casal; em outra parede havia uma porta que certamente dava acesso a um banheiro e em outra uma porta, toda de vidro, dava acesso ao terraço. — O que está acontecendo? — perguntei eu, ainda meio sonolenta. Ele aproximou-se mais de mim, estava tão próximo que eu podia sentir o cheiro da bebida em seu hálito. Fitava-me altivamente, com um misto de ironia e satisfação no olhar, enquanto seus lábios se curvavam num suave sorriso. — Tem certeza que você não sabe o que está acontecendo? — ele sussurrou, inclinando sua cabeça para baixo, tocando seus lábios úmidos em meu ouvido, despertando-me um calafrio de pura repulsa. Obriguei os meus lábios a se curvarem em um sorriso, quando disse: — Mas é claro que eu sei. No fundo, eu já estava preparada para aquilo, sabia que Douglas me procuraria, pois nada na vida era de graça, tudo tinha seu preço e o preço da minha “salvação”, seria meu corpo, minha liberdade. Na verdade, Douglas não me amava, apenas desejava ter uma mulher jovem e bonita à sua disposição, para que não precisasse se expor ao constrangimento de pegar uma prostituta nas ruas, como fizera inúmeras vezes comigo. Por esse motivo me ajudara, me devolvera a vida: queria ter-me exclusivamente para si, para satisfazer seus desejos carnais, sempre que precisasse, sem nenhum inconveniente. No entanto, eu acreditava que era um preço pequeno a pagar por tudo o que ele fizera, pois me resgatara do fundo do poço. Eu continuaria sendo prostituta, mas desta vez de um homem apenas. Ele pousou o copo de uísque sobre o criado mudo, ao lado, e, lentamente, desfez o nó que prendia meu roupão à minha cintura, despindo-me da peça, deixando-a cair ao chão, aos meus pés. Percorreu seu olhar por todo o meu corpo, oculto apenas pela minúscula camisola de cetim. Seus olhos brilhavam, como os de um colecionador de obras de arte que apreciava uma nova aquisição. — Você está linda de novo, como quando a conheci. — ele falou. E era verdade. Depois de três meses na clínica eu recuperara o peso normal do meu corpo, voltando a ter minhas curvas bem torneadas. Meus cabelos novamente crescidos, deixavam-me mais sensual e feminina. — Obrigada. — falei, tentando parecer o mais relaxada possível. Lentamente, ele inclinou novamente sua cabeça para baixo, alcançando os meus lábios, cobrindo-os com os seus, enquanto que percorria suas mãos por todo o meu corpo, por sob o tecido fino e macio da camisola. Esforçando-me para conter a repulsa que me dominava, entreabri os meus lábios, correspondendo ao beijo. Vagarosamente, comecei a desabotoar a camisa dele, demorando-me mais que o necessário em cada um dos botões, tentando, desesperadamente, adiar o máximo possível o que estava prestes a acontecer. Eu estivera inúmeras vezes na cama com Douglas, quando ele me procurava nas calçadas de Copacabana, para fazermos programa, porém, em tais ocasiões, encontrava-me completamente

drogada, meu corpo entorpecido, impedindo-me de sentir a repulsa quando ele me tocava, quando me possuía. Mas agora era diferente, pois encontrava-me lúcida, sensata o suficiente para sentir e me enojar de cada toque seu. Ainda assim, precisava me submeter àquilo, como que para agarrar-me a uma tábua de salvação, pois não suportaria voltar às calçadas e às drogas. Minha única chance seria permanecer neste lugar, onde encontrara a paz e a tranquilidade e não havia outro emprego para mim aqui, que não ser amante de Douglas, fora para isso que ele me trouxera. Quando, finalmente nos despimos, ele ergueu-me eu seus braços e me carregou para a cama, onde eu obriguei minha mente a me transportar para o mais longe possível dali e, em meus pensamentos, reencontrei Daniel, estava na mata com ele, nossos corpos nus, entrelaçados um no outro, sobre um pequeno colchão de solteiro estendido ao chão. Mas a realidade a todo momento voltava, era inevitável... Ao despertar na manhã seguinte, ainda encontrava-me na cama de Douglas, mas desta vez, completamente só. Meu corpo, ainda nu, estava envolto a lençóis de seda, os quais me protegiam do frio intenso, causado pelo aparelho de ar condicionado. Percorri meu olhar ao redor, à procura do homem nos braços do qual passara toda a noite, mas não o encontrei. Relembrei os acontecimentos da noite e uma extrema tristeza tomou conta de mim. Podia ver todos os meus sonhos de um dia encontrar a felicidade dissipando-se na perspectiva de uma vida inteira sem paixão, presa a um homem que não amava e que jamais me permitiria partir, pois pagara muito caro por mim, não abriria mão de seu investimento. E eu não partiria facilmente, afinal, não tinha para onde ir. Voltar para Serra Azul seria uma possibilidade inexistente, já que, desde que a deixara, jamais fizera contato com os meus pais, certamente não me aceitariam de volta, principalmente após a exposição, pela mídia, do fato de que eu me tornara prostituta. Para minha família e para toda a população serrazulense, a prostituição, ou como eles diziam, a fornicação, era um pecado imperdoável. Provavelmente seria apedrejada, em plena praça pública, se voltasse àquele lugar. Preguiçosamente, fui até ao banheiro, à procura de Douglas, mas ele não estava ali. Abri a porta, que dava acesso ao terraço, onde me deparei com a mais bela das vistas: dali, da varanda do quarto, podia avistar quilômetros e mais quilômetros das terras planas do sítio, uma visão realmente incrível, valeria à pena suportar a companhia de Douglas para ter aquela vista de novo, para cavalgar livremente por aquelas terras, que se estendiam até onde as vistas alcançavam. O tormento causado pelo relacionamento com Douglas era um preço pequeno a pagar. Convencida de que ele voltara para o Rio de Janeiro, vesti-me de minha camisola e do roupão e desci rapidamente as escadas, dirigindo-me para a porta de saída. Ao alcançar a varanda, deparei-me com Douglas sentado a uma pequena mesa, tomando o café da manhã, ao mesmo tempo em que percorria seu olhar pela página do jornal em sua mão. Ele parecia bastante à vontade. Usava uma bermuda de linho branca, tênis da mesma cor e camisa pólo azul clara, a qual evidenciava seu físico bem definido, fazendo-o parecer um jovem de vinte anos, apesar de ter mais de quarenta; tinha seus cabelos negros ainda úmidos e exalava um delicioso cheiro de colônia pós barba. Jamais antes o vira usando roupas esportivas, assim, parecia muito mais jovial, desprovido de sua costumeira formalidade. Sentindo-me desconcertada por minha aparência desmazelada, — não havia sequer penteado os cabelos ou escovado os dentes —- e por ter acordado tão tarde, tentei passar desapercebida, mas era tarde demais, ele já notara minha presença. — Bom dia! — ele me cumprimentou, interrompendo meu trajeto, de ponta de pés. — Onde você

pensa que vai? Mantive-me cabisbaixa, evitando encará-lo, enquanto minha mente procurava as palavras. — Bom dia... — comecei. — Vou... trocar de roupas. — Tome o café comigo primeiro. — ele convidou, apontando uma cadeira. — Mas eu estou horrível, ainda nem escovei os dentes. — Nada disso, você está linda. Agora sente aqui, vamos. — as últimas palavras estavam carregadas do irritante autoritarismo, o mesmo tom com que ordenara que eu entrasse em seu quarto, na noite anterior. Sem encontrar mais argumentos, sentei-me na cadeira vazia à sua frente, escolhendo, entre as muitas iguarias, uma fatia de bolo de cenoura e café, dos quais me servi. Enquanto comia, mantinha-me cabisbaixa, evitando o olhar dele. Ele deixou o jornal de lado e passou a me observar, estudando, atentamente, cada um dos meus movimentos. Comecei a imaginar o quanto ele estaria horrorizado com meus modos rústicos, pois era um homem muito refinado, completamente diferente de mim. Provavelmente estava acostumado a fazer suas refeições na companhia de mulheres igualmente sofisticadas, pertencentes à sua classe social. À medida em que ele continuava me observando em silêncio, minha auto estima despencava aceleradamente, fazendo-me sentir menor que uma formiga. Até que, por fim, não consegui mais sustentar o peso do seu olhar sobre mim e o encarei de volta, dizendo: — É isso aí! Como você pode ver não tenho modos tão sofisticados quanto você. Eu fui criada na roça, tá legal? Os lábios dele se abriram num largo sorriso, revelando uma fileira de dentes brancos e perfeitos. — Não era nisso que eu estava pensando. — ele falou. Depois deixou escapar um longo suspiro. — Estava pensando no quanto sou um homem de sorte por ter você aqui. Suas palavras me deixaram meio atordoada, era a última coisa que esperava que ele dissesse. De repente, senti que minha face corava. — Eu é que tenho sorte por ter conhecido você. — falei, tentando retribuir ao carinho, me perguntando, mentalmente, qual o motivo de seu interesse por mim, se poderia ter qualquer mulher que desejasse, afinal era um homem muito bonito e rico e eu não passava de uma caipira. Ele continuou me fitando em silêncio, enquanto a pele do meu rosto parecia queimar, de puro constrangimento. Sentia-me menor que um grão de areia agora, diante de sua altivez, elegância e postura imponente. Percebi que precisava puxar um assunto qualquer para desviar sua atenção de mim. — E sua esposa, quando vem aqui? — perguntei, num impulso, arrependendo-me no instante em que fechei a boca. No entanto, ele permaneceu impassível, inabalável. Calmamente, solveu mais um gole de chá da xícara em sua mão e, em seguida, falou: — Ela raramente vem aqui. Não gosta do aroma do campo. Prefere a agitação da cidade grande. — Eu continuei encarando-o em silêncio, perguntando-me, mentalmente, o que aconteceria se ela aparecesse inesperadamente e nos flagrasse juntos. — Não se preocupe, ela não virá sem o meu conhecimento. — ele falou, como se lesse meus pensamentos. Em seguida, pousou a xícara vazia sobre a mesa, cruzando suas mão diante do seu queixo, seus olhos assumindo uma expressão de seriedade. — E você, está gostando daqui?

— Pra falar a verdade estou amando! É tão maravilhoso, cavalgar por aí... — dei-me conta de que, mais uma vez, eu falava sem pensar. — Eu podia usar um cavalo? — Mas é claro que sim. Por que, alguém lhe disse o contrário? — Não. — menti, relembrando as palavras de Abraão. — Pra falar a verdade, ninguém disse nada. — Os empregados estão tratando você bem? — Sim. Eles são muito... gentis. — menti novamente, evitando prejudicar alguém, embora eles merecessem um puxãozinho de orelha por me odiarem sem motivo. — Então está tudo bem? — Sim. Mas você deveria ter me avisado que viria, pra eu me produzir um pouco. Olha só pra mim, estou horrível, meu cabelo está parecendo uma arapuca e minha pele nem se fala, eu ando o dia inteiro no sol e... — Você está mais linda do que nunca. — ele me interrompeu, com tom neutro. — Então quer dizer que você gosta de cavalgar? — Muito! — Gostaria de cavalgar comigo? — Caro! — respondi, com entusiasmo, sem conseguir evitar o sorriso. Alguns minutos depois adentrei a casa dos empregados, afim de tomar um banho e trocar de roupas antes de iniciar minha cavalgada com Douglas. Josefa deteve-me na sala. — O patrão mandou perguntar o que você quer pro almoço. — ela perguntou, sem olhar para mim, seus olhos fixos no chão. — Sei lá. Faz o que você quiser. — falei, ansiosa por cavalgar. — Mas ele disse pra você escolher. — O que é mais fácil de fazer? — Mais fácil é uma macarronada. — ela falou, encarando-me pela primeira vez. — Mas o patrão não gosta de macarronada. — Mas ele não mandou eu escolher? — Sim, mas... — Se ele reclamar, diga que foi o que escolhi. — Ta bom. Após o banho, vesti um jeans desbotado, top de malha verde limão e meus tênis velhos. Deixei os cabelos, recém lavados, soltos, para que secassem ao sabor do vento e parti rumo ao curral, onde Douglas já me aguardava. Em poucos minutos, cavalgávamos lado a lado, pelas terras de Boa Esperança, os cavalos num trote lento. Apesar de conduzir o animal com habilidade, Douglas não parecia se divertir tanto quanto eu, mostrava-se tenso sobre o lombo do andaluz, como se executasse uma tarefa desagradável e obrigatória. Mantínhamos-nos, lado a lado, todo o tempo, sob o escaldante sol daquele final de novembro, enquanto conversávamos sobre nossas vidas, ou melhor, enquanto Douglas me falava sobre a sua, pois eu preferia apenas ouvi-lo. Descobri que ele era dono de uma empresa do ramo dos computadores, um ocupado homem de negócios. Apesar de ser casado há quinze anos, não tinha filhos, já que sua esposa, Olívia não podia conceber, devido a problemas no sistema reprodutor. Morava no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, apenas com a esposa e seus cachorros. Ele não demonstrava muito entusiasmo ao falar da

família, o que não acontecia quando se referia aos negócios. Apesar de apreciar cada minuto de sua companhia, eu não conseguia falar abertamente sobre mim, pois me sentia polida, medindo cada palavra que proferia, o que não era típico do meu comportamento, pelo contrário, sempre fora uma pessoa franca e impulsiva, do tipo que falava tudo o que me vinha à mente. Mas com Douglas eu era diferente, me esforçava para parecer uma pessoa sensata e madura, que sabia exatamente o que queria da vida. Talvez, no fundo, me sentisse intimidada pelo fato de ele se tratar de uma pessoa inteligente e bem sucedida. Por volta do meio dia, decidimos retornar a casa, para o almoço. Faminta, eu pensava na macarronada que Josefa preparara. Sentia-me surpresa por constatar o quanto apreciara a companhia de Douglas naquela manhã, ele se mostrara jovial, alegre e carinhoso, revelando um lado de sua personalidade que eu desconhecia e jamais imaginara existir, pois, antes, sempre se mostrara sério e formal. Mesmo nos momentos em que estivemos juntos nos quartos de motéis, havia uma barreira transparente entre nós, a qual agora parecia desmoronar. Me ocorreu que talvez eu pudesse ser feliz ao seu lado, ter uma vida tranquila, talvez até passar a amá-lo com o tempo, mesmo desempenhando o papel de sua amante para as horas de folga. Ao retornarmos à residência, seguimos diretamente para a sala de jantar, um cômodo ainda maior que o primeiro, mobiliado com uma mesa de mármore comprida, lavabo e um imenso lustre ao centro do teto, iluminando o ambiente. Aquela sala parecia o cenário de um filme épico romântico e ao mesmo tempo macabro. Ali, o ambiente climatizado pelo ar condicionado, nos protegia do tórrido calor, proporcionando-nos um agradável conforto. Logo, Josefa veio nos servir a macarronada e vinho tinto. Experimentei a primeira garfada da comida, deliciosamente saborosa e exclamei: — Hummm, que delícia Josefa! Douglas fez o mesmo, provando e elogiando a comida. Me recordei de quando Josefa me avisara que ele não gostava de macarrão e me perguntei até que ponto ele estava sendo hipócrita. Após o almoço, dirigimos-nos para a sala de estar, onde espichei-me, preguiçosamente, sobre o sofá branco. — O que você quer fazer agora? — Perguntou ele, sentando-se na poltrona ao lado, percorrendo seu olhar pelo meu corpo, com malícia. Olhei para o parelho de televisão de plasma na estante e, pensando rápido, respondi: — Quero ver um filme. Visivelmente desapontado, ele foi até a estante, de onde tirou uma pilha de DVDs. — O que você quer ver? — Você escolhe. Ele escolheu um triller de terror e depositou no aparelho, ligando-o, depois, voltou a sentarse na poltrona. O filme tratava-se da estória sobre um lobisomem que se apaixonava, perdidamente, por uma jovem estudante, embora não pudesse viver esse amor, por se tratar de uma criatura terrivelmente assustadora, extremamente odiada pelos moradores da cidade onde morava sua amada. Tratava-se da narrativa de uma paixão proibida e intensa, cujo desenrolar fez meu coração se apertar cada vez mais dentro do peito, como se fosse me sufocar a qualquer momento. Era inevitável que me despertasse a lembrança de Daniel, pois se parecia com nossa estória, vivida na pele de falsos personagens. Ele era o lobisomem que não podia viver seu amor por mim, já que era odiado por todo

o país, por ser um assassino frio e cruel. E eu, a mocinha indefesa, não tinha o poder de mudar seu destino. Ao final da narrativa, o lobisomem foi assassinado pelos moradores da cidade, que tripudiavam, euforicamente, sobre seu corpo ensanguentado, caído ao chão, enquanto sua amada chorava, desesperadamente, ajoelhada, ao lado do seu amor. Em minha mente, vi a cena se repetir, visualizando o momento em que Daniel fora morto pela polícia: seu corpo sem vida, ensanguentado, caído ao chão, enquanto, ao seu lado, eu me ajoelhava implorando, intimamente, que ressuscitasse. Com meu peito dilacerado pela dor, dei início a um pranto irrefreável e, num impulso incontrolável, deixei a mansão, correndo apressadamente, até alcançar o cavalo, o qual montei, partindo rumo às terras infinitas de Boa Esperança, sem um destino certo. O sol que iluminara o dia, durante toda a manhã, agora encontrava-se oculto por negras nuvens de chuva, de onde partiam violentos relâmpagos, seguidos de estrondosos trovões. Como se uma força sobrenatural, inexplicável, me atraísse, segui diretamente para a floresta, na qual estivera no primeiro dia em que cavalgara ali, onde encontraria mais nítidas as lembranças de Daniel, pois o lugar me lembrava outro onde estivera ao seu lado, há muito tempo atrás. Chegando lá, aproximei-me das águas cinzentas do lago e saltei do cavalo, sentando-me às margens da água, sobre as folhas secas espalhadas ao chão. A tempestade que se formava no céu, começou a desabar, violentamente, a água da chuva encharcando meus cabelos e minhas roupas, misturando-se às lágrimas do meu rosto, deixando a floresta ainda mais escura e sombria. Eu mantinha-me imóvel, sentada ao chão, enquanto a lama era salpicada em todo o meu corpo, pelas gotas de água que se chocavam, bruscamente, contra o solo. Não conseguia compreender o que se passava comigo, não era normal aquele sentimento, a intensidade da dor que tomava conta de mim, afinal Daniel já morrera há tantos meses, era tempo suficiente para que eu o tivesse esquecido, para que me abrisse a um novo amor, como o de Douglas. No entanto não conseguia afastá-lo do meu pensamento, do meu coração, a simples visão do seu rosto, quando fechava meus olhos, ou até um filme tolo, como o que eu acabara de assistir, era o bastante para me fazer descontrolar, para me enlouquecer de saudade. Era realmente algo anormal o que eu sentia, afinal convivera com ele tão poucos dias, se tivéssemos passado toda uma vida juntos eu poderia compreender a insuportável falta que ele me fazia. Havia um laço misterioso entre nós, o qual me fizera o amar tão rapidamente e o qual contribuía para a intensidade do meu desespero em perdê-lo. Talvez eu devesse morrer também e reencontrá-lo em outra vida, talvez aqui não fosse o meu lugar, ou quem sabe eu era uma pessoa depressiva, em busca do sofrimento incondicional, como afirmara a psicóloga da clínica de reabilitação. Por uma fração de segundos, um relâmpago iluminou a floresta, quando, de repente, avistei um vulto esgueirando-se entre as árvores, do outro lado do lago. Num impulso, atirei-me nas águas barrentas, nadando freneticamente, rumo a outra margem. Eu movia-me mecanicamente, como se já não tivesse domínio sobre o meu corpo. Ao alcançar o meu destino, deixei a água com dificuldade, meus pés descalços derrapando-se na lama, fazendo-me cair ao chão. Reunindo todas as minhas forças, fiquei de pé, seguindo rapidamente por entre os arbustos molhados, percorrendo meu olhar por todos os lados. Precisava encontrar o vulto que avistara, talvez se tratasse do fantasma de Daniel que voltara para me visitar. Quem mais poderia estar ali, debaixo daquela chuva? Os funcionários da fazenda certamente não iriam ali, principalmente estando Douglas em casa e não havia mais ninguém, além deles na propriedade.

Caminhei por mais alguns metros, com dificuldade por causa da lama, até que, por fim, um lampejo de sensatez me fez dar-me conta da loucura dos meus atos: é claro que o vulto não se tratava do fantasma de Daniel, pois fantasmas não existiam. Provavelmente, o que eu vira fora o vulto de um animal que fugia da tempestade ou uma alucinação criada por minha mente doente. Ciente da loucura dos meus atos, pensei em voltar para a casa, mas já não sabia o caminho de volta, não havia uma trilha definida por onde eu viera, apenas uma sucessão de árvores e arbustos molhados que se estendiam por todos os lados. Dei meia volta, seguindo na direção oposta e caminhei rapidamente por um longo tempo, mas não cheguei a lugar algum, ainda estava entre os arbustos, não havia sinal do lago perto do qual deixara o cavalo. A noite começava a cair, quando o cansaço me dominou. Convencida de que estava perdida, sentei-me no chão, sobre um mar de lama, onde esperaria o dia amanhecer para procurar novamente o caminho de volta. Pouco a pouco a tempestade foi-se cessando, até finalizar-se de vez e o silêncio macabro voltou a reinar na floresta. De súbito, ouvi ruídos do que me pareciam passos se aproximando, fiquei de pé, pronta para fugir, quando vi Sebastião surgindo de entre as folhagens. Ele usava uma capa de chuva amarela, ainda molhada, com o capuz abaixado até o pescoço. — Que susto Sebastião! — falei. — O que você está fazendo aqui? — O patrão me mandou procurar você — ele falou, fitando-me com expressão de severidade. Só então recordei-me de que deixara Douglas sozinho no sofá da sala, provavelmente adormecido, ou teria me seguido quando saíra correndo. Que explicação daria a ele, por fugido correndo daquela maneira? Por me encontrar coberta de lama, dos pés à cabeça, em meio à floresta? Pensei a respeito da respostas para tais questões enquanto Sebastião me conduzia, em silêncio, de volta para casa. Ao nos aproximarmos das casas, apeei do cavalo, seguida por Sebastião. Tentei seguir para a residência dos funcionários, mas o homem me deteve, dizendo: — Não. O patrão me mandou levar você direto para a casa grande. — Mas eu preciso tomar um banho e trocar de roupa antes de ir falar com ele. — protestei. — Não. Tenho que cumprir as ordens dele. Então, o homem, muito alto e magro, agarrou-me pelo braço, firmemente, conduzindo-me em direção à mansão. Chegando lá, encontramos Douglas em pé, ao centro da sala de estar. Usava um roupão cor de vinho, de mangas compridas, que se alongava até seus tornozelos; tinha os cabelos úmidos e um copo com uísque na mão. Ele virou-se para me fitar no instante em que atravessei a porta, percorrendo seu olhar por todo o meu corpo coberto de lama, com uma expressão de fúria nos olhos negros. — Encontrei ela sozinha na mata. — falou Sebastião. Douglas gesticulou com a mão para que ele saísse, em seguida caminhou lentamente em minha direção, colocando-se à minha frente, tão próximo que eu podia ouvir sua respiração. Eu mantive meus olhos fixos no chão, sem conseguir encará-lo, ainda não havia pensado em uma explicação para dar a ele. — Com quem você foi se encontrar? — ele perguntou, falando entredentes. Eu o fitei confusa. — O que? — Você me ouviu! — desta vez ele gritou, assustando-me. — Não fui me encontrar com ninguém, eu só... Antes que eu terminasse minha frase, ele desferiu-me uma bofetada no rosto, bruscamente.

— Não pense que pode me fazer de trouxa, Luana! Você esperou que eu dormisse, então saiu para se encontrar com seu amante. Apavorada com a súbita agressividade dele, recuei um passo, espalmando minha mão sobre meu rosto dolorido pelo tapa. — Eu não fui me encontrar com ninguém, eu juro! — falei, enquanto tentava conter o tremor que tomava conta de todo o meu corpo. Ele avançou para mim novamente, seu rosto contorcido de fúria. Sem que eu esperasse, segurou os meus ombros com mãos fortes, sacudindo-me violentamente, gritando: — Pára de mentir pra mim! Me diga com quem você está se encontrando! Mas ele não aguardou a resposta, brutalmente, atirou-me para trás, fazendo-me chocar-me contra a parede, caindo ao chão, quase desfalecida. Como que em um pesadelo irreal, o vi aproximar-se de mim novamente, agachando-se ao meu lado, agarrando-me pelo pescoço, forçando-me a levantar-me do chão. — Não vai falar quem é ele, Luana?! — ele gritou, enquanto comprimia meu corpo com o seu, de encontro à parede, ainda segurando meu pescoço com a mão, fazendo uma leve pressão. — Eu e-estava so-sozinha, e-eu ju-juro. — as palavras atropelavam-se em minha garganta seca, mas quanto mais eu falava, mais ele pressionava sua mão contra meu pescoço, como se pretendesse me matar a qualquer momento. Era inacreditável a repentina mudança pela qual ele passara. Durante a manhã daquele mesmo dia, mostrara-se um companheiro, atencioso e dedicado, porém agora parecia um monstro, um carrasco brutalmente violento. Era como se tivesse dupla personalidade. — Foi o filme! — falei, finalmente, numa tentativa desesperada de detê-lo em seu ataque de fúria. — O que? — ele perguntou, enquanto, lentamente, afrouxava sua mão do meu pescoço, a fúria em seu olhar dando lugar a uma expressão de pura confusão. — Eu fiquei com medo do filme, porque ele me fez lembrar o homem que me raptou. Douglas refletiu por um momento, então perguntou: — Eu sei que você foi sequestrada por um psicopata, mas o que isso tem haver com o filme? — Eu tive um ataque de pânico, porque o cenário do filme e... a estória, eram muito parecidos com a situação que eu passei. — minha mente trabalhava rapidamente, em busca das palavras certas. Não permitiria que Douglas conhecesse meus verdadeiros sentimentos, pois não era digno de minha confiança, no entanto precisava convencê-lo de que fugira por causa do filme, era a única saída para que escapasse com vida, de sua violência repentina. — Acho que ainda não consegui me recuperar de todo aquele trauma. Douglas continuou encarando-me em silêncio, seu olhar sondando o meu rosto, tentando decifrar a minha expressão, enquanto que, intimamente, eu implorava que ele acreditasse em minhas palavras. Por fim, ele se afastou, libertando meu pescoço de sua mão. Embora aparentemente ele estivesse mais calmo, eu ainda não conseguia parar de tremer. — Aquele sujeito maltratou bastante você, não foi? — Um pouco. — por dentro eu desejava poder gritar o quanto Daniel era, indiscutivelmente, superior a ele, em todos os sentidos, inclusive na forma de tratar uma mulher. Ele deu-me as costas, servindo-se de mais uma dose de uísque, depois virou-se para mim novamente, percorrendo seu olhar por todo o meu corpo coberto de lama. — Mas você precisa esquecer isso, deixar o passado para trás e recomeçar sua vida, ele está morto, não pode mais te machucar. — ele solveu um grande gole do uísque. — Agora vá tomar um banho, você está horrível.

Sentindo-me profundamente aliviada, pela oportunidade de me livrar de sua companhia, dirigi-me rapidamente na direção da porta de saída, quando ele deteve-me, colocando-se em minha frente. — Onde você pensa que vai? — perguntou. — Vou tomar banho, como você mandou. — respondi, temerosa com sua proximidade. — É para você tomar banho aqui, no meu quarto. — ele fez uma pausa, encarando-me fixamente nos olhos, com uma expressão indefinível em seu olhar, depois, prosseguiu: — Escuta Luana, se você está pensando em ir embora daqui... por causa do que aconteceu, —- ele gesticulou na direção da parede, onde acabara de me esganar — não precisa ir, pois não se repetirá. Eu te peço desculpas, mas quando pensei na possibilidade de você ter outro homem fiquei maluco e... perdi o controle. Qualquer pessoa, minimamente sensata, em meu lugar, deixaria Boa Esperança, agora mesmo. No entanto, eu não iria. Não por sua falsa promessa de que não voltaria a me agredir, mas por não ter outro lugar para onde ir. Não queria voltar para as ruas, para as drogas e para a prostituição, qualquer situação seria melhor que aquela. — Eu não vou embora. — respondi, firmemente. Repentinamente, ele me abraçou, enlaçando seus braços em torno da minha cintura e disse: — Que bom que você não vai, Luana. Não sabe como me arrependo por ter te machucado, eu não queria fazer aquilo. — ele desvencilhou-me dos seus braços, afastando-se para me fitar no rosto. — Preciso que me prometa uma coisa. — O que? — Que jamais me trairá com outro homem. — Eu prometo. — falei, mecanicamente, pois não havia outra resposta que pudesse lhe dar sem que fosse empurrada para a parede novamente. — Agora, por favor, vá tomar um banho. Enquanto subia as escadas para o quarto de Douglas, carregava em meu íntimo apenas duas certezas: a de que estava fadada a viver uma vida inteira sem amor, servindo de objeto a um homem por quem não nutria outro sentimento que não o desprezo. A outra certeza que eu tinha era a de que aquela não seria a última vez que ele me agrediria fisicamente. Eu conhecia muito bem homens como ele, os quais espancavam suas companheiras e em seguida pediam desculpas, prometendo jamais fazer de novo e, uma semana depois, voltavam a cometer o ato de covardia e violência. Esse seria o meu destino, minha vida dali em diante, como a de muitas outras mulheres, no mundo inteiro: servir de objeto sexual e saco de pancadas para um sujeito covarde e sem escrúpulos. Não sei como outrora fora capaz de acreditar que um dia seria feliz, que viajaria para o Himalaia com o amor da minha vida e teria uma existência de aventuras e paz. Mas a felicidade não era destinada a pessoas como eu, que se prostituíam e se drogavam, eu precisava pagar pelos meus pecados, receber de acordo com o que dera ao mundo e o meu castigo começara quando perdera meu amor, o qual embora tenha partido tão repentinamente quanto chegara, fora a única coisa boa que existira em minha vida.

CAPÍTULO V

Luz do meu caminho

Quando despertei na manhã seguinte, encontrava-me completamente só na cama de Douglas, ele partira sem que eu percebesse. Levantei-me de sob os lençóis de cetim e fui até a janela, com dificuldade em me mover, pois sentia todo o meu corpo latejando de dor. Haviam hematomas roxos nos meus quadris, braços e pernas, causados por Douglas durante a noite, quando a violência dos seus atos estendera-se até o momento de intimidade. Ele me possuíra de maneira brusca, já que não mais precisava usar sua máscara de bom caráter, a qual ocultava o verdadeiro monstro que era. Eu não tivera forças para fingir estar sentindo prazer, quando me encontrava em seus braços, na cama, como fizera na outra noite, portanto, quanto mais ele percebia a repulsa que me despertava, mais me machucava. As marcas de suas mãos ficaram cravadas também no meu pescoço e no meu rosto, onde haviam hematomas vermelhos. Da janela do quarto, avistei as terras de Boa Esperança, as quais estendiam-se até onde a vista alcançava. Era mais um dia tórrido de verão e o sol já estava alto, intenso. Os acontecimentos do dia anterior, permaneciam nítidos em minha mente. Relembrei o momento em que avistara um vulto, movendo-se entre as árvores da floresta, o quanto desejara, desesperadamente, que ele fosse Daniel, que voltara dos mortos, ou que estivesse vivo. Mas ele não voltaria, eu o vira ser morto, há muito tempo atrás. Certamente a visão daquele vulto estranho fora produto da minha mente ansiosa por reencontrá-lo. Jamais voltaria àquela floresta, para não enlouquecer de verdade. A rotina dos empregados há muito já se iniciara, de onde estava podia ver Sebastião, tratando dos cavalos, com a ajuda de Abraão, enquanto Josefa varria o jardim florido da mansão. Decidida a juntar-me a eles, virei-me de volta para o quarto, meus olhos em busca de minhas roupas enlameadas, quando avistei um grosso maço de dinheiro sobre o criado mudo, ao lado de um pequeno pedaço de papel. Peguei o papel em minhas mãos, lendo as seguintes palavras: Bom dia minha querida, desculpe por ter partido tão cedo, mas tive que trabalhar. Sebastião tem ordens para levar você até Itatiaia. Compre algumas roupas e o que mais precisar. Anseio, urgentemente, por sentir você novamente em meus braços... Esmaguei o bilhete entre meus dedos, num gesto de pura indignação. Era inacreditável o sarcasmo implícito naquelas poucas palavras. Como uma pessoa era cínica a ponto de agredir fisicamente a outra e, em seguida, chamá-la de querida e, ainda por cima, pedir-lhe desculpas por... ter saído mais cedo?! Certamente o anseio que ele afirmava ter, era o de sentir minha pele se ferindo sob o toque de suas mãos. E mais certamente ainda, não ordenara a Sebastião que me levasse até a cidade por gentileza em me fornecer o transporte, mas para que seu empregado vigiasse e lhe informasse sobre cada um dos meus passos.

Após vestir minhas roupas ainda sujas de lama, peguei o dinheiro e me dirigi para a outra casa. A impressão que eu tinha ao pegar aquele dinheiro, era a de que continuava sendo paga por prestar serviços sexuais, como antes, porém desta vez a situação era ainda pior, pois o cliente me agredia e eu nada podia fazer para impedi-lo, sentia-me o mais impotente dos seres humanos. Apesar de sua agressividade, não podia me afastar daquele homem, pois precisava dele como um deficiente físico precisa de suas muletas. Ao cumprimentar Josefa, que ainda varria o jardim, a vi interromper sua tarefa para observar, boquiaberta, a marca de esganadura em meu pescoço, enquanto eu passava direto por ela, em direção à casa menor, ansiosa por um banho. Chegando lá, encontrei Rosa estudando na sala, para uma prova de Biologia que faria à tarde. Ela era a única pessoa da família que ainda estudava, já que Abraão não se adaptara ao convívio social proporcionado pela escola, preferia permanecer no sítio, auxiliando seu pai com os afazeres do sítio. — Meu Deus! O que aconteceu, você caiu da escada? — a amenina perguntou, ao me ver entrar, seu olhos arregalados pousados sobre os hematomas do meu rosto e do meu pescoço. — Não exatamente. — respondi, secamente, em seguida entreguei-lhe o maço de dinheiro. — Por favor, compre algumas roupas para mim quando sair do colégio. Os olhos negros dela se arregalaram ainda mais, olhando o dinheiro em suas mãos. — Caraca! Tudo isso aqui de roupa!? — É sim. E compre alguma coisa para você também. O rosto dela se iluminou com um sorriso de entusiasmo. — Que tipo de roupa você gosta? — Escolha peças sofisticadas, do tipo que você acha que Douglas vai gostar. — Pode deixar comigo, sei exatamente o que vou comprar. Qual é o seu tamanho? Após me fuzilar com mais algumas perguntas sobre o número que calçava e minha cor preferida, finalmente ela me deixou prosseguir para o banheiro, fazendo-me prometer que a deixaria arrumar meus cabelos e minha maquiagem na ocasião em que usaria as roupas novas. Mais tarde Sebastião veio me perguntar a que horas eu gostaria de ir à cidade, mas disse-lhe que não iria, que havia pedido à Rosa que comprasse o que eu precisava. Ele não demonstrou muita importância ao caso. Há cerca de quatro meses atrás, eu jamais dispensaria a oportunidade de fazer compras, pois era uma atividade que muito me atraía. No entanto, não sentia o mínimo desejo de deixar o sossego da propriedade, de me misturar a uma multidão de pessoas, preferia ficar só, perdida em meus pensamentos, relembrando os momentos que passara ao lado do meu único e verdadeiro amor, os únicos em que fora feliz. A semana seguinte transcorreu-se tranquilamente. Josefa, Rosa e Abraão, passaram a me tratar com mais amistosidade, embora não me acolhessem plenamente como membro da família. A hostilidade partia ainda, apenas de Sebastião, a qual me era desferida com olhares duros e muita indiferença. Como homem que era, certamente apoiava a atitude de Douglas, sua violência para comigo. Mas eu encontraria uma forma de conquistar a afeição de todos eles, era uma questão de tempo. Em Boa Esperança, a rotina começava cedo do dia e era árdua. Enquanto Josefa e Rosa cuidavam da limpeza das duas casas e do preparo das refeições, Sebastião e Abraão cuidavam dos cavalos: seu treino e alimentação. De vez em quando, algumas pessoas apareciam para montar os cavalos, famílias e casais apaixonados, que cavalgavam, sem habilidade, pelos arredores da sede, entretendo-se com tal atividade. Minha função ali consistia-se basicamente em ajudar: por vezes

ajudava as mulheres com as tarefas domésticas e por vezes conseguia encontrar algum serviço no curral, apenas para estar próxima aos cavalos. Todas as tardes, cavalgava por horas consecutivas, apreciando as belezas daquele lugar, onde sempre encontrava um local novo a conhecer. Procurava manter-me sempre distante dos visitantes, pois não gostava mais da companhia das pessoas, principalmente pelo fato de que sabia que seria reconhecida das manchetes dos jornais e, consequentemente, hostilizada. Gostava de estar ali, em contato com a natureza, como onde crescera, mas principalmente gostava de estar sozinha, absorta em meus pensamentos, a maioria dos quais eram dirigido a Daniel. Costumava fantasiar como teria sido nossa vida juntos, com nosso filho amado. Imaginava-nos vivendo no Himalaia, escalando as maiores montanhas do planeta, como havíamos planejado, pouco antes de sua morte. Mas eu não precisava levar meus pensamentos até o Himalaia para encontrá-lo, ele estava em todos os lugares, vivo em minha memória, onde quer que eu fosse. O final da tarde era o momento mais glorioso do meu dia, quando subia a pequena colina para ver o por do sol, fechava meus olhos e visualizava, claramente, seu rosto; seus olhos verdes claros; sua pele branca; seu sorriso perfeito. Até o seu cheiro eu podia sentir nesses momentos. No sábado seguinte, Douglas apareceu novamente, para me roubar a paz. Já passava da meia noite, quando Sebastião bateu na porta do meu quarto para atender ao seu chamado. Fiz questão de usar uma sofisticada camisola de seda preta — que Rosa comprara, acertadamente, na cidade —, apenas para mostrar-lhe que fizera uso do dinheiro que deixara sobre o criado mudo. Como ele não mais precisava usar sua máscara de bom caráter na minha presença, já que a deixara cair em nosso último encontro, mal me cumprimentou quando entrei em seu quarto, começando, imediatamente, a despir-me da camisola, fazendo-me sentir como se fosse sua propriedade particular, um objeto que usava sempre desejava. Apesar de não suportá-lo, eu me mostrei a mais dócil e gentil das amantes, apenas para não enfurecê-lo, esforçando-me para evitar que sua violência se exteriorizasse e ele me machucasse, como fizera da última vez. O domingo foi um dia de tensão para mim. Na presença de Douglas, precisava escolher, cautelosamente, as palavras que pronunciaria, afim de ocultar a repulsa e o temor que sentia por ele, evitando despertar sua fúria, sua perigosa fúria. Passamos todo o dia na mansão, trancados no quarto, a maior parte do tempo. Durante aquelas horas, ele pôde perceber que já me dominara por completo, que não importava a forma como me tratasse, ou como agisse, nada me faria ir embora. Era como se tivesse total permissão para me maltratar, se esse fosse seu objetivo. Por fim, na madrugada de segunda feira ele voltou para o Rio, deixando-me em minha paz novamente. Desta vez consegui escapar sem nenhum hematoma grave, apenas algumas marcas de mordidas pelo corpo, as quais, afirmara Douglas, serviriam para que eu me lembrasse dele enquanto estivesse ausente. O mês de dezembro passou tão depressa que mal o percebi. No dia do natal, os parentes de Josefa vieram visitá-la e a casa ficou empinhada de gente, o que me fez cavalgar durante todo aquele dia, apenas para ficar sozinha. Eu não suportava mais estar entre as pessoas, preferia os animais a elas. A boa notícia daquele mês foi que Douglas me presenteou com o Puro Sangue Inglês, com o qual eu costumava cavalgar. Apesar de tudo, ele era um homem generoso, gostava de me surpreender com jóias e peças de roupas caríssimas, as quais eu usava apenas em sua presença. O cavalo foi o melhor presente que me dera, agora ele era só meu, não corria mais o risco de ser vendido. Na noite de reveillon, foi realizada uma grande festa na mansão, com muitos convidados.

Ajudei Josefa e Rosa com os preparativos durante todo aquele dia, trabalhando exaustivamente, porém, fui expressamente proibida, por Douglas, de comparecer à festa. Ele não precisou explicar o motivo de tal proibição, certamente seria porque sua esposa estaria presente e poderia perceber que eu não era apenas uma simples funcionária do sítio. Porém, naquela noite, minha curiosidade falou mais alto. Durante a festa, realizada no jardim da mansão, às margens da piscina, aproximei-me discretamente dos convidados, esgueirandome por entre as plantas do jardim. Até que, seguindo a descrição feita por Rosa, consegui distinguir, entre as demais mulheres, qual era a esposa de Douglas: uma mulher melancolicamente sorridente, que não saía do lado dele nem por um minuto. Era alta e excessivamente magra; tinha os cabelos negros, escorridos ao longo do rosto fino, cortados na altura do queixo; tinha a pele clara e os olhos azuis escuros. Apesar de não se tratar de uma mulher muito atraente, sua elegância e sofisticação lhe conferiam um charme especial. Enquanto a observava, circular em meio aos convidados, orgulhosamente ao lado de Douglas, com uma taça de champanhe na mão, me perguntava se ele também a agredia fisicamente, como fizera comigo. Com o passar do tempo, descobri que a função de Sebastião na fazenda não se resumia apenas ao cuidado dos animais, também os negociava, com compradores que vinham de todos os locais do país, entre estes, outros criadores e treinadores de jóqueis. É claro, todas as negociações passavam pela supervisão de Douglas, com quem o empregado se comunicava, constantemente, por telefone. Sebastião era ainda o “homem de confiança do patrão”, incumbido de vigiar todos os meus passos, e em me fazer obedecer suas ordens. Eu não tinha permissão para ir à cidade sozinha, ou deixar Boa Esperança, que não na companhia de Sebastião. Mas tais proibições não me afetavam, pois eu não fazia questão de sair dali, muito pelo contrário. Tampouco a função de Josefa se resumia à limpeza da propriedade. Ela cuidava do bem estar dos visitantes que vinham em busca de cavalgadas, além de organizar luxuosas recepções para os convidados que, de vez em quando, Douglas recebia ali, ocasiões das quais eu era proibida de participar, não podia sequer sair do meu quarto durante tais acontecimentos, pois além de despertar a desconfiança de Olívia, eu também corria o risco de ser reconhecida, das manchetes dos jornais, pelos convidados. E, um homem poderoso como Douglas, aos olhos da sociedade, jamais daria emprego a uma ex prostituta, aparentemente cúmplice de um assassino. Mas tudo aquilo parecia uma grande piada para mim. Apesar de se tratar de uma pessoa séria e reservada, Josefa se mostrava cada dia mais amistosa, tratando-me com mais carinho. Ela parecia ser a única na casa a conhecer a origem das frequentes marcas surgidas em meu corpo, porém nada comentava a respeito, preferia se fazer de desapercebida, talvez para não me magoar ou me fazer sentir ainda mais humilhada. À medida em que os meses se passavam, as visitas de Douglas se tornavam cada vez mais frequentes. No início ele aparecia para me importunar apenas nos finais de semana, porém passou a aparecer também no meio desta, sempre sem avisar e quase sempre bêbado. Como de costume, mandava Sebastião me chamar em meu quarto. Em sua presença eu me mostrava sempre submissa e atenciosa, cedendo a todos os seus desejos carnais, tentando evitar que se tornasse violento novamente, no entanto, eu descobriria que quando a pessoa era naturalmente agressiva, isso não poderia ser evitado. Certa tarde, quando eu cavalgava pelos lugares mais recônditos do sítio, Abraão me surpreendeu, aparecendo com o recado de que Douglas queria me ver, imediatamente, em casa. Era a primeira vez que ele aparecia durante o dia.

— Onde você estava, Luana? Faz horas que te procuro! — falou o rapaz, enquanto cavalgávamos de volta para a sede da fazenda. — Caramba! O patrão vai ficar uma fera com nós dois. As palavras dele me despertaram um calafrio na espinha, pois podia imaginar o que aconteceria se Douglas estivesse realmente uma fera, por causa da minha demora, sem falar que eu estava desarrumada, despreparada para recebê-lo, afinal não esperava que aparecesse àquele horário. Chegando à mansão, o encontrei na sala de estar, completamente bêbado, desorientado. Caminhava de um lado para o outro do cômodo, com o copo de uísque na mão. Ao me ver aproximarme, parou para me encarar, seus olhos negros faiscavam de raiva. — Onde você estava?! — ele gritou, sua voz um tanto pastosa, devido ao efeito do álcool em seu organismo. — Por onde você anda todas as tardes que nunca está aqui?! É claro, Sebastião lhe informara que eu não ficava em casa durante a tarde, quando estava cavalgando. — Cavalgando. — falei eu, com voz trêmula de medo. Tentava manter uma certa distância dele, como se assim pudesse escapar, caso ele partisse para a agressão física. — Cavalgando?! — ele gritou, em seguida, atirou o copo de uísque na parede, estilhaçando-o e avançou para mim, como um touro indomável, segurando-me pelos ombros, sacudindo-me brutalmente. — Me fala a verdade! Por onde você anda todas as tardes? Com quem está saindo? Porém antes que eu pudesse abrir a boca para tentar me defender, ele atirou-me contra a parede, como fizera com o copo. Minha cabeça chocou-se contra o concreto, fazendo-me cair ao chão, enquanto via toda a sala girar diante dos meus olhos. Como que numa imagem ligeiramente trêmula, percebi que ele me observava caída ao chão, seus olhos brilhando de puro prazer. Alguns segundos depois, ele tirou o cinto de couro que se prendia ao cós de sua calça, partindo em minha direção, com o objeto na mão, movendo-se como um animal furioso, prestes a finalizar sua presa abatida. — Vou te ensinar a me respeitar, sua vadia... — foram as últimas palavras dele, antes de começar a me açoitar com o cinto de couro, ferindo minha pele, por sob o tecido das roupas, ignorando completamente meus gritos de súplica. Naquele instante, a dor física se misturava ao pavor e à humilhação dentro de mim. Apesar de usar uma camiseta de malha e bermuda jeans, podia sentir a dor de cada uma das açoitadas, como se fossem desferidas sobre minha pele desnuda, cortando-a. Como não tinha coragem ou determinação suficientes para enfrentá-lo, para reagir ao seu ataque, comecei a gritar, o mais alto que minhas forças me permitiam, esperando que alguém viesse ao meu socorro, mas não veio ninguém. Embora soubesse que todos, lá fora podiam me ouvir, sabia também que jamais enfrentariam o patrão. Quem ousaria enfrentá-lo? Quando todas as minhas forças esvaíram-se do meu corpo, já não conseguia mais gritar, apenas me encolhia aos violentos golpes do cinto, que se cessaram concomitantemente ao cessar dos meus clamores. Ao interromper seu ritual de brutalidade, Douglas, lentamente, agachou-se ao meu lado. — Você ainda vai me deixar esperando? — ele perguntou, entredentes, seu rosto próximo ao meu. Continuei imóvel no chão, paralisada pela dor, fitando seu rosto contorcido de fúria, enquanto tentava conter as lágrimas que afloravam em meus olhos. — Responda! — ele gritou. — Não. — consegui balbuciar, já não mais contendo as lágrimas que escorreram pelo meu rosto,

desenfreadamente. — Ótimo. — ele falou, percorrendo seus dedos pelo meu rosto molhado, como se comemorasse uma conquista recente. — Não pense que eu fiz isso porque te odeio, Luana, pelo contrário, eu gosto muito de você, por isso acho que você deve me respeitar, para que sejamos felizes juntos. Você precisa de mim e eu estou aqui para te ajudar. Nunca vou te abandonar, mas você precisa me respeitar. —- a voz dele assumira um tom surpreendentemente calmo. Ele acariciou os meus cabelos emaranhados, dizendo: — Veja só o seu estado, parece um animalzinho selvagem e indefeso, mas ainda assim está linda, irresistivelmente linda Ele estendeu seus braços para mim, como se fosse me agredir novamente. Apavorada, encolhi-me ao contato, instintivamente, virando o meu rosto para o lado oposto. No entanto, ele ergueu-me no ar, em seus braços, levantando-me do chão, gentil e lentamente, como se carregasse um frágil vaso de cristal, conduzindo-me pela escadaria, em direção ao seu quarto, enquanto sussurrava palavras ao meu ouvido, as quais eu não conseguia compreender, devido a um zunido instalado em minha cabeça latejante de dor. Chegando ao quarto, estendeu-me sobre sua cama, onde me submeteria a um novo, mas não menos doloroso tipo de tortura. Ao despir-me do que restara das minhas roupas, ele virou-me de bruços, observando os ferimentos que causara em minhas costas. — Oh meu Deu! Eu fiz isso com você, Luana?! — ele falou, o desespero claramente estampado em seu olhar. — Me desculpe, eu não queria te machucar tanto assim... por favor, diga que me perdoa... Então, ele começou a deslizar os seus lábios, suavemente, sobre cada uma de minhas feridas, como se meu sangue o excitasse. Em poucos minutos ele estava me possuindo. Aquela tarde eu tive a certeza de que Douglas era louco, que eu me encontrava a mercê de um perigoso psicopata. Eu não tive certeza do momento exato em que perdi a consciência, só soube que, naquele instante, Douglas ainda se encontrava dentro de mim. Quando despertei, encontrava-me em meu minúsculo quarto na casa dos empregados, deitada de bruços na pequena cama. Sentia frio, muito frio, uma intensa fraqueza tomava conta do meu corpo, impedindo-me de me mover. Josefa estava sentada ao meu lado, na beirada da cama, espalhando, com a ponta dos seus dedos, uma gosma gelada sobre minhas costas feridas. Provavelmente uma de suas ervas medicinais. — O que aconteceu? — perguntei, obrigando as palavras a atravessarem minha garganta extremamente seca. — Você passou mal. — ela respondeu. — Como vim parar aqui? — Eu e Abraão trouxemos você. Confusa, reuni todas as minhas forças e virei o meu rosto para fitá-la, deparando-me com uma piedade profunda expressada nos olhos dela. Só então percebi que Rosa também se encontrava no quarto, recostada a um canto, roendo as unhas das mãos. — Onde está Douglas? — perguntei, tentando assimilar a confusa realidade que se apresentava a mim. — Ele voltou cedo para o Rio. Acho que pensou que você estava dormindo quando saiu. Quando percebi que você estava demorando demais para se levantar, fui verificar e encontrei você desmaiada. Neste momento, fechei os meus olhos, relembrando todos os acontecimentos da noite anterior. Após me dar uma surra de cinturão, Douglas estivera por muito tempo dentro de mim, mesmo quando eu já não conseguia mais me mover. A última coisa de que me lembro, foi de ver o seu rosto, sorrindo, mergulhado num êxtase profundo.

— Ainda bem que ele já foi. — falei, com um suspiro, como se falasse comigo mesma. — Eu não sei como você é capaz de suportar isso, minha filha. — Josefa falou, uma onda de angústia expressada em seu olhar. — Por que você não vai embora daqui, pra que ele não possa mais te maltratar desse jeito? — Você devia denunciar ele pra polícia, Luana. — Rosa falou. — Não fala besteira, menina. — Josefa ralhou. — Basta ela desaparecer da vida dele. A mulher terminou de espalhar o remédio sobre minhas costas, depositando o vasilhame em suas mãos sobre a cômoda. Com muito esforço para me mover, pousei minha mão sobre a dela e disse: — Eu te agradeço por se preocupar comigo e por cuidar das minhas feridas, mas eu não posso deixar Douglas, pois além de não ter para onde ir, eu não posso ser tão ingrata. Se não fosse por ele, eu nem estaria mais viva. Josefa fitou-me em silêncio por um longo momento, como se tentasse me compreender, mas não foi capaz disso, afinal quem seria? Ninguém na face da terra conhecia minha verdadeira dor, aquela que fazia a agressão de Douglas se tornar insignificante para mim. Nada poderia ser mais doloroso que não ter Daniel ao meu lado, nem mesmo o que acontecera na tarde anterior. A ausência do meu amor se sobrepunha a tudo mais. Devido a essa ausência, nada mais podia me machucar, eu não me importava com o que acontecera. Em troca eu tinha a solidão das terras de Boa Esperança, por onde continuaria cavalgando diariamente, mesmo que Douglas me matasse depois. Isso eu não permitiria que ele tirasse de mim. A partir daquele dia os laços entre mim e Josefa se fortaleceram, ela finalmente aceitara minha presença em sua casa, mais por piedade que por qualquer outro sentimento. Mas o importante era que eu, finalmente, conquistara sua confiança, assim como a dos seus filhos. Apenas Sebastião se mantinha distante. Porém, apesar da nova proximidade existente entre mim e eles, não conseguia me sentir como parte integrante da família. Era como se existisse sempre uma barreira transparente entre nós. Em poucos dias minhas feridas cicatrizaram-se, restando apenas suas marcas em minha pele, as quais nem o tempo apagaria. Logo que minhas forças me permitiram, voltei à minha rotina diária no sítio, ajudando no trabalho até ao meio dia e cavalgando durante toda a tarde, proporcionando a mim mesma momentos de solidão, durante os quais encontrava a paz, a oportunidade de rever meu amor em meus pensamentos. Nos meses que se transcorreram, Douglas continuava me visitando frequentemente. Seu comportamento continuava concernindo ao de um louco: em alguns momentos mostrava-se extremamente gentil e carinhoso e em outros exteriorizava sua monstruosa agressividade. Grande parte de sua gentileza era demonstrada com atos de generosidade, quando deixava grandes quantidades de dinheiro sobre o criado mudo, antes de sair, durante a madrugada, enquanto eu ainda dormia, exigindo, autoritariamente, que eu investisse em minha produção, quando fosse recebê-lo. Como sempre, eu pedia a Rosa que comprasse as roupas na cidade, pois não queria deixar o sossego de Boa Esperança. Ele costumava também me trazer presentes caríssimos, como o colar de diamantes que me dera no dia do meu aniversário de vinte e um anos de idade, em quatro de abril. Na ocasião, ordenara a Josefa que providenciasse um jantar à luz de velas para nós dois, ali mesmo na mansão. Apesar de eu o obedecer, cegamente, mostrando-me a mais dócil e submissa das mulheres, seus rompantes de fúria eram inevitáveis e imprevisíveis, mudava de humor de um minuto para o outro, mesmo quando não havia motivos e quando acontecia, eu não era poupada de suas agressões. Sua

principal queixa era minha falta de atenção para consigo, um pretexto que inventara para camuflar a certeza que tinha de que eu não o amava. Por vezes, me flagrava perdida em meus pensamentos, ocasiões em que tinha violentos ataques de ciúmes e desconfianças, utilizando-os como pretexto pra me machucar fisicamente, não tão violentamente como quando me dera a surra de cinturão, mas, mesmo que sutil ou superficialmente, sempre fazia questão de me machucar, como se minha dor lhe proporcionasse o mais irresistível dos prazeres. Seis meses se passaram, desde que eu chegara em Boa Esperança, período durante o qual jamais deixara sua sede, nem pelo mais breve dos momentos. De vez em quando Rosa me convidava para acompanhá-la a uma festa ou um churrasco organizados pela turma do colégio, mas eu sempre recusava, não tinha ânimo para conviver em meio às pessoas. Era final do mês de maio e a chegada do inverno se anunciava num dia frio e nublado. Após encerrar todas as minhas tarefas de trabalho, como era de costume, montei o meu cavalo e parti rumo às terras infinitas do lugar, onde permaneceria durante toda a tarde, mergulhada em minha prazerosa solidão. Após a surra de cinturão, eu combinara com Abraão, que, se eventualmente Douglas aparecesse durante a tarde, enquanto me encontrava cavalgando, viesse me avisar de sua chegada logo que avistasse seu carro se aproximando da casa, para que eu tivesse tempo de voltar antes que ele percebesse minha ausência. O plano, até então vinha dando certo e em troca de sua prestatividade, eu dava ao garoto parte do dinheiro deixado pelo patrão. Assim evitava que Douglas me surpreendesse novamente longe de casa e encontrasse um motivo para me agredir. Eu cavalgava nas proximidades da floresta, onde nunca mais me atrevera a entrar, desde que lá avistara um vulto estranho, desconhecido. Meu cavalo encontrava-se numa corrida veloz, em meio às campinas ralas, permitindo que o vento batesse em meu rosto, esvoaçando meus cabelos, proporcionando-me uma incomparável sensação de liberdade. De repente, um outro cavalo e seu cavaleiro, surgiram de entre as árvore da floresta, assustando a mim e ao meu cavalo, fazendo-o interromper sua corrida, lançando seu corpo para trás, descontroladamente, desferindo coices para todos os lados, quase atirando-me no chão. Meu Puro Sangue se contorceu, agitadamente, durante alguns minutos enquanto eu me esforçava por retomar seu controle. Quando, por fim, consegui dominá-lo novamente, virei-me, furiosa, na direção do causador de todo aquele transtorno, disposta a fazê-lo pagar. Imediatamente o reconheci: tratava-se de um comprador de cavalos, que estivera examinando os animais, durante aquela manhã, ao lado de Sebastião. O avistara ao longe, no curral. — Você não olha por onde anda?! — gritei, sem conseguir conter a raiva que tomava conta de mim. — Puxa! — ele exclamou, ignorando minhas palavras. — O que você fez com o cavalo, foi realmente incrível! — Você quase me derrubou! — eu esbravejei, com irritação crescente. — Me desculpe. Eu sinto profundamente por isso. — ele estendeu-me sua mão, seus lábios curvados num largo sorriso. — Muito prazer, sou Gustavo de Almeida. Ignorando a sua apresentação, dei-lhe as costas e parti, o cavalo num lento galope. No fundo, meu desejo era o de desferir o máximo de ofensas possíveis sobre aquele sujeito impetulante, por ter me feito quase cair do cavalo, no entanto, precisava controlar minha raiva, pois não podia discutir com um dos clientes do sítio, seria uma perda para Douglas, a qual ele certamente usaria contra mim. Quando eu pensava que me afastara muitos metros do tal sujeito, ouvi sua voz novamente, atrás de mim, dizendo: — Quem é você? O que faz aqui sozinha?

— Sou funcionária da fazenda. — falei, sem me virar para encará-lo, esforçando-me para conter minha irritação, fazendo o cavalo galopar mais depressa. — Eu treino cavalos para competições, de hipismo, sabe, há muito tempo faço isso e, acredite, nunca vi uma performance tão brilhante quanto a sua, quando dominou esse cavalo. Foi incrível! Já pensou em fazer isso profissionalmente? — Não. — respondi, secamente, tentando ignorá-lo, para que ele se tocasse e se afastasse de mim, pois tudo o que eu queria era ficar sozinha novamente. Mas ele parecia não se intimidar com minha indiferença, continuava me seguindo, falando sem parar. — Eu gostei muito dos cavalos que vocês têm aqui, acho que vou comprar mais de um. Quais você me recomendaria? — Isso é com o Sebastião, eu trabalho apenas na limpeza. — me perguntava quando ele se cansaria de ser ignorado e desistiria de tentar puxar assunto. — Você mora aqui mesmo? — ele insistia em iniciar uma conversa. Desta vez, eu não mais respondi, tentando fazê-lo ir embora mais depressa. No entanto, ele fez exatamente o oposto: em vez de se afastar, colocou-se a minha frente, detendo o percurso do meu cavalo, despertando-me uma nova onda de irritação. — Você não é muito de conversa, não é? — ele cravou seu olhar em meu rosto, fitando-me em silêncio por um longo momento, então falou: — Espere um pouco, eu conheço você! É Luana, a garota que foi sequestrada, há quase um ano atrás. A razão de todas as minhas angústias descritas nas palavras daquele estranho, causou-me uma dor ainda maior que a existente, tão intensa que quase levou as lágrimas aos meus olhos. Percebendo minha reação, o rosto dele, de repente, ficou sério, seus olhos cor de mel fixos em meu olhar, como se, de súbito, compreendesse a minha dor. Pela primeira vez, alguém parecia compreender os meus sentimentos. Era como se ele tivesse o poder de enxergar minha alma. — É, sou eu sim. — falei, com voz trêmula. — Pois é, eu achei que fosse. — ele disse, voltando a sorrir como antes. Não foram aquelas palavras, mas o tom bem humorado, com que foram pronunciadas, que me chamou a atenção. Condizia com a expressão do seu rosto: completamente relaxada, descontraída e brincalhona, como o rosto de um garoto de doze anos, puro e ingênuo. Apesar de ter cerca de vinte e três anos de idade, ele realmente parecia um garoto: usava uma bermuda jeans, no comprimento dos seus joelhos; camiseta de malha de algodão; tênis brancos e um boné com a borda virada para trás da cabeça. Tinha uma aparência bastante comum: a pele clara, média estatura, cabelos castanhos claros e olhos cor de mel. Observei a expressão bem humorada do seu rosto e, senti vontade de sorrir, mas já não me lembrava como se fazia isso. Reiniciei minha jornada, contornando o local onde ele se encontrava, partindo com o cavalo num trote lento. Ele passou a me acompanhar, cavalgando ao meu lado, mas, por algum motivo, o qual eu não conseguia distinguir, sua presença já não me incomodava tanto. — Onde você aprendeu a cavalgar tão bem? — ele perguntou. — Em Serra Azul, onde cresci. — Ah, então quer dizer que você é de Serra Azul. — nesse momento, pensei que ele diria: Do mesmo lugar de origem das vítimas do homem que a seqüestrou!; Achei que me fuzilaria com mil perguntas sobre o caso, o qual era de conhecimento da maior parte da população do país, já que, na época, tivera grande repercussão através da mídia; esperava que especulasse, agora que estava diante da principal testemunha. Porém, em vez disso, ele apenas falou: — Minha nossa, que nome

foram dar a essa cidade! Serra Azul! Novamente, senti vontade de sorrir, pela forma divertida, descontraída, como ele se expressava, mas meus lábios não se curvaram. — E você, de onde é? — perguntei, surpreendida por meu súbito interesse em conversar com alguém. — Sou de São Paulo. Por isso essa pele tão pálida. — ele lançou um olhar, forçosamente desanimado, para seu próprio corpo. — Bem diferente das pessoas que moram no Rio, perto da praia, como você. — É aí que você se engana. Eu não peguei esse bronzeado na praia. — E onde foi, então? — Aqui mesmo, durante minhas cavalgadas. — relembrei o momento em que o vi sair, de repente, da floresta. Era bem estranho, pois poucas pessoas se atreviam a entrarem ali sozinhas, achavam que era um lugar sombrio demais. Os compradores de cavalos geralmente testavam sua nova aquisição nas proximidades da sede. — O que você estava fazendo naquela floresta? — Eu sei lá. Comecei a me afastar demais da casa e de repente a idéia de entrar lá me pareceu bastante atraente. — enquanto falava, seu olhar era puro e sincero, como o de uma criança inocente. — Muitas pessoas têm medo de entrar lá. — falei. — Menos eu. Nunca fui muito medroso. Não sei por que não estou servindo no exército. — Pelo baixo salário, talvez? — É, pode ser. Acho que sou meio ambicioso. Mas eu tive certeza de que ele não era ambicioso. Não com aquele olhar tão inocente e aquele jeito descontraído. As pessoas gananciosas estavam sempre tensas, preocupadas demais em desempenhar tarefas com fins lucrativos, eram perspicazes e, na maioria das vezes, hipócritas. E Gustavo não parecia ser assim, muito pelo contrário: parecia uma criança, pura e inocente. Continuamos conversando tão descontraidamente que não percebi que as horas passaram, quando dei por mim, já havia escurecido e eu precisava voltar depressa para a casa, para a hora do jantar, quando Josefa fazia questão que todos estivessem reunidos em torno da mesa da cozinha, uma das muitas regras a serem seguidas naquela casa. — E então, vai comprar o cavalo? — perguntei, ao nos aproximarmos do curral. — Por que se você for levar, eu vou chamar o Sebastião. — Não. — ele respondeu depressa. — Não precisa incomodar o coitado, ele deve estar jantando agora. Além do mais acho que preciso testar alguns outros, acho que não comprarei apenas um. — OK. — eu falei, surpreendentemente animada com a perspectiva de vê-lo novamente. Há muito tempo eu não me sentia tão relaxada, como quando fui para a cama naquela noite, sozinha em meu pequeno quarto. Era estranho me sentir assim depois de tantos meses de angústia e aflição, quando a dor era o único sentimento que me movia. Mas, depois daquela tarde, retomei um novo fôlego para a vida, o qual, inacreditavelmente, amenizava minha sensação de perda. Dei graças à Deus que Douglas não tenha aparecido aquela noite, para tirar minha paz de espírito, pois certamente perceberia minha mudança de humor e a especularia, em busca de um pretexto para exteriorizar sua violência. Na tarde do dia seguinte, quando eu cavalgava pelos arredores da sede da fazenda, avistei Gustavo se aproximando, montando um dos outros cavalos da propriedade, um mangalarga de pelos cinzas. Não me surpreendi com a satisfação que senti em revê-lo. Ele usava calças jeans e camiseta de malha pólo. Sem o boné parecia um pouco mais velho ou menos infantil. Seu rosto, à mostra,

exprimia um carisma cativante. Provavelmente era o tipo de pessoa que conquistava, facilmente, a afeição de todos ao seu redor, como começava a fazer comigo. — Boa tarde, madame. — disse ele, com seu jeito descontraído e bem humorado. — Como passou de ontem pra hoje? — Muito bem e você? — Não sei dizer. — o rosto dele assumiu um ar divertidamente pensativo. — Dormi tanto que nem vi a noite passar. — Você vem de São Paulo para o Rio todos os dias? — Não. — ele respondeu sorrindo. — Estou hospedado em uma pensão em Itatiaia, temporariamente, até encontrar o que procuro. Distraidamente, fiz meu cavalo andar, vagarosamente, enquanto Gustavo me acompanhava, seu cavalo ao lado do meu. — E o que é que você procura? — Cavalos. — Cavalos? — É. Estou introduzindo alguns jóqueis iniciantes nas competições de hipismo, são jovens donos de talento nato, mas os cavalos que eles me apresentaram são de doer. — E você acha que os cavalos daqui vão ter um desempenho melhor? — Estou torcendo para isso, pois já procurei em todas as fazendas da região e nada me agradou. Se não encontrar o que procuro aqui, precisarei viajar para o Paraná, me falaram que eles têm bons animais por lá. Mas, sinceramente, não gostaria de me submeter ao frio daquela região. A menção ao estado do Paraná, terra natal de Daniel, me despertou uma dolorosa onda de tristeza, fazendo-me relembrar meu amor perdido. — O que foi? — Gustavo perguntou. Fiquei surpresa por ele ter percebido minha reação apenas ao olhar em meus olhos. Era incrível sua capacidade de me compreender. — Nada, só uma lembrança do passado. Ele fitou-me em silêncio por um longo momento, seus olhos cravados nos meus, como se tentasse descobrir um pouco mais, como se tentasse penetrar minha alma, até que não mais consegui sustentar seu olhar e desviei o meu rosto, denunciando a veracidade de sua constatação. — Vamos apostar uma corrida? — ele propôs, com entusiasmo, como que para me afastar a lembrança que me afetara. — OK. Mas qual será o prêmio do vencedor? — perguntei, animada com a perspectiva de uma competição. — Sei lá. Você escolhe. — Deixa eu pensar... — o que ele poderia ter que eu queria? Apenas sua companhia. — Se eu ganhar, você me trará um pôster autografado do Leonardo Di Caprio. — falei. — Mas isso é impossível, o cara mora nos Estados Unidos. — Eu não tenho pressa, você pode conseguir o autógrafo quando for lá para uma competição. — Tudo bem. E se eu ganhar, o que levo? — Se você ganhar te darei o meu pôster da Julia Roberts. — Mas isso não é justo, você teve o direito de escolher o seu prêmio, quero escolher o meu. — E o que é que você quer?

— Uma lista de todos os filmes que você viu e gostou. — Por que isso? — Para eu pegar suas dicas. Se você é fã do Leonardo Di Caprio e da Julia Roberts, deve ter muito bom gosto para filmes. Desta vez eu não pude deixar de sorrir. Há muito tempo não sabia o que era aquilo. Gustavo sorriu de volta, seu olhar expressando pura satisfação. Alguns minutos depois, cavalgávamos lado a lado, nossos cavalos em uma corrida veloz. Como eu, ele sentia prazer em cavalgar e conduzia seu animal com admirável habilidade. Não era de estranhar que se tornara treinador, pois tinha muito jeito para aquela atividade, como se nascera para isso. Cavalgamos quilômetros e mais quilômetros das terras de Boa Esperança, sempre ao lado uma do outro e sempre velozmente, até que por fim, dominados pelo cansaço, paramos próximos ao tronco de uma árvore caído ao chão, onde nos sentamos, exaustos, ambos com a respiração ofegante. Àquela altura já tínhamos esquecido a aposta, e como em nenhum momento, nenhum dos dois ultrapassara o outro, não haveria um vencedor. — Nossa! Ainda não tinha encontrado alguém que conseguisse me acompanhar em uma corrida. Você foi a primeira. — ele falou, ainda com respiração ofegante. E ele era o primeiro a me acompanhar, não por ser admiravelmente ágil e habilidoso, mas porque eu costumava cavalgar sempre sozinha. Mesmo quando morava em Serra Azul, ninguém me acompanhava em meus frequentes passeios a cavalo pelo sertão, agora, ali no sítio, minha solidão era ainda maior. — E então, o que achou do cavalo? — perguntei, distraidamente. — É perfeito, mas ainda preciso testar mais alguns antes de fazer a compra. — Nós temos muitos cavalos, você terá que vir aqui muitas vezes. — Eu não me importo de vir aqui todos os dias, pois gosto do lugar e gosto de sua companhia. — Ninguém gosta da minha companhia, as pessoas acham que sou triste e depressiva. — Eu também acho que você é triste e depressiva, mas gosto de pessoas depressivas. A euforia é muito normal, legal é ser diferente. — como sempre, havia um tom de descontração no tom da voz dele, o que me levou a sorrir novamente. Permanecemos sentados ali, durante as horas seguintes, conversando descontraidamente. Era muito fácil conversar com Gustavo, ele era inteligente, divertido e tinha uma resposta coerente para tudo. Com ele, eu não me sentia inferiorizada, ou melancólica, mas totalmente à vontade, como se o conhecesse há muitos anos e não apenas há dois dias. Havia uma afinidade incomum entre nós, talvez por termos os mesmos gostos: gostávamos do mesmo gênero de filmes e livros e das mesmas músicas. Ele era brincalhão e me contagiava com esse seu jeito bem humorado de ser, enquanto minha costumeira melancolia o ajudava a manter os pés no chão. E, acima de tudo, éramos igualmente apaixonados pelos cavalos. Não havia interesse de envolvimento afetivo entre nós, apenas uma intensa amizade que nascia. Ele era como uma luz que viera iluminar a escuridão na qual eu há muito me encontrava mergulhada. Na tarde do dia seguinte, nos encontramos novamente, nos arredores da sede da propriedade, quando ele montava um outro cavalo dali. Após cavalgarmos durante algumas horas, sentamo-nos ao tronco velho da árvore, no mesmo local do dia anterior. Tratava-se de um dia nublado, com um vento gelado soprando constantemente, fazendo-me cruzar os meus braços diante do meu corpo, arrepiando-me de frio. Enquanto conversávamos, descontraidamente, percebia que a afinidade crescia entre nós, principalmente depois que ele me revelou sua trajetória de vida. Segundo

sua narrativa, crescera em um orfanato na Bahia. Não tinha noção de quem eram seus pais biológicos, pois fora abandonado, ainda com poucos dias de vida, na porta de um hospital em Salvador e, não encontrando pais adotivos, fora levado para o orfanato, uma instituição localizada no interior do estado, onde, ainda bem cedo descobrira sua paixão pelos cavalos. Com quinze anos de idade, se tornara campeão internacional de hipismo, vencendo vários campeonatos. Aos dezoito anos, com sua independência financeira conquistada, assim como sua maioridade, deixara o orfanato, e mudara-se para São Paulo, onde vivia atualmente, treinando cavalos para campeonatos e empresariando os jóqueis que os montavam. Tinha a mesma idade que eu e morava sozinho em um aparamento no Morumbi, um bairro nobre da capital paulista. Afirmava ser dono também de uma chácara naquela região, onde abrigava seus cavalos, com os quais cavalgava nos momentos de lazer. Quando lhe indaguei sobre sua vida afetiva, ele se mostrou bastante desconcertado, pela primeira vez, desde que o conhecera, demonstrara sinal de timidez, o que, até então, parecia impossível. Ou era opcionalmente solitário ou não fazia muito sucesso entre as mulheres. Possibilidades ambas aparentemente inexistentes, considerando o seu jeito extrovertido de ser. Quando ele me indagou sobre o meu passado, lhe falei sobre minha infância em Serra Azul, quando, embora trabalhando duro na roça, sempre arranjava tempo para as cavalgadas. Evitei falarlhe sobre minha vida no Rio e, principalmente sobre Daniel, pois eram constrangedores aqueles assuntos. Embora eu percebesse seu interesse por meu passado, pela verdade sobre meu seqüestro, ele não especulava o assunto, com sua incrível capacidade de me compreender, já percebera que falar sobre aquilo me incomodava. Com o avançar do entardecer, o vento se tornava cada vez mais gelado, anunciando a chegada do inverno. Eu havia perdido a noção de quantas horas estávamos ali, sentados sobre o tronco da árvore, revelando nossas vidas um ao outro, nos conhecendo melhor. Quando a penumbra da noite tomou conta de tudo, retornamos para nossas vidas, para nossas realidades, carregando a certeza de que em breve nos veríamos novamente. E foi exatamente o que aconteceu, logo ao entardecer do dia seguinte, estávamos cavalgando lado a lado novamente, mergulhados no prazer que a companhia um do outro nos proporcionava, até que, assim, uma semana se passou. Fora a semana mais tranquila dos últimos meses de minha vida, pois Douglas não aparecera nenhuma vez para me incomodar. Há muito ele não passava tantos dias sem me visitar, costumava vir duas ou três vezes por semana. Porém, meu sossego terminaria logo. Era tarde de sexta feira, quando aconteceu. Eu e Gustavo nos encontrávamos sentados ao tronco da velha árvore caído ao chão, como fazíamos sempre que nos cansávamos das corridas dos cavalos, quando, de repente, ao longe, ouvi a voz de Abraão gritando meu nome, com tom de urgência e, subitamente, fiquei de pé, assustada com a certeza da notícia que ele me anunciaria. — O patrão chegou, Luana. — disse o jovem rapaz, aproximando-se, detendo seu cavalo de uma corrida veloz. Num gesto muito rápido, montei meu cavalo, sentindo todo meu corpo estremecer de pânico, pois já sabia o que aconteceria se deixasse Douglas esperando. — Faz horas que ele chegou? — perguntei, sobressaltada. — Não. Corri para cá assim que o carro dele atravessou o portão de entrada. — Obrigada Abraão. Pode ir indo na frente que irei logo em seguida. — virei-me para Gustavo, que nos observava boquiaberto. Inteligente como era, certamente já percebera tudo. Mas não havia tempo para me sentir constrangida, por ser amante do meu patrão casado, precisava voltar, antes que fosse tarde. — Por favor, Gustavo, espere um pouco antes de voltar para a sede, não será bom se... — eu ia

dizer que não seria bom se Douglas nos visse juntos, por causa do seu ciúme doentio, porém, não consegui terminar a frase. — Tudo bem, Luana. — Gustavo falou, seu rosto sério, como não era de costume. — Eu já entendi. Sem mais uma palavra, fiz meu cavalo correr o mais depressa que conseguia, seguindo direto para a mansão. Chegando lá, Douglas se encontrava na sala, servia-se de uísque, o que indicava que acabara de entrar. Ao ouvir os meus passos, aproximando-me, ele se virou para me fitar, percorrendo seu olhar dos meu pés à minha cabeça, depois, calmamente, falou: — Sua aparência é lastimável. E era verdade, pelo menos aos olhos dele, que gostava de me ver bem vestida e arrumada. Eu usava uma calça jeans velha, rasgada nas pernas pelas cavalgadas; uma camiseta de malha desbotada e meus tênis encardidos. Meus cabelos estavam emaranhados pelo vento e meu rosto avermelhado pela corrida. Não usava maquiagem alguma. — Me desculpe por isso. — murmurei, cabisbaixa, meus olhos fixos no chão, temerosa em despertar sua fúria. No entanto, ele permaneceu calmo, aproximou-se de mim e roçou, suavemente seus lábios nos meus. Seu hálito, como sempre, cheirava a uísque. — Vá tomar um banho e trocar de roupa que estarei esperando você lá em cima. —- ele ordenou, sua voz sussurrada e autoritária. Então, deu-me as costas e subiu as escadas para seu quarto. Com um longo suspiro, do mais profundo alívio, me dirigi para a outra casa, onde se encontravam minhas roupas. Durante o curto trajeto, entre as duas moradias, avistei Gustavo ao longe, retornando das campinas do sítio, onde eu a pouco o deixara. Me apressei em entrar na casa, antes que ele viesse falar comigo e Douglas pudesse nos ver. Toda a alegria que Gustavo me proporcionara durante aquela semana em que cavalgamos juntos, foi destruída por Douglas durante a noite, por seu terror incessante. Ao lado dele, eu estava sempre apreensiva, tensa, esperando que se tornasse violento a qualquer momento. Ele não precisava de um motivo para se tornar agressivo, quando queria, inventava um meio de me machucar. Sua violência surgia repentina e inesperadamente. Felizmente desta vez, sobrevivi sem nenhum arranhão, pelo menos não no corpo, pois sua violência se manifestara por meio das palavras, com a insistente ameaça de morte, caso eu o traísse com outro homem. A tortura fora psicológica, deixando feridas apenas na minha alma. Ele se recusava a confiar em minha fidelidade, pelo fato de eu ter sido garota de programa e constantemente me lembrava disso, afirmando que uma pessoa como eu seria incapaz de ser fiel a um homem. Às vezes eu queria traí-lo, apenas para que ele me matasse — como ameaçava fazer —, e me livrasse de si próprio, de sua insuportável presença. Na tarde do dia seguinte, quando voltei a cavalgar, me sentia como de costume, desde que chegara ali: triste e deprimida. A lembrança do contato do corpo de Douglas contra o meu, do toque de suas mãos em minha pele, durante toda a noite, me fazia desejar morrer. Queria que Gustavo não viesse aquela tarde, pois não sentia vontade de conversar com ninguém, nem mesmo com ele. Precisava, desesperadamente, ficar sozinha, perdida em meus pensamentos, esperando que um sofrimento amenizasse outro bem mais doloroso e antigo. Porém, logo que o avistei ao longe, aproximando-se, senti vontade de sorrir, só por ver o cavalo que ele montava: um Campolina idoso, apelidado, pelos demais empregados, de pangaré, devido á sua lentidão e idade avançada. Ver Gustavo montar aquele cavalo era realmente hilário. Ele testaria realmente todos os cavalos de Boa Esperança, como prometera? — Finalmente o pangaré achou alguém com disposição para montá-lo! — falei, com sarcasmo, sem

conseguir conter o sorriso. — Que isso! É um ótimo animal! — ele exclamou, com a respiração ofegante pelo esforço em conduzir o velho animal. Seu rosto branco, estava muito vermelho por causa do sol forte. — Acho que hoje você não vai conseguir me acompanhar. — eu não conseguia parar de debochar. — Bem, isso é o que veremos. — ele falou, sem o ânimo necessário para a veracidade do seu desafio. —- E então, como passou de ontem para hoje? — seus olhos cor de mel se cravaram nos meus, buscando alguma reação, especulando, tentando decifrar meus sentimentos. Provavelmente relembrava a descoberta da tarde anterior, de que eu era amante de Douglas. Tentando ocultar minha reação, desviei meu olhar do dele, evitando que me encarasse, que lesse minha alma como costumava fazer. Queria correr com o cavalo e deixá-lo para trás, para que não visse minha dor, minha humilhação por manter um relacionamento oportunista, com um homem que não amava. Mas não quis deixá-lo sozinho, ele não viera aqui apenas pelos cavalos, buscava também minha companhia, gostava dela tanto quanto eu da sua, eu não tinha o direito de negar isso a ele. Continuei cavalgando vagarosamente enquanto ele me seguia. — Trouxe uma coisa para você ver. — disse ele. Curiosa, virei-me para trás, em sua direção. Ele carregava uma sacola de papelão. — O que é isso? — perguntei. — Vamos procurar uma sombra para sentar. O calor está muito forte. Ele tinha razão, era um dia de tórrido calor, bem diferente dos dias anteriores. Uma frequente variação de temperatura peculiar àquela época do ano, a qual precedia o inverno. Como nos encontrávamos ainda distantes do velho tronco da árvore onde gostávamos de nos sentar para conversarmos, nos aconchegamos à sombra de uma mangueira, sentando-nos sobre a relva ao solo. Gustavo abriu a sacola, tirando de seu interior um notebook, o qual ligou, colocando-o diante dos meus olhos. Na tela do pequeno computador, apareceram as imagens de um cavaleiro executando provas em uma competição de hipismo. Era impressionante a habilidade e leveza com que o jovem rapaz conduzia o cavalo, através da pista de provas, realizando, com sucesso, todas as categorias. Primeiramente, atravessou a prova de adestramento, fazendo o cavalo cavalgar através da arena, com movimentos graciosos, bem treinados. Em seguida, passou para a prova de saltos, fazendo o Holsteiner saltar por sobre os obstáculos, como se voasse sem asas. Atravessou cerca de doze obstáculos, com habilidade, num emocionante espetáculo de equilíbrio, precisão e resistência. — Minha nossa! Ele é incrível! — exclamei, fascinada. — Você gostou? — Gustavo perguntou, desligando o computador. — Mas é claro que eu gostei, ele é demais. — Pois saiba que você poderia fazer isso melhor que ele. — Eu não poderia. — E por que não? Basta um pouco de treino e você consegue. Você tem um talento nato Luana, como eu e como muito poucas pessoas neste mundo. Não desperdice esse dom. Ele tinha razão, éramos pessoas contempladas por uma extraordinária afinidade com os cavalos, algo muito raro de se ver. No entanto, eu não poderia cogitar seguir a carreira de amazona, pois Douglas jamais permitiria. — Você não entende... eu não posso. — falei, sem encontrar mais argumentos para tentar convencêlo. Gustavo fitou-me profundamente nos olhos, por um longo momento de silêncio, então, como se lesse minha alma, falou:

— É por causa dele, não é? Ele não precisou dizer mais nada para que eu entendesse, estava referindo-se a Douglas, ao nosso relacionamento. Desde que o encontrara esta tarde, vinha tentando evitar o assunto, mas era inevitável, Gustavo percebera tudo, no dia anterior, quando Abraão viera me chamar à sua ordem. Certamente percebera também que não se tratava de um relacionamento normal, entre duas pessoas que se amavam, ou eu não teria partido tão depressa e nervosa quando o garoto surgira, além do mais Gustavo possuía uma estranha capacidade de me entender, de desvendar os meus segredos, eu não conseguiria esconder nada dele. Como se tentasse ocultar-lhe a verdade, desviei meu olhar do seu rosto, sentindo-me humilhada e constrangida, diante de tal revelação. Não sabia exatamente o que lhe dizer. — Você o ama? — a pergunta partiu repentina e direta, parecia mais uma confirmação. Então, convenci-me de que não conseguiria esconder isso de Gustavo, talvez até fosse melhor desabafar com ele. — Não. — murmurei, ainda sem encará-lo. — Então por que está com ele? Eu sinceramente não entendo. Corajosamente, fitei-o novamente no rosto, esperando que seu poder de compreensão se estendesse até o que lhe diria. — Tem razão, você não entende. — falei. — Então me explica. Eu soltei um longo suspiro, formulando mentalmente minhas palavras, para que elas soassem o mais claramente possível. — Quando você me encontrou aqui na fazenda disse que já me conhecia, não foi? — Sim. — ele foi breve em sua resposta, incentivando-me a continuar. — E me conhecia das manchetes dos jornais. — É. Na época em que você foi sequestrada, fiquei fascinado pelo caso. Acompanhei cada detalhe do desfecho pela televisão, cheguei até a colecionar fotos de vocês dois... — ele se interrompeu, percebendo a expressão de angústia que surgia em meu olhar. Soube, neste instante, que não era à esse ponto que eu queria chegar. — Mas o que isso tem haver com Douglas? — Se você acompanhou todo o caso pela mídia, então sabe o que eu fazia antes de ser sequestrada. Ele percorreu, brevemente, seu olhar através do vazio à sua frente, como se buscasse compreender o sentido das minhas palavras. Depois voltou a me encarar, dizendo: — Sei, você era garota de programa, e daí? — seu tom de voz tinha uma casualidade surpreendente, considerando o fato de que a simples menção da prostituição costumava chocar, ou minimamente, desconcertar, as pessoas. Mas Gustavo não era como os outros. — E daí que é por isso que estou aqui, com Douglas, para escapar daquela vida. Eu não era apenas garota de programa, era também viciada em cocaína, mas aqui, tudo é diferente para mim. Você entende agora? — Não, eu não entendo. Mas era claro que ele entendia, apenas queria que me justificasse por minha fraqueza em não conseguir andar com minhas próprias pernas, por não conseguir viver minha vida sem depender de outra pessoa, mas isso, nem eu mesma compreendia. — Eu gosto deste lugar, Gustavo. Aqui tenho paz. Cavalgar é a única coisa que me dá prazer na vida e aqui tenho os cavalos.

— Não, Luana, você não precisa de nada disso, você é uma pessoa forte e talentosa, pode se virar sozinha. Desviei novamente meu olhar do seu rosto, tentando esconder-lhe o quanto era mais fraca do que ele supunha, o quanto a perda de Daniel me deixara impotente diante da vida. Eu me tornara apenas um ser vazio, sem ânimo, desmotivada a viver. Me rastejava, vagarosamente pelos caminhos traçados por Douglas para mim, movida por uma dor que sempre me acompanharia. Quando voltei a fitá-lo, ele se deparou com minha confissão estampada em meu olhar, reagindo a ela como quem reage a um golpe físico: recuando involuntariamente seu corpo. — Eu não posso. — falei, num sussurro. Então, ele se colocou á minha frente, segurando minhas mãos com as suas, como se tentasse me consolar. O toque de suas mãos era surpreendentemente reconfortante. Naquele instante, quis, desesperadamente, que ele me abraçasse, desejando experimentar um pouco mais do conforto do seu contato. — Ele pelo menos ama você? — Gustavo perguntou, ainda segurando minhas mãos trêmulas entre as suas. — Claro. — apressei-me em mentir, esforçando-me para sustentar o seu olhar. — Ele é muito bom pra mim. Ele continuou me fitando em silêncio por mais algum tempo, então, lentamente, a seriedade se dissipou do seu rosto, dando lugar à sua descontração de sempre. — Eu não tenho sorte mesmo. É só me interessar por uma garota e ela é comprometida! — ele falou, com uma expressão de drama forçada e engraçada no olhar. Estava agindo como de costume: brincalhão e bem humorado, por isso não consegui distinguir se falava seriamente ou apenas fazia mais uma de suas piadas para tentar me fazer sorrir. — Continue tentando. — falei, sorrindo, contagiada com seu bom humor. No fundo, eu sabia que Gustavo não acreditara em minhas palavras, na afirmação de que Douglas me amava e me tratava bem, ele era perceptivo demais, já farejara que havia algo errado naquele relacionamento. Talvez não percebera toda a terrível verdade, não chegaria tão longe, pois a verdade era inconcebível a olhos saudáveis. No entanto, pelo que eu conhecia dele, sabia que não me especularia, em busca da verdade, esperaria até que eu desejasse falar, voluntariamente. Com o passar do tempo, nosso laço da amizade foi se intensificando, até que ele se tornou tudo para mim, a luz do meu caminho, iluminando minha escuridão. Passei a tê-lo como um irmão, minha única e verdadeira família. Com sua constante insistência, acabei aceitando treinar para as provas de hipismo, tomando uma decisão que colocaria minha vida em risco, caso Douglas descobrisse. Mas Gustavo era cuidadoso, não me colocaria em perigo. Embora ainda não conhecesse toda a verdade, podia pressentir que Douglas era um homem perigoso. Todos os dias aparecia no sítio, para treinarmos, mas passou a vir de táxi, para que Douglas não visse seu carro e desconfiasse de sua constante presença. O taxista o deixava por volta do meio dia e voltava para apanhá-lo no final da tarde. Os funcionários já haviam percebido que ele não estava ali apenas para testar os cavalos, embora ele tivesse comprado alguns, tampouco desconfiavam dos treinos, já que fazíamos tudo às escondidas. Mas eles eram discretos, não falavam a Douglas sobre as visitas diárias de Gustavo, não por apoiarem o que, aparentemente estávamos fazendo, mas por piedade ao que poderia acontecer a mim se ele soubesse. O primeiro dia de treino, fora uma tortura para mim, caíra do cavalo várias vezes enquanto tentava fazê-lo saltar por sobre os obstáculos, improvisados por Gustavo com manilhas de cimento,

colocados nos cantos mais recônditos da propriedade, onde ninguém os encontraria, pelo menos não facilmente. Apenas Abraão sabia onde treinávamos, era a única testemunha de nossa proeza, pois precisava me encontrar, rapidamente, quando Douglas aparecia de repente no meio da tarde, para me tirar a paz, o que não era tão frequente, já que preferia vir à noite. Depois das muitas quedas, finalmente fui pegando o jeito. O segredo era estar em perfeita harmonia com o cavalo, minha mente conectada à dele. Ao apreender tal concepção, saltar os obstáculos se tornou extremamente fácil e prazeroso. Gustavo afirmava que jamais vira alguém conseguir realizar aquela proeza tão depressa. Durante os dois meses seguintes, treinávamos arduamente todos os dias e a cada dia eu me apaixonava mais pelo esporte, passei a ansiar pela oportunidade de participar da minha primeira competição. O que eu não sabia, era que demoraria mais do que esperava, pois houve uma tarde em que Abraão não se encontrava em casa, e Douglas apareceu para me visitar... Já era quase noite quando eu e Gustavo retornávamos do treino, cavalgando, vagarosamente, lado a lado, quando, ao longe, avistamos Josefa se aproximar, caminhando apressadamente. Fiz meu cavalo trotar mais depressa, até que a alcancei. Ela tinha seu corpo banhado de suor e sua respiração ofegante. — Ah, Graças a Deus te encontrei Luana. — disse a mulher, com a respiração ofegante. Neste momento, senti todo o meu corpo estremecer de pavor, prevendo o que ela diria. — O que aconteceu? — perguntei, apenas para me certificar do que já sabia. — O patrão está em casa desde cedo. Faz horas que me mandou te procurar, mas eu não te encontrava em lugar nenhum. — a voz dela era quase chorosa. — Não. — murmurei, mecanicamente. Sem pensar duas vezes, puxei a robusta mulher para a garupa do meu cavalo, pondo-o a correr o mais depressa que conseguia, o que não era grandes coisas, devido ao peso extra sobre o seu lombo. Antes de partir, com o canto do olho, vi o olhar aflito com que Gustavo me observava, mas ele não me seguiria, estava instruído a me deixar sempre chegar à sede na sua frente, quando Douglas estivesse presente, era parte de nosso plano, uma das imposições que eu fizera antes de aceitar iniciar os treinos. Quando alcançamos, finalmente, a sede do sítio, deixei Josefa em frente a sua casa. Ao descer do cavalo, ela segurou minha mão e disse: — Desculpe não ter chamado você a tempo, Luana, mas não sei montar a cavalo e estou sozinha em casa. Rosa está no colégio e Abraão saiu com o pai para fazer compras na cidade. Por favor me perdoe. — a voz dela era uma lamúria de compaixão. — Tudo bem, Josefa, não foi culpa sua. — eu falei, em seguida, dirigi-me apressadamente para a mansão, sem me sentir nem um pouco preparada para o que me aguardava. Chegando lá, encontrei Douglas na sala de estar, sentado no sofá branco, com o copo de uísque na mão. Usava calça de linho e camisa social branca, aberta até o peito, sem a gravata. Provavelmente, eram ainda as mesmas roupas com que chegara. Ao me ver entrar, imediatamente ele ficou de pé, observando-me, de onde estava, à certa distância, altivamente. A fúria estampada em seus olhos negros, anunciava o que aconteceria em seguida. — Onde você estava? — ele perguntou, rispidamente. Sem conseguir conter o tremor que tomara conta de todo o meu corpo, aproximei-me mais dele, tentando evitar que alterasse o tom de sua voz e Gustavo o ouvisse, caso já se encontrasse por

perto da casa. — Eu estava cavalgando. — falei, com tom de voz baixo, meus olhos fixos no chão, por medo de encarar sua fúria. — Com quem?! — perguntou, de sopetão. Mas desta vez eu não respondi, pois nada do que eu dissesse poderia detê-lo, ele estava determinado a me agredir e eu não podia fazer absolutamente nada que pudesse impedi-lo. Ele solveu um grande gole do uísque, pousando o copo vazio sobre a mesinha de centro. Então, como eu já esperava, lentamente, tirou o cinto de couro do cós de sua calça e aproximou-se mais de mim, seus olhos brilhantes de uma fúria animal. — Você não vai me dizer com quem anda se encontrando, Luana?! — ele esbravejou novamente. Mais uma vez, permaneci em silêncio, enquanto olhava o cinto em sua mão. Apesar de tudo, me sentia aliviada por ele não ter ido me procurar pessoalmente, pois teria me encontrado com Gustavo e sua violência o atingiria também. Com a mão livre, Douglas arrancou, facilmente minha camiseta de malha, rasgando-a ainda em meu corpo, em seguida, virou-me de frente para a parede, bruscamente, comprimindo meu rosto contra o concreto, sua mão forte apertando minha nuca. Então, começou a golpear minhas costas com o cinto, brutalmente, ferindo minha pele, por sobre as cicatrizes já existentes. Com muito esforço, reprimi meus gritos de dor, temendo que Gustavo me ouvisse e entrasse na casa para me socorrer. Se o fizesse Douglas mataria a nós dois, certo de que ele era o amante que acreditava que eu tinha. Perdi a noção de por quanto tempo apanhei em silêncio. Quando Douglas encerrou sua sessão de tortura, me encontrava quase desfalecida. Ainda assim, ele me ergueu em seus braços e me levou par a sua cama, onde sua violência covarde se exteriorizou de outra forma: possuindo meu corpo, sadicamente, o sangue das minhas feridas proporcionando-lhe um prazer doentio. Esteve dentro de mim, por tanto tempo quanto minhas forças me permitiram permanecer acordada — ou quem sabe um pouco mais —, até que, por fim, perdi os sentidos, partindo ao encontro do meu único meio de fuga: a total inconsciência. Na manhã seguinte, a cena se repetia pela segunda vez: encontrava-me deitada de bruços, sobre a pequena cama de solteiro, em meu quarto, enquanto Josefa espalhava uma substância pastosa sobre os ferimentos em minhas costas. Sentia-me fraca, muito cansada, lamentava o momento em que recobrara os sentidos, pois a inconsciência me era mais confortável. Refletindo a respeito dos acontecimentos da noite anterior, cheguei à conclusão de que Douglas, verdadeiramente, não desconfiava de que eu tivesse um amante, apenas usava tal argumento como pretexto para me torturar, pois gostava de me machucar, se excitava com os meus ferimentos, gostava de possuir o meu corpo quando se encontrava quase sem vida, era um sádico, um doente mental. Se realmente desconfiasse de que eu o estava traindo com outro homem, não teria enviado Josefa para me procurar, o teria feito pessoalmente. Ele era inteligente o suficiente para tentar me flagrar, nos braços do meu suposto amante, se realmente acreditasse que ele existia. Seu ciúme doentio não passava de uma farsa, armada como uma desculpa para me maltratar. Talvez até aparecesse em Boa Esperança no horário em que sabia que eu estaria cavalgando, com a expectativa de que eu o deixaria esperando, fornecendo-lhe a chance de me culpar. Não fora por acaso que me escolhera para me tornar sua amante, eu era apenas uma garota de programa viciada, sozinha, sem ninguém a quem recorrer e sem outra opção de vida além da que ele me oferecia. Relembrei o momento em que Daniel se transformara em lobisomem, na mata, próximo à

cidade de Vitória, quando, com um só golpe de sua garra afiada, tirara a vida do detetive que me esbofeteara no rosto. Imaginei o que aconteceria a Douglas se ele ainda estivesse vivo para me defender e, embora soubesse que era errado desejar a morte de alguém, ou pensar em assassinato, aquele fora o pensamento mais prazeroso que me ocorrera até o momento. — Não consigo mais ver ele fazendo isso com você, Luana. — Josefa falava, enquanto espalhava seu remédio à base de ervas sobre minhas costas — Você tem que dar um jeito de fugir daqui, pra bem longe, onde ele não possa te encontrar nunca mais. — E para onde eu iria? — balbuciei, quase que para mim mesma. — Por que você não pede a ajuda de Gustavo para fugir daqui? Ele parece que gosta muito de você. Só então, me lembrei de Gustavo, do quanto ele certamente estava preocupado comigo, pois quando o deixara, na tarde anterior, encontrava-me completamente apavorada, enquanto ele me observava aflito. Mesmo estando desassossegado, ele não quebraria as regras, não apareceria ali antes do meio dia. — Por favor, Josefa, não deixe ele entrar aqui, não permita que me veja assim. — eu falei, apreensiva. Se me visse naquele estado, Gustavo provavelmente tentaria confrontar Douglas e isso não podia acontecer, era perigoso demais, a Violência de Douglas não tinha limites. Além do mais, não queria que ele me visse neste estado, seria constrangedor, humilhante demais. — Quando ele chegar, diga que estou indisposta, que não vou cavalgar nos próximos dias e mesmo que ele insista, não deixe que entre aqui. — Tudo bem, mas vai ser difícil manter ele lá fora. — Tente. Após espalhar as ervas medicinais sobre minhas feridas, Josefa deixou o quarto. Fechei os meus olhos, sentindo-me exausta, dolorida, como se tivesse acabado participar de uma partida de futebol americano, mas não consegui adormecer, pensava em Gustavo, no risco que ele correria se tentasse confrontar Douglas, por minha causa. Jamais me perdoaria se algo acontecesse a ele. Mas não permitiria que descobrisse a verdade, pois assim o estaria protegendo, me esconderia tanto quanto possível, afinal eu não estava sozinha, Josefa e sua família apoiavam minha decisão e me ajudariam a mantê-lo afastado. Porém, meu plano não funcionou. Eu poderia enganar qualquer pessoa no mundo, mas não a Gustavo. Por volta do meio dia, como era de costume, ouvi o ronco do motor do táxi que veio deixálo, em seguida sua voz ecoou ao longe, de próximo ao curral, falando com Sebastião, embora eu não conseguisse distinguir o que diziam. Em poucos minutos, sua voz ecoou novamente, agora mais próxima, da porta de entrada da casa, falando com Josefa. — Eu vi o cavalo dela lá no curral. Sei que não deixaria de cavalgar a essa hora se estivesse bem. — disse ele, com voz ligeiramente alterada. — Ela realmente não está bem mas me pediu para não deixar você entrar. — falou Josefa. No silêncio que se seguiu, esperei, sinceramente que ele tivesse ido embora, mas logo a porta do quarto se abriu e ele entrou, seguido por Josefa. — Meu Deus! O que aconteceu com você, Luana? — Gustavo falou, imóvel diante da porta aberta atrás de si. — Eu disse pra ele não entrar, Luana, mas não teve jeito. — Josefa se justificou. Eu continuava deitada de bruços na cama, minhas costas desnudas, expondo os ferimentos cobertos pela gosma verde, espalhada por Josefa. Sentindo-me profundamente constrangida e humilhada, virei o meu rosto para a parede, como se tentasse esconder minha vergonha.

— Por favor, saia daqui Gustavo, não quero que você me veja assim. — supliquei. No entanto, ele se aproximou mais de mim, pondo-se bem ao lado da cama, tão próximo que eu podia sentir o seu cheiro. — Foi ele quem fez isso com você? — Sua pergunta soou com tom de afirmação. — Não. — retruquei rapidamente. — Eu apenas caí do cavalo. — Isso não foi queda de cavalo, Luana. — ele falou. — Isso foi uma surra. — Não foi não. — eu continuava escondendo o meu rosto, sem conseguir encará-lo. — Foi uma surra sim. — Josefa interveio. — Douglas fez isso com ela e não foi a primeira vez. — Pare com isso Josefa. — falei. Mas era tarde demais, Gustavo já tirava seu celular do bolso do seu jeans. — Eu vou denunciar aquele maldito. — ele falou, entredentes. Finalmente virei o meu rosto para ele, fitando-o diretamente nos olhos. — Você não pode fazer isso, Gustavo. — falei, numa tentativa quase desesperada de detê-lo. — E por que não? — ele perguntou, ainda segurando o telefone. — Não vai me dizer que você gosta de... apanhar. — É claro que eu não gosto disso, você ficou louco? Mas se o denunciar ele matará a nós dois. Gustavo discou os números no telefone, levando-o até o ouvido. Com muito esforço, por causa da intensa dor que se espalhava por todo o meu corpo, alastrando-se até os meus ossos, virei-me de frente, sentando-me na cama, segurando o lençol sobre meu colo, para ocultar meus seios desnudos. Fitei-o fixamente nos olhos e com urgência falei: — Por tudo o que é mais sagrado, Gustavo, guarda esse telefone. — Me dê um bom motivo para fazer isso. — Mesmo que ele seja preso, com o dinheiro que tem, em poucos dias sairá da cadeia. Nos perseguirá para o resto de nossas vidas, não poderemos fugir de sua ira, eu o conheço bem, não sossegará até nos ver mortos. Além disso, demitirá toda a família de Josefa, por terem permitido que você entrasse aqui. Você não entende? Como eu, eles também não têm para onde ir. Neste momento, todo o corpo de Josefa se estremeceu. Gustavo a observou por um minuto, depois, guardou o telefone. — Você tem para onde ir sim, Luana, pode ficar em meu apartamento até comprar o seu. — ele falou, com voz agora mais calma. — Era isso que eu estava dizendo a ela. Para fugir daqui com sua ajuda. — Josefa falou. — Josefa, por favor, nos deixe um pouco sozinhos. — pedi. — Tudo bem, tenho mesmo que cuidar do meu serviço. — e ela deixou o quarto, fechando a porta atrás de si. Movendo-se lentamente, Gustavo sentou-se na beira da cama, acariciando suavemente meu rosto, com a ponta dos dedos. Seu olhar expressava um misto de angústia e compaixão, o que me fez sentir ainda pior. — Por que você se submete a isso, Luana? Eu não entendo. — Você nunca conheceu o mundo da prostituição, não é? Nunca conheceu de perto a vida de uma mulher que transa em troca de dinheiro, não é Gustavo? — eu tentava manter minha voz firme. — O que você está tentando dizer? — Estou tentando te dizer, que aquela vida é muito pior que isso. A pessoa vivi sozinha, desprovida de amor e de amigos, tendo que suportar a descriminação da sociedade e tendo que se deitar com

qualquer um que tenha dinheiro para pagar. Ali, a droga é a única saída que se tem. Aqui, pelo menos eu tenho momentos de paz, posso ficar sozinha e refletir. Aqui eu tenho o que comer todos os dias e não preciso mais me drogar para fugir da realidade. Afinal, Douglas não vem todos os dias e nem sempre me machuca tanto assim. — Josefa disse que não é a primeira vez que ele faz isso. — Não. É a segunda. — Ainda assim, Luana, você não precisa se submeter a isso, tampouco precisa voltar às ruas. Você é uma pessoa forte e talentosa, pode sair daqui e mudar seu destino. — É mais complicado do que parece. Não sou tão forte quanto você pensa. — de súbito, me recordei dos motivos que me mantinham ali, submissa à violência de Douglas: naquele lugar eu tinha a solidão e o sossego de que necessitava para me recordar de Daniel, dos momentos bons que passara ao lado dele. Ali podia claramente relembrar nosso amor, brutalmente tirado de mim, por sua morte; imaginar como seríamos felizes se estivéssemos juntos, vendo o nosso filho crescer. Onde mais eu poderia encontrá-lo tão nitidamente em meus pensamentos? — Aqui eu tenho sossego, tenho a paz de que preciso para... — me interrompi rapidamente, percebendo que meus pensamentos se materializavam em palavras. Gustavo fitou-me em silêncio por um longo momento, como se tentasse desvendar minha alma, o que era muito fácil para ele. Depois, calmamente, falou: — Para pensar em Daniel, não é? Eu o encarei perplexa. Como ele poderia saber sobre mim e Daniel, se jamais falara a alguém sobre nosso amor? — O que? — perguntei, para me certificar de que o ouvira claramente. — Você ainda o ama, não é? — a voz de Gustavo era calma e compreensiva. Neste momento, constatei, mais uma vez, que seria impossível esconder algo dele, principalmente algo que se referia aos meus sentimentos, pois ele tinha uma incrível capacidade de me compreender. Olhei no fundo dos seus olhos cor de mel, onde a afeição se encontrava estampada e não mais consegui segurar o meu pranto, deixando as lágrimas escorrerem através do meu rosto. Com um gesto muito rápido, Gustavo me tomou em seus braços, abraçando-me ternamente, recostando minha cabeça em seu ombro. Permanecemos imóveis nos braços um do outro por um longo momento, enquanto, entre soluços, eu deixava minhas lágrimas molharem o tecido de sua camisa. Era a primeira vez que admitia a alguém os meus verdadeiros sentimentos, assumindo um amor que já deveria ter sido esquecido, mas que ainda se encontrava vivo dentro de mim, inacreditavelmente vivo, latejando em minhas entranhas, do instante em que eu acordava até o momento em que voltava a adormecer. Aos olhos de qualquer ser humano aquele sentimento seria considerado doentio, pois convivi com Daniel apenas por alguns poucos dias e há muito tempo atrás, já deveria tê-lo esquecido. À olhos normais, eu seria julgada e condenada por amar um homem que me raptara e me coagira a me tornar sua cúmplice em um assassinato. As pessoas não compreendiam o laço misterioso existente entre nós dois, nem eu mesma era capaz de entendê-lo. Mas Gustavo me compreenderia, era o único capaz disso. Senti, naquele instante, que não queria mais esconder nada dele, absolutamente nada, afinal, ao descobrir parte da verdade, ele se tornava meu cúmplice, com quem poderia dividir todos os meus pensamentos. Depois de chorar nos braços dele por quase uma hora, finalmente nos afastamos. — Como você soube sobre meu amor por Daniel, ninguém mais sabe disso? — perguntei, minha voz fanhosa por causa do pranto.

— Eu vi seu olhar, pela televisão, quando você deixou o cativeiro e correu ao encontro do corpo dele. Teria que ser muito idiota para não perceber a verdade. — Os repórteres não perceberam, acharam que eu estava em estado de choque. — Mas eu percebi na mesma hora, aliás já estava desconfiado quando as primeiras reportagens começaram a ser exibidas. — ele fez uma pausa antes de perguntar: — Vocês já se conheciam antes de ele te sequestrar? — Não. Nos conhecemos naquele momento. — refleti por um instante, escolhendo minhas palavras, decidida a revelar toda a verdade a ele, já que não queria lhe esconder mais nada. — Tem outra coisa que ninguém mais sabe sobre ele. — O que? — Daniel não era um ser humano normal. Ele se transformou em lobisomem, bem diante dos meus olhos... Então, continuei a falar, narrando-lhe cada detalhe de tais acontecimentos. Enquanto falava, eu via a perplexidade surgir, lentamente, nos olhos de Gustavo. Revelei a ele tudo sobre Daniel, sobre a herança macabra deixada por seus antepassados, a qual os levara à destruição. Falei sobre a chacina que dera fim às suas vidas, cometida pelos homens que Daniel assassinara e pelo meu pai. Confessei também minha participação no assassinato de Orlando e como deixara meu vício matar o meu filho, ainda em eu ventre. Ao final de minha narrativa, Gustavo me observava atônito. Ao contrário do que eu imaginara, não demonstrava sinal de descrença no que eu dizia, nem mesmo em relação ao lobisomem. Me fez algumas perguntas sobre tal criatura e me revelou que sonhara com algo parecido quando acompanhava o caso pela televisão. Era muito estranho que Gustavo tenha sonhado com aquela criatura, afinal ninguém, além de mim e de Daniel, sabia sobre ela. Talvez tivesse se envolvido demais com o caso e ficara impressionado. No final da tarde, o taxista retornou par apanhá-lo, como era o combinado. Antes de ele partir, eu o fiz prometer que jamais sairia da minha vida, pois já não mais conseguiria viver sem ele, sem a sua amizade. De volta, ele me fez prometer que lutaria para mudar minha existência, que me dedicaria ao hipismo, até conquistar minha independência do domínio de Douglas, até conseguir caminhar com minhas próprias pernas.

CAPÍTULO VI

Competição de hipismo

Durante os dias em que permaneci enferma, de cama, Gustavo jamais deixou de me visitar, aparecia no sítio todas as tardes, ocasiões em que conversávamos durante horas consecutivas, em meu pequeno quarto. Por sorte Douglas não apareceu nenhuma só vez durante aqueles dias. Eu temia o que aconteceria se os dois se encontrassem. Logo que minhas feridas cicatrizaram, nós retornamos aos treinos. Treinávamos todos os dias, intensamente. Ele aprimorara a pista de provas improvisada nos recônditos da propriedade, instalando ali novos equipamentos, reproduzindo uma pista de competição real. Também trouxera um aparelho celular para mim e outro para Abraão, para que o rapaz pudesse me avisar mais rapidamente quando Douglas chegasse. Gustavo não mais falava em denunciá-lo, embora eu soubesse que, no fundo, este era seu desejo, o continha apenas para não me contrariar. Exatamente três meses após termos iniciado os treinos, Gustavo marcou a data da minha primeira participação numa competição de hipismo: seria dali a uma semana, em um Concurso Completo de Equitação, de um dia (ODE), no Hipódromo de Niterói. Seria uma competição bastante difícil, principalmente para uma amazona iniciante como eu, pois reuniria três provas a serem realizadas no mesmo dia: o adestramento; o cross-country e o salto. Me apresentaria ao lado de jóqueis já conhecidos e experientes, para um pequeno público seletivo. Precisaríamos deixar o sítio cedo da manhã, quando Douglas não estivesse presente, pois ele jamais me permitiria sair e, mesmo que me matasse na volta, eu não deixaria de comparecer ao campeonato. Eram meados do mês de agosto e o frio do inverno prevalecia. Porém, na noite de terça feira, véspera da competição, não era apenas o efeito da baixa temperatura que me fazia tremer, mas também uma profunda ansiedade. Temia não conseguir realizar as provas diante de uma multidão de pessoas, embora Gustavo me assegurasse de que eu seria capaz. Segundo ele, eu estava preparada para vencer. Para minha felicidade, Douglas não apareceu naquela noite e, após tomar um calmante, pude dormir um sono tranquilo e repositor. Às seis horas da manhã do dia seguinte, como combinado, Gustavo apareceu para me apanhar, dirigindo uma caminhonete preta, que arrastava uma gaiola de madeira, a qual transportaria meu cavalo. Com muita insistência, Josefa permitiu que Rosa me acompanhasse. A presença da entusiasmada menina, ajudava a me tranquilizar. Era a primeira vez que eu deixava o sítio desde que pusera meus pés ali. Sentada entre Rosa e Gustavo, na cabine da caminhonete, transpirava mais que o normal, sentindo-me nervosa, com a perspectiva de reencontrar-me com a civilização. Ao atravessarmos o portão de saída da propriedade, meu nervosismo se intensificou, embora Gustavo tentasse me acalmar com palavras de encorajamento. Seguimos, vagarosamente, pela estrada de chão, quase que totalmente oculta pelo nevoeiro daquele dia frio e nublado. Ao alcançarmos a rodovia o nevoeiro se dissipou e Gustavo

aumentou a velocidade do veículo. À medida em que a movimentação de carros se intensificava na auto estrada, eu me sentia cada vez mais atordoada, com um incômodo bolo no estômago, sensação que se acentuou quando adentramos o perímetro urbano da cidade do Rio de Janeiro. Era difícil para mim, depois de quase um ano de total isolamento em Boa Esperança, me deparar com tamanha movimentação de carros e pedestres nas ruas. Mal pude acreditar que um dia morara em um local tão barulhento e agitado como aquele. Seguimos diretamente par o Hipódromo de Niterói, local do campeonato. Gustavo queria que eu e o cavalo nos familiarizássemos com o lugar das provas antes do início da minha apresentação, marcada para as quinze horas, após a apresentação de cerca de três outros jóqueis. O Hipódromo era um lugar magnífico, estendendo-se por cerca de quatrocentos metros quadrados, onde o gramado parecia um tapete verde. Na pista de provas haviam os mais modernos obstáculos, enfeitados com rosas vermelhas, hortências e jasmins. Era todo rodeado por uma pequena cerca de madeira branca, a qual me lembrava o curral do sítio. Do lado de fora da pequena cerca, haviam imensas mangueiras, sob as sombras das quais repousavam mesas e cadeiras, ainda desprovidas de espectadores. Do lado de dentro da cerca, bem próximo à pista de provas, havia uma bancada retangular, comprida, a qual certamente seria ocupada pelos juízes durante as exibições. Como o local se encontrava praticamente deserto — haviam apenas alguns poucos funcionários cuidando dos últimos retoques antes do início da competição —, tive a oportunidade de treinar à vontade, repetindo, por mais de uma vez, todas as provas a serem executadas durante o evento. Como eu, o cavalo se familiarizou rapidamente com o lugar, mostrando um desempenho tão perfeito que deixou Gustavo e Rosa admirados. Por volta das dez horas da manhã, muitas pessoas começaram a chegar. Eram jóqueis, treinadores e espectadores, os quais me deixavam atordoada com os sons ruidosos de suas vozes tagarelando. Quase todos eles vinham cumprimentar Gustavo. Os jovens jóqueis dirigiam-se a ele com especial admiração, enquanto Gustavo os tratava com seriedade, bem diferente da forma descontraída e alegre como agia quando se dirigia à mim. Para todos os que se aproximavam, ele me apresentava, fazendo-me sentir cada vez mais atordoada, o bolo crescendo em meu estômago, por me encontrar em meio a tantas pessoas estranhas e ainda ter que cumprimentá-las. Talvez eu tivesse adquirido uma fobia social durante os meses de isolamento no sítio, não sabia mais como me comportar em meio a muita gente. Para piorar a situação, algumas das pessoas para as quais era apresentada, me reconheciam das notícias dos jornais, mas Gustavo as repreendia, discretamente, quando tentavam especular meu passado, impedindo-as de continuarem perguntando. Comecei a imaginar como me sentiria no momento da competição, quando certamente haveria uma multidão, ainda maior que aquela, me observando, avaliando-me. Neste instante, convenci-me de que não conseguiria realizar as provas. Aproximava-se das doze horas, e os primeiros competidores daquele dia começavam a se apresentarem, quando Gustavo nos convidou para almoçar. Senti um profundo alívio quando deixei o local e entrei no carro dele. — O que vocês querem comer? — Gustavo perguntou, enquanto ligava o automóvel e partia. — Quero comer num restaurante chique! — Rosa falou, com excessiva empolgação. — E você, o que acha, Luana? — a pergunta despertou-me dos meus devaneios. Não conseguia parar de pensar no meu provável fracasso, durante a competição, por estar sendo observada por uma multidão de espectadores e juízes.

— Acho melhor irmos para o hotel onde você está hospedado e pedirmos uma pizza gigante. — falei, distraidamente, imaginando quantas pessoas haveriam em um restaurante. — Você está certa, pois também precisa descansar um pouco antes da competição. Lá será o local ideal. Enquanto isso o cavalo passa pela inspeção veterinária. — Ah, fala sério! — exclamou Rosa, desapontada. — Mas eu te prometo que jantaremos num restaurante mais tarde. — falou Gustavo. — Legal! Embora agisse com naturalidade, como se nada estivesse acontecendo, Gustavo já percebera que havia algo errado comigo, pois eu era transparente demais aos seus olhos. O que era um aspecto positivo, já que sua tranquilidade abrandava meu nervosismo. Ele estava hospedado num luxuoso hotel em Niterói, um edifício imponente, localizado próximo ao hipódromo. A suíte que ocupava era composta por dois imensos cômodos, decorados com móveis sofisticados e modernos: no primeiro deles havia um jogo de sofá coberto por almofadas de plumas de gansos; uma estante com aparelho de TV de LCD, som e DVD; escrivaninha; mesa para refeições, com tampo de vidro e uma outra estante com livros. No quarto havia um armário embutido na parede, o qual parecia outro cômodo; dois criados mudos; telefone sem fio; uma confortável poltrona; mais estantes vazias e uma cama enorme ao centro. Ali, havia uma porta que dava acesso a um imenso banheiro e outra para uma varanda, de onde se podia avistar a tranquilidade do mar, desprovido de banhista naquela época do ano. — Uau! Que lugar incrível! — exclamou Rosa, quando entramos no apartamento. — É, acho que treinar cavalos é realmente uma atividade lucrativa. — falei. — Que nada, é a Confederação que paga todas as despesas. —- Gustavo mostrou-se modesto, enquanto se dirigia ao telefone. — Vamos pedir a pizza? — Vamos, estou morrendo de fome! — Rosa não parava de ser exagerada. Após solicitar a pizza, pelo telefone, Gustavo me pediu que o acompanhasse até seu quarto, quando Rosa, é claro, nos seguiu. Chegando lá, ele dirigiu-se diretamente para o armário, de onde tirou uma caixa pequena, entregando-a a mim. — Não sei se vai servir, mas parece que é do seu tamanho. — disse ele. — O que é? — perguntei, curiosa. — Abra. — disse ele. Hesitantemente, sentei-me na beirada da cama, temendo amassar os lençóis, impecavelmente brancos e engomados. Abri o embrulho, onde havia uma calça de elastano, marrom escura, uma blusa de mangas compridas branca e um colete de linho da mesma cor da calça. Tratavase do meu uniforme de amazona, detalhe que eu havia esquecido completamente. — Que lindo! — falei, sentindo-me emocionada pelo fato de Gustavo ter pensado nesse detalhe. — Experimente. — disse ele. Fiquei em pé, pronta para me despir do conjunto do jeans e do blaser de linho lilás que usava, quando percebi que ele não fizera menção de deixar o quarto. — Você vai ficar aí me olhando? — perguntei, sem dar muita importância ao fato. Neste momento, Rosa soltou uma sonora gargalhada, enquanto o rosto de Gustavo assumia um tom ligeiramente avermelhado. — Que isso, Luana, eu já ia sair. — ele falou, mostrando-se desconcertado, como um garoto tímido que acabava de levar uma bronca. Em seguida, deixou o aposento, fechando a porta atrás de si.

Rapidamente tirei as minhas roupas e vesti o uniforme, o qual me serviu perfeitamente. Depois, coloquei-me diante do imenso espelho na porta do armário, constatando que o traje me emprestava uma boa aparência: a calça se colava ao meu corpo, ressaltando as curvas bem torneadas dos meus quadris e coxas; a blusa, com a parte inferior enfiada por sob o cós da calça, era um pouco mais folgada e muito confortável, o tecido macio deslizava sobre minha pele. Completei o visual com o colete marrom, confirmando que a roupa me deixava com um aspecto esportivo e ao mesmo tempo social. Era realmente uma roupa muito elegante. As luvas completavam sua perfeição. — O que você acha? — perguntei, virando-me para Rosa, que se encontrava deitada na cama, de lado, com a cabeça apoiada num cotovelo, bastante à vontade, observando-me. — Você está um arraso! — falou ela. Virei-me novamente para o espelho, procurando o que havia de arrasador na imagem à minha frente: eu tinha o rosto redondo, ligeiramente bochechudo; os olhos castanhos esverdeados, herdados não fazia idéia de quem, já que todos os integrantes da minha família tinham olhos negros; minha pele possuía um tom rosado, devido à frequente exposição ao sol e os meu cabelos, louro escuros, pareciam um ninho de ratos: longos, densos, ondulados e ligeiramente emaranhados. — Você acha que devo cortar os cabelos? — perguntei, desta vez sem desviar o olhar da minha imagem no espelho, reprovando minha aparência desmazelada. — Não. Você fica bem assim, com os cabelos naturais. Combina com o seu jeito de ser selvagem. Eu não sabia que tinha um jeito de ser selvagem. Me admirava muito que Rosa me aconselhasse a não mudar meus cabelos, se ela própria mudava constantemente os seus, agora, tingidos num tom castanho acobreado, crescidos até os ombros, repicado nas pontas e sob o efeito de relaxante e chapinha, como era a moda entre as meninas, afro descendentes, de sua idade. — Posso chamar o Gustavo? Ele deve estar louco para te ver assim. — Pode. Dali mesmo de onde estava, ela gritou por Gustavo, que logo abriu a porta e entrou. Aproximou-se de mim, lentamente, examinando-me dos pés à cabeça, com um brilho indefinível no olhar. — E então, o que achou? — perguntei, virando-me para ele, deixando meus braços caírem nas laterais do meu corpo. — Você está... linda. — ele falou, se engasgando com a última palavra, seu rosto novamente assumindo um tom avermelhado, sem que desta vez eu entendesse o por quê. Eu o fitei fixamente nos olhos por um longo momento, tentando desvendá-lo, como ele costumava fazer comigo, tentando descobrir os fundamentos do rubor em seu rosto, mas não consegui ver nada, a não ser sua face se tornando cada vez mais vermelha. Então, pensei em lhe perguntar o que se passava, mas antes que meus lábios se movessem o som da campainha tocando, atraiu a atenção de todos. — A pizza chegou! — Rosa anunciou, correndo em direção à sala. Gustavo a seguiu com a mesma pressa, mas a dele certamente não era motivada pela fome, estava fugindo de mim. Será que descobrira algo novo sobre o campeonato que não queria ou não podia me revelar? Será que o traje não ficara adequado para a competição? Me perguntava. Deixando tais pensamentos de lado, troquei de roupas novamente e os segui para a sala, deixando o uniforme impecavelmente dobrado sobre o colchão da cama. Após saborearmos a deliciosa pizza, Gustavo insistiu para que eu e Rosa descansássemos na confortável cama do quarto, enquanto ele próprio se esparramava sobre o sofá da sala. Embora

não me sentisse cansada, segui seu conselho e deitei-me na cama, ao lado da menina, que rapidamente adormeceu. Comecei a rolar de um lado para o outro do leito, como se este estivesse empestado de formigas, mas era apenas a ansiedade crescendo dentro de mim. Temia pelo momento da competição, não por medo de errar, mas por estar sendo observada, por pessoas completamente estranhas a mim e, pelo que pude perceber durante o pouco tempo em que estive ali, os espectadores eram integrantes da alta classe social carioca, financiando um evento restrito a convidados, do qual só consegui participar por causa da grande influência de Gustavo neste meio. Ele era uma espécie de sócio da Confederação Brasileira de Hipismo, muito influente na área, eu tinha muita sorte em tê-lo como padrinho. Quando finalmente me convenci de que não conseguiria adormecer, deixei a cama, dirigindo-me para a sala, a procura de Gustavo, mas não o vi em parte alguma do cômodo imenso. Percebi que a porta da varanda se encontrava aberta e me dirigi até lá. Gustavo se encontrava recostado na mureta da ampla varanda, completamente imóvel, como uma estátua, seus cotovelos apoiados na superfície da grade, seu rosto inclinado para a frente, na direção do mar. Ele tinha seus pés descalços e usava apenas uma bermuda e camiseta de algodão, como se seu corpo não sentisse os efeitos do vento gelado que soprava do oceano. Seus olhos estavam distantes e pensativos. Aproximei-me dele na ponta dos pés, tentando surpreendê-lo, mas antes mesmo de se virar ele falou: — Pensei que você estivesse dormindo. Como ele percebera minha presença, se não emitira ruído algum? — Bem que eu tentei, mas não consegui. — falei, admirada com seu poder de percepção. — Rosa foi quem mergulhou no sono. — Na idade dela é muito fácil adormecer, pois não se tem problemas para pensar. Me recostei na mureta também, próximo a ele, fitando seu rosto branco, de perto, tentando decifrá-lo, tentando adivinhar o que tanto lhe roubava os pensamentos. — E você, também não conseguiu dormir? — perguntei. — Não consigo dormir durante o dia. Relembrei a reação dele no quarto, quando entrara para me ver experimentando o uniforme de amazona. Hesitantemente, perguntei: — Aconteceu alguma coisa que você não quer me contar, Gustavo? — Não. — ele respondeu, virando-se para mim. — Por que está me perguntando isso? — Não sei, mas parece que tem algo te incomodando. Ele abriu um suave sorriso, embora a expressão dos seus olhos não acompanhasse o gesto. — Não tem nada, Luana, relaxe. — Você acha que o uniforme não ficou bom em mim? — insisti — A calça está muito colada, você acha que ficou vulgar? Desta vez, ele sorriu de verdade, seu rosto inocente se iluminando com uma sonora gargalhada. — É claro que não. A roupa ficou perfeita em você. — ele falou, ainda sorrindo. Eu retribuí ao seu sorriso, meu coração se acalmando com a certeza de que estava tudo bem. Gustavo seria incapaz de mentir para mim, ou de me esconder algo importante. Talvez o meu nervosismo, pela proximidade do momento da competição, estivesse me fazendo ver coisas que não existiam. Ou talvez ele estivesse absorvido por seus próprios problemas, afinal tinha uma vida à

parte, eu não era tudo para ele, como ele se tornara tudo para mim, era o centro do meu universo, embora, certamente, eu não fosse o seu. Quem sabe ele brigara com sua namorada, por dar mais atenção a mim do que a ela. Apesar de não gostar de falar a respeito de sua vida pessoal, certamente Gustavo tinha alguém, seria impossível uma pessoa tão afetuosa quanto ele viver sozinha. Sem pensar, segurei sua mão e falei. — Muito obrigada, Gustavo. — Pelo que? — Por tudo o que faz por mim, por proporcionar-me este momento. Seu rosto ficou sério novamente, enquanto ele desvencilhava sua mão da minha, estendendo-a até o meu rosto, acariciando-o, suavemente, dizendo: — Não precisa me agradecer, Luana. Você merece tudo o que está te acontecendo. Eu apenas lhe mostrei o caminho. — Se não fosse por você, eu não estaria aqui. — falei, imaginando, com amargura, onde estaria agora se Gustavo não existisse em minha vida. — Pára com isso, se não você vai acabar me fazendo chorar. — ele falou, com seu jeito bem humorado de sempre. — E então, vamos tomar um café? O que você acha da idéia? — Ótima! — exclamei, tentando acompanhar o seu jeito bem humorado, embora meu estômago se revirasse de pura ansiedade. Após pedir o café, ele sentou-se no sofá ao meu lado. Eu olhava seu rosto e não conseguia me esquecer de sua expressão pensativa na varanda, há pouco. Parecia tão distante, reflexivo. Gostaria de ter o poder de ler mentes, apenas para saber o que estava pensando. Provavelmente era em uma mulher, aquele jeito de olhar era típico de uma pessoa apaixonada. Mas ele não me falaria nada a respeito de sua vida afetiva, eu morreria sem saber. — Quando você viaja... — comecei, hesitante. — sua namorada não te acompanha? — Eu não tenho namorada. — ele respondeu, secamente. — E por que não? — eu fui longe demais, estava sendo indiscreta. — Sou um solteiro convicto. — Você... não é gay? É? — perguntei, num impulso. Ele soltou uma sonora gargalhada e disse: — Com certeza não. Não tenho dúvidas de que gosto muito de mulheres. — E por que nunca vi você com uma? Me avise se eu estiver sendo indiscreta. — Você está sendo indiscreta. — Ah, Gustavo, qual é, nós somos amigos. Eu vi o jeito que você estava pensativo agora há pouco, se abre comigo, vai. — Você sabia que a curiosidade matou o gato? — Por favor. — eu não desistiria. — OK... — ele falou, soltando um longo suspiro, seu rosto se enrubescendo novamente. — Na verdade... eu tenho um amor, mas é um amor não correspondido. — Como assim? — Eu gosto de uma mulher que não gosta de mim, vive pensando em outro cara. Pronto, falei, ta satisfeita agora? — Não. Quero saber quem é essa louca pra mandar ela pro hospício. Pra trocar você por outro homem, ela só pode estar desvairada. Você é a melhor pessoa que eu já conheci, Gustavo.

— Pois é, mas no coração ninguém manda, não é? Neste momento, seus olhos refletiram uma tristeza tão profunda que me fez desejar afagálo. Me arrependi, amargamente, por ter tocado no assunto, por ter magoado suas feridas. Agora eu podia entender porque ele não falava sobre sua vida afetiva: sofria por amor. Apesar de toda a sua alegria de viver, no fundo também carregava suas amarguras, como a maioria dos seres humanos. Eu cobri sua mão com a minha, tentando consolá-lo. — Mas um dia essa idiota vai olhar para trás e perceber o homem maravilhoso que ela está perdendo. — Na verdade, eu ainda não perdi a esperança de que um dia ela olhe para mim. — Então quer dizer que ela não sabe que você a ama? — Não. — E por que você não contou? — É complicado, Luana, ela ama outra pessoa. — Mas você pode tentar, pode lutar por ela. — Não, eu não posso. — E por que não? — Porque eu não suportaria ser rejeitado. — Mas você nunca vai saber se não tentar. Neste momento, o som da campainha tocando atraiu nossa atenção. Gustavo afastou-se para receber o café, servido em uma bandeja de prata. Enquanto solvia o primeiro gole do líquido fumegante, eu pensava nas palavras dele, no quanto, nós, seres humanos, complicávamos a vida, com nossos anseios e inseguranças, dificultando tudo, para nós mesmos. — Ah, eu já ia me esquecendo. — ele falou, após tomar o café, levantando-se do sofá, seguindo na direção do quarto. Deteve-se na metade do trajeto, dizendo: — Será que Rosa está vestida? Eu não pude deixar de sorrir, relembrando o momento em que me preparava para trocar de roupas, quando ele teve que ser convidado a deixar o quarto. — Pode entrar. Ela dorme vestida. — falei. Minutos depois, ele retornou à sala, com duas caixas nas mãos, uma maior que a outra, entregando-as a mim. — Mais presentes? — perguntei, curiosa. — É o que faltava do traje. Na caixa maior, encontrei um par de botas de montaria, de couro, cano até os joelhos, de duas cores: preta e marrom. Calcei-as, constatando que se encaixavam perfeitamente em meus pés. — Como você soube o meu número? — Olhei no seu tênis velho, quando estava em seu quarto. Desta vez fui eu quem corei, imaginando como ele, certamente, se sentira pouco à vontade na simplicidade do meu quarto, quando estava acostumado a suítes luxuosas como aquela. Na caixa menor, havia um capacete troxel, modelo legancy, na cor bege, com a gravura de um cavalo na cor burgundy. Era típico para montaria, porém mais elegante que os que eu estava acostumada a ver, nas dezenas de vídeos de competições que ele me mostrara durante os treinos. — Nossa! Isso deve ter custado caro! — exclamei, observando a peça em minhas mãos.

— Experimente. Pousei o capacete sobre minha cabeça, encaixando-o com perfeição. — Você mediu minha cabeça enquanto eu estava dormindo? — perguntei, vendo-o abrir um largo sorriso. Faltavam quinze minutos para as três horas da tarde, quando chegamos à sede do hipódromo de Niterói. Chegara o momento da competição e o meu coração dava saltos dentro do peito. Após instalar Rosa em uma das mesas, do outro lado da cerca, próximo aos demais espectadores, — uma pequena multidão de pessoas elegantemente vestidas — Gustavo me acompanhou até o local de largada, onde meu cavalo já se encontrava, devidamente equipado e inspecionado pelo veterinário. Outro jóquei também encontravam-se ali, preparando-se para se apresentar. O competidor número nove, segundo a se apresentar naquele dia, realizava sua performance na pista, com magnífica perfeição, sob o olhar atento dos juízes e dos espectadores. Quando ele terminasse, seria a minha vez. Seguindo a orientação de Gustavo, inspecionei os acessórios do cavalo, constatando que tudo estava perfeito, coloquei meu capacete sobre meus cabelos presos num coque na nuca e o montei, sentindo que todo o meu corpo tremia descontroladamente, do mais puro nervosismo. Gustavo me observou por um momento e disse: — Desce aqui, Luana, quero falar com você. Prontamente, o obedeci, descendo do cavalo com desequilíbrio, por causa do meu corpo trêmulo. — O que foi? — perguntei. Ele segurou meus dois ombros com suas mãos, fitando-me profundamente nos olhos e falou: — Preste bastante atenção no que vou lhe dizer, Luana, e não esqueça as minhas palavras. — ele falava vagarosa e alteradamente — Quando o narrador anunciar o seu nome e você entrar na pista de provas, você não estará mais aqui, OK? — afirmei com um meneio de cabeça. — Você estará em Boa Esperança, treinando, somente comigo e o cavalo. Não haverá mais ninguém observando você, a não ser eu. Você não ouvirá mais nada a não ser o som dos cascos do cavalo pisando sobre a relva. Você não sentirá outro cheiro que não o das campinas e você não enxergará mais nada que não os obstáculos da pista de provas, não esta pista, mas aquela que construí para você no sítio. Você entendeu, Luana? — Entendi. — respondi, sentindo-me mais calma com suas palavras. — Que tipo de psicologia é essa? — Do tipo que funciona. — ele me abraçou, ternamente, afastando-se em seguida. Sentindo-me mais calma e confiante, montei novamente meu cavalo, segurando suas rédeas com segurança, relembrando as palavras de Gustavo. Percebi que meu corpo já não mais tremia e que meu coração voltara a bater em seu ritmo normal. De um local desconhecido aos meus olhos, partiu a voz do narrador do evento, anunciando o encerramento da apresentação do cavaleiro número nove, assim como sua nota. Ele conquistara seis pontos negativos, ou seja, havia cometido seis erros durante a execução das três provas, o que era considerado uma ótima nota. Por fim, o jóquei deixou a pista, indicando que chegara a minha vez. Enquanto o narrador, pronunciava meu nome, através do microfone, fechei os meus olhos e repassei, mentalmente, pela vigésima vez, as palavras de Gustavo. Quando os abri novamente, não me encontrava mais no Hipódromo de Niterói, em meio a uma multidão de pessoas, mas sim em Boa Esperança, onde o

silêncio profundo me acalmava. Assim, entrei na pista, pronta para realizar a prova de adestramento, não na arena do hipódromo, mas na que Gustavo construíra no sítio, somente para mim. Sentindo-me profundamente calma, concentrei-me na arena diante de mim, onde o cavalo realizava, com perfeição, os movimentos obrigatórios, pré-estabelecidos e treinados, nossas mentes em perfeita harmonia, como se estivessem conectadas por uma força maior. Ao final daquela prova, houve uma explosão de aplausos da multidão que se colocava de pé, enquanto meus olhos a percorriam, à procura de Gustavo. Logo o avistei, sentado em uma das mesas, ao lado de meia dúzia de pessoas, aplaudindo-me, enquanto seus olhos brilhavam de orgulho. Algum tempo depois, chegou o momento de executar o cross-country, a prova mais difícil da competição. Antes de entrar na pista, mentalizei novamente as palavras de Gustavo, transportando-me para o sossego das terras de Boa Esperança. Com perfeita harmonia, velocidade, resistência e habilidade, eu e o cavalo atravessamos cada um dos obstáculos, naturais e artificiais da prova, nossos movimentos em perfeito entendimento. Ao final encontrávamos-nos exaustos, apesar da baixa temperatura meu corpo estava banhado se suor, enquanto éramos novamente aplaudidos pela multidão. Como na prova anterior, recusei-me a conhecer minhas notas, preferindo deixar para o final. Desta vez, teríamos um intervalo maior antes de partirmos para a prova de salto, a última da competição. Enquanto isso o cavalo receberia nova inspeção veterinária, devido ao seu desgaste físico adquirido durante o cross-country. À ordem do narrador, sobre o encerramento da prova, Gustavo invadiu a pista gramada, correndo em minha direção. Me encontrava tão exausta que não consegui apear do cavalo sozinha, deixando que ele me puxasse para baixo, estreitando-me em seus braços amigos, aconchegantes. — Parabéns, Luana, você estava perfeita! — disse ele, desvencilhando-se do abraço. — Eu não teria conseguido se não fosse por você. — falei. — Sua psicologia funcional é mesmo muito eficiente. — vi o rosto dele se iluminar com um sorriso. — Onde está Rosa? — perguntei, percorrendo meu olhar ao redor, quando logo a avistei, conversando com um belo rapaz, muito mais velho que ela. — Quem é aquele que está com ela? — Eu não sei, não o conheço. — Gustavo respondeu. Em questão de minutos, eu me encontrava rodeada de pessoas estranhas, que me parabenizavam e elogiavam minha performance. Mas eu não queria a presença deles perto de mim, desejava estar apenas com Gustavo. Como se lesse meus pensamentos, ele me afastou, discretamente, dos meus novos admiradores, conduzindo-me até uma tenda de lona para descanso, localizada atrás dos estábulos, sob a sombra de uma árvore. Sentindo-me fisicamente esgotada, sentei-me numa cadeira de madeira regulável, recebendo das mãos dele uma pequena garrafa de água mineral. — Quanto tempo eu tenho antes da prova de salto? — perguntei. — Cerca de meia hora. — ele me fitou com um brilho indefinível no olhar, quando disse: — Você viu sua nota? — Não e nem quero saber por enquanto. — Acredite: você dará novos rumos à história do hipismo. Você será a amazona mais famosa de todo o planeta! — Você acha que fui tão bem assim? — Bem?! Você foi incrível, Luana e não sou só eu quem acha isso. Eu não estava interessada em mudar a história do hipismo, tampouco queria ficar famosa, meu único interesse estava no cheque de cinquenta mil reais que acompanhava a medalha de

campeão, dinheiro suficiente para que eu comprasse meu apartamento e minha tão sonhada independência. Esse era meu único objetivo, por isso estava ali. Se realmente fosse bem sucedida, como previa Gustavo, tiraria proveito de outras competições para construir minha segurança financeira. Seria interessante poder ganhar a vida fazendo algo que eu gostava. Meia hora depois, meu nome foi pronunciado através do microfone, chegara a hora de realizar a última prova do concurso, a prova de salto. Quando cheguei ao local de largada, meu cavalo já me aguardava, devidamente inspecionado e equipado. Como antes, fiz minha própria inspeção antes de montá-lo, checando a cela, as rédeas e os arreios. Gustavo, que me acompanhava, segurou minha mão encharcada de suor, causado pelo nervosismo que tomava conta de mim e falou: — Não se esqueça, nada de acreditar que você está no hipódromo de Niterói, cercada de pessoas, quando iniciar a prova, você estará em Boa Esperança, OK? — OK. — respondi, sentindo-me mais confiante. Ao ver Gustavo afastando-se, indo juntar-se ao pequeno grupo de pessoas que se encontravam em sua mesa, sob as sombras das mangueiras, do lado de fora da pista, percebi que, ali próximo, em uma outra mesa, Rosa ainda conversava com o mesmo jovem rapaz de antes, atribuindolhe toda a sua atenção, falando com aparente empolgação. Ele, por sua vez, não parecia tão entusiasmado com a companhia dela, a todo momento desviava seu olhar para a minha direção, como se me sondasse discretamente. Não gostei da forma como ele me observava, era como se seu olhar me anunciasse um mau presságio. No momento em que o narrador declarou o início da prova, deixei todos os pensamentos de lado. Fechei os meus olhos e visualizei, mentalmente, a pista de provas construída para mim em Boa Esperança. De súbito, todos os burburinhos das vozes dos espectadores se cessaram e um profundo silêncio alcançou os meus ouvidos, enquanto o cheiro do ar puro invadia minhas narinas. Sentindome calma e segura, coloquei-me em posição sobre o cavalo, inclinando meu corpo para a frente e abri os meus olhos, concentrando toda a minha atenção nos obstáculos à minha frente, mas não via os obstáculos coloridos e enfeitados com flores e sim as varas toscas improvisadas em Boa Esperança. Então, iniciei a prova, conduzindo a cavalo com equilíbrio, habilidade e perfeição, nossas mentes em perfeita harmonia. No sítio eu treinara com quinze obstáculos e ali haviam apenas doze, o que era um aspecto positivo, já que pouparia meu Puro Sangue do desgaste físico, dando-lhe a chance de chegar ao final da prova com o fôlego e a velocidade necessários. Saltamos o primeiro obstáculo com perfeição, partindo para o segundo, repetindo a proeza, até que atravessamos todos eles, sem cometer o mínimo dos erros. Ao final da prova, transportei minha mente de volta para o hipódromo, observando a pequena multidão de espectadores aplaudindo-me de pé, com euforia. Em meio a tantos rostos desconhecidos, meus olhos encontraram o de Gustavo, o mais eufórico de todos. Permaneci imóvel, montada em meu cavalo, ao centro da pista, enquanto os juízes se preparavam para expor minha nota, provavelmente já estipulada. Desta vez eu aguardaria, pois queria conhecê-la. Seria a soma de todas as provas executadas, a avaliação final do meu desempenho. Nos minutos que se seguiram, meu coração dava saltos no peito, a expectativa da vitória ou da derrota muito próxima. Por fim, a nota foi apresentada pelos juízes, em uma ficha branca. Eu havia conquistado 0,5 pontos, ou seja, havia cometido meio erro. Seria possível alguém cometer um erro pela metade? Com euforia, o narrador anunciou a nota em voz alta, afirmando que eu quebrara o recorde brasileiro; que conquistara a melhor nota dos últimos tempos, em competições de hipismo, certamente seria a nova campeã. Apesar dos elogios do narrador, eu ainda não estava

convencida, pois um cavaleiro ainda se apresentaria, seria o atual campeão brasileiro naquela modalidade de esporte, deixaria para comemorar quando tivesse a certeza. Mas o narrador duvidava de que alguém conseguisse tirar uma nota melhor, pois eu havia superado inclusive o desempenho do atual campeão mundial, não tinha dúvidas de que eu seria vencedora daquela competição. À ordem dos juízes, o narrador anunciou o encerramento da prova, quando uma pequena multidão de pessoas, entre repórteres e espectadores, invadiu a pista, correndo em minha direção. Gustavo foi o primeiro a me alcançar. Me puxou de sobre o cavalo, abraçando-me e disse: — Parabéns Luana, você foi... perfeita! — Como eu já disse, não teria conseguido sem você. Enquanto inúmeras pessoas desconhecidas vinham me abraçar, como se fôssemos velhos amigos, parabenizando-me pelo meu desempenho, meus olhos eram ofuscados pelos flashes das câmeras fotográficas dos repórteres, fazendo-me sentir cada vez mais atordoada, nervosa. Percebendo o que se passava, Gustavo segurou minha mão e, pedindo desculpas a todos, afastou-me de entre a multidão, conduzindo-me para a tenda de descanso. Chegando lá, sentei-me, aliviada, na cadeira regulável, pensando nos repórteres, nas notícias dos jornais do dia seguinte. Provavelmente, eles me reconheceriam e relembrariam meu sequestro por Daniel, retratando-o, mais uma vez, como um assassino frio e cruel e nada mais. Novamente, exporiam, para todo o país, sua trajetória de crimes, julgando-o e condenando-o, sem sequer se perguntarem o que o motivara a assassinar aquelas pessoas. Mas eles tinham razão, o autor de tantas mortes não era merecedor de um julgamento justo, apenas meu coração se recusava a acreditar nisso. Eu não havia pensado nessa possibilidade, não cogitara a presença da imprensa durante o campeonato. Mas aquela era minha vida, seria ingenuidade da minha parte acreditar que algo verdadeiramente bom me aconteceria, pelo menos não sem um preço a pagar e aquele, seria um preço justo, mais alto do que eu poderia suportar. — As pessoas que estavam comigo, são membros da Confederação Brasileira de e Hipismo. — Gustavo falava, enquanto eu mantinha meus olhos fechados, visualizando, mentalmente as notícias nos jornais, prevendo o escândalo que seria promovido pela imprensa. — Eles ficaram muito impressionados com sua performance, certamente me apoiarão na decisão de aderir você ao grupo. — Não. — falei, firmemente, abrindo os meus olhos, fitando diretamente seu rosto. — Depois do escândalo nos jornais, eles não vão querer mais papo comigo. — O que? Do que você está falando? Eu o fitei mais intensamente, para que me compreendesse, como sempre fazia. — Você viu a quantidade de repórteres lá fora? Amanhã eu não serei mais a amazona que quebrou o recorde, serei apenas a prostituta vítima de sequestro que tenta dar a vota por cima. — Não, Luana, você está enganada. O seu passado não será mencionado, diante da proeza que você acabou de realizar. — Isso é o que eu sinceramente espero. Neste momento, a entrada da tenda se abriu e Rosa entrou, acompanhada do rapaz com quem estivera conversando. Depois de me abraçar e me parabenizar, ela falou: — Eu quero te apresentar o Nelson Pinheiro. Ele é repórter do jornal “O momento” e quer fazer uma entrevista com você. Subitamente, senti o sangue fugir da minha face, enquanto meus olhos encontravam os de Gustavo, num gesto de cumplicidade. O que Rosa revelara àquele repórter enquanto conversavam? Teria lhe falado sobre meu relacionamento com Douglas, um homem rico e casado? Se dera com a

língua nos dentes, a esse respeito, o escândalo seria ainda maior do que eu esperava. — Desculpe, mas eu não dou entrevista. — falei, fitando o rosto perspicaz do jornalista. — Serão apenas algumas perguntas. Prometo que não tomarei muito o seu tempo. — ele falou, enquanto em encarava com olhos brilhantes, como um pirata que acabara de descobrir uma mina de ouro perdida. — Desculpe, mas eu realmente não falo com jornalistas. — eu tentava manter a calma. — Não vai te custar nada responder... — Ela já disse que não quer ser entrevistada. — Gustavo o interrompeu, firmemente. — Agora se você puder nos dar licença, agradecemos. O rapaz olhou de mim para Gustavo, de Gustavo para mim, visivelmente desapontado, então, sem mais uma palavra, deixou a tenda. Virei-me para Rosa e, firmemente, perguntei: — O que você disse a ele, Rosa? — Nada de mais... por que? — o rosto dela, subitamente ficou pálido, denunciando-lhe que falara mais do que poderia. — Você contou a ele sobre Douglas? — insisti. Mas desta vez ela não respondeu, apenas desviou seu olhar para o chão, como se acabasse de constatar que cometera um erro. Não foi necessário que ela abrisse a boca para que eu soubesse a resposta para a minha pergunta. — Por Deus, Rosa! Será que você não pensa? — Desculpe, Luana. Ele começou a me perguntar de você e eu achei ele tão legal... — ela se interrompeu, mostrando-se abalada, como se fosse chorar. — Agora não adianta mais chorar sobre o leite derramado, o estrago já foi feito. — falei. — Fique calma, Luana. Talvez ele não publique nada sobre isso. — Gustavo interveio. — Ah, é claro! E duendes existem. — E mesmo que publicar, ninguém tem nada com isso. Sua vida pessoal só diz respeito a você. — Gustavo era muito otimista, acreditando que minha carreira de amazona teria futuro estando eu envolvida em tantos escândalos. Enquanto o último cavaleiro se apresentava, permaneci no interior da tenda, esperando pelo resultado final da competição, ao lado de Rosa e de Gustavo, o qual, insistia em permanecer ao meu lado, embora eu o aconselhasse a voltar para a companhia de seus amigos, certamente muito mais interessantes que eu. Com o encerramento da última apresentação, o narrador anunciou a chegada do momento das premiações. A noite começava a cair, quando todos os dez competidores, inclusive eu, nos reunimos ao centro da pista de provas, esperando que nossos nomes fossem anunciados. O narrador, começou anunciando o nome do décimo colocado, o qual se retirou da pista, visivelmente desapontado. Continuou revelando os nomes dos jóqueis, de acordo com sua colocação, em ordem decrescente, os quais iam se retirando, até que restaram apenas três competidores na pista, eu e dois jóqueis experientes, a serem premiados com as três primeiras colocações. Depois de alguns minutos de suspense, o narrador, finalmente, anunciou o nome do terceiro colocado, um jovem com cerca de dezoito anos de idade, vencedor de várias competições naquela modalidade, o qual foi conduzido até o pódio, colocando-se no local mais baixo. Restavam apenas eu e outro jovem competidor, o atual campeão brasileiro, os primeiro e segundo colocados. Enquanto o narrador fazia outro momento de suspense, antes de anunciar o nome do vencedor, eu não tinha certeza se meu coração ainda não havia

saltado para fora do peito, tão intensa era minha ansiedade. A expectativa de vencer, agora estava mais próxima que nunca. Por fim, o narrador revelou o nome do grande campeão, aquele que receberia o troféu de ouro, acompanhado do cheque de cinquenta mim reais. Mal pude acreditar nos meus ouvidos, pois fora meu nome o pronunciado, a primeira colocada, a grande vencedora da competição. Como se vivenciasse um sonho irreal, deixei que alguém me puxasse de sobre o cavalo, conduzindo-me em direção ao pódio, colocando-me na sua parte mais alta, entre os terceiro e segundo colocados. Enquanto recebia o troféu — uma escultura dourada, na forma de um cavalo — e o cheque, das mãos do diretor da CBH, eu não sabia se sorria ou se chorava, tão intensa era a minha emoção. Era realmente um dos momentos mais importantes da minha vida, gostaria que Gustavo estivesse ali, ao meu lado, no lugar de um dos dois outros competidores, bem próximo, para que eu pudesse dividir consigo toda a minha felicidade. No entanto, apesar de meus olhos o procurarem, insistentemente, em meio à multidão à minha frente, não conseguia avistá-lo, minha visão ofuscada pelos flashes das câmeras dos repórteres, agora em maior número que antes. No entanto, acima de tudo, eu gostaria que Daniel estivesse ao meu lado, que me visse e se orgulhasse de mim. Mas era um desejo irrealizável, apenas um sonho que jamais se concretizaria. Com este pensamento, observei os promotores do evento, fazerem seus discursos, embora não concentrasse minha atenção no que diziam. O último a discursar foi o diretor da CBH, o qual ao encerrar sua fala, entregou-me uma garrafa de champanhe, para que eu abrisse em comemoração. Olhei a garrafa em minha mão e, embora não soubesse muito bem como fazer aquilo, arrisquei, abrindo-a, lançando na direção da platéia, a espuma branca da bebida, que jorrava abundantemente. Logo que todos se retiraram do pódio, avistei Gustavo aproximando-se e desci, atirando-me em seus braços. Rosa o seguia e me abraçou também, os dois ao mesmo tempo, enquanto a multidão de repórteres nos cercava, insistentemente, desferindo-me as mais diferentes perguntas. Felizmente ainda não perguntavam sobre Daniel, talvez ainda não tivessem me reconhecido ou descoberto minha identidade, o que me trazia um alívio inenarrável, porém temporário. — Por favor, Gustavo, me tira daqui. — pedi, desvencilhando-me dos seus braços. Prontamente, ele me atendeu, conduzindo-me para fora do hipódromo, driblando os repórteres que insistiam em nos seguir, fotografando-me, indagando-me. Rosa, que nos acompanhava, parecia gostar do assédio da imprensa. Em poucos minutos entramos no carro de Gustavo, afastandonos, rapidamente da sede do hipódromo, seguindo rumo ao hotel. — Ufa! Finalmente! — falei, aliviada por nos afastarmos dos repórteres. — Nós vamos voltar para o show, não vamos? — Rosa perguntou, referindo-se ao show, com apresentações de artistas locais, a ser realizado, no hipódromo, ainda aquela noite. — É claro que vamos. — Gustavo respondeu, com a mesma empolgação da menina. — Vamos no hotel trocar de roupas e mais tarde voltaremos. O que você acha, Luana? — Acho que vocês dois enlouqueceram de vez. — respondi, amargurada por estragar a animação de ambos. —- Se esqueceram que eu preciso tentar chegar ao sítio antes de Douglas? E não foi necessário dizer mais nada. No silêncio que se seguiu, tanto Rosa quanto Gustavo compreenderam a urgência das minhas palavras, pois ambos sabiam o que aconteceria se Douglas chegasse em Boa Esperança e não me encontrasse lá. Rapidamente, Gustavo fez meia volta com o carro, seguindo na direção oposta, rumo ao Rio de Janeiro, sua fisionomia, subitamente, carregada de tensão.

— Que foi, pra onde vamos? — perguntei. — Vamos direto para o sítio. — ele falou. — E nossas coisas? E o cavalo? — Amanhã eu levo tudo. Precisamos chegar a Boa Esperança antes que Douglas pareça por lá. E ele tinha razão, minha única esperança de salvação seria chegar antes de Douglas. Durante o longo trajeto, um silêncio tenso pairava no interior do veículo, nossas mentes absortas pelo mesmo pensamento, pelo risco que eu corria se Douglas resolvera aparecer no sítio aquela noite. Havia uma pequena possibilidade de ele não estar lá, pois eu nunca podia prever quando apareceria ou não, era quase certo que iria hoje. Já passavam das dez horas da noite quando atravessamos os portões da propriedade. Ao longe, avistei o carro de Douglas, estacionado diante da mansão e todo o meu corpo se estremeceu de pavor. Não temia apenas por mim, mas também e, principalmente, por Gustavo. Se nos visse juntos, Douglas o mataria, antes mesmo que pudesse explicar-lhe que éramos apenas amigos. — Pare aqui mesmo, Gustavo. — falei, há alguns metros de distância da casa. Porém, Gustavo não me obedeceu, continuou seguindo na direção da mansão, nos aproximando cada vez mais de nosso perigoso inimigo. — Pára o carro! — dessa vez eu gritei. Ele parou o carro, dizendo: — Não vou deixar você entrar lá sozinha. — seu olhar expressava a mais nítida aflição. — Eu também não. Vou entrar com você. Direi a ele que você saiu para me levar ao médico. — Rosa falou. — Não! — retruquei, meu coração acelerado de medo. — Vocês não podem entrar lá. Sua mãe não ia gostar se você mentisse Rosa. Deixem que eu vou sozinha, já estou acostumada com Douglas. Então, entreguei o cheque e o troféu à Rosa, pedindo-lhe que guardasse em meu quarto. Em seguida, abri a porta do carro, pronta para sair, quando Gustavo segurou-me o braço, detendo-me. — Não! Volte comigo agora, Luana. — disse ele. — Fique tranquilo, Gustavo, eu sei me virar com Douglas. — falei. — Como?! Servindo de saco de pancadas pra ele?! — Por favor, me deixe ir. Assim será melhor, pelo menos só eu serei machucada. — falei, esforçando-me para manter a voz calma, enquanto que, lentamente, desvencilhava meu braço de sua mão, até que consegui sair do carro, fechando a porta atrás de mim. Antes de me afastar, virei-me mais uma vez para Gustavo e disse: — Pode voltar tranquilo, nada de mal vai acontecer comigo. — mas nem eu mesma acreditava em minhas palavras. Sabia que Douglas me agrediria aquela noite. Mais uma vez, seria vítima de sua fúria indomável. Então, sem olhar para trás, dirigi-me para a mansão e entrei, encontrando Douglas logo na sala. Ele estava sentado no sofá, cabisbaixo, o copo de uísque, vazio, na mão. Usava calça social e camisa de manga comprida amarrotada, com os primeiros botões abertos e sem a gravata. Ao ouvir os meus passos, ele ficou de pé, num gesto brusco e rápido, fitando-me direto nos olhos, ameaçadoramente. — Onde você estava, Luana? — ele perguntou, aproximando-se perigosamente. Eu recuei alguns passos, tentando manter o máximo de distância dele, não para tentar impedir sua violência, já que esta era inevitável, mas apenas para adiá-la o máximo possível. Com exceção do capacete, eu ainda usava o uniforme com o qual competira, seria inútil mentir, pois minhas fotos estariam estampadas nos jornais na manhã seguinte.

— Eu estava participando de uma competição de hipismo. — falei, sem conseguir evitar o tremor em minha voz. A expressão dos seus olhos, lentamente, passou de fúria à confusão. — Do que? — De equitação, sabe, eu tenho um talento... — Quem levou você?! — ele me interrompeu, abruptamente. Mas desta vez eu não respondi, jamais envolveria Gustavo nos meus problemas. Douglas me fitou em silêncio por um longo momento, seus olhos assumindo um brilho diferente, o qual me parecia de astúcia. Então, vagarosamente, abandonou o copo vazio sobre a mesinha de centro e aproximou-se de mim. Instintivamente, encolhi-me, fechando os meus olhos, a espera do golpe que me jogaria ao chão. Porém, surpreendentemente, ele não me tocou, pelo menos não com a violência esperada, pelo contrário, em vez disso, estreitou-me em seus braços, afundando seu rosto nos meus cabelos emaranhados. — Ah, Luana... tive tanto medo que você não voltasse mais... achei que enlouqueceria aqui sem você... — ele falou, sua voz chorosa, sussurrada. Sem compreender a sua inesperada atitude, eu o abracei em resposta, comprimindo meu corpo contra o seu, apenas para não contrariá-lo e, assim, evitar o emergir de sua fúria. Me perguntava o que havia de errado com ele, para que agisse daquela forma, sem sua costumeira violência, quando, se súbito, tudo ficou claro para mim: Douglas era um doente mental, mas como todo psicopata, também era inteligente e diante da possibilidade real de me perder, ou seja, de perder uma aquisição na qual investira seu capital, resolvera mudar sua tática de persuasão. Não havia sentimentos de sua parte, em relação a mim, que não a possessão, me considerava um objeto pelo qual pagara, para que estivesse sempre à sua disposição e, como todo bom capitalista, não abriria mão de algo que lhe pertencia, pelo menos não facilmente. Ele ergueu sua cabeça pra me encarar, fitou-me em silêncio por um longo momento, então, tomou os meus lábios, num beijo ávido, seus lábios ainda úmidos de uísque, comprimindo-se contra os meus. Apenas para não contrariá-lo, correspondi ao beijo, entreabrindo os meus lábios em contato com os seus, enquanto esforçava-me para reprimir a familiar repulsa que seu toque me despertava. Neste momento a porta da sala se abriu e Gustavo entrou, seus olhos arregalados, alarmados, observando a cena. Chegara o momento que eu há muito temia, o instante em que os dois se confrontariam. Muito rapidamente, Douglas desvencilhou-se de mim, dando um passo na direção de Gustavo, ameaçadoramente. A fúria expressada em seus olhos lembrava a de um animal selvagem prestes a atacar um inimigo perigoso. — E quem é este? — ele perguntou, bruscamente, sem desviar seu olhar de Gustavo. — É o meu treinador. — respondi, com meu coração acelerado no peito, colocando-me em sua frente, pronta para tentar impedir seu ataque, caso sua violência se exteriorizasse. Não permitiria que Gustavo fosse machucado por minha causa. — Só queria ver se você estava bem, Luana. — Gustavo falou, imóvel, diante da porta aberta atrás de si, seu olhar confuso, se deslocando meu rosto para o de Douglas, do de Douglas para o meu, buscando algum sinal de violência. — Ela está muito bem, não está meu amor? — Douglas respondeu no meu lugar, passando o seu braço em torno dos meus ombros, quando percebi que sua mão estava trêmula, talvez pelo esforço em

reprimir sua fúria dentro de si, em conter o desejo de espancar a mim e a Gustavo. — Diga a ele se você está bem ou não, Luana. — ele ordenou. — Estou bem... — murmurei, enquanto esforçava-me para conter o tremor que tomara conta de todo o meu corpo. — Então agora que você já viu o que queria, pode ir embora da minha casa. — Douglas falou, com um misto de arrogância e desprezo no tom de sua voz. — É, acho que vi mesmo. — Gustavo respondeu, sua fisionomia carregada de tensão. — Te vejo depois, Luana. — e ele nos deu as costas e partiu, fechando a porta atrás de si. Pouco a pouco, meu coração voltou a bater em seu ritmo normal, pois Gustavo estava em segurança, a caminho do Rio de Janeiro e isso era tudo o que me importava. — Então quer dizer que durante todo esse tempo, você esteve treinado pelas minhas costas. — Douglas falou, afastando seu braço dos meus ombros, lentamente. Em seguida, foi até o bar e serviuse de outra dose de uísque, enquanto eu me perguntava a que momento ele teria a sua explosão de fúria e começaria a me agredir. — Bem... eu não queria... me desculpe.... — eu não sabia exatamente o que dizer, engasgava-me com as palavras. — Me diga apenas a verdade, Luana. — ele falou, sentando-se calmamente sobre o sofá. — Na verdade, já tem três meses que venho trinando. — consegui falar. — E tem um caso com aquele sujeito? — Não. Somos apenas amigos. — E você espera que eu acredite nisso? Sua estranha calma me era ainda mais assustadora, pois não podia prever o que ele faria. — Acredite em mim, Douglas, nós somos apenas amigos. — falei firmemente. Ele fitou-me em silêncio por um longo momento, com uma expressão indefinível no olhar. Em seguida, gesticulou para que eu me aproximasse. Com o corpo ainda trêmulo de medo me pus diante de si, quando, de repente, ele agarrou-me pelo braço, bruscamente, fazendo-me cair sobre o sofá, estendendo seu corpo sobre o meu, imobilizando-me por completo. Chegara o momento da sua agressão? Perguntei-me. Seu rosto estava a poucos centímetros de distância do meu, suas mãos acariciando meus cabelos, quando ele falou: — Prometa que nunca vai me deixar, Luana. — Eu prometo. — falei, mecanicamente. — Eu sei que você não acredita em meus sentimentos, mas eu te amo, muito mais do que você pode imaginar, por isso jamais permitirei que vá embora daqui. E, sem mais uma palavra, ele tomou os meus lábios, num beijo quase apaixonado, o qual eu correspondi, embora controlando a repulsa dentro de mim. Ali mesmo no sofá, Douglas me despiu das minhas roupas e me possuiu, mostrando-se o mais apaixonado dos amantes, como jamais se mostrara antes. Mais tarde, fomos para seu quarto, onde passamos o restante da noite, nos braços um do outro. Em nenhum momento, ele se mostrou agressivo, pelo contrário, parecia o mais apaixonado dos homens. Talvez, esta repentina mudança, em sua atitude, fizesse parte de sua tática para tentar me persuadir a permanecer ao seu lado, pois percebera que eu estava prestes a conquistar minha independência, que não precisaria mais de si. Mas era tarde demais, eu estava decidida a deixá-lo. Logo que tivesse uma oportunidade, eu partiria, usaria o dinheiro recebido na competição para comprar meu apartamento e minha tão sonhada independência.

CAPÍTULO VII

Uma chance para recomeçar.

Quando despertei na manhã seguinte, encontrava-me completamente só na cama de Douglas, para minha felicidade ele voltara para o Rio de Janeiro. Relembrei a noite anterior e uma náusea se manifestou em meu estômago. Para Douglas fora uma intensa noite de amor, mas a palavra amor não fazia parte do vocabulário dele. Certamente não deixaria passar a próxima oportunidade de exteriorizar sua violência sobre mim, não mais teria forças para reprimi-la, essa era uma certeza que eu tinha. Tivera muita sorte por escapar, ilesa, desta vez. Burburinhos de vozes vindas do lado de fora atraíram-me a atenção. Curiosa, fui até a janela e avistei uma pequena multidão de repórteres próximos ao portão de entrada da propriedade, do lado de fora. Alguns deles tinham câmeras fotográficas nas mãos; outros câmeras filmadoras; carregavam pequenos blocos de anotações e alguns outros encontravam-se sentados em toalhas forradas ao chão, como se acampassem. Havia uma dúzia de repórteres ali, tentando convencer Sebastião a deixá-los entrarem, enquanto o homem trabalhava no curral, aparentemente indiferente às investidas deles. Antes que me avistassem, escondi-me apressadamente atrás da parede da varanda, minha mente trabalhando rapidamente, em busca de uma forma de evitá-los, pois certamente não estavam ali por causa da minha vitória no campeonato, queriam mexericar minha vida pessoal, especular meu passado e meu presente, expor mais e mais, a estória de Daniel, da qual eu era a principal testemunha, portanto o centro de suas atenções. Eles jamais se cansariam desse assunto. Comecei a me perguntar como eles me descobriram ali, quando, imediatamente, relembrei a longa conversa que Rosa tivera com o tal jornalista Nelson Pinheiro. Não acreditava que falara, deliberadamente, sobre mim, mas era uma menina ingênua, fora persuadida a falar, por um experiente profissional. Muito apressadamente, tomei um banho, vesti roupas limpas — um jeans e top de malha que deixara ali para qualquer eventualidade — e deixei a casa, às escondidas, saindo pela porta dos fundos, oculta à visão dos jornalistas. Com a mesma discrição, entrei na casa menor, pela porta dos fundos, encontrando Rosa e Josefa na cozinha. A menina estava sentada à mesa de madeira, seus olhos fixos no móvel, enquanto sua mãe lavava louças na pia. Pareciam discutir, suas vozes alteradas. — Bom dia. — falei. — Vocês estão brigando? — Foi ela, Luana, ela quem contou ao jornalista onde você mora. — Josefa falou, gesticulando para a filha. — Desculpa, Luana. — Rosa murmurou, ainda cabisbaixa. — Tudo bem Rosa, não foi culpa sua. Aquele Nelson te persuadiu a falar e você nem percebeu. — eu sentei-me ao lado dela, servindo-me de uma fatia de bolo de fubá e café com leite. — Alguém falou pra eles que eu estou em casa? — Não. Nós nem demos confiança pra eles, mas mesmo assim insistem em ficar. — Josefa

respondeu. — Se eles continuarem perguntando, digam que estou no Rio de Janeiro, que ainda não voltei depois da competição, OK? — Tudo bem, mas o que você vai fazer? Como vai conseguir se esconder o dia inteiro? — Vou passar o dia cavalgando. Ao terminar a refeição, abasteci uma sacola com comida suficiente para o dia inteiro, pedi a Rosa que me trouxesse um cavalo, já selado, pelos fundos, depois, fui até meu quarto, vesti uma jaqueta jeans para me proteger do frio, calcei meus tênis velhos e saí, sem ser vista pelos repórteres. O cavalo que Rosa trouxera era um dos melhores dali, um Árabe branco, dócil e ágil. Melhor que este só mesmo meu Puro Sangue Inglês, que ainda se encontrava em Niterói. Afastei-me rapidamente da sede do sítio, cavalgando velozmente por quilômetros e mais quilômetros daquelas terras tão queridas e conhecidas, o vento frio de inverno batendo em meu rosto, proporcionando-me uma inigualável sensação de liberdade e paz. Durante horas, relembrei o momento da minha vitória na competição, o quanto me sentira gloriosa e feliz. Com o cheque recebido, compraria um apartamento para finalmente usufruir da minha independência. No entanto, precisava ainda elaborar um plano para fugir de Douglas, pensar em uma forma de sair dali sem o seu conhecimento, sem que ele soubesse meu destino e tivesse a possibilidade de me seguir. Com o apoio de Gustavo isso não seria difícil. Por outro lado, não seria fácil partir sem me sentir ingrata, afinal fora Douglas quem me resgatara do fundo do poço, o único a estender-me a mão quando eu mais precisara. Praticamente devia minha vida a ele. Precisava ainda, pensar em uma forma de conseguir o meu sustento, quando mudasse dali, sem correr o risco de cair na tentação de voltar às ruas e, consequentemente, às drogas, pois o hipismo estava fora de cogitação dali em diante, devido ao fato de que a imprensa exporia a minha vida a tal ponto que ninguém jamais me deixaria participar de outra competição. Eu podia visualizar, mentalmente, as notícias nos jornais daquela manhã: “Ex prostituta e refém de assassino, se torna amante de executivo casado.” Seria o título de uma das matérias dos jornais, minha vitória na competição, é claro, seria esquecida, pois esse tipo de acontecimento não era interessante para a mídia, a exposição da intimidade das pessoas ajudava a vender mais jornais, principalmente se tratando de uma vida complicada como a minha. Por volta do meio dia, estendi uma toalha de mesa sobre a relva e sentei-me, examinado os alimentos na sacola. Havia trazido pão caseiro, queijo, uma garrafa de leite, meio bolo de fubá e algumas poucas frutas. Não era grande coisa, mas seria o bastante para que eu não precisasse voltar a casa enquanto o repórteres se encontrassem lá, uma hora eles se cansariam de esperar e iriam embora. Começava a me servir de um sanduíche de pão com queijo, quando, ao longe, avistei Gustavo se aproximando, montando um dos cavalos do sítio. A simples visão de sua pessoa era o suficiente para me fazer sentir feliz. — Bom dia. — disse ele, saltando do cavalo. — Tem lugar pra mais um nesse pequinique? — Claro, senta aí. — falei, observando-o sentar-se ao meu lado, sobre a toalha de mesa. Foi inevitável que eu relembrasse Daniel, os momentos em que fazíamos as refeições sentados sobre uma toalha de praia forrada ao chão, em meio ao matagal, às margens das rodovias cariocas. A lembrança quase trouxe-me uma lágrima. — O que foi? — Gustavo perguntou, como sempre, percebendo minha reação. — Nada. — respondi, mudando rapidamente de assunto. — Os repórteres não te atacaram quando

você entrou? — Não. Acho que eles já foram embora. Eu o fitei incrédula, dizendo: — Não brinca! — Pois é. Eu disse a eles que você está hospedada em um hotel em Niterói e eles saíram correndo. Acho que foram pra lá. Não consegui resistir e dei-lhe um forte abraço. Gustavo era realmente o melhor amigo que uma pessoas poderia desejar, não existia pessoa melhor que ele no mundo inteiro. Apesar de usar seu tom brincalhão de sempre, ele parecia diferente aquela manhã, um pouco mais sério que de costume. Havia uma ruga de tensão em sua testa. Talvez ele lera os jornais daquela manhã e, devido ao escândalo, se arrependera por ter me inserido no mundo do hipismo. — O que você tem? — perguntei, após morder uma fatia do sanduíche. — Nada. — Você já leu os jornais de hoje? — Ainda não. — Não consigo parar de pensar no que estão falando de mim. — Esquece isso. É bobagem. — a ruga se intensificou em sua testa, enquanto ele me observava comer. — Qual é o seu problema? — perguntei. — Nada. Eu só estava pensando... — ele hesitou antes de continuar. — agora que você pode comprar seu apartamento, quando pretende ir embora daqui? Servi-me de um pouco mais de leite, apenas para evitar o seu olhar. Eu compreendia sua preocupação, temia que Douglas voltasse a me agredir, o que poderia inclusive ser fatal, depois de tudo o que acontecera. No entanto, eu precisava de tempo, para pensar em uma forma de sair definitivamente, sem deixar vestígios para que ele pudesse me seguisse. — Não sei. — foi a minha resposta. — Preciso encontrar um apartamento primeiro e depois eu vejo como as coisas vão ficar. Seguiu-se um longo momento, em que o silêncio era quebrado apenas pelo som longíquo do canto dos pássaros. Até que Gustavo falou: — Você tem certeza de que realmente quer ir embora daqui? — havia um discreto sarcasmo no tom de sua voz. Eu o fitei diretamente nos olhos e indaguei: — O que você está tentando insinuar? — Nada. — ele falou, enquanto me encarava com severidade, quase com hostilidade, como jamais agira antes comigo. — Fala Gustavo. — insisti, firmemente. — Acontece que aquele beijo que eu vi ontem, não parecia de alguém que odeia. Você tem certeza que é ódio o que sente por Douglas? Desviei meu olhar do rosto dele, suas palavras machucando-me como golpes físicos. Eu não sabia como explicar o episódio a Gustavo, pois seria muito constrangedor admitir que eu estivera fingindo ao corresponder àquele beijo, me faria parecer uma pessoa falsa e dissimulada. Ele não compreenderia. O olhar dele se cravou em meu rosto, como se exigisse uma explicação.

— Você não vai dizer nada? — ele perguntou, com rispidez. — O que você quer que eu diga? — Que não está apaixonada por Douglas, que não gosta da forma como ele trata você. — Eu não estou apaixonada por Douglas e, acredite, eu não gosto da forma como ele me trata. — Então por quê, Luana? Novamente, o constrangimento tomou conta de mim, pois ele continuava referindo-se ao beijo, aparentemente ardente que presenciara. — É complicado. — respondi, terminando a refeição. — Você não vai comer? — Acho que sou capaz de entender. — ele ignorou minha pergunta. Então, respirei fundo, tentando afastar o constrangimento e falei: — Olha, a coisa que mais quero na vida é sair daqui, entendeu? É deixar Douglas e nunca mais ver a cara dele na minha frente. Ele fitou-me em silêncio por um longo momento, como se sondasse a veracidade das minhas palavras. — Então quer dizer que quando o beijou você estava... fingindo? — É, estava sim, por que, você vai me julgar por isso? — Claro que não. Mas você parecia estar... gostando. — Mas não estava! Você se esquece que fui garota de programa, que passei boa parte da minha vida fazendo esse tipo de coisa? — Se você não quer ficar mais aqui, então prova. — Como? — Venha para São Paulo comigo agora, Luana. — a hostilidade deu lugar à aflição em seu olhar. — Meu apartamento é enorme, você pode ficar lá até comprar o seu. É perigoso demais ficar aqui, você viu o jeito que aquele sujeito me olhou ontem? Eu não quero nem imaginar o que pode acontecer quando ele explodir. Ele é capaz até de te matar, sabia? E Gustavo estava certo. Douglas era realmente capaz de me matar, não apenas a mim, mas a nós dois, se continuasse acreditando que éramos amantes. No entanto, eu não podia deixar Boa Esperança agora, não sem antes ter um lugar só meu para onde ir. Não queria sair da casa de Douglas e me enfiar na de Gustavo, não podia deixar de depender de um, para passar a depender do outro, precisava aprender a caminhar com meus próprios pés, a ser independente. — Agradeço pela oferta, mas não quero sair da casa de um e ir morar na casa de outro.... — Não me compare com aquele canalha, Luana. — Gustavo me interrompeu, firmemente. — Não estou fazendo isso, apenas estou tentando lhe dizer que preciso ser independente, parar de depender das pessoas, entende? — Não, eu não entendo. Não vejo mal algum em você passar alguns dias em meu apartamento, se somos amigos. Eu ia lhe dizer que estava absolutamente certo, porém, antes que meus lábios se movessem, o som estridente da campainha do meu celular chamou-me a atenção, fazendo todo o meu corpo se estremecer de pavor, pois apenas Abraão me ligava naquele número e apenas para me avisar sobre a achegada de Douglas. — Luana a patroa está aqui e quer falar com você. — disse o jovem rapaz, do outro lado da linha. — Quem? — perguntei, para certificar-me de que ouvira corretamente. — A dona Olívia, mulher do Dr. Douglas.

— OK, diga que já estou indo. — falei, desligando o aparelho. O que aquela mulher poderia querer comigo? Até onde eu sabia, ela desconhecia completamente o meu relacionamento com seu marido. Certamente lera as notícias dos jornais e, como todo o país, ficara sabendo de tudo. — É ele não é? — Gustavo perguntou, seus olhos carregados de aflição. Referia-se a Douglas. — Não. É Olívia. — falei. — O que ela quer comigo? — Não sei, talvez leu os jornais de hoje e descobriu tudo. — ele seguiu minha linha de raciocínio. — Vamos lá, eu vou com você. Rapidamente, recolhi a toalha e os alimentos espalhados ao chão, montando o cavalo, seguindo de volta para casa, ao lado de Gustavo. Chegando lá, senti um alívio profundo ao perceber que os repórteres já não se encontravam mais presentes. Encontramos Olívia na varanda da mansão, sentada a uma pequena mesa, onde fora servido chá e biscoitos. Parecia muito calma, aliás calma demais para uma esposa traída. De perto, ela era mais velha que parecia; tinha a pele clara, bem cuidada, certamente com cremes caros; seus cabelos negros e brilhantes, estendiam-se nas laterais do seu rosto fino, até a altura do queixo; seus olhos eram de um azul profundo; usava roupas sofisticadas e elegantes, assim como sua postura; por ser muito magra, parecia muito frágil, como se fosse se quebrar a qualquer momento. Me perguntei se Douglas a agredia fisicamente, como fazia comigo. Se o fizesse, provavelmente a deixava hospitalizada, de tão frágil que parecia. — Bom dia. — disse ela, calmamente, a voz aguda tão delicada quanto sua aparência. — Posso falar com você um pouco, Luana? — Claro. — respondi, mecanicamente, enquanto esforçava-me para controlar o tremor em meu corpo, pois não sabia qual seria sua reação diante da descoberta de que eu era amante de seu marido. — Você pode esperar lá fora? — ela perguntou, dirigindo-se a Gustavo. Ele a observou em silêncio por um longo momento, então virou-se para mim e falou: — Estarei logo ali, Luana. — depois, deu as costas e afastou-se. — Sente-se. — Olívia falou, gesticulando para a cadeira vazia à sua frente, enquanto examinava-me dos pés à cabeça, com expressão neutra em seus olhos azuis. Ainda trêmula, sentei-me na cadeira, diante dela, enquanto tentava imaginar o quão ela se sentia horrorizada com minha aparência desmazelada, já que se tratava de uma mulher elegante e sofisticada. — Chá? — ofereceu ela. — Não, obrigada. — recusei. Então, em silêncio, ela pousou uma folha de jornal sobre a mesa, próximo a mim, bem diante dos meus olhos. Olhei a página à minha frente, deparando-me com uma fotografia minha, tirada durante o campeonato e outra, mais antiga, de Douglas. No alto, com letras grandes, havia o seguinte título: “O RETRATO DA IMPUNIDADE”. Abaixo, com letras menores, a reportagem, de Nelson Pinheiro, o jornalista com quem Rosa estivera conversando durante a competição, era ainda pior do que eu esperava. A princípio, ele discorria a respeito da trajetória de crimes de Daniel, ressaltando o fato de que me sequestrara, fazendo-me de refém durante vários dias, porém, o jornalista, como todos os outros na ocasião do seqüestro, desacreditava na minha inocência em relação ao assassinato de Orlando, acusando-me de cumplicidade e criticando a justiça brasileira por ter-me permitido permanecer impune. Mais adiante, havia uma pequena menção à minha vitória no campeonato de hipismo e sob o tópico: “Vigarista aplica golpe em milionário carioca”, havia uma narrativa sobre

minha situação atual, a qual, de acordo com a reportagem, consistia em aplicar o golpe do baú em Douglas, com ressalto ao fato de que ele era casado e de que eu promovia o sofrimento de mais uma vítima: Olívia, a pobre esposa traída. — Então quer dizer que você tem um caso com meu marido? — ela perguntou, ao me ver terminar de ler a reportagem. Falava com a naturalidade de quem lia uma receita de bolo. — Olha, me desculpe, eu não queria magoar você.— comecei, sentindo-me desconcertada, sem saber as palavras certas. — Só estou aqui porque... — Eu sei porque você está aqui. — Olívia me interrompeu, firme e calmamente. — Sei que você tomou uma overdose de cocaína quando estava com meu marido em um quarto de motel, sei que ele pagou uma clínica de reabilitação para você e depois te trouxe para cá. Eu sei de tudo Luana, quem não sabe de nada é você. — E do que eu não sei? — perguntei. Vagarosamente, ela acendeu um cigarro entre seus dedos longos e finos, com modos delicados e sofisticados, soltando uma grande baforada de fumaça. Então, com a mesma calma, falou: — Você sabia que quando conheci Douglas ele era pobre? Que todo o dinheiro que ele tem pertence primeiramente a mim, inclusive esta casa onde você mora? — sem aguardar resposta, ela continuou: — Você sabe o que significa para uma mulher ter que sustentar a amante do seu próprio marido? — ela fez uma pausa, como se esperasse que eu respondesse, não obtendo resposta, continuou. — Às vezes eu acho que ele se casou comigo apenas por causa do meu dinheiro, mas isso nunca teve a menor importância pra mim, por que o amo o suficiente por nós dois. Você sabe o que é amar assim, Luana? — ela se interrompeu, tragando novamente o cigarro. — Onde você está querendo chegar com essa conversa? — perguntei, a irritação começando a tomar conta de mim. — Estou tentando lhe dizer que apesar de fazer tudo por ele, jamais consegui torná-lo um homem completo, pois não consegui lhe dar um filho. É por isso que ele procura satisfação em outras coisas. Em coisas como você. — finalmente, surgiu uma expressão em seus olhos azuis: um misto de raiva e desprezo, que logo se dissipou.—Douglas é incapaz de amar uma mulher como você, ele só quer se divertir às suas custas. E alguém como você, é incapaz de amar um homem como meu marido. A irritação crescia cada vez mais dentro de mim, no entanto, esforcei-me por contê-la, afinal, Olívia era a principal vítima naquela estória, tinha todo o direito de me magoar, como eu a magoara também. — Você tem razão, sou incapaz de amar um homem como ele. — afirmei, com sinceridade. — Então por que está aqui? Por causa do dinheiro, que na verdade nem é dele? — Não. Não quero o dinheiro de vocês, nunca quis, estou aqui apenas porque sinto que, de alguma forma, devo recompensá-lo por tudo o que ele fez por mim. Ela fitou-me em silêncio por um longo momento, seus olhos inexpressivos, como se digerisse cada uma das minhas palavras. Então falou: — Você é ainda mais estúpida do que eu pensava. — se tornava cada vez mais difícil conter a raiva dentro de mim. — Você sabia que fui colega de faculdade de Valentina Aguiar? A dona clínica de recuperação onde você esteve internada? —- eu ouvira falar que ela era formada em psicologia, embora jamais exercera a profissão. — E daí? — eu perguntei, suas palavras me anunciando um mau presságio. — E daí que tive uma longa conversa com ela esta manhã, quando ela me relatou o que Douglas realmente fez por você. — havia um leve sarcasmo nas últimas palavras.

— E o que foi que ela te contou? Olívia fez outro longo silêncio antes de continuar, como se tentasse prolongar o quanto mais aquele momento, certamente prazeroso para si. — Ela me contou a verdade. Que Douglas lhe deu uma grande quantia em dinheiro para que tirasse seu filho do seu útero. De repente, senti um aperto no coração que me era quase insuportável. — Isso não é verdade. — murmurei. — Mas é claro que é verdade. Que provas você quer? Quer falar com a Dr. Valentina? Posso ligar para ela agora mesmo. — Olívia pegou seu celular e começou a discar os números. Porém, não seria necessário que ela me provasse a veracidade daquela revelação, pois em meu íntimo, eu sabia que era possível que Douglas tivesse feito aquilo. Ele queria a mim, mas não aceitaria o filho de outro homem, por isso o matara, ainda em meu ventre. Destruíra, impiedosamente, o único vínculo real ainda existente entre mim e Daniel, a prova viva do nosso amor eterno. Me tirara minha única chance de um dia ser feliz, de ter uma parte do meu amor ao meu lado, assassinara meu filho inocente, antes mesmo que este viesse ao mundo. Por este motivo, eu o mataria. Vingaria a morte do meu filho, como Daniel vingara a destruição dos seus antepassados. Neste instante, me senti próxima a ele, como jamais me sentira antes, pois o compreendia como nunca, sentia, em minha própria pele, o desejo de vingança que o motivara durante tanto tempo. Olívia entregou-me o telefone celular, de onde partiu a voz familiar da Dr. Valentina, do outro lado da linha. — Sinto muito, Luana. Não fiz aquilo apenas pelo dinheiro, mas ele me convenceu, afirmando que você foi estuprada pelo assassino que te seqüestrou... — falava a mulher, do outro lado da linha. Ela continuou falando, certamente tentando se justificar, mas eu já não mais a ouvia, afastara o aparelho. Não queria ouvir mais nada, pensava apenas na minha vingança, em acabar com a vida de Douglas. O mataria impiedosamente, lamentava apenas não poder me transformar em lobisomem e estraçalhar o seu corpo, como Daniel fizera com suas vítimas. Decidida, afastei-me de Olívia, percebendo que ela me observava com um brilho de triunfo em seu olhar. Mas isso não importava, nada mais importava que não minha vingança. Segui para fora da mansão, dirigindo-me para a casa menor. Pegaria a faca da cozinha ou a velha espingarda de Sebastião e esperaria pela visita de Douglas, no instante em que ele me tocasse, eu o surpreenderia e o mataria. Eu caminhava apressadamente, rumo à outra casa, meus olhos cegos pelo ódio, minha mente tortuosa pela lembrança do meu filho assassinado, quando, de repente, choquei-me contra algo sólido, rochoso, que me deteve em meu percurso. Ao longe, ouvi meu nome ser pronunciado até que pouco a pouco meus olhos se encontraram com a realidade, quando percebi que Gustavo me segurava pelos ombros, enquanto fitava-me com aflição. — Por Deus, Luana! O que é que você tem? — perguntava ele. Meus olhos encontraram os seus e não mais consegui conter as lágrimas, deixando-as banharem o meu rosto. — Douglas matou o meu filho... — murmurei. — O que? Como assim? — Ele pagou a médica da clínica de reabilitação para tirar o meu filho e depois dizer que eu abortei por causa da overdose.

Gustavo observou-me em silêncio por um momento, como se tentasse compreender o fundamento de minhas palavras. Então, finalmente, tomou-me em seus braços e disse: — Ah, Luana, eu sinto muito. — Eu vou matá-lo. — afirmei, entre soluços, afundando meu rosto em seu ombro, enquanto minhas lágrimas molhavam o tecido de sua camisa. — Não, Luana, você não vai fazer isso. — Gustavo falou, sua voz terna e calma. — Você vai sair daqui comigo agora mesmo e esquecer que Douglas existe. Vai deixar tudo isso para trás e recomeçar sua vida. — Eu não posso... Tenho que fazer Douglas pagar pelo que fez. Eu não podia permitir que Gustavo me convencesse a desistir de me vingar, precisava ser forte, prosseguir em meu objetivo. Assim, afastei-me dos seus braços, tentando me distanciar, mas ele segurou-me pelo pulso, aproximando-me novamente de si. — Me larga! — eu gritei, tentando, sem sucesso, libertar-me da mão dele. — Pára com isso, Luana. Você não vai se tornar uma assassina. Neste momento, Josefa aproximou-se de nós, atraída pelos sons dos meus gritos. Tinha sua fisionomia alarmada, tentando entender o que se passava. — O que está acontecendo aqui? — perguntou ela. — Josefa, arrume as malas de Luana agora. Ela vai embora comigo. — Gustavo falou. A mulher deslocou seu olhar do rosto dele para o meu e perguntou: — Você vai? — É claro que não. Vou ficar aqui, quero esperar Douglas chegar. — eu puxava meu pulso da mão dele, mas não conseguia me libertar. — Você não pode decidir minha vida por mim. — Pára com isso, Luana. Eu não estou decidindo nada, só estou tentando te mostrar a coisa certa a fazer. Você nem tem certeza absoluta de que Olívia está dizendo a verdade, talvez apenas inventou essa estória para te afastar daqui. — Não. Eu falei com a Dr. Valentina, ela confirmou o que fez! — E se Olívia a pagou para mentir? Você precisa investigar o caso e descobrir a verdade. Como sempre, Gustavo estava certo. Diante da descoberta de que eu era amante de seu marido, Olívia seria capaz de inventar aquela estória apenas para me afastar dele. Se eu continuasse em Boa Esperança, ela não descansaria enquanto não me tirasse dali, transformando minha vida num inferno ainda maior do que já era. Mas, e se ela estivesse falando a verdade? Ainda assim, Gustavo estava certo, eu precisava investigar o caso e, só então, partir para a minha vingança, como Daniel fizera ao descobrir o assassinato de sua família. — Você tem razão. — eu falei, acalmando-me — Preciso ter certeza primeiro antes de me vingar. Então, finalmente, Gustavo afrouxou sua mão do meu pulso. Libertando-me. — Josefa pode arrumar sua bagagem, para que você venha comigo? — ele perguntou. — Não. Eu mesma faço isso. Josefa não é minha empregada. Meia hora depois, eu encontrava-me em meu pequeno quarto, ao lado de Gustavo, de Josefa e de minhas malas prontas. Recordei-me de quando chegara a Boa Esperança, carregando apenas uma pequena mochila com roupas usadas. Agora dispunha de duas malas grandes, abarrotadas de peças, a maioria das quais, escolhidas por Rosa, em Itatiaia. Lamentei que ela não estivesse presente, para que eu pudesse me despedir, afinal, provavelmente, nunca mais a veria. Quando o táxi, chamado por Gustavo, chegou para nos apanhar, uma inesperada tristeza

invadiu meu coração. Eu havia me apegado àquela família e àquele lugar, muito mais do que imaginara, sentiria muita falta de tudo e de todos, especialmente dos momentos em que cavalgava sozinha por aquelas terras tão queridas. Mas eu precisava seguir adiante, tentar recomeçar minha vida, agarrar-me à chance que surgia em meu caminho. Com a possibilidade da revelação feita por Olívia ser verdadeira, já não mais me sentia ingrata por deixar Douglas, por partir sem ao menos me despedir dele. E mesmo que ela estivesse mentindo, minha partida seria um alívio para seu sofrimento, portanto, eu estava levando benefício a alguém. — Adeus, minha filha. — Josefa falou, abraçando-me apertado. — Vê se não se esquece da gente. — Eu não vou me esquecer, embora não possa prometer que voltarei para visitá-los. — Nós entenderemos se você não voltar. — foi Abraão quem falou, vindo me abraçar também. De longe, acenei um adeus para Sebastião, que se ocupava com os cavalos no curral e entrei no táxi, seguida por Gustavo. Enquanto o veículo se dirigia para a saída do sítio, avistei, no segundo andar da mansão, na janela do quarto de Douglas, onde eu dormira tantas noites, uma nuvem de fumaça de cigarro e embora não pudesse enxergar Olívia, tinha a certeza de que ela nos observava dali, certamente, sentindo-se triunfante por me ver partir. A satisfação dela, era o calmante para minha ingratidão a Douglas. Durante todo o trajeto, até Itatiaia, eu permaneci em silêncio, pensando, com amargura, que nunca mais voltaria a cavalgar pelas terras de Boa esperança, onde tanto tempo permaneci imersa em minha solidão, nas lembranças do meu amor perdido. Como seria minha vida dali em diante? Teria eu tomado a decisão certa? Merecia Douglas que eu partisse sem sequer avisá-lo? A noite começava a cair, quando o taxista estacionou diante de uma luxuosa pensão, numa área arborizada da pequena cidade, onde Gustavo se encontrava hospedado. — Você quer descansar um pouco antes de pegarmos a estrada para São Paulo? — Gustavo perguntou, ao saltarmos do veículo, diante da pensão. — Não. Acho melhor sairmos logo daqui. Ainda estamos muito próximos de Boa Esperança. — falei, cruzando meus braços diante do meu corpo, tentando proteger-me do frio. — Você tem razão. — ele pousou minhas malas na calçada. — Espere aqui um pouco que só vou pegar minhas coisas e logo partiremos. Enquanto eu aguardava Gustavo, imóvel na calçada da pensão, alguns transuentes que passavam por ali, interrompiam seu trajeto para me observarem, certamente reconhecendo-me das manchetes dos jornais. Então percebi o que me aguardava em São Paulo, como seria minha vida dali em diante. Provavelmente nunca mais poderia sair às ruas sem ser notada, observada e hostilizada. Os motoristas dos poucos carros que passavam pela rua, diminuíam a velocidade, apenas para me observarem. De súbito, imaginei o que aconteceria se Douglas passasse por ali, agora, a caminho de Boa Esperança e um leve tremor começou a tomar conta do meu corpo. Se me visse ali, fugindo de seus domínios, no mínimo ele me daria um tiro. Minutos depois, Gustavo retornou com suas bagagens, deixou-as ao lado das minhas e afastou-se novamente, voltando segundos depois, dirigindo seu carro, uma pick-up Ford Ranger, na qual partimos, diretamente para a capital paulista. À medida em que seguíamos rumo ao sul do país, o frio se intensificava, tornando-se quase insuportável a mim, apesar de usar um grosso casaco de lã. Passavam das dez horas da noite, quando adentramos o Morumbi, bairro da capital paulista onde Gustavo morava. Paramos diante de um luxuoso edifício residencial, ocupado por famílias de classe média-alta e saltamos, dirigindo-nos para o elevador, enquanto o porteiro se ocupava em nos

ajudar a carregar nossas bagagens. Seu apartamento ficava na cobertura do prédio, onde, ao entrarmos, fiquei impressionada. Só a sala era maior que toda a casa de Josefa no sítio, tinha cerca de vinte metros quadrados, decorada com móveis caros e modernos. Havia um jogo de sofá ao centro, diante de uma enorme estande envidraçada, a qual compotava os mais sofisticados aparelhos eletrônicos; a um canto, havia um bar, todo em mogno e vidro, lindo! Em uma das paredes, havia uma estante repleta de troféus, conquistados em campeonatos de hipismo, inclusive, entre eles, uma medalha de ouro olímpica. — Por que você não compete mais? — perguntei, observando, fascinada, os inúmeros troféus. — Porque quero dar a chance a novos talentos, como você. — Gustavo falou, aproximando-se de mim. — Além do mais me sinto bem empresariando os novos competidores. Ele era realmente a pessoa mais altruísta que eu já conhecera. Sem falar na sua humildade. Embora residisse em um apartamento tão luxuoso quanto aquele, não agia como as pessoas ricas que eu conhecia, era simples e modesto. — Uau! — falei, percorrendo meu olhar pelo apartamento, admirada. — Esse negócio de hipismo é mesmo lucrativo! — Nada vale a pena se não se gosta do que faz. — Então você é uma pessoa de muita sorte, pois além de fazer o que gosta, ainda conseguiu subir na vida. — Acho que tenho sorte sim. — ele disse pensativo. — E então, quer conhecer o restante da casa ou prefere comer primeiro? — Comer... — respondi, melancolicamente, deixando-me afundar em um dos confortáveis sofás. Após pedir uma pizza pelo telefone, ele sentou-se ao meu lado, afastando, carinhosamente, uma mecha de cabelo que caía-me sobre a testa. — Ei! Se anima, garota, você não está indo para a prisão, está saindo de uma. — disse ele, com seu jeito descontraído de sempre. Como não obteve resposta, continuou: — No que você está pensando? — Em como será minha vida daqui em diante. — Será maravilhosa. Você se tornará uma amazona muito famosa; vencerá muitas competições; sairá do país e eu sempre estarei lá para não deixar você cair do cavalo. O tom brincalhão de suas palavras me arrancou uma gargalhada. Impulsivamente, segurei sua mão, como se tentasse me certificar de que ele era real, ou apenas minha imaginação, pois era bom demais para existir, eu era uma pessoa de sorte por tê-lo como amigo, um anjo da guarda que me guiava pelos caminhos certos. — Eu não mereço você. — falei, meio sem pensar. — É, eu sei, ninguém merece um tagarela como eu. Com um sorriso, deitei-me sobre o sofá, usando suas pernas como travesseiro. Sentia-me reconfortada e segura ali, com sua proximidade, onde podia ouvir as batidas aceleradas do seu coração e sentir o gostoso odor de colônia que emanava do seu corpo. Permaneci assim, imóvel, por um longo tempo, começava a cochilar, quando o som estridente da campainha despertou-me a atenção, sobressaltando-me. — Quem é? — perguntei, sentando-me, assustada, com a possibilidade de se tratar de Douglas, à minha procura. — Deve ser a pizza, Luana, fique calma. — Gustavo tranqüilizou-me, em seguida, foi até a porta, retornando segundos depois, com a pizza nas mãos. — Você prefere suco ou refrigerante? — Tanto faz. — falei, sentindo-me constrangida por me assustar tão facilmente.

Ele desapareceu para outro cômodo do imóvel, mas logo estava de volta, carregando dois pratos, talheres, copos e uma jarra de suco. Pousou a pizza sobre a mesinha de centro e sentou-se ao lado, sobre o carpete, convidando-me a acompanhá-lo. Sentei-me na outra extremidade da pequena mesa, me perguntando que outra pessoa, na posição social de Gustavo, faria uma refeição sentada ao chão, como ele fazia. Enquanto saboreava a deliciosa pizza de calabreza, comecei a pensar no meu filho perdido, sentindo-me invadida por uma tristeza profunda. Mesmo que sua morte fora provocada por Douglas, eu não estava livre da minha parcela de culpa, por confiar em um desconhecido como ele, por entregar-me a uma overdose de cocaína. Se eu tivesse cumprido a promessa que fizera a Daniel, pouco antes de sua morte, de que mudaria a minha vida, não teria perdido o meu filho, estaria com ele em meus braços agora. Poderia olhar para seu rosto e reconhecer os traços físicos do meu amor. — Será que um dia ainda poderei engravidar novamente? — perguntei, distraidamente, após morder um pedaço da pizza. — Mas é claro. — Gustavo falou. — Uma médica experiente como a Dr. Valentina jamais te deixaria seqüelas. — Então por que não fiquei grávida de Douglas? Neste momento, vi o rosto de Gustavo enrubescendo-se, como se sentisse-se embaraçado. — Vocês não usavam nenhum método contraceptivo? — Não. — Talvez o problema da fertilidade esteja com ele e não com Olívia. Ao terminarmos a refeição, permanecemos ali, sentados sobre o carpete, conversando descontraidamente. Com Gustavo eu conseguia falar abertamente sobre mim, sobre meu amor por Daniel e a dor por tê-lo perdido, com mais ninguém tocava naquele assunto. Embora falasse pouco sobre si mesmo, ele me ouvia atentamente, mostrando interesse por cada uma das minhas palavras, era meu confidente, meu cúmplice, conhecedor de todos os meus segredos e sentimentos. Quando estava ao seu lado, eu não via o tempo passar, tão agradável era sua companhia. Consigo, me sentia segura, como se nada no mundo pudesse me atingir, nem mesmo o receio de Douglas vir atrás de mim. Continuamos ali conversando por um longo tempo, enquanto eu esquecia-me completamente da vida, dos motivos que me trouxeram a São Paulo. Quando dei por mim, já passavam das duas horas da madrugada. — Acho que preciso dormir. Amanhã quero acordar cedo para ir procurar meu apartamento. — Falei, com um bocejo. — Duvido que você consiga acordar cedo. —- Gustavo falou. — Em todo o caso, você não precisa ter pressa, terá muito tempo para procurar seu apartamento. — Quero encontrá-lo o mais depressa possível. — Nossa! Parece até que você está louca para se livrar de mim. — Não é nada disso, apenas não quero me tornar um peso em sua vida. — Fala sério, Luana, você não é peso nenhum. — ele ficou de pé, dirigindo-se na direção das nossas malas. — Venha, vou te mostrar o quarto de hóspedes. Da sala, seguimos por um largo corredor, onde haviam várias portas laterais. Por que uma pessoa que morava sozinha precisaria de tantos quartos? Perguntei-me. Gustavo abriu uma das portas, entrando no imenso aposento, gesticulando para que eu o seguisse. — Você dormirá aqui. O que acha?

Percorri meu olhar através do cômodo. Era tão grande quanto a sala, decorado com móveis luxuosos e modernos. Em uma das paredes, havia um imenso armário embutido, construído em mogno, com detalhes em acrílico; a um canto, havia uma estante abarrotada de pequenos bibelôs, de vários materiais diferentes; as janelas imensas eram ocultas por grossas cortinas revestidas com cetim, na cor rosa bebê; ao centro, havia a imponente cama, com dois criados mudos em suas laterais, os quais compotavam abajures e controles remotos; em outro canto, havia um aparelho de TV. — Acho que posso suportar isso. — falei. Ele pousou minhas malas sobre o tapete, ao lado do armário, em seguida, dirigiu-se para a porta, dizendo: — Estarei no quarto ao lado, se precisar de alguma coisa é só chamar. — depois, deu-me as costas e saiu. Sem a presença de Gustavo, aquele quarto parecia ainda maior. Sozinha, sentei-me, desanimada, na cama, pensando em Boa Esperança, nas terras pelas quais eu jamais voltaria a cavalgar, no cheiro de ar puro que eu jamais voltaria a sentir e no profundo silêncio em que eu nunca mais me encontraria. Fui até a janela e observei o trânsito lá embaixo, apesar do horário, muitos carros ainda trafegavam pela rua larga, numa intensa movimentação, a qual, dali em diante, faria parte do meu cotidiano. Algum tempo depois, despertei de um sono tranqüilo e repositor. Não conseguia distinguir se já era dia ou ainda noite, pois todo o quarto se encontrava em penumbra. Demorei um segundo para me recordar de onde estava, depois, fui até a janela e afastei as grossas cortinas, permitindo que a claridade do dia penetrasse o recinto. Era mais um dia frio e cinzento de inverno. Sobressaltada, examinei o pequeno relógio digital sobre o criado mudo e constatei, espantada, que já passava das dez horas da manhã. Eu não deveria ter dormido por tanto tempo, pretendia sair cedo à procura do meu apartamento, afinal, embora amasse a companhia de Gustavo, mais que qualquer outra coisa na vida, não queria permanecer ali, dependendo de sua hospitalidade, precisava conquistar minha individualidade. Após tomar um banho e vestir um conjunto de calça e blaser de linho, bege, dirigi-me para fora do quarto, sem saber exatamente em que direção do corredor devia seguir, pois este parecia ainda maior que antes. De súbito, ouvi sons de vozes e parti naquela direção. Atravessei a sala onde comemos a pizza, na noite anterior, a qual agora encontrava-se impecavelmente limpa e arrumada e segui rumo a uma parte desconhecida do apartamento, de onde partiam as vozes. Tratava-se de uma cozinha tão ampla e bem equipada quanto os demais cômodos do apartamento. Gustavo encontravase debruçado por sobre um largo balcão revestido com mármore, de costas para a direção da porta, seu queixo apoiado nas mãos. Usava bermuda de brim, camiseta de malha de algodão e parecia bastante à vontade, com seus pés descalços. Do outro lado do balcão, bem próximo a ele, encontrava-se uma morena, alta de corpo voluptuoso e curvas bem definidas. Pareciam conversar muito intima e alegremente, o que me fez sentir uma intrusa. Ainda pensei em recuar, para não atrapalhar a intimidade dos dois, mas a morena já pousara seu olhar sobre mim, induzindo Gustavo a olhar para trás. — Bom dia, Luana. Até que em fim você acordou. — Gustavo falou, virando-se para minha direção, erguendo seu corpo, embora não se afastasse do balcão e da morena. — Entre, venha tomar café. Sentindo-me meio desconcertada, por interferir na privacidade do casal, entrei na imensa cozinha, aproximando-me dele e disse:

— Acho que vou dispensar o café, pois quero sair logo para averiguar os imóveis. — Nada disso, você não vai sair sem comer. — ele insistiu. Então foi até a mim e segurou minha mão, conduzindo-me até uma pequena mesa com tampo de vidro. — E então, o que você quer comer? — ele olhou para a morena, que nos observava em silêncio, ao mesmo tempo em que recolhia alguns copos sujos de sobre o balcão. — Ah, deixa eu te apresentar, essa é Carla, ela trabalha aqui. É só dizer o que você quer comer que ela prepara. Carla, essa é minha amiga Luana. — Muito prazer. — falei, observando mais atentamente a morena: tratava-se de uma mulher linda, com cerca de vinte anos de idade. Tinha os cabelos cacheados, cascateando-lhe os ombros; o rosto pequeno; os olhos negros e os lábios carnudos. Usava uma calça jeans de cós baixo, deixando à mostra o abdômen firme e um top de malha, o qual ressaltava seus seios fartos e firmes. Me perguntei se seria ela o amor não correspondido de Gustavo, ou talvez mantinham um relacionamento secreto, já que não seria bom, para a imagem dele, que namorasse uma empregada doméstica. Mas Gustavo não era assim, não esconderia um relacionamento pelo simples fato de sua companheira pertencer a uma classe social diferente da sua. Apesar de todas as minhas dúvidas, uma coisa ficara bem evidente: ambos pareciam muito íntimos quando eu entrara na cozinha, certamente tinham um relacionamento afetivo, secreto ou não. — O que você vai comer? — Carla me perguntou, após me cumprimentar sem a mesma empolgação com que conversava com Gustavo, antes da minha intromissão. — Sei lá, o que tem aí? — De tudo um pouco. — Acho que quero bolo e café. Carla começou a preparar a refeição, enquanto Gustavo sentava-se ao meu lado, dizendo: — Por que você não deixa para sair à tarde? Pois tenho um compromisso daqui a pouco, à tarde poderei te levar de carro. Eu o fitei, com uma súbita e inexplicável irritação tomando conta de mim. — Não precisa me levar de carro. Sei me virar sozinha. —- relembrei o fato de que seria reconhecida pela população, das manchetes dos jornais. — Acho que ninguém terá coragem de me apedrejar na rua. — Mas qual a diferença de você ir agora ou de tarde? — Gustavo perguntou. — Quanto antes encontrar o que procuro, melhor. Neste momento, Carla aproximou-se, pousando os alimentos sobre a mesa, diante de mim. — Mais alguma coisa? — perguntou ela, com seu rosto sério. — Não, obrigada. — respondi. Comecei a imaginar como ela deveria estar se sentindo, diante do fato de que seu amado levara outra mulher para dormir em sua casa. Certamente não estava nem um pouco contente e, mais uma vez, eu era responsável pelo sofrimento de alguém. Não entendia porque Gustavo jamais me falara sobre ela, se soubesse talvez eu não estivesse ali. Teria ele vergonha de assumir um caso com sua empregada? Seria ela, sua paixão não correspondida? Continuava me perguntando, enquanto saboreava o bolo de laranja com café. — Está bem, coma sem pressa que cancelarei meu compromisso para sair com você. — Não precisa, Gustavo, sei me virar sozinha. — eu disse, sentindo-me culpada por, mais uma vez, atrapalhar sua vida. — Nada disso, São Paulo é uma cidade muito perigosa, você não pode sair por aí sozinha sem conhecer nada.

Refleti por um instante e cheguei á conclusão de que não tinha o direito de obrigá-lo a desmarcar seu compromisso apenas para sair comigo. Se esperara até agora, por encontrar meu imóvel, não me custava esperar um pouco mais. — Está bem, deixaremos pra sair á tarde. Não quero que você desmarque seu compromisso por minha causa. — OK, então fica combinado, quando eu voltar, nós sairemos para procurar seu imóvel. Agora preciso trocar de roupas e sair. — Ele ficou de pé e deu-me um beijo muito suave na testa. Antes de sair, virou-se para Carla e falou: — Faça o que Luana quiser almoçar. Ela assentiu, então, Gustavo nos deu as costas e saiu. Sozinha na cozinha com Carla, pensei em indagá-la sobre seu relacionamento com Gustavo, mas não quis ser indiscreta, além do mais, não tinha certeza de nada. Averiguaria, discretamente a veracidade de minha suposição. — Você trabalha aqui há muito tempo? — comecei, enquanto observava a morena lavar as louças na pia. — Desde que Gustavo se mudou para São Paulo, há exatamente três anos. Havia coletado minha primeira pista: ela não se referira a ele como Sr. Gustavo, como, normalmente, uma empregada se referia ao patrão, usara seu nome diretamente, isso indicava sinal de intimidade. — Como vocês se conheceram? — eu continuava minha investigação. — Meu irmão trabalha como faxineiro na sede da CBH, foi ele quem nos apresentou. Vocês têm um caso amoroso? As palavras ecoaram em minha mente, mas não me atrevia a proferi-las, pois não queria ser indiscreta. Continuei minha investigação implícita por mais alguns minutos, até que, por fim, não havia chegado a conclusão alguma. Continuava acreditando que eles tinham um caso secreto. Aproximava-se das duas horas da tarde quando Gustavo apareceu, retornando de seu compromisso. Eu me encontrava extremamente irritada com sua demora, mas nada deixei transparecer, afinal estava a mercê de sua boa vontade. Após almoçarmos juntos, na cozinha do apartamento, na companhia de Carla, que também sentou-se á mesa, sem nenhuma formalidade, consegui, com insistência, tirá-lo de casa. Saímos em sua pick-up, seguindo diretamente para o centro da cidade, onde visitamos algumas imobiliárias e averiguamos alguns poucos apartamentos ao alcance do meu orçamento, mas nenhum deles me agradou, eram todos localizados em áreas muito movimentadas. Aqueles situados nos setores menos urbanizados da grande capital, tinham o preço mais alto do que eu poderia pagar, afinal dispunha apenas dos cinqüenta mil recebidos com a vitória na competição de hipismo. Felizmente, enquanto nos encontrávamos nas ruas, poucas pessoas pareciam me reconhecer, afinal, ali, todos pareciam ocupados demais com suas próprias vidas, para atribuírem sua atenção a qualquer outra coisa. Além do mais, deixamos o carro em bem poucas ocasiões, apenas diante das imobiliárias e dos imóveis visitados. Já era noite quando retornamos ao apartamento. Eu estava decidida a vender as jóias com as quais Douglas me presenteara e aumentar meu capital, para que pudesse adquirir um imóvel ao meu gosto, ou seja: localizado em um local o mais sossegado possível. Devido à grande movimentação de pessoas e carros que presenciara nas ruas de São Paulo, eu sentia uma fadiga insuportável e minha cabeça latejava de dor. Sentia falta do silêncio e da paz de Boa Esperança, tentaria encontrar um lugar como aquele para morar, uma pequena chácara, talvez,

pois tinha certeza que não mais me adaptaria à urbanização. Dispensando o jantar, tomei um demorado banho quente, engoli um analgésico e fui direto para a cama, adormecendo rapidamente. Esperando que o dia logo amanhecesse, para que desse continuidade à procura pelo meu imóvel. Desta vez não seria descuidada, programei o despertador para as seis horas da manhã, quando sairia com ou sem Gustavo. Quando despertei, não soube distinguir se o dia já amanhecera, pois as grossas cortinas, impediam a entrada da claridade pela janela. Olhei o pequeno relógio no criado mudo, constatando que ainda eram duas horas da madrugada e deitei-me novamente, mas, desta vez, não consegui mais pegar no sono, sentindo meu estômago dolorido de fome. Decidida a procurar algo para comer, enrolei-me na pequena toalha de banho felpuda e segui para a cozinha, surpreendendo-me ao encontrar Gustavo lá. Ele estava sentado a um banquinho de madeira, ao pé do balcão, usando um pijama de algodão branco, examinando um notebook. — Oi, — disse eu, adentrando o cômodo, seguindo diretamente para a geladeira. — O que você está fazendo acordado a essa hora? — Duzentos e trinta e nove. — ele respondeu, sem desviar seu olhar do pequeno computador. Eu examinava as opções de um lanche na geladeira, lembrei-me de Carla, quando dissera que ali havia de tudo um pouco, ela não estivera mentindo. Por fim, optei por pão de forma, queijo e presunto, pousei-os sobre o balcão, próximo a Gustavo e comecei a preparar os sanduíches. — Duzentos e trinta e nove o que? — perguntei, curiosa. — E-mails recebidos, de organizadores de competições de hipismo, convidando você para participar de torneios pelo país inteiro. — Não brinca! — exclamei, eufórica, meu coração disparando no peito. Então, sentei-me ao lado dele, bem próxima, examinando a tela do computador. — E quanto aos escândalos dos jornais? Eles estão a par? — Claro que estão, mas como eu já lhe disse, isso não será empecilho para sua carreira. O que você fez em Niterói foi impressionante demais para ser ignorado. Sem pensar, eu o abracei, agradecida pela chance que, sem ele, certamente eu não teria conquistado. Recordando-me de Carla, me desvencilhei, rapidamente, do abraço, imaginando o que ela sentiria se entrasse ali, de repente, e nos flagrasse abraçados. Embora se tratasse de um gesto de pura amizade, dificilmente seria compreendido por alguém que amava. Distraidamente, comecei a comer o sanduíche, pensando em minha carreira de amazona que agora certamente deslancharia, em pouco tempo, eu teria conquistado minha independência financeira, como Gustavo conquistara a sua. No entanto, sem a presença dele eu não conseguiria participar de torneio algum, essa era uma certeza que eu tinha. Continuaria ele empresariando-me, mesmo quando precisasse viajar pelo país? — Quando eu for participar desses torneios, você continuará me acompanhando? — perguntei, hesitantemente. — Mas é claro que sim. Afinal sou seu empresário, não sou? — E quanto à Carla, vai deixá-la aqui sozinha? — Não. Quando estou viajando, ela vem apenas um dia da semana pra... — de súbito, ele se interrompeu, fitando-me diretamente nos olhos, compreendendo, finalmente, o que eu queria dizer. — O que você quer dizer com deixá-la aqui sozinha? — Me desculpe pela indiscrição, Gustavo, mas não acho certo você esconder esse relacionamento só porque Carla é empregada doméstica. Acho que você deveria levá-la em suas viagens. Nos olhos dele, lentamente, surgiu uma expressão de pura confusão e surpresa.

— Você acha que eu e Carla temos um caso, é isso? — E não têm? Neste momento, seus lábios se entreabriram numa sonora gargalhada, fazendo com que seu rosto se iluminasse, carismaticamente. — De onde você tirou essa idéia, criatura?! De repente, comecei a me sentir meio ridícula, pois começava a perceber que fizera suposições apressadas e erradas. — Bem... — comecei, sem saber exatamente o que dizer. — Eu vi a intimidade entre vocês dois. — Quando? — Ontem, quando os encontrei na cozinha. O jeito que ela te olhava... não pode ser apenas uma empregada. — Neste ponto, você está certa. Carla não é apenas uma empregada, mas minha amiga também e nada além disso. — Então quer dizer que vocês não são namorados? — Mas é claro que não, Luana, você acha que eu iria esconder isso de você? — Me desculpe. — murmurei, convencida de que tirara conclusões erradas. — Da próxima vez me pergunta antes de tirar suas conclusões, ta? — ele disse, sorrindo. — Que loucura essa sua! — Mas você tem um amor não correspondido, não é? Quem é ela? Eu terminei a refeição, esvaziando o copo de leite, secando os meus lábios com o guardanapo, enquanto observava seu rosto se tornando sério. Eu já estava acostumada com aquela reação de Gustavo quando o indagava sobre sua vida afetiva, ele se recusava a confiar em mim, a falar sobre o assunto, embora eu me abrisse completamente com ele a respeito dos meus sentimentos por Daniel. — Vamos lá, Gustavo, se abre comigo, quem é essa mulher tão misteriosa que você ama. Eu a conheço? Cabisbaixo, ele fechou o computador, depois, lentamente, ergueu o seu rosto para me encarar, fitando-me profundamente nos olhos. Depois de um longo momento de silêncio, falou: — Como você pode não perceber..., Luana? Vi um profundo ardor estampado em seus olhos cor de mel e, de súbito, tudo ficou claro para mim: era eu a mulher que ele amava. Durante todo esse tempo, nutria este sentimento por mim, enquanto eu acreditava que era apenas meu amigo. Ele tinha razão: como eu não percebera antes? Agora podia compreender porque se empenhava tanto em me fazer feliz, em me agradar, porque se preocupava tanto comigo, com meu bem estar: estava apaixonado por mim. Por isso tinha dificuldade em falar sobre sua vida afetiva. Relembrei o momento em que ele me falara sobre esse amor, no hotel em Niterói, dissera-me que ela vivia pensando em outro homem, era em Daniel que eu pensava, por isso ele não demonstrara seus verdadeiros sentimentos, tinha medo de ser rejeitado, sabia que eu não amaria outro homem enquanto mantivesse Daniel vivo em meus pensamentos. E ele estava certo. Subitamente, tomei consciência da minha semi nudez, pois usava apenas a toalha de banho, em torno do meu corpo, sem mais nada por baixo. Até aquele momento, não me preocuparia com isso, pois ficava completamente à vontade em sua presença, mesmo estando semi nua. Porém, tudo era diferente agora, depois de sua revelação. Ele continuava me fitando em silêncio, como se esperasse minha reação. Num gesto

mecânico, afastei minha perna do contato com a dele, vendo-o desviar seu olhar do meu rosto, no instante seguinte. Certamente concebera meu gesto, involuntário, como uma rejeição. — Por que você não me falou isso antes? — perguntei, quase sem pensar. Ele refletiu por um longo momento, ainda sem fitar o meu rosto, depois disse: — Vamos esquecer essa estória. É melhor a gente ir dormir, se quisermos acordar cedo amanhã. — em seguida, ficou de pé, dirigindo-se para a sala. Enquanto o via afastar-se, uma angústia profunda invadiu meu coração. A simples perspectiva de perdê-lo era o suficiente para me deixar desesperada, pois ele se tornara tudo para mim, eu não tinha mais ninguém no mundo que não a ele, não seria nada sem sua presença. Em meu íntimo, eu o amava também, não como homem, mas como um irmão querido, não podia nem pensar em perdê-lo, seria incapaz de viver sem ele. Eu ainda amava perdidamente Daniel e não havia lugar em meu coração para outro homem que não ele. Porém, Daniel estava morto, não voltaria jamais, eu precisava aceitar tal realidade. E sem Gustavo, eu estaria completamente só no mundo, não poderia perdê-lo, ele era tudo o que eu tinha. Meu amor por ele não era o de uma mulher por um homem, mas de irmã para irmão, no entanto, para não perdê-lo, eu seria capaz de me tornar sua mulher, como fora de Douglas durante tanto tempo, apenas para não ter que ficar sem ele. Gustavo estava quase alcançando o corredor, que o levaria ao seu quarto, quando, num impulso incontrolável, eu pulei no chão e corri atrás dele. — Gustavo! — gritei, fazendo-o deter-se em seu percurso. Ele se virou para mim, atendendo ao meu chamado, enquanto eu avançava rapidamente em sua direção. Coloquei-me em sua frente, tão próximo que podia ouvir sua respiração, então, suavemente, rocei os meus lábios nos seus. Num gesto muito rápido, ele enlaçou seus braços em torno da minha cintura, comprimindo meu corpo contra o seu, tomando meus lábios, com tamanha voracidade, que parecia tentar me devorar. Entreabri os meus lábios para receber o beijo ávido, quando, espantosamente, fui dominada por um turbilhão de sensações indefiníveis, confusas, as quais só encontrara nos braços de Daniel, em um passado distante. Nem em meus momentos de profunda reflexão, eu poderia prever o que se passava comigo, as emoções incontroláveis que o toque de Gustavo me despertavam, era como se eu mergulhasse em um transe profundo, difícil de se libertar. Dominada por um desejo ardente, que queimava em minhas entranhas, como se me incendiasse, o qual há muito eu não experimentava, desenrolei, lentamente a toalha do meu corpo, deixando-a cair ao chão. Neste momento, Gustavo interrompeu o beijo, afastando-se alguns centímetros de mim. — Espere, espere, espere, — disse ele, com seus lábios ligeiramente trêmulos, sua respiração ofegante. — Por que está fazendo isso, Luana? — Porque... eu quero. — respondi, com respiração ofegante, enquanto tentava conter as batidas, inesperadamente, aceleradas do meu coração. Ele fitou-me em silêncio por um longo momento, como se tentasse me desvendar, como sempre fazia. Então, muito vagarosamente, abaixou-se diante do meu corpo nu, seus olhos brilhantes percorrendo cada centímetro da minha nudez, sua mão estendida para a toalha caída aos meus pés. Seu rosto estava tão próximo ao meu corpo que eu podia sentir o ar quente de sua respiração, acariciando minha pele, fazendo-a arrepiar-se, involuntariamente. Então, ele pegou a toalha do chão, enrolando-a de volta em meu corpo, sem que eu compreendesse sua atitude.

— Você não precisa fazer isso, Luana. Eu jamais vou me afastar de você, mesmo que sejamos apenas amigos. — ele falou, sua respiração ainda ofegante. Eu o fitei embaraçada. Gostaria de dizer-lhe que, a princípio, pretendia tornar-me sua, apenas para não perdê-lo, mas que, quando ele me tocara eu fora dominada pelo mais primitivo dos desejos. No entanto, as palavras não atravessavam o nó em minha garganta, formado pelo fato de que ele percebera minhas intenções, fazendo-me sentir o mais baixo dos seres humanos. — Mas eu quero ficar com você. — foi o que consegui dizer. — Não, Luana, você não quer. Não verdadeiramente. — Como você pode acreditar que conhece meus sentimentos mais que eu? — Eu sei o suficiente, Luana. Sei que você ainda ama Daniel e que primeiro precisa se esquecer dele, para só então aprender a me amar... como eu te amo. — Eu sei... mas Daniel está morto e você está vivo. — eu sentia que as lágrimas começavam a aflorar em meus olhos, por causa da lembrança de Daniel. — Não quero perder você também, Gustavo. — Não se preocupe com isso, você não vai me perder. Estarei sempre ao seu lado, eu prometo. — a voz dele era trêmula e sussurrada. — Mas não estou preparado para isso. Fico me perguntando se você realmente me quer, ou se... — ele hesitou, antes de continuar. — ou se está fingindo, como fazia com Douglas, apenas para que eu não me afaste de você. Neste momento, o desejo ardente deu lugar a um sentimento de humilhação dentro de mim. Eu sequer poderia desmenti-lo, pois, até certo ponto, ele tinha razão. A princípio, eu realmente pretendia fingir, porém tudo mudara, quando seus lábios tocaram os meus. Mas não me atreveria a dizer isso a ele, pois certamente não acreditaria em mim. Sem saber o que dizer, ou fazer, corri para o corredor, desnorteada, passando apressadamente por ele, seguindo para o meu quarto. Chegando lá, deitei-me na cama, mas não consegui relaxar, minha mente invadida por um turbilhão de pensamentos sem nexo. Ainda podia sentir o gosto dos lábios de Gustavo sobre os meus, as sensações intensas, indefiníveis e completamente inesperadas que me despertara. Era o mesmo turbilhão de emoções que sentira quando me encontrava nos braços de Daniel, diferente, mas ao mesmo tempo parecido. Com Daniel, tudo era mais intenso, talvez devido á situação de perigo em que, constantemente, nos encontrávamos. Ele também era mais parecido comigo, impulsivo, cabeça quente. Com Gustavo, eu tinha a paz que não tivera com Daniel, ele era muito mais afetuoso, carinhoso e amigo, tudo ao seu lado era mais sossegado e tranqüilo. Por que eu não conseguia parar de pensar nele, se na verdade meu amor pertencia e sempre pertenceria a Daniel? Seria possível amar dois homens ao mesmo tempo? Durante restante da noite, não consegui adormecer. Ansiava pelo amanhecer, quando poderia sair para a rua, desapercebida, antes que Gustavo despertasse. Não me atreveria a encará-lo no rosto depois de todos os acontecimentos daquela noite, devido à humilhação e rejeição a que me submetera, embora eu soubesse que não fora essa sua intenção. O erro fora todo meu, ao tentara seduzi-lo, entregar-lhe meu corpo em troca de sua amizade. Apesar de tudo, não me sentia arrependida por isso, pois só assim fora capaz de perceber que meus sentimentos por ele estendiamse muito além da simples amizade. Quando os primeiros raios da luz do dia penetraram o quarto, tomei um demorado banho, vesti calça jeans, top de malha e um grosso casaco de lã. Prendi meus cabelos no alto da cabeça e os ocultei com um chapéu de abas compridas, coloquei um par de óculos escuros, para que não fosse reconhecida pela população, e, em seguida, deixei o apartamento, na ponta dos pés, para não

despertar a atenção de Gustavo. Ao alcançar as ruas, movimentadas e barulhentas, logo um zunido se instalou em minha cabeça, incomodamente, fazendo-me desejar, ardentemente, voltar para Boa Esperança. Mas esta, seria a última coisa que eu faria. Douglas ainda estava sob suspeita de ter assassinado meu bebê, eu ainda investigaria o caso, por hora, precisava encontrar meu apartamento, meu futuro lar. Decidida, entrei no ônibus coletivo que me deixou no centro de São Paulo, onde a movimentação, de carros e de pedestres, era ainda mais intensa. Começaria pela imobiliária na qual ficara de vir hoje com Gustavo, já que havia acabado de fechar quando chegamos na tarde anterior. Parei diante do prédio, certificando-me de que se tratava do lugar certo e entrei, encontrando todos os escritórios ainda fechados, pois chegara cedo demais. Pensando em dar uma examinada nos classificados, onde se encontravam muitos imóveis à venda, dirigi-me a uma banca de jornais, onde deparei-me com várias fotos minhas, nas capas de inúmeras revistas esportivas. LUANA, A NOVA REVELAÇÃO DO HIPISMO BRASILEIRO, era o título de uma das revistas. Examinei todas elas e descobri que nem todas falavam sobre minha vida pessoal, abordando, com exaltação, minha vitória no campeonato de hipismo. Sentindo-me profundamente feliz, com tal descoberta, comprei o jornal, certificando-me de que o atendente da banca não me reconhecera e afastei-me. Sentei-me em um banco da praça e procurei a página dos classificados. As ofertas de imóveis eram muitas, entre as quais, uma em especial atraiu-me a atenção. Tratava-se de uma pequena chácara, à venda no interior do estado. Examinei o seu preço e constatei que, se vendesse as jóias, poderia comprá-la. Sem pensar duas vezes, fui até um orelhão próximo e liguei para o carretor responsável, combinando de me encontrar com ele dali há uma hora, ali mesmo onde estava. Enquanto aguardava sua chegada, voltei a sentar-me no banco da praça, meus pensamentos me levando até Gustavo, ao sabor de seus lábios, ao calor do seu corpo. Como pude passar tanto tempo ao seu lado, sem descobrir aqueles sentimentos? Fechei os meus olhos e imaginei como teria sido se tivéssemos ido até o fim, na noite anterior. Visualizei, mentalmente, nossos corpos nus, entrelaçados um no outro, sobre a cama, encharcados de suor. Neste instante, um calor intenso tomou conta de mim e eu abri os meus olhos, tentando desviar meus pensamentos para outra direção. Exatamente uma hora depois, um homem baixo, de postura altiva, aproximou-se de mim, perguntando: — Você é Luana? — Sim. E você é o corretor. — eu afirmei, reconhecendo a descrição que ele me dera, de si próprio, pelo telefone. — Muito prazer, sou Ricardo Lopes. — ele estendeu-me a mão em cumprimento. — E então, está preparada para conhecer sua nova propriedade? Eu retribuí ao cumprimento, apertando sua mão e falei: — Tudo bem, mas temos que ir no seu carro, pois deixei o meu com meu marido esta manhã. — era mais seguro, para uma mulher casada, não ser passada para trás. Os homens costumavam respeitar mais uns aos outros que às mulheres, principalmente as solteiras, como eu. Cerca de duas horas depois, eu e o corretor deixamos o perímetro urbano da grande São Paulo, seguindo por uma região totalmente arborizada, no carro dele, um Opala, 2006. Ali, o cheiro de ar puro invadia minhas narinas, trazendo-me uma indescritível sensação de paz e tranqulidade. Seguimos por mais meia hora, o homem tagarelando sem parar, enquanto eu o ouvia sem lhe dar muita atenção, até que deixamos a auto estrada, seguindo por uma pequena estrada de chão esburacada, o capim alto, como se há muito ninguém trafegasse por ali. Mais quarenta minutos de

percurso e, por fim, avistamos o portão de entrada da propriedade: uma velha porteira de madeira, que parecia cair aos pedaços. Logo que a atravessamos, avistamos a sede, uma pequena casa de alvenaria, tosca, rodeada pelo mato por todos os lados, a qual parecia tão velha quanto a porteira. Ao longo, estendiam-se muitos quilômetros de terras, recobertas pelo mato alto, como se há muito se encontrasse desabitada. — Sei que parece meio abandonado logo de vista, mas com alguns cuidados, se tornará um lugar sensacional. — o corretor começava a fazer sua propaganda. — É maravilhoso! — falei, observando o lugar, visualizando, mentalmente, como ficaria após ser limpo do mato e com um curral repleto de cavalos, ao centro. A casa, é claro, precisaria ser reformada, mas esse era o menor dos problemas, com o dinheiro que ganharia, nas próximas competições, faria aquilo rapidamente, mesmo após ter me mudado para ela. — Vou ficar com ela, preciso apenas falar com meu marido antes. Eram quase duas horas da tarde quando o corretor de imóveis deixou-me em frente ao prédio onde Gustavo morava. Á medida em que o entardecer avançava, o frio se intensificava. Desci do Opala, diante do prédio, cruzando os meus braços na frente do meu corpo, tentando proteger-me do frio. Ergui o meu olhar para o ápice do edifício, sentindo meu coração bater descompassado no peito, com a perspectiva de reencontrar Gustavo, impressionada com o fato de tudo ter mudado, tão de repente, entre nós dois. Ao entrar no saguão do prédio, deparei-me com Olívia, sentada em uma poltrona a um canto, imóvel, cabisbaixa. Ao me ver aproximar-me, ela ficou de pé, vindo ao meu encontro. Usava um par de óculos escuros tão grandes que ocultavam-lhe quase todo o rosto; um lenço estampado escondialhe os cabelos. Usava também um sobretudo cinza e sandálias de saltos altos. Sua aparência me lembrava o de uma espiã de um filme policial. — Posso conversar um pouco com você, Luana? — ela falou, com sua voz frágil e aguda. Estranhei a visita repentina e inesperada daquela mulher e mais ainda o fato de ter descoberto o endereço de Gustavo. No entanto, não podia negar-lhe uma conversa, depois de todo o sofrimento que causara a ela. — É claro. — respondi. — Você quer conversar aqui mesmo ou lá em cima? — Acho que lá em cima é melhor. Enquanto subíamos lado a lado pelo elevador, todas as fibras do meu corpo insistiam em me avisar de que eu corria perigo, o que não fazia o menor sentido, pois Olívia era uma pessoas inofensiva. Ao nos aproximarmos do apartamento, Carla estava saindo. — Ah, você apareceu. — disse ela, entregando-me a chave. — Gustavo estava te procurando como um desesperado. — Onde ele está? — perguntei. — Saiu para procurar você. Não me pergunte onde. Pode entrar, vou ligar para o celular dele e dizer que você já chegou. — Você já vai embora? — perguntei, apreensiva com a perspectiva de estar sozinha com Olívia, no interior do apartamento. — Vou. Tenho dentista marcado para hoje. Mas o almoço está pronto, basta você esquentar. Já está no micro ondas e tudo. — e a morena se afastou, rebolando, faceiramente, seu corpo voluptuoso. Eu e Olívia entramos no apartamento. Por trás dos seus óculos escuros, percebi que ela percorria seu olhar por todo o lugar.

— É um lugar agradável. — disse ela, com voz calma e meiga. — Sente-se, quer beber alguma coisa? — Não, obrigada. — ela permanecia em pé, atrás do sofá, de costas para a porta fechada. Obedecendo ao mais primitivo dos meus instintos, coloquei-me de trás do outro sofá, a cerca de cinco metros de distância dela. — E então, o que a traz a São Paulo? — perguntei, com nervosismo crescente. — Sabe... — ela começou, falando com voz calma e neutra, enquanto percorria a ponta do seu dedo, oculto pela luva, por sobre o encosto do sofá. Estaria em busca de um grão de poeira? — Douglas voltou ontem à noite ao sítio para te visitar. Senti a tensão crescer dentro de mim. — É mesmo? E o que foi que ele fez quando não me encontrou lá? — perguntei, as palavras fluindo mecanicamente, já que tinha todos os meus neurônios concentrados em Olívia, minha intuição me alertando do perigo que ela representava. — Aqueles empregados fofoqueiros falaram para ele que eu estive lá conversando com você. — a voz dela era neutra, desprovida de emoção. — Ele ficou uma fera comigo, voltou para casa no mesmo instante. — senti meu coração se apertar dentro do peito, enquanto ela continuava falando. — Você sabe o que foi que ele fez? — Não, eu não sei. — falei, mas sabia perfeitamente como Douglas agia quando estava enfurecido. Vagarosamente, ela tirou os óculos escuros e o lenço de sua cabeça, deixando à mostra o hematoma roxo em torno do seu olho direito e um enorme galo na testa. Instintivamente, afastei-me um pouco mais. — Ele me bateu, Luana, por causa de você. — a voz dela continuava calma, sem vida. — Fiquei sabendo por aqueles mesmos empregados fofoqueiros que ele sempre batia em você. Mas a mim, ele nunca tinha agredido, você sabia disso? — Não. Ela encarou-me em silêncio por um longo momento, então, enfiou sua mão por sob o seu sobretudo, de onde tirou um pequeno revólver calibre trinta e dois, cor de prata, reluzente. Vi a arma na mão dela e todo o meu corpo se contraiu de tensão. Em pânico, apelei: — Por favor, Olívia guarda essa arma. — ainda assim, permaneci imóvel, paralisada pelo medo. — Você tem idéia do que fui obrigada a fazer, por causa de você?! — agora a voz estava ligeiramente alterada. — O que? — perguntei, sem conseguir conter o pânico que me imobilizava. — Eu tive que matá-lo. — Ah, meu Deus, você o matou?! — Eu não ia deixar ele ficar me batendo, ia? — Claro que não. — eu não conseguia desviar meu olhar do revólver. — Eu não nasci para ser saco de pancadas... — ela se interrompeu, como se repreendesse a si mesma pelo tom exaltado de sua voz. — E você é a culpada por tudo isso, por me fazer tirar a vida do homem que eu amava. Por isso, você também merece morrer. Em poucos minutos, eu estaria morta. Não teria a oportunidade de me despedir de Gustavo, mas talvez reencontrasse Daniel, em outra vida. Apesar da perspectiva da morte, tão próxima, não consegui me mover, imobilizada por um pavor intenso. Ela engatilhou o revólver e o apontou mais para mim. Fechei os meus olhos a espera do tiro,

porém, neste momento, a porta se abriu e Gustavo entrou. Olívia virou a arma para a direção dele e disparou. Mas Gustavo foi mais rápido. Com uma agilidade que eu desconhecia ele possuir, jogou-se para o lado, caindo ao chão, livre da bala para si direcionada. Olívia apontou a arma para mim novamente, voltando a disparar. Com a mesma agilidade, anormal, de antes, Gustavo atirou-se sobre ela, imobilizando-a no chão, arrancando a arma de suas mãos. Mas era tarde demais, o projétil de bala perfurara meu corpo, queimando, insuportavelmente, minha carne, ferindo-a, num buraco de onde o sangue quente passou a jorrar abundantemente. Sem mais sentir minhas pernas, caí ao chão, sentindo-me invadida por um frio intenso, o qual só não fazia todo o meu corpo tremer, porque se encontrava fraco demais para executar qualquer movimento. Fechei os meus olhos e avistei Daniel, ao longe, chamando-me. — Daniel. — eu sussurrei o seu nome, quando o vi sorrir para mim, seu rosto de anjo iluminando-se. Ao longe, ouvi meu nome ser pronunciado e abri os meus olhos, enxergando o rosto de Gustavo, contorcido de uma angústia profunda, bem próximo ao meu. Desejei poder dizer-lhe que estava tudo bem, que me encontrava mergulhada em uma paz profunda, que partia ao encontro do outro amor da minha vida, mas não consegui pronunciar as palavras, pois me sentia cansada demais, precisava dormir. Tentei curvar meus lábios em um sorriso, para que ele percebesse que estava tudo bem e se acalmasse, mas não tive certeza se conseguira concluir o ato, pois já não mais tinha o domínio sobre os meus movimentos. Lentamente, fechei os meus olhos, indo ao encontro da escuridão que me puxava para si, como se tentasse me devorar, carregando, em meu íntimo, a certeza de que logo estaria nos braços de Daniel.

CAPÍTULO VIII

Reencontro

Quando abri os meus olhos, sentia-me muito leve, como se pudesse flutuar. Seria essa a sensação de estar em outro plano espiritual? Por isso os anjos podiam voar, pois eram leves demais. Percorri meu olhar ao redor, tentando assimilar a realidade na qual me encontrava, mas nada parecia fazer sentido, via apenas luzes fortes que ofuscavam meus olhos. Fechei-os novamente, e tornei a abri-los, constatando que me encontrava em uma enfermaria de hospital, deitada sobre um leito regulável. Era uma enfermaria luxuosa, como a da clínica da Dr. Valentina, embora não fosse a mesma. Haviam dois pequenos tubos enfiados em minhas narinas, as quais ligavam-se a um balão de oxigênio e um outro ligando uma agulha à veia da minha mão. Tentei levantar-me, mas me sentia muito cansada, sequer consegui me mover. Percebi que havia uma mão sobre a minha, de uma pessoa que se encontrava debruçada sobre a beirada do leito. Com muito esforço, consegui deslocar meu olhar para aquela direção e vi os cabelos castanhos de Gustavo, seu rosto afundado na beirada do leito, ao meu lado. Estava completamente imóvel, como se dormisse profundamente. Tentei chamar o seu nome e despertá-lo, mas a palavra se deteve em minha garganta extremamente seca. — Gustavo. — consegui balbuciar, depois de muitas tentativas. Ele ergueu o seu rosto, virando-se para mim, com um largo sorriso nos lábios. Tinha sua fisionomia muito cansada e abatida, a barba ligeiramente crescida. Provavelmente estivera ao meu lado durante todo o tempo em que permanecera desacordada. — Oi, garota, como está se sentindo? — ele perguntou. — Com sede. — murmurei, num gemido. — Eu não sei se você pode beber água, mas vou chamar o médico e ele dirá. — Não. — protestei, fazendo-o deter-se no seu trajeto até a porta do quarto. — Por favor, fique comigo um pouco, não me deixe aqui sozinha. — estivera por muito tempo, sozinha, mergulhada na escuridão, onde Daniel não se encontrava, como a princípio eu pensara. Precisava de Gustavo perto de mim, para me fazer acreditar que ainda estava viva. Atendendo ao meu pedido, ele se colocou ao meu lado, observando-me, com ternura em seus olhos cor de mel. — Ah, Luana, fiquei tão preocupado com você. — ele falou, com sua voz ligeiramente trêmula, enquanto acariciava meus cabelos, suavemente, com a ponta dos seus dedos. — Há quanto tempo estou aqui? — perguntei, fazendo um grande esforço para pronunciar as palavras. — Quatro dias. Eu o fitei espantada. — Tudo isso?! O que aconteceu? — A bala passou a poucos centímetros do seu coração, mas os médicos conseguiram extraí-la. Você

perdeu muito sangue, por isso passou tanto tempo desacordada. — E Douglas? Olívia o matou mesmo? — Ele está em estado de coma, com uma bala na cabeça. Os médicos dizem que ele pode acordar a qualquer momento, como também pode nunca mais despertar. — E Olívia? — Ela está na cadeia. Relembrei claramente o momento em que Olívia me dera o tiro. Se não fosse por Gustavo, eu não estaria viva agora. — Você salvou minha vida... — sussurrei. Neste momento, a porta do quarto se abriu e dois homens vestidos de branco entraram. — Vejam só, nossa bela adormecida recobrou os sentidos. — disse um deles, aproximando-se de mim, examinando meus olhos com uma pequena lanterna, ofuscando-me, desagradavelmente, as vistas. Depois, virou-se para Gustavo e, com tom de repreensão, perguntou: — Por que você não avisou que ela tinha acordado? — Porque... — Gustavo parecia embaraçado. — ... ela acabou de abrir os olhos. — Olá Luana, sou o Dr. Marcelo e este é o estagiário Felipe. Quero que nos diga como você está se sentindo. — o homem falou, observando-me de perto. Ambos pareciam muito jovens para exercerem o ofício de medicina. Tinham feições delicadas, a pele bem cuidada. Logo se percebia que pertenciam à famílias ricas. — Estou bem. — respondi. — Quando vou poder sair daqui? — Ainda vai demorar mais um pouco. — ele começou a examinar a parafernalha que se ligava a mim através dos tubos. — Você foi ferida em um lugar muito delicado, ainda precisa de muito cuidado. — ele começou a rabiscar o prontuário preso aos pés do leito. — Você quer comer alguma coisa? — desta vez foi o estagiário quem perguntou. — Não. Gostaria apenas de um refrigerante. — Bem, isso você não pode beber. Serve água gelada? — É, pode ser. Ele foi até o pequeno frigobar, a um canto do cômodo, retornando, segundos depois, com um copo com água nas mãos. Tentei levantar-me para solver o líquido, mas uma extrema fraqueza me impediu de me mover. Percebendo o fracasso de minha tentativa, Gustavo foi até a mim, erguendo minha cabeça com suas mãos, enquanto o estagiário recostava a borda do copo em meus lábios, permitindo-me beber a água. — Bem, então por enquanto é só. — falou o médico. — Daqui a pouco a enfermeira virá medicá-la. Lhe receitei alguns sedativos e remédio para a dor, para que possa descansar. — ele aproximou-se mais de mim. — Gostaria que soubesse que sou apreciador do hipismo e fiquei muito impressionado com seu desempenho no campeonato de Niterói. Sou seu mais novo admirador. — Obrigada. — agradeci, sentindo-me ligeiramente constrangida, pois se ele acompanhara o campeonato, certamente lera as notícias dos jornais, portanto, conhecia toda a minha trajetória de vida, meu passado e meu presente. — Há algumas pessoas lá fora, que querem falar com você. São repórteres e um policial, mas você só os receberá se quiser, não tem nenhuma obrigação. — o estagiário falou. — Não quero receber ninguém. — falei, o mais firmemente que consegui. — Tudo bem, ninguém entrará por aquela porta a menos que este seja o seu desejo. — o médico

assegurou-me. — Agora temos que ir. — ele se virou para Gustavo, falando com mais firmeza. — Qualquer mudança, nos avise imediatamente. Então, ambos deixaram o quarto. — Que cara chato! — Gustavo exclamou, ao ver os médicos saírem. Não pude deixar de sorrir da expressão amacabrunhada do seu rosto. Ao meu ver, ele se encontrava em meio a uma crise de ciúmes, pelo fato de o médico ter afirmado ser meu admirador. — Os repórteres estão mesmo aí fora? — perguntei, desanimada. — Aos montes. Quando saio daqui, tenho que passar pelos fundos. Eu o observei atentamente. Tinha o rosto muito abatido e cansado. Certamente, não saíra do meu lado durante aqueles quatro dias. Apesar de sentir-me culpada por sua imensa dedicação, por abandonar sua vida em prol de mim, agradeci, intimamente, aos céus por tê-lo ao meu lado, pois sem ele estaria completamente só. — Ah, Gustavo, eu sou um peso na sua vida. — falei, com amargura. — Nada disso. — Sou sim. Olha só o seu estado, parece que não come há três dias e tudo por minha causa. — Eu estou perfeitamente bem. É um prazer ficar aqui com você. — Então por que está tão abatido? — Bem... é que... eu já não como há uns três ou quatro dias... — ele usava seu tom brincalhão de sempre, forçando-me a sorrir. — Eu só sirvo para atrapalhar sua vida. — insisti, sentindo-me muito culpada por mantê-lo ali. Ele segurou minha mão, fitando-me profundamente nos olhos e falou: — Luana, será que você não consegue entender que é a minha vida? Neste instante, relembrei o momento em que nos beijamos, no apartamento dele, e desejei, profundamente, poder levantar-me daquela cama e atirar-me em seus braços. Sentir o gosto dos seus lábios sobre os meus novamente, o calor do seu corpo. Queria ir muito além das pouca carícias que trocamos naquela ocasião, até onde nosso desejo nos permitisse seguirmos. Passei toda a semana seguinte hospitalizada, na quase constante companhia de Gustavo, que deixava meu quarto apenas por alguns breves momentos, quando precisava se reunir com os demais integrantes da CBH, para tratarem de negócios. Logo no dia seguinte ao que despertei, consegui voltar a me alimentar, sentindo-me cada dia mais forte, o que, unido ao incentivo e carinho de Gustavo, logo me levaria à recuperação. Através do aparelho de TV, em meu quarto, eu acompanhava todo o escândalo retratado pela mídia ao meu respeito. Segundo os jornalistas, era mais uma fase em que eu atacava de vítima, quando no fundo era culpada por tudo o que acontecera. Quanto à Olívia, eles apontavam-na como sendo a verdadeira vítima de toda aquela estória, embora tivesse atirado no marido, à sangue frio. Apesar de aguardar seu julgamento na cadeia, por ter sido presa em flagrante, ela seria inocentada, pois alegara legítima defesa. Eu temia que esse dia chegasse e ela voltasse para concluir sua vingança. Quando dez dias de passaram, o ferimento da bala estava quase completamente cicatrizado e recebi alta do hospital. No entanto, não encontrava coragem para deixar o local, pois ali me sentia segura, protegida do assédio da imprensa e de um hipotético novo ataque de Olívia. Se saísse, todos cairiam em cima de mim, tanto os repórteres quanto a população. Já faziam dois dias que eu recebera alta e ainda não deixara o hospital. Como se tratava de

uma instituição particular, muito cara, não havia pressa de seus proprietários para que eu partisse, poderia permanecer ali durante meses, desde que estivesse pagando todas as despesas, as quais eram custeadas pelo cheque que recebera com a vitória no campeonato. Era mais uma tarde fria de quarta-feira, encontrava-me sentada ao leito, usando uma confortável camisola de algodão azul céu, ao lado de Gustavo, que tentava, a todo custo, me convencer a voltar para seu apartamento, argumentando que lá os repórteres também não poderiam entrar e logo toda a estória seria esquecida pela mídia e pela sociedade. — Mas lá só seremos nós dois, aqui pelo menos dispomos de muitos seguranças. — eu me referia aos seguranças do hospital, os quais vinham barrando, eficientemente, a entrada dos jornalistas. — Você não pode continuar morando em um hospital, Luana. — Gustavo falou. — Não há outro lugar onde possa me sentir segura. — Bem, eu descobri um lugar, para onde você pode ir e ninguém te encontrará lá. — Gustavo falou, com um brilho indefinível no olhar. — E que lugar seria esse? O país das Maravilhas? Ele hesitou antes de falar: — Não. Serra Azul. Eu o fitei perplexa. Desde que deixara Serra Azul, há quatro anos atrás, jamais mantivera contato com minha família, nem mesmo um breve telefonema. Ainda guardava, em meu peito, a mágoa por jamais ter sido amada por meu pai, o qual atribuía toda a sua atenção aos meus dois irmãos, enquanto que a mim apenas desferia desprezo. É claro que eu jamais fora uma filha exemplar, muito pelo contrário, era desordeira e impulsiva, porém este traço da minha personalidade, talvez tenha sido conseqüência do tratamento recebido por ele desde criança. Além do mais, as notícias dos jornais certamente já haviam chegado ao conhecimento de todos por lá, inclusive dos demais moradores da cidade, os quais, por motivo que eu desconhecia, também nunca gostaram de mim. Se voltasse, com todos conhecendo minha trajetória de prostituta, viciada em drogas, cúmplice de assassinato e amante de homem casado, provavelmente seria apedrejada nas ruas, pela conservadora e hostil população serrazulense. Se meu pai me expulsara de casa, por me flagrar fumando um cigarro de maconha, imaginava o que faria comigo, diante de tais acontecimentos. Minimamente não me deixaria entrar em sua casa. — Você só pode estar brincando comigo. — falei. — E por que não, Luana? Lá, além de você estar livre da imprensa, ainda poderá rever sua família. — Eu já te contei que fui expulsa de casa? Se aparecesse por lá, meu pai não me deixaria nem entrar em casa. — Ele não pode te impedir. — havia algo de misterioso no tom das palavras dele. — Como assim? — perguntei, desconfiada. Ele aproximou-se mais de mim, segurando minha mão entre as suas. Era a primeira vez que chegava tão perto desde que nos beijamos. — Luana, não fique zangada comigo, OK? Mas liguei para Serra Azul e conversei com sua mãe. De súbito, meu coração se apertou dentro do peito. Minha mãe tão amada, fora a única pessoa que me amara naquele lugar. — Como é que ela está? — perguntei, com meus olhos marejados de lágrimas. — Está com saudades de você e anseia por te ver novamente.

— Você disse que pretendia tentar me convencer a voltar lá? — Disse sim. E ela ficou extremamente feliz com idéia. — E quanto ao meu pai, o que ele acha disso? — Não sei. Lamento te falar isso, Luana, mas seu pai teve um ataque de derrame e está de cadeira de rodas. Não consegue mais andar ou falar. Por isso te digo que não poderá te impedir de entrar em casa. De repente, a possibilidade de voltar a Serra Azul, de rever minha mãe e meus irmãos, me parecia tão real, que cogitei sua concretização. No entanto, ainda precisava pensar a respeito, medir o prós e os contras, especular se valeria à pena enfrentar toda aquela população, ver meu pai, — que embora não me amasse, ainda era meu pai —, em um cadeira de rodas, apenas para fugir dos meus problemas. — Se você for para lá, não estará apenas fugindo dos seus problemas mas também levando alegria á sua mãe e a si própria. Neste momento, tive a impressão de que Gustavo, realmente tinha o poder de ler meus pensamentos, talvez ele fosse um telepata e eu ainda não soubesse. A agilidade com que agira, quando aniquilara Olívia, no momento em ela atirara em nós dois, fora bastante anormal para um ser humano. — E então, o que você acha? — ele perguntou, despertando-me dos meus devaneios. — E por acaso você pretende ir comigo? — Mas é claro que sim, Luana. Há muito tempo estou planejando tirar umas férias, será a oportunidade perfeita. E quando voltarmos, a imprensa já nem mais se lembrará de você. Era uma proposta realmente tentadora, mais uma oportunidade de ser feliz que Gustavo me proporcionava. Não espera nada além disso dele: uma busca constante pela minha felicidade. — Tudo bem, mas pode ir se preparando para ver o que é ser pobre, quando estiver na casa onde nasci. Seu rosto se iluminou num largo sorriso. — Isso é um sim? — Você sabe que sempre acaba me convencendo, não é? — Eu te garanto, Luana, você não vai se arrepender. Então, ele me abraçou, ternamente, como fazíamos de costume. No entanto, nem tudo estava igual entre nós agora, havíamos experimentado a paixão existente entre nossos corpos, a qual se tornara inevitável. Eu senti o contato do seu corpo contra o meu e uma onda de calor, já conhecida, me invadiu. Lentamente, deslizei os meus lábios através da pele do seu pescoço, até alcançar os seu lábios, onde pousei os meus, movimentando-os sofregamente, exigindo uma reação. Sua resposta foi rápida. Logo ele entreabriu os seus lábios para corresponder ao beijo, enquanto eu começava a acariciar, o seu peito, com a ponta dos meus dedos, por sob o tecido de sua camisa. — Pára com isso, Luana, você está doente... — ele falou, com respiração ofegante, interrompendo o beijo. — Mas não estou morta. — falei, enquanto continuava a acariciá-lo, cada vez mais intimamente. — Por favor, Luana, nós estamos em um hospital, a qualquer momento... — Gustavo. — eu o interrompi, firmemente. — O que?

— Cala a boca e me beija. Ele refletiu por um breve momento e, então, me atendeu, tomando meus lábios com os seus, num beijo ávido, faminto e apaixonado, quase me fazendo perder o fôlego. Depois, deslizou sua boca, quente e úmida pelo beijo, através da pele do meu pescoço, até alcançar o meu colo, beijandoo suavemente. Dominada por um desejo ardente, o qual parecia incendiar-me por dentro, livrei-me rapidamente da camisola, passando a ajudá-lo a despir-se também. Ansiava, desesperadamente, por um contato mais íntimo com seu corpo, o qual logo veio, quando ele deitou-se nu, sobre mim, voltando a beijar-me nos lábios, enquanto que, com as mãos, acariciava todo o meu corpo, deixando um rastro de fogo por onde passava. — Ah, Luana. — ele sussurrou, com respiração ofegante. — Tenho medo de machucar você, o seu ferimento. — Fique tranqüilo, se machucar eu aviso. — Mas... precisamos trancar a porta, estamos em um hospital. — Deixa que eu faço isso. — falei, temendo que ele fugisse de mim novamente, negando-me aquele momento pelo qual eu tanto ansiava Muito rapidamente, fui até a porta e girei a chave na fechadura, trancando-a. Agora estávamos completamente sós e pertencíamos um ao outro. Dali, de onde estava, em pé diante da porta, contemplei seu corpo, completamente nu, estendido sobre o leito estreito, totalmente à vontade. Constatei que tinha o corpo perfeito: os músculos do peito bem definidos; o abdômen firme; as coxas grossas, musculosas e ligeiramente peludas. Como eu podia não ter reparado naquele corpo antes? Percebi que ele me observava também, examinando com olhos brilhantes, cada detalhe da minha plena nudez. Perguntei-me, intimamente, se ele não sentia repulsa pelo ferimento, ainda coberto por um curativo, na altura do meu ombro. Porém, constatei que não, ao observar o profundo ardor estampado em seus olhos cor de mel. Seguindo o desejo que me dominava por completo, voltei para os seus braços, quando juntos, nos rendemos à paixão ardente que nos consumia, entregando-nos a tal sentimento, até a completa exaustão, quando adormecemos, quase que ao mesmo tempo, nossos corpos nus, unidos num só, sobre o pequeno leito do hospital. Algum tempo depois, uma brusca batida na porta despertou-me do meu sono profundo e tranqüilo. Ao abrir os meus olhos, por uma fração de segundos, tive a impressão de que me encontrava nos braços de Daniel, tão intensa era a minha felicidade. Mas ele não era Daniel, e sim Gustavo, que já acordado, observava meu rosto. Rapidamente, fechei os meus olhos, para que ele não percebesse o que eu acabara de imaginar, pois, por mais incrível que pudesse parecer, ele tinha o dom de adivinhar os meus pensamentos, apenas ao olhar em meus olhos, tão grande era seu poder de me compreender. — Você está bem? — ele perguntou, levantando-se, procurando suas roupas espalhadas ao redor. — Não poderia estar mais feliz. — eu falei, com sinceridade. Houve uma nova batida na porta, o que nos fez vestir apressadamente. Após se vestir, Gustavo veio até a mim e abraçou-me, beijando-me suavemente nos lábios e disse: — Eu te amo, Luana. — Eu te amo, Daniel. — respondi, num impulso impensado. De repente, dei-me conta do meu erro, mas era tarde demais, Gustavo já percebera e afastava-se de mim, com uma amargura profunda

estampada em seu olhar. — Por favor, me desculpe. — Pedi, com a minha voz trêmula, embora tivesse a certeza de que meu engano fora imperdoável. — Abram a porta. O que vocês dois estão fazendo aí trancados. — a voz partiu do outro lado da porta, era do Dr. Marcelo. Com muita agilidade, Gustavo foi até a porta e a destrancou, permitindo a entrada do médico. Este percorreu seu olhar ao redor, examinando a desordem no cômodo: o leito desfeito; roupas espalhadas; nossos corpos suados e cabelos emaranhados. Evidências do nosso recente ato de amor. — Vocês por acaso estão pensando que isso aqui é motel?! — ele esbravejou. — Não, nós sabemos que isso aqui não é motel, mas pelo preço que estamos pagando por essa pocilga, acho que temos direito em o mínimo de privacidade. — Gustavo explodiu, sua voz alterada, como eu jamais vira antes. Na realidade estava descontando no médico, a raiva que sentia por mim, gostaria de estar esbravejando a mim e não a ele, por ter trocado seu nome pelo de Daniel, no momento em que me declarava seu amor. — Não sei se posso admitir a permanência de vocês aqui depois desse episódio. Este é um hospital renomado! — Pois faça o que bem quiser! — com tais palavras, Gustavo pegou seu casaco de sobre o armário e deixou o aposento, caminhando apressada e furiosamente. Sentindo-me como se mergulhasse em um profundo poço de escuridão, sentei-me na beirada do leito, cabisbaixa, enquanto o médico me observa em silêncio. Percebia naquele momento, que magoara Gustavo ainda mais do que imaginara. Talvez nunca mais voltasse a vê-lo, o que me seria insuportável, pois era incapaz de viver sem ele, sem o seu amor, sem sua eterna dedicação. O que seria da minha vida dali em diante, sem Gustavo ao meu lado, pra me resgatar do profundo poço de depressão, no qual me encontrava mergulhada desde que Daniel partira? Daniel... ele era o culpado de tudo, por ocupar meus pensamentos vinte e quatro horas por dia, impedindo-me de ser feliz ao lado de um novo amor. Gostaria de ser capaz de odiá-lo, pois assim não o amaria tanto. — O que foi que aconteceu aqui? — a voz do Dr. Marcelo, despertou-me dos devaneios. — Você sabe o que aconteceu aqui. — respondi, sem pensar em minhas palavras, minha mente totalmente absorta pelo que acabara de acontecer, pelo meu erro impensado. Será que Gustavo seria capaz de me perdoar? Talvez não, pois, quando eu ainda desconhecia seus verdadeiros sentimentos em relação a mim, revelara que não se declarava porque sua amada vivia pensando em outro homem, por temer ser rejeitado. Acabara de constatar a veracidade de suas suposições. — Eu não estou falando do sexo, apesar de achar que você ainda não está recuperada o suficiente para praticar esse tipo de atividade. Mas de vocês dois. Vocês brigaram? — Eu acho que sim...— eu continuava cabisbaixa, sem fitar o rosto do médico. — Não faça essa cara, eu tenho certeza de que ele vai voltar. Do jeito que ele esteve ao seu lado, enquanto você estava desacordada, seria incapaz de te deixar. Pela primeira vez, consegui erguer meu olhar, fitando o rosto do homem em pé à minha frente, suas palavras abrandando meu coração com a esperança. — Você acha mesmo? — perguntei, num sussurro. — Claro que acho. Ele te ama, não vai te deixar assim tão facilmente. — ele olhou o relógio em seu pulso e continuou: — Agora com licença, preciso ver os meus pacientes. — em seguida, deu-me as costas e partiu, fechando a porta atrás de si. Se ao menos eu pudesse ir atrás de Gustavo, para tentar convencê-lo a me perdoar, não me

sentiria tão aflita. No entanto, encontrava-me ali enjaulada, encurralada pelos repórteres, sem saber se ele voltaria. Angustiada arrisquei um olhar para fora, para baixo, através de uma pequena fresta na cortina da janela, constatando que os jornalista ainda se aglomeravam, diante da instituição, em grande número, esperando por minha saída. Ocultando-me rapidamente do campo de visão deles, deitei-me sobre o pequeno leito, onde o cheiro de Gustavo ainda impregnava os lençóis. Relembrei os momentos em seus braços, o sabor dos seus lábios, suas mãos acariciando minha pele e dei início a um pranto de pura angústia, pois o amava perdidamente, embora meu coração se recusasse a afastar Daniel. Até quando seu fantasma me assombraria, impedindo-me de ser feliz? As horas se arrastavam lentamente, enquanto eu permanecia imóvel sobre o leito, pensando em como seria minha vida sem Gustavo, o que faria dali em diante. Jamais me sentira tão só, como naquele momento. Era como se estivesse perdida, sem rumo. Gostaria de poder voltar atrás, para ter outra chance de não estragar nossa amizade com meus desejos carnais, pois se ainda o tivesse ao meu lado, mesmo que apenas como amigo, não estaria tão só. Naqueles últimos meses Gustavo se tornara meu tudo, como o ar que eu precisava para abastecer meus pulmões com vida, sem o qual não sobreviveria. Jamais cogitei ficar sem ele e agora era como se não tivesse mais o chão sob os meus pés. A noite caiu e a auxiliar de serviços gerais do hospital apareceu para entregar-me o jantar, mas não consegui tocar a comida, meu organismo ferreteado pela angústia, desprovido de apetite. Ainda me encontrava imóvel, deitada sobre o pequeno leito, meus olhos inchados pelo pranto, quando houve uma batida leve na porta. Certamente se tratava do Dr. Marcelo novamente. — Pode entrar. — falei, sem me virar para a direção da porta, meus olhos pensativos, fitando a parede, embora não a enxergassem realmente. Ouvi a porta se abrindo e passos lentos aproximando-se de mim. Imediatamente reconheci o som daqueles passos, tão queridos e familiares e meu coração disparou dentro do peito. Emocionada, virei-me para fitar o rosto de Gustavo. — Você voltou... — falei, com voz trêmula e sussurrada. Detendo-se há cerca de dois metros de distância de mim, com uma sacola na mão, ele fioume me silêncio por um longo momento, uma profunda amargura expressada em seus olhos cor de mel. Depois disse: — Como eu poderia não voltar, Luana, se sem você mal consigo respirar? Com movimentos rápidos, impensados, pulei de cima do leito e corri para abraçá-lo, no entanto, antes que o alcançasse, ele me impediu, segurando os meus braços estendidos para a frente, dizendo: — Por favor, Luana, eu preciso de tempo, ta? — Olha, me desculpe ter trocado seu nome pelo de Daniel, mas... — Faz um favor pra mim? — Gustavo me interrompeu. — O que? — Não toca mais no nome desse cara perto de mim. — Tudo bem, me desculpe. — eu concordei, embora acreditasse que não fazia o menor sentido ele sentir ciúmes de alguém que já morrera. Sem desviar meu olhar do rosto dele, sentei-me de volta no leito, meu coração ainda acelerado no peito, pela felicidade em revê-lo. Registrava, minuciosamente, cada movimento seu, enquanto aproximava-se da poltrona e sentava-se, cruzando uma perna sobre a outra. Percebi o

quanto estava apaixonada, que seria incapaz de viver sem ele, pois o amava perdidamente. — E então, está pronta para ir à Serra Azul? — ele perguntou. Neste momento, senti um aperto no coração. — Você ainda vai comigo? — Mas é claro que eu vou! Você acha que vou perder essa oportunidade de conhecer os artistas que te trouxeram ao mundo? — embora o tom de suas palavras fossem de descontração e bom humor, a expressão dos seus olhos não acompanhavam a intenção. — E quando vamos? — Logo pela manhã. Já até comprei as passagens. Nesse instante, tive que conter o impulso de abraçá-lo, pois graças a ele, dali a mais ou menos vinte e quatro horas, eu estaria na presença da minha mãe e meus irmãos, apesar de que, para tanto, teria também que encarar o meu pai. Aquela noite, Gustavo dormiu em meu quarto no hospital, embora não me tocasse nem pelo mais breve dos instantes. Dormiu sobre um colchonete estendido ao chão. Apesar de tentar agir com descontração e bom humor, como era de seu costume, durante todo o tempo, tinha seu olhar triste, sombrio. Eu o havia magoado profundamente, quando trocara seu nome pelo de Daniel. Apenas o amor infinito que sentia por mim, o impedia de me deixar. Estávamos presos um ao outro por esse sentimento, inesperado para mim e incessante para ele. Era como se dependêssemos um do outro para existirmos. Deixamos o hospital às seis horas da manhã seguinte. Graças a uma peruca negra e um par de óculos escuros que Gustavo trouxera, pude sair da instituição desapercebida pelos repórteres. Ele trouxera também nossas malas prontas e seguimos diretamente para o aeroporto, onde pegamos um vôo para a cidade de Imperatriz, no Maranhão, o aeroporto mais próximo a Serra Azul. Chegando lá, fomos atingidos pela brusca mudança de temperatura: enquanto que em São Paulo fazia um frio de dez grau centígrados, em Imperatriz o calor era escaldante, propiciado pelo sol tórrido. Em uma agência próxima ao aeroporto, Gustavo alugou um carro, uma pick-up Mitsubishi, cor de prata metálico e após fazermos um rápido lanche, no centro de Imperatriz, seguimos para Serra Azul, pela rodovia BR 010. Alguns quilômetros adiante, deixamos a rodovia e seguimos por uma estrada asfaltada que dava acesso à pequena cidade. Á medida em que nos aproximávamos do nosso destino, um misto de receio e ansiedade crescia dentro de mim. Temia a reação dos moradores diante de minha presença, pois além de jamais terem demonstrado simpatia alguma pela minha pessoa, agora estavam à par de todas as notícias, disseminadas pela mídia. Certamente conheciam minha trajetória como garota de programa; cúmplice de assassinato e amante de homem casado. Definitivamente, não era um bom currículo para eles. Por outro lado, sentia-me ansiosa com a perspectiva de rever minha família. Cerca de meia hora após termos pegado a estrada, adentramos a pequena cidade, onde até o aroma impregnado no ar me era familiar. Um odor peculiar que fez-me relembrar as muitas ocasiões em que saíra de casa, à noite, às escondidas, para encontrar meus muitos namorados. Atravessávamos a rua principal, a única com calçamento, coberta por pedras de pralepípedios, quando constatei que, ali, tudo continuava exatamente igual a quando eu partira, há quatro anos atrás. Nada havia mudado, como se o tempo não tivesse passado: a rua, era dividida ao meio por um canteiro repleto de imensas mangueiras, sob as sombras das quais, algumas pessoas se protegiam do sol e do intenso calor, sentados em cadeiras de “macarrão”, jogando conversa fora, certamente falando sobre a vida alheia. Apesar de se tratar de uma quinta-feira, haviam muitas

pessoas sentadas diante das sacadas de suas casas, conversando ou observando quem passava pela rua — agora todos os olhares se voltavam para nós, embora mantivéssemos os vidros escuros do carro fechados. —. Era impressionante, como aquela cena, um dia casual para mim, agora me parecia estranha. Por que aquela gente não procurava o que fazer? Por que não trabalhavam em busca de reverterem a situação de extrema pobreza em que viviam? Ao longo da rua, as casas ainda eram as mesmas, porém agora mais velhas, suas pinturas desgastadas pelo tempo. Vi o posto de saúde, instalado em uma pequena moradia; a farmácia do Sr. Severino; a prefeitura; o fórum; a sede da assistência social. Órgãos públicos que funcionavam em pequenas sedes residenciais. Ao deixarmos a avenida principal, adentrando uma rua larga, sem calçamento, onde a situação de pobreza da população parecia ainda pior, podia-se ver crianças descalças, barrigudas e desnutridas, brincando pela rua; cenas nas quais pessoas que possuíam um pouco mais de recursos financeiros, portavam-se com patética e naturalizada altivez, diante daqueles que não tinham nada, num retrato ridículo e em preto e branco da divisão entre as classes sociais; alguns bêbados cambaleavam por ali; via-se também algumas carroças puxadas por cavalos e mais pessoas sentadas nas calçadas de suas residências. Tudo exatamente igual a quando eu partira, embora parecesse diferente aos meus olhos mais vividos. Apesar da situação economicamente desfavorecida em que vivia, a população serrazulense atribuía importância, prioritária, à aparência. Podia-se ver jovens moças e rapazes usando roupas e cortes de cabelos elegantes, seguindo a mesma tendência de moda, num visual tão semelhante, que pareciam estar uniformizados. Aqueles que não tinham condições de seguir a moda, eram visivelmente excluídos pelos demais. Pouco tempo depois, seguindo as minhas instruções, Gustavo estacionou o carro diante da casa dos meus pais. Era exatamente a mesma: construída de alvenaria, as paredes sem reboco, com uma pequena varanda na frente. Como nas demais moradias da cidade, ali não havia cerca nem muro. Olhei para a pequena casa e um pânico inexplicável tomou conta de mim, impedindo-me de sair do carro. Podia relembrar claramente o momento em que Adalcino me expulsara daquela casa, em uma noite de sábado. Temia que a cena se repetisse agora. — O que foi? — Gustavo perguntou, ao ver o olhar com que observava a casa. — Será que é muito tarde pra gente voltar pra São Paulo? — Mas é claro que é. — ele saltou do veículo, fez a volta até a porta de passageiros, abriu-a e estendeu-me a mão. — Vamos lá, Luana, tenha coragem, sua mãe vai ficar muito feliz quando te ver. Então, respirei fundo e desci da pick-up, segurando a mão de Gustavo, um incômodo bolo se formando em meu estômago. Ainda de mãos dadas, aproximamo-nos da sacada. Embora a porta da frente estivesse escancarada, aparentemente não havia ninguém ali. — Mãe! — eu gritei, hesitante. Um minuto depois, avistei Lucilene, surgindo do interior da residência. Ela usava um antigo vestido de chita estampado; tinha o rosto muito mais enrugado e o corpo mais rechonchudo, que da última vez que a vira; a pele morena ganhara pequenas manchas causadas pelo sol; era baixinha; tinha cabelos grisalhos, presos em coque na altura da nuca e os olhos negros, sofridos. — Minha filha! — disse ela, com voz trêmula, vindo em minha direção, com seus braços abertos. Ao me abraçar, começou a chorar. Senti o calor familiar de seus braços e uma indefinível emoção tomou conta de mim, levando

as lágrimas aos meus olhos. — Mãe, que saudade... — murmurei, deixando as lágrimas rolarem pelo meu rosto. Ela afastou-se para observar minha face, seus olhos ainda marejados de lágrimas. Pousou, carinhosamente, as palmas de suas mãos sobre as laterais do meu rosto e disse: — Ah meu Deus, esperei tanto por esse momento. Eu nem acredito que você está aqui, minha filha querida. Eu segurei sua mão e virei-me para Gustavo, que nos observava em silêncio. — Mãe, quero te apresentar Gustavo. Ela o abraçou também, dizendo: — Nós nos falamos por telefone. Como vai você? — Muito bem. É um grande prazer conhecer a senhora pessoalmente. Então, Lucilene me abraçou novamente, depois segurou-me pela mão, conduzindo-me para o interior da casa, enquanto Gustavo nos seguia. Atravessamos a pequena varanda e a sala, mobiliada apenas com algumas poucas cadeiras de macarrão e uma pequena estante em mogno, portando uma televisão de quatorze polegadas e um aparelho de som antigo. Haviam alguns retratos dos integrantes da família, inclusive o meu, emoldurados na parede e o piso era de cimento queimado. Dali, seguiase a cozinha, onde havia uma imensa mesa de madeira tosca ao centro, um fogão, a geladeira o armário e a pia, de onde partiam duas portas, as quais davam acesso aos quartos. O banheiro, situava-se do lado de fora, exatamente como quando eu partira. Na cozinha, encontramos Adalcino, sentado em uma cadeira de rodas. Estava mais velho, seu rosto enrugado, os cabelos grisalhos. Encontrava-se completamente imóvel, seu olhar vazio, fitando o infinito. Abaixei-me ao seu lado e o chamei, porém ele não moveu um só músculo, como se ignorasse minha presença. — Ele não fala mais filha, também não reconhece mais as pessoas. — Lucilene falou. Apesar de tudo o que acontecera no passado, surpreendi-me ao constatar que sentira mais saudades dele do que imaginara e, mesmo que ele não sentisse o meu toque, o abracei ternamente. — Onde estão Adriana e Adailson? — perguntei. — Eles estão na roça, na colheita do arroz. Mas eu disse que você chegaria hoje, por isso voltarão para casa mais cedo. — Lucilene dirigiu-se para o fogão. — Vou servir o almoço, vocês devem estar com fome. — Não precisa se incomodar conosco, estamos muito bem. — Gustavo falou, com um largo sorriso nos lábios. Como ele conseguia ser sempre tão encantador? — Ah, eu não estou com fome, mas só de pensar na comida de minha mãe, já sinto meu estômago roncar. — eu declarei, sentando-me à mesa de madeira. — Além do mais não é incômodo algum. O almoço já está pronto, apenas esperando vocês. Falta só esquentar. — Lucilene completou. — Então, enquanto isso vou buscar nossas malas. — Gustavo falou. — Eu vou ajudar. — coloquei-me de pé. — Não precisa, Luana, você e sua mãe devem ter muito o que conversar. — em seguida, ele deixou a cozinha, retornando minutos depois, carregando todas as nossas malas. — Onde coloco? — Ah, vocês vão dormir aqui... — Lucilene se dirigiu na direção de uma das portas, interrompendose no meio do trajeto, perguntando: — Vocês dormem no mesmo quarto, não é?

Gustavo e eu nos entreolhamos, nossas faces enrubescendo-se, concomitantemente. — Dormimos sim. — apressei-me em responder. Após guardar as malas no quarto, Gustavo juntou-se a nós à mesa, onde comemos fava com galinha caipira ao molho pardo, a especialidade de Lucilene, prato preparado apenas em ocasiões especiais. Eu saboreava a comida com um apetite maior que o realmente existente, enquanto me perguntava o que Gustavo estava achando do prato. Embora ele desconhecesse a fava, a qual era inexistente no sul do país, comia com bastante interesse. Ao terminarmos a refeição, continuamos sentados ali, conversando, Lucilene me pondo a par dos últimos acontecimentos. Segundo seu relato, continuavam vivendo da agricultura de subsistência, plantando e colhendo tudo o que consumiam, sendo que a única renda da família era o um mísero benefício social fornecido pelo governo federal, dinheiro utilizado para a quitação das contas de energia elétrica e água encanada. Quanto a Adalcino, estava em estado vegetativo graças a um ataque de derrame, ocorrido há pouco mais de um ano, na ocasião em que ele acompanhara, pela televisão, a trajetória do meu seqüestro por Daniel. No instante em que os primeiros assassinatos foram divulgados pela mídia, ele soubera que se tratava de um caso de vingança, pelo massacre que, juntamente com os homens assassinados, cometera no passado. Lucilene acreditava que seu ataque se devia ao fato de eu me encontrar nas mãos de um assassino tão perigos, porém, particularmente, eu achava que ele apenas tivera medo de quando chegasse a sua vez de ser brutalmente assassinado, como foram seus companheiros de chacina. Adailson, meu irmão mais velho, de vinte e quatro anos de idade, há dois anos estava noivo de uma moça residente do sertão. Desde o derrame, dava continuidade ao trabalho na roça, no lugar de Adalcino, juntamente com minha irmã mais nova, Adriana, de dezoito anos. Lamentei aquele duro destino a que eles eram submetidos, pois devido à exigência de tal atividade, sequer podiam freqüentar a escola. Não tinham outra perspectiva de futuro, que não o de seguir os passos de nossos pais. Depois de ajudar Lucilene a lavar a louça, fui até o quintal, constatando que continuava o mesmo: todo sombreado por árvores frutíferas, como mangueiras e abacateiros. No imenso cajueiro, ainda existia o balanço de tábua, no qual eu costumava me balançar quando era criança. O jirau, também construído de tábuas, ao lado de uma bacia confeccionada com um gigantesco pneu de caminhão, e madeira, sob a sombra das árvores, ainda era utilizado para lavar as roupas. Era todo cercado por talos de bambu, amarrados com embira. As galinhas ciscavam livremente por todos os lados, emitindo sons familiares aos meus ouvidos. Por volta das quatro horas da tarde, Adailson e Adriana estavam de volta da roça. Ela foi a primeira a vir me abraçar. Estava completamente diferente de quando eu a vira pela última vez, quando era apenas uma adolescente magrela e raquítica. Se tornara uma linda moça; os cabelos cacheados longos e densos, cascateavam-lhe os ombros; a pele morena, queimada de sol, tinha um tom reluzente, meio acanelado; tinha os olhos negros e uma estatura visivelmente menor que a minha. Herdara o jeito expansivo de Lucilene. — Luana, como você está linda! — disse ela. — Esses anos no Rio realmente te fizeram bem! — Que nada, você é quem está linda! — eu respondi, com sinceridade. Adailsom, que veio me abraçar em seguida, era um belo rapaz; a pele morena; cabelos e olhos negros; apesar da baixa estatura, seu corpo era musculoso, másculo. Puxara a Adalcino, no jeito fechado e machista de ser. Não demonstrou tanta empolgação, quanto os demais, ao me ver. Todos sentamo-nos na varanda da casa, lado a lado, nas cadeiras de macarrão, quando o que

não faltava era assunto. Adriana queria saber, com detalhes, como era o Rio de Janeiro, a vida das pessoas e todas as opções de moda que uma cidade grande, como aquela, podia oferecer. Pergunteime se ela fazia parte do grupo de jovens “uniformizados” ou dos “excluídos” da cidade. Pressupondo pelas condições financeiras da família, deduzi que era destes segundos. Durante as conversas, percebi que todos evitavam falar sobre a ocasião do meu seqüestro, levado ao seu conhecimento pela difusão da mídia. Certamente devido ao fato de que o assunto expunha a verdade sobre o meu passado, ou seja, sobre a prostituição e as drogas. Seria um tema constrangedor para todos. Por volta das dezoito horas, Lucilene anunciou que serviria o jantar. Fui até o quarto, no qual fora hospedada, juntamente com Gustavo, em busca de uma muda de roupas limpas e descobri que os móveis eram os mesmo de quando eu dormia lá, durante toda a minha infância e adolescência: uma cama de solteiro, um guarda roupas e uma penteadeira de madeira velhos. Havia, ainda uma janela de madeira que dava acesso ao quintal. Naquele pequeno cômodo, deparei-me com uma imensidão de lembranças do passado, algumas boas, como quando Lucilene contava estórias de trancoso — nome atribuído, pelos nordestinos, às estórias de terror. —, para mim e Adriana e outras ruins, como quando Adalcino descobria minhas fugas durante a noite, para namorar, e me castigava com surras de cinturão. Durante o jantar, quando foram servidas as sobras da fava e da galinha do almoço, todos se reuniram em trono da mesa da cozinha, conversando descontraidamente. Todos já haviam se rendido ao carisma de Gustavo, afeiçoando-se a ele, inclusive Adailsom, o mais reservado da família. Ele conversava mais com Gustavo que comigo. Adalcino também encontrava-se à mesa, em sua cadeira de rodas, imóvel, silencioso, fitando o vazio à sua frente. Após o jantar, eu Lucilene e Adriana ocupamo-nos com a organização da cozinha, enquanto que os demais se dirigiram para a varanda, para jogar conversa fora. Era mais uma das injustiças da cultura nordestina, que as tarefas domésticas fossem atribuídas exclusivamente às mulheres, sem direito a contestações. Ao terminarmos os afazeres da cozinha, fomos nos juntar aos homens, na varanda, quando as conversas estenderam-se por mais algumas horas, até que, por fim, todos se recolheram. No pequeno quarto, troquei o top e o jeans por uma camisola de algodão branca e espicheime sobre a cama desconfortável, porém limpa, sentindo-me profundamente exausta. Ao lado, Gustavo estendia o colchonete no chão. Deitei-me de lado, apoiando minha cabeça sobre o cotovelo e o fitei, aturdida. — Eu não acredito que você trouxe o colchonete de São Paulo! — falei. — É bom ser precavido. Nunca se sabe quando se vai precisar. — Mas você não está precisando agora, aqui tem lugar para nós dois. Porém, ignorando-me, ele deitou-se de lado sobre o clchonete, dando-me as costas. — Boa noite, Luana. — falou. Num impulso, escorreguei da cama para o colchonete, deitando-me ao seu lado, enlaçando meus braços em torno do seu corpo. Num gesto rápido, Gustavo se desvencilhou do meu abraço, afastando-se de mim, colocando-se de pé. — Dá pra você voltar pra cama, Luana? — ele falou, sem fitar o meu rosto. Mas eu o queria, e estava determinada. Pondo-me de pé, aproximei-me novamente dele, movendo meu corpo de encontro ao seu, provocantemente, enquanto enlaçava meus braços em torno do seu pescoço.

— Não, até que você me dê o que eu quero. — sussurrei, com respiração ofegante, o desejo tomando conta de mim. Ele ainda relutou, tentando evitar seus próprios sentimentos, mas era inútil, eu era a mulher que ele amava e sabia perfeitamente como seduzir um homem. Por fim, rendendo-se ao desejo que o invadia também, ele tomou os mais lábios, num beijo ávido, apaixonado, quase tirando-me o fôlego, ao mesmo tempo em que comprimia mais seu corpo contra o meu, arrancando-me um gemido de puro prazer. — Ah, Luana, porque não consigo resistir a você...? — ele falou, com respiração ofegante, enquanto eu deslizava, suavemente os meus lábios pela pele do seu pescoço, buscando acariciá-lo cada vez mais intimamente. — E por que você quer resistir a mim? — Porque... — ele hesitou antes de completar a frase. — ... não tenho certeza se você... me ama. — E por que outro motivo você acha que eu estaria aqui, implorando por seu amor? Então, ele não mais relutou, num gesto rápido e ágil, ergueu-me no ar com seus braços, estendendo meu corpo sobre a pequena cama, começando a despir-me, lentamente da camisola, enquanto me fitava com um profundo ardor expressado em seus olhos cor de mel. Neste instante, sentia-me a mulher mais amada e desejada da face da terra. Nada mais importava para mim, que não nós dois, o contato, incomparavelmente, prazeroso de nossos corpos nus, entrelaçados um no outro, encaixando-se perfeitamente... Quando despertei na manhã seguinte, ainda me encontrava nos braços de Gustavo, aconchegada, reconfortada, nossos corpos ainda nus, abraçados. Relembrei os momentos da noite anterior e tive a certeza de que passaria o resto de minha vida ao lado dele, jamais o deixaria partir. Pela pequena fresta da janela do quarto, penetrava um raio de sol, indicando que o dia há muito já nascera. Da cozinha, partiam ruídos do que pareciam passos, além de um delicioso aroma de café fresco. — Bom dia. — disse Gustavo, com um largo sorriso nos lábios. Eu não percebera que ele já estava acordado. — Como foi sua noite? — Perfeita. O sorriso dele se intensificou. — Seus parentes acordam cedo, faz horas que ouço passos na cozinha. Acho melhor a gente se levantar também. Fitei seus olhos cor de mel, percebendo a forma apaixonada com que ele me observava. Tinha seu rosto branco, inocente, completamente relaxado, os cabelos emaranhados, a barba por fazer. Parecia um anjo de verdade. — Daqui a pouco a gente levanta... — sussurrei, percorrendo minha mão pelo seu abdômen firme, onde havia uma pequena fileira de pelos. Em seguida, beijei os seus lábios, colocando meu corpo sobre o seu, reiniciando os movimentos cessados pela exaustão durante a noite. Algum tempo depois, deixamos o quarto, encontrando Lucilene na cozinha, lavando louças na pia. Ao ouvir nossos passos, ela se virou para nós, com um largo sorriso nos lábios. — Bom dia pombinhos, já estava começando a pensar em arrombar a porta, para verificar se vocês ainda estavam vivos. — disse ela.

Gustavo e eu nos entreolhamos, nossas faces se enrubescendo. Após cumprimentá-la, ele seguiu diretamente para ao banheiro, do lado de fora da casa. Eu me aproximei dela e dei-lhe um abraço apertado, como se tentasse transmitir-lhe um pouco da indescritível paz e felicidade que transbordavam em meu coração. Me sentia uma mulher de muita sorte, pois desfrutava da honra de amar e ser amada. — Ave Maria, minha filha! O que é que você tem? — Lucilene perguntou, abraçando-me de volta. — É felicidade, mamãe. Em seguida, aproximei-me de Adalcino, como sempre, imóvel em sua cadeira de rodas, e beijei-lhe suavemente o rosto. — Você vai tomar café agora, ou vai tomar banho primeiro? — Lucilene perguntou. — Acho que vou tomar café logo, enquanto Gustavo sai do banho. — respondi, sentando-me à mesa, começando a me servir, distraidamente, de bejú com azeite de coco e café com leite. No apartamento de Gustavo em São Paulo, ou mesmo no hospital, certamente estaríamos tomando banho juntos agora, porém ali, isso seria considerado uma falta de respeito de nossa parte. — Você dormiu bem? — Lucilene perguntou, com uma discreta malícia no tom de suas palavras. Lucilene era uma das poucas pessoas, naquela cidade, que não vivia totalmente submissa às normas comportamentais impostas pelos costumes locais, ou não deixaria que eu e Gustavo dormíssemos no mesmo quarto, sem sermos casados. Talvez eu tivesse herdado esse traço dela, embora em mim fosse, indiscutivel e prejudicialmente mais presente. — Dormi como um anjo. E os meninos, já foram pra roça? — Já. Eles têm que chegar cedo, o serviço é muito. Mas Adailson deixou dois cavalos selados, como Gustavo pediu. Eu a fitei surpresa, indagando: — Gustavo pediu cavalos? — É. Ele não te contou? Disse que você ainda gosta muito de cavalgar. — E gosto mesmo. — falei, entusiasmada com a perspectiva de uma cavalgada pelas terras do sertão, mais uma alegria propiciada em minha vida, pelo meu anjo protetor.— E onde Adailson conseguiu os cavalos? — Lá pras bandas do Sertãozinho, na fazenda do Zeca Carvalho. — Ele já foi até lá hoje? — Não, quando nos ligou, Gustavo já encomendou os cavalos, faz é dias que estão aí. E ele já até pagou o aluguel. Mandou o dinheiro junto com o da cadeira de rodas. — Foi Gustavo que mandou o dinheiro da cadeira de rodas do papai!? — perguntei, atônita. Que surpresas mais estavam reservadas para mim? — Foi sim. Só não estou entendendo porque ele não te contou nada disso. Neste momento, Gustavo entrou na cozinha, tinha os cabelos molhados, a barba feita, a toalha de banho enrolada em torno dos quadris. — Porque eu queria fazer uma surpresa. Além do mais não queria que ela pensasse que eu já estava convencido de que aceitaria vir para Serra Azul. — ele falou. — E não estava? — perguntei, sem dar muita importância ao fato. — Não. Mas se contasse sobre a cadeira de rodas e os cavalos, você certamente acreditaria que sim. Que eu estava te manipulando. — É como eu sempre digo: um casal não deve esconder nada um do outro. — Lucilene falou,

enquanto esfregava um prato na pia. Mostrando-se desconcertado, Gustavo foi para o quarto, voltando minutos depois, quando usava uma calça jeans, tênis e camiseta de malha. Um gostoso aroma de colônia emanava do seu corpo. Sentou-se ao meu lado à mesa e começou a se servir do bejú e café. — E então, está a fim de cavalgar hoje? — ele perguntou. — Mas é claro que eu estou. Vou só tomar um banho, rapidinho. — No dia em que Luana disser que não está afim de cavalgar, pode levar pro médico que é porque está muito doente. — disse Lucilene. — É verdade. — Gustavo concordou. Após tomar um demorado banho frio, vesti uma bermuda jeans, top de malha preto, meu velho par de tênis e saí para o quintal ao lado de Gustavo. Tratava-se de um dia de sol tórrido, mesmo àquela hora da manhã o calor já era intenso. Os cavalos encontravam-se já equipados, amarrados à cerca do quintal, do lado de fora. Eram dois belos Andaluzes, os quais montamos e partimos, num trote lento, rumo aos caminhos do sertão. Enquanto atravessávamos as ruas da cidade, todos paravam para nos observar, sem sequer disfarçar o interesse. Uma menina que pedalava uma bicicleta, olhou-nos tanto que bateu com o rosto num poste, caindo da bicicleta. Outros cochichavam entre si, provavelmente falando sobre mim, sobre os escândalos narrados pela mídia. Não sabia o que os chocara mais, se minha trajetória de prostituta, minha cumplicidade no assassinato de Orlando ou se o caso com Douglas, o qual o levara pra onde se encontrava. Reconheci vários rostos entre os moradores, mas não parei para cumprimentar a ninguém, só queria me ver livre dos seus olhares especulativos o mais depressa possível. Não me sentia à vontade ali, pois, no passado, sempre fora hostilizada por aquelas pessoas, mesmo quando era bem pequena. Jamais compreendi o motivo de tamanha raiva, mas jamais dera muita importância ao fato. Havia uma família de pessoas indígenas diante da sede da FUNASA, a qual se encontrava fechada. Uma mulher, a mais velha, que se encontrava semi nua, nos desferiu o mais hostil dos olhares, fitando-nos fixamente por um longo momento, enquanto balbuciava algumas palavras em sua língua, incompreensíveis para nós. Estaria nos xingando? — São índios de verdade?! — Gustavo perguntou, fascinado, sem desviar seu olhar da família. — São sim. Por que, você nunca tinha visto um? — Não desse tipo que ainda vivi em aldeia. — Pois aqui é o que mais tem. São integrantes da aldeia Nirvana. Embora sejam detestados pelo povo da cidade, não saem daqui, em busca de benefícios sociais e de comercializarem seu artesanato. Continuamos conversando enquanto atravessávamos a cidade, até que por fim a deixamos, seguindo por uma estrada de terra, que se estendia em meio ao cerrado, quando passamos a cavalgar mais velozmente, os cavalos numa corrida apressada, permitindo que o vento batesse em nossos rostos, abrandando o calor intenso. À medida em que adentrávamos o sertão, repleto de árvores de troncos grossos e retorcidos, aumentávamos a velocidade da corrida. Ao longo da estrada, o cerrado se tornava cada vez menos denso, transformando-se em uma área de capim baixo, com poucas árvores, denominada de campo sujo. Ali, deixamos a estrada e partimos por entre o campo, os quais se estendiam até o perder de vistas. Percorremos vários quilômetros das infinitas chapadas do sertão, sob o tórrido calor, até que, por fim, dominados pelo cansaço, sentamos-nos sobre o capim, sob a sombra de uma árvore,

refrescando-nos com a água gelada de nossos recipientes térmicos. — Esse lugar é lindo! — Gustavo exclamou, com respiração ofegante, seu rosto muito vermelho por causa do sol intenso. Percorri meu olhar ao redor e, subitamente, fui invadida por uma estranha nostalgia. Para todos os lados a chapada se estendia até onde a vista não mais alcançava. As terras eram planas, diferentemente do relevo do Rio de Janeiro. Comecei a me perguntar quantos milhares de quilômetros de terras haviam assim, totalmente desabitadas, talvez até jamais pisadas por pés humanos. Quantas criaturas desconhecidas residiam ali, isoladas, sozinhas. — No que você está pensando? — Gustavo indagou, despertando-me dos sombrios devaneios. — Na nostalgia desse lugar. — respondi. — É lindo, mas muito melancólico. Fico me perguntando como seria triste viver confinado aqui, sem poder sair. Isolado, longe de tudo e de todos. — Você tem razão, Luana. Parece um lugar muito triste de se viver. Então, ambos permanecemos em silêncio, mergulhados na estranha sensação causada pela vastidão daquele lugar, a qual parecia mais intensa a mim, um misto de solidão e de saudade, que invadia meu peito. Jamais antes me sentira assim, nem mesmo durante minha juventude, quando cavalga, sozinha, por aquelas mesmas terras, durante horas consecutivas. Era muito estranho o que sentia agora. Talvez se tratasse de um reação ao silêncio posterior à agitação de São Paulo. De repente, lembrei-me de Daniel, de como ele teria explorado aquelas terras se tivesse a chance de crescer ali; se a crueldade de Adalcino e de seus companheiros não tivesse destruído sua família. Certamente ele teria uma vida plena e feliz; não teria se tornado um assassino; seria apenas um trabalhador comum. Porém, por outro lado, se assim fosse, jamais o teria amado, pois ele seria marido se sua irmã, talvez sequer o tivesse conhecido. Mas, acima de tudo, ele ainda estaria vivo, se tivesse crescido ali, ao lado de sua família. Sem que eu pudesse evitar, uma lágrima solitária deslizou através do meu rosto. Afundei-o no peito de Gustavo, tentando esconder-lhe a minha tristeza, enquanto que, inconscientemente, implorava que me resgatasse desta, como se me agarrasse a uma tábua de salvação. Ele começou a acariciar os meus cabelos, suavemente, com as pontas dos dedos, ainda sem perceber minha dor. Eu o abracei com mais força e ele beijou minha face, deslizando seus lábios pela minha pele até alcançar minha boca, enquanto que enfiava sua mão por sob o meu top de malha, buscando a maciez do meu colo. Mantive meus olhos fechados, para que ele não percebesse meu estado e comecei a acariciá-lo também, por sob sua camiseta, enquanto correspondia ao beijo, mesmo sem desejá-lo, não neste momento de tristeza. De repente, um uivo terrível ressoou de bem próximo, fazendo eco pela chapada. Sobressaltados, ficamos de pé, nossos olhos aflitos percorrendo os arredores, à procura do autor daquele uivo. — Me diga que você também ouviu isso, Gustavo. — falei, meu corpo paralisado de medo. — Mas é claro que eu ouvi, Luana. — ele respondeu, seus olhos aflitos, vasculhando os arredores. — E o que foi? — Eu sei lá. Parecia o uivo de um... lobo. — Mas isso é impossível, não existe lobo no sertão. — É melhor a gente sair daqui. Então, ele segurou minha mão, puxando-me, apressadamente na direção dos cavalos. Subitamente, relembrei o lobo cinzento com o qual sonhava quando estava ao lado de Daniel, o qual

uivava para mim, enquanto eu cavalgava pelas terras do sertão. Visualizei mentalmente a criatura peluda, de presas medonhas e garras afiadas na qual Daniel se transformara, bem diante dos meus olhos, e me ocorreu que se ele fora capaz de passar por tal metamorfose, não seria impossível supor que teria renascido, em pele de lobo. Era a única explicação cabível para aquele uivo. Com tais pensamentos, impulsivamente, desvencilhei minha mão da de Gustavo e corri na direção de onde partira o uivo, gritando o nome de Daniel. Provavelmente eu estava ficando louca, mas cogitava que aquele uivo partira dele, chamando por minha presença. A lenda sobre sua família, que afinal não era lenda alguma, não era totalmente conhecida, talvez seus integrantes voltassem a viver, em pele de lobos, após a morte e ainda habitassem aquelas terras, afinal nada mais era impossível, diante da transformação pela qual passavam. Talvez Daniel estivesse entre eles, transformado em animal. Eu corria o mais depressa que conseguia, gritando o nome da Daniel, na expectativa de revê-lo, mesmo que não no mesmo corpo. Porém, Gustavo me seguia e logo me alcançou. Atirou-se sobre minhas costas, fazendo-me cair com o rosto no chão, imobilizando-me com seu corpo. — Me larga! Me deixa em paz! — eu gritava, como uma louca desvairada, enquanto tentava me libertar. Ele virou-me de frente, ainda imobilizando-me, forçando-me a encará-lo e disse: — Pára com isso, Luana, você está ficando louca?! Só então, tomei consciência da insensatez dos meus atos, do quanto minha suposição, sobre ressurreição, parecia loucura, e o que é pior: do quanto estava magoando Gustavo. Eu havia prometido a ele que não mais tocaria no nome de Daniel e, no entanto, saía correndo como uma louca, gritando o nome dele, quebrando minha promessa, ferindo-o imensamente. Eu parei de me debater e Gustavo saiu de cima de mim, ajudando-me a ficar de pé. Olhei sua face contraída de amargura, a fisionomia carregada de raiva e murmurei: — Me desculpe. Mas ele não respondeu, sequer fitou o meu rosto. Segurou-me novamente pela mão e conduziu-me na direção do cavalo. — Vamos sair logo daqui. — foi o que ele disse, enquanto montava seu cavalo, certificando-se de que eu também montava o meu. Então, partimos de volta para Serra Azul, sem trocarmos mais uma palavra durante todo o longo trajeto. Enquanto cavalgávamos, lado a lado, com um silêncio tenso pairado no ar, eu me perguntava quando Gustavo se cansaria de mim, quando se daria conta de que eu era apenas um peso em sua vida, que sem mim estaria mais feliz. Talvez neste momento ele estivesse pensando nisso, chegando, finalmente à conclusão de que eu jamais tiraria Daniel da minha cabeça, mesmo que vivesse cem anos. Talvez acabara de desistir de lutar por mim. E quem podia culpá-lo? A forma como eu acabara de agir, era inaceitável. Embora eu soubesse que enlouqueceria de verdade se ele me deixasse, não podia tirar-lhe a razão. Já passava do meio dia quando chegamos de volta a casa dos meus pais. Encontramos toda a família reunida em torno da mesa da cozinha, fazendo a refeição. Ao nos ver entrar, Lucilene levantou-se dizendo: — Vou colocar os pratos de vocês. — ela deteve-se na minha aparência: meu top havia se rasgado durante a queda que Gustavo me dera, na tentativa de me deter em minha desvairada corrida; meu rosto estava ligeiramente inchado por causa do choque com o chão e meu jeans estava sujo de terra.

— Minha nossa, o que aconteceu com você?! — Não foi nada mãe, eu só caí do cavalo. — apressei-me em responder. — Vou me lavar. Então, fui até o banheiro, lavei as mãos e o rosto e juntei-me aos demais à mesa, servindo-me do arroz com carne de sol, enquanto que Gustavo sentava-se na outra extremidade do móvel, o mais longe possível de mim. Estranhei a presença de Adriana e Adailsom em casa àquela hora e perguntei: — Não era para vocês estarem na roça a essa hora? — Era, mas viemos mais cedo para ficar com você. Enquanto fazíamos a refeição, a conversa rolava solta e descontraída, contando com a participação de todos, com exceção da minha, que permanecia em silêncio, minha mente totalmente absorvida pelo uivo misterioso que ouvira no sertão. De quando em quando, o olhar severo, repreensivo, carregado de mágoa, de Gustavo encontrava o meu, embora não o mantivesse por mais que um segundo. Percebi que ele sabia exatamente o que me roubava os pensamentos e se sentia incomodado com isto. — Mãe, tem algum lobo no sertão? — perguntei, num impulso, enquanto via todos os olhares se voltarem para mim. — Como assim? Lobo de verdade? — Lucilene perguntou. — É, daqueles que uivam e tudo. — Eu acho que não filha. Por que? — Porque hoje, enquanto cavalgávamos, eu e Gustavo ouvimos um uivo que parecia de um lobo. Não foi Gustavo? Ele não respondeu, apenas continuou me encarando com severidade. — Não foi, Gustavo? — insisti, firmemente. — É, foi sim. — ele confirmou, após um longo silêncio. — Mas isso é impossível, não tem lobo no sertão. — Adriana falou. — Em que região vocês estavam? — Adailsom perguntou. — Lá pras bandas do São Francisco. — respondi. — Mas que estranho. Nossa roça fica lá perto e não ouvimos nada. — Adriana disse. — Vocês devem ter ouvido o grunido de qualquer outro animal, que com certeza não era um lobo. — Lucilene falou, enquanto começava a recolher os pratos da mesa. — Não existem lobos no sertão. — Era um lobo sim. — insisti, desejando, intimamente que eles revelassem a existência de uma alcatéia de lobos, descendentes da família de Daniel. — Pára com isso, Luana. — Gustavo me repreendeu, rudemente, fitando-me com expressão de severidade. — O que ouvimos deve ter sido outro animal. Pensei em insistir, até convencer a todos de que havia um lobo no sertão, porém, a forma dura com que Gustavo me observava, me desistimulou a continuar. Sem querer, eu o havia magoado novamente, deixando claro que ainda pensava em Daniel, que jamais o esqueceria. O que também me feria profundamente, pois temia que o estivesse perdendo. Eu e Adriana começamos a ajudar Lucilene a recolher a louça suja, quando ouvimos Adailson falar: — Vocês vão me desculpar, mas preciso ir ao Sertãozinho ver Lindacy. — ele se referia à sua jovem noiva.

— Posso ir junto? — Gustavo perguntou, depressa. — Claro. Assim é bom que iremos de carro. — Adailsom consentiu, animado. — Se é de carro, eu também quero ir. — Adriana falou. Gustavo olhou para Lucilene, aguardando uma aprovação. — Podem ir, eu cuido da arrumação da cozinha. — Lucilene disse, depois se virou para mim: — Se quiser, pode ir também, filha. Bem que eu gostaria de passear pelo sertão, mas sabia que Gustavo se oferecera ao passeio apenas para se livrar de minha companhia. Ele já não mais conseguia esconder o quanto se sentira magoado com minha atitude daquela manhã. — Eu não quero ir. — declarei. Quando eles saíram, conversando empolgadamente, comecei a secar a louça que Lucilene lavava. A um canto da cozinha, Adalcino se encontrava em sua cadeira de rodas, seu olhar perdido no infinito, como sempre. — Aconteceu alguma coisa entre você e Gustavo? — Lucilene perguntou, com tom de casualidade, entregando-me uma travessa de cerâmica molhada. Eu havia me esquecido do quanto ela era perceptiva, podia detectar as emoções das pessoas apenas com o olhar. — Ele está com ciúmes de um amor do passado. — falei, distraidamente. Mas Daniel não era um amor do passado, pertencia ao meu presente e ao meu futuro, pois estava, e sempre estaria presente em meu coração. Lucilene continuou falando, filosofando sobre o ciúme e como este tinha o poder de destruir uma relação. Mas eu não conseguia me concentrar no que ela dizia, minha mente totalmente absorta pela lembrança do uivo que ouvira no sertão. Cogitava a possibilidade de se tratar de uma manifestação dos antepassados, ou até mesmo do próprio Daniel. Um fantasma talvez. Ou quem sabe eles se encontravam encarnados em pele de lobo. Parecia uma suposição ridícula, insensata, porém não havia uma explicação sensata para aquele uivo. Não haviam lobos no sertão, isso era indiscutível, pelo menos não que alguém soubesse. O uivo que ouvira, não pertencia a outro animal, essa era outra certeza que eu tinha, pois conhecia todos os animais do sertão, nenhum emitia um som que se comparasse àquele. Nada se sabia ao certo sobre a origem da medonha transformação que sofriam os integrantes daquela família, nem mesmo eles próprios. Portanto, havia uma possibilidade daquele uivo ter partido de um deles, reencarnado ou em forma de espírito. Relembrei a inacreditável transformação pela qual Daniel passara, a medonha criatura de pelos cinzentos, garras afiadas e presas enormes e me perguntei se seus antepassados assumiam forma semelhante. Provavelmente sim, por isso foram destruídos, porque a normativa e preconceituosa população de Serra Azul, jamais aceitaria algo tão aberrante e diferente vivendo entre si. Olhei para Lucilene, que continuava entregando-me a louça lavada e me ocorreu que ela podia me fornecer informações sobre o assunto, pois fora testemunha viva do caso. — Mãe, você se lembra da família do cara que me seqüestrou no Rio de Janeiro? — Perguntei, escolhendo, cautelosamente as palavras, dando início a uma sutil investigação. — Lembro sim, por que? — É verdade que o papai ajudou a destruir a família dele?

— É. — E por que foram mortos? — Por que eram criaturas medonhas, assustadoras. Transformavam-se em feras durante a noite e invadiam as roças, destruindo as plantações e matando os animais, apenas para fazerem o mal. — ela fez uma pausa, entregando-me uma bandeja molhada, antes de continuar: — Durante o dia, pareciam pessoas normais e eram lindos! Apesar de viverem a maior parte do tempo isolados em seu sítio, de vez em quando, apareciam aqui na cidade, andando de mãos dadas na rua, irmão com irmã, seus rostos tão parecidos! Sem fazerem questão de esconder a relação incestuosa que mantinham. Por isso se transformavam nas criaturas: como castigo por cometerem o pecado do incesto. — Você chegou a ver algum deles transformado na criatura? — Bem, eu vi uma delas uma vez, cerca de dois anos antes de você nascer. Eu saí uma noite para pescar com seu pai, lá pros rumos do Campo Lindo e a criatura passou correndo, bem na nossa frente. Estava correndo no meio da mata fechada, como se perseguisse ou se fugisse de algo. Nunca mais entrei na mata de noite depois que vi aquilo. — Mas como você sabia que era um deles? — Eu sabia, filha, todo mundo sabia. — ela me entregou outra bandeja, distraidamente. — Muita gente viu eles se transformando, diziam que ficavam maiores, mais altos e terrivelmente agressivos. Seus corpos se cobriam de pelos e suas presas saltavam da boca. Às vezes eu achava que estavam exagerando nessa descrição, mas diziam que era assim mesmo. — Era assim mesmo, eu vi Daniel se transformando uma vez. — O que? — ela perguntou, subitamente, interrompendo o trajeto de uma travessa molhada de suas mãos para as minhas. — Ele se transformou uma vez, na minha frente, mas não era noite, como diziam que era quando acontecia e também não havia cometido incesto, pois não tinha nenhuma parente viva. Neste momento, Lucilene deixou a travessa deslizar de entre os seus dedos, estilhaçando-se no chão, enquanto seu rosto assumia um tom ligeiramente pálido. Seus olhos se arregalaram, como se entrara em estado de choque. Abandonei o pano de pratos sobre a mesa e corri até ela, segurando sua mão gelada. — O que foi mãe? Você está passando mal? — perguntei, preocupada. — Ele se transformou na criatura? — ela perguntou, seus olhos arregalados fitando o meu rosto. — Sim. Mas não fique assim, ele não me machucou, pelo contrário, me salvou de um policial que me batia. — falei, tentando tranqüilizá-la. — Não pode ser... — ela sussurrou, seu olhar se perdendo no infinito. — O que não pode ser, mamãe? Porém, sem responder, ela desvencilhou sua mão da minha, começou a esfregar suas palmas no avental, em torno de sua cintura, num gesto que me parecia de puro nervosismo e disse: — Eu preciso dar milho para as galinhas. — em seguida, saiu, apressadamente para o quintal. Não consegui compreender aquela estranha reação de Lucilene. Eu a conhecia bem, não fora dar milho às galinhas, estava fugindo do assunto, ou me escondendo algo a respeito. Certamente havia algum fato sobre Daniel e sua família que eu desconhecia, mas estava disposta a descobrir e assim, talvez, desvendar o mistério por trás daquele uivo que ouvira no sertão. Na manhã seguinte, voltaria ao local e procuraria seu autor, estava decidida.

CAPÍTULO IX

A força do nosso amor

Quando a noite caiu Gustavo e meus irmãos ainda não haviam retornado de sua excursão pelo sertão. Lucilene agora encontrava-se na sala, sentada em uma cadeira de macarrão, ao lado de Adalcino, fazendo crochê, ao mesmo tempo em que assistia a novela das oito. Ela fugira de mim durante toda a tarde, após a conversa que tivemos sobre a família de lobisomens. Não conseguia compreender o motivo de tal atitude de sua parte, mas a investigaria até descobrir o que me escondia. Sentindo-me profundamente solitária, sem a presença de Gustavo, fui para o pequeno quarto e deitei-me sobre a cama desconfortável de Adriana, pensando em quando ele estaria de volta e porque demorava tanto. Teria se encantado com uma das moças do Sertãozinho e se esquecido de mim? Eu bem que merecia aquilo, depois da cena que fizera em sua presença, no sertão, aquela manhã. Naquele instante, certamente ele tomara consciência de que eu jamais esqueceria Daniel, era um caso perdido e, provavelmente, começava a pensar em me deixar. Mas quem poderia culpá-lo? No entanto, a simples perspectiva de ficar sem ele era o suficiente para me angustiar, pois seria incapaz de viver longe de sua presença. Naquele últimos meses, Gustavo se tornara fundamental para minha existência, pois me devolvera o desejo de viver. Antes de conhecê-lo, eu vagava pelo sítio de Douglas, como um zumbi, um corpo sem vida, mas Gustavo tornara tudo diferente. Era como uma luz divina que iluminava a escuridão da minha vida. Eu o amava. A princípio acreditara que se tratava de um sentimento de amizade, de amor entre irmãos, mas descobrira que o que sentia, ia muito além da simples amizade, o amava, como amante, como homem e jamais me perdoaria se o perdesse. Comecei a me perguntar onde ele realmente estaria agora, com quem conversava, se não lembrava mais de mim, de que eu me encontrava sozinha, à sua espera. Ao mesmo tempo em que constatava meu infinito amor por Gustavo, ainda carregava comigo minha desenfreada paixão por Daniel, a qual insistia em permanecer viva dentro de mim, embora há muito ele partira. Me sentia bastante confusa e dividida em relação aos meus sentimentos. Porém, precisava compreender que Daniel estava morto e Gustavo vivo, portanto era quem eu deveria amar mais e buscar construir minha felicidade ao seu lado, se ele estivesse disposto a me dar uma terceira chance. Por um longo tempo, rolei de um lado para o outro da pequena cama, sem conseguir adormecer. Não tinha noção de que horas eram quando a porta do quarto se abriu e Gustavo entrou. Antes mesmo que ele fechasse a porta atrás de si, sentei-me apressadamente no leito, intimamente implorando por seu perdão, por um pouco de sua atenção. — Ainda acordada? — ele perguntou, fitando-me com olhar duro, sua fisionomia carregada. Passando diretamente por mim, foi até o guarda roupas, de onde tirou seu colchonete. — Não consegui dormi, pensando onde você poderia estar. — falei. — Tem certeza de que era em mim mesmo que você estava pensando? — ele perguntou, enquanto estendia o colchonete no chão, ao lado da minha cama.

Suas palavras, carregadas de indiferença e até de uma certa hostilidade, causaram-me um profundo aperto no coração. Percebi que o estava perdendo. — Você vai me deixar? — perguntei, com voz trêmula. Ignorando minha pergunta, ele deitou-se sobre o colchonete ao chão, de costas para a minha direção, permanecendo completamente imóvel. — Você vai me abandonar aqui, não vai? — insisti, enquanto me esforçava para conter as lágrimas que ameaçavam aflorar em meus olhos. — Pára de fazer drama, Luana, eu não vou deixar você. — Vai sim, você não me ama mais. Ele sentou-se sobre o colchonete num gesto de impaciência, então, fitou-me diretamente nos olhos e disse: — Você sabe que eu te amo e vou te amar para sempre. Agora me deixe dormir, estou cansado, OK? — Se você ainda me ama, então por que não fica aqui perto de mim? — Por que eu não consigo, ta legal? Não consigo ficar perto de você imaginando que você está pensando... nele. — ele se referia a Daniel. — Não consigo te tocar e pensar que você está sentindo o toque dele. Eu não sou assim. Não posso te... possuir, sem ter certeza que você realmente me quer. — ele deitou-se novamente, de costas para mim. — Eu te amo, Gustavo... — foi o que consegui dizer, as demais palavras, fugindo-me à razão. — Boa noite, Luana. — ele finalizou. Deitei-me de volta no leito, enquanto via Gustavo entregar-se ao sono. Continuei virandome de um lado para o outro, sem conseguir relaxar o suficiente para adormecer, uma angústia crescente tomando conta de mim. Embora Gustavo já estivesse de volta ao meu lado, algo ainda me abalava: o uivo do lobo que ouvira aquela manhã, precisava descobrir do que se tratava. Mesmo sem o conhecimento de Gustavo, voltaria àquele local na manhã seguinte e investigaria. No quarto, o calor era abafado, insuportável, contribuindo para a ausência do sono em meu organismo, começava a sentir saudades do clima frio de São Paulo. Quando, por fim, convencime de que não dormiria, levantei-me e dirigi-me para a cozinha, em busca de um copo de água gelada. Chegando lá, surpreendi-me ao ver Lucilene, sentada à mesa, preparando um cigarro de palha. Ela tentou escondê-lo de mim, mas era tarde demais, eu já vira o cigarro em sua mão. Embora não soubesse que ela fumava, dei pouca importância ao fato. — Também não conseguiu dormir? — perguntei, indo até a geladeira, servindo-me de água gelada. — Não. Está quente demais hoje. — ela falou, terminando de preparar o cigarro, acendendo-o, soltando uma baforada de fumaça. Sentei-me na cadeira vazia diante dela, ainda com o copo na mão. — Desde quando você fuma? — perguntei. — Desde sempre. Só não fumo na presença das pessoas, principalmente do seu pai. Eu era capaz de entendê-la. Se fumasse na presença de Adalcino certamente seria julgada, condenada e crucificada. Na visão dele e de muitos outros moradores de Serra Azul uma mulher casada e de respeito, como ela, não poderia fumar. Tal vício não era atribuído ao seu papel na sociedade. — Filha, eu quero te perguntar uma coisa. — ela falou, hesitantemente. — Pode perguntar. — Por acaso, o sujeito que você falou, de quem Gustavo estava com ciúmes, era... Daniel?

Neste momento, senti um aperto no coração, ninguém além de Gustavo conhecia meu romance com Daniel, era um segredo que eu guardava no fundo de minha alma, pois temia ser julgada, por amar um homem que além de ter-me feito como refém, me coagira a tornar-me sua cúmplice no assassinato de Orlando. No entanto, Lucilene era a pessoa que mais me amava nesse mundo, seria incapaz de me condenar por esse amor. — Era ele sim. Eu não fui apenas sua refém, mas também sua amante. — Ah, meu Deus! — ela exclamou, alarmada. Percebi sua reação e falei: — Não fique assim, mamãe, ele não me violentou, como você deve estar pensando. Estive nos braços dele por livre e espontânea vontade. Eu o amava, profundamente e ainda o amo. Jamais consegui esquecê-lo, por mais que eu tente, não consigo afastá-lo do meu pensamento. É por isso que Gustavo tem tanto ciúmes. Ela passou a fitar a mesa à sua frente, permanecendo em silêncio, por um longo momento. Então, voltou a encarar o meu rosto, com uma expressão indefinível no olhar, e disse: — Filha, eu preciso te contar uma coisa, mas quero que você não me odeie por isso. — O que? — perguntei, apreensiva. Ela começou a esfregar suas mãos uma na outra, num gesto de puro nervosismo. — É tão difícil para mim. Me promete que não vai me odiar, filha. — Eu prometo. — declarei, ansiosa. — Bem... Daniel não se transformou por acaso, naquela criatura. — ela começou, hesitante. — Como o restante de seus parentes, ele cometeu... incesto. Eu a fitei confusa, aturdida. Suas palavras não faziam o menor sentido para mim. — Como assim?! Isso é impossível, ele não tem nenhum parente vivo?! — vi a expressão no olhar dela e um calafrio percorreu-me a espinha. — Ou tem? Ela pousou suas mãos frias e suadas sobre as minhas, fitou-me em silêncio por um longo momento, com um misto de angústia e súplica no olhar. Então, disse: — Tem sim Luana... é você. Refleti por um instante, minha mente digerindo, lentamente aquelas palavras. Por um momento acreditei que Lucilene estivesse divagando, mas era uma das pessoas mais sensatas que eu conhecia. — Como assim, mãe? Você está dizendo que não sou sua filha? — Você é minha filha sim. — ela fez uma pausa, como se procurasse as palavras. — Minha e do pai de Daniel. Subitamente, senti o chão fugir aos meus pés, o sangue desaparecer da minha face. Se não estivesse sentada, certamente teria caído ao chão. Num gesto mecânico, desvencilhei minhas mãos das dela, minha mente se recusando a acreditar naquela estranha e macabra realidade, na suposição de que eu era perdidamente apaixonada por meu próprio irmão, sangue do meu sangue. — Do que você está falando mamãe? Está me dizendo que traiu o meu pai? É isso?! — Não filha. Estou tentando te explicar que Daniel cometeu incesto, como os antepassados dele. Com... você. Neste momento, relembrei parte da estória sobre a família dele, sobre o fato de que violentavam as mulheres da cidade, enquanto se encontravam transformados. — O pai dele violentou você?

— Não Luana, ele me seduziu. Entreguei-me a ele por vontade própria. — seu olhar, impregnado de uma súplica desesperada, se perdeu no infinito, como se enxergasse algo em um passado muito distante. — De alguma forma, Estevão, o pai de Daniel, sabia que seriam destruídos e que seu filho, ainda no ventre de sua esposa e irmã, seria um menino e o único que sobreviveria. Ele estava tentando procriar uma menina, para se tornar companheira do seu filho e, juntos darem continuidade à sua espécie. Naquela época eu, juntamente com Izabel, a esposa de Francisco e Dalva, esposa de Anselmo, lavávamos as roupas dos peões que trabalhavam na construção da ponte do rio Campo Lindo, nas águas do Rio São Francisco e lá, como você sabe, é bastante afastado da cidade. Primeiro aconteceu com Izabel, ela deixava o serviço de lado e desaparecia mata a dentro, permanecendo lá durante horas. Até que um dia nos revelou que vinha se encontrando com Estevão e que estava grávida dele. Ela disse que ele soube o instante em que a engravidara e que seria um menino. Uma semana depois de ter revelado a gravidez a Izabel, foi a vez de Dalva e tudo se repetiu: ela foi seduzida por ele também e numa tarde em que se encontravam juntos, ele declarou que ela tinha acabado de conceber um menino. Então, depois disso, como fez com Izabel, não quis mais saber dela. E depois... — os olhos dela se marejaram de lágrimas. — Depois foi a minha vez, filha. Após ter engravidado Dalva, ele me procurou. Aproveitou um momento em que eu estava sozinha, estendendo a roupa no quarador e me encantou. Eu ainda tentei, com todas as minhas forças, resistir ao encanto dele, mas não consegui, era como se estivesse hipnotizada. Como eu poderia ter resistido? Ele era tão... lindo e sedutor. Da última vez em que nos encontramos, havíamos terminado de nos amar, sobre palhas forradas ao chão, em meio à mata fechada, quando ele falou: “Você acabou de conceber um filho meu e será uma menina. Ela se tornará companheira do meu primogênito e, juntos, darão continuidade à nossa espécie”. Depois desse dia. Ele nunca mais me procurou. Na hora, eu não acreditei em suas palavras. Como ele podia saber, tão imediatamente, que eu estava grávida? Mas logo os sintomas começaram a surgir e a gravidez foi confirmada, assim como as de Izabel e de Dalva. Nove meses depois, quando nossos filhos nasceram, todos na mesma semana, nossos maridos, imediatamente, perceberam que não eram seus filhos e o quanto se pareciam com os membros da família de lobisomens. Vocês tinham os olhos, os cabelos e a pele claros, como eles. Nós fomos obrigadas a confessar nosso adultério, mas para não sermos castigadas, mentimos, inventamos que fomos violentadas, pelos lobisomens. Foi então que nossos maridos decidiram destruí-los, para castigá-los. Eles já vinham planejando fazer isso há anos, apenas usaram tal motivo como estopim do seu ódio. Nesse tempo, Orlando era delegado de Serra Azul e, embora fosse solteiro, planejou e liderou toda a chacina, afirmando que não poderia permitir esse tipo de crime na cidade dele. Gonçalo juntou-se a eles porque, na época, era assessor do prefeito e precisava representá-lo. Quando as crianças tinham ainda poucos meses de vida, Francisco e Anselmo viajaram com os dois meninos e deram fim neles. Depois disso, nunca mais tocaram no assunto, não se sabe o que foi feito daqueles dois meninos. Mas seu pai, filha, ele me deixou ficar com você, ele foi muito bom com nós duas. — ela fez uma pausa, observando a expressão em meus olhos. — Como você pode não ter percebido filha. Você e Daniel são tão parecidos... Embora as coisas não tenham saído exatamente como Estevão planejou, era inevitável que vocês dois se amassem, pois vocês foram predestinados a ficarem juntos... Enquanto Lucilene continuava falando, uma enchorrada de lágrimas banhava o meu rosto. Era como se, de repente, uma cortina de fumaça se dissipasse de diante dos meus olhos. Ela tinha razão: como eu pudera não ter percebido antes? Como pude ser tão cega? Não compreender que era anormal aquele amor infinito que sentia por Daniel, o qual insistia em permanecer vivo dentro de mim, mesmo após sua morte, há tanto tempo atrás? Agora, no entanto, tudo se tornava claro, podia

entender o misterioso laço que nos ligava: eram laços de sangue. Havia uma parte sua em mim, e uma de mim em si, por isso não conseguia esquecê-lo, por isso aquela louca paixão, capaz de atravessar o tempo, permanecendo inabalável. Por isso éramos tão parecidos. Além de sermos ligados por esse laço de sangue, fomos predestinados a ficarmos juntos, a nos amarmos. Fomos feitos um para o outro, para darmos continuidade à nossa espécie. Estava explicado porque nos apaixonamos tão perdidamente, embora tenhamos ficado juntos por tão pouco tempo. Porque, mesmo após todo aquele tempo, cada vez que fechava os meus olhos era o seu rosto que eu via, cada vez que respirava, sentia o seu cheiro... Fomos predestinados a nos amarmos. Relembrei o momento em que o vira pela primeira vez, o quanto achara seu rosto familiar, era a mim que estava vendo, o reflexo da minha imagem. Depois, no cativeiro, constatei algo diferente em minha fisionomia, no pequeno espelho do banheiro, estava vendo os traços de Daniel, estampados em meu rosto. Jamais cogitaria, por conta própria, tal semelhança, era surreal demais para acreditar. Agora eu conseguia compreender também, porque Adalcino jamais me tratara como sua filha, apenas suportava a presença do fruto do estupro que acreditara sua esposa ter sofrido. Podia entender porque os moradores de Serra Azul não gostavam de mim: sabiam que eu era descendente da família que tanto odiaram. Lucilene permanecia diante de mim, murmurando súplicas de perdão, porém, eu não podia ouvi-la, devido ao choque em minha mente. Precisava ficar sozinha, organizar os meus pensamentos, aprender a aceitar aquela nova realidade: que era descendente de uma família de lobisomens, apaixonada por meu próprio irmão. Movendo-me mecanicamente, dirigi-me para o quarto. Esquecendo-me da presença de Gustavo ali, dormindo profundamente, sentei-me na cama, continuando o meu pranto desenfreado. Minha mente entorpecida pelo turbilhão de pensamentos, repassava, repetidamente, os acontecimentos da minha vida: minha infância em Serra Azul, o quanto era diferente das demais meninas da minha idade, o quanto era detestada por todos, escarnecida por onde passava. Durante minha adolescência, os rapazes da minha idade, sempre me procuravam, querendo namorar comigo, mas jamais me assumiam em público, me queriam apenas às escondidas. Eles sabiam de tudo, toda a verdade sobre a minha origem. Como foram capazes de me esconder isso? Como nunca falaram nada? Nem mesmo me jogaram uma indireta? Tais fatos da minha juventude, me levaram a contrair um profundo complexo de inferioridade, o que me fizera fumar meu primeiro cigarro de maconha e depois me entregar ao vício da cocaína e à prostituição. Durante toda a minha existência, sempre sentira um vazio dentro de mim, como se me faltasse algo. Nunca conseguira distinguir claramente o que me faltava, mas agora eu sabia: era a presença da minha verdadeira família, minha espécie, aqueles que eram diferentes, como eu. Chorei durante todo o restante daquela noite, imóvel, sentada na cama, mergulhada em meus pensamentos. Quando os primeiros raios de sol penetraram o quarto, através das frestas da janela, Gustavo despertou do seu sono profundo. Ele observou o meu rosto, inchado pelo pranto e, rapidamente, correu para o meu lado. — Meu Deus, Luana! O que aconteceu com você?! — indagou alarmado. Sua voz penetrou minha mente tortuosa e só então dei-me conta de sua presença no quarto. Lentamente, me virei para fitar o seu rosto ingênuo, tão sereno, familiar e querido. Parecia o rosto de um anjo, enviado do céu para me salvar. Percebi, neste instante, que Gustavo era o único ser humano

capaz de preencher o vazio existente em minha vida. Ao seu lado eu me sentia viva e amada. Apenas ele não me olhava como se eu fosse diferente, inferior ao restante dos mortais. Aos seus olhos eu era uma pessoa normal, talvez até especial. — Gustavo...— eu sussurrei, reiniciando meu pranto. Então, ele me tomou em seus braços, recostando meu rosto, banhado de lágrimas, em seu ombro amigo, reconfortadoramente, enquanto roçava, suavemente, seus lábios em meus cabelos. — O que foi que aconteceu, minha querida? — ele indagou, num sussurro. Afastei-me alguns centímetros, o suficiente para fitar o seu rosto. Tentei falar, mas as palavras se detiveram no nó em minha garganta. — Vou buscar um copo de água com açúcar pra você. Ele tentou se afastar, mas eu o impedi, segurando-o com todas as minhas forças. Temia que ele me abandonasse, que não voltasse mais e me deixasse sozinha naquele mar de tormentos. Ele me abraçou novamente, recostando minha cabeça em seu ombro, sobre o tecido de algodão do seu pijama, já molhado por minhas lágrimas. Me perguntei o que seria de mim, naquele momento, se Gustavo não existisse em minha vida. Nada do que já acontecera comigo se comparava àquilo, à descoberta de quem eu realmente era, de que meus verdadeiros antepassados foram destruídos por serem diferentes, odiados, como eu. Por um longo momento, chorei nos braços de Gustavo, até que, pouco a pouco, fui me sentindo mais calma. Por fim, estava pronta para falar. Afastei-me para fitar o seu rosto e declarei: — Eu e Daniel somos irmãos. Todo o corpo dele se estremeceu ao ouvir o nome do seu rival morto, porém a inquietação em seu olhar, logo deu lugar a uma expressão de pura incredulidade. — Hã?! — ele pronunciou, boquiaberto. — Lucilene me revelou ontem à noite, que somos filhos do mesmo pai... Então, repetindo, cada uma das palavras de Lucilene, revelei-lhe toda a verdade, enquanto ele me ouvia atentamente, seus olhos cada vez mais atônitos, incrédulos. Ao final de minha narrativa, o queixo dele ainda estava caído. — Mas que estória incrível, Luana! — ele exclamou, após um longo silêncio. — Eu sempre achei que você era mesmo meio selvagem. — completou, com seu jeito brincalhão de sempre. — Agora está explicado porque nunca consegui esquecer Daniel. — Então quer dizer que vocês têm mais dois irmãos? — Na verdade ninguém sabe o que Francisco e Anselmo fizeram com os dois meninos. Talvez os tenha, matado, ou talvez os deixaram aos cuidados de outras famílias. — eu deixei escapar um longo suspiro. — Se estiverem vivos, viverão como pessoas normais para sempre. Jamais conhecerão sua origem. — A menos que... –- Gustavo se interrompeu, sem completar a frase. — A menos que? — eu o incentivei a continuar. — Nada. Deixa pra lá. Foi só um pensamento tolo que me ocorreu. — A menos que eu tenha transado com algum deles, não é? Mas isso não aconteceu, o Brasil é muito grande e, se eles estiverem vivos, podem estar em qualquer lugar. Além do mais eu não transei com tantos homens assim. Quando fazia programas, a maioria dos meus clientes eram mais velhos que eu e eram sempre os mesmos homens, que voltavam a me procurar. Ele afastou, carinhosamente, uma mecha de cabelo que caía-me sobre a testa. Aliviada,

constatei que não estava mais magoado comigo, agora podia compreender a força do amor existente entre mim e Daniel. Sabia que nós dois fomos feitos para nos amarmos, que não havia lugar em meu coração para outro amor, pois seria meu destino pertencer ao meu irmão, mesmo estando ele morto. — Me desculpe pela insinuação. — disse Gustavo, com voz terna. — Tudo bem. Qualquer pessoa pensaria a mesma coisa. — eu hesitei antes de continuar. — Gustavo, gostaria de te pedir um favor. — O que? — Quero que você me acompanhe até o lugar onde foi a casa dos meus antepassados, onde eles foram mortos. Ele refletiu por um instante antes de responder. Me perguntei se não o estava magoando novamente. — Tudo bem, mas você tem certeza que é uma boa idéia ir até lá? — Eu não sei, mas sinto que devo isso a eles. Suplicar por seu perdão pelo que Adalcino ajudou a fazer. — Você sabe onde fica? — Sei sim. Apesar de saber exatamente onde a velha casa se localizava, jamais me atrevera a aproximar-me dela, mesmo durante minha adolescência, quando cavalgava por todas aquelas terras. Nenhum dos moradores da cidade iam lá, diziam que o lugar era assombrado pelos fantasmas dos que ali morreram. Alguns minutos depois, eu e Gustavo deixamos o quarto. Encontramos Lucilene na cozinha, lavando a louça do café. Ao ouvir nossos passos, ela se virou em nossa direção, interrompendo sua tarefa. Fitou o meu rosto com olhar de súplica, certamente esperando por minha hostilidade. Mas como eu poderia odiá-la se ela era a pessoa que mais me amava nesse mundo? Então, fui até ela e a abracei, ternamente. Ela retribuiu ao abraço, com seus olhos marejados de lágrimas. Em seguida, olhei para o rosto de Adalcino, imóvel e silencioso, como sempre, sobre sua cadeira de rodas e, por um breve instante, o odiei, por ter participado da destruição dos meus antepassados, por ter matado meu verdadeiro pai. Senti, queimando em minhas entranhas, o mesmo desejo de vingança que motivara Daniel a aniquilar os assassinos de nossa família. No entanto, logo dei-me conta de que não tinha o direito de odiá-lo, afinal ele não se livrara de mim, como Anselmo e Francisco fizeram com os outros dois bebês, permitira-me crescer ao lado de minha mãe e suportara minha presença em sua casa até os meus dezessete anos de idade. Ele não merecia nenhum mérito por isso, porém também não merecia o meu ódio. Após tomarmos banho e o café da manhã, eu e Gustavo estávamos prontos para a cavalgada que nos levaria à antiga moradia dos meus antepassados. Encontramos os cavalos selados e equipados do lado de fora do quintal, como no dia anterior e os montamos, partindo, num trote lento, pelas ruas da cidade, sob o sol tórrido. Como antes, as pessoas paravam o que estavam fazendo, para nos observar. Pelo menos agora eu sabia o que estavam pensando: examinavam a única descendente da medonha família de lobisomens que eles tanto temiam. O ser que carregava seu sangue pecaminoso e ruim nas veias. Me perguntei se eles esperavam por uma súbita transformação minha. Mas, segundo a lenda, apenas os machos, responsáveis pela relação incestuosa, sofriam a metamorfose. Em poucos minutos atravessamos toda a cidade e adentramos a estrada que levava ao sertão, a qual se estendia por entre o cerrado baixo, quando aumentamos a velocidade dos

cavalos.

Atravessamos a ponte do pequeno rio Campo Lindo e seguimos sertão adentro. Ali, o silêncio era quebrado apenas pelos burburinhos dos insetos e pelo tamborilar dos cascos dos cavalos sobre o solo arenoso. Tratava-se de um dia abafado, de intenso calor, não havia sequer uma leve brisa movimentando os galhos das árvores de troncos retorcidos. A todo instante, minha mente insistia em relembrar a recente descoberta sobre minha verdadeira origem, porém Gustavo não me permitia mergulhar em tais pensamentos, abordando os mais variados e descontraídos assuntos, animando-me com seu jeito brincalhão, até um tanto infantil de ser, como sempre me fazendo sorrir, me resgatando do meu poço de tormentos. Alguns quilômetros à frente, abandonamos a estrada e adentramos o cerrado, nossos cavalos numa corrida veloz, desviando-se cautelosamente das poucas árvores. Pouco a pouco, o cerrado foi se tornando fechado, por onde os cavalos já não podiam mais correr e passamos a seguir mais vagarosamente. Chegamos a um ponto onde a mata era tão densa que não havia mais passagem para os cavalos, deixamo-los amarrados ao galho de uma árvore e seguimos à pés, num percurso perigoso por causa das cobras e dos demais animais malignos. Tratava-se de um lugar totalmente desabitado, onde há muito, ninguém se atrevia a passar. — Tem certeza de que é por aqui, Luana? — Gustavo perguntou, sua respiração ofegante pelo esforço da caminhada. — Claro, já estamos chegando. — eu respondi, de alguns metros à frente dele. Por fim, alcançamos uma pequena clareira, onde estavam as ruínas do que um dia fora a casa dos meus antepassados. Ainda haviam algumas poucas paredes em pé ali, pela metade, cobertas por ramos de arbustos e por grandes manchas pretas. O chão, tratava-se de uma plataforma de cimento grosso, parcialmente tomada pelo mato, onde também podia-se ver as manchas pretas causadas pelo incêndio. Apesar da precariedade daquele lugar, podia-se perceber que se tratara de uma casa pequena, com cinco cômodos, no máximo, bem dividida e construída de alvenaria. Há cerca de quatro metros de distância da casa, havia um poço, ainda com um balde amarrado a uma corda por sobre, também tomado pelos ramos de arbustos. Não havia sinal de água encanada ou energia elétrica. Aproximei-me do lugar, sentindo um profundo aperto no coração. Visualizei, mentalmente, meus parentes vivendo ali, em paz, em meio à solidão e ao sossego. Podia ver Daniel tirando água do poço, com facilidade, por causa dos seus braços fortes, enquanto sua esposa e irmã o observava de perto, fascinada com sua beleza. Se não fosse pela crueldade de tantos, eles ainda estariam vivos, inclusive Daniel. Comecei a pensar no desespero que os tomaram no momento em que a casa se encontrava em chamas. Provavelmente foram todos queimados vivos, já que o incêndio ocorrera durante a madrugada, surpreendendo-os enquanto dormiam. Com exceção de Daniel, todos foram mortos naquela noite. Reconstituí, mentalmente, a cena na qual sua mãe fugira do interior da casa, seu corpo em chamas, consigo nos braços, impedindo que os malfeitores o vissem. Me perguntei de qual dos cinco homens partira o tiro que a matara. A única pessoas que poderia me responder tal pergunta seria Adalcino, mas o derrame roubara-lhe a voz. Percorri meu olhar ao redor e imaginei Daniel, ainda criança, correndo livremente em meio àquela mata, descumprindo as ordens do pai de permanecer dentro de casa, pois certamente fora uma criança bastante levada, de personalidade forte. Depois, se tornaria adolescente e se casaria com sua irmã, que não seria eu, pois se seu pai não soubesse que seriam destruídos eu sequer existiria. Neste momento, minhas pernas fraquejaram e eu só não caí ao chão porque Gustavo me

segurou, estreitando-me em seus braços. — Você está bem? — ele perguntou, docemente. — Só um pouquinho tonta. — respondi. — É melhor a gente ir embora daqui, esse lugar me dá arrepios. Percorri novamente meu olhar ao redor, como se, do interior da escuridão da mata, algo me atraísse. De repente, tive a impressão de que alguém nos observava, dali, espreitando-nos e um calafrio percorreu-me a espinha. — Acho que não estamos sozinhos, Gustavo. — sussurrei, sem desviar meu olhar de um canto escuro da mata fechada. — É, eu já percebi isso. — ele falou, seus olhos também percorrendo a mata. — E agora, como vamos sair daqui? — Quem você acha que pode ser? — perguntei, confusa, sentindo o peso de um olhar sobre mim. Nenhum dos moradores da cidade se atreviam a se aproximar daquele lugar, pois acreditavam que era mal assombrado. Seria realmente um fantasma? — Sei lá! — Gustavo respondeu, sua voz sussurrada. — Talvez sejam os fantasmas dos seus antepassados. É melhor a gente ir embora, antes que eles se zanguem conosco. — Fala sério, Gustavo. Fantasmas não existem! — Ah, é?! Até um dia desses eu acreditava que lobisomens também não. — Se forem eles, não se zangarão comigo, afinal sou sua parente. — Mas eu não sou. Agora será que dá pra gente ir embora? Concordando com ele, dei-lhe a mão e, juntos, adentramos a mata, partindo pela mesma direção por onde viemos. Caminhávamos vagarosamente, com dificuldades por causa da quantidade de arbustos e pela ausência de trilha. Enquanto andávamos, tinha a impressão de que nosso observador nos seguia e me esforcei para não olhar para trás. Logo que alcançamos os cavalos, montamo-nos e seguimos em uma corrida veloz, a qual só cessamos quando alcançamos a estrada, continuando num trote mais lento. — Ufa! — Gustavo suspirou. — Agora acredito quando dizem que aquele lugar é mal assombrado. — Talvez fosse um caçador. — eu tentava tranqüilizá-lo. — Qual é, Luana. Aquilo que estava lá não era um ser humano. — Como é que você sabe? — Eu pude sentir. Eu havia me esquecido do inacreditável poder de percepção que Gustavo possuía, mas me recusava a acreditar que aquela presença era maligna, que queria nos fazer mal, talvez desejava apenas me conhecer, ver a descente mais nova da família. Já passava do meio dia quando chegamos a casa de Lucilene. Sentia-me cansada e fraca, por ter passado toda a noite anterior sem dormir. Minha cabeça latejava de dor. Após tomar um banho e almoçar, engoli um analgésico e fui direto para a cama, adormecendo rapidamente. Em meu pesadelo, reencontrei o lobo cinzento, nas vastas terras do sertão. Apesar do perigo que ele parecia representar, senti-me feliz em revê-lo, pois me fazia lembrar os sonhos que tinha quando estava com Daniel. Ele aproximou-se de mim e sentou-se ao chão, sobre o capim, seu olhar se deslocando do meu rosto para o infinito. Olhei naquela direção e, ao longe, vi alguém se aproximando. A princípio, não consegui distinguir de quem se tratava, pois estava ainda muito distante, mas logo avistei o rosto de Douglas. Ele usava uma camisola de hospital; tinha um buraco

de bala na cabeça; o rosto banhado de sangue e um revólver na mão. Ao aproximar-se de nós, apontou a arma para o lobo, mas não atirou, depois virou o cano para a minha direção e apertou o gatilho, fazendo-me despertar do meu sono intranqüilo. Quando despertei para a realidade, tinha meu coração acelerado no peito e meu corpo banhado de suor. Percebi que a noite já caíra, embora não tivesse noção de que horas eram. Ao lado da minha cama, vi Gustavo, deitado, desconfortavelmente, sobre o colchonete, seus olhos fechados, o rosto sereno, puro e ingênuo como o de um garoto. Parecia um anjo de cabelos castanhos. Relembrei o pesadelo, a visão de Douglas, ensangüentado, atirando em minha direção e senti todo o meu corpo se estremecer de pavor. Embora ele ainda se encontrasse em coma no hospital, o tempo diminuindo suas chances de se recuperar, eu tinha receio que um dia viesse me procurar, principalmente agora, após aquele pesadelo tão real. Com minha garganta seca, fui até a cozinha, em busca de um copo d’água, constatando que a casa encontrava-se completamente escura e silenciosa. Em meio à penumbra, abri a geladeira e comecei a abastecer o copo com a água gelada, quando, de repente, ao longe, ouvi o uivo de um lobo e subitamente, deixei o copo escorregar de entre os meus dedos, estilhaçando-se no chão. Era o mesmo uivo que ouvira quando estivera com Gustavo no sertão, porém agora bem mais distante. Permaneci imóvel por um instante, verificando se o uivo despertara alguém na casa, mas não houve nenhum movimento. Então, seguindo a um impulso incontrolável, abri a porta da cozinha e saí para o quintal, ignorando o fato de que usava apenas uma fina camisola de algodão e que meus pés estavam descalços. Encontrei os cavalos, com os quais cavalgara ao lado de Gustavo, mais cedo, e montei um deles, mesmo estando este sem a sela e os arreios. Em seguida, afastei-me da casa, vagarosamente, para não despertar a atenção de alguém que pudesse tentar impedir minha atitude louca e insensata. A cidade encontrava-se totalmente deserta e silenciosa, enquanto eu cavalgava pelas ruas, sem um destino certo, pensando em procurar o autor do uivo que ouvira. Deixava o cavalo, praticamente se guiar por si só, pois ele parecia conhecer perfeitamente o caminho. Ao alcançarmos a estrada que nos levaria ao sertão, o animal se pôs a correr velozmente, demonstrando a mesma ansiedade que eu em chegar, como se nossas mentes estivessem conectadas. Alguns quilômetros mais adiante, deixamos a estrada, seguindo por entre o cerrado alto, por um lugar que eu não conhecia. Percorremos mais alguns quilômetros, na direção que o cavalo queria, até que por fim, ele parou, diante de um pequeno riacho de águas correntes. Saltei do animal e percorri meu olhar ao redor, à procura não sabia exatamente do que, quando, de repente, na margem posterior do riacho, avistei dois vultos enormes, embora não conseguisse distinguir do que se tratavam. Aproximei-me mais da margem, concentrando meu olhar naquela direção, quando lentamente, sob a fraca luz do luar, constatei que se tratavam de dois lobos enormes, um negro e outro cinzento, os quais estavam deitados, tranquilamente, sobre a areia branca na margem do riacho, observando-me. Qualquer pessoa, ali, no meu lugar, teria se apavorado com a presença daqueles extraordinários animais, pois não haviam lobos no sertão nordestino, porém eu não sentia medo nenhum, de alguma forma sabia que eles não me fariam mal. Observei mais atentamente o lobo de pelos cinzentos, era maior que o outro e exatamente igual ao que eu via em meus sonhos. Apesar da fraca claridade e de se encontrar a uma certa distância, na outra margem do riacho, percebi que ele me observava também. — Daniel... é você? — perguntei, num impulso.

Os dois animais permaneceram imóveis, observando-me, imparcialmente. — Eu sei que é você, Daniel, eu posso te sentir! — desta vez eu gritei, sem desviar meu olhar do lobo cinzento. Porém, eles não moveram um só músculo de seus corpos peludos. De repente, comecei a sentir-me meio ridícula, sozinha ali, no meio do mato, àquela hora da noite, tentando dialogar com dois animais irracionais. Talvez a descoberta sobre minha verdadeira origem me afetara mais do que imaginara e estivesse, realmente, ficando louca. Então, dei meia volta e um passo na direção do cavalo, decidida a montá-lo e voltar para casa, quando, de repente, ouvi meu nome ser pronunciado às minhas costas, por uma voz masculina, familiar, tão próximo que pude sentir a respiração quente em minha nuca. Hesitantemente, virei-me naquela direção e, neste instante, tive certeza de que estava louca, pois meus olhos se depararam com a mais perfeita ilusão: Daniel encontrava-se em pé à minha frente, completamente nu, seu rosto lindo iluminado pela luz do luar. Tinha os cabelos bem curtos, a barba feita, e a fisionomia relaxada. Seus olhos verdes, não mais expressavam a frieza que eu tanto conhecia, mas um ardor profundo. A visão era tão real que eu podia sentir o seu cheiro. Sentindo-me completamente atordoada, desviei meu olhar para a margem posterior do riacho, constatando que o lobo cinza já não estava mais lá, apenas o outro. Voltei meu olhar para a minha ilusão novamente, perguntando-me o que me levara a enlouquecer a tal ponto. Num gesto mecânico, ergui minha mão trêmula e o toquei, na altura do peito, pelo mais breve dos instantes, percebendo então, que não se tratava de ilusão alguma, mas da mais inacreditável realidade. Ele estava realmente diante de mim, pois tinha sua pele quente e respirava, ofegantemente. — Daniel... é você? — indaguei, com voz trêmula, as lágrimas ameaçando aflorarem em meus olhos. — Sou eu sim meu amor, estou aqui... — ele disse, num sussurro, sua voz tão familiar quanto seu rosto. Então, segurou minha mão entre as suas, fazendo uma suave pressão. Senti o calor de sua pele sobre a minha e não tive mais dúvidas: era realmente Daniel. Ele estava ali, estava vivo e falava comigo. — É você mesmo? — eu insisti em perguntar, pois era surreal demais para acreditar: há um ano atrás eu o vira ser morto pela polícia; tocara seu corpo sem vida; ensangüentado, caído ao chão. Como poderia estar ali, agora? — Sou eu, Luana, estou aqui. — ele me assegurou, apertando minha mão com mais força, intensificando o contato. Neste momento, já não mais consegui conter as lágrimas e deixei que estas banhassem meu rosto. Mas não eram lágrimas de tristeza ou dor e sim de uma felicidade indescritivelmente infinita, pois estava novamente diante do meu amor, do meu destino, do meu irmão, para o qual eu fora predestinada. Com um soluço, atirei-me em seus braços, enlaçando-o pelo pescoço, com meus braços trêmulos, fazendo uso de todas as minhas forças. Ele abraçou-me de volta, comprimindo meu corpo contra a sua nudez. Por um longo tempo, eu chorei em seus braços, expulsando do meu peito a dor de sua ausência, a qual há muito me acompanhava. Até que, pouco a pouco, minha mente foi invadida por um turbilhão de pensamentos sombrios, confusos, os quais me remetiam a um passado amargamente

doloroso. — Você estava vivo esse tempo todo?! — eu gritei, desvencilhando-me dos seus braços, secando meus rosto com as costas da minha mão. — Estava... quer dizer, mais ou menos. — foi a resposta dele. — Como assim, mais ou menos?! — gritei novamente, minha mente trabalhando rapidamente, em busca de uma explicação. — Por que você não me procurou? Por que me deixou sozinha esse tempo todo, sofrendo por sua perda? — Eu não podia te procurar, Luana. — Por que?! — Porque eu precisava te dar a chance de ter uma vida tranqüila e feliz. — subitamente, uma angústia profunda surgiu em seus olhos verdes. — O que você iria querer comigo? Eu sou apenas um espírito. Só posso me tornar um ser humano durante a noite, logo que o sol nascer, voltarei a ser um animal. O confuso turbilhão de indagações em minha mente, se transformava em fúria, uma fúria maior do que eu pudesse controlar. Como se repassasse um disco de DVD em minha mente, relembrei todo o meu sofrimento desde que ele me deixara, entregando-se à polícia, mesmo sabendo que seria morto; a angústia que sentira ao ver seu corpo sem vida, estendido no chão, banhado de sangue. Depois, veio a overdose de cocaína; nosso filho, morto em meu ventre, por causa da minha dor incessante, causada por sua perda. Visualizei, mentalmente, a violência de Douglas; o tiro que Olívia me dera. Como ele podia esperar que eu tivesse uma vida feliz se, quando partira, levara consigo uma parte de mim, deixando-me mergulhada em uma dor tão profunda que me imobilizara, completamente para a vida? — Uma vida... feliz?! — eu falei, entredentes, a fúria cegando-me quase que por completo, impedindo-me de raciocinar claramente. Como se tentasse puni-lo, por ter me causado tamanha dor ao partir, dei-lhe as costas e removi minha camisola, até a altura dos quadris, deixando à mostra as cicatrizes em minha pele, causadas pelas surras que Douglas me dera. — Você acha mesmo que eu tive uma vida tranquila?! Ele aproximou-se mais de mim, tocando-me as costas com a ponta dos dedos, deslizandoos, suavemente, por sobre as cicatrizes. — Ah, meu Deus! O que fizeram com você, Luana? — perguntou. Virei-me novamente para ele, cobrindo meus seios com a camisola, expondo-lhe uma cicatriz mais recente, feita à bala, na altura do meu ombro. — Você acha que fui feliz sem você, Daniel?! — gritei, descontrolada pela fúria. — Quem fez isso com você Luana?! — ele gritou. — Foi o desespero! A dor que senti quando você... morreu! Durante muito tempo me senti como se estivesse morta também. Não tive forças para lutar contra isso! — eu gesticulei, com a mão, para a cicatriz em meu ombro. — Nem para evitar que nosso filho fosse morto! — minha última frase, saiu concomitante a um soluço. Ele fitou-me em silêncio por um longo momento, uma amargura profunda surgindo em seus olhos. — Nosso filho? — perguntou, finalmente. — Isso mesmo Daniel. Eu estava grávida quando você me deixou. Mas quando descobri, já havia matado nosso filho, ainda em meu ventre. — eu não conseguia conter o tremor em minha voz. Neste momento, ele caiu de joelhos, diante de mim, desviou seu olhar para o chão e com

tom de súplica, falou: — Me perdoe, Luana. Por permitir que você sofresse tanto assim. Eu não sabia que você estava infeliz. Se isso tivesse passado pela minha cabeça, jamais teria permitido. Como se despertasse de um pesadelo irreal, subitamente, dei-me conta, da tolice dos meus atos, do descabimento das minhas acusações. Daniel não tinha culpa se eu fora fraca para enfrentar a vida sem sua presença. Não merecia as acusações que eu lhe desferia. Durante todos aqueles meses, a única coisa que eu desejara, fora tê-lo novamente ao meu lado, ter mais uma chance de estar com ele, porém, agora que meu mais secreto desejo se concretizava, eu cometia a insanidade de culpá-lo, de acusá-lo pelo que minha fraqueza permitira que Douglas e Olívia fizessem. Daniel não tinha culpa de nada, não podia responder por minha covardia e fraqueza. Como que tentando redimir-me do meu erro, ajoelhei-me também, diante de si. Fitei-o diretamente nos olhos e disse: — Me desculpe, por estar te acusando dessa forma. Você não tem culpa de nada. — Tenho sim, Luana. Eu levei o sofrimento para a sua vida, no momento em que te sequestrei, em Copacabana. — Não diga isso. Me seqüestrar foi a melhor coisa que você fez, pois me permitiu te conhecer e te amar. Antes de te conhecer eu sequer tinha uma vida. Sem você, eu jamais saberia o que é o amor. No instante em que fechei minha boca, ele usou suas duas mãos para puxar o meu rosto para si, tomando meus lábios com voracidade, como se pretendesse me devorar. Senti o sabor de seus lábios de encontro aos meus e meu coração ganhou um novo ritmo, tão acelerado que eu podia ouvir suas batidas. Nada no mundo, poderia ser comparado às sensações indefiníveis que aquele beijo me despertava. Juntos, erguemo-nos do chão, nossos corpos unidos, nossas peles se tocando, enquanto eu me sentia dominada pelo mais primitivo dos desejos. No entanto, Daniel se afastou, seu rosto enrubescido de constrangimento, certamente por sua nudez. — Você não precisa ter vergonha de mim. — eu falei, ansiosa por uma novo toque seu. — Não é isso. — ele disse, em seguida, voltou seu olhar para o lobo de pelos negros, que permanecia na outra margem do riacho, observando-nos. Encarou-o por um longo momento, até que este levantou-se do chão, deu-nos as costas e desapareceu mata a dentro. — Quem é ele? — perguntei, curiosa. — Não é ele, é ela. É minha mãe. Àquela altura, nada mais me chocava. — Sua mãe? — Sim. Saiu para nos deixar sozinhos. — Como é que você sabe? — Ela disse. Eu não me atrevi a perguntar de que forma ela poderia ter dito alguma coisa, se seus lábios sequer se moveram, tampouco emitira algum som. — Ah, Luana, tenho tanta coisa pra te contar. Mas primeiro preciso arranjar algo para vestir. É muito constrangedor conversar assim. — ele começou a percorre seu olhar ao redor, certamente à procura de uma folha bem grande. — Não. — eu protestei. — Você não deve se vestir, pois fica muito bem assim. Eu é que preciso me despir. — rapidamente, livrei-me da camisola e da minúscula calcinha, as únicas peças que usava.

— Viu? Agora estou igual a você... Ele percorreu seu olhar pelo meu corpo, completamente nu, até alcançar os meus olhos, fitou-me profundamente, por um breve momento, depois, com um movimento muito ágil, puxou-me de encontro a si, tomando meus lábios novamente, num beijo selvagem, quase desesperado, como se aquele fosse o último minuto de nossas vidas. Dominada pelo mais primitivo dos desejos, comprimi mais meu corpo contra o dele, experimentando, com um gemido, o contato de sua pele quente de encontro à minha. — Ah, Daniel. eu esperei tanto por esse momento. — sussurrei, com respiração ofegante. Lentamente, ele ergueu-me no ar, com seus braços fortes, estendendo meu corpo sobre a relva, deitando-se sobre mim. — Luana... eu te amo tanto... — ele sussurrou, tomando novamente os meus lábios. Eram indescritíveis as sensações que o contato de Daniel me despertava. Nossos corpos se encaixavam perfeitamente, como se realmente foram feitos um para o outro. Embora eu ainda amasse a Gustavo, neste momento, não tive nenhuma dúvida de que Daniel, vivo ou não, era o homem da minha vida, embora fosse também meu irmão. Ele era muito parecido comigo, era impetuoso, impulsivo, como eu. No instante em que eu me despira da minha camisola, ele tomara os meus lábios, num gesto impulsivo, impensado, sem se importar com onde nos encontrávamos, ou com tudo o que ainda tínhamos para conversar, agindo exatamente como eu agiria. Quando o êxtase finalmente nos levou à exaustão, ficamos imóveis sobre a relva macia, nossos corpos trêmulos, suados, entrelaçados um no outro. Uma brisa suave começou a soprar, fazendo balançar as folhagens dos galhos mais altos das árvores, emitindo um som fantasmagórico e peculiar, a trilha sonora do nosso amor, a qual se misturava às batidas descompassadas do meu coração. Logo um relâmpago iluminou a penumbra da noite, seguido por uma estrondosa trovoada. Era a formação da tempestade resultante do calor intenso daqueles dois últimos dias. — E então, como você veio parar aqui? — perguntei, depois de um longo momento de silêncio. Ele deitou-se de lado, apoiando a cabeça sobre o cotovelo, fitando o meu rosto com seus olhos de um verde claro e brilhante. — Foi a coisa mais incrível que já me aconteceu. — ele começou a falar. — Em um momento, eu estava sendo baleado pela polícia e no instante seguinte, acordei em uma maca no necrotério. Quando despertei, me sentia completamente diferente, mais leve, como se meu corpo tivesse diminuído de tamanho. Demorei alguns minutos para perceber que não era mais humano, estava transformado em lobo. — E depois, o que você fez? — Tive um certo trabalho para fugir dali e depois fiquei vagando pelo mato, me sentindo completamente perdido, sem saber o que fazer, ou para onde ir. Não conseguia pensar em outra coisa que não em te procurar, mas não podia aparecer na sua frente naquela forma, ia apenas te assustar. Eu sequer conseguia falar, não sabia como me transformar outra vez em humano. Perambulei pelas matas do Rio de Janeiro durante quase um mês, até que meus antepassados me descobriram e foram me buscar. — Como assim, seus antepassados? Eles não estavam todos mortos? — Como eu, após serem mortos eles ressuscitaram em forma de lobo. Nossos espíritos tomaram uma nova forma. Mas não nos mostramos mais à raça humana, pois se formos destruídos agora, não

teremos mais volta. Senti um calafrio percorrer-me a espinha ao ouvir sua última frase. — E por que vocês não se transformavam em seres humanos novamente e voltam a viver entre as pessoas? — Não é tão simples assim, Luana. Bem poucos de nós podem voltar à forma humana. Só acontece quando há um motivo muito forte. — E o que te motivou a voltar? — O nosso amor Luana. A força do nosso amor foi o que me trouxe de volta. Durante todo esse tempo, jamais deixei de pensar em você, nem mesmo por um minuto. Por muitas vezes pensei em ir te procurar no Rio de Janeiro, mas minha família não me permitia revelar o segredo de nossa existência, além do mais eu não queria atrapalhar sua vida, queria que você fosse feliz, ao lado de um ser humano normal. — ele fez uma pausa, como se escolhesse as palavras. — Uma vez, eu não suportei mais a sua ausência e fui atrás de você, desobedecendo às ordens do meu povo. Depois de muitos dias te procurando, seguindo os meus instintos de animal, encontrei você no sítio Boa Esperança. Vi você cavalgando ao lado daquele homem, bem mais velho. — ele se referia a Douglas. — Você parecia tão feliz... Só Deus sabe o quanto tive que me esforçar para não me aproximar, para não te abraçar e te tocar, mas você não me aceitaria como eu estava, eu apenas te assustaria e estragaria sua felicidade. Neste momento, relembrei o vulto que vira na pequena floresta de Boa Esperança, após uma manhã de cavalgada ao lado de Douglas. — Ah, meu Deus! Então foi você quem eu vi na mata àquela tarde?! — Sim. Você sentiu a minha presença, por isso foi até lá. Quando vi você chorando, por minha causa, tive certeza de que estava atrapalhando sua felicidade e nunca mais voltei lá. Decidi que nunca mais me aproximaria de você, mesmo que para isso eu precisasse morrer por dentro. Porém ontem à tarde, quando vi você no sertão... aquele sujeito te beijando, tocando o seu corpo, eu não agüentei... — Então foi você que ouvimos! — falei, relembrando o uivo que eu e Gustavo ouvimos no sertão. — Foi. Eu estava caçando na mata, com minha mãe, quando senti sua presença e te procurei, até te avistar. Pretendia apenas te ver de longe, sem me mostrar, mas não consegui me controlar quando vi aquele sujeito com as mãos em você. Quando vimos você esta manhã, nas ruínas da antiga casa de nosso povo, percebemos que você já sabia a verdade sobre sua origem, que pertence ao nosso povo. Depois disso, minha mãe me ajudou a convencer os demais a me darem permissão para vir falar com você. — E como você sabia que eu te encontraria aqui? — Luana, da mesma forma que eu posso sentir sua presença, você pode sentir a minha. E o cavalo ajudou a te guiar até aqui. — O cavalo? — Sim. Nosso povo tem uma conexão misteriosa com os eqüinos. Agora ficava claro para mim, porque eu gostava dos cavalos e me dava tão bem com eles, o que me ajudara a vencer o campeonato de Hipismo, em Niterói. Compreendia também, a nostalgia pela qual fora invadida, pouco antes de ouvir o uivo de Daniel: estava sentindo sua presença. — É verdade que nosso pai me fez, para ser sua companheira? — Sim. Você foi feita para mim. Nosso pai nos predestinou a ficarmos juntos, porque sabia que nosso povo seria destruído e queria preservar a espécie. — Como ele sabia disso?

— Ele, tinha o dom de prever o futuro. — Tinha? — Sim. Perdeu-o quando foi assassinado. — E nossos outros irmãos, vocês sabem onde eles estão? — Não. Não temos idéia de onde eles estão, se estão vivos ou mortos. Se estiverem vivos, certamente viverão suas vidas como seres humanos normais, sem jamais conhecerem sua origem. — Mas, não podemos senti-los, da mesma forma que sentimos um ao outro? — Não. Só se sente a presença um do outro, quando se ama de verdade, como nos amamos. — Você disse que estava caçando com sua mãe... vocês caçam para... comer? — Sim, nos alimentamos de animais herbívoros, excerto dos cavalos. — Mas vocês comem eles... crus? — Sim. Quanto mais crus, mais doce é sua carne. — Eca! Que nojo! Neste momento, seu rosto se iluminou com um lindo sorriso, depois relaxou novamente, quando, suavemente, ele percorreu a ponta do seu dedo dos meus lábios até meu umbigo, fazendo minha pele se arrepiar sob seu toque. — É espantoso, não é? — ele perguntou. — O que? — Sermos irmãos e estarmos... apaixonados. — Não é tão espantoso assim. Essa é a natureza do nosso povo. E é nosso destino ficarmos juntos, pois fazemos parte da mesma geração. — Sim. Nós somos mais animais que humanos. Como aqueles, nos acasalamos entre si, desconsiderando o laço sanguíneo, diferentemente dos seres humanos. Teríamos dado continuidade à nossa espécie se eu... — ele hesitou antes de continuar. — ...se eu não tivesse abandonado você e nosso filho sozinhos. Com meu coração apertado, pela culpa de tê-lo acusado, eu o abracei com força, dizendo: — Não foi sua culpa o que aconteceu, Daniel. Na verdade eu sou mais culpada que você, por ter deixado nosso filho morrer. — Foi minha culpa sim, Luana. Pra começar, eu não devia ter iniciado aquela vingança, que me levou à morte. Teria conhecido você de outra forma. E depois, eu devia saber que você não conseguiria viver sozinha entre os seres humanos, somos diferentes deles. — Não diga mais isso, meu amor, não fale mais de morte perto de mim. Ainda não é tarde demais, ainda podemos ser felizes juntos, ter nossos filhos e continuar nossa espécie. — Não é tão simples assim. Não podemos mais ficar juntos, tampouco posso engravidar você. Suas palavras causaram um intenso tremor em meu corpo. Eu não mais suportaria ficar longe dele, como suportara durante todo aquele tempo. — Do que você está falando? Por que não podemos ficar juntos? — perguntei, uma angústia profunda invadindo o meu peito. — Porque não sou mais um homem Luana, mas apenas um espírito. Só consigo tomar a forma humana durante a noite, logo que o sol nascer, voltarei a ser um animal. O que você ia querer com alguém assim? Pela metade? Além do mais eu já estou morto, não posso mais te dar um filho. — Eu não me importo em ter você pela metade ou em jamais me tornar mãe. Só não quero mais ficar sem você. Isso eu não suportaria. Preferiria a morte.

Ele fitou-me profundamente, por um longo momento, com uma expressão indefinível em seu olhar. Em seguida, com um gesto rápido e repentino, cobriu os meus lábios com os seus, num beijo muito suave. Quando afastou-se, disse. — Por favor, nunca mais diga uma coisa dessas. Por um breve instante, outro relâmpago clareou a penumbra da noite, quando percebi uma profunda tristeza em seu olhar. No momento que se seguiu à trovoada, um silêncio macabro pairou sobre nós. Nossas mentes invadidas pelo mesmo pensamento: como ficarmos juntos vivendo em mundos tão diferentes. Enquanto eu vivia em meio aos seres humanos, ele era um animal, sequer podia se mostrar à raça humana. A única chance de ficarmos realmente juntos, seria eu morrer e tornar-me um lobo, como ele. Mas esta era uma possibilidade que Daniel jamais aceitaria, não se tornaria culpado por tirar minha vida, preferiria antes, abrir mão da sua, como fizera no passado, quando entregara-se aos policiais, apenas para proteger-me. A chuva que há muito se formava no céu, começou a cair, molhando nossos corpos nus. Daniel percorreu seu olhar ao redor e disse: — Está na hora de você voltar para casa, Luana. — Por que? É só um pouco de chuva. Ele ficou de pé, rapidamente. Pegou minhas roupas do chão e as entregou a mim, dizendo: — Não é por causa da chuva. O dia já vai amanhecer e você sabe o que acontecerá comigo. Levantei-me também e vesti-me das minhas roupas encharcadas pela água da chuva. Depois disse: — Eu não vou embora agora. Quero ver você se transformar. Ele deslocou seu olhar do meu rosto para o céu, quando voltou a me fitar novamente, havia uma angústia profunda expressada em seu olhar. Aproximei-me dele e tentei tocar-lhe o rosto, para que sua tristeza se amenizasse, mas ele afastou-se ao contato, recuando um passo. Então, neste momento, sua metamorfose se iniciou: lentamente, seu corpo foi diminuindo de tamanho; sua pele branca deu lugar a densos pelos cinzentos; suas orelhas se tornaram pontiagudas e suas mão e seus pés se transformaram em patas, apoiando-lhe o corpo ao chão. Em questão de segundos, Daniel era um lobo novamente. O grande lobo cinzento com o qual tantas vezes eu sonhara. Ele permaneceu imóvel, diante de mim, fitando o meu rosto, com seus olhar triste, como se tentasse dizer-me algo, mas sua voz não se manifestava. Por fim, deu-me as costas e afastou-se, atravessando o riacho com um largo salto, desaparecendo mata a dentro. Depois que ele se foi, permaneci em pé ali, imóvel, petrificada, observando o local por onde ele desaparecera. Com meu coração apertado no peito, perguntava-me quando o veria novamente, se estaria ali, naquele mesmo lugar, na noite seguinte. Talvez fora o que tentara me dizer, quando já não mais podia pronunciar as palavras, ou talvez, estaria se despedindo. Mas eu preferia acreditar na primeira hipótese. Algum tempo depois, como se despertasse de um transe, dei-me conta de que precisava voltar para casa. À essa hora todos já haviam acordado em casa e, certamente estavam preocupados com o meu desaparecimento inexplicável. Assim, montei o cavalo e segui pelo caminho de volta, vagarosamente, permitindo que o animal seguisse no ritmo que desejasse, enquanto que a chuva forte encharcava meu rosto e meu corpo. Quando adentramos as ruas de Serra Azul, muitas pessoas apareceram nas janelas das casas para me observarem. Dei-me conta de que a camisola molhada, se colava ao meu corpo, deixando-o à mostra e acelerei a velocidade do cavalo, afim de fugir dos

olhares curiosos. Quando entrei em casa, encontrei toda a família reunida na sala, ainda usando as roupas de dormir. Lucilene foi a primeira a vir ao meu encontro. — Por Deus, Luana! Onde era que você estava?! — Ela indagou, abraçando-me aflita. — Eu saí para dar uma volta a cavalo e acabei me perdendo no sertão. — disse eu, sem conseguir esconder meu sorriso de pura felicidade. Eu não havia pensado em uma desculpa para dar a eles, tive que improvisar uma mentira de última hora. — Você está bem? — Adailsom perguntou. — Sim, estou perfeita! Neste momento, percebi que, de um canto da sala, Gustavo me observava com olhar sombrio. Eu podia enganar a todos ali, menos a ele, pois me conhecia mais que eu própria. Evitei olhar em seu rosto, para que ele não me desvendasse, como costumava fazer. Afinal, eu não podia revelar a ninguém, nem mesmo a ele, a existência de Daniel e de nossa família. — Nossa! A gente quase enlouquece de preocupação com você. — Adriana falou. Ela se encontrava próximo a Gustavo. Perto demais, talvez e, por algum motivo, isso me incomodava. — Pois é. Me desculpem por deixar vocês preocupados, mas não aconteceu nada de mais. — Não precisa se desculpar filha. A gente exagerou mesmo. Agora vai tirar essa roupa molhada antes que fique gripada. — Lucilene, deu-me a chance de fugir de mais explicações. — Vocês já tomaram café? — perguntei, enquanto me dirigia ao quarto. — Huum! Estou morrendo de fome. — A gente ainda não comeu, vai trocar de roupas, vamos esperar você. — Adriana declarou. No momento em que entrei no quarto e livrei-me das roupas molhadas, Gustavo abriu a porta e entrou, fechando-a novamente, atrás de si. Ele fitava-me com olhar duro, percorrendo-o por todo o meu corpo nu. Instintivamente, cruzei os meus braços diante dos meus seios, como se tentasse ocultar minha nudez. — Ei! Será que dá pra virar pra lá? Eu estou trocando de roupa! — protestei. — Pára com isso, Luana. Estou acostumado a ver você nua, não faz sentido você esconder seu corpo de mim. Ele estava certo, aquilo não fazia o menor sentido. No entanto, em meu íntimo, eu sentia como se estivesse sendo desleal a Daniel, se ficasse nua na presença de outro homem, mesmo que esse homem fosse Gustavo, o segundo amor da minha vida. Por outro lado, eu deveria estar me sentindo infiel também, e principalmente a Gustavo, por ter dormido com outro homem, quando sabia o quanto ele me amava. — E então, vai me contar onde realmente passou a noite? — ele perguntou, sentando-se na beirada da cama. Neste momento, dei-lhe as costas, fingindo procurar uma muda de roupa no velho guarda roupas de madeira. Precisava pensar rapidamente em algo para dizer-lhe, o que não era nada fácil, pois eu sabia que nada, além da verdade, o convenceria. Gustavo tinha o dom de enxergar minha alma, jamais conseguiria mentir para ele. — Passei a noite no sertão, como eu disse. — até ali, eu não estava mentindo. — Não minta para mim, Luana. — Eu não estou mentindo. — Tudo bem, então vou mudar minha pergunta: com quem você passou a noite no sertão?

Finalmente, virei-me para fitá-lo no rosto. — Eu não posso dizer. — foi a minha resposta. Ele foi até a mim, colocando-se à minha frente, fitou-me profundamente nos olhos por um longo momento, então perguntou: — Isso por acaso tem alguma coisa haver com aquele uivo que ouvimos no sertão? Rapidamente, desviei meu olhar do dele, tentando esconder minha expressão de surpresa, com o fato de ele ter adivinhado, em cheio, o que acontecera. Eu não me cansava de me surpreender com aquela incrível capacidade que ele tinha de me entender, era como se fosse capaz de ler os meus mais secretos pensamentos. — Não. — respondi, ainda sem encará-lo, tentando parecer o mais convincente possível. — O que uma noite fora de casa, teria haver com um uivo estranho? Ele refletiu por um momento antes de falar: — Você não vai mesmo me dizer a verdade, não é? Por fim, escolhi uma muda de roupas: um conjunto de short e camiseta de malha de algodão e vesti-me rapidamente. Em seguida, coloquei-me ao seu lado, segurando-lhe, ternamente, a mão. — Gustavo, você sabe que eu te amo e que sempre vou te amar, mas isso que aconteceu comigo ontem, eu não posso te contar, porque não é um segredo meu, entende? — falei. — Eu achei que você estava começando a me amar, mas agora vejo que estava enganado. — Não. Você não estava enganado, eu te amo, você é muito especial para mim, mas... — de repente, me interrompi, percebendo que, se continuasse, acabaria falando o que não devia. — Mas você ama mais a outro. — ele falou. — Não era isso que você ia dizer? — Por que você insiste em acreditar que eu estava com outro homem? — Porque eu estou vendo a sua cara, Luana, você está... feliz. — Como meu amigo, você deveria estar contente por me ver feliz. — Você sabe que não sou apenas seu amigo. — Não quero mais falar sobre isso, OK? — eu falei, sem mais saber o que dizer-lhe. Então, dirigi-me para a porta. Antes de sair o vi sentar-se na cama, inclinando sua cabeça para baixo, afundando-a entre as palmas de sua mãos e senti um doloroso aperto em meu coração, por estar magoando-o daquela maneira. Eu amava Gustavo, por muito tempo ele fora tudo para mim, mas agora, Daniel voltara e era ele a quem eu amava mais. Se eu pudesse ficaria com os dois, mas não podia ser desleal a tal ponto, tanto com um, quanto com outro e Gustavo precisava que aprender a aceitar tal realidade. Na cozinha, todos os membros da família se encontravam reunidos em torno da mesa de madeira, começando a tomar o café da manhã. Sentei-me em uma cadeira vazia e servi-me de uma fatia do cuscuz de arroz com azeite de coco e café. — E Gustavo, não vem tomar café? — Foi Adriana quem perguntou. Eu já percebera o interesse dela por Gustavo e me sentia incomodada com isso. Como eu podia ser tão egoísta? — Ele já vem. — respondi. — Em que região você se perdeu, Luana? — Adailsom perguntou, após morder um grande pedaço de cuscuz. — Lá pros rumos do Canto de Areia. — pensei rápido e menti. O local onde encontrara Daniel, ficava exatamente na direção oposta.

— Mas você conhece aquelas terras como a palme de sua mão, filha. Como foi se perder logo ali? — Lucilene anunciou. — Acho que o tempo me fez esquecer as trilhas certas. — Isso acontece. — Adriana falou. — A filha do seu Tibério, quando voltou de São Paulo, não sabia mais nem onde ficava a fonte. Alguns minutos depois, Gustavo juntou-se a nós à mesa, servindo-se da refeição. Ele tinha o rosto sério, a fisionomia angustiada. Enquanto os outros conversavam, descontraidamente, falando sobre a filha do se Tibério, a todo momento, os olhos dele encontravam os meus, flagrando meu ar pensativo e meu sorriso de felicidade. Tentei evitar encará-lo, para que minha imensa felicidade, não o magoasse ainda mais. Quando terminamos a refeição, a chuva já havia se cessado e o sol apareceu novamente no céu. Adriana e Adailsom partiram para a roça, enquanto que Lucilene se empenhava com os afazeres da cozinha. Quanto a mim, fui diretamente para o quarto, sinceramente desejando que Gustavo não me seguisse, exigindo-me a verdade. Deitei-me na cama e comecei a adormecer, lentamente, ainda pensando em Daniel, no calor dos seus braços fortes em torno do meu corpo; no sabor do seu beijo ardente; nas indescritíveis sensações que me despertava. Eu não poderia me sentir mais feliz, como naquela manhã, após uma noite ao lado do meu verdadeiro amor. Até o seu cheiro ainda estava impregnado em minha pele. Ansiava por estar com ele novamente. Mergulhada em uma profunda paz e felicidade, eu adormeci, antes de cerrar os meus por completo, perguntei-me onde se encontraria Gustavo, como estaria se sentindo naquele momento... Quando despertei, percebi, desapontada, que ainda era dia. Todo o frescor proporcionado pela chuva daquela manhã havia se dissipado e o calor abafado voltara a prevalecer. Com meu corpo encharcado de suor, deixei o quarto, atravessando a cozinha, totalmente deserta, dirigindo-me até o banheiro. Após tomar um demorado banho frio e escovar os dentes, vesti uma bermuda jeans e top de malha e segui para a sala, onde também não havia ninguém. Na varanda, encontrei Lucilene sentada em uma cadeira de macarrão, fazendo crochê, ao lado de Adalcino. — Oi filha. — disse ela, ao me ver aproximar-me. — Até que em fim você acordou! — Que horas são? — perguntei, com um bocejo. — Três horas da tarde. Você dormiu muito, estava realmente cansada! — não sei se fora minha impressão, ou se havia uma discreta malícia em suas últimas palavras. — Onde está todo mundo? — eu perguntei, pensando, especificamente, em Gustavo. — Foram todos para Imperatriz. Adailsom precisava comprar algumas ferramentas e convenceu Gustavo a levá-lo de carro. Adriana, é claro, não ficaria de fora de um passeio desses. Neste momento, senti um forte aperto em meu coração, pela ausência de Gustavo. Apesar de Daniel ter voltado para mim, ele ainda era a luz do meu viver. Comecei a me perguntar se, durante o passeio, Adriana investiria em atrair-lhe a atenção e, se tentasse, se Gustavo resistiria à tentação, afinal minha irmã era jovem, carismática e linda, qualquer homem se renderia aos seus encantos. De uma coisa eu tinha certeza: ela estava interessada em Gustavo, isto ficara evidente no seu comportamento durante aquela manhã. Porém, a ansiedade pela chegada do anoitecer, quando encontraria meu amor novamente, sobrepunha-se a todos os demais pensamentos e sentimentos. — Você está com fome? — Lucilene perguntou, despertando-me dos meus devaneios.

Sem esperar minha resposta, ela partiu para o interior da casa, movendo-se com muita vitalidade para sua idade, gesticulando para que eu a seguisse. Na cozinha, fez-me sentar à mesa e foi para o fogão. — Não precisa fazer comida para mim, mãe, pode deixar que eu preparo alguma coisa. — Estou apenas esquentando. Isso não dá trabalho nenhum. Minutos depois, ela serviu-me de um prato, de costela refogada, com mandioca e arroz, sentando-se, ao meu lado. Enquanto comia, eu não conseguia afastar meu pensamento de Gustavo. A todo instante, visualizava-o ao lado de Adriana, os dois divertindo-se, alegremente, sorrindo juntos. Perto de Gustavo, era impossível não sorrir, não se divertir, ele tornava qualquer situação agradável, era um excelente companhia, não podia culpar Adriana por se interessar por ele. Porém, esforcei-me para afastar tal pensamento. Eu não podia ser egoísta a ponto de não desejar que ele reconstruísse sua felicidade ao lado de alguém que pudesse ser sua, apenas sua. Pelo contrário, deveria apoiar que as coisas dessem certo para eles, pois comigo ele não podia ficar, já que eu era perdidamente, incondicionalmente, apaixonada por Daniel. Pertencia a ele e ele a mim. Mas que amantes, éramos predestinados a ficarmos juntos, nada poderia mudar isso. No entanto, apesar de ter meu verdadeiro amor de volta ao meu lado, ressurgido dos mortos, Gustavo ainda me fazia uma falta insuportável. Após a refeição, sentei-me ao lado de Lucilene e de Adalcino na varanda da casa, ansiosa pelo anoitecer, quando reencontraria Daniel. Ao mesmo tempo em que a todo momento, meu olhar insistia em se deslocar para a rua, verificando se Gustavo e meus irmãos já estavam de volta, mas não havia sinal deles. Embora a rua onde a casa se localizava não fosse muito movimentada, algumas pessoas passavam por ali e todas elas viravam seus rostos para a minha direção, para me observarem, alguns demonstravam a hostilidade que eu já esperava, outros apenas curiosidade. — Todos sabem quem é meu verdadeiro pai, não é? — perguntei. — Acho que sabem, mas ninguém mais se lembra disso. Já faz muito tempo. — Lucilene respondeu, sem cessar a tarefa de fazer o crochê. — Eu acho que lembram e é por isso que me olham tanto. — Essa gente não pode ver alguém de fora, que logo fica olhando. — Mas não é só isso mãe. Quando eu morava aqui, ninguém gostava de mim. As pessoas viviam me excluindo. É tudo por que sabem minha verdadeira origem. Neste momento, Lucilene cessou o crochê, fitou-me diretamente nos olhos e disse: — Não é só por isso, Luana. A maior parte das pessoas desta cidade sempre teve inveja de você, porque você é linda filha. A outra parte, tinha medo de você. — Medo?! — É. De você se tornar uma fera de repente, como seus parentes paternos. Eu não consegui me conter e deixei escapar uma sonora gargalhada. Continuamos ali conversando por mais algum tempo, até que, por fim, a noite caiu. Após o jantar, Lucilene sentou-se na sala, ao lado de Adalcino, assistindo a novela, ao mesmo tempo em que continuava seu crochê. Comecei a perambular pela casa, esperando o momento certo para sair, a ansiedade por rever Daniel, crescendo dentro de mim. Por volta das oito horas da noite, decidi que não suportaria mais esperar, então, fui até a sala e declarei: — Boa noite mamãe, eu já vou dormir.

— Boa noite filha. Dorme com Deus. — ela respondeu, sem me dar muita atenção. Gustavo e meus irmãos ainda não haviam voltado de Imperatriz e embora a presença deste primeiro, me fizesse tanta falta, me ocorreu que seria melhor assim, pois não teria a chance de me cobrar uma explicação antes de minha saída. Então, decidida, fui até o quarto e troquei a bermuda por uma calça jeans; calcei minhas botas de montaria; um boné sobre os cabelos, para que não fosse facilmente reconhecida pela população e saí, rápida e discretamente, pela porta dos fundos, certificando-me de que Lucilene não ouvia meus passos. Ao alcançar o quintal, constatei, desapontada, que os cavalos não se encontravam mais ali. Teria sido Gustavo a livrar-se deles, para que eu não passasse outra noite fora de casa? Perguntei-me. Mas isto não importava, iria atrás de Daniel de qualquer maneira, mesmo que precisasse caminhar até ao local onde o vira na noite anterior. Porém, o lugar ficava a cerca de dez quilômetros de distância dali, se fosse à pés, só chegaria ao amanhecer. Me perguntei onde poderiam estar os cavalos, certamente Adailsom não os levara de volta para o Sertãozinho, pois não fora ao sertão naquele dia. Ainda estavam por perto, escondidos em algum lugar. Após refletir por um momento, recordei-me do pequeno sítio de minha tia Vera, a irmã mais nova de Lucilene, situado na Vila Maria, há cerca de um quilômetro de distância de onde eu me encontrava agora, seria capaz de seguir à pés até lá e pegar o cavalo, para percorrer o restante do percurso mais rapidamente. Além do mais, mesmo que os animais do Sertãozinho não estivessem alojados no sítio de tia Vera, esta possuía outros cavalos, seria fácil apossar-me de um deles. Caminhando apressadamente, pelas ruas, ainda movimentadas de Serra Azul, segui rumo à Vila Maria, decidida a pegar um dos cavalos de tia Vera. Durante o trajeto, avistei um Ford Ecospot preto, de vidros fumês, estacionado no acostamento de uma rua escura. Estranhei a presença daquele carro ali, pois era luxuoso demais para pertencer a um dos moradores de Serra Azul. Certamente pertencia a algum morador, bem sucedido, da capital, visitando os parentes no interior. Dei pouca importância ao caso e continuei meu percurso, minha respiração se tornando ofegante pelo esforço da caminhada. Ao aproximar-me da propriedade de tia Vera, constatei, satisfeita, que todos já haviam se recolhido, ou não se encontravam em casa, pois as portas e janelas estavam fechadas e as luzes apagadas. Fui até o curral e percebi que os cavalos com os quais cavalgara no dia anterior, não se encontravam ali, haviam apenas algumas vacas magras e um Quarto de Milhas antigo, de aparência cansada. Mas eu não tinha outra opção, seria aquele cavalo a me levar ao encontro de Daniel. Então, sorrateiramente, invadi o curral e o montei, mesmo estando este sem a sela e os arreios, em seguida, deixei o local, discretamente, fechando a porteira a trás de mim. Dali, daquela pequena vila de casas populares, havia uma outra estrada que se ligava ao sertão, por onde segui, fazendo o cavalo correr o mais velozmente que sua idade lhe permitia. Alguns minutos após adentrar a estrada, que se estendida em meio ao cerrado, a qual se encontrava completamente silenciosa e era iluminada apenas pela fraca luz do luar, ouvi o ronco do motor de um carro, atrás de mim, aproximando-se rapidamente. Sem deter minha corrida veloz, olhei naquela direção e avistei, ao longe, os faróis do carro. Quem poderia estar indo para o sertão àquela hora? Perguntei-me, quando, de repente, me ocorreu que poderia se tratar de Gustavo, seguindo-me, tentando impedir-me de passar outra noite fora de casa. Mas não permitiria que ele me detivesse. O carro era mais veloz que o Quarto de Milhas e logo me alcançaria. Deixar a estrada estava fora de cogitação, pois a mata era muito fechada, impossibilitaria a passagem do cavalo. Ainda assim, numa atitude quase desesperada, forcei a entrada do animal na mata, à margem da estrada,

tentando esconder-me do motorista do carro, enquanto os galhos mais baixos dos arbustos arranhavam minha pele, machucando-me. Adentramos cerca de dois metros de mata, com dificuldade. Quando paramos, logo avistei o carro passando na estrada, à minha frente, reduzindo a velocidade, embora não parasse. Imediatamente reconheci o Ecosport preto que vira numa rua escura de Serra Azul, um carro luxuoso demais para estar ali. Seriam os repórteres seguindo-me? Teriam eles descoberto meu paradeiro? Porém, se fossem os repórteres já teriam me atacado, fuzilando-me com suas perguntas indiscretas. Provavelmente se tratavam de pessoas a caminho de uma das muitas fazendas localizadas na região. O fato de termos pegado a mesma estrada, não significava que estavam me seguindo. Afastando tais pensamentos, voltei para a estrada e reiniciei o meu percurso, a ansiedade por rever Daniel, crescendo dentro de mim. Subitamente, comecei a me perguntar se ele estaria naquele local, à minha espera, afinal não havíamos combinado de nos encontrarmos novamente, não havíamos combinado absolutamente nada. O olhar triste que ele me lançara, pouco antes de desaparecer na mata, quando se encontrava transformado em lobo e já não mais podia proferir palavras, poderia ter vários significados, inclusive uma despedida definitiva, o que me seria insuportável. Mas ele estaria lá, me esperando, de alguma forma, eu podia senti-lo. Alguns quilômetros mais adiante, deixei a estrada e segui por entre o cerrado baixo, pelo mesmo local por onde fora na noite anterior, até que por fim avistei o pequeno riacho de águas correntes. Ao aproximar-me de sua margem, apeei do cavalo e todos os meus temores se dissiparam, pois, na margem posterior, avistei não apenas um, mas uma dezena de lobos enormes, magníficos. Entre eles, Daniel. Ao me verem aproximando-me, os lobos ficaram de pé e num salto apenas, atravessaram todo o riacho, na minha direção. Quando seus pés atingiram as areias do meu lado do córrego, Daniel já não era mais um lobo, mas um ser humano. Transformara-se no ar, tão agilmente que passara desapercebido à minha visão. Carregava uma bermuda jeans velha e encardida, da qual vestiu-se rapidamente. — Boa noite, meu amor. — disse ele, abraçando-me, roçando, suavemente, seus lábios nos meus. Senti o calor do seu corpo, o contato dos seus lábios de encontro aos meus e meu coração acelerou-se dentro do peito. — Boa noite. — respondi, inebriada com sua proximidade. Em seguida, desviei meu olhar para os lobos, à nossa frente e perguntei: — Quem são eles? — São nossa família. — Daniel respondeu, sua voz calma, querida e familiar. — Querem conhecer você. Observei, fascinada, os lobos. Eram dez no total; um par de cada cor, formando casais, eu supus; pareciam muito jovens, fortes e vigorosos; permaneciam, sentados sobre a areia, observandome calmamente. Entre eles, reconheci a mãe de Daniel, seu corpo coberto por pelos negros, reluzindo sob a luz do luar. Seu companheiro, com pelos da mesma cor, foi o primeiro a aproximar-se de mim. Tocou seu focinho na minha mão, como se me cumprimentasse. — Luana, este é nosso pai Estevão. — disse Daniel. Sentindo-me emocionada, ajoelhei-me ao chão, diante do gigantesco lobo negro, acariciando seu focinho. Pela primeira vez, eu tinha um pai de verdade, pois em Adalcino, jamais reconhecera tal figura. Gostaria que, como Daniel, ele pudesse se transformar em um ser humano, para que eu realmente o conhecesse. — Há muito tempo, eu queria ter um pai. — murmurei, as lágrimas aflorando-se em meus olhos. —

Pena que não pude te conhecer antes. Ele fitou-me profundamente, com seus olhos verdes, iguais aos de Daniel. Parecia dizer-me algo que eu não pude compreender. — Ele disse que está muito feliz por ter a honra de te conhecer pessoalmente. — Daniel falou. — Como você sabe o que ele disse? — perguntei, confusa. — Nós nos comunicamos através dos pensamentos. — Como no cinema? — É. Como no cinema. Quando Estevão se afastou, foi a vez da mãe de Daniel aproximar-se. Imitando o gesto do marido, ela aconchegou seu focinho macio em minha mão, num gesto de cumprimento, enquanto fitava-me diretamente nos olhos. — Como você já sabe, essa é minha mãe Elizabete. — Daniel a apresentou-me. — Como vai Elizabete? — perguntei, enquanto ela continuava me encarando. — Ela disse que você se parece com Estevão. Em seguida, um lobo de pelos marrons aproximou-se de mim, repetindo o cumprimento. — Esse é nosso avô, Nataniel. Depois, foi a vez de sua companheira vir me cumprimentar, uma loba com pelos da mesma cor, minha avó Ágata. Até que por fim, todos os lobos me foram apresentados, um de cada vez, Daniel traduzindo suas palavras agradáveis e silenciosas. Além de meus avós, conheci meus bisavós: Sílvia e Ariel, os lobos de pelos avermelhados; meus trisavôs: Aísha e Leandro, o casal de pelos brancos e meus tataravôs: Sofia e Augusto, os lobos de pelos dourados. Espantei-me com o fato de que pareciam todos muito jovens e vigorosos, embora alguns tivessem mais de oitenta a nos de idade Enquanto os lobos mantinham-se por perto, cada casal unido em um local, eu aproximei-me mais de Daniel, abraçando seu corpo forte, despido da cintura para cima, sentindo-me inebriada com seu cheiro delicioso, acalmando meu coração, carregado de saudade e de paixão. — Ah, Daniel, eu tive tanto medo de não ver mais você. — sussurrei. — Não se sinta assim, Luana. Eu nunca mais vou me afastar de você, eu prometo. Sentindo meu coração bater descompassado dentro do peito, eu o abracei com mais força, experimentando as indescritíveis sensações que o calor do seu corpo me despertava. Então, ele tomou os meus lábios avidamente, intensificando o desejo selvagem dentro de mim. Mas logo, interrompeu o beijo, voltando seu olhar para Estevão. Fitou-o por um breve momento e virou-se novamente para mim, dizendo: — Ele quer que você conheça as terras onde vivemos. — Tudo bem. Mas não sei se vou conseguir acompanhar vocês com o cavalo que trouxe. Ele é muito lento. — Eu carrego você. — Me carregar? Como? — No meu lombo, horas! — Ta falando sério?! — Por que, você não confia em mim? — apesar do tom divertido de suas palavras, ele estava me desafiando, pois sabia que eu não resistia a um desafio. — Claro que confio. — declarei, animada. — Então pode montar. — ele falou e, no instante seguinte, transformou-se em lobo novamente, sua

bermuda se estraçalhando em seu corpo, durante a metamorfose. Observei o enorme animal, à minha frente e não soube exatamente o que fazer. Então, ele inclinou-se diante de mim, convidandome a montá-lo. Hesitantemente, passei uma perna por sobre suas costas peludas e sentei-me, segurando-me, com as duas mãos, nos pelos densos e longos de sua nuca, constatando que era muito mais confortável e seguro que um cavalo. Movendo-se com espantosa rapidez e agilidade — o que pareceria inacreditável, diante do seu tamanho: tinha cerca de um metro e meio de altura e muitos centímetros de espessura. —, o lobo aproximou-se da margem do riacho e, com um longo salto o atravessou, suas patas atingindo, com suavidade, a areia do outro lado, enquanto todos os demais nos seguiam, saltando por sobre o córrego com a mesma agilidade. Partimos por entre a mata fechada, por onde não havia uma trilha definida, mas logo alcançamos o cerrado baixo, quando o lobo aumentou a velocidade de sua corrida. Seguíamos na frente de todos os demais, correndo velozmente por entre a chapada, iluminada pelo luar, enquanto o vento esvoaçava meus cabelos, proporcionando-me uma sensação ao mesmo tempo de adrenalina e liberdade. Eu jamais havia experimentado sensação igual. O lobo era muito mais veloz, ágil e confortável que um cavalo. Saltava com suavidade e leveza por sobre alguns obstáculos do caminho, fazendo-me sentir como se andasse de montanha russa, mas ainda melhor. Jamais experimentara nada igual. Era simplesmente maravilhoso. Encontrávamos-nos no território dos índios Nirvanas, o qual consistia em milhares de hectares de terras desabitadas, localizadas aos redores da aldeia onde moravam. Eram terras antes pertencidas a fazendeiros e agricultores que tiveram as propriedades apreendidas pelo INCRA, e devolvidas aos indígenas, os primeiros e verdadeiros donos daquelas terras. Os antigos proprietários foram indenizados pelo governo e a maioria deles, principalmente os lavradores e pecuaristas de subsistência, fizeram uso do dinheiro para reconstruírem suas vidas na cidade. Os índios não trabalhavam a terra, faziam uso de todo o território apenas para atividades de caça e pesca, o que era um fator positivo, já que contribuía para a preservação da natureza. Ali, ao longo das estradas, já quase totalmente tomadas pelo mato, por onde seguíamos, ainda podiam-se ver casas e currais abandonados, moradias dos antigos proprietários da terra. Haviam, ainda, lugares em que a mata era completamente virgem, intocada pelo ser humano, revelando um verdadeiro espetáculo da natureza. Neste lugar eu me sentia segura, em paz e indescritivelmente feliz, cavalgando o imenso lobo de pelos cinzas, meu amor, meu tudo, minha razão de viver. Me sentia completa, como se nada mais me faltasse, como realmente não faltava...

CAPÍTULO X

Acerto de contas

Percorremos quilômetros e mais quilômetros daquelas terras, sem sequer reduzir a velocidade da corrida, até que por fim, paramos diante de uma pequena casa com paredes de barro e teto de palha, a qual um dia fora a moradia de uma família de agricultores e diante da qual se estendia um rico pomar de laranjeiras. Alguns dos lobos espicharam-se sobre a areia branca e fria do pomar, refrescando-se, enquanto que outros brincavam de pega, carinhosamente. Os casais permaneciam sempre próximos um ao outro, o que me fez sentir uma certa inveja, já que tinham a chance de desfrutar, vinte e quatro hora por dia, da companhia do seu ser amado, com a certeza de que jamais se separariam um do outro. Embora eles tivessem a forma de animal, pareciam perdidamente apaixonados. Daniel deixou-me sob uma laranjeira, próximo a casa e entrou, retornando segundos depois, quando já não mais era um lobo, mas o mais perfeito dos seres humanos. Usava outra velha bermuda, desta vez de brim, deixando à mostra o peito largo, musculoso, irresistível. — Você está com fome? — perguntou ele. — Não. — respondi. — Porque? Se eu estivesse você caçaria um veado para mim? Ele soltou um sonora gargalhada, depois disse: — Não. Mas ia te descascar algumas laranjas. — Não precisa, estou bem. Quero apenas estar com você. Então, ele veio até a mim, e abraçou-me, tomando os meus lábios num beijo suave, carregado de ternura e de paixão, fazendo-me sentir a mais amada e desejada das mulheres. Em seguida, sentamos-nos ao chão, sobre a areia fofa, recostados ao caule da laranjeira, totalmente carregada de frutos, eu aconchegando minha cabeça em seu peito largo, refestelando-me. Não haviam palavras que pudessem descrever a paz e felicidade que mim invadiam, pois além de estar envolta ao calor dos braços do meu amor, encontrava-me em um lugar exótico, tranqüilo e silencioso, como se fora tirado dos meus sonhos mais secretos. Ali, eu viveria para sempre, sem que nada mais me fizesse falta. — Os índios não se importam que vocês povoem as terras deles? — perguntei. — Não. Nós temos um acordo com eles: eles não contam a ninguém sobre nossa existência e ajudamos a proteger sua propriedade dos caras pálidas. — Daniel respondeu. — Então quer dizer que eles sabem sobre a existência de vocês? — Sim, são os únicos seres humanos na face da terra, além de você, que sabem sobre nós. Eles são nossos amigos, como nosso povo, também se sentem ameaçados pela raça humana. — E vocês moram nas casas abandonadas? — Não, Luana, nós somos animais, gostamos do mato. Apenas de vez em quando, durante chuvas muito fortes, nos abrigamos nelas. Continuamos ali, sentados conversando, por um longo tempo, eu indagando e ele

respondendo. Descobri que nossa família era descendente de uma só geração de irmãos, que cometeram o primeiro pecado do incesto, gerando um casal de gêmeos os quais, logo que atingiram a puberdade, apaixonaram-se um pelo outro, dando origem a mais uma geração e assim consecutivamente. Quando os filhos começavam a se acasalar, os pais paravam de envelhecer, por isso os lobos pareciam tão jovens e vigorosos. Apesar de ser perseguido pela raça humana e frequentemente destruído por ela, nosso povo já existia há milhares de anos, uma geração a cada cerca de duzentos anos, em diferentes locais do planeta, cada geração se iniciando com o incesto cometido por irmãos humanos. Como Estevão, alguns deles previram quando seriam destruídos e geraram descendentes com companheiros humanos, porém, raramente, tais predestinados conseguiam dar continuidade à espécie, pois quase sempre eram separados pelas circunstâncias da vida, como acontecera comigo e Daniel. Eles viviam como nômades, mudando-se constantemente de habitação, para fugir da hostilidade das pessoas, a qual os levava à destruição. Aqueles lobos, meus antepassados, tiveram muita sorte em serem acolhidos pelos índios Nirvanas, em suas terras, ou já teriam sido descobertos e destruídos pelo homem branco. Se ninguém os assassinasse, viveriam para sempre, apesar de não serem imortais. Depois, foi minha vez de falar. Narrei-lhe cada acontecimento ocorrido em minha vida desde que ele partira. Falei-lhe sobre a overdose de cocaína; a morte de nosso filho; os meses de permanência em Boa Esperança; a violência covarde de Douglas; minha gloriosa vitória no campeonato de hipismo; os escândalos e o assédio da imprensa; o tiro de Olívia e, por fim, falei-lhe sobre Gustavo, sobre como ele me resgatara do profundo poço de depressão, no qual mergulhara após sua morte. Após fazer o juramento de que, se Douglas saísse do estado de como, terminaria o que Olívia começara, Daniel indagou: — Você o ama? — referia-se a Gustavo. Refleti por um instante antes de responder, perguntando-me se deveria mentir ou falar a verdade, até que optei por esta segunda e respondi: — Sim, eu o amo. Mas amo mais a você. Ao ouvir minhas palavras, todo o seu corpo se estremeceu de encontro ao meu. Ele permaneceu em silêncio por um longo tempo, como se refletisse, então falou: — Talvez ele seja o melhor para você, Luana, pois pode te dar uma vida normal. Pode te dar filhos, e tudo o mais que eu não posso te oferecer. Neste momento, virei o meu rosto para encará-lo, fitando-o profundamente nos olhos verdes e disse: — Não diga isso Daniel. Você é tudo o que eu quero. Nada mais importa para mim. Então, num movimento espantosamente ágil, ele inclinou sua cabeça para mim, tomandome os lábios com voracidade e sofreguidão, despertando-me o mais primitivo dos desejos. Eu enlacei o meus braços em torno do seu pescoço, puxando-o mais para mim, intensificando o beijo. Vagarosamente, levantamos-nos do chão, sem desviar nossos olhares do rosto um do outro e adentramos a pequena moradia abandonada, onde entregamos-nos um ao outro, saciando o desejo ardente que nos consumia. Quando por fim a exaustão nos dominou, permanecemos imóveis, abraçados, nossos corpos nus, banhados de suor, estendidos sobre um lençol forrado ao chão, no interior da pequena casa. Apesar da simplicidade daquela pequena moradia abandonada, do desconforto do leito que ocupávamos, eu jamais me sentira tão feliz como neste momento. Uma paz profunda me invadia;

sentia-me segura e confortável ao lado do homem que amava como se nos encontrássemos em um hotel luxuoso, mais que isso, ali, eu me sentia verdadeiramente em casa, como se sempre pertencera àquele lugar. Comecei a me perguntar se realmente merecia tamanha felicidade, pois nada antes, em minha existência, me fora tão perfeito. — No que você está pensando? — perguntou Daniel, após um longo momento de silêncio. — Em quanto estou feliz, aqui, ao seu lado. — Você não sente falta do conforto de uma casa de verdade? — De jeito nenhum. Do que adianta ter a praia se não se pode ter o sol? E você, sente falta das regalias da cidade? — Nem um pouco. Gosto muito daqui. E agora que tenho você, me sinto o mais feliz dos seres. — E seus pais adotivos, você ainda teve contato com eles? — Não. É melhor que se acostumem com minha ausência que terem-me pela metade. Enquanto continuávamos conversando, vagarosamente, o sol surgiu no horizonte. Daniel observou os raios ardentes, penetrando a casa, através das frestas da janela e uma tristeza profunda surgiu em seu olhar. — Está na hora de nos despedirmos. — disse ele, com amargura. — Quando te vejo novamente? — perguntei, meu coração apertado dentro do peito. — Hoje a noite, na mesma hora e no mesmo local. — ele ficou de pé. — Vou levar você até o seu cavalo, para que volte para casa. Infelizmente não posso levar você até mais adiante, pois é perigoso aproximar-me da cidade. Não posso ser visto. — Tudo bem. Eu sei me virar sozinha. Também coloquei-me de pé, abraçando-o, roçando meus lábios nos seus, como que para levar seu gosto comigo. Então, ele me afastou, quando, rapidamente, seu físico glorioso deu lugar ao corpo peludo do lobo cinzento. Após observar-me, vestindo minhas roupas e calçando minhas botas de montaria, ele inclinou seu corpanzil diante de mim, assentindo que eu o montasse. Sem pensar duas vezes, o obedeci, montando suas costas largas, peludas e confortáveis, segurando-me em seus pelos densos. Do lado de fora da pequena moradia, alguns dos lobos ainda dormiam, seus corpos aquecidos pelos de seus amados. Outros, embora acordados, mantinham-se tão unidos quanto. Eu e Daniel deixamos a pequena residência, numa corrida veloz, enquanto os lobos, que estavam acordados, quatro deles — Elizabete, Estevão, Sofia e Augusto —, nos acompanhavam, talvez apenas pelo prazer da corrida. Em poucas horas alcançamos o riacho, o qual demarcava a divisa entre o território Nirvana e as terras do município de Serra Azul, onde o Quarto de Milhas de tia Vera me aguardava. Saltando por sobre o córrego, tão ágil e eficientemente quanto antes, o lobo deixou-me ao lado do cavalo, fitando-me profundamente nos olhos, enquanto os demais nos observavam. Depois, deu-me as costas e partiu, seguido por nossos irmãos. Por um longo tempo, observei o local por onde os lobos desapareceram, precisando de um grande esforço para controlar o impulso de ir atrás deles, pois a ausência de Daniel, machucava meu coração como se uma faca o perfurasse. Gostaria de encontrar uma cobra cascavel pelo caminho, para que esta tirasse minha frágil vida, dando-me a oportunidade de permanecer, constantemente, ao lado do meu amor e da minha nova família. Mas eu saberia ser paciente e esperaria até o anoitecer, quando o veria novamente. Assim, montei o velho quarto de milhas e parti, de volta para Serra Azul, sem pressa alguma em chegar, pois ainda precisava pensar numa explicação para dar a todos, certamente, como

na noite anterior, estavam muito preocupados com meu desaparecimento. O sol já estava escaldante quando deixei o cerrado denso, alcançando a estrada de terra, que me levaria à cidade, pela Vila Maria, por onde viera, pois precisava devolver o cavalo. Repentinamente, um carro, que parecia ter surgido do nada, atravessou o meu caminho, assustando o meu cavalo, fazendo-o lançar seu corpo, violentamente, para trás, por pouco não atirando-me no chão. Era o mesmo Ecosport preto que vira durante a noite anterior, primeiramente em Serra Azul e depois naquela mesma estrada. Furiosa perguntava-me quem seria o estúpido a fazer aquilo, tomando-me a frente, irresponsavelmente, quase me fazendo cair do cavalo. Preparava-me para desferir-lhe toda a minha indignação, quando a porta de trás do veículo se abriu e Douglas saiu, fazendo com que o pânico imobilizasse-me, impedindo-me de pronunciar qualquer palavra. Ele tinha a cabeça raspada, expondo uma enorme cicatriz no alto; seu rosto estava cansado e muito abatido; haviam olheiras profundas em torno dos seus olhos. Apesar da aparência mórbida, mantinha sua postura altiva e imponente de sempre. Das portas dianteiras do luxuoso veículo, saíram dois homens parrudos, ambos afro descendentes, vestindo paletó e gravata. Imediatamente, percebi que os dois estavam armados. — Como vai, Luana? — Douglas falou, com ar de triunfo, fitado-me diretamente nos olhos. Há pouco eu pensava em ser morta por uma cobra venenosa, para me tornar parte definitiva da minha nova família, para que estivesse nos braços de Daniel por mais tempo, sem precisar sair escondida de casa. Porém, constatava agora, que ainda não estava preparada para a morte, precisava viver mais um pouco, afinal sequer despedira-me de Lucilene ou de Gustavo, não podia sair de suas vidas ainda, precisava revê-los, pelo menos mais uma vez, ter a chance de me despedir. Assim, dominada pelo pânico, comprimi os calcanhares sólidos das minhas botas contra as virilhas do cavalo, forçando-o a saltar para a frente. Embora estivéssemos encurralados entre o carro e os galhos do mato, conseguimos voltar par a estrada, rapidamente, porém, ainda assim, fracassei em minha fuga desesperada, pois antes mesmo que me afastasse cinco metros, um dos homens sacou sua arma e atirou contra o quarto de milhas, com excelente pontaria, acertando-o na altura do pescoço, fazendo-o cair ao chão, sobre uma das minhas pernas. Reprimindo um grito de dor, por causa da queda violenta, fiquei de pé e tentei correr, mas logo fui imobilizada pelos dois homens engravatados, que agarraram-me pelos braços, um de cada lado, machucando-me, fazendo-me debater-me, na tentativa de me libertar, mas meus esforços eram inúteis, pois suas garras pareciam de aço. — Ora, ora, ora, como você está agressiva!. — Douglas falou, aproximando-se de mim, a expressão dos seus olhos era ao mesmo tempo de fúria e de satisfação. — Mas me diga, Luana, como aquele seu amante patético pode permitir que você ande sozinha pelo mato, como um animal? Eu permaneci em silêncio, fitando-o diretamente nos olhos. Sentia-me ao mesmo tempo furiosa e apavorada. Se pelo menos ele tivesse a intenção de me matar, eu não teria tanto medo, pois logo ressuscitaria em pele de lobo e viveria para sempre ao lado do meu amor, embora não tivesse o direito a uma despedida. No entanto, covarde e doente como era, certamente ele me espancaria, depois me aprisionaria no porta malas do seu carro e me levaria de volta a Boa Esperança, onde um de seus seguranças vigiaria cada um dos meus passos, impedindo-me de tentar fugir. Ninguém jamais descobriria o meu paradeiro, viveria, para sempre, como sua prisioneira. Como que para desafiá-lo, e despertar a fúria de que necessitava para que me assassinasse, inclinei minha cabeça para cima, para frente, e lancei um jato de cuspe em seu rosto pálido e abatido.

Ele aproximou-se mais de mim, fitou-me em silêncio por um momento e, em seguida, desferiu-me uma bofetada no rosto, tão bruscamente que só não caí para trás porque os homens me seguravam. — É assim que você me recebe depois de tanto tempo?! — ele gritou, limpando o seu rosto com um lenço xadrez. — O que você queria, uma festa? — Queria um pouco mais de consideração de sua parte, já que fiquei assim por sua causa. — com uma das mãos, ele gesticulou par a cicatriz em sua cabeça. Neste instante, percebi que ele perdera os movimentos do outro braço. — Mas estou disposto a te perdoar por isto. — ele continuou. — Vou levar você de volta a Boa Esperança, onde viveremos juntos novamente. E desta vez seremos apenas nós dois, sem Olívia nos incomodando. — O que aconteceu com ela? — perguntei, tentando ganhar tempo. Se fosse forçada a entrar naquele carro, eu estaria perdida. — Por enquanto nada. Mas ela não sairá viva daquela cadeia. — Você mandou... matá-la? — Digamos que eu apenas farei justiça pelo que ela me fez, pois não confio na lei deste país. Ela é muito ineficiente, afinal você ajudou aquele seqüestrador a assassinar um homem e jamais foi presa por isso, não é mesmo? — Não vou voltar para Boa Esperança com você. — falei, tentando manter a voz firme. — Pode me matar, se quiser. Ele fitou-me em silêncio por um longo momento, a fúria doentia, que eu tanto conhecia, expressada em seus olhos negros. — Não, Luana, eu não vou matar você, quero você viva, ao meu lado. Com o dinheiro que herdarei de Olívia, nunca mais precisarei trabalhar, viveremos juntos e felizes. Você me dará os filhos que aquela vaca nunca me deu. Afinal, apesar do aborto que paguei para a Dr. Valentina fazer, você continua fértil, como Olívia nunca foi e nunca será. Eu digeri, lentamente suas últimas palavras, enquanto uma fúria cega tomava conta de mim. Ele acabara de confirmar que assassinara meu filho inocente, ainda em meu ventre, como Olívia me revelara antes e Gustavo me convencera a não acreditar. Dominada pelo ódio, comecei a me debater, violentamente, tentando me libertar dos dois homens. Se o alcançasse, eu o mataria, sem remorso algum, vingaria a morte do meu bebê. Mas os homens eram muito fortes, continuaram me segurando, com facilidade. — Seu monstro! Você matou o meu filho! — gritei, lamentando profundamente não possuir a força e a agilidade dos demais integrantes de minha família. — Por que tanto ódio, Luana? Era o filho de um assassino, que te seqüestrou, que maltratou você. — Douglas falou, calmamente. Depois estendeu sua mão boa para tocar o meu rosto: — Mas é disso que você gosta, não é? De ser maltratada? — Eu vou te matar seu desgraçado! — eu gritava, cega pelo ódio, ainda tentando me libertar. Sem mais nada dizer, Douglas gesticulou para que os dois homens forçassem-me a entrar no carro. Prontamente, eles obedeceram, empurrando-me para a porta traseira. Usando todas as forças do meu corpo, apoiei meus dois pés nas laterais da porta, recusando-me a entrar, pois se o fizesse, seria sua prisioneira para sempre, sem que ninguém descobrisse meu paradeiro. — O que vocês são?! Duas bonecas?! — Douglas gritou, rispidamente, fuzilando os dois homens com olhos furiosos.

Neste momento, uma sombra negra surgiu do inteiro da penumbra da mata, repentinamente, pulando sobre os homens que me seguravam, jogando-os ao chão, os dois ao mesmo tempo, libertando-me. Era Estevão, que, com sua garra afiada, dilacerou a garganta de um dos homens, tirando-lhe, imediatamente, a vida. Em seguida, outros quatro lobos surgiram do mesmo lugar, entre eles, Daniel. Mas foi Elizabete quem pulou sobre o outro homem, tirando-lhe a vida com um só golpe de sua garra, tão rapidamente, que este não teve tempo de empunhar sua arma. Enquanto isso, os outros três lobos cercavam Douglas, arreganhando seus focinhos, em sua direção, expondo suas presas enormes e afiadas, ameaçadoramente. Com a mão trêmula, Douglas tirou uma pistola do bolso interno do seu paletó, mirando-a na direção dos lobos. Mas Daniel foi mais rápido, movendo-se com espantosa agilidade, pulou por sobre a arma, atirando-a ao chão, ao mesmo tempo em que desferia-lhe um golpe de sua garra mortal, ferindo-lhe a carne, na altura da cintura, de onde o sangue começou a jorrar, abundantemente. Dominada por uma fúria, até então desconhecida para mim, levantei-me do chão e empunhei a pistola jogada ali próxima, mirando-a diretamente para o rosto de Douglas, pondo-me entre ele e os lobos. Antes que meu dedo se movesse sobre o gatilho, Daniel pulou diante de mim, empurrandome para trás, com seu focinho enorme, tentando impedir-me de me tornar uma assassina. Mas eu me recusei a mover-me, permaneci imóvel, decidida, empunhando a arma, para o rosto de Douglas, que observava a cena, com olhos chocados e apavorados, ao mesmo tempo em que comprimia a mão sobre seu ferimento na barriga, já demonstrando dificuldade para respirar. — Pára com isso, Luana! Vira essa arma pra lá! Fala para seus amigos me deixarem em paz. — ele falou, seus olhos arregalados. — Cala essa boca! Eu vou te matar, desgraçado, como você fez com meu filho! — eu gritei, enquanto Daniel, continuava tentando me empurrar para trás, sem que eu me movesse. Se ele quisesse, me desarmaria facilmente, como fizera a pouco com Douglas, porém não sem o risco de me machucar. Da direção das minhas costas, partiu um grunido selvagem, era de Estevão e logo Daniel afastou-se de mim, como se atendesse a uma ordem do pai, deixando o caminho livre entre mim e Douglas. Então, fitei-o diretamente nos olhos, expressando-lhe todo o meu ódio e preparei-me para puxar o gatilho. — Eu te amei, Luana. — disse Douglas, como que despedindo-se da vida, e de mim. Fechei os meus olhos, apertando-os com força, visualizando o rosto infantil, angelical, que teria meu filho se tivesse nascido. Um segundo depois, apertei o gatilho da arma, o estampido do tiro ensurdecendo-me, o cheiro de pólvora invadindo minhas narinas. Quando abri os olhos, Douglas encontrava-se caído ao chão, seu corpo sem vida, com um buraco na testa, de onde o sangue jorrava, banhando seus olhos ainda abertos e chocados. Olhei o corpo do homem de quem acabara de tirar a vida e, de alguma forma, algo se quebrou dentro de mim, embora não conseguisse distinguir do que se tratava. Minha capacidade de amar talvez. Eu não era tão forte quanto Daniel, que assassinava suas vítimas com facilidade. Logo não sentia mais minhas pernas e caí ao chão, sentada, em meio a um rio de sangue, sem conseguir desviar meu olhar do corpo sem vida de Douglas. Minha reação, não se tratava de arrependimento, pois Douglas tivera exatamente o que merecia, apenas sentia um choque em minha mente, que me imobilizava, causando uma sensação de frieza em meu coração. Enquanto os demais lobos abocanhavam os corpos ensangüentados das vítimas,

arrastando-os para a mata, certamente para enterrá-los e, assim, ocultar as provas dos crimes, Daniel aproximou-se de mim, afastando a arma, ainda quente, de minha mão, erguendo o meu rosto com seu focinho, lambendo-me a face, como se me beijasse, como se me consolasse, seus olhos verdes, aflitos, angustiados, diante da minha reação. Em seguida, inclinou seu corpo para mim, assentindo que eu o montasse. Mas não tive forças para levantar-me do chão, permaneci sentada, observando os lobos arrastarem os corpos para o mato, sentindo-me chocada com o que acabara de acontecer, com o que acabara de fazer. Então, ele inclinou-se mais um pouco, colocando seu corpo peludo sob o meu, erguendo-me do chão, afastando-me da sórdida cena. Antes de desaparecermos na mata, consegui ver os lobos arrastando o cavalo de tia Vera, provavelmente o enterrariam também, pois se tratava de uma prova que relacionava os assassinatos a mim. Carregando-me em seu lombo, Daniel não seguiu na direção de Serra Azul, como imaginei que faria, em vez disso, partiu de volta ao território Nirvana, numa corrida veloz, enquanto eu sentia meu estômago revirar-se em náuseas, não pelos movimentos ágeis do corpo do lobo, mas pela visão do corpo sem vida de Douglas, que insistia em permanecer em minha mente, causando-me o mais doloroso remorso. Jamais pensara que me sentiria assim, após tirar a vida de uma pessoa, principalmente a de um sádico como Douglas, que tantas vezes me machucara, violentamente. Após o longo trajeto, Daniel parou diante de uma das casas abandonadas do território indígena. Era maior que a outra, onde passamos a noite anterior; construída de alvenaria; em estilo colonial e uma varanda ampla na frente. Haviam diante dela, uma cerca e um curral construídos de mourões. Provavelmente, um dia, fora a moradia um próspero fazendeiro. No interior da casa, ainda haviam alguns poucos móveis, tais como uma cadeira de balanços na sala e uma colchão grande, de molas, no quarto, onde Daniel estendeu o meu corpo fragilizado pelo choque. Olhei em seus olhos verdes e compreendi sua intenção: queria que eu descansasse, já que passara toda a noite anterior sem dormir. Aliás, ambos passamos. Embora estivesse bastante sujo de poeira, o colchão era confortável e aconcheguei-me preguiçosamente sobre ele. Daniel fez menção de sair, mas eu o impedi, pousando minha mão sobre sua cabeça peluda e dizendo: — Por favor, fique comigo. Ele fitou os meus olhos por um momento, em seguida, estendeu-se sobre o colchão, ao meu lado. Recostei-me em seu corpo peludo, refestelando-me, aninhando-me em seus pelos macios, experimentando a agradável sensação do seu calor e, pouco a pouco, esqueci-me de tudo mais, meus músculos contraídos se relaxando, deliciosamente, levando-me ao mais profundo sono. Ainda era dia quando despertei. Sentia-me descansada, muito mais relaxada, a lembrança da morte de Douglas já não me incomodava tanto. Ao meu lado, Daniel ainda dormia, profundamente. Comecei a observar sua magnífica forma: o focinho comprido; as presas pontudas, ligeiramente para fora da boca; os olhos grandes; os pelos densos. Era realmente a criatura mais magnífica que eu já vira. Perguntei-me se ficaria igual a ele, quando morresse e me transformasse. Provavelmente sim, pois todos os casais eram iguais. Vagarosamente, ele abriu os seus olhos e fitou o meu rosto de perto. Percebi que queria dizer-me algo, mas não consegui compreender o que era. Então, ele levantou-se, seguindo na direção da porta do quarto, gesticulando com sua cabeça, enorme, para que eu o acompanhasse. Fiquei de pé e o obedeci, seguindo-o até a ampla varanda, onde alguns dos demais membros de nossa família se encontravam. A primeira a aproximar-se de mim, foi minha avó Ágata, a loba de pelos marrons,

carregando uma sacola presa entre seus dentes, a qual me entregou, quando pude sentir o delicioso aroma da comida ali dentro. Daniel, gesticulou para a cadeira de balanços, convidando-me a sentar. Sentei-me e abri a sacola, onde encontrei uma apetitosa farofa de tocinho. Minha bisavó Sílvia, a loba de pelos avermelhados, ofereceu-me a colher, improvisada com uma pequena tora de bambu. Enquanto eu comia, minha trisavó, Aísha, de pelos brancos como as nuvens daquela tarde de sol, apareceu com uma penca de bananas maduras, abandonando-a aos meus pés. Sofia, minha tataravó, trouxe-me uma muda de roupas: um vestido de chita, bastante encardido e desgastado, certamente pertencente a uma das índias da aldeia. — Muito obrigada. — falei, enquanto saboreava a farofa com muito apetite. Olhei para Daniel, sentado no chão, ao meu lado e perguntei-me se ele também não estaria com fome, já que, como eu, não comia desde o dia anterior. — Você não vai comer? — perguntei, fitando-o com ternura. Ele arriscou algumas mímicas, mas eu não entendi absolutamente nada do que tentava me dizer, talvez afirmava que sairia para caçar com o bando, mais tarde. Após comer toda a deliciosa farofa, aparentemente preparada por uma índia Nirvana e mais algumas bananas, agradeci novamente a gentileza de todos, completando: — Desse jeito, vocês vão me deixar mal acostumada. Daqui a pouco, não vou mais querer voltar pra casa. No entanto, ao mesmo tempo em que amava cada minuto naquele lugar, não conseguia esquecer-me de casa, na preocupação que todos, certamente, estavam sentindo, por meu desaparecimento. O que diria a eles quando voltasse? Ao constatar que eu terminara a refeição, Daniel inclinou-se á minha frente, indicando que eu deveria montá-lo, pelo menos esse gesto dele eu conseguia compreender e, prontamente, o obedeci, sentando-me confortavelmente sobre suas costas largas e peludas. Com um salto apenas, ele atravessou a pequena escada de cinco degraus que nos separava do quintal, seguindo rumo à mata fechada, parando, minutos depois, à margem de um pequeno córrego, gesticulando, com a cabeça, na direção da água. Percebera, claramente, que eu precisava de um banho. Sem pensar duas vezes, despi-me do jeans e da camiseta, completamente salpicados de sangue, e atirei-me nas águas frias do córrego, refrescando-me, prazerosamente, enquanto Daniel me observava da margem. — E você, não vai tomar banho? — perguntei, brincando de fazer ondinhas com a água. Ele gesticulou sua cabeça numa negativa. — O que você é, um lobo ou um porco? — eu falava com tom de descontração. — Aposto como está com medo de se molhar. — eu o desafiei e, como eu, ele não resistia a um desafio. Então, com um grande salto, ele atirou-se nas águas, fazendo os jatos jorrarem para todos os lados. Com ele ao meu lado, a brincadeira ficou mais divertida e perdemos a noção do tempo, ali, entretidos na água, quando eu já nem me lembrava mais do ocorrido daquela manhã, como se acontecera com outra pessoa, não comigo. A noite começava a cair, quando deixamos o lazer da água corrente, clara como uma piscina limpa. Sem secar-me vesti o vestido encardido da índia, sentindo-me como se entrasse num saco, de tão grande que era. Fiquei constrangida que Daniel me visse e uma roupa tão feia, mas não tinha outra opção, já que meu jeans e minha camiseta de malha estavam completamente sujos. Ao meu lado, ele começou a sacudir o seu corpo peludo, encharcado, respingando-me as gotas de água.

— Ei, pára de me molhar se não vou pisar no seu rabo. — reclamei, com bom humor. Ele curvou-se diante de mim novamente, assentindo que o montasse. Eu o obedeci e, em dez minutos, estávamos de volta a casa. Os demais lobos refestelavam-se na grama alta de diante da residência, alguns rolando sobre ela, preguiçosamente, outros brincando de lutinha, outros apenas imóveis. Como sempre, os casais permaneciam lado a lado. Daniel deixou-me na varanda, onde sentei-me na cadeira de balanços, ao seu lado. Passamos a observar nossos familiares num magnífico espetáculo de harmonia entre si, enquanto que o sol se punha no horizonte. Logo, a penumbra da noite tomou conta de tudo e Daniel transformou-se em um ser humano. Ainda nu, ele correu para mim, puxou-me de sobre a cadeira e estreitou-me em seus braços fortes, aninhando-me me seu peito largo, dizendo: — Finalmente posso te abraçar meu amor... estava tão aflito. — ele afastou-me um pouco, o suficiente para fitar-me no rosto. — Como você está meu amor, como está se sentindo? — Estou bem. — respondi, com sinceridade. Ele abraçou-me novamente, apertando-me com força. — Me desculpe, me desculpe... eu não devia ter permitido que aquilo acontecesse, que você presenciasse tanto terror. Não devia ter deixado que você matasse Douglas e sim feito isso em seu lugar. — Eu queria fazer aquilo, só não consegui ser forte, como você. — falei, relembrando minha reação quando vi o corpo de Douglas, sem vida, caído ao chão, morto por mim. Daniel afastou-me novamente, alguns centímetros, fitando-me profundamente nos olhos, dizendo: — Como você esperava ser forte como eu Luana? Você faz parte do nosso povo, mas também há uma parte humana em você. — Quando você tirou a vida dos assassinos de nossa família, nunca sentiu... remorso? — perguntei, hesitante. Ele continuou fitando-me nos olhos, por um longo momento de silêncio, então respondeu: — Não. — ele foi até o interior da casa, retornando segundos depois, vestindo uma bermuda velha, encardida. Sentou-se na cadeira de balanço e aconchegou-me em seu colo, embalando-me, carinhosamente. — Quando estava me vingando daqueles sujeitos, eu pensava apenas na dor que meus antepassados sentiram, quando tinham seus corpos em chamas. Podia vê-los, morrendo sufocados pela fumaça e tudo se tornava muito fácil. — Foi exatamente o que fiz. Fechei os meus olhos e visualizei como seria o rosto do nosso filho. Só assim consegui disparar o tiro. No instante em que o vi, morto, por minhas mãos, senti uma extrema frieza tomar conta do meu coração, mas agora, não sinto mais isso, pra falar a verdade não sinto nada. É como se não tivesse acontecido. — Foi natural que você se sentisse daquela forma, pois é mais humana que muita gente por aí, mas o sangue de lobo em suas veias acabou falando mais alto. — Agora consigo perceber que ele não teve mais do que merecia. — Eu trouxe você para cá porque fiquei preocupado com sua reação, mas acho que agora você deve voltar para a casa de sua mãe, todos devem estar muito preocupados com você. Eu o abracei, com todas as minhas forças e disse: — Não quero voltar para casa e sim ficar aqui com você. — fiz uma breve pausa, recordando-me ainda de Douglas. — Sabe, por um instante, desejei que Douglas tivesse me matado, pois assim me tornaria um lobo, como você e ficaria eternamente ao seu lado.

Neste momento, todo o seu corpo se estremeceu, de encontro ao meu e ele falou: — Não diga uma coisa dessas, Luana, as coisas não precisam ser assim. Você ainda tem uma vida, pode vivê-la plenamente e ser feliz. — Minha felicidade é você, Daniel. — Mesmo que você se case com outro, tenha seus filhos e construa sua felicidade, eu estarei sempre por perto. Jamais me afastarei de você. — Não Daniel, eu já estou decidida: quero ficar com você para sempre. — falei, com firmeza, em seguida, pousei os meus lábios sobre os seus, fazendo-o entreabri-los, enquanto acariciava seu peito largo com a ponta dos meus dedos. Num gesto rápido, ele ergueu-me no ar, com seus braços fortes, carregando-me para o interior da casa, sem interromper o beijo. Levou-me até o quarto e estendeu o meu corpo sobre o colchão de molas ao chão, no qual dormimos durante todo o dia, começando a despir-me do vestido da índia, enquanto minhas mãos, trêmulas pelo desejo, arrancavam-lhe a bermuda. Com meu coração acelerado no peito, contemplei o seu corpo másculo, completamente nu, ao lado do meu, tão próximo que mal conseguia respirar, dominada pelo mais selvagem dos desejos. — Eu te amo tanto Daniel. — sussurrei, com minha respiração ofegante. — Eu também te amo Luana. — disse ele, num sussurro rouco. — Então não me peça para viver sem você. — Eu só quero que você seja feliz, meu amor. — Minha felicidade é você e não aceitarei tê-lo só pela metade. Então, sem mais nada dizer, ele beijou-me novamente nos lábios, avidamente, intensificando o desejo que me consumia, fazendo-me mergulhar no mais maravilhoso e inexplicável dos transes. Quando a exaustão tomou conta de nossos corpos, permanecemos imóveis, nos braços um do outro, envoltos em um silêncio profundo, quebrado apenas pelos sons das batidas aceleradas dos nossos corações. Não existiam palavras que pudessem descrever a felicidade que me invadia, neste momento. — Você não está com fome? — perguntei, após o longo silêncio, recordando-me de que não o vira comer nada durante todo o dia. — Não. — ele respondeu, sua respiração ainda ofegante pelo êxtase. — Mas você não comeu nada hoje! — Eu não preciso comer todos os dias. Se esqueceu de que sou um animal? — Mas até os animais se alimentam diariamente. — Não os selvagens como nós. Além do mais, sairei com meu povo, para caçar logo cedo. — Posso ir junto? — perguntei, entusiasmada com a perspectiva de assistir uma caçada dos lobos. — Tem certeza de que quer ver um bando de lobos selvagens devorando animais inocentes? — Tenho. — E quanto aos seus queridos humanos, não vão enlouquecer com sua ausência? — Eles esperaram até agora, podem esperar um pouco mais. — Então está bem. — ele concordou e eu o beijei emocionada. Porém o que seria apenas um beijo de agradecimento, logo se transformou em desejo, e as carícias se estenderam até um novo ato de amor, quando a paixão parecia incendiar nossos corpos. Quando despertei na manhã seguinte, Daniel era um lobo novamente. Encontrava-se sentado no chão, ao lado do colchão, observando-me com uma ternura intensa expressada em seus grandes

olhos verdes. Espichei o meu corpo, preguiçosamente sobre o colchão e estendi minha mão até ele, acariciando-lhe, carinhosamente, o focinho. — Bom dia, meu amor. — falei, fitando-o nos olhos, tentando evidenciar-lhe o quanto me sentia feliz, o quanto o amava. Em resposta, ele meneou sua cabeça volumosa, gesticulando para a porta. Olhei naquela direção e vi sua mãe Elizabete, a loba de pelos negros, entrando no quarto, carregando uma penca de bananas maduras entre seus caninos, abandonando as frutas ao lado do colchão. — Obrigada. — eu disse, sentando-me no leito improvisado, cobrindo minha nudez com o velho vestido de chita, enquanto servia-me das bananas. — Isso aqui está melhor que um hotel cinco estrelas. — completei. Alguns minutos depois, deixamos a casa, eu montada no lombo confortável e seguro de Daniel, enquanto os demais lobos nos acompanhavam, numa corrida veloz. Partimos rumo ao cerrado, sob o sol escaldante daquele novo dia de calor abafado, enquanto que o vento, causado pela velocidade da corrida, acariciava-me o rosto, esvoaçando-me os cabelos, proporcionando-me uma inigualável sensação de liberdade e adrenalina. Poucos quilômetros adiante, avistamos, ao longe, dois pequenos veados, pastando em meio à chapada, completamente alheios à nossa proximidade. Daniel deixou-me próximo ao tronco grosso e retorcido de uma árvore e, em seguida, juntou-se ao restante da alcatéia, que já rodeava, sorrateiramente, os dois pequenos animais, até que, todos ao mesmo tempo, avançaram para eles, surpreendendo-os, com golpes certeiros e mortais em suas gargantas. Enquanto os lobos devoravam a carne ensangüentada dos veados, aproximei-me deles, sentando-me há alguns metros de distância, sobre o capim verde, obseravando a cena, fascinada. Os machos tomavam conta de um dos veados enquanto que as fêmeas ficavam com o outro. Comiam vagarosamente, saboreando, com apetite, a carne suculenta dos animais. Ao contrário do que eu pensava, não comiam muito, pois mesmo antes que a carne dos bichos terminasse, já pareciam satisfeitos e afastaram-se, deixando os restos para os urubus. Após saciar seu apetite e limpar o sangue do seu focinho, no capim verde, Daniel aproximou-se de mim, derrubando-me de costas no chão, colocando-se, de pés, sobre o meu corpo, lambendo-me, carinhosamente, a face, causando-me cócegas e arrancando-me sonoras gargalhadas. — Pára com isso, seu cachorro. — eu falei, sem conseguir parar de sorrir. Então, ele afastou-se, avançando dois passos largos para a frente, voltando-se novamente para mim, com um meneio de cabeça, como se me desafiasse a acompanhá-lo numa corrida. — Até parece que vou cair nessa. — falei, colocando-me de pé. — Enquanto eu corro um metro, você já terá percorrido um quilômetro. Ele meneou a cabeça novamente, a língua pendurada para fora da boca, como um cão convidando seu dono a brincar. — Você não acha mesmo que vou disputar uma corrida com você, acha? Sua cabeça grande, meneou positivamente. — Tudo bem, mas me dê uma vantagem. Ele concordou. Então, disparei em uma corrida veloz, minhas botas de montaria chocandose contra o solo rochoso, a adrelalina correndo em meu sangue, o vento esvoaçando meus cabelos já emaranhados. Constatei que era mais divertido do que eu pensara. Olhei para trás e o vi, ainda esperando que eu me afastasse. Logo pôs-se a correr também, alcançando-me em questão de

segundos. Vendo aquela injustiça, minha sogra e madrasta Elizabete, a loba de pelos negros, correu em meu auxílio, colocando seu corpo sob o meu, erguendo-me em suas costas peludas, continuando a corrida, agora com muito mais velocidade, ultrapassando Daniel, enquanto os demais passavam a nos seguir, divertindo-se tanto quanto nós. Quando paramos, sobre uma pequena colina, estávamos pouco centímetros adiante de Daniel, havíamos vencidos a corrida. Elizabete colocou-me no chão, cuidadosamente e fui até ele, meus lábios curvados num largo sorriso. — Viu cachorrão? As mulheres unidas, jamais serão vencidas. — falei, com empolgação. Então, ele pulou sobre mim, derrubando-me no chão, com cuidado para não machucar-me. Colocou-se sobre mim e começou a lamber minha face suada, causando-me novas cócegas. Eu contornei os meus braços em torno do seu corpo volumoso e peludo, fazendo-o cair ao chão também e começamos a rolar sobre a relva, euforicamente, comemorando nossa indescritível felicidade, enquanto os outros casais nos observavam. Por volta do meio dia, quando retornamos a casa abandonada onde passamos a noite, encontrei minhas roupas lavadas e secas, estendidas sobre o capim baixo. Peguei-as e fui para o interior da moradia, vestindo-me. Ao sair novamente para o quintal, Daniel veio receber-me na porta, fitando-me com olhar triste, inclinando seu corpo diante de mim, indicando que eu o montasse. Com tristeza, percebi que chegara a hora de voltar para casa e embora preferisse permanecer ali, ao lado ao meu amor e de minha nova família, sabia que era necessário partir, acalmar a preocupação daqueles que também me amavam, como Gustavo e Lucilene. Assim, montei o lombo confortável de Daniel, enquanto meu coração se apertava no peito, já pela dor da saudade, embora eu soubesse que à noite o veria novamente. Partimos numa corrida veloz, em direção à fronteira entre o território Nirvana as terras de Serra Azul, todos os demais lobos nos acompanhando de perto. Arriscando-se perigosamente a serem vistos pelos moradores da cidade. Deixaram-me muito além da fronteira, há apenas um quilômetro de distância de Serra Azul, de onde segui à pés, sob o sol escaldante, pela estrada de chão, que se estendia em meio ao cerrado. Enquanto caminhava, apressadamente, comecei a me perguntar até quando suportaria aquela situação, tendo Daniel apenas pela metade, privada de permanecer ao seu lado todo o tempo. Até quando precisaria dar explicações sobre onde passara a noite, mentindo para as pessoas que amava? Perguntei-me. Talvez eu devesse cometer um suicídio, apenas para renascer em pele de lobo e estar ao lado de Daniel em todos os momentos, sem mais precisar afligir as pessoas com meus desaparecimentos inexplicáveis. Lucilene e Gustavo, certamente sofreriam com minha morte, mas logo se conformariam e esqueceriam-me.

CAPÍTULO XI

Destino

Quando se nasce com um destino traçado, por mais que outros caminhos se apresentem, não se pode fugir dele, pois a vida se encarregará de concretizá-lo. Mesmo que eu não fosse perdidamente apaixonada por Daniel, meu destino era ele, pois fomos predestinados a ficarmos juntos, ainda antes de nascermos, e os acontecimentos que se seguiram, provariam tal teoria. Ainda caminhando apressadamente, sob o sol escaldante, adentrei a cidade de Serra Azul, onde logo todos os olhares se voltaram para mim, tornando-me o centro das atenções. Fixei meu olhar no chão, tentando ignorar o ato de indiscrição daquele povo e continuei meu percurso. Ao longe, avistei uma viatura da polícia civil estacionada diante da casa de Lucilene e o pânico tomou conta de mim. Teria a polícia descoberto que eu assassinara Douglas? Perguntei-me aflita, cessando minha caminhada. Logo, pus minha mente a trabalhar rapidamente, em busca de uma solução, da coisa certa a fazer, se deveria fugir ou me entregar de uma vez. Porém, de súbito ocorreume que não havia meios de a polícia ter descoberto o meu crime, pois não existiam provas que me incriminassem, os lobos haviam enterrado tudo na mata, inclusive o carro que Douglas ocupava. Jamais chegariam a mim. Certamente, encontravam-se ali por qualquer outro motivo. Então, decidida, dirigi-me para a casa e entrei, encontrando Lucilene, Gustavo e mais dois homens na sala, sentados nas cadeiras de macarrão. Ao me verem entrar, todos ficaram de pé, Lucilene correu para me abraçar, dizendo: — A Virgem Maria ouviu minhas preces! É a minha filha! — estreitou-me em seus braços roliços, em seguida afastou-me um pouco, o suficiente para fitar o meu rosto e perguntou: — Você está bem, filha? — Claro que estou mamãe. Desculpe ter deixado você preocupada. — foram minhas palavras. — Onde você estava, Luana? — Gustavo perguntou, fitando-me com severidade e ao mesmo tempo aflição. — Bem, eu... — comecei, engasgando-me com as palavras, pois além de não ser uma mentirosa muito competente, eu não pensara numa explicação para dar a eles. — ...eu estava... no sertão. — No sertão?! — Gustavo e Lucilene pronunciaram ao mesmo tempo, em coro. — É. Isso mesmo. Eu estou pensando em escrever um livro e precisava examinar alguns possíveis cenários... — eu falava quase sem pensar, meus olhos detidos nos dois policiais, que me estudavam atentamente. O rosto de um deles me era bastante familiar, tratava-se de Alexandre, um dos meus namorados dos tempos da adolescência, o mesmo com quem Adalcino me flagrara fumando maconha na roça, na ocasião em que me expulsara de casa, há quatro anos atrás. Ele era alguns anos mais velho que eu e estava alguns quilos mais gordo que quando namorávamos, escondidos na roça, mas ainda era bonito: era alto e forte; tinha cabelos negros, crescidos até o pescoço; seus olhos eram de um castanho escuro profundo. Relembrei que, durante sua juventude, ele tinha o sonho de se tornar um policial. Pelo visto, havia conquistado seu objetivo. Percebi, também, pelo seu olhar, que ainda

era viciado em maconha. Eu podia reconhecer o rosto de um viciado de longe. O outro, que o acompanhava, um homem de meia idade, magro e alto, me era totalmente desconhecido. — Como vai, Luana? — Alexandre falou, timidamente, tirando o boné de sua cabeça, ao perceber que eu o observava. Não tive certeza se ainda continuava falando, proferindo minhas mentiras descabidas, impensadas, ou se já me calara. — Estou bem e você? — respondi, mecanicamente. — Vou levando a vida. — disse ele. — Bem, estamos aqui porque Gustavo e sua mãe queriam organizar uma busca, para procurar por você, mas agora que já apareceu, acho que não temos mais nada a fazer aqui. — Como assim uma busca? — perguntei, confusa. — Eu sou o delegado de Serra Azul agora e eles registraram seu desaparecimento. Isso pode ser feito após vinte e quatro horas da pessoa ter saído de casa sem avisar, sabe? — Mas eu não estava desaparecida, apenas saí sem avisar. Eu já sou maior de idade. — eu tentava inverter a situação ao meu favor. Neste momento, Gustavo aproximou-se mais de mim, fitando-me diretamente, com a aflição expressada em seu olhar. Percebi que tinha o rosto abatido e cansado, com olheiras profundas em torno dos olhos, como se há muito não dormisse. Certamente passara as duas noites em claro, perguntando-se onde eu estaria. — Douglas saiu do coma, Luana e comprou uma passagem de avião, há três dias, para Imperatriz. Você sabe o que isso significa, não sabe? — ele perguntou, com tom de urgência. De repente, senti todas as fibras do meu corpo se contraírem de tensão, enquanto Gustavo, com seus olhos de raio x, registrava minha reação. Chegara o momento que eu tanto temia, quando a morte de Douglas seria relacionada a mim. — Mas se ele não pareceu aqui até agora, é sinal de que não pretende vir mais. — falei, tentando parecer casual, embora a tensão tomasse conta de mim. — Você não viu ele por aí, enquanto... pesquisava? — foi Alexandre quem perguntou, seu olhar, subitamente, desconfiado. — Felizmente não, ou sequer estaria aqui, conversando com vocês agora. — eu precisei dar ênfase à minha afirmação, tentando parecer o mais convincente possível. — Bem, então se está tudo bem, acho que podemos ir embora. — Alexandre disse, pousando novamente seu boné na cabeça. — Se vocês desconfiarem da chegada de Douglas na cidade, me avisem imediatamente. — E ele saiu, sem mais nada dizer, seguido por seu companheiro. Enquanto eu soltava um suspiro de puro alívio, sob a percepção atenta de Gustavo, Lucilene abraçou-me novamente, dizendo: — Ah, filha, ficamos tão preocupados com você. A cidade anda tão perigosa. — ela afastou-se. — Você acredita que roubaram um cavalo no curral de sua tia Vera? — É mesmo? E não pegaram o safado do ladrão? — eu perguntei, com ironia. Imediatamente, Gustavo percebeu o sarcasmo no tom da minha voz e fuzilou-me com seu olhar duro, transmitindo-me a certeza de que sabia que fora eu quem roubara o cavalo de tia Vera. — Ai mãe, estou morrendo de fome. — eu declarei, como um pretexto para fugir do olhar especulativo de Gustavo. — Pois então vamos comer, fiz carne de porco frita para o almoço. — Lucilene se dirigiu para a

cozinha, gesticulando para que eu a seguisse. Então, sentamos os três à mesa, Luclilene servindo os três pratos, quando descobri que, apesar de passar de uma hora da tarde, eles também ainda não tinham almoçado e um sentimento de culpa tomou conta de mim. — Adailsom e Adriana estão na roça? — perguntei. — Não. — Lucilene respondeu, abastecendo seu prato com a comida. — Eles não foram trabalhar hoje. Saíram por esse sertão à procura de você. — Sobre o que é o seu livro, Luana? — Gustavo perguntou, ainda fitando-me com severidade. Ele tentava me deixar embaraçada, pois sabia que eu não estava pesquisando cenário algum. Eu podia enganar a todos ali, menos a ele. Embora não tivesse certeza de onde eu passara as duas últimas noites, seu incrível poder de percepção, certamente já lhe indicara o rumo. — É um romance. — minha resposta foi breve. Então, virei-me para Lucilene e, tentando fugir do assunto, perguntei: — Mãe, quando foi que o Alexandre se tornou delegado? — Há cerca de um ano. Conseguiu o cargo por indicação política. A oposição protestou, argumentando que ele é muito jovem para assumir essa responsabilidade, mas não teve jeito. — E ele é competente? — Aqui em Serra Azul, qualquer um conseguiria ser delegado, pois a criminalidade consiste em apenas alguns poucos ladrões de galinhas. Continuamos ali conversando até o final da refeição, enquanto eu, abordava os mais variados assuntos, numa tentativa de fugir da especulação de Gustavo. Embora ainda o amasse, profundamente, não podia falar-lhe a verdade, revelar-lhe a existência dos lobos, pois não era um segredo meu e sim dos meus antepassados, não podia trair a confiança deles, tampouco colocar suas vidas em risco. Se houvesse um meio de enganá-lo, de mentir para si, eu inventaria qualquer estória, apenas para não magoá-lo, mas era impossível enganar a Gustavo, eu era transparente demais aos seus olhos. Desde que pousara seu olhar sobre mim, pela primeira vez — quando surgira repentinamente da floresta, assustando meu cavalo, em Boa Esperança —, ele tinha o dom de me desvendar, de me compreender, como se fosse capaz de enxergar minha alma. Por vezes eu tinha a impressão de que ele podia, inclusive, ouvir meus pensamentos. Ele me conhecia como ninguém mais, pois me conhecia por dentro. A forma como eu vinha agindo, em relação a ele, nos últimos dias, precisando manter-me distante, indiferente ao nosso amor, me machucava profundamente, pois sabia que o estava fazendo sofrer, que o magoava com minha ausência. Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer para mudar as coisas, para fazê-lo sentir-se feliz, tanto quanto eu me sentia, mas não havia nada. Eu pertencia a Daniel e nada podia ser feito para mudar isto, pois o amava, acima de tudo o mais. Após o almoço, a conversa vazia e sem sentido, iniciada por mim, com o objetivo único de fugir do poder de percepção de Gustavo, durou por mais meia hora, quando, por fim, dirigi-me para o quarto, sentindo-me exausta, ansiosa por um sono profundo, o qual precederia a noite, quando estaria novamente nos braços de Daniel e nada mais me importaria. Relembrando a fascinante caçada de lobos que presenciara durante aquela manhã, troquei rapidamente o jeans e a camiseta por uma confortável camisola de algodão e deitei-me na pequena cama de solteiro, o sorriso, de puro contentamento, se recusando a se desfazer dos meus lábios. Fechei os meus olhos e visualizei mais uma vez — pela milésima vez —, o rosto perfeito de Daniel, seus olhos verdes fitando-me com ardor; seus lábios úmidos e quentes deslizando-se sobre minha pele, incendiando-me de desejo... Começava a adormecer, quando a porta do quarto se

abriu e Gustavo entrou. Ele tinha, em seu olhar, um misto de angústia e aflição; sua fisionomia estava carregada de amargura; o rosto abatido pelo cansaço; as olheiras profundas em torno dos seus olhos. Muito pouco restava dos traços ingênuos, inocentes e bem humorados que eu tanto conhecia. Parecia outra pessoa. Teria eu destruído o que havia de melhor nele? Movendo-se vagarosamente, sem ânimo, ele sentou-se na cama, ao meu lado, bem próximo, quase me tocando. Rapidamente, afastei-me de sua proximidade, sentando-me também, tentando evitar que o calor de seu corpo despertasse a paixão dentro de mim, pois seria muita deslealdade, de minha parte, desejar dois homens ao mesmo tempo. — Luana, você precisa me contar o que está acontecendo, ou vou enlouquecer. — ele disse, fitandome diretamente nos olhos, a angústia expressada em seu olhar. Refleti por um momento, pensando no que poderia dizer a ele, mas não havia nada, além da sinceridade, que o convenceria. — Me desculpe, Gustavo, mas não tenho nada para lhe dizer. No instante em que parei de mover os meus lábios, vi a angústia de intensificar em seu olhar. — Será que você não percebe o que está fazendo comigo? — ele perguntou, com voz trêmula. Neste momento, senti um forte aperto em meu coração. A culpa pelo seu sofrimento machucando-me como um golpe físico. Era como se eu pudesse sentir sua dor. Num impulso, aproximei-me mais dele e o abracei, experimentando o calor familiar do seu corpo querido. Por muito tempo, Gustavo fora tudo para mim, tudo o que eu tinha, um anjo de luz que iluminava a escuridão na minha vida, por isso o amava tanto. Ele me resgatara do profundo poço de agonia no qual me encontrava mergulhada quando o conhecera. Porém, agora eu tinha Daniel, pertencia a ele e nada poderia ser feito para mudar isto. — Por favor, me perdoe Gustavo, me perdoe. Eu não queria fazer você sofrer desse jeito. Me desculpe. — eu falei, com sinceridade. Ele apertou o meu corpo de encontro ao seu, com mais força, quase me sufocando, quando disse: — Ah, Luana, eu fiquei tão preocupado, quando descobri que Douglas estava vindo para cá. Quase enlouqueci. — suavemente, ele começou a roçar os seus lábios trêmulos sobre os meus cabelos, deslizando-os pelo meu rosto, até alcançar minha boca, invadindo-a com sofreguidão, tentando fazer com que eu entreabrisse-a para receber o beijo. Sentindo-me, subitamente, invadida por um desejo ardente, entreabri os meus lábios para receber o beijo, ávido, desesperado, enquanto que Gustavo, lentamente, inclinava meu corpo para trás, de volta à cama, deitando-se sobre mim, deslizando sua mão pela minha pele, por sob o tecido da camisola, deixando um rastro de fogo por onde passava. Perguntei-me como era possível desejar dois homens ao mesmo tempo, quando, de repente, dei-me conta de que estava prestes a trair a confiança de Daniel e, se o fizesse, me sentiria suja. Então, apegando-me aos últimos vestígios de minha sensatez, desviei o meu rosto para o lado, interrompendo o beijo, reprimindo o desejo dentro de mim, ao mesmo tempo em que comprimia meus pulsos contra o peito de Gustavo, num apelo, quase desesperado para que ele parasse. Respondendo à minha reação, logo ele afastou-se, fitando-me com um misto de ardor e angústia no olhar. — Você não me ama mais... — ele sussurrou, com respiração ofegante.

Sentei-me novamente na cama, afastando-me mais dele, evitando o contato e falei: — Eu te amo, Gustavo, mas... — detive-me, tomando consciência de que corria o risco de falar mais do que podia. — Mas ama mais a outro. — ele falou, a amargura evidente no tom de sua voz. Neste instante, senti um novo aperto em meu coração, culpando-me por fazê-lo sofrer, afinal ele não merecia ser rejeitado por mim, era merecedor de todo o meu amor, até mais que Daniel. Desde que o conhecera, em todos os momentos, empenhara-se em me fazer feliz, em me afastar de minha depressão, em salvar-me de Douglas. Porém, o que eu podia fazer se meu coração batia mais forte por Daniel? O que eu podia fazer, se todas as fibras do meu corpo e minha alma, queriam a ele? — Um dia você me falou que no coração a gente não manda e você estava certo. — foi o que consegui dizer, enquanto via seus olhos brilharem com a confirmação de que eu tinha outro amor. Desconfiaria ele de que se tratava de Daniel que voltara dos mortos? Perguntei-me. — Por favor, Gustavo, deixe-me dormir um pouco. — pedi, desviando meu olhar do seu rosto. Então, sem mais nada dizer, ele deixou o quarto, batendo a porta com força atrás de si. Deitei-me novamente na cama, mas desta vez já não consegui relaxar, meu corpo tenso, minha mente povoada por um turbilhão de pensamentos, a maior parte deles relacionados a Gustavo. Sentia-me dolorosamente culpada por seu sofrimento, não era minha intenção fazê-lo sofrer, logo ele que trouxera tanta felicidade à minha vida, que se empenhara tanto em me fazer feliz, em me salvar do poço de depressão no qual um dia me encontrara mergulhada. Enquanto ele me devolvera a vida, eu destruía a sua, embora não fosse essa a minha intenção. Por um longo tempo, rolei de um lado para o outro da cama, sem conseguir relaxar, a imagem do rosto angustiado de Gustavo, cravado em minha mente. Até que, por fim, percebi que não conseguiria dormir e me levantei. Peguei uma muda de roupas no armário de madeira, pendurei a toalha de banho no ombro e deixei o quarto, dirigindo-me para o quintal, em busca do banheiro. Chegando lá, percebi que a noite começava a cair, e meu coração bateu mais acelerado no peito, pois logo estaria novamente nos braços de Daniel, entregando-lhe todo o meu infinito amor. Tratava-se de um final de tarde sombrio, sem a presença do por do sol, já que, anormalmente, não havia sol no céu. Um vento suave soprava, incessantemente, balançando os galhos mais altos das árvores frutíferas, emitindo um som peculiar, que eu já conhecia. Não era um final de tarde normal daquela região do país, onde o sol costumava permanecer até o cair da noite. Percorri meu olhar pelo céu, à procura dos últimos vestígios do dia, mas avistei apenas uma camada de nuvens negras, embora não relampejasse ou trovejasse, e um calafrio, inexplicável, percorreu-me a espinha, como o anúncio de um mau presságio. Continuei percorrendo, insistentemente, meu olhar pelo céu, como se, por algum motivo, precisasse, urgentemente, avistar os últimos vestígios do dia, mas via apenas a estranha escuridão que se formava, enquanto que o vento se intensificava. Após o banho, vesti um jeans e top de malha e fui para a varanda, onde encontrei todos reunidos, sentados nas cadeiras de macarrão, conversando, descontraidamente. Apenas Gustavo não participava da conversa, mantinha-se cabisbaixo, silencioso, o cenho franzido, o olhar triste e ao mesmo tempo reflexivo. Perguntei-me até onde suas conclusões haviam, perigosamente, chegado. Adriana, sentava-se ao seu lado, sem mais conseguir esconder seu interesse. Ao ouvirem os meus passos, todos silenciaram-se, virando-se para me fitar. Sentindo-me constrangida, diante de seus olhares, sentei-me numa cadeira vazia, juntando-me à roda de conversa, tentando imaginar o que todos estavam pensando a respeito do fato de eu ter passado três noites e um

dia fora de casa, praticamente sem dar explicações. Pela severidade e condenação com que Adriana e Adailsom me encaravam, percebi que certamente já haviam concluído que eu estivera me encontrando com outro homem, embora ainda mantivesse um relacionamento com Gustavo. Estavam pensando o pior de mim. — Dormiu bem filha? — Lucilene perguntou, partindo em meu socorro. — Não consegui dormir muito. — falei. — Sobre o que vocês estavam conversando? Todos entreolharam-se, evidenciando que falavam sobre mim. — No quanto ficamos preocupados com seu desaparecimento. — foi Lucilene quem respondeu. — Pois é. Você deixou todo mundo preocupado. — Adriana completou, rispidamente. — Você não deve mais sair de casa, com esse Douglas solto por aí. — Adailsom se manifestou. — Pelo que Gustavo falou, ele é muito perigoso. A não ser que... — ele hesitou antes de continuar. — A não ser que seja com ele que você anda se encontrando. Neste momento, senti a irritação crescer em meu íntimo, enquanto que Gustavo, sem mover um só músculo do restante do seu corpo, deslocava seu olhar para mim, cravando-o em meu rosto, estudando minha reação. Com as olheiras escuras, seus olhos cor de mel estavam ainda mais claros. Eu já esperava ser julgada e condenada pela população de Serra Azul, por causa do meu passado, só não sabia que seria o meu irmão a atirar a primeira pedra. — Eu acho que vou voltar para o quarto. — falei, levantando-me da cadeira. — Nada disso, pode ficar aí. — Lucilene me interrompeu. Depois, virou-se para Adailsom e com rudeza falou: — Pára de falar o que você não sabe, menino. É claro que ela não se encontraria com aquele monstro. Certamente, Gustavo lhes revelara que Douglas me agredia, violentamente, quando estava ao seu lado. — Isso mesmo, Luana, fique aí e nos conte onde passou a noite. — Gustavo disse, com tom de sarcasmo e o mesmo tempo de hostilidade, como jamais antes se dirigira a mim. — Eu já disse: estava buscando inspiração para escrever um livro. — menti, voltando a sentar-me na cadeira. — Não, Luana, você falou que estava examinando alguns possíveis cenários. — Gustavo falou, no mesmo tom de antes, fazendo-me sentir desconcertada. — Agora já chega! Deixem a menina em paz e vamos jantar. — Lucilene falou. — Você está com fome filha? — Não mãe. Podem ir jantar que comerei alguma coisa mais tarde. — menti, apenas para não ter que sentar-me à mesa, na mira dos olhares de condenação de todos. Quando todos saíram para a cozinha, Adailsom empurrando a cadeira de rodas de Adalcino, continuei ali sentada, obseravando a rua, os poucos pedestres virando-se para me encarar. Pouco a pouco, a penumbra da noite caía por completo, enquanto o vento incessante se tornava cada vez mais frio. Era normal um vento frio naquela região? Perguntei-me, lembrando-me de que, à essa altura, Daniel já podia tomar a forma humana e eu queria, com todas as minhas forças, poder sair de casa para encontrá-lo. Porém, isto seria impossível, pois jamais me deixariam partir sem antes dar uma boa explicação, sobre meu destino, principalmente agora que acreditavam estar Douglas solto por aí, procurando-me. Seria necessário esperar que todos se recolhessem e sair na ponta dos pés. Até quando esta desagradável situação se prolongaria? Outro problema seria encontrar um meio de transporte, para ir até a fronteira entre as terras Nirvanas e serrazulenses. Precisaria roubar outro cavalo ou, quem sabe, uma motocicleta, para

chegar mais depressa. Permaneci sentada ali na varanda por várias horas, perdida em minha solidão, mergulhada em meus pensamentos, ansiosa para que todos se recolhessem aos seus leitos, quando eu poderia, finalmente, sair desapercebida. Desta vez passaria toda uma semana na companhia de Daniel; sem voltar para casa; alimentando-me com frutas e com a farofa dos índios; presenciando as caçadas dos lobos; dormindo no chão, nos braços do meu amor; amando e sendo amada; livre do julgamento, da hostilidade e da cobrança de todos. Por volta das dez horas da noite, Lucilene veio recolher as cadeiras de macarrão da varanda, declarando que já iria dormir. — Você não vai jantar filha? — perguntou ela, com um bocejo. — Não estou com fome, apenas com sono. Todos já foram dormir? — Já. Só ficamos nós duas acordadas. Então, após receber o abraço apertado e inesperado de Lucilene, dirigi-me para o quarto, satisfeita em saber que todos dormiam e que eu já poderia sair, sem ser descoberta. Chegando ao quarto, vi Gustavo dormindo, desconfortavelmente, sobre o colchonete estendido no chão, seu rosto ligeiramente relaxado, embora ainda visivelmente amargurado. Apenas por precaução, deitei-me na cama e fingi mergulhar num sono profundo. Esperei cerca de meia hora e levantei-me novamente, dirigindo-me para a porta, na ponta dos pés. Porém, antes que a alcançasse, Gustavo ficou de pé, repentinamente, e, movendo-se com uma incrível agilidade, tomou-me a frente, alcançando a porta primeiro, girando a chave na fechadura, trancando-a, guardando a chave no bolso do seu pijama. — Hoje não, Luana. — disse ele, firmemente. Eu o fitei perplexa, aturdida e indaguei: — O que você pensa que está fazendo?! — Estou te dizendo que hoje você não vai sair dessa casa. Rapidamente, meu olhar procurou a janela, mas havia um gigantesco cadeado trancando-a. Gustavo pensara em tudo, vinha planejando fazer-me de prisioneira. Desde quando? — Gustavo, abra essa porta agora! — eu ordenei, a raiva tomando conta de mim. — Não! Não posso permitir que você saia por aí sozinha, correndo o risco de encontrar Douglas pelo caminho e, talvez até, ser morta por ele. — Não vou encontrar Douglas algum! — eu gritei, com raiva crescente. Como ele se atrevia a fazerme de prisioneira? — E por que você afirma isso com tanta certeza?! — Porque ele está morto! — eu falei, num impulso incontrolável, dando–me conta, imediatamente, de que falara mais do que deveria. — O que você disse Luana? — ele perguntou, fitando-me com olhos atônitos. Ainda pensei em mentir, em inventar uma estória qualquer, mas era muito difícil enganar Gustavo. Além do mais o segredo que eu deveria guardar, era a existência dos lobos, confessar a morte de Douglas, não implicaria expô-los, mas tranqüilizaria a Gustavo, contribuindo para que ele me deixasse sair dali. — Disse que ele está morto, não pode mais me fazer mal. Agora será que dá pra abrir essa porta? — E como é que você sabe que ele morreu? — seu olhar agora era de especulação. Refleti por um momento, em buscado das palavras certas, então disse: — Eu o matei. — observei-o sentar–se na cama, boquiaberto. — Ele apareceu no sertão, tentando me

levar de volta à Boa Esperança, mas foi morto antes de conseguir me forçar a entrar no carro. Agora pode abrir a porta. — Minha nossa, Luana, como foi que você conseguiu matar ele? Você não fez isso sozinha, fez? — Depois eu te explico os detalhes, agora preciso sair. Me dê as chaves da porta. A ansiedade crescia dentro de mim, misturando-se à raiva. À essa altura, Daniel já se encontrava apreensivo com minha demora. — Mesmo assim não posso deixar você sair, Luana, talvez ele não tenha vindo ao Maranhão sozinho, talvez alguém apareça para vingar sua morte, isto sem falar que a polícia pode ter descoberto o seu crime, pode tentar te prender. Amanhã cedo voltaremos para São Paulo e tudo se resolverá. — Abra logo a droga dessa porta! Ou vou gritar meu irmão! — Pode gritar, Adailsom sabe que você não vai sair hoje. Pra falar a verdade, foi ele quem me deu a idéia. — Mas minha mãe eu duvido que tenha concordado com isso. Dominada pela fúria, preparava-me para gritar por Lucilene, a única que, certamente, me socorreria, porém, neste momento, o uivo de um lobo ecoou ao longe e, imediatamente, reconheci que se tratava de Daniel, chamando-me. — Você ouviu isso? Aquela coisa está lá fora novamente. — Gustavo falou, seus olhos arregalados de pânico. Ao observar a expressão do meu rosto, tranqüila demais para quem acabara de ouvir o uivo de um lobo, completou: — Você ainda tem coragem de sair com ele solto por aí? — Na verdade, ele está chamando por mim. — eu falei, indo além do que deveria, numa tentativa quase desesperada de sair dali. — Como assim, chamando por você, Luana? Você ficou louca? — Por favor, Gustavo, me deixe sair daqui. Depois te explicarei tudo, eu prometo. — Sinto muito, mas não posso deixar você sair. — ele observou o desespero em meu olhar. — Não estou fazendo isso para o seu mal, Luana, muito pelo contrário, estou tentando proteger você. Foi um erro ter convencido você a voltar para Serra Azul, amanhã cedo voltaremos pra São Paulo. Neste instante, o uivo ecoou novamente, desta vez mais próximo, a cerca de um quilômetro de distância. Daniel estava vindo ao meu encontro, certamente preocupado com minha demora. Senti todo o meu corpo se estremecer de pavor, ao imaginar o que ele faria se entrasse ali e percebesse que Gustavo me fazia de prisioneira. Provavelmente o mataria. Eu não conseguiria conter sua fúria selvagem. Ninguém conseguiria. Tomada pelo desespero, segurei as mãos de Gustavo, fazendo-o sentar-se na cama, sentando-me ao seu lado. Escolhendo, cautelosamente, as palavras, falei: — É Daniel quem está uivando Gustavo. Ele renasceu em pele de lobo, assim como nossos antepassados. É com ele que venho me encontrando e ele está vindo para cá agora, portanto, abra essa porta e me deixa sair, antes que seja tarde demais. Gustavo fitava-me com um misto de perplexidade e incredulidade no olhar. — Você ficou louca, Luana?! Pessoas mortas não renascem! — Mas ele não é uma pessoa normal, assim como eu também não sou e você sabe muito bem disso! Gustavo ficou de pé, confuso, percorrendo seus dedos trêmulos através dos seus cabelos, num gesto de puro nervosismo. As olheiras escuras em torno dos seus olhos, unidas ao seu rosto cansado e angustiado, lhe conferiam a aparência de um louco. — Tudo bem, vamos supor que você esteja falando a verdade, que ele realmente tenha reencarnado.

Ainda assim, Luana, ele não merece você, afinal fez você sujar suas mãos com o sangue de Orlando e agora permitiu que você assassinasse Douglas. Será que você não vê que ele não é o melhor para você? — E quem é o melhor para mim? Você? — E por que não, Luana? — ele perguntou, a angústia se intensificando em seu olhar. — Nós nos amamos, podemos ser felizes juntos... Novamente, ouvimos o uivo agudo e feroz de Daniel, ecoando, ainda mais próximo, encontrava-se já no quintal da casa. Numa atitude desesperada, segurei os dois ombros de Gustavo e o fitei diretamente nos olhos, dizendo: — Abra essa porta, Gustavo. Você não tem noção do que ele é capaz de fazer com você se entrar nesse quarto. — eu tinha minha voz trêmula, meu coração disparado no peito, pois temia pela vida de Gustavo, apesar de tudo, ainda o amava, como se ele fizesse parte de mim. — Não. Você não vai sair daqui! — ele insistiu, seu corpo trêmulo de medo, seu olhar fixo na janela do quarto, como se previsse o que aconteceria. De repente, houve um estrondo violento, ensurdecedor e a janela de madeira espedaçou-se, ao passo em que o gigantesco lobo cinzento pulava ao centro do quarto. Primeiro lançou um olhar rápido na minha direção, em seguida, cravou seus olhos verdes no rosto de Gustavo, arreganhando seu focinho, expondo suas presas afiadas, ameaçadoramente. Rapidamente, coloquei-me entre eles dois, de frente para Daniel, tentando acalmar sua fúria, impedi-lo de tirar a vida de Gustavo, porém, neste instante, o que parecia inacreditável, começou a acontecer: lentamente, o corpo de Gustavo foi aumentando de altura e de largura, a camisa do seu pijama rasgando-se com a mudança; densos pelos cinzas escuros, surgiram em sua pele; seu rosto se tornou enrugado, a pele grossa, escura, como a de um animal; suas mãos se transformaram em garras e presas enormes saltaram para fora de sua boca. Em um minuto ele não era mais Gustavo, mas um misto de homem e animal, um lobisomem, igual ao que Daniel se transformara, bem diante dos meus olhos, nas proximidades da cidade de Vitória, passando por metamorfose semelhante. Virei-me para observar o lobisomem enorme, medonho, e, subitamente, tudo ficou claro para mim: Gustavo era um dos nossos irmãos perdidos, filho de Estevão, com Dalva ou Isabel, abandonado por Anselmo ou Francisco, ainda com poucos dias de vida. Como eu pude ser tão cega? Como não percebera isto antes? Logo que nos conhecemos, em Boa Esperança, ele me revelara que fora abandonado, ainda com poucos dias de vida, na porta de um hospital, em Salvador, na Bahia. Um dos dois malfeitores o deixara lá. Qual teria sido dos dois? Como eu e como todos os integrantes de nossa família, Gustavo também tinha uma afinidade especial com os cavalos, por isso os amava tanto e vencera tantas competições de hipismo. Como eu fora incapaz de ver isto? De perceber o quanto éramos, anormalmente, parecidos? Agora tudo se tornava mais claro, conseguia entender porque ele tinha aquela estranha capacidade de me compreender, de desvendar minha alma: éramos irmãos, sangue do mesmo sangue, carne da mesma carne. Por isto ele se interessara tanto pelo caso, quando Daniel me sequestrara em Copacabana, acompanhando todos os acontecimentos através da mídia, colecionando fotografias nossas e até sonhando com a criatura na qual acabara de se transformar. Agora eu compreendia porque éramos tão próximos, porque nos amávamos tão infinitamente: éramos irmãos. De repente um doloroso sentimento de culpa me invadiu, pois eu o fizera cometer o pecado do incesto, o qual o transformava na criatura agora. Era tudo culpa minha, nas duas ocasiões em que fizemos amor, eu o

seduzira, induzira-o a tornar-me sua, a me fazer sua mulher. Se não fosse por mim, nós jamais teríamos nos tocado e ele poderia viver, toda a sua vida, como um ser humano, sem jamais se transformar naquela aberração, temida de odiada pela humanidade. O que seria dele agora? Gustavo começou a remeter golpes, de sua garra afiada, em direção ao lobo, desviando-os de mim, que continuava entre eles, atônita, chocada, com o que acabara de presenciar. Em pé entre eles, eu tentava impedir que ferissem um ao outro, pois amava a ambos. Enquanto Gustavo tentava iniciar uma luta, remetendo seus golpes, Daniel, apenas esquivava-se, sem revidar, pois certamente constatara que se tratava de nosso irmão. — Por favor, pára com isso, Gustavo! — eu gritei, aflita e desesperada, observando o quarto tornarse pequeno demais para as duas feras. — Você não vê que ele é seu irmão? No entanto, ele não podia me ouvir, compreender o fundamento das minhas palavras, pois a fúria selvagem do animal que residia em si, o impedia de raciocinar claramente, como um ser humano. Se encontrava como Daniel, quando assassinara Orlando e os policiais na mata: dominado por uma fúria selvagem, a qual o cegava para tudo o mais que não a destruição do seu inimigo, ou seja, de Daniel. De repente, houve outro estrondo violento e a porta do quarto se abriu, forçosamente, quando Adailsom entrou, seguido por Lucilene e por Adriana. Ele empunhava a velha espingarda de Adalcino, — certamente a mesma usada durante o massacre de nossos antepassados —, seus olhos arregalados de pânico, observando as duas feras no quarto. — Minha nossa! O que é isto? — ele gritou, horrorizado, sem desviar seu olhar dos dois monstros, não podia distinguir que se tratavam de Gustavo e de Daniel. A princípio, ele apontou o cano da espingarda para o lobo, já que se encontrava mais próximo à mim, porém Gustavo era a criatura mais errônea ali, para quem ele logo desviou a direção da arma. Mas Gustavo não o atacaria, mesmo que para se defender, pois, embora cego, podia distinguir que Adailsom também era meu irmão e não era seu inimigo, ou rival, como Daniel. Tudo aconteceu muito rápido: vi o dedo de Adailsom tremer sobre o gatilho da espingarda e, fazendo uso de uma agilidade que eu desconhecia possuir, atirei-me na frente da arma, tentando proteger Gustavo do tiro, enquanto esta era disparada, o projétil da bala penetrando-me o peito, queimando-me a carne, insuportavelmente, fazendo-me cair ao chão, com meus olhos fechados, sem conseguir mais sentir o meu corpo. Eu já conhecia aquela sensação, a experimentara quando Olívia acertara-me um tiro. No entanto, agora parecia diferente, mais intensa. Desta vez, sentia que, lentamente, a vida esvaía-se do meu corpo. Um longo momento se passou, o qual me pareceu uma eternidade. Com muito esforço, consegui abrir os meus olhos e constatei que, tanto Daniel, quanto Gustavo, assumiram novamente a forma humana, encontravam-se ajoelhados no chão, ao meu lado, assim como Adailsom e Lucilene. Adriana, por sua vez, permanecia a um canto do quarto, recostada à parede, seu corpo tremendo, descontroladamente. Gustavo, Adailsom e Lucilene, tinham seus rostos banhados de lágrimas, contorcidos da mais profunda angústia, enquanto observavam-me caída ao chão. Percebi que seus lábios se moviam, como se dissessem algo, mas já não mais conseguia compreender suas palavras, a escuridão tentado me engolir. Daniel também me observava de perto, porém, seu rosto era o único sereno, entre todos, pois sabia que eu logo renasceria, em forma de lobo, como ele próprio renascera. Observei o desespero no rosto dos demais e tentei dizer-lhes que estava tudo bem, que eu

logo estaria recuperada, embora em outro corpo, que viveria eternamente ao lado do meu amor e de nossos antepassados. No entanto, ao tentar pronunciar as palavras, um jato de sangue jorrou pela minha boca, silenciando-me. Pouco a pouco, eu sentia que a negra escuridão tomava conta de mim, como se tentasse me devorar, sentia-me cansada demais para lutar contra ela, seria mais fácil me entregar. Fazendo uso dos últimos vestígios de forças que me restavam, segurei a mão de Gustavo, em meu ombro, pousando-a sobre a de Daniel, tentando selar a amizade entre eles. Em seguida, sem mais forças para permanecer consciente, fechei os meus olhos, permitindo que a negra e persistente escuridão me levasse...

Quando abri os meus olhos, sentia-me leve, como se pudesse flutuar. Pisquei, repetidamente, confusa, tentando assimilar a realidade na qual me encontrava, mas nada parecia fazer sentido. Percebi que encontrava-me deitada na cama de Adriana, no pequeno quarto, deitada de lado, como não era de meu costume fazer. Percorri meu olhar ao redor e tudo o que consegui ver foram imagens turvas, sem nexo e sem sentido. Pisquei os meus olhos novamente, desta vez com mais força, até que, por fim, consegui distinguir os rostos que me observavam, embora ainda não os focalizasse com clareza. Gustavo, Lucilene, Adailsom e Adriana, encontravam-se à minha frente, há cerca de dois metros de distância, na outra extremidade do pequeno cômodo, seus olhos ao mesmo tempo chocados e aflitos, pousados, fixamente sobre mim. Um pouco mais próximo da cama, encontrava-se Daniel, ainda transformado em lobo. Imediatamente, recordei-me dos últimos acontecimentos: a transformação pela qual Gustavo passara, evidenciando-me que se tratava de um dos meus irmãos perdidos; o tiro partido da espingarda, das mãos de Adailsom, atingindo-me. Estaria eu transformada em lobo agora? Pergunteime, embora não me atrevesse a olhar para mim mesma, por medo do que encontraria. — Não precisa ter medo, meu amor. — a voz familiar e querida de Daniel, ecoou em minha mente, assustando-me. Olhei o seu rosto, o rosto de um lobo, mas não vi seus lábios se movendo, constatei, então, que se comunicava comigo por meio do pensamento, portanto, agora, eu já era um animal, como ele. — Eu sei que no começo é difícil, Luana, mas tente se levantar. — a voz ecoou novamente, no interior do meu cérebro. No entanto, não consegui me mover, sentindo-me estranha demais, como se já não soubesse como enviar as informações da minha mente para o meu corpo. — Daniel, eu estou com medo... — deixei as palavras ecoarem em minha mente, ciente de que ele me ouviria. — Não tenha medo, minha querida. Você vai ficar bem. — Eu queria poder te abraçar... Neste momento, o grande lobo cinzento aproximou-se de mim, recostando seu pescoço peludo no meu. Senti o calor do seu corpo de encontro ao meu; sua respiração quente acariciando o meu rosto; ouvi as batidas descompassadas do seu coração; seu cheiro delicioso e familiar invadiram minhas narinas e constatei que a sensação de sua proximidade continuava a mesma de quanto ainda tínhamos a forma humana, despertava-me a mesma paixão infinitamente intensa. Então, sentindo-me mais segura, como se o contato com o seu corpo me devolvera a vida, finalmente, encontrei confiança para erguer minha cabeça e observar o meu corpo: eu estava completamente transformada em um animal, um lobo de pelos cinzentos, reluzentes, da mesma cor dos de Daniel; meu corpo era imenso,

ocupava toda a cama, embora ainda fosse ligeiramente menor que o dele e embora me sentisse muito leve. Arriscando um pouco mais, sentei-me sobre o leito, movendo-me descoordenadamente, por causa da leveza, força e agilidade do meu novo corpo. — Por quanto tempo fiquei desacordada? — deixei meu pensamento fluir, enquanto observava os rostos chocados dos demais presentes. — Há dois dias. — Daniel respondeu, sua voz ecoando em minha mente. — É dia ou noite? — É madrugada, o dia logo vai clarear. Por isso temos que sair logo daqui, voltar para nosso povo, enquanto ainda podemos deixar a cidade desapercebidos pela população. Observei novamente os rostos ao meu redor, tão queridos e familiares. O mais angustiado deles era o de Gustavo, fitava-me com um misto de espanto e amargura. Senti uma pontada em meu coração por ter que deixá-lo para trás, vivendo entre a raça humana, mesmo sem fazer parte dela, correndo constante perigo de ser, destruído, como foram nossos antepassados. E tudo por minha culpa, pois se não o tivesse induzido a cometer o pecado do incesto, se não o tivesse seduzido, jamais conheceríamos sua verdadeira origem, que era meu irmão, tão descendente da família de lobos quanto eu. Como ele estaria se sentindo diante daquela nova realidade? Gostaria de poder perguntar-lhe e também de dizer-lhe o quanto sentiria sua falta e o quanto sua tristeza me magoava, mas já não mais possuía o dom da fala. Então, olhei para Daniel e deixei as palavras ecoarem em minha mente: — Você ainda pode tomar a forma humana? — Não. — ele respondeu, com secura, já que conhecia cada um dos meus pensamentos. — Eu só tomava a forma humana por causa de você, Luana. — Daniel continuou. — Mas agora você é igual a mim, não tenho mais uma motivação para me transformar. Acabou. Deparei-me novamente com o olhar triste de Gustavo e não mais consegui me conter. Movendo-me, descoordenadamente, devido à falta de domínio sobre minha forma muito recente, desci para o chão e aproximei-me dele, receosa, hesitante, sem saber como ele reagiria diante de minha nova e estranha forma. Ele ajoelhou-se diante de mim, segurando o meu rosto peludo entre as palmas de suas mão, fitou-me profundamente, com seus olhos angustiados, marejados de lágrimas. — O que será de mim sem você, Luana? — ele perguntou, sua voz trêmula. Quis poder dizer-lhe que fosse forte, que esquecesse de mim e tentasse ser feliz ao lado de um novo amor, alguém que pudesse ser só sua. — Temos que ir embora Luana, o dia já vai amanhecer e será mais difícil sairmos daqui. — a voz de Daniel penetrou-me a mente. — Não podemos levá-lo conosco? — perguntei, ainda sem desviar meu olhar do rosto de Gustavo. — Afinal ele também é nosso irmão, não podemos deixá-lo desprotegido. Neste momento, eu senti a tensão crescer no íntimo de Daniel. Agora que conhecia cada um dos seus pensamentos, pude constatar seus ciúmes. Perguntava- se se eu queria levar Gustavo conosco apenas para protegê-lo ou se o queria mais perto de mim. — Não. Isso é impossível. — ele respondeu com rudeza. — Os Nirvanas deixaram bem claro que ninguém mais poderá ocupar suas terras. Agora vamos embora, o dia já vai clarear. Ainda com meu coração sangrando de dor, dirigi-me a cada um dos demais, tocando meu focinho em seus rostos, despedindo-me. Mas não sentiria a falta deles, tanto quanto sentiria a de Gustavo.

— Luana, de hoje em diante, dedicarei minha vida a proteger Gustavo, como uma forma de tentar reparar o mal que ti fiz. Não permitirei que nada de mal aconteça a ele. — Adailsom declarou, enquanto despedia-me, silenciosamente, dele. Depois, foi a vez de me despedir de Lucilene. Ela fitou-me com olhos marejados de lágrimas e falou: — Por favor, minha filha, não desapareça de minha vida de novo. Venha me visitar, mesmo estando assim. Eu posso matar algumas galinhas para você comer. Será bom que nem precisarei cozinhá-las, não é mesmo? Do interior da mente de Daniel, partiu uma sonora gargalhada. Eu podia ler em sua mente que simpatizara com Lucilene, mais que com qualquer um dos demais membros da minha família humana. Ele a achara parecida comigo, no seu jeito de ser franca e espontânea. Adriana foi a única a não aceitar o meu toque, afastando-se. Talvez ainda estivesse chocada com tudo o que presenciara. Mas quem não estaria? Afinal, vira um homem transformando-se em uma criatura medonha; uma mulher transformando-se em um lobo e um lobo transformando-se em um ser humano. Quem, em sã consciência, não ficaria traumatizado? — Eu também vou ajudar a proteger Gustavo, pode ir tranqüila Luana. — falou ela, sem me permitir chegar perto. Então, fitei mais uma vez o rosto de Gustavo, certamente pela última vez. Antes de partir, seguindo Daniel através da janela do quarto, ainda espedaçada, percebi que uma lágrima solitária escorria pelo seu rosto branco, desaparecendo-se em seus lábios e, mais uma vez, meu coração latejou de dor e remorso, afinal, se não fosse por mim, ele não estaria sofrendo, assistindo minha felicidade, quando já não mais possuía a sua. Movendo-nos agilmente, com nossos corpos leves e fortes, eu e Daniel atravessamos o quintal da casa e partimos para a rua, correndo, silenciosamente, em direção à estrada que nos levaria ao sertão. A cidade encontrava-se completamente deserta e calma, sem nenhuma testemunha de nossa presença. Ao alcançarmos o cerrado, aumentamos a velocidade de nossa corrida, enquanto eu experimentava a mais incrível das sensações: um misto de liberdade e poder que tomava conta de todo o meu ser. Por mais que corresse sobre minhas quatro novas e fortes patas, não sentia cansaço algum, era como se minhas energias fossem inesgotáveis; pisava por sobre os pedregulhos e arbustos e nada sentia, que não o prazer da corrida, o vento acariciando minha face, a adrenalina solta em minhas veias. Era parecido com uma cavalgada veloz, mas ainda melhor, pois eu era meu próprio cavalo, dominando-me por completo. Começava a amanhecer quando nos aproximamos da margem do pequeno riacho que dividia as terras de Serra Azul do território indígena, onde os demais lobos da alcatéia, nossos irmãos, nos aguardavam. No instante em que pus meus olhos sobre eles, conheci os seus pensamentos, assim como eles tomavam consciências dos meus. Era muito estranho encontrar-me dentro de uma mente pensante, mas tudo para mim agora seria estranho. Daniel narrou-lhes todos os últimos acontecimentos, inclusive o fato de que Gustavo era um dos nossos irmãos perdidos, enquanto todos os ouviam, atentamente. Como eu, o restante da família cogitou acolher Gustavo entre nós, como uma forma de protegê-lo da raça humana, porém a decisão foi deixada à cargo de Daniel, já que era meu companheiro. Mas ele recusou-se a aceitar a presença do novo irmão, pois sabia que eu o amava também. Não queria dividir meu amor com outro e eu precisava respeitar sua decisão, já que pertencia à ele agora, como meu coração sempre pertencera, da forma que fomos predestinados.

Após receber as boas vindas e os parabéns por minha recente forma, segui minha família rumo ao meu novo lar: as verdes chapadas do sertão, as quais pareciam estender-se até o infinito, partindo rumo a uma nova etapa da minha existência. Com um salto apenas, Daniel atravessou as águas do riacho, alcançando a margem posterior com espantosa perfeição, enquanto que eu permanecia onde estava, duvidando de que conseguiria realizar o salto. Hesitei várias vezes antes de tentar, enquanto ele me incentivava, até que reuni toda a minha coragem e arrisquei, saltando destemidamente, atingindo a outra margem com perfeição, meu corpo leve e forte voando por sobre as águas, quando constatei que era mais fácil e divertido do que imaginara. Durante toda a minha vida, eu vivera entre os seres humanos, num mundo construído unicamente para eles, embora jamais me adaptara à este, sempre sentira-me deslocada, rejeitada e excluída. Porém, ali, senti-me em casa, amada e acolhida. Em poucos dias, adaptei-me à minha nova vida, como se fora feita para aquele mundo selvagem, onde não tinha compromisso com nada mais que não ser feliz, amar e ser amada. Ali, não cumpríamos horários nem regras, passávamos a maior parte do dia correndo pelo cerrado, livres de toda a impureza e maldade dos homens. Comíamos quando tínhamos fome, bebíamos quando tínhamos sede, sem horários marcados, como faziam os seres humanos. A todo momento, eu e Daniel nos aconchegávamos no sossego da mata escura e nos amávamos, como faziam os animais, o desejo incendiando-nos cada dia mais, o prazer se intensificando, ao passo em que nosso amor se tornava mais forte, infinitamente forte e nada nos abalava. O momento mais difícil foi quando precisei realizar minha primeira caçada. Temia não conseguir devorar os animais ainda crus. Porém, no instante em que cravei minhas presas afiadas na carne suculenta de uma paca, fui tomada por um prazer irresistível e saciei meu apetite, sentindo-me ainda mais selvagem. Pouco a pouco, as lembranças de minha vida humana foram se apagando da minha memória, no entanto, havia uma que jamais se apagaria: a de Gustavo. Todos os dias me perguntava como ele estaria vivendo no mundo dos seres humanos, sendo meio homem, meio animal. Uma aberração aos olhos daquela espécie. Sabia apenas que ele continuava vivendo em Serra Azul, pois, às vezes quando caçávamos nas proximidades da cidade, eu podia sentir sua presença e, mesmo à distância, sabia que estava sofrendo. Mas não tinha permissão para aproximar-me dele, ou de qualquer outro integrante da população. Certa noite, eu juntamente com o restante da alcatéia, perseguia uma veloz família de veados, nas desertas terras do São Francisco, nos arredores de Serra Azul, quando ao longe avistei Gustavo, montado em um cavalo, embora completamente imóvel, seu olhar perdido no infinito. Ele estava muitos quilos mais magro; tinha a barba crescida; usava roupas mulambentas e parecia muitos anos mais velho, tão amargurada era sua fisionomia. Haviam se passado muitos meses desde que o vira pela última vez, na ocasião em que me transformara em um animal e embora atualmente me encontrasse em um estado de total selvageria, sem nenhum vestígio de humanidade em meu ser, a visão dele despertou algo, há muito adormecido, dentro de mim. A compaixão, talvez. Era como se eu estivesse vendo a mim mesma, vagando pelas terras de Boa Esperança — quando fora abandonada por Daniel —, em um passado distante, como um zumbi, um corpo sem vida, mergulhada em um poço de depressão do qual Gustavo me resgatara, devolvendo-me a vida. Contrariando a única norma imposta pelo meu povo, a de não nos mostrarmos a ninguém mais, cedi a um impulso incontrolável e deixei escapar um uivo agudo, que ecoou pela chapada,

atraindo, imediatamente, a atenção de Gustavo, que saltou do cavalo, cravando seu olhar na direção onde eu me encontrava escondida, entre as folhagens da mata, embora não me enxergasse realmente. — Luana é você? — ele gritou, correndo em minha direção. Neste momento, todos as vozes dos pensamentos dos integrantes da alcatéia ecoaram em minha mente, ao mesmo tempo, avisando-me de que eu devia me afastar, que não me permitisse ser vista. No entanto, não tive forças para obedecer, para ignorar o sofrimento que Gustavo enfrentava, por minha culpa, por minha máxima culpa. E, seguindo a outro impulso, corri ao seu encontro, colocando-me diante de si, enquanto ele se ajoelhava ao chão, à minha frente, seu rosto banhado de lágrimas. — Luana, é você... senti tanto a sua falta... minha querida... que estou a ponto de enlouquecer... — ele falava, sua voz tropeçando nas palavras, seus braços enlaçando meu pescoço largo. Observando seu rosto mais de perto, tão querido e familiar, percebi o quanto estava amargurado, seus olhos sofridos, cansados e abatidos. Os lobos puseram-se atrás de mim, numa fila encabeçada por Daniel, que rosnava feroz e ameaçadoramente. Porém, ignorando suas ameaças, Gustavo afundou sua face nos pelos densos do meu pescoço, enquanto seu cheiro invadia minhas narinas, fazendo-me recordar do nosso amor esquecido. Neste instante, desejei, profundamente, poder abraçar-lhe, poder falar consigo e dizer-lhe o quanto ainda o amava, embora pertencesse a outro, quando, de repente algo novo aconteceu: lentamente, senti os meus pelos dando lugar à pele humana; meu corpo foi aumentado de altura, na posição vertical; minhas patas se transformaram em pés e mãos e meu focinho se tornou meu antigo rosto. Em questão de segundos, me tornei uma mulher, como era antes. Estava completamente nua, meus pés descalços, meus cabelos crescidos, emaranhados. A sensação de possuir novamente uma forma física humana me era bastante desagradável, sentia-me fraca, cansada e pesada. Um gosto horrível de carne crua povoava minha boca, o ar parecia mais pesado, poluído. A princípio, senti-me confusa, com o que acabara de acontecer, pois era completamente inesperado, mas logo tudo ficou claro em minha mente: o infinito amor que Gustavo sentia por mim, me motivara a retomar a forma humana, como um dia o meu amor por Daniel o trouxera de volta ao mundo dos mortais. — Olá Gustavo. — falei, pronunciando as palavras com dificuldade, por pura falta de prática. Ele ficou de pé e tomou-me em seus braços, num gesto rápido, enquanto seu pranto se cessava, seu rosto se iluminando com um largo sorriso. — É você mesmo, Luana! — ele exclamou, ainda sorrindo. — Ah, minha querida, estava com tanta saudade... Saltando por sobre um espaço de quase cinco metros de largura, Daniel pulou, bruscamente, entre nós dois, separando-nos do abraço. Depois, deu-me as costas, virando-se para Gustavo, arreganhando seu focinho, rosnando ameaçadoramente. Pude ler em seus pensamentos que estava prestes a atacá-lo, mortalmente, desferido-lhe um golpe certeiro de sua garra afiada, na altura da garganta. Porém, antes que concluísse seu ato, Gustavo deu um salto mortal, para trás e quando seus pés voltaram a atingir o chão, já não era mais ele e sim a mais medonha das criaturas, a qual rosnava ferozmente, fazendo eco pela chapada. Atravessara a metamorfose ainda no ar, tão rapidamente que passara desapercebido aos olhos de todos. Estava completamente transformado no lobisomem e começou a desferir golpes violentos na direção do lobo, que revidava ao ataque com a mesma agressividade. — Não! — eu gritei, numa súplica desesperada para que eles parassem. Meu coração se acelerava

dentro do peito, de pura aflição. Eles não compreendiam que machucando-se entre si, machucavam a mim também? Que se um deles fosse morto, também morreria uma parte de mim? No entanto, eles ignoraram o meu apelo e continuaram sua luta, num duelo insensato e mortal entre duas feras de igual força e ferocidade. Daniel avançou para Gustavo, saltando sobre ele, com brutalidade, abocanhando seu pescoço, ao mesmo tempo em que o atirava ao chão, onde uma fenda larga foi aberta sobre o solo, sob o impacto dos seus corpos. Mas Gustavo também era forte e, com um golpe violento de seus punhos cerrados, atirou o lobo ao longe, de encontro a uma árvore de tronco retorcido que partiu-se ao meio, provocando um estrondo ensurdecedor, concomitantemente à queda do lobo. Num gesto inacreditavelmente ágil, este levantou-se do chão, seu corpo coberto pelos fragmentos do tronco da árvore e lançou-se novamente de encontro ao lobisomem, alcançando-o antes mesmo que este se erguesse da fenda aberto ao solo. Enquanto esquivava-se dos golpes de Daniel, Gustavo inverteu a posição, colocando-se sobre ele, desferindo-lhe golpes também, igualmente brutais, alguns certeiros, outros não. Ambos continuaram lutando, violentamente, ora golpeando, ora sendo golpeados, seus corpos já salpicados pelo sangue um dos outro. Destruiriam-se? Perguntei-me, desesperada, sentindo-me culpada, pois se não tivesse seguido o impulso de mostrar-me a Gustavo, nada daquilo estaria acontecendo. Era tudo culpa minha. — Pelo amor de Deus! façam alguma coisa! — eu gritei, virando-me para os lobos, que observavam, calmamente, a brutalidade da cena. — Não há nada a ser feito, Luana. Um deles precisa morrer para que o outro viva plenamente. — a voz ecoou em minha mente e era de Estevão. Eu não podia acreditar no que acabara de ouvir. Era mesmo a opinião de um pai, que via seus dois filhos se destruírem? Pois eu não permitiria que nenhum deles fosse morto, já que amava perdidamente a ambos. Se lutavam por minha causa, faria com que não tivessem mais porque lutar, acabaria com minha própria vida, para que eles vivessem em paz. Se formos destruídos agora, não teremos mais volta. Dissera-me Daniel, há muito tempo atrás. Se eu morresse agora, que era apenas um espírito reencarnado em pele de lobo, não voltaria mais e eles poderiam viver suas vidas, plenamente. Decidida, tomei novamente a forma de lobo e parti, correndo o mais rapidamente possível, em direção à estrada que levava à Serra Azul. Procuraria minha morte entre os seres humanos, onde esta seria mais certa. Seguiria diretamente para a delegacia de polícia, onde haviam mais armas de fogo e ameaçaria alguém, claro que não machucaria minha vítima, apenas a intimidaria, coagindo-a a atirar em mim, desta vez, infalivelmente. Só esperava chegar a tempo de salvar meus dois amores, ser morta antes que eles matassem um ao outro. Logo que alcancei a estrada, aberta em meio ao cerrado, ouvi as vozes, de pensamentos, e os passos dos lobos que me seguiam, eles sabiam o que eu pretendia fazer, pois conheciam todos os meus pensamentos. Então, aumentei a velocidade de minha corrida, tentando impedir que eles me alcançassem e tentassem me deter em minha busca pela morte, pelo fim da rivalidade entre Daniel e Gustavo. Eu sabia que eram os lobos que me seguiam, porém quem logo pulou à minha frente, interrompendo o meu trajeto, foi o lobisomem. Eu choquei-me, bruscamente contra seu corpo enorme, peludo e salpicado de sangue, quando ocorreu-me que, se ele estava ali, vivo, certamente Daniel estaria morto, fora derrotado durante o duelo. “Se formos destruídos agora, não teremos mais volta”. Mais uma vez, as palavras

ecoaram em minha mente, ao passo em que todas as fibras do meu corpo se contraiam da mais profunda angústia, com a perspectiva de perder Daniel, de nunca mais voltar a vê-lo. Não seria nada sem ele. De repente, não mais senti minhas pernas, e deixei-me cair ao chão, lentamente, o desespero tomando conta de mim. Não suportaria passar novamente pelo que passara há cinco anos atrás, quando o vira ser morto pela polícia. Minha morte me seria mais agradável. Como se já não mais tivesse o domínio sobre o meu corpo, deixei-me ser erguida do chão pelo grande lobisomem, que me carregou em seus braços musculosos e peludos, correndo, velozmente, de volta para o sertão, onde há pouco travara uma batalha contra Daniel, supostamente, saindo-se vencedor. Como uma porção de imagens turvas, vi alguns dos integrantes da alcatéia de lobos, que vinham atrás do lobisomem — o qual era muito mais veloz, por causa de suas pernas fortes e compridas — passarem a correr ao nosso lado, de volta para o sertão. Porém havia um ser humano entre eles, montado no lombo de Elizabete, o qual eu não reconheci. Era um rapaz, mais jovem que eu; tinha cabelos louros dourados; a pele branca e usava apenas uma bermuda velha encardida. Quem seria aquele estranho? Por que não se apavorava com os lobos, como faria uma pessoa normal? — Ele é seu pai, Luana. É Estevão. — o pensamento doce de Elizabete penetrou-me a mente. — Por que ele tomou a forma humana? — pensei. — Para salvar os seus filhos. — E ele salvou... os dois? — Os três. Daniel está muito machucado, mas vai se recuperar. — Acho que ele vai se sentir melhor quando descobrir que você não se matou, como pretendia. — desta vez o pensamento partiu de Nataniel, o grande lobo de pelos marrons. — Ah, meu Deus! ele também me ouviu! — constatei, com amargura. — Sim, ele tentou te impedir de sair correndo, mas o lobisomem não deixou, porque não sabia pra onde você estava indo. — Elizabete pensou. — Foi por isso que Estevão se transformou, para explicar tudo a ele. — Nataniel completou. — Onde Daniel está? — perguntei. — No lugar onde estava quando você saiu correndo. Num gesto rápido e ágil, pulei dos braços do lobisomem, dando início a uma corrida veloz, como se pudesse ser mais rápida com minhas próprias pernas, rumo ao local onde há pouco deixara Daniel. Chegando lá, o vi deitado, imóvel, no chão, seu corpo coberto de sangue. Alguns dos lobos encontravam-se ao seu redor, embora nem todos estivessem ali. Aproximei-me mais dele e constatei que estava muito machucado, tinha ferimentos por todo o corpo, o mais profundo deles na altura do pescoço, de onde o sangue jorrava. Era um milagre que ainda estivesse respirando. Apesar de tudo, estava consciente. — Ele vai ficar bom? — perguntei, as lágrimas ameaçando aflorarem em meus olhos inumanos. — Não se preocupe, Luana, eu vou ficar bem. — foi o próprio Daniel que me respondeu, em pensamentos. — Aísha e Leandro foram até a aldeia dos Nirvanas, buscar o índio curandeiro, para ajudá-lo. — Foi Ágata quem disse. Aflita, deitei-me ao seu lado, reconfortando seu corpo ferido de encontro ao meu, enquanto os lobos que me seguiram retornavam. Gustavo e Estevão encontravam-se na forma humana, caminhando lado a lado. Estevão e os lobos juntaram-se ao restante da alcatéia, próximo à mim e a Daniel, enquanto que Gustavo sentava-se ao longe, sem deixar de nos observar, com expressão triste

no olhar. Observei mais atentamente a forma humana de Estevão. Era a primeira vez que o via assim, parecia muito mais jovem que eu, embora tivesse mais quarenta anos de idade, o que me levou a deduzir que tinha a mesma aparência de quando fora morto, há mais de vinte anos, sem ter envelhecido um só ano. Era lindo e atraente como Daniel: alto, forte, corpo másculo e olhos verdes claros. Não era de estranhar que conseguira seduzir as mães humanas dos seus três filhos mestiços. Após examinar Daniel, ele voltou para perto de Gustavo, sentando-se ao seu lado, dando início a uma conversa com ele, com palavras sussurradas, as quais eu não conseguia ouvir, já que se encontravam há certa distância. Sobre o que estariam falando? Perguntei-me. Pouco tempo depois, Aísha e Leandro, os lobos de pelos brancos, estavam de volta da aldeia. Cada um deles carregava um indígena em suas costas, ambos idosos, vestindo roupas confeccionadas com penas e couro de animais, suas peles cobertas por pinturas. Eram o cacique e o pajé dos indígenas, explicou-me Aisha, por meio do seu pensamento. Então, fiquei de pé e afastei-me de Daniel, que respirava com dificuldade, permitindo a aproximação do velho pajé e curandeiro. O homem pediu que todos se afastassem um pouco mais, depois começou a espalhar uma substância pastosa sobre o lobo ferido, ao mesmo tempo em que cantava uma canção estranha, em sua língua, incompreensível aos meus ouvidos. Outras palavras, naquele mesmo idioma partiam de Estevão e do velho cacique, que conversavam, diante dos olhos e ouvidos atentos dos demais lobos e de Gustavo. Pareciam discutir, suas vozes alteradas, até que se acalmaram novamente, como se chegassem a um acordo. Algum tampo depois, como que por milagre, Daniel ficou de pé, ainda movendo-se vagarosamente, com dificuldade, por causa dos ferimentos. Juntou-se a Estevão e ao cacique, em sua discussão, comunicando-se com aquele por meio dos pensamentos, no idioma dos indígenas, o qual eu não compreendia. Sobre o que estariam falando? Perguntei-me, pela décima vez. Por fim, Estevão pediu que todo a alcatéia se reunisse, à sua frente, enquanto colocava-se entre Daniel e Gustavo. — De hoje e diante, todos nós viveremos em paz. — Declarou Estevão, com tom solene, como se fizesse um discurso. — Acolheremos Gustavo entre nosso povo, pois ele faz parte de nós. O cacique concordou em recebê-lo em suas terras, cedendo-lhe uma das moradias abandonadas. Daniel não mais o odiará, será seu amigo e irmão como deve ser. Gustavo, por sua vez, trará uma esposa humana consigo, para que não deseje mais Luana como sua fêmea, mas apenas como sua irmã, como de fato é e como somos todos nós. Nós o protegemos dos seres humanos, como é nossa obrigação e nunca mais haverá rivalidade entre nossos irmãos. Quando ele encerrou seu discurso, eu tinha meu coração disparado dentro do peito, da mais intensa emoção, trazida pela perspectiva de conviver com a presença de Gustavo, poder vê-lo sempre que desejasse, sempre que a saudade ordenasse, mesmo que ele tivesse uma companheira, como eu tinha a Daniel. Agora sim, tudo seria perfeito. Quis, ardentemente, poder abraçá-lo naquele instante, dizer-lhe o quanto estava feliz, perguntar-lhe como se sentia diante da expectativa de viver ali no sertão, isolado da civilização, em meio a uma alcatéia de lobos. No entanto, embora soubesse que conseguiria facilmente, não me atrevi a tomar novamente a forma humana, temendo que Daniel tivesse ouro ataque de ciúmes, iniciando uma nova e perigosa batalha. Neste momento, ouvindo meus pensamentos, Aísha aproximou-se de mim, com um velho vestido de chita entre seus dentes e disse: — Volte à forma humana, Luana, você precisa abraçar seu irmão. Vista isso e Daniel saberá se conter. O ataque de fúria dele foi por ver você nua, nos braços de outro.

Hesitante, fitei o rosto peludo e ensangüentado de Daniel, esperando sua aprovação. — Pode se transformar e ir falar com aquele moleque, Luana, eu não me importo mais. — ele pensou, com secura, a voz do seu pensamento alcançando-me. Porém, abandonei o vestido no chão e corri para seu lado, lambendo-lhe a face com carinho, deixando-lhe claro que era a si que eu queria. Nuca mais o desapontaria, mesmo que para isso precisasse abrir mão, definitivamente, do amor de Gustavo, de tocar-lhe novamente. No entanto, Daniel fitou-me profundamente, por um longo momento, uma infinita paixão expressada em seus olhos verdes claros. — Pode ir falar com ele Luana, eu não vou me zangar com você.— garantiu ele. — Você não vai ter outra crise de ciúme? — perguntei, receosa. — Claro que não meu amor. Me desculpe por ter feito aquilo, por ter perdido o controle. Não vai acontecer de novo, eu prometo. — E o que te fez mudar de idéia? — eu ainda não estava convencida, temendo um novo duelo entre os dois. — Eu percebi que estava sendo idiota, que agia por impulso. Vocês não têm culpa por se amarem, isso está no sangue de vocês, em nosso sangue. É claro que não vou gostar de ver você abraçando ele de novo, ah e por favor não faça isso quando estiver nua, mas vou ter que aprender a me controlar. Por fim beijei-lhe novamente a face e afastei-me, escondendo-me atrás de uma moita de arbusto, onde retomei, facilmente, a desagradável forma humana e vesti-me do vestido de chita. Eu não tinha muito tempo com Gustavo, pois o dia logo amanheceria, precisava me apressar, aproveitar o breve momento com ele. Quando deixei a privacidade da moita, caminhando agora sobre minhas duas pernas, aproximei-me da alcatéia, constatando que Gustavo era apresentado a todos por Estevão, como eu fora um dia por Daniel. Ao pousar seu olhos em mim, um novo brilho surgiu em seus olhos cor de mel e ele veio ao meu encontro. Antes de me abraçar, lançou um rápido olhar na direção de Daniel, como se certificasse-se de que este não o atacaria novamente. Porém, Daniel apenas virou seu rosto para a outra direção, demonstrando indiferença, enquanto Gustavo me estreitava em seus braços, comprimindo seu corpo contra o meu, apaixonadamente. — Minha nossa, que loucura isso tudo! — ele exclamou, já com seu jeito bem humorado que eu tanto conhecia e amava. — Ah, Gustavo, senti tanta saudade de você. — falei, ainda sem me desvencilhar dos seus braços, enquanto que um turbilhão de pensamentos enfurecidos partiam da mente de Daniel, atingindo-me. Logo afastei-me do abraço e virei-me para Estevão, fitando-o emocionada. Pensei em abraçá-lo também e chamar-lhe de pai, mas era estranho chamar alguém tão jovem de pai. — Esse sou eu, minha querida. — ele falou, ao perceber que eu o observava, gesticulando para si próprio. — Você é tão... jovem. — falei. — Agora imagina se eu tiver que apresentá-lo para a tal esposa! — Gustavo disse, usando seu tom brincalhão de sempre, tão agradável que levou todos, com exceção de Daniel, a sorrirem. Eu o abracei novamente, sentindo-me emocionada por ver que ele voltara ao normal, que não mais estava depressivo, amargurado, como há poucas horas, quando o encontrara. O casal de lobos brancos partiu rumo a aldeia dos Nirvanas, carregando os dois velhos índios sobre os seus lombos, levando-os de volta para casa. Ao vê-los desaparecerem mata a dentro,

Estevão assumiu novamente a forma animal, que nos era indiscutivelmente mais agradável, buscando a proximidade de Elizabete, enquanto que eu e Gustavo nos afastávamos alguns metros da alcatéia, de mãos dadas, tentando evitar o olhar hostil de Daniel. Não tínhamos muito tempo para conversarmos, pois o dia estava prestes a nascer e eu não mais poderia permanecer na forma humana. Rapidamente, ele pôs-me a par da saudade que Lucilene sentia de mim, do casamento de Adailsom e das suas freqüentes e inevitáveis transformações em lobisomem. Acontecia sempre que se irritava, o que não era difícil, ultimamente, porém Adailsom cuidava para que ninguém lhe fizesse mal, passara a dedicar sua vida a protegê-lo. Ainda assim, Gustavo temia machucar alguém, durante suas transformações, por isso passara a permanecer a maior parte do tempo no cerrado, sozinho, isolado, perdido em seus pensamentos, como quando o encontrara. Os primeiros raios de sol de um novo dia começaram a surgir no horizonte, lentamente. No instante em que me atingiram, meu corpo assumiu a forma de animal, involuntariamente. Achei que fora breve minha conversa com Gustavo, meu tempo ao seu lado, quando podia fazer-lhe me ouvir, porém a certeza de que logo estaria com ele novamente — e desta vez, permanentemente —, me acalmou permitindo-me partir em paz. Após fitar, mais uma vez, o seu rosto abatido, ferido pela luta, afastei-me, movendo-me sobre minhas quatro patas, juntando-me ao meu outro amor, aquele do qual era incapaz de abrir mão, já que era tão essencial em minha vida, quanto o próprio ar que abastecia meus pulmões. Juntamente com a alcatéia, partimos rumo às infinitas terras do sertão maranhense, de volta ao meu lar, às terras do território Nirvana. Uma semana depois, Gustavo mudou-se para uma das residências abandonadas do território, uma casa ampla, com um grande curral na frente, a qual um dia fora a moradia de um próspero fazendeiro. Trouxe consigo apenas alguns poucos móveis e seus cavalos tão amados, além de sua mais nova esposa: minha irmã humana Adriana. Eles casaram-se na pequena igreja católica de Serra Azul, um dia antes de se mudarem. Certamente seriam muito felizes juntos, pois Adriana o amava, profundamente, eu podia ver isso em seu olhar, cada vez que ela o fitava. Porém, nos olhos de Gustavo, o amor se refletia apenas quando ele os pousava sobre mim, embora soubesse que eu jamais seria sua, pois pertencia a Daniel. Ele vendera todos os seus bens, em São Paulo, com exceção dos cavalos, e depositara o dinheiro em uma conta bancária no nome de Adailsom, juntamente com o cheque que eu recebera com a vitória no campeonato de hipismo em Niterói, para que este abandonasse o trabalho na roça e dedicasse-se, integralmente, a proteger o segredo sobre a existência de nossa família, dos lobos e do lobisomem. Muito tempo se passou e Gustavo jamais voltou a se transformar na criatura, o que evidenciava sua paz e felicidade, vivendo ali, ao lado de Adriana. Quase todas as noites íamos visitá-los, em sua residência, quando eu tomava a forma humana e podia desfrutar, plenamente da companhia dos dois, meus igualmente irmãos e queridos. Ninguém mais tinha a permissão de entrar naquelas terras, nem mesmo Lucilene e Adailsom, mas, por vezes, nos encontrávamos no sertão, nas proximidades de Serra azul, nos lugares mais recônditos, onde os demais moradores não podiam nos ver, tampouco nos fazer mal. Durante estes encontros, Gustavo e Adriana também compareciam, percorrendo o trajeto nas costas fortes e confortáveis dos lobos. Rapidamente, a alcatéia afeiçoou-se à Adriana, perdoando-a pelo que seu pai fizera no passado, acolhendo-a como igual membro da família, embora fosse totalmente humana.

Com a convivência, quase diária, pouco a pouco, Daniel e Gustavo tornaram-se amigos e eu finalmente consegui alcançar minha plena felicidade, vivendo ao lado dos meus dois amores, sem que nada pudesse nos separar ou abalar, pois éramos unidos pelos poderosos e indestrutíveis laços de sangue e do mais infinito amor, como se fôssemos uma só alma dividida entre três corpos.

FIM
Ariela Pereira - Predestinados

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