Ann Charlton - Anjos da Noite -

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton

Anjos da Noite Fantasia e realidade se mesclaram numa noite de medo e surpresas As vozes lá fora foram desaparecendo no silencio e Dru recusava-se a acreditar que tudo não passava de um pesadelo. Mas a proximidade do homem era tão real quanto á mão que lhe sufocava o grito de socorro. Logo que se ouviu o ruído do carro se afastando, o estranho acendeu a luz do quarto. "Desculpe, Shelley, mas não podia deixá-la gritar. Acalme-se." Shelley? Será que nem com a luz acesa ele percebia que; havia se enganado? Ela não o conhecia; jamais esqueceria um homem tão atraente! Ela não era Shelley!

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton

Copyright: Ann Charlton Título original: "The driftwood dragon" Publicado originalmente em 1985 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Tradução: Davi Arcanjo Copyright para a língua portuguesa: 1986 Editora Nova Cultural Ltda. — São Paulo — Caixa Postal 2372 Esta obra foi composta na Linoart Ltda. e impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A. Foto da capa: Ica Press

Digitalização e Revisão: Alice Maria

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton

CAPÍTULO I Dru tinha medo do escuro desde criança. Quando acordava no meio da noite, precisava armar-se de muita coragem para decidir-se a ir acender a luz, tateando no escuro, temendo que algo horrível lhe agarrasse a mão. Só descansava quando a luz iluminava o quarto inteiro e se certificava de que não havia monstros no quarto e tudo não passara de um pesadelo. Sem se lembrar do motivo que a fizera acordar, ficou quieta na cama, tentando ouvir algum barulho anormal, mas distinguiu apenas o murmúrio do oceano, que a embalara no sono. A casa de férias na praia era muito velha e quase tudo rangia quando o vento soprava mais forte. As escadas de madeira estalavam, mas não eram ruídos novos; ela já conhecia tudo aquilo desde criança. Decidira voltar a dormir novamente, mas ouviu um leve ruído metálico que a deixou quase em estado de pânico. Procurou pelo interruptor, sustentando a respiração. Sentiu algo quente tocar em seus dedos... — Shhh!... Dru sufocou o grito que estava preso dentro de sua garganta desde os oito anos. Quem estaria dentro do quarto? Ouviu o barulho de um carro, lá fora, e tentou fugir, mas foi agarrada. — Pelo amor de Deus, Shelley, fique quieta! — sussurrou uma voz no seu ouvido. Ouvia vozes lá fora, como se tudo fosse um pesadelo. — Você se enganou, ele jamais viria para um lugar como este. — Quase posso jurar que o vi entrando nesta casa... — Não seja ridícula, não vê que isto é uma cabana quase caindo aos pedaços? — É, acho que tem razão. Deve ter se dirigido para alguma moradia mais luxuosa em outro lugar, e agora vai ser bastante difícil achá-lo. As vozes foram desaparecendo no silêncio da noite, e Dru recusava-se a acreditar que estava acordada.Conseguira finalmente dormir depois de algumas noites de insônia, e o pesadelo que estava vivendo era resultado disso. Mas a proximidade de um homem parecia tão real quanto a mão que lhe tapava a boca, e Dru recomeçou a se debater. — Por favor, querida, não grite... — sussurrou o homem, sem largá-la, até se ouvir o barulho do carro indo embora. Então o intruso deu um longo suspiro de alívio, tirando a mão de sua boca, e Dru começou a gritar por socorro. — Socorro!... Vá embora!... Não quero saber se é um monstro ou não, mas não ouse me tocar de novo!... Vá embora! A luz se acendeu e ela parou de gritar quando viu à sua frente as paredes familiares do quarto... e aquele homem! Era alto e bem constituído, com cabelos castanho-claros, e vestia um blusão com gola de pele de carneiro, jeans, botas e luvas de couro. Havia algo de ameaçador no modo como tirava as luvas. Chegou mais perto e

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Dru reparou em seus olhos muito verdes. Tinha a pele bastante bronzeada, e suas sobrancelhas e cílios eram escuros. A boca e o nariz pareciam ter sido modelados por algum escultor clássico. — Desculpe tê-la assustado, querida, mas deve compreender que não podia deixá-la gritar mais. Senão seria ouvida até em Tweed Heads... Estaria falando do quê? Seria maluco? Dru esquivou-se quando o estranho olhou à volta, e pulou para fora da cama. — Meu Deus, pedi a Eric para procurar um lugar para nós fora do circuito turístico, mas nunca pensei que viríamos parar numa espelunca destas. Deve ter deixado aquela secretária desmiolada fazer as reservas... Nós? Dru pensou numa maneira de conseguir escapar daquele louco. Talvez pudesse correr e chegar até a casa de Sam. O sorriso dele desarmou-a, deixando-a incrédula. Lembrava-se de já ter visto aquele sorriso, mas não se recordava onde... — Estou contente por ter vindo, Shelley. Faz tempo que a gente não se vê... Lembra da última vez? Foi tão bom... — Ultima vez? Escute aqui... — Por que ficou tão apavorada quando me viu chegar? Sabia que eu viria, e obviamente estava esperando por mim... — Ele Indicou a camisola e Dru ficou com a boca aberta, sem saber o que dizer. — Sinto-me lisonjeado, mas viajei a noite inteira e estou cansado. Mas amanhã... Sua voz deixou promessas sensuais no ar. Baixou a cabeça e beijou-a suavemente no ombro. — Ah, Sheiley... — suspirou, enquanto dirigia sua mão para os seios dela. Dru não agüentou mais e deu-lhe um pontapé. Ele estava com botas e não deve ter sentido nada, mas pareceu ficar muito surpreso com o gesto dela. — Em primeiro lugar, não sou sua querida; em segundo, sou co-proprietária desta "espelunca"; e em terceiro, estou aqui passando minhas férias e não gostaria de ser incomodada! Ele a olhava com ar incrédulo, parecendo não estar entendendo nada. — Quer dizer que você não é Sheiley? — Claro que não! — Achei que havia algo diferente em você, mas com esta luz tão fraquinha... Bem, parece que há aqui alguma confusão. Eu aluguei esta casa. Eric falou. — Quem é Eric? Só então Dru se lembrou de que ele poderia ser o inquilino que esperava para ficar na casa geminada. Costumavam alugá-la a famílias que chegavam em horas convencionais... Observou aquele rosto vagamente familiar, perturbandose com a idéia de tê-lo como companheiro de férias. — Eric é o meu empresário, e já pagou o aluguel adiantado. Veja, esta foi a chave que usei para entrar. — Esta é uma cópia da minha chave. A da casa vizinha tem uma chapa azul pendurada. O homem fez um ar contrariado e Dru compreendeu que tinha havido um

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton engano. Não era a primeira vez que a agência entregava a chave errada, mas isso jamais provocara nenhum drama como o que estava acontecendo naquele instante. — Se você me explicar por que entrou no meu quarto de uma forma tão estranha, e por que aqueles homens estavam à sua procura, quem sabe poderemos entrar num acordo... — Acho que isso parece óbvio, srta... — Winters. Drusilla Winters. E não está nada óbvio para mim. Precisamos esclarecer tudo de uma vez. Espere-me lá embaixo enquanto visto alguma coisa. Q estranho saiu e Dru vestiu um roupão por cima da camisola. Quando desceu as escadas, ele estava de pé, olhando à volta da sala, com as mãos nos bolsos. A luz era muito forte, comparada com a de seu quarto e, quando ele passou em frente do aparelho de televisão, Dru se lembrou de onde o conhecia. Ele percebeu seu olhar dirigir-se alternadamente para ele e para o televisor. — Não diga que não me reconheceu... Ela pensou que deveria estar sonhando de novo. Na sua frente estava o famoso ator Locke Matthews, que interpretava o Ransome Man, personagem de uma famosa campanha publicitária de lâminas de barbear. Em seis diferentes comerciais, Matthews personificava o homem de ação, enfrentando mil perigos. Depois de acabar com todos os adversários, esfarrapado, cheio de lama e sangue, olhava para a câmera com um ar de inabalável confiança e dizia a célebre frase: "E se você pensa que esta foi uma barba bem-feita..." Depois, barbeava-se rapidamente com uma lâmina Ransome, enquanto uma ou mais mulheres faziam o teste da maciez da pele... O Ransome Man tornara-se imediatamente um grande sucesso, e Locke Matthews continuara seu papel fora das telas, o mesmo acontecendo em relação às mulheres... A imprensa atribuía-lhe numerosos casos com atrizes e mulheres da sociedade, e era enorme o fascínio que exercia sobre o público feminino. Estrelara também uma série na televisão, Ramage, que fora apresentada durante três temporadas seguidas e comentava-se que iria entrar novamente em fase de produção. Nela, Matthews tipificava o mesmo personagem do Ransome Man, só que as situações demoravam duas horas para se desenrolar, em vez de dois minutos. Ramage obtinha altos índices de audiência e ganhara vários prêmios de televisão. — Só agora o reconheci. A luz do meu quarto não é tão forte quanto os projetores a que deve estar habituado no seu trabalho. Suponho que devo dizer que estou encantada por conhecê-lo, sr. Matthews. Locke Matthews era uma exceção entre os astros australianos: ainda solteiro e vivendo no seu país, apesar de seus filmes já o terem tornado famoso no mundo inteiro. Tudo isto fez com que fosse endeusado tanto pela imprensa como pelo público: enquanto a primeira divulgava seus inúmeros casos amorosos, o segundo desculpava-o de tudo, não só por ser sexy, famoso e solteiro, mas também porque conseguia ser sempre bastante simpático em

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton todas as entrevistas. Se não tivesse ficado tão assustada, Dru talvez o tivesse reconhecido logo, e ele pareceu entender a surpresa dela. — Deve ter ficado bastante assustada... — Bem, não são todas as noites que o homem mais sexy do país surge não se sabe bem de onde, e me agarra no escuro como se eu fosse um saco de batatas. Além do mais, você é bem diferente, pessoalmente! — É o que costumam falar... — Não parece tão sardento na tela — comentou ela, e dirigiu-se para a cozinha. De modo confiante, ele a seguiu e se sentou. — Não? Quem me dera que mais pessoas tivessem a mesma dificuldade em me identificar, Dru. Minha vida ficaria um pouco mais fácil se tivesse menos fãs... Que me diz de tomarmos um café? Ele abriu o zíper do blusão e começou a massagear o pescoço, parecendo cansado. Talvez não fosse tão presunçoso como ela pensara de início. Após uma ligeira hesitação, ela foi colocar água no fogo para fazer o café. — Aqueles homens que estavam procurando por você eram da imprensa? — Acertou em cheio. — Por causa da mulher do ministro? — perguntou Dru, enquanto punha duas xícaras e o açúcar em cima da mesa. Os rumores de um provável caso dele com Dorothy Falkland tinham esquentado nas últimas semanas. Sua mão tremia quando encheu as xícaras: o choque que levara há pouco deixara-a trêmula e agitada. Provavelmente não iria conseguir dormir depois desses acontecimentos. — Malditos jornalistas... — desabafou ele. — Como chegou até aqui? — De bicicleta. Bicicleta? Ela mostrou-se muito surpreendida. Mas o que levaria o astro de Ramage a viajar de bicicleta? Dru sentou-se à frente dele, na pequena mesa da cozinha. Não era comum para ela receber astros da televisão na sua vida tão pacata, e ainda por cima perseguidos pela imprensa! Não conseguiu evitar um sorriso, ao pensar em tudo isso. — O que há de tão engraçado em uma bicicleta? — Nada, apenas me ocorreu que posso estar sonhando... Ele sorriu, como se estivesse habituado a que as mulheres achassem sua presença um sonho maravilhoso... — Não interprete mal minhas palavras, sr. Matthews. Não sou uma de suas fãs que lhe dificultam a vida, mas me pregou um susto tão grande no meio da noite que cheguei até a pensar que estava sonhando. — Deu para perceber como estava assustada, fugia de mim como se eu fosse o próprio diabo... — riu ele. — Acha isso tão estranho? Creio que qualquer mulher reagiria daquele modo se fosse agarrada no meio da noite, no escuro, por um desconhecido... — O olhar dele era zombeteiro. É claro que algumas mulheres ficariam muito felizes com isso. — Qualquer mulher sensata...

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — E é isso que é, Dru? Uma mulher sensata? — Sensata demais para ficar fascinada por uma imagem, sr. Matthews. — Quer dizer que não vou precisar mais lutar com você? — Não, pode dormir em paz. Como sua... amiga não apareceu, talvez consiga. — É assim sempre tão direta? — perguntou ele, aborrecido. — Quase sempre. — Então posso presumir que dorme sempre em paz... — Sim. — Ela sentiu-se corar. — É... de alguma forma isto me faz pensar num desafio... — Com algumas mulheres você deve ter sorte. — Mas não com você, certo? — Se quer um conselho, pense em mim apenas como sua senhoria. Quanto tempo pretende ficar aqui? — ela perguntou, olhando à volta. Ele não deveria estar habituado a ficar em lugares tão simples. — Estou gostando do esconderijo. Tem suas vantagens. Obrigado pelo café. Agora, se me der a chave, irei para os meus aposentos, Ele levantou-se, preparando-se para ir embora, e ela deu um longo suspiro. — Estamos com üm problema, sr. Matthews. Não tenho a cópia de sua chave comigo, no momento. Meu irmão levou-as com ele na última vez em que esteve aqui. — Quer dizer que não vou poder entrar? — Não esta noite. Mas há um motel, na estrada principal... Entretanto, se preferir ficar aqui, tenho um pequeno quarto onde poderá descansar esta noite — acrescentou, ao perceber-lhe a frustração por ter de pedalar até o motel. — Ah, ficaria muito agradecido — falou ele com uma voz melosa, que a fez estremecer. — Não tem que agradecer, sr. Matthews. É minha obrigação cuidar para que meus hóspedes sejam bem atendidos. Dru saiu da cozinha e subiu as escadas. Matthews a seguiu levando seu saco de viagem. O pequeno quarto estava atulhado de malas e coisas por arrumar. De móvel havia apenas a cama. — Receio que tenha que se juntar a essa bagunça. — Não se preocupe, já dormi em lugares piores... Dru murmurou qualquer coisa e foi pegar lençóis e uma toalha. Quando voltou, o blusão estava em cima da cama, assim como o agasalho. Ela ficou parada na porta, parecia estar vivendo um episódio de Ramage. Ele, com o torso nu, olhando-a desafiadoramente... — Sabe que a acho muito nova para ser a senhoria? Não encaixa muito bem no papel... — Garanto que o desempenho muito bem. Venha comigo que vou lhe mostrar onde fica o banheiro — disse ela, desviando o olhar do famoso e perturbador corpo do ator. Ele seguiu-a e examinou atentamente o banheiro quando Dru acendeu a luz. — Uma vez fiz um filme acerca de uma senhoria. Fico imaginando se ela

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton poderia ser tão nova quanto você. Eu era o hóspede e nós compartilhávamos tudo, até os lençóis da cama... Ele voltou a olhar para a cama e encostou um ombro na parede. Dru encontrou seu olhar divertido e sugestivo, e achou melhor retirar-se. — Boa noite, sr. Matthews. Mas não foi uma boa noite para ela. Ficou acordada até de madrugada, e dessa vez havia um novo elemento em sua insônia: Locke Matthews, um astro do cinema e da televisão... Mas ele só estava lá por acaso. Talvez fosse embora no dia seguinte, procurar pelo luxo a que estava habituado em qualquer outro lugar do litoral. Ouviu ruídos no quarto que estava separado do dela apenas pelo banheiro, e foi trancar a porta. Divertiu-se com a idéia de se trancar por causa de um homem que a maior parte das mulheres faria de tudo para agarrar. Locke Matthews não era do tipo que se interessasse por alguém tão vulgar quanto ela... Sorriu, resignada com a idéia, ajeitando o cobertor à sua volta. Até Michael, que não era nenhum padrão de beleza, achava que ela não estava a sua altura. — Eu sei que temos saído juntos há algum tempo, querida Dru — ele dissera. — E sinto-me um pouco culpado por tê-la talvez induzido a pensar que nossa ligação seria para sempre... Claro que ele a levara a pensar exatamente isso! E essa expectativa não vinha de um sonho juvenil, mas sim de uma proposta concreta que ele lhe fizera um ano antes: — Quando vai se casar comigo, querida? Ela respondera que se casariam logo que ele quisesse e ficara esperando que esse dia chegasse, o que jamais acontecera... Michael começara a se tornar uma personalidade pública, desde que sua carreira na Procuradoria Geral do Estado ganhara um novo impulso, devido a uma importante promoção, e Dru entendera que não teria mais lugar em sua vida. Para um homem com tantos compromissos, ele teria que arranjar uma esposa mais sociável e, como se isso não bastasse, ela não era bela nem elegante... Sem dúvida a opinião da mãe de Michael também influíra nesse afastamento, pois costumava fazer comentários sutis sobre as esposas perfeitas dos colegas dele, elogiando-lhes o comportamento e a beleza. Era óbvio que a pretendente adequada para o filho seria aquela que soubesse se vestir bem e tivesse idéias mais de acordo com o ambiente que ele freqüentava, além de ser capaz de organizar festas brilhantes e tudo o mais. O filho iria assumir cargos políticos importantes e uma primeira dama tão despojada como Dru só iria atrapalhar. A mágoa de se sentir rejeitada aumentara quando Dru vira Michael almoçando com uma jovem elegante no restaurante da Procuradoria. Embora o encontrasse com freqüência, pois trabalhava na seção de estatísticas, que ele sempre consultava, ficara cada vez mais difícil vê-lo a sós, como se não tivessem um relacionamento mais íntimo. Resolvera pedir férias um mês

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton depois, e mesmo nessa tentativa de isolamento parecia ter também fracassado: Locke Matthews estava ali, belo e insinuante, e era necessário todo o cuidado para não se deixar impressionar com o charme dele... Afastou o cobertor e foi até a janela. A grande extensão de areia banhada pelo luar parecia tão fria quanto o mar. Voltou a ouvir sons no quarto ao lado. O cansaço dele não estava sendo suficiente para fazê-lo dormir. Talvez tivesse problema para pegar no sono sozinho, pensou com ironia, enquanto voltava para a cama. Pela manhã, quando os gritos das gaivotas a acordaram, com os raios do sol a alcançando através dos vidros da janela, Dru se sentia como se tivesse sonhado com tudo aquilo. As aves estavam mais agitadas do que o normal e ela foi olhar para fora. Devia ser Sam, dando-lhes o alimento matinal. Levando a mão aos olhos, por causa da claridade, viu o velho pescador com o caniço no ombro e o corpo curvado com o peso da cesta onde guardava os peixes. Parecia um vagabundo carregando um estranho mastro, e era assim que todos o viam. Desde que o conhecia, Sam dava a primeira refeição da manhã às gaivotas. Era tão taciturno agora quanto há muitos anos, quando ela era ainda uma criança e ficava sentada na areia, observando-o em seu trabalho diário de escamar o peixe com a faca. Sua idade era incerta, parecia ter sido sempre velho. E estava ali, em todas as férias. Dru chegou à conclusão de que Sam era a pessoa mais constante de sua vida. Os pais dela já tinham falecido há muito tempo, num desastre de carro. Barry, o irmão casado e pai de duas filhas, era ocupado demais para preocuparse com ela. Gillian, a irmã mais velha que ela três anos, nunca fora o que se poderia chamar de amiga muito chegada. Tinha um emprego muito importante como relações-públicas e entrava e saía na vida de Dru com histórias fantásticas, passadas em lugares muito distantes com namorados ocasionais. Para uni-los, restava apenas a casa que os três haviam herdado e a lembrança das férias que passaram lá quando ainda viviam todos juntos. Sam desapareceu entre os algodoeiros no meio dos quais ficava sua pequena cabana. Ela ficou na janela, aquecendo-se com a luz do sol. O calor subtropical nesse final de abril já não era tão intenso, mas recusava-sé a render-se ao outono. Os barulhos do quarto ao lado continuavam... Dru foi ao banheiro, fazer a toalete, e saiu no exato momento em que seu hóspede saía do quarto. O ator estava ali na sua frente, com a barba por fazer. O cabelo revolto, caindo-lhe sobre os olhos, e ainda um pouco sonado. Vestia apenas a calça do pijama, e esta estava tão caída que num primeiro instante ela nem se atreveu a olhar para baixo, com medo de que ele estivesse completamente nu. — Bom dia, sr. Matthews. Dormiu bem? Ele estava tão bronzeado que Dru pensou que seria melhor avisá-lo para não ficar nu na praia, apesar de ser pouco freqüentada. Pensar que poderia olhar

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton da janela e vê-lo inteiramente nu estendido na areia a fez estremecer. Ele passou a mão pelos cabelos, bocejou e cocou o peito. — Se quer perder algumas fãs, deixe que elas o vejam neste estado... — Oh, algumas já viram... — Deve ter sido uma emoção e tanto, para elas... — Parece que sim. Já fez café? — Ainda não desci; mas, enquanto toma um banho e faz a barba, eu me encarrego disso. — Estou com uma aparência assim tão horrível? Ele espreguiçou-se e deixou cair os braços com suavidade ao longo do corpo. Seu olhar brilhante parecia querer que ela admitisse achá-lo irresistível de qualquer jeito. — Está com a barba por fazer e quase nu, se quiser café ou qualquer outra coisa, aconselho-o a não aparecer lá embaixo assim. — Meu Deus, você parece minha mãe falando... — Não era minha intenção. Tenho certeza de que deve estar acostumado a ser adulado logo de manhã. Agora, vou ver o que posso fazer, mas aviso-o já que não sou boa atriz. — Não precisa ficar preocupada. Mas café da manhã gelado não faz o meu gênero. Ela desceu as escadas sem olhá-lo de novo. Estava corada, mas pensou que talvez merecesse o comentário. Para ele, Dru não deveria parecer apenas fria, mas também grosseira e afetada. Não devia estar nem um pouco interessado em saber se ela era do tipo que oferecia algo mais do que café ou não. Na noite passada a confundira com a amiga dele apenas por estar muito cansado. Dru fez café e colocou flocos de milho num prato. Tomou um gole de café e olhou pela janela da cozinha: uma bicicleta brilhava sob a luz do sol. Pensou em Michael, com seu rosto comum e esperto, que ela amara durante quase dois anos. Ele a abandonara... Mas não conseguira chorar quando se vira rejeitada; o amor-próprio ferido pela dor e a humilhação tinha sido mais forte que as lágrimas... Ouviu Locke Matthews descendo as escadas. As recordações deixavam-na triste e revoltada, mas ficou feliz por sentir-se assim naquela hora. Olhou para ele, muito séria; o homem era mesmo muito atraente, não era possível negar. Seu cabelo estava agora penteado para trás, o rosto barbeado, e vestia short e camiseta. — Estou bonito, mamãe? — brincou ele, mas ela permaneceu impassível, estendendo-lhe a xícara de café. — Seu café, sr. Matthews. Ele sentou-se e ficou observando-a comer os flocos de milho. — Estou pensando, Dru, que você não deveria ser tão crítica em relação ao que se deve vestir para tomar o café da manhã... — observou ele, olhando para o jeans e a camiseta surrada que ela vestia. — Sou a senhoria, lembra-se? Posso vir tomar café do jeito que quiser. Além disso, estou trabalhando.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Mas disse que estava de férias... — Sim. Mas administro esta casa junto com meu irmão e minha irmã, por isso também estou trabalhando. — Toma conta disto? — Ele pareceu muito divertido, olhando à volta do aposento, que estava bastante desgastado. — Agradeça a Deus por não ser como os outros lugares a que está habituado, sr. Matthews. De outra forma, seus amigos da imprensa estariam aí fora esperando declarações sobre seu mais recente caso amoroso. As lembranças não a deixavam em paz. Novamente, a imagem da moça elegante ao lado de Michael apareceu em sua mente e Dru se perguntou há quanto tempo estariam se encontrando, antes de ele a deixar. Já teria sido apresentada à mãe dele para a necessária aprovação? Pensou como todos os homens eram frios e calculistas. A voz de Locke trouxe-a de volta à realidade. — É tudo mentira; todas essas histórias sobre Dorothy Falkland e eu. Ela me visitou no estúdio e tomamos café juntos. Foi tudo o que aconteceu entre nós. — Aqueles homens devem pensar que há algo mais do que isso, ou não se dariam ao trabalho de segui-lo até aqui no meio da noite... — A culpa foi minha: disse-lhes que iria me casar em breve. — De acordo com o que leio, você está sempre às vésperas de se casar, ou já o fez em segredo. Devia prever o que aconteceria depois dessa declaração... Ele suspirou. — Eu sei, mas esses jornalistas me põem louco! Não agüento mais as mesmas perguntas sobre toda mulher com quem me vejam falando; as mesmas especulações sobre quem está... — Na sua cama? Ele olhou-a, espantado. — Meu Deus, essa sua objetividade me desconcerta! Você não gostaria de casar comigo, não é, Dru? — É uma proposta de casamento? Devo suspirar e cair em seus braços? — Pelo menos teria a certeza de que não seria por causa do meu físico... — riu ele. — Não mesmo, pode ficar descansado. Claro que outras o desejavam por causa de seu corpo, seu rosto, seu dinheiro, e pela vida de sonho que ele certamente levava. E também deveria ter outros atrativos secretos... Quase sentiu pena dele, ao pensar como deveria ser difícil saber se era Locke Matthews que estava sendo amado ou o Ransome Man. Mas logo se recompôs ao lembrar-se de como ele a havia confundido com outra mulher na noite anterior. — Pobre sr. Matthews: famoso, rico e perseguido! Quer dizer então que conseguiu tirar duas semanas de férias... Quando chega sua amiga? — Creio que hoje. — Já não se lembra muito bem do rosto dela, não é? — Lembro, sim. Mas acontece que as mulheres mudam tantas vezes o penteado e a cor dos cabelos que, às vezes, dá para duvidar. Além disso, a luz era muito fraca e já não vejo Shelley há seis meses.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — E ela concordou em passar as férias com você depois de tanto tempo sem se verem? — E por que não? Somos amigos e adultos. Shelley é uma pessoa linda... — Não duvido disso. Todas somos iguais para você, não é, sr. Matthews? Parecendo um tanto embaraçado, ele ficou alguns instantes fitando-a em silêncio. Dru sentiu-se presunçosa por se comparar com as mulheres que ele conhecia. — Oh, não, de jeito nenhum — ele afinal lhe respondeu. — Não consegue se divertir sozinho durante duas semanas sem... Ou não consegue dormir sozinho? Ele acabou de tomar o café e levantou-se. — Não quer tentar descobrir? — retorquiu, irônico, antes de sair.

CAPÍTULO II Não foi por delicadeza que Dru escondeu a bicicleta dentro de casa, mas por não querer a imprensa por ali, perturbando as férias de seu hóspede. Feito isso, pegou uma lixa e saiu, decidida a raspar os peitoris das janelas, antes de começar a pintar. Virou-se quando um carro se aproximou. Carros passando por ali eram coisa rara... Era branco e muito bonito. Parou perto de Dru e uma loura saiu de dentro, sorrindo para ela. — Oi! Estou procurando por Sea Winds. Dru observou-a com atenção. Não era exatamente como a tinha imaginado mas, se procurava por Sea Winds, devia ser Shelley. A placa com o nome estava precisando de uma nova pintura, como todo o resto, e Dru a levara para dentro até se decidir a pintá-la. A loura continuou: — Pensei que seria por aqui, mas não vejo mais nada a não ser cabanas caindo aos pedaços. Oh, desculpe, não foi isso que quis dizer. Estou no caminho certo? Dru não soube a razão por que respondeu não! Talvez por causa da moça, atraente, com elegância nos mínimos gestos, bem vestida e maquiada; talvez por causa da memória falha de Locke Matthews, que lhe permitiria confundir uma loura com uma morena; ou quem sabe até mesmo por ter sido rejeitada por Michael. O certo é que a moça entrou no carro e desapareceu em poucos minutos. E Locke Matthews nem apareceu na cena... Um véu de poeira pairou no ar, quando o carro partiu na direção da estrada principal, e Dru sentiu-se subitamente culpada. Não devia ter feito aquilo... E não conseguia pensar em nenhuma desculpa a não ser despeito! E isso não era muito reconfortante... A agência em Coolangatta abria às onze aos domingos e Dru já estava esperando lá na porta quando o empregado chegou. Com ele vinha também um jovem casal querendo comprar uma casa, e o

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton homem estava obviamente mais interessado neles do que em procurar uma chave perdida. Dru insistiu e ele procurou várias vezes, mas não achou a chave da casa que alugavam. Ligou para Barry, mas ninguém atendeu do outro lado. E não havia a menor possibilidade de contatar Gillian. Ela estava provavelmente viajando e, de qualquer forma, só se preocupava com a parte financeira. Gillian nunca vinha para a casa de férias, nem possuía uma chave sequer. Dru telefonou para dois chaveiros, mas ambos responderam com mensagens gravadas. No fim, saiu da agência com a certeza de que era inevitável dormir outra noite com Locke Matthews debaixo do mesmo teto. Provavelmente, teria de oferecer-lhe também o jantar. Mas não havia outra solução; o aluguel fora pago com antecedência, ela precisava cumprir seu papel de senhoria da melhor forma possível. Já passava do meio-dia quando estacionou o carro sob a frondosa mangueira, que também servia de garagem. A praia estava deserta, mas havia pegadas de veranistas que passavam férias não muito longe dali. Os olhos de Dru voltaram-se para uma figura solitária que corria na praia, ao longe. Sem nenhuma razão especial, a visão daquele homem deixou-a irritada. Ele tinha todo o direito de estar ali, correndo na praia que julgava sua, mas não era. Ficou observando seu ritmo compassado por um momento, depois entrou dentro de casa. Pôs manteiga em duas fatias de pão para fazer um sanduíche enquanto pensava que, se alguém o visse ali, não demoraria muito para a praia ficar cheia de beldades tentando atrair sua atenção. Nem Sam seria capaz de afastálas. Talvez fosse melhor voltar para Brisbane e deixá-lo ali sozinho... Quando ele entrou, estava corado e ofegante, e vestia uma camisa que mal chegava a tocar o calção de banho, que era apenas decente. Dava para perceber que seu humor tinha melhorado bastante. Deu um grande sorriso quando mostrou um peixe enorme na ponta de uma linha. — Para o jantar... — anunciou ele. — De quem? Seu ou meu? — Sabia que é a mais graciosa senhoria que já conheci? Vou cozinhar para você, para tentar reparar o susto que lhe dei ontem à noite. — Já preparei meu almoço, obrigada — disse ela mostrando o sanduíche. — Não estava me referindo ao almoço, mas sim ao jantar. Se não estivesse tão mal-humorada, eu viria visitá-la à noite e prepararia uma refeição da qual jamais se esqueceria. — Obrigada, mas receio que não seja preciso vir me visitar, porque não tenho sua chave. Creio que deve ter sido trocada pelos amigos de meu irmão que alugaram a casa no verão passado. Locke ficou contrariado. — Diabo, e se Shelley aparecer hoje? — Bem, a cama que está no quarto onde dormiu a noite passada pode ser preparada para dois... Mas, se preferir, há um motel não muito longe daqui, e pode ter a certeza de que amanhã já terá sua chave. Peço-lhe desculpa pelo

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton incômodo — disse, pensando no que poderia dizer se Shelley aparecesse por lá. Ele fez um gesto desconsolado e, levantando a mão, fez o peixe balançar de um lado para o outro como se fosse um pêndulo. A situação era mesmo engraçada: ele estava trancado do lado de fora da casa que alugara, com um peixe balançando na mão. Dru não conseguiu evitar um sorriso e, estendendo a mão para o peixe que ele segurava, perguntou: — Está tentando me hipnotizar, sr. Matthews? Acho melhor colocá-lo na geladeira. — Ora, ora, afinal há algum senso de humor sob a máscara circunspecta que costuma vestir... — Não há necessidade de mostrarmos tudo o que somos às pessoas desconhecidas... — Está bem, está bem... Pegue... O peixe foi parar nas mãos dela, que deu um grito involuntário quando sentiu as escamas frias tocarem sua pele. Pegou-o com as pontas dos dedos e guardou-o dentro da geladeira. Ele riu o tempo todo das caretas que Dru fazia; primeiro com um leve sorriso, depois de alguns instantes sua gargalhada cristalina enchia o ambiente. — Está achando engraçado, não? Lavou as mãos e virou-se para ele. Estava parado, com um ombro encostado na parede. — Onde pegou o peixe? — Foi Sam quem me deu. — Já conhece Sam? Ela não escondeu a surpresa. Sam não falava com ninguém a não ser com ela, Barry e a família dele. Às vezes nem ela o via durante dias seguidos: Sam era a pessoa mais solitária que já conhecera. — Contou-lhe quem é? — Oh, claro! Assim que o vi fui logo dizendo: "Meu bom homem, sou um astro de cinema, já deve ter ouvido falar de mim. Que ta! me dar um peixe?" — Desculpe. Esqueci que não quer publicidade por ora... Ele desencostou-se da parede e chegou mais perto dela. — Você está me desafiando, Dru. Não me importo que seja a senhoria; se continuar sendo irônica, sou capaz de perder a calma... — Não me ameace, sr. Matthews. Digo o que tenho vontade e não me importo nem um pouco que seja o ator mais famoso do país e o sonho de todas as mulheres. No mesmo instante ele lhe agarrou o braço com tanta força que a magoou. Estava furioso e, se ficava assim por causa de uma coisa sem importância, o que faria quando descobrisse que ela mandara Shelley embora? — Você não é apenas direta, mas também mal-educada... Os olhos de Locke dirigiram-se para sua boca, e Dru sentiu uma carga de eletricidade percorrer-lhe a espinha. — Ora, sr. Matthews, esse gesto já está muito repetitivo, quando a heroína

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton se excede é punida com um beijo! Você fez isso num episódio de Ramage a que tive a infelicidade de assistir... — Não, não vou beijá-la. Talvez não seja uma punição. Pelo menos para você... Locke pareceu ficar satisfeito quando ela engoliu em seco. Dru não podia culpar ninguém, a não ser ela mesma, por ter entrado deliberadamente na armadilha, e ouvido o que não era nenhuma novidade: beijá-la não seria prazer, ela não era sexy... Ela sabia disso, mas era sempre desagradável que lhe recordassem. — Solte-me, por favor... — Que há com você, Dru? Não estou perturbando seus modos recatados, estou? Ele abraçou-a suavemente, passando-lhe a mão pelas costas, o que fez seu coração bater com mais força. Locke baixou o rosto e olhou intensamente para dentro de seus olhos. — Solte-me, por favor. — Qual é a pressa? Sou assim tão horrível? O braço dele estava agora em volta de sua cintura, e Dru sentiu o calor daquela pele quente e bronzeada. Decidiu que debater-se contra ele não seria uma tática muito dignificante; havia outras maneiras de lidar com o ego de Locke Matthews. — Não tão horrível... — respondeu ela. — Sou assim tão desinteressante para você? A voz era quase um sussurro e ele respirava junto à sua orelha. Dru pensou que muitas mulheres fariam qualquer coisa para viver uma cena como aquela. — Não... — Então? — Sr. Matthews — disse ela, quando ele inclinou a cabeça, parecendo querer beijá-la —, está cheirando... Ele gelou, por causa da crítica ou talvez por não conseguir mantê-la presa. — Corta... Uma ótima cena, sr. Matthews, representada com muita emoção. Mas cheira a peixe. Ele soltou-a com um suspiro e foi tomar um banho. Antes que voltasse, Dru terminou seu almoço, deixou um sanduíche preparado para ele e foi para fora continuar o trabalho. Passou uma lixa na madeira das janelas, fazendo uma nuvem de pó enquanto esfregava. Sentiu que ele estava perto, observando-a, muito antes de ouvir sua voz. — Obrigado por ter guardado minha bicicleta. — Não é preciso agradecer. Não quero que seus amigos da imprensa estraguem minhas férias. A propósito, como chegou até aqui de bicicleta? — Gosto muito de pedalar, é relaxante e, apesar de não ter conseguido despistar aqueles repórteres ontem à noite, dá menos na vista. Vim de Sidney de avião e peguei a bicicleta emprestada de um amigo em Brisbane. — Um amigo? — Sim, um amigo. No círculo em que vivo ainda tenho dois ou três amigos verdadeiros.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Isso soou muito triste, mas Dru logo se lembrou de que ele era um ator. Seus dedos doíam por causa da lixa, e parou um pouco, massageando-os. — Está fazendo da maneira errada — disse Locke. — Acha mesmo? — Se pegar um pedaço de madeira e enrolar a lixa em volta, vai ver que é muito mais fácil. — Tá fez também um filme sobre um pintor de paredes? — Não, aprendi esse truque quando pintava casas para ganhar a vida. — Ora, sr. Matthews. Posso não ser sofisticada, mas também não sou nenhuma tonta... — riu ela. — Não acredita em mim? É verdade, pintava casas com um amigo, o mesmo que me emprestou a bicicleta. Esse foi meu ganha-pão durante um ano inteiro. Minha vida não foi sempre preenchida com contratos e mulheres bonitas. Dru olhou-o, sentindo-se vagamente envergonhada. — De que tamanho precisa ser o pedaço de madeira? Ele mostrou com as mãos e ela achou imediatamente um bloco de madeira daquele tamanho, no meio das coisas de Barry. Depois fez como ele ensinara e teve que admitir que facilitava muito a tarefa. — Obrigada pelo conselho. — Ora, por nada! Locke consultou as horas no seu relógio e olhou na direção da estrada. Certamente deveria estar pensando onde andaria Shelléy. A moça já devia ter desistido e talvez passasse agora umas férias solitárias. Dru sentia sua própria consciência acusá-la, mas era tarde demais para reparar seu erro. Pouco tempo depois ele foi até a porta da casa que alugara. Tentou forçá-la, mas a porta não se abriu. — Por que não faz como nos seus filmes, abrindo a porta com um empurrão? Mas aviso-o que essa madeira não é de brincadeira... — Quando se cansar de usar a lixa, Dru, pode usar sua língua. Vai fazer o mesmo efeito. Ela teve de admitir que ele sabia sair-se bem das situações delicadas. Naquela tarde ele foi à praia sem lhe dirigir sequer um olhar de despedida. Dru fez outra viagem sem sucesso até a cabine telefônica mais próxima para ligar de novo para Barry. Ninguém atendeu ao telefone, e já era muito tarde para conseguir a chave para essa noite. Mas jurou que seria a primeira coisa a fazer logo de manhã. Teria de viajar até Brisbane. A viagem era longa, mas era preferível a ter que chamar um chaveiro. — Então? — perguntou ele, quando regressou por volta das seis horas e a encontrou na sala. — Se está se referindo à chave, sinto muito, ainda não a consegui. E sua amiga Shelley ainda não apareceu. Não entendia por que ficava perturbada só de olhar para Locke. Sentia-se culpada por descarregar nele todo seu mau humor, mas andava tão mal ultimamente que às vezes não conseguia se controlar. Esses pensamentos passaram pela mente de Dru numa fração de segundo,

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton enquanto ela se dirigia para a cozinha. — A que horas quer o jantar? — Está se oferecendo para cozinhar, Dru? — Tendo em vista o desaparecimento de sua chave, é o mínimo que posso fazer. — E claro que tem a intenção de fazer o mínimo... — Acertou em cheio. — Sabe cozinhar? — Não, sou péssima cozinheira... — Então está decidido! Não vou entregar meu peixe a uma péssima cozinheira. Eu vou fazer o jantar! — Não me diga que já fez o papel de cozinheiro em algum filme... Ele tirou o peixe da geladeira e olhou para ela. — Não. Tem uma faca, Dru? — Acho estranho Sam não ter limpado o peixe — comentou ela, tirando uma faca grande da gaveta e passando-a para ele. — Eu não quis — declarou Locke. Enquanto escamava o peixe, imitava a voz de Christopher Lee, o astro dos filmes de terror. — Já fiz o papel de um assassino... — E foi apanhado? — Sim... — Vê, sr. Matthews, acho melhor voltar ao papel de hóspede. A resposta saiu-lhe da boca sem que ela pensasse, pois senão teria se lembrado do que Locke citara, o filme em que o hóspede dormia com a senhoria. — É o que estou fazendo... Dru foi para a sala, sentou-se no sofá e ligou a televisão. Mas desligou-a logo depois e ficou em silêncio: a voz de Locke cantarolando lhe chamou a atenção. Sorriu. Um homem cantava na sua cozinha e era nada mais, nada menos que Locke Matthews... — Posso ajudar em alguma coisa? — Sim. Suba e fique bonita. — Ah, eu estava querendo dizer algo possível... — riu ela. Bonita... Olhando-se no espelho, dez minutos depois, Dru avaliou sua aparência. A natureza parecia ter-se esmerado só com Gillian, negligenciando quando tratou dela. Sua irmã tinha um rosto de feições muito suaves, lábios delicados e provocantes, olhos grandes e nariz perfeito. Dru tinha o mesmo rosto delicado, mas as semelhanças terminavam aí. Sua boca era grande, os olhos comuns, com cílios grandes e espessos, e o nariz era um pouco arredondado. Pegou uma toalha e limpou o espelho embaçado. Até em matéria de cores ficara com as sobras. Gillian tinha olhos de um azul muito bonito, era loura, e sua pele ficava com um tom dourado, quando bronzeada; ela, ao contrário, tinha olhos cinzentos, cabelo castanho-acinzentados e sua pele nunca adquiria o tom dourado, por mais cuidados que tivesse ao sol. Secou-se e vestiu jeans e uma camisa. Pelo menos seu corpo estava esguio e

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton saudável. Mas o cabelo... Caía até os ombros em caracóis desordenados e sem graça. Dru penteou-se, pôs um pouco de batom e juntou-se a Locke. O jantar estava delicioso. O peixe cheirava a ervas que ela nem sabia existirem na cozinha, a salada também estava caprichada, e havia vinho na mesa, que ele encontrara no vão da escada. — Meus parabéns, está tudo muito bom, sr. Matthews. — Me trate por Locke. — Não acho que deva... — Por quê? Receia tornar-se demasiado íntima do hóspede? — Não, não é isso que me preocupa... — Que há com você? E só a mim que odeia ou a todos os homens? — Nada mais simples de responder. É que eu não consigo me relacionar muito bem com astros de cinema. Ainda na semana passada dizia a mesma coisa a Mel Gibson... Ele riu. — Que idade tem? — Vinte e três. — Está envolvida com alguém, Dru? Noiva? — Não tenho intenção de discutir minha vida privada com meu hóspede. Ele tocou-lhe na mão e serviu-lhe mais vinho. — Certo. Foi assim que tudo começou. — Tudo o quê? — No filme de que lhe falei. Eu era o inquilino e a senhoria começou a fazerme confidencias. E, antes que pudéssemos evitar, estávamos... — ... debaixo dos mesmos lençóis. ]á sei, contou-me isso na noite passada. — Por falar na noite passada... Por que estava falando de monstros antes de eu acender a luz? Ela corou. — Você me assustou... — Mas por que pensou que eu fosse um monstro? Não tem medo do escuro, tem, Dru? — Claro que não. Mas esta era nossa casa de férias, antes de meus pais morrerem, e eu tinha verdadeiro pavor do escuro, nem sei bem por quê. E, além disso, quando ouvi o barulho, estava meio dormindo. — E quando eu a toquei na escuridão... — falou ele, imitando de novo a voz de Christopher Lee — matei todos os monstros de sua juventude. — Não é preciso ficar tão convencido por causa disso. Tenho certeza de que também tem seus medos, sr. Matthews, apesar de acreditar que ficar sozinho no escuro não seja um deles. Ele encheu seu copo de vinho até a borda. — Se aqueles repórteres me encontrarem, vou jogar você contra eles. Vai comê-los vivos... Iria ser outra noite de insônia. Por volta da meia-noite, conformada, Dru nem se incomodou em fechar os olhos ou procurar a melhor posição para dormir. Em vez disso, olhou para o teto e começou a pensar na lista de todos os

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton trabalhos que teria de realizar na casa. Os peitoris das janelas... "Quando se cansar de usar a lixa, Dru, pode usar sua língua. Vai fazer o mesmo efeito", lembrou-se das palavras de Locke. Estaria se tornando uma mulher azeda, aos vinte e três anos? Precisava pintar a casa por fora, assim como as portas, e mandar pôr um vidro numa janela. "No círculo em que vivo ainda tenho dois ou três amigos verdadeiros..." A frase dele soara tão triste... Levantou-se e foi até a janela para olhar a praia. A lua estava muito brilhante, iluminando o oceano como se fosse uma folha de alumínio atrás de uma linha de espuma. Não havia vento e os algodoeiros em volta da casa de Sam nem se moviam. Tudo tão quieto... tão silencioso... De repente, um grito ecoou no meio da noite. O terror tomou conta dela, fazendo com que sua mente voltasse quase a um estado primitivo. Ficou à escuta, o silêncio a imperar na escuridão. Não demorou muito tempo, um novo grito, tão angustiado quanto o primeiro, cortou novamente o ar. Dru abriu a porta e acendeu a luz do hall. — Não... não... O grito vinha do quarto de Locke e ela ficou escutando encostada à porta do quarto dele. — Não, não é Eva... não é ela... — ele continuava a gritar e Dru abriu a porta. A luz do hall iluminou o ambiente. Locke contorcia-se na cama, com os olhos abertos, delirando. — Só cheguei dez minutos atrasado... ela deve estar em outro lugar... é isso... Não... Dru ficou parada, sem saber o que fazer. Apesar de ter os olhos abertos, ele estava vivendo um pesadelo e seu corpo tremia inteiro, suando muito. Dru pôs uma mão no seu ombro; a pele estava gelada. — Está tudo bem, Locke — murmurou ao seu ouvido, sem saber se deveria acordá-lo ou não. — Eva nunca se veste de rosa... Estou atrasado... Ela deve estar na loja... — continuava ele, em seu delírio. — É só um sonho, Locke. Ele parecia uma criança indefesa, e Dru acariciou-o. Sentou-se na cama, encostando a cabeça dele no seu peito, afagando-lhe os cabelos com carinho. — Eva... Ele acalmou-se e abraçou-a com força. Ela resistiu um pouco, mas compreendeu que aquele era um abraço carente, procurando apenas conforto. Depois de breves momentos de indecisão, deixouse ficar deitada ao lado dele, com os braços em volta daquele corpo bonito, murmurando palavras de carinho.

CAPÍTULO III Aos poucos, Locke acalmou-se, mergulhando num sono tranqüilo. Os lábios

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton estavam ligeiramente entreabertos e o cabelo caía-lhe sobre a testa. Dru sentia-se confusa. A mulher carinhosa que conseguira fazer Locke relaxar em nada lembrava a garota desaforada que o agredira antes. Ele mexeu-se um pouco, mas bastou um leve toque em seu rosto para que logo virasse para o outro lado, tranqüilo. Como uma criança reconfortada pela presença da mãe... Sim, era essa a relação que mantinham naquele momento. Ela vira aquele homem forte e seguro regredir a um estado infantil, despertando-lhe o instinto maternal. Além disso, ela, que sempre se achava insignificante, pela primeira vez sentiu-se útil. Virou-se para observá-lo. O que aconteceria se ele acordasse de repente e a visse ali, deitada em sua cama? Assustada com a idéia, desprendeu os dedos entrelaçados nos dele, deixando que a mão pousasse suavemente nos lençóis. Levantou-se, olhou-o uma última vez, e foi para seu quarto. As gaivotas de Sam acordaram-na. Espreguiçou-se relembrando a seqüência dos acontecimentos da véspera. Tinha que admitir agora o que não julgava possível antes: o corpo dele junto ao seu não havia despertado apenas seu instinto maternal, mas dera-lhe prazer. Detalhes como o seu cheiro, a barba levemente crescida, a suavidade dos cabelos haviam tocado sua sensibilidade. Tentando não pensar mais nisso, vestiu-se e penteou os cabelos. — Quem será Eva? — perguntou-se em voz alta, olhando-se no espelho. Ainda bem que agora tinha outras coisas que lhe despertavam a curiosidade. Michael não havia sido lembrado uma vez sequer na noite anterior. — Bom dia — disse Locke Matthews quando desceu para tomar café. — Sabe que deixou a luz do hall acesa ontem à noite? — Oh, devo ter-me esquecido de apagá-la quando me levantei, à noite... para ir ao banheiro. — E minha porta estava meio aberta hoje de manhã. Poderia jurar que a tinha fechado antes de dormir. Ele postou-se ao lado dela com as mãos na cintura e um sorriso irônico nos lábios, observando-a comer. — Mas é claro, não resisti a dar uma olhada no meu cativo astro de cinema. Não sabia que sou do tipo que não consegue ver um galã viril dormindo sem cair na tentação de agarrá-lo? — Ah, você é terrível para o meu ego, Dru! — Seu ego pode passar sem adulação logo de manhã. — Sim, mas por favor não o aniquile totalmente. Ele pôs a água no fogo, cantarolando, enquanto preparava o café. ^fc Está muito alegre esta manhã. Dormiu bem? — perguntou ela, quando ele se sentou. Pela expressão de seu rosto, era evidente que não se lembrava de nada. — Dormi, sim. Há muito tempo que não passava uma noite tão calma. — Fala como se isso fosse incomum para você... — Às vezes, quando estou sobrecarregado de trabalho, durmo muito mal. Ela não fez comentários. Sem dúvida seria mais difícil conviver com esse ser

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton humano suscetível que se escondia por trás da máscara de herói imbatível. — Então, não vai haver perguntas sobre o porquê de eu ficar acordado? — Já que insiste, creio que deve ser por causa... — ela ia dizer "de uma mulher", mas lembrou-se que fora uma mulher que perturbara seu sono: Eva. — ... de tomar muito café. — Oh, aposentando as luvas de boxe, Dru? Está me desapontando... — A vida é cheia de decepções. Se quiser, pode ir arrumando suas coisas. Garanto-lhe que poderá entrar em sua casa antes do meio-dia. — Está assim tão ansiosa para se ver livre de mim? — Ê que fico nervosa por ter um astro dentro de casa. Nunca sei quando devo aplaudir ou fazer reverências... A visita à agência teve melhor resultado desta vez. Procurando com mais calma, acharam uma chave que Dru logo reconheceu. Tirou algumas cópias e voltou ao chalé, com um misto de satisfação e tristeza. Chegando em casa foi passear pela praia e visitar Sam. A casa do pescador era feita de madeira, pequena, e dava a impressão de ser tão velha quanto seu proprietário. Os algodoeiros a cobriam de todos os lados, deixando apenas a parte da frente a descoberto. Quando ela entrou, Sam estava de pé, moldando um pedaço de madeira com um canivete. — Aaagh — resmungou ele, e Dru sentou-se à sua frente sorrindo. Esse era seu cumprimento habitual, e Dru nunca conseguira descobrir que palavra representava. Mas seu aceno e o brilho dos olhos bastavam. Era reconfortante ficar ali com ele. Todos os seres humanos precisavam de milhares de palavras para se exprimir, mas Sam era diferente. Dru observou-o no seu trabalho, manejando o canivete com perícia. — Que está fazendo desta vez? Sam fazia esculturas em pequenos pedaços de madeira que vendia posteriormente ao dono de uma loja de artesanato. — Dragão. A peça parecia não ter ainda uma forma bem definida, mas as criaturas de fantasia que esculpia eram sempre muito bonitas e invulgares, o que facilitava sua comercialização. — Está ficando lindo. — Aaagh... Aquele moço falou que o nome era Smith. — Oh... Claro, o sr. Smith. Deu-lhe um peixe. Smith, que falta de imaginação... — Gosto dele. Isso era tudo. Sam gostava ou não. E sempre formava seu conceito sobre alguém rapidamente. E a maior parte das vezes justificado. — Por quê, Sam? — Autêntico. Sem conversa boba. E entende de pesca. Talvez... Quem sabe já teria representado o papel de pescador em algum filme. Autêntico? Talvez aí Sam pudesse ter-se enganado. Poderia um ator ser assim tão autêntico? Uma gaivota gritou e ela lembrou-se do grito da noite passada.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Muito do que pensava sobre Locke havia mudado depois disso... — É um homem solitário. As palavras de Sam confundiram-na. Como poderia Locke Matthews ser um homem solitário, cercado de empresários, mulheres e fãs que o adoravam? Tinha até uma acompanhante para passar as férias com ele... — É muito estranho justamente você dizer isso. Tanto quanto sabia, Sam vivera, trabalhara e dormira só, pelo menos durante os últimos quinze anos, e talvez antes. — Não, eu vivo só. Há diferença. Só está sozinho quem não escolheu viver assim. — Filosofia, Sam? — Não fale com palavras complicadas. Ele queria saber sobre você. — O quê? — Seu coração deu um pulo. — Que lhe contou? — Não muito. Que fazia muitas perguntas quando criança e era uma moça cheia de sonhos antes de crescer. Disse que me dava tanto trabalho quanto uma filha. — Sam... — Moço bem parecido. — E que tem isso a ver? — Gosto dele. Pensa bem, Silla. Toma cuidado com ele. Sam sempre a chamava assim. Drusilla fora abreviado para Silla, quando era criança, e virará Dru a seu próprio pedido, quando fizera catorze anos. Não gostava muito de seu nome inteiro, e achava Dru mais sofisticado. Apenas Sam continuava a chamá-la de Silla. Quando ela protestou por causa do nome, Sam insistiu: — Silla é bonito como você. Escuta o vento falando teu nome. Ela não mudara de opinião. Nem Sam. Talvez por isso ele fosse seu único elo de ligação com a infância. — Não fique preocupado, Sam. Não estou em perigo como o sr. Smith. — Parece haver tristeza aí. — Claro que não. — Toma cuidado. Ela levantou-se e a despedida dele foi igual ao cumprimento da chegada. — Tchau! — disse Sam. No dia seguinte, Locke apareceu na casa dela logo de manhã, quando terminava de comer. A barba estava por fazer, como na primeira manhã, e vestia apenas um short. Seu peito era macio, bronzeado e sem pêlos, e ela pensou se ele poderia ser um símbolo sexual com cabelos ruivos no peito. — Já terminou de comer os flocos de milho? — O que o faz pensar que foi isso que comi? — Ouvi o barulho... — Que engraçado, sr. Matthews... — Está bem, confesso que meus ouvidos não são assim tão bons — admitiu ele, curvando-se para pegar um pedaço de flocos na camiseta dela.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Quer alguma coisa, sr. Matthews? — Ah... queria sim. Um par de travesseiros. Só encontrei lençóis e cobertores. — Bem, isto não é o Sheraton, e até a secretária desmiolada do seu empresário devia saber disso. Mas tem razão quanto aos travesseiros. Vou pegá-los. Dru achou-o um pouco aborrecido. Olhou divertida para seu peito cheio de ar, parecendo forçado, como se estivesse sustendo a respiração para impressionála. Subiu as escadas e ele a seguiu. Quando pegou os travesseiros no armário, olhou para ele. — Já pode respirar agora. Estou impressionada... — Sou um desastre completo. Dizem que sou atraente mas nem consigo impressionar minha senhoria. — Não me impressiono facilmente. Não costuma barbear-se? Ele pegou os travesseiros e passou uma das mãos no rosto. — Vai começar com as críticas, senhoria? — Estava me referindo ao seu peito. Ele olhou para o peito, espantado. — Se eu barbeio meu peito? — Pensei que talvez o fizesse. Quero dizer, se tivesse cabelos ruivos aí, não ficaria bem com sua imagem. Nem poderia tirar a camisa nos episódios de Ramage... — Barbear o peito... — repetia ele, inconformado. — Nunca ninguém lhe pediu que o fizesse? — Nunca, juro. Mesmo quando chegaram à cozinha ele continuava com o mesmo ar espantado. — Barbear o peito... — Tem tudo o que precisa? Lençóis, talheres, pratos... — Os pratos são muito feios. — Oh, que pena! Passarei numa loja mais fina, mais tarde. Sempre temos esse problema com nossos hóspedes, sabe? Mas acontece que eles quebram a louça quase toda... — Duvido que alguém consiga quebrar aquela que está lá. Quase posso jurar que é inquebrável... — riu ele. — Aquela louça é comum e barata, mas não creio que seja assim tão terrível. — Então venha ver com seus próprios olhos. Enquanto tomava o café da manhã, contei sete rachaduras em apenas uma xícara. Ela acompanhou-o, tentando ignorar o charme daquele peito bronzeado e sem camisa. Como teria ele se sentido nos seus braços? Todo aquele porte atlético não fora capaz de evitar o pesadelo com Eva... Ficou chocada quando descobriu que a louça estava realmente em péssimo estado. Barry não deveria ter visto a casa depois da última vez que fora alugada, e a agência que providenciava a limpeza não informara nada. — Tem razão, sr. Matthews. Está num péssimo estado.Vou tratar disso imediatamente.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Obrigado, srta. Winters. E que tal fazer minha cama enquanto eu ficar por aqui? — Esta é apenas uma casa alugada. O serviço é por conta dos hóspedes. Ele foi até a cozinha e mostrou-lhe a conta. — Veja, diz aqui: o serviço incluído — disse ele com malícia. — Não pode ser... Mas ele estava certo, e o extra pago indicava o serviço incluído. — Nós nunca providenciamos nenhum serviço extra. Nem temos contrato com ninguém para vir aqui limpar a casa... — Eu não quero que ninguém mais venha aqui. Quero você. Ela corou, furiosa. — Não vou lhe fazer a limpeza da casa, sr. Matthews. Só porque sua loura, baixinha e curvilínea não apareceu, não pense que eu vou... Dru calou-se, mas já era um pouco tarde. — Loura, baixinha e curvilínea? — repetiu ele. — Bem, imagino que sua amiga seja assim. Não é esse o seu tipo de mulher? Dru não conseguiu sustentar o olhar dele. Sua culpa estava vindo à tona e não podia mais controlá-la. Ele agarrou-a pelo braço. — Jura que não a viu? — Solte-me. Está me machucando... Mas ele segurou-a com as duas mãos. Dru empurrou o peito dele com as palmas das mãos, mas nada aconteceu. — Por quê, sua idiota? Por que viu Shelley e não me disse nada? Ela deixou algum recado? — Não me xingue! — gritou ela, para esconder o medo que Locke agora lhe despertava. Já o vira furioso, mas nunca pensou que fosse capaz de ficar daquele jeito. — Sim, vi sua amiguinha, de quem já não lembro nem a cara. Era muito atraente e ficará furiosa se descobrir que a confundiu comigo. A força com que ele a apertava diminuiu e Dru aproveitou para se livrar dele com um gesto rápido. — Ela perguntou por mim? — disse com voz clara e controlada. Dru deu um passo para trás. — Não, queria saber se estava na estrada certa para Sea Winds. A placa não estava lá e eu... — Não pôde continuar. Errara e tinha consciência disso. — ...e você disse-lhe que estava no caminho errado. Por que fez isso, srta. Winters? Fez seu julgamento e decidiu que não posso ter nenhum divertimento durante estas férias? Isto significa que proíbe aos outros o prazer que nega a si mesma? Ele falou o tempo todo sem desviar o olhar dela e, apesar de controlado, demonstrava todo seu ódio. — Não, não sei porque eu... Ela começou a se desculpar mas, quando ele deu um passo em frente, Dru recuou, dando um encontrão numa cadeira, que acabou caindo no chão. Depois virou-se e saiu correndo em disparada. Mas isso de nada adiantou, pois ele

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton alcançou-a quando se preparava para abrir a porta de fora, e arrastou-a para dentro, segurando-a pelo braço. — Sr. Matthews... Locke... — ela tentou terminar as desculpas mas, antes que pudesse entender o que estava acontecendo, ele sentou-se no sofá, estendendo-a sobre os joelhos. — Que está fazendo? Ele não respondeu e, com um gesto rápido, virou-a de bruços, segurou o pescoço dela com uma das mãos, enquanto lhe dava palmadas no traseiro com a outra. A dor não era tão forte quanto a humilhação que sentia. As lágrimas que não soltara quando se vira desprezada por Michael inundaram-lhe o rosto. Ele sentou-a e olhou para seu rosto úmido, com um ar impassível. Dru tentou ficar de pé. As lágrimas não paravam mais. Correu pela sala, subiu as escadas sem ver nada à sua frente. Quando chegou ao seu quarto, deitou-se na cama e caiu em soluços. Assustou-se quando sentiu a mão dele no seu ombro. Locke fez com que ela o encarasse; parecia contrariado e surpreso. Qs soluços não pararam nem quando ele a sentou nos joelhos, com os braços em volta dela, como um pai protegendo a filha. — Dru... Me desculpe. Me excedi... Mas não deveria ter procedido daquela maneira. — Eu sei... Mas me sentia tão abandonada e tão zangada com tudo e com todos que quando você chegou soltei tudo quanto guardara dentro de mim... E parecia ser a pessoa certa era como se não fosse um homem de verdade... Quero dizer, era o Ransome Man, o astro de Ramage, não um homem que pudesse sofrer... — Compreendo. Um boneco em que podia pregar alfinetes — disse ele, sorrindo. — É, acho que sim. Sei que o ofendi. Me desculpe. Ele pegou uma caixa de lenços de papel que estava em cima do criado-mudo, e enxugou-lhe o rosto. — Você foi uma idiota e eu um bruto, portanto estamos quites. É assim tão doce e gentil, então? — Não, tenho a língua afiada e sou muito direta sempre, acho que esse é o meu problema. — Ora, também não sou nenhum anjo. Mas não sou um bruto, apesar dos meus filmes. Dru afastou-se do conforto daqueles braços. Como poderia ser tão agradável o toque do homem que a humilhara? Saiu do colo dele e sentou a seu lado. — Dru, vamos fazer uma trégua? — Acho que é preferível. Mas, depois que eu substituir a louça, não precisamos nos ver mais. — De jeito nenhum. Tem que ir todos os dias limpar a casa e fazer a cama. — Oh, não. Já o avisei: não sou sua criada. — É justo que fique no lugar de Shelley, considerando que foi você que a mandou embora.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — No lugar de Shelley? Será que ouvi bem? Seu monstro, arrogante e convencido... — Cuidado com as acusações, senhoria. É verdade que nós tivemos um caso há algum tempo... — Oh, já se lembrou de mais alguns detalhes. Quem sabe até do seu rosto... — Meu Deus, você é impossível! Devia ter-lhe dado mais algumas palmadas. A esta hora esse tal Michael deve estar dando graças a Deus por ter-se livrado de você. Ouvir aquelas palavras lhe doeu demais. Sam devia ter falado a ele sobre Michael. Sentia-se envergonhada e irritada. — Então é melhor me deixar em paz, não é? Só precisa correr um pouco pela praia e mostrar os músculos. Tenho certeza de que vai receber algumas ofertas... — Não, você serve. Causou o problema e tem que resolvê-lo. Dru tentou levantar-se, mas ele não deixou. — Não vou resolver nada. Tenho certeza de que consegue passar sem... sem sexo durante duas semanas. — Meu Deus! Acha que estava falando disso? Mocinha, devo avisá-la que Shelley e eu passaríamos umas ótimas férias juntos, mas ela também tinha a intenção de me ajudar a decorar as laias de uma peça que vou fazer. — Uma peça? — ela estava envergonhada e um pouco desiludida por ele admitir que não pensava nela como mulher. Ele soltou-a e levantou-se. — Shelley é uma atriz? — Deveria ser, por causa disso que ele tinha mencionado a projeção da voz, quando a impediu de gritar na primeira noite. — Exatamente. E você precisa ser também. — Desculpe. Sou muito má em leitura. — Não tem importância. Eu ensino como deve fazer. Vai ser o nosso trabalho todas as manhãs, depois de fazer minha cama e limpar a casa. E gostaria de ter lençóis limpos todos os dias. — Sim, meu senhor. Queira deixar comigo suas botas também para que eu as limpe. Ele riu, muito divertido. — Olhe, Dru, vamos fazer um trato: você limpa a casa e me ajuda a decorar as falas da peça, todas as manhãs, e em troca eu a ajudo a pintar a casa, todas as tardes depois do almoço. — Mas está de férias... — comentou Dru, surpresa com a oferta. Afinal ele não queria torná-la sua escrava, apenas dividir tarefas. Justo. Tinha-se enganado mais uma vez. — Pintar é relaxante, comparado com meu trabalho. Está combinado? — E se Shelley aparecer por aí novamente? — Nesse caso, o trato será cancelado. Dru pediu a Deus que ela voltasse, para que não se envolvesse ainda mais com aquele homem. Olhando pela janela, viu uma gaivota voando baixo sobre a casa. A ave pousou numa duna de areia perto dali e seu grito solitário e

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton angustiado ecoou em seu coração.

CAPÍTULO IV Na manhã seguinte, depois de ter tomado o café, Dru vestiu um biquíni e uma saída-de-praia. Passeou pelas dunas e acabou indo à casa de Sam. A porta estava fechada. Olhou em volta, mas não havia sinal do velho em nenhuma parte. Sua bicicleta também não estava no lugar habitual. Talvez tivesse ido entregar esculturas na loja. Dru olhou para a pequena chácara, com uma cerca de madeira enterrada na areia, e a pequena cabana no meio. Que idade teria? E quantos anos teria o próprio Sam? Velho demais com certeza para ficar andando de bicicleta por aquelas estradas esburacadas, mesmo parecendo forte. Jogou a saída na areia e correu até o mar tentando não pensar que mesmo sua longa amizade com Sam não iria durar para sempre. Mergulhou numa onda e voltou à superfície: a água estava gelada! Nadou durante algum tempo com braçadas vigorosas, Quando voltou do mar, tremia de frio e abanou a cabeça para tirar o excesso de água do cabelo. Locke Matthews estava deitado na areia, perto da roupa dela, vestindo apenas um minúsculo calção e um boné, cuja aba longa protegia-lhe os olhos, além de esconder parcialmente o rosto. Mas, se alguma de suas fãs aparecesse por ali, talvez não permanecesse incógnito por muito tempo. — Onde aprendeu a nadar tão bem? — Meu pai me ensinou. — Ela pegou a saída, usando-a para se enxugar. — Era campeão olímpico de natação, com uma medalha de prata e duas de bronze. — Wes Winíers? Meu Deus, vejo que lhe ensinou o estilo. — Obrigada. — Por que não usa seu cabelo assim mais vezes? — Como? Molhado? — Não; penteado para trás. Só agora compreendi que ainda não tinha visto seu rosto inteiro, sempre escondido sob o cabelo. — Não perdeu muito, sr. Matthews. E, por falar em rostos, se não quer ser reconhecido, acho melhor pôr também uns óculos de sol além do boné. Ele olhou-a, espreguiçando o corpo ao sol e tentando parecer o mais sexy possível. — OK, vou tentar não me esquecer disso. — Depois não diga que não o avisei. Algumas garotas costumam ir às dunas para se bronzear. Se forem fãs do Ransome Man, não levarão muito tempo para reconhecê-lo... — Mocinha, que tal pararmos de discutir minha fama e começar e nosso trabalho? Durante a primeira leitura de Um Homem Vivo, Dru concluiu que, se

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton prestasse concurso para ganhar um papel, não seria admitida nem na pior companhia amadora. — Será que não consegue diferenciar um pouco as falas? — Locke perguntou com impaciência quando ela leu as falas da "glamourosa divorciada Rhonda", do "afetado Beresford" e do "sarcástico intelectual Henry Smallwood" com o mesmo tom de voz. — Olhe, eu o avisei. Não sou nenhuma atriz. — Dê apenas uma leve mudança de entonação, sei lá... para que eu possa perceber quem está me dando as deixas. Ela esforçou-se o mais que pôde, mas não foi fácil; sentia-se ridícula e embaraçada. — A peça é uma bobagem — comentou quando terminaram a leitura, duas horas depois. — Só vira bobagem quando você a lê. É uma boa comédia. — Por que vai fazer uma peça como esta? O cinema e a televisão devem ser bem mais lucrativos. Ele olhou para o alto com ar de enfado e depois encarou-a com ternura. — Estava precisando voltar ao palco para me lembrar de como é representar de verdade. Mesmo que seja num papel secundário. Representar de verdade? Ela olhou-o com curiosidade. — O que fazia antes de se tornar o Ransome Man? — Eu não me tornei o Ransome Man — disse ele, um pouco aborrecido. — Só filmei alguns comerciais para uma companhia de lâminas de barbear. — Bem, eu me lembro deles e você, sem dúvida, é confundido com seu personagem. Não acha que seus papéis não têm sido muito parecidos? — Ele estava em silêncio, com o scrípt apertado contra o peito. Ela continuou: — Estou me referindo a Ramage; certamente a semelhança do nome não foi pura coincidência e o caráter de seu personagem é basicamente o mesmo do Ransome Man, embora com mais tempo para mostrar os mesmos episódios de lutas, fugas e cenas de cama. E, apesar de só ter visto um de seus filmes, não encontrei muita diferença do Ransome Man. A não ser, é claro, que aí não se barbeava. Começo a pensar por que razão um homem que fez sua carreira vendendo lâminas de barbear não usa uma com mais freqüência... Ele continuou sério e amassou o script com a mão, parecendo descarregar toda a sua raiva nesse gesto. Depois ficou novamente tão sério e impassível como antes. — Obrigado, madame, por esse parecer tão generoso. Faz-me sentir não muito respeitável, mas posso lhe assegurar que milhares de atores dariam tudo para chegar onde estou hoje, mesmo que minha carreira seja baseada, como observou, em vender lâminas de barbear. Quem ele estaria tentando convencer? Dava para ver que estava frustrado, e ela já tivera indícios de que ele mesmo desprezava o rótulo de símbolo sexual. — Se pudesse voltar atrás, faria isso de novo? — Isso o quê? — perguntou ele com impaciência. — Dar a alma para chegar onde está?

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Ele atirou o script ao chão, furioso. — Pelo amor de Deus, não seja tão melodramática. — Desculpe, sei que não é da minha conta. Vamos voltar ao trabalho? O clima de companheirismo se restabeleceu e, aos poucos, Locke pareceu mais satisfeito com o desempenho dela. Não apenas com isso, Dru admitiu, quando já estava em casa. Tinha a impressão de que ele havia sido sincero em seus elogios. Será que a achava mesmo bonita? Enquanto se penteava, depois do banho,, tentou afastar os cabelos em caracóis do rosto. Era bem possível que ele tivesse razão e que seu complexo a levava a esconder-se atrás dos cabelos. Cumprindo sua palavra, ele foi ajudá-la na pintura, apesar de esse trabalho também não ter sido inteiramente bem-sucedido. — Esta tinta é terrível. Há quanto tempo a comprou? — Não tenho idéia. Achei-a no quarto de serviço. — Parece uma mistura de farinha com cimento. — Pare de reclamar; se me ajudar direitinho, prometo escrever um script especial pra você. — E me dá o papel do mocinho? — perguntou ele, rindo. — Mas é justamente essa minha idéia! — Tenho certeza de que iria se aborrecer comigo. Você prefere o bandido, com quem pode brigar bastante. — Ora, ora, sr. Matthews. Não generalize. O quê gosto num pintor-assistente não é exatamente o que me agrada nos homens em geral. — Michael é um bom mocinho? — Não, não é. — Brigava muito com ele? — Não muito. — Quer dizer que não o xingava, nem o fazia perder a calma? — Não — respondeu Dru, pondo um ponto final na conversa. Continuou com a pintura, e não pôde deixar de pensar nos dias que passara com Michael e a mãe na bela residência deles em Ascot. Não havia gostado dali. A casa era fria, cheia de quadros clássicos nas paredes e decorada com exagerada sofisticação. Faltava-lhe calor, aconchego. Nessa ocasião, Dru aproveitara para dizer que gostaria que a casa deles fosse diferente. — Claro — concordara o noivo. — Vamos receber convidados e eles precisam se sentir à vontade. Não fora isso que ela quisera dizer. Sua idéia era um lugar agradável para os dois, e mais tarde para os filhos. Michael planejava festas e coquetéis para impressionar a carreira e descobrira que ela não tinha capacidade para fazer as honras da casa. Às vezes ela não conseguia disfarçar o aborrecimento que lhe causavam as conversas com os amigos dele, durante algum jantar. Michael tampouco aprovava seus comentários. Dissera-lhe uma ou duas vezes que sua atitude irreverente era sinal de imaturidade... — Que há com você, Dru? — perguntou Locke, observando a maneira

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton agressiva com que ela pintava. — Ainda está apaixonada por ele? — Parece estupidez, não? Acontece que nem todos nós somos tão despreocupados quanto o senhor. Não consigo deixar de amar alguém em cinco minutos. Continuaram o trabalho em silêncio. Depois que Locke se foi, Dru permaneceu por mais algum tempo. Quando, afinal, deu a. tarefa por encerrada, lavou-se e foi ver se Sam já havia chegado. Vendo a porta da cabana ainda trancada, ela ficou a imaginar o que poderia ter acontecido. Preocupada, sentou-se no degrau, disposta a esperar pelo pescador. Pouco depois, o barulho da bicicleta chamou-lhe a atenção. Sam guardava-a no lugar habitual, atrás da cabana, e Dru quase ficou sem fala quando o viu. Sam estava de terno! Com um corte muito antigo e um pouco largo para ele, mas de qualquer forma era um terno... — Sam, não sabia que tinha um terno! — exclamou ela, e teve a vaga sensação de que ele parecia não ter gostado muito de sua presença. No entanto, logo depois sorriu. — Entra, Silla? Ela o seguiu para dentro. Tudo que havia na cabana fora feito por Sam, e lembrava sua longa associação com a praia. Na maioria eram objetos de valor afetivo, como o cronômetro e o sextante que pertenceram ao pai dele, ao lado de inúmeras peças de madeira inacabadas. Que atmosfera! pensou ela sorrindo, constatando que nem Michael nem sua refinada mãe tinham a menor idéia do que isso significava. — Esteve passeando, Sam? — Ele tirara o paletó e estava tentando desapertar o nó da gravata. — Espere, deixe-me ajudá-lo. Dru desapertou o nó e ele arrancou a gravata imediatamente, com um suspiro de alívio. Também usava suspensórios que, como todo o resto da vestimenta, pareciam muito antigos. Sem saber por que, ela sentiu-se pouco à vontade. — Tinha coisas a resolver na cidade — disse ele, enchendo a chaleira de água. — Em Tweed ou Coolangatta? — Não, Brisbane. — Por que não me avisou? Eu o teria levado lá de carro. — Preferi não incomodar ninguém. — Sam, sei que estou sendo intrometida, mas o que tinha que fazer era tão importante a ponto de obrigá-lo a usar terno? Ele acendeu o pequeno fogão a gás e disse por fim: — Fui encontrar meu irmão. — Seu irmão? Não sabia que tinha um... — Nem ele. Nunca pensei que tivesse coragem de ir procurá-lo, mas enfim chegou o dia... então fui. Sam fez o chá e serviu a ambos. Depois, encarando-a, comentou: — Sei quem é ele, Silla. — Ele quem? — O moço, Smith. Vi um cartaz na cidade: Locke Matthews. Já encontrei muitas coisas nesta praia! Nunca um ator de cinema...

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — É, mas ele não chegou dentro de uma garrafa... — ela brincou. — E então, Silla, está tudo bem com vocês? — Ele olhou-a com os olhos de um pai: protetor, carinhoso. — Sim, tudo. Mas... — Contou-lhe rapidamente sobre Shelley. — Ele ficou zangado por eu ter mandado embora sua namorada, mas para compensar eu a estou substituindo... ajudando-o na leitura do script. — Era só para isso que ela vinha? — Claro que não. Mas eu não me tornei namorada dele! — Humm, parece que já está tirando Michael da cabeça. Sam não gostava de Michael. Tinha definido seus sentimentos em relação ao rapaz com a mesma rapidez com que formara sua opinião sobre Locke. Era verdade que o primeiro comentário de Michael sobre a cabana de Sam não fora nada lisonjeiro. Também não fora fácil para Dru convencer o namorado sobre as qualidades de Sam. A verdade era que o velho ficara feliz quando eles terminaram o namoro. — Silla, tem visto Barry e Gillian com freqüência? Ela justificou-se dizendo que eles tinham suas próprias vidas, e que raramente sobrava tempo para se verem. — Você precisa de alguém. Alguém que goste de você — murmurou ele como se falasse consigo mesmo. Dru pegou no dragão de madeira. — Ainda não o acabei — comentou Sam. — É, ainda não parece um dragão. — O que gostaria que fosse? — perguntou ele, tirando a estatueta das mãos dela para observá-la. — Não sei. — Talvez eu consiga adivinhar. Vou ver o que posso fazer. Às nove horas da manhã seguinte, Dru bateu à porta de seu hóspede. Torceu para encontrar Shelley ali, mas a moça parecia ter desistido das férias com Locke. Ele abriu a porta vestindo apenas a calça do pijama. — Nunca se veste? — ela perguntou. — Estou em férias — respondeu ele, esfregando os olhos. — Então por que não foi para um campo de nudismo? Lá podia tirar tudo. Por mim, pode ficar completamente à vontade que não me importo. — Bem, nesse caso... — disse ele, desatando o cordão. Dru abriu a boca, surpresa com a audácia do gesto, e de imediato virou-se, dirigindo-se para a cozinha. Começou arrumando por ali e, quando, já no quarto, apanhava os lençóis para fazer a cama, reparou que era o último par limpo. Estava embrulhando os usados para lavar, quando Locke apareceu. — Tem lençóis suficientes para troca todos os dias? — Oh, claro que não. Não temos quinze pares de lençóis guardados. Nem conheço ninguém que tenha. — Tem máquina de lavar? — Meu Deus, mas eu não vou lavá-los. Os lençóis onde Locke Matthews

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton dormiu... Estou pensando em cortá-los em pedacinhos e vendê-los. E com esse dinheiro comprar quinze pares... Ele divertiu-se com a idéia, e o clima de brincadeira tornou a leitura da peça bem mais agradável dessa vez. Ela estava mais à vontade, a não ser nas falas da "glamourosa Rhonda". — Sei que não é uma atriz, Dru, mas será que não consegue dar um tom menos impessoal? Essas últimas linhas são muito parecidas e conto só com a entonação para pegar o clima e dar a resposta certa. — Tenho certeza de que sua amiga Shelley seria capaz de falar com naturalidade sobre a beleza, mas eu não consigo. — Se não tivesse metido o nariz onde não era chamada, ela estaria aqui, agora. Bom, de qualquer forma, a beleza é mais um estado de espírito do que qualquer outra coisa. — Humm, para você é fácil dizer isso. — Dru, pensa que só as mulheres maravilhosas conseguem esses papéis? — E não? — Nem sempre. São as atrizes que os pegam! E representam com beleza e elegância. Isso basta. Qual é a mulher mais elegante que conhece? — Gillian, minha irmã — respondeu sem hesitação. — OK. Ela não anda como se soubesse que tem um andar bonito? E aposto que teiu os ombros eretos. — Ele pôs-lhe uma mão nas costas, endireitando-lhe a postura. — E tenho certeza de que não tem a cabeça inclinada como se fosse uma tartaruga com medo de sair da carcaça. — Ele levantou-lhe a cabeça, segurando-a pelo queixo. — E como fala? Como se soubesse que as pessoas gostam de conversar com ela. Em resumo, ela age com beleza e elegância. As atrizes não esperam ter um rosto e um corpo bonitos, Dru, adaptam tudo que lhes fica bem. E todo mundo pode fazer isso. — Mesmo eu? — perguntou ela, permanecendo na postura que ele indicara, com algum exagero. — Está bem, quer ser o patinho feio! É a sua escolha, mas tem outras opções. Só lhe peço que ponha um pouco mais de ênfase nessas falas, para que eu possa distinguir umas das outras. Ser o patinho feio? Talvez ele tivesse razão. Com Gillian por perto fora sempre difícil sentir-se bonita. Barry era a inteligência, Gillian a beleza e Dru... bem, Dru era o caráter. Pelo menos era o que as pessoas diziam. As falas da "glamourosa Rhonda" saíram ainda piores e Locke fechou o script com um suspiro. — Desculpe, sr. Matthews. Há alguma maneira de entrarmos em contato com Shelley? Ele olhou-a como se já tivesse esquecido a amiga. — Como? Acho que não. E pode me tratar por Locke. — O nome é verdadeiro? — É derivado de meu nome Lachlan. Minha mãe ficaria muito feliz em confirmá-lo. — Aceito sua palavra. Não creio que possa encontrar sua mãe alguma vez.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Gostaria que isso acontecesse. Tenho certeza de que iria gostar de você. Ela dirigiu-se para a porta, recusando-se a pensar na idéia de ser apreciada pela mãe dele. — Está bem... Locke. Vamos pintar as janelas laterais esta tarde. Ele fez uma reverência. — Sim, senhora. — Mas primeiro temos de lixá-las. — Sim, senhora. — Tudo bem começarmos às duas? — Sim, senhora — continuou ele, sempre fazendo gestos. — Parece que está virando um bom assistente de pintor — riu Dru. Ela teve de admitir mais tarde que ele lhe era mais útil na pintura do que ela ajudando-o a. decorar as falas da peça. Enquanto aplicava a segunda demão na sua janela, Dru nem terminava de dar a primeira. — É natural — disse ele, vaidoso. — já fiz muitas coisas. Sabe como é... experiência. — É por isso que é tão convencido? — Acha que sou? Lembre-se de meu trabalho para a representação. — A propósito, nunca chegou a me contar que trabalhos fez antes de se tornar... antes de fazer aqueles comerciais. Ele aprovou seu tato com um sorriso. — Não acredito que se divirta com o relato desses tempos difíceis, mas lá vai. Fiz muitos testes, trabalhei como garçom, viajei para o norte do país para tentar fazer teatro e acabei como pintor de casas, vendi pincéis de porta em porta... — É melhor parar senão vou começar a chorar. Aposto que se divertiu bastante. — Oh, claro. Nem imagina como é divertido ir para um teste, ficar três horas sentado e descobrir que os papéis já estão atribuídos antes mesmo de você ter uma chance de mostrar suas qualidades. Às vezes deixam que suba no palco e, antes que termine de dizer duas frases, alguém grita da platéia: "Chega, deixe seu nome. O próximo..." Ou então algum produtor chegava perto e dizia: "Quase pegou o papel, rapaz. Se não fosse tão jovem..." ou "É bonito demais para o papel, mas gostaria que deixasse seu número de telefone..." — Ele olhou para Dru e obviamente censurou o resto da frase. — Nem imagina como era divertido contar mais tarde para os amigos que "quase" pegara um papel e sair correndo para trabalhar de garçom... — Estudou arte dramática? — Como a senhorita é curiosa... Sim, sou formado pela NIDA. Ainda tenho alguns amigos desse tempo. A maior parte de nós estava cheio de ideais, mas é preciso viver, não se pode passar a vida morrendo de fome por causa dos ideais. Todos sonham com as peças de Tennessee Williams ou Eugene 0'Neil e acabam fazendo pontas em novelas, dublagens... e comerciais. — E conseguir os comerciais da Ransome foi seu ponto de partida para o sucesso?

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Essa campanha era a menina dos olhos de Eric. Estava trabalhando para uma agência de publicidade e teve a idéia do Ransome Man. Me chamou para fazer um teste e eu me saí muito bem. Mas houve quem dissesse que eu consegui o trabalho por estar em família... — Família? — Eric é meu irmão e também meu empresário. Ainda bem num trabalho como o meu, é uma raridade ter alguém em que se possa confiar inteiramente. — Quer dizer que seu irmão deixou a agência para ser seu empresário? — Sim, ele reconheceu meu potencial quando terminei a campanha e me agenciou durante um ano sem que nada acontecesse. — Parece ser um bom amigo além de um irmão. — E é. Ele me ajudou bastante antes de conseguir fazer esses comerciais, e muito antes também, quando passei uma fase difícil por causa da morte de papai. Devo-lhe tudo. Sem Eric provavelmente ainda estaria pintando paredes. Ele fez um gesto engraçado com o pincel e ela riu, pensando que deixar o trabalho numa agência e passar a agenciar um astro famoso parecia uma história de sucesso muito interessante. — Trabalhou na televisão antes do Ransome? — Era difícil pensar que tivesse passado despercebido tanto tempo. — Fiz uma ponta numa novela. Estava com vinte e dois anos e tremia de medo. Era a primeira vez que ia representar uma cena de amor... — Você... nervoso por causa de uma cena de amor? — Pensa que é fácil? Tá tinha feito algumas, quando estava na escola de arte dramática, mas duravam apenas alguns segundos e o público tinha uma visão geral. Mas as câmaras pegam os mínimos detalhes em close e eu estava com medo de parecer ridículo. — Ridículo?... — Beijar alguém é uma coisa muito pessoal. Imaginar-se sendo analisado por milhões de pessoas é aterrorizahte. Principalmente quando se tem vinte e dois anos... Dru jogou a cabeça para trás, rindo. — Está brincando comigo. Não pode ser verdade. — Ê, sim. E a atriz com quem eu contracenava não ajudava muito. Enganavase de propósito só para repetirmos a cena. — Como se faz para se enganar numa cena de amor? — Oh, muito fácil. Pela maneira de virar a cabeça na altura certa, por exemplo. — Ele largou o pincel e limpou as mãos no short; depois segurou-a pelos ombros. — Eu tinha que abraçá-la e aproximar a cabeça. — O coração de Dru bateu descompassado, e ela engoliu em seco quando ele se inclinou sobre ela, os olhos verdes brilhando. — ...e quando ia beijá-la, ela virava a cabeça de modo que nossos narizes se esmagavam um contra o outro. Ele ficou na posição para demonstrar o que dizia, roçando o nariz no dela. Ficaram assim alguns segundos, Dru evitando olhar para a boca sensual e convidativa. Nervosa, deu um passo para trás. Durante o silêncio tenso que se seguiu, ouvia-se apenas o barulho do mar e o sussurro do vento que agitava

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton as folhas das árvores. Foi Dru quem retornou à conversa: — Mas você descobriu mais tarde que era bom nas cenas de amor, não foi? — Descobri que tudo depende do ângulo em relação à câmera e de como você se posiciona perante ela. Ele voltou a pintar e contou-lhe sobre o único filme que fizera antes de ficar famoso. — Foi um trabalho difícil, inteiramente rodado em exteriores. Fazia um calor insuportável e havia mosquitos por todo lado. Exceto os atores principais, toda a equipe ficou alojada em barracas minúsculas. Minha barraca voou uma vez por causa de um vendaval e tive que ir buscá-la de bicicleta. — Ele riu, a lembrança agora vindo à tona em seu lado divertido. — Nessa altura pensava que esse filme seria um bom começo para outros trabalhos, mas os comerciais apareceram logo depois, e então... Às vezes me pergunto que rumo teria tomado minha carreira sem a Ransome... ou se teria tido mesmo continuação... Quando ele foi embora, Dru viu-o caminhando sobre as dunas, em direção à casa de Sam. Riu ao pensar em Locke Matthews com medo de que seu beijo parecesse ridículo. Ridícula fora ela, esperando que ele a beijasse... O dia seguinte comportou a mesma rotina do anterior. Dru pôs nas falas da "glamourosa Rhonda" um pouco do estilo de Gillian e, se no começo se sentiu um pouco ridícula, bastou se lembrar de Locke, nervoso por causa de seu primeiro beijo perante as câmaras, para se recompor. Depois do almoço, pintaram as janelas da frente. Locke assobiava e cantava enquanto trabalhava. Seu cabelo estava salpicado de tinta branca. Descalço, sem camisa e com um short velho, parecia relaxado e bem-disposto. Passava por um homem comum, nem lembrava o astro famoso acostumado ao luxo e à adulação de homens e mulheres. Dru sorriu quando ele recomeçou a cantar. — Já sei o que está imaginando. Mas posso lhe assegurar que nunca fiz o papel de cantor. — Claro que não. Não passaria no teste de afinação... Locke molhou o pincel na tinta e Drú fez uma careta dando um passo para trás. — Você não teria coragem... — Mas ele encostou-a na parede e pintou-lhe a ponta do nariz, — Está bem, eu mereci — admitiu, enquanto ele pegava um trapo e limpava a tinta. — Prometo ser mais simpática com você daqui para a frente. Não é qualquer um que me ajudaria na pintura depois de tudo o que fiz. — Fico contente por reconhecê-lo. Vai me recompensar? — De que maneira? — Dando-me o beijo que quase lhe roubei ontem. — Oh, deve estar se sentindo só de novo... — Não — disse ele com ar meigo. — Nunca me sinto só a seu lado. Estavam tão entretidos na conversa que só notaram a presença de Sara, que se aproximara silenciosamente, depois de alguns minutos.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Que acha, Sam? — perguntou Dru indicando as janelas. — Bom — respondeu o velho com sua habitual economia de palavras, mordendo os lábios enquanto inspecionava o trabalho deles. — O lugar vai ficar tão bonito que vão aparecer atores de cinema e outra gente pedindo para ficar aí. — Pedindo? — Locke perguntou, fingindo espanto. — Sei que está habituado ao melhor. — Estava brincando, Sam. Aprendi a gostar de Sea Winds. Bastante... — Aaagh! Peguei muitos peixes esta manhã. Querem assá-los na praia esta noite? Dru achou a idéia ótima. — Eu levo o vinho, se me emprestar seu carro para ir até o bar — disse Locke, voltando-se para ela. — Não tem medo de ser incomodado pelas fãs? Ele olhou para Sam de modo significativo. — Dru encarrega-se de levar o limão... A lua estava alta quando ela se dirigiu para a praia. O fogo já estava aceso e viu duas figuras à volta dele. Sam estava agachado e Locke de pé, parecendo muito atento ao que o velho dizia. Dru ficou parada por alguns instantes nas dunas. Encheu o peito de ar e olhou para o céu repleto de estrelas. A noite estava muito bonita e ela queria aproveitá-la ao máximo. Sorriu e então juntou-se aos homens. — Trouxe copos e pratos — disse ao pousar a cesta na areia. Os dois homens ficaram em silêncio, observando Dru sem esconder a admiração. Ela havia amarrado um lenço colorido na cabeça, prendendo os cabelos para trás, e vestia uma malha de lã azul muito bonita sobre o jeans. Via-se que a roupa, embora simples, fora escolhida para valorizar a beleza que Dru julgava não existir. Além disso, mostrava-se feliz e descontraída, o que também não era comum. — Qual é o problema? — ela perguntou, sem entender aquele súbito silêncio. — Não há problema — Sam respondeu. Logo os peixes douravam sobre as chamas, enchendo o ar com seu aroma. Locke tratou de servir o vinho e, quando se aproximou de Dru, percebeu-lhe um olhar divertido. — Algum problema? Posso adivinhar. Você quer saber por que ainda não me barbeei, certo? — Bem, pelo menos está vestido. Já é um progresso. — Sabe, estou deixando crescer a barba. Assim não serei reconhecido tão facilmente amanhã quando formos fazer as compras. — Nós? — Você, Sam e eu. Pensamos em ajudá-la nas compras para ver se nos convida para jantar amanhã à noite. — Ah, é? E já escolheram o cardápio? — Deixamos isso a seu critério, não é, Sam?

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Claro! — Está bem, mas devo avisá-los que sou péssima cozinheira. — E, voltando-se para o velho, comentou: — O peixe está uma delícia, Sam. Sinto-me como se voltasse atrás no tempo. Lembra-se de quando... Esse foi o primeiro de pelo menos uma dúzia de "lembra-se de quando". Locke ouviu suas histórias sobre as brincadeiras com Barry e Gillian e a chaleira mágica. — Eu só tinha dez anos... — E era uma sonhadora. Sempre pensando em descobrir algum tesouro, é a única a ver sonhos nas chamas... — disse Sam, sorrindo para ela. — Ah, mas eu cresci, Sam. — É uma pena. O velho então calou-se para observar Locke através do fogo. Agora era o ator que contava suas histórias, citando cidades que, jamais gostaria de conhecer, casos engraçados de atores famosos que na vida real eram inseguros, o avesso dos personagens que costumavam interpretar. Havia uma certa cumplicidade entre Sam e Locke, uma afinidade que Dru podia captar no ar. Embora isso a surpreendesse, deixava-a bastante feliz. Depois de muita conversa e brincadeiras, com os três cantando juntos velhas canções do folclore australiano, Sam voltou ao seu habitual estado de reflexão. Ficou um tempo imerso em seus pensamentos e afinal falou: — Durma bem, Sílla. Locke vai levá-la para casa. Era uma ordem. Ela sorriu e ajudou os dois a apagar o fogo e levar as coisas para dentro da cabana. Logo estava a caminho, Locke passando um braço por seus ombros. — Posso saber o que você e Sam tanto conversavam antes de eu chegar? — Dru perguntou brincando, embora a amizade de Locke com o pescador realmente a surpreendesse. — Não! Está com ciúme? Antes que ela pudesse responder, ele pôs a cesta no chão, abraçou-a e seus lábios pressionaram os dela num beijo terno e sensual. Dru correspondeu e num gesto impulsivo acariciou o rosto de Locke. — Vamos, já é tarde, mocinha! — ele falou reduzindo o desejo de Dru a cinzas. Seguiram o resto do caminho em silêncio, Dru remoendo a raiva por Locke e por si mesma. Que ingênua havia sido pensando que ele pudesse estar atraído por ela! Aquele beijo tinha sabor de piedade, era a esmola que o grande astro da televisão dava a uma garota comum para que esta terminasse a noite com sonhos dourados. Nada mais que isso!

CAPÍTULO V Como haviam combinado, Sam e Locke vieram logo cedo à casa de Dru para acompanhá-la nas compras. A habitual sessão de leitura do script fora

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton cancelada sem que Locke demonstrasse qualquer preocupação a respeito. — Tenho muito tempo pela frente — comentou. — Os ensaios só começam no final de junho. Essa menção ao tempo a entristeceu. Lembrou-se de que Locke ficaria só mais uma semana em Sea Winds e imaginar-se ali sem a companhia dele agora lhe parecia insuportável. Tinha-se acostumado às longas conversas e até às brigas. Locke a fizera mudar muito, fizera com que ela descobrisse coisas importantes sobre si mesma. Dru, porém, deixou de lado esses pensamentos, enquanto foram ao supermercado e à quitanda buscar todos os suprimentos necessários para o mês. Improvisaram um almoço ao ar livre no parque e por sorte ninguém reconheceu o bonito homem de óculos escuros ocupado num prosaico piquenique. Tudo corria bem até que, ao voltarem, Dru avistou um carro branco estacionado na frente da casa. Shelley! Dru engoliu em seco e reprimiu as lágrimas que quase traíram seu estado de espírito. — Sua amiga chegou, Locke — disse ela, fingindo-se feliz. — Veja se não se esquece que o nome dela é Shelley... Ele tirou os óculos de sol e acenou para ela em despedida. Suas palavras foram dirigidas só ao velho pescador. — Até logo, Sam. — Deu uma palmada amigável no ombro do homem e foi embora. Shelley logo surgiu, recebendo-o com entusiasmo. Beijaram-se no rosto e, abraçados, entraram na casa. — Bem, parece que não o veremos mais o dia inteiro... — Humm! — Sam ajudou-a a guardar os mantimentos, a expressão subitamente preocupada. — Silla, venha tomar chá comigo. O convite não poderia ter vindo em melhor hora. Dru o acompanhou até a casa dele e, quando Sam lhe servia a bebida, foi surpreendida pela pergunta: — Gosta dele? — o velho falou sem rodeios. — Você não? — É diferente. — Passamos uma noite agradável ontem. E hoje também, nós três. É só. Para encerrar o assunto, Dru pegou a peça de madeira que Sam trabalhava, ainda um bloco sem forma definida. — Já decidiu o que quer que faça dessa peça? — Não — respondeu ela, olhando para Sea Winds através da janela. — Pode deixá-la assim. Gosto dela desse jeito, parecendo uma figura indefinível. — Está bem, vou gravar seu nome nela. O nome de Locke não foi mais mencionado. Quando ela voltava para casa, viu-o à sua espera com os braços cruzados. O carro de Shelley não estava mais ali. — Vamos pintar esta tarde, senhora? — Onde está Shelley? — Ficou desiludida quando lhe mostrei o interior da casa. Disse que não

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton gostava do lugar e foi embora. — Mesmo com você como companhia? Contou-lhe que havia lençóis limpos todos os dias? — Humm, isso não a deixou nem um pouco Impressionada. — Deveria ter ido com ela para um lugar mais chique. — Aqui eu tenho tudo que preciso. E é agradável um pouco de simplicidade de vez em quando. Além disso, tenho um jantar marcado para hoje à noite e não posso faltar. Ela corou. Locke preferia ficar ali com ela e Sam... Tinha outras alternativas, mas ignorou-as. A alegria voltou ao seu coração. Os jantares se repetiram durante a semana e um deles foi novamente em volta de uma grande fogueira, na praia. Dru acordava todas as manhãs com uma alegria incomum e suas insônias desapareceram por completo. Só acordou uma noite com o grito angustiado de Locke que, no entanto, logo retomou o sono tranqüilo. Em todas as histórias que ele contara nunca tinha mencionado uma só vez o nome de Eva nem qualquer fato que justificasse pesadelos. Também não voltou a beijá-la, nem mesmo chegou a pôr o braço em seus ombros. Aos poucos, estavam se tornando grandes amigos, embora Dru sonhasse com algo mais do que uma simples amizade entre eles. Mas isso era um sonho impossível e ela já se contentava com o bom relacionamento que mantinham. Locke já tinha uma barba respeitável quando se aproximou o fim de suas férias. Na véspera de sua partida, à noite, foi brindado com uma festa de despedida. Dru assou peixes e Sam tocou sua harmônica. Para suavizar o clima de despedida, ele prometeu voltar logo. — Vou pedir a Eric que me arrume alguns dias em novembro. Ou melhor, à sua desmiolada secretária, que cometeu um erro delicioso quando fez a reserva para Sea Winds... — Bem que eu avisei — disse Sam. — Era só pintar a casa para todos os atores de cinema virem para cá... Dru fingiu acreditar, mas não se iludia: Locke jamais voltaria! Se ela quisesse tornar a vê-lo, teria de ir ao cinema ou sentar-se em frente à televisão. — Prometo comprar mais lençóis... — brincou ela. Sam estava junto dela, na manhã seguinte, quando Locke se preparava para subir na bicicleta. Chovera um pouco durante a noite e a areia estava úmida. Era a primeira semana de maio e o outono anunciava sua chegada. Os dois homens apertaram as mãos com força. — Lembre-se do que eu disse — disse Sam, e Locke fez um aceno afirmativo com a cabeça. — Lembre-se do quê? — perguntou Dru olhando de um para o outro. — Conversa de homens — respondeu Sam. — Lembro, sim — disse Locke com um ar casual e dirigiu-se para ela, dando-lhe um rápido beijo no rosto. — Felicidades para a peça — ela disse.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Obrigado — ele agradeceu, sorrindo, e levantou uma mão para Sam, ficando assim durante alguns segundos. — Adeus, Sam. — Adeus, filho. Locke pôs-se a pedalar e deu um último aceno antes de desaparecer na estrada. — Odeio despedidas — disse Dru, tentando explicar seus olhos úmidos. Sam tocou-lhe na mão com carinho. — Também eu. Silla, também eu... O dia passou, monótono, e a manhã seguinte despontou com um sol muito tímido. Quando Dru trancou a casa depois do almoço e encheu o carro com a bagagem, encontrou a geladeira de isopor com dois peixes que Sam havia pescado pela manhã e resolveu levá-la. — Quero vê-la feliz, Silla — dissera o velho amigo. — E estou, Sam. Foram umas ótimas férias. — As coisas mudam, filha. Livrar-se daquele Michael já foi muito bom. Você já é bem crescida e não precisa de superproteção. — Superproteção, Sam? — Ele significava segurança para você, Silla. Com seus pais já falecidos e Barry e Gillian sempre longe, era natural que você quisesse se apegar a alguém que lhe garantisse o futuro. Mas isso não é o suficiente! Gosto muito de você, filha... Ela sabia disso. Mesmo quando seus pais ainda estavam vivos, Sam sempre se fizera presente quando ela precisava de ajuda e afeto. — Também gosto muito de você, Sam McGinley. Voltarei em breve para passarmos um final de semana juntos e cantarmos as nossas canções. — Assim espero — despedira-se Sam. De volta ao trabalho, Dru não conseguiu manter o entusiasmo pela vida que tinha sentido durante as férias. Agora já fazia um mês que havia voltado e continuava desanimada e sem a menor capacidade de concentração. Sua insônia havia voltado também. Quando atendeu ao telefone naquela tarde, uma voz calma e educada falou: — Meu nome é Desmond McGinley, srta. Winters. — McGinley... — repetiu ela, sentindo-se gelar. — O irmão de Sam? — Exato. Ele deixou instruções comigo, srta. Winters. Pediu-me que a contatasse quando... O funeral foi simples. O sol brilhava e algumas gaivotas voavam sobre o cemitério, que ficava perto do mar. Havia apenas seis pessoas acompanhando a cerimônia, além do padre: Barry e sua esposa, Jan, Gillian e o irmão e a cunhada de Sam. Dru não conseguia chorar. Nada daquilo parecia ser verdade. A imagem de Sam estava tão viva em sua memória... Ele dera-lhe muitas pistas de que seu fim estava próximo, mas ela preferira ignorar. Ela estava tão imersa em sua tristeza que não notou que alguém se aproximava. Quando sentiu um braço sobre seus ombros e viu quem a

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton abraçava, finalmente deu vazão a seu sofrimento, chorando a dor que a oprimia. — Não pude chegar mais cedo — Locke explicou. — O avião atrasou em Coolangatta. Veio de carro? — Vim com Barry e Jan — respondeu entre soluços, percebendo a surpresa de seus irmãos. — Vejo que nunca lhes falou sobre mim — Locke murmurou e apresentou-se aos demais, falando um pouco com cada um, agradecendo ao irmão de Sam por ter telefonado. Todos até mesmo Gillian, que nunca perdia a compostura em nenhuma ocasião, mostravam-se atônitos. — Aluguei um carro — disse Locke. — Vou levá-la para casa. — Depois, pegou em seu braço e ela despediu-se de todos. Gillian ainda perguntou: — O que está havendo? Mas Dru fingiu não ter ouvido. Locke dirigiu em silêncio, por um longo tempo, antes de contar a ela o que Sam lhe havia escondido. No dia em que Dru o vira de terno, Sam não tinha ido apenas ver o irmão, mas também saber os resultados dos exames médicos, que acusaram uma grave doença. Disseram-lhe que poderia viver no máximo mais três meses sem tratamento. O velho renunciara aos cuidados médicos porque não lhe interessava ganhar mais algum tempo e passá-lo num hospital. Era qualidade e não quantidade o que queria. Preferira viver o resto de seus dias na sua pequena cabana, pescando ao lado dos amigos. Quando Locke dissera que voltaria em novembro, sabia que Sam já não estaria lá. — Mas por que ele não me avisou? — perguntou ela, chorando. — Porque sabia que nada mais poderia ser feito. Você iria se sentir culpada por não poder ficar perto dele. Fizeram o resto da viagem em silêncio e, quando chegaram em Brisbane, ela deu-lhe instruções para irem até seu apartamento. — O que estamos precisando é de uma boa dose de uísque — disse ele quando entraram. — Convivi apenas duas semanas com Sam, mas sinto como se tivesse perdido um velho amigo. Por que será que a vida nos prega tantas peças, permitindo conhecer uma pessoa para logo despedir-se dela?... Ela serviu dois uísques e Locke tomou o seu de um só gole, enchendo o copo de novo. — Deve ter sido difícil chegar até aqui... — Estava fora da cidade. Só recebi o recado esta manhã. Mas graças a Deus cheguei a tempo. Queria estar presente. Além disso pro... — Prometeu a Sam o quê? — Ela sentiu piedade naquelas palavras e, nervosa, insistiu: — Sam pediu-lhe que olhasse por mim? — Não exatamente, Dru. — Escute, Locke. Tenho vinte e três anos, sinto muito a perda de Sam, é claro, mas já me ajudou o bastante. Agradeço-lhe o apoio e estou feliz por ter vindo. Posso me virar sozinha. Além disso, existem outras pessoas que podem me ajudar em momentos difíceis.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Sua família? Ou já fez as pazes com esse tal Michael? Dru tentou adivinhar o que Sam poderia ter-lhe dito. Teria obrigado Locke a prometer que tomaria conta dela? Pobre Sam, sua idéia fora cheia de boas intenções, mas deixara-a numa situação delicada. — Estou pensando nisso — respondeu. Se ele pensasse que ela voltara para Michael, esqueceria a promessa feita a Sam, sem sentir-se culpado. — Ele não está aqui hoje com você... Acha que vale a pena continuar pensando nele? — Penso muitas vezes. Já lhe disse que não deixo de gostar de alguém de um momento para o outro. — Tem esperanças de que ele venha a se casar com você? — Não falamos nisso. Ê preferível dar tempo ao tempo — disse ela, baixando a cabeça para não denunciar sua deslavada mentira. Locke tomou o resto da bebida e se levantou. — Preciso pegar o avião. Até breve, Dru. — Até breve? Não precisa interromper seus compromissos para vir tomar conta de mim. Já lhe disse... — Vamos voltar a nos ver. Sam alterou o testamento dele. Tentei dissuadi-lo, mas não adiantou. Deixou a casa e o terreno em volta para nós dois. Da próxima vez que nos encontrarmos falaremos sobre isso. Este é meu número de telefone. Me ligue quando se sentir só. Ele escreveu o número num cartão e saiu. A idéia de voltar a vê-lo serviu-lhe de consolo durante os dias tristes que se seguiram, mas no dia de seu aniversário junto de Barry e Gillian suas ilusões acabaram de vez. O irmão fez questão de preveni-la sobre os perigos de um envolvimento com um ator famoso e sua irmã sequer acreditou que Locke tivesse passado duas semanas em Sea Winds e que fosse amigo de Sam. Alguns dias mais tarde, um repórter a esperava na porta de seu apartamento. Conseguiu convencê-lo de que estava falando com a pessoa errada quando ele lhe perguntou se tinha passado umas férias com Locke Matthews. Não foi difícil: o homem avaliou a moça simples e pouco ambiciosa e logo concluiu que não poderia ser namorada do famoso Locke Matthews. Ela ligou para Barry e Gillian para certificar-se de que eles não tinham comentado o assunto com ninguém e pediu-lhes que jamais o fizessem. Desmond McGinley quase já nem se lembrava do nome do ator e mencionara-o no testamento com desaprovação, embora não contestasse nada. Depois de pensar bastante, Dru ligou para Locke. Afinal, ele estava envolvido no assunto e deveria saber que as pessoas estavam especulando a respeito dos dois. No fundo, porém, admitia a verdadeira razão do telefonema: queria ouvir a voz dele... — Um repórter veio me perguntar se tinha passado umas férias com você — disse ela com ar acusador. — E o que lhe respondeu? — a voz dele parecia divertida e ela imaginou o sorriso nos lábios e o brilho nos olhos.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Não achei graça nenhuma, Locke. Pode estar acostumado a que as pessoas lhe façam perguntas sobre sua vida particular, mas eu não. Se esses boatos chegarem aos ouvidos dos meus amigos vou ter que agüentar piadinhas e gozações. — Tem medo que o tal Michael possa não gostar? — Bem, não ficaria bem — hesitou ela. — Quer dizer que ele já mudou de opinião a seu respeito? — Talvez. Não é de sua conta. Só quero saber como o homem descobriu meu nome e endereço. — Ah, sempre tão medrosa... — Só lhe peço que não envolva meu nome nos seus sórdidos casos amorosos e casamentos secretos. — É disso que sinto falta... — Do quê? — Do sabor do limão! O nome de Dru apareceu mesmo na imprensa, relacionado ao de Locke, o que causou-lhe muitos transtornos. Suas colegas de trabalho, que ainda a viam como a namorada rejeitada de Michael, não paravam de fazer perguntas sobre o ator. Michael olhava-a como se ela tivesse enlouquecido. Deveria ter sido um choque para ele saber que a garota que ele havia desprezado despertara a atenção de um famoso astro de cinema. Repórteres ligavam constantemente, querendo fotografá-la na saída do trabalho. Se ela fosse uma beldade, talvez a tivessem logo deixado em paz; mas, sendo uma moça comum, a história parecia mais intrigante, concluía Dru. A situação aborreceu-a a tal ponto que tornou a ligar para Locke. — Não suporto mais isso. Será que não pode fazer alguma coisa? Diga-lhes que tem uma dúzia de novas amantes, que eu não sou seu tipo, sei lá, qualquer coisa — protestou ela. — Está tendo problemas? — É claro que sim! Meu patrão não está nada contente com minha súbita popularidade. Nem meus vizinhos do prédio. Posso ser posta para fora e tudo por sua causa. — Pobre Dru. Lamento muito. — Lamenta? Acha que eu acredito? Está é feliz por ter a atenção desviada de seu caso com a mulher do político. — Qualquer coisa a mais que dissesse aos repórteres só iria piorar as coisas, acredite. — Qualquer coisa a mais? Que mais lhes contou então? — Pelo amor de Deus, Dru, é só um modo de falar. Faço declarações à imprensa a toda hora. Acalme-se, por favor. — Está bem, me desculpe. — Já voltou à praia? — perguntou ele, depois de um breve silêncio. Dru sentiu um nó na garganta. Parecia ter sido no dia anterior que se despedira de Sam.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Não, não voltei. — Dru, não quer ir lá neste final de semana? Vou pegar um avião e podemos nos encontrar. Precisamos discutir sobre a casa de Sam, não acha? — Os repórteres vão segui-lo. E a mim... — disse ela, sentindo-se fraca. — Vou dar-lhes uma pista falsa. Peça o carro de alguém emprestado e cubra o cabelo... Fazia frio quando chegou a Sea Winds no sábado. As gaivotas voavam sobre a praia, como se estivessem à espera de Sam. Dru levou suas coisas para dentro de casa e caminhou pelas dunas em direção à cabana de Sam. A que horas chegaria Locke? Sentia-se flutuar só em pensar que iria vê-lo de novo. Ele sabia o quanto estava deprimida por causa da publicidade, mas não queria que a visse triste. Todas as coisas que Sam lhe fizera prometer deveriam parecer desnecessárias. Quando chegou perto dos algodoeiros viu que a porta da cabana estava aberta. Pensou que a qualquer momento o veria sair com um canivete e uma peça de madeira nas mãos, sentando-se no degrau e cumprimentando-a daquele seu jeito estranho. Entrou e nem chegou a assustar-se quando distinguiu um vulto na escuridão. — Sam? — disse impulsivamente. Mas não foi o velho amigo que saiu das sombras e veio abraçá-la com os olhos cheios de ternura. — Oh, Locke! Por um segundo achei que estava sonhando e vi Sam no seu lugar... Coisa mais boba... — A voz faltou-lhe e Locke largou o jornal que segurava, para abraçá-la com força. — Dru... — murmurou ele, enquanto ela escondia o rosto em seu ombro e chorava copiosamente. Quando, enfim, se acalmou, olhou-o e reconheceu em seu rosto o mesmo ar de piedade. — Devia ter pedido a Michael que viesse comigo — disse ela, afastando-se dele. — Dru, não... — O que foi Locke? — A notícia do noivado de Michael saiu no jornal esta manhã, junto com uma foto. Estava lendo antes de você chegar. Por que não me disse que o noivado de vocês havia terminado definitivamente? Foi por orgulho, Dru? As lágrimas teimavam em cair de novo. Ele jamais poderia saber do verdadeiro motivo por que chorava. Michael podia ter um harém que isso não a afetaria nem um pouco, mas Locke precisava interpretar de maneira diferente a causa de seu choro. Era melhor que pensasse que sofria por amar Michael. Tentou falar, mas não conseguiu. Ele abraçou-a com ternura e ela abandonouse ao carinho de que tanto precisava. — Querida Dru. Não pense mais nele — murmurou Locke ao seu ouvido. Ela o olhou e ficaram assim alguns segundos, quando o clarão do flash de uma câmara os fez voltar à realidade. — Está uma bonita manhã, sr. Matthews — disse um fotógrafo, irrompendo

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton pela porta adentro. — Como está, srta. Winters? O nome está correto? É Winters com um "s", creto? — Não, é Matthews com dois tês. Sra. Matthews — respondeu Locke, puxando-a de encontro ao peito. O homem desapareceu imediatamente pela mesma porta que entrara. Antes que ela pudesse falar alguma coisa, Locke disse simplesmente; — Preciso de você, Dru. Precisava dela... Talvez para afastar as fãs e acabar com as especulações da imprensa sobre quem estaria na sua cama. Precisava dela... agora que sabia que Sam e Michael tinham desaparecido de sua vida. — Prometeu a Sam tomar conta de mim? — Não prometi a Sam casar com você, se é isso que tem na sua cabeça... Mas é isso que eu quero. Case comigo, Dru. Fomos amigos aqui, podemos continuar sendo. — Amizade não é tudo. Ele riu e agarrou-a pelos ombros. — Oh, mas se quer que... — Não, eu não quis dizer isso! — gaguejou ela, dando um passo para trás. — Nada precisa mudar entre nós, até que esqueça esse Michael completamente. Pobre Michael: era apenas uma recordação! Mas ela preferiu não dizer isso a Locke. Se ele tivesse dito que a amava, se tivesse feito a proposta não parecer um acordo, teria lhe contado a verdade. Mas o orgulho não a deixaria mostrar que, para ela, não se tratava apenas de uma questão de necessidade, mas de amor. E sua decisão já havia sido tomada na hora que o ouviu dizer: "sra. Matthews". Uma decisão estúpida, mas mesmo que pensasse sobre isso o dia inteiro não voltaria atrás. — Está bem, caso com você. Mas devo avisá-lo que todo mundo vai pensar que ficou louco. — Não seja boba... — Estou sendo boba casando com você. Mas acho que não vou conseguir nenhuma proposta melhor. }á pensou bem, Locke? Quer ir lá fora e chamar o repórter? Talvez esteja escondido nos arbustos tentando pegar algumas fotos mais interessantes... — Dru... — disse ele com ar ameaçador. — Não se preocupe. Não me trará mal algum. Posso vender minha história para os jornais. Quase casei com o Ransome Man... — Meu Deus, você é... — disse ele segurando-a com força pelo braço, mas depois desatou a rir. — Preciso de você, Dru... — Sim, meu senhor...

CAPÍTULO VI A vida de Dru deu uma completa reviravolta. Demitiu-se do emprego e deixou

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton o apartamento onde havia morado durante longos anos. Para sua surpresa, Gillian tirou uns dias de folga só para acompanhá-la até Sydney e participar do casamento. A irmã já se acostumara com a idéia de que um dos homens mais bonitos e famosos do país se encantara por Dru, considerada o patinho feio da família. Barry também viria com a mulher e os filhos. O hotel em que estava alojada era dos melhores da cidade e Dru se sentia 4im pouco deslocada no meio de tanta sofisticação, ao contrário de Gillian, sempre à vontade onde havia luxo e riqueza. — Seu noivo tem muito bom gosto. — Foi o irmão de Locke quem organizou tudo. — Humm, será que é parecido com ele? Dois Matthews é melhor que um... Não é à toa que as moças da recepção estejam se desmanchando em gentilezas. A suíte estava cheia de flores e Gillian leu alguns cartões. — Pensava que o casamento ia ser mantido em segredo. Alguns destes cartões são de pessoas que moram nos Estados Unidos... A toda hora chegavam telegramas, presentes e vestidos para Dru experimentar. O pessoal do hotel telefonava com regularidade da portaria, perguntando se estava tudo em ordem. Havia frutas e vinho em abundância. Essa mudança radical em sua vida deixara Dru atordoada. À medida que a data do casamento se aproximava, sua ansiedade crescia. Locke só chegaria no dia do casamento. Quem cuidava de todos os preparativos era seu irmão, Eric. Ao ouvir uma batida à porta, Dru foi atender na certeza de que eram mais flores chegando. E não se enganou. Só que não era o entregador do hotel quem as trazia. Um homem alto e louro estendeu-lhe um buquê de orquídeas. Ela logo adivinhou quem era. — Dru, prazer em conhecê-la. Sou Eric, espero que meu irmão tenha lhe avisado que eu viria — disse ele, beijando-a no rosto. Convidando-o a entrar, Dru apresentou-o a Gillian, que foi cumprimentada entusiasticamente. Logo em seguida, Eric deu mostras de sua incrível vitalidade e senso de organização, contando-lhes sem esquecer nenhum detalhe tudo o que havia programado para a cerimônia do casamento. Tudo estava perfeito. Dru aprovou até a escolha da música, Perfect Love... Fisicamente, Eric era diferente de Locke. Mais baixo, tinha cabelos e sobrancelhas louros, mas não havia dúvidas de que eram irmãos, principalmente nos gestos elegantes e no modo cativante de agir. Gillian anotava datas e nomes de lugares, e respondia às perguntas de Eric. Enquanto isso, Dru deixou-se ficar sentada a uma cadeira, apática, oprimida pelo ritmo alucinante do futuro cunhado e também pela perspectiva de integrar uma família tão diferente de suas próprias origens. — Haverá jornalistas no casamento? — perguntou. — Mantive o nome da igreja em segredo, mas vai haver alguns. Lembre-se de que vai casar com uma celebridade e é melhor acostumar-se desde já com a idéia. Eric chegou perto dela e apertou-lhe a mão, piscando os olhos algumas

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton vezes. Dru sentiu a pressão de seus dedos e teve a impressão de que ele estava irritado. Mas Eric continuou segurando-lhe a mão e sorriu. — Estou contente por vocês dois. Tenho certeza de que vamos nos dar muito bem, Dru. Era muito simpático da parte dele dizer isso, mas não inteiramente sincero. Ele sabia que ela não iria se integrar com tanta facilidade. Talvez, como um prático homem de negócios, até já pensasse nos termos do divórcio. Olhou para a mão de unhas bem cortadas que segurava a sua e surpreendeu-se: um rubi brilhava em um dos vários anéis que Eric usava. Um enorme rubi que parecia simbolizar a distância que havia entre eles. Talvez pudesse voltar atrás. Ainda havia tempo... A mãe de Locke chegou de Adelaide no dia seguinte. Era uma pessoa simples e agradável. Disse as palavras que impediram Dru de voltar atrás. — Ele estava precisando de uma moça como você há bastante tempo. Naquela tarde, não foi uma noiva confiante que adentrou a igreja do cais. Mas, sem dúvida, já tinha algumas certezas que podiam ser percebidas numa expressão mais solene e compenetrada. Os olhos de Dru brilhavam, e os lábios que pronunciaram o "sim" também conseguiram expressar um leve sorriso. Ela só não conseguiu perceber que dentro do seu lindíssimo vestido de noiva e com o cabelo bem penteado estava muito bonita. A recepção incluiu apenas familiares e alguns amigos. Nenhum artista famoso estava lá. Irene Matthews, a mãe de Locke, contou histórias divertidas sobre a adolescência de Lachlan, como ela chamava o filho, e o aborrecimento de Eric, anos mais tarde, por ver suas namoradas com a atenção voltada para o irmão mais novo. Houve muitos brindes aos recém-casados e o bolo foi cortado enquanto o único fotógrafo convidado registrava o ato. Barry conversou com Locke sobre motos e carros e Tan olhava-o encantada, assim como suas duas filhas. Por sua vez, Vanessa,a namorada de Eric, não escondia seu ciúme por ver o companheiro dispensar muita atenção a Gillian. Entre um e outro brinde, o cunhado veio conversar com Dru. — Meu irroão é um sujeito e tanto, Dru. Ela concordou, observando o marido elegantemente vestido com um smoking e camisa de seda branca. — Nosso mundo é fascinante, mas não fácil. Locke e eu tivemos muito trabalho para chegar onde estamos. Ele me contou que o ajudou a decorar as falas de Um Homem Vivo. Já teve alguma experiência de teatro? — Não, não entendo nada de arte dramática. Claro que era uma pergunta de cortesia. Ninguém no mundo pensaria que ela pudesse ter a pretensão de subir num palco. Dru chegou à conclusão de que ele também era um bom ator. Quase a fez acreditar estar feliz com a idéia de ter uma cunhada tão comum. — Quero ser franco com você, Dru. Não vai ser fácil se adaptar ao mundo agitado dos artistas. Não será obrigada a participar de tudo, mas terá que aceitar as ausências dele, as viagens. Aliás, tudo que venha falar comigo

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton quando tiver algum problema. "Ele está me tomando por uma ingênua", pensou Dru consigo mesma. Claro que iriam surgir problemas! Mal sabia ele que fora seu gênio forte que chamara a atenção de Locke. Se hoje parecia exageradamente calma e cordata, esse comportamento não retratava sua conduta depois de casada. — As fãs não irão gostar — riu Eric. — Prepare-se para ser odiada por muitas mulheres que gostariam de estar no seu lugar. Nesse instante, Locke olhou na direção dela. Sorriu e piscou, encorajando-a nesse seu primeiro contato com a nova família. Vendo-o rodeado pelos filhos de Barry, ela imaginou que talvez... algum dia, quem sabe, eles também poderiam formar uma verdadeira família. — Nunca pensei que Locke voltasse a se casar. Dru virou-se lentamente para Eric, atordoada. — Voltasse? — Oh... meu Deus! Vejo que ele não lhe contou. — Não, não me disse nada. — Foi há muito tempo, antes de se tornar famoso. Nunca mencionamos isso na sua biografia. Estavam casados fazia pouco mais de um ano. Ela morreu num acidente. — Como era o nome dela? — Eva. A conversa se encerrou por aí. Não houve tempo para Dru perguntar mais nada, porque Locke se aproximou, avisando que já estava na hora de irem. Não iria haver lua-de-mel: Locke linha muito trabalho, por isso a viagem ficaria adiada até que ele pudesse tirar alguns dias de férias. Por enquanto ficariam no apartamento dele. Depois da festa, durante o percurso para casa, Dru manteve-se muito calada e Locke estranhou. — O que houve, Dru? Está tão quieta... Arrependeu-se? Acha que com o tempo ele poderia voltar atrás? Dru olhou para ele, surpresa. Será que imaginava que ela ainda alimentava esperanças em relação a Michael? — Não, não estou pensando nisso. Dru pensava em Eva, nos motivos que o levavam a ter pesadelos com ela e a agoniar-se tanto. Quando decidira casar-se com ele, sabia das dificuldades que a aguardavam, mas esperava ser recompensada, quando ele viesse a amá-la, por isso respondeu com um gracejo: — Você sabe que sou péssima cozinheira, como espera sobreviver? Embora imaginasse que haveria muita tensão entre eles, vivendo juntos sem consumarem o casamento, isso não ocorreu. Dru voltou a ajudá-lo a decorar o texto da peça e ele a ajudava a cozinhar. Riram muito lendo as reportagens sobre o casamento em muitos jornais e revistas. Como a imprensa não conseguiu descobrir nada sobre a lua-de-mel, levantou as hipóteses mais absurdas e fantasiosas a respeito.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Locke recusara-se a dar mais entrevistas e Eric deixara-os a sós, viajando para o México. De acordo com Locke, ele viajava com muita regularidade para o estrangeiro, fazendo às vezes uma viagem de vinte e quatro horas só para ficar fora durante dois dias. — Dois dias apenas? Não parece valer a pena. — Dois dias se a cidade tiver boas casas noturnas; três, se houver alguma corrida de automóvel; e quatro, se também tiver um cassino. Dru meneou a cabeça. Esse era o mundo das pessoas bonitas, diferentes, talentosas e ricas. Ela não se encaixava em nenhuma dessas categorias... A secretária de Eric enviara um envelope cheio de reportagens sobre eles, saídas no mundo inteiro. Era um trabalho divertido separar e catalogar os artigos de jornais sobre um astro. Dru riu muito divertida quando viu fotos deles em revistas italianas e japonesas. Ainda bem que não era capaz de ler o que estava escrito. As que vinham em inglês eram suficientes: "Cínderela casa com o Ransome Man." "Depois de ter namorado as mulheres mais belas do mundo, Locke Matthews casa-se com uma moça simples e comum." Dru constatou como era irritante ser examinada publicamente. Se ainda fosse assunto da imprensa séria... Mas nessas revistas de fofocas os leitores iriam aceitar tudo que lessem como verdade. O apartamento de Locke era muito bonito, ainda que modesto para um homem de sua posição. A mobília era mais confortável que elegante; os quadros, uma mistura do clássico com o moderno; uma estante cheia de livros e recordações do mundo inteiro. Era o lar de um homem autêntico, disso não havia a menor dúvida. E, embora pudesse viver no maior luxo, dividia a piscina e a sauna com os outros moradores do prédio. O bairro era tranqüilo, não muito longe do centro da cidade e de fácil acesso ao aeroporto. — Gosto de morar aqui, mas mudaremos para outro lugar se você quiser — dissera Locke. Ela o fez ver que adorava o apartamento e quase disse que qualquer lugar onde ele estivesse seria ótimo para ela. Mas não o fez... A sra. Curtis, a empregada de Locke, vinha todos os dias. Era uma mulher magra que falava pouco, talvez porque tivesse sempre um cigarro na boca, mesmo enquanto trabalhava. Nunca deixava cair cinza no chão, porque estava sempre cercada de cinzeiros estrategicamente colocados. Ela chegou uma manhã com o relato habitual do que estava acontecendo na rua. — Dois homens da televisão estão aí fora de novo, e um repórter disse que publicaria minha foto no jornal se lhe contasse tudo sobre a vida dos senhores. E até queria saber como era a cama onde dormiam... Dru corou um pouco. A sra. Curtis não parecia ser o tipo de mulher que pudesse ser enganada facilmente. — A senhora disse alguma coisa? — perguntou Locke.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Oh, disse-lhe que se visse minha foto no jornal o processaria. — E retirouse, depois de olhar para Dru e dizer: — Também falei que o modo como as pessoas dormiam só dizia respeito a elas próprias. Foi um tempo estranho, irreal, o das primeiras semanas de casada. Dru tinha pouco que fazer e ainda não queria sair sozinha, para não atrair a atenção da imprensa. Quando descobriu que Locke se levantava mais cedo todos os dias para correr no parque, esperou até que ele a convidasse a ir junto. Como isso não aconteceu, decidiu-se: — Gostaria de ir com você — anunciou uma manhã quando o viu calçando os tênis. Ele riu de sua expressão de desafio. — Pensei que nunca iria pedir... A manhã estava linda, as árvores e a relva do parque perfumando o ar com um suave aroma. Locke parou de correr um pouco e Dru aproveitou para descansar. Estava quase sem fôlego. — Eu nunca corri muito... — falou, desistindo de acompanhá-lo. Sentada na grama, ela ficou apreciando a calma que havia ao redor. Alguns ciclistas passavam silenciosamente e o barulho das aves misturava-se com o distante zumbido da cidade. Locke corria ao longe. Seus cabelos castanho-claros pareciam dourados quando os reflexos do sol caíam sobre eles. Seus movimentos ritmados mostravam disciplina e determinação. Já estava suficientemente perto para que pudesse ver seu rosto barbeado. Começava sempre por barbear o lado esquerdo do rosto... Esse era um dos muitos pequenos detalhes que já sabia sobre ele: conservava o hábito de trocar os lençóis da cama todos os dias, fazia sua ginástica e trabalhava arduamente nos ensaios da peça. Mas era demasiado preguiçoso para pentear o cabelo antes do café da manhã... Era generoso, simpático e tolerante, mas às vezes ficava irritado com as notícias que lia nos jornais e com a freqüência com que o telefone tocava. Mas sua irritação nunca durava muito. Ele estava se aproximando, e Dru sentiu uma súbita tristeza. Locke prometera-lhe que seriam amigos e havia cumprido a promessa. Mas ela desejava com todas as forças que um dia ele também viesse a amá-la. Foi ao seu encontro. Estava loucamente apaixonada por ele, mas não queria dar o primeiro passo. — Quer dizer então que a velocidade com que corre nos seus filmes não é falsa? — Posso correr o bastante para alcançá-la, querida. — Quer apostar? Dru começou a correr pela relva, confiante em ter vantagem sobre ele, por ter descansado, ao passo que ele ainda estava ofegante. Acreditava poder chegar até o portão do parque antes dele, e olhou para trás com ar vitorioso. Antes que ele pudesse avisá-la, já era tarde: não vira um pequeno arbusto e, tropeçando nele, caiu ao chão. — Dru, querida. Está bem? Diga alguma coisa, pelo amor de Deus. Ele virou-lhe a cabeça, ajoelhando-se à sua frente, e abraçou-a, passando um braço em volta de seus ombros.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Ela abriu os olhos, feliz por estar nos braços dele. — Fiz de propósito, sabe? Por causa do seu ego... Senão, nem pense que me pegaria. Havia alívio e ternura nos olhos verdes. — E desde quando faz alguma coisa pelo meu ego? — ele riu, e carregou-a nos braços, ignorando seus protestos e os olhares dos que passavam perto. Levou-a assim até o apartamento. Correr no parque tornou-se um hábito de todas as manhãs. Uma vez, quando um fotógrafo os surpreendeu, Locke fugiu para trás de uma árvore e, quando reapareceu, parecia um homem de meia-idade, com as pernas bambas e os ombros caídos. Foi Dru quem os denunciou, não conseguindo evitar as gargalhadas. As manhãs tornaram-se a mais deliciosa parte do dia. À tarde Locke ia para o barracão onde ensaiava a peça, às vezes até tarde da noite, mas as manhãs eram reservadas para os dois, apesar de Dru se perguntar com freqüência se algum dia também partilharia suas noites... — Quero comprar-lhe algumas roupas — anunciou ele um dia, enquanto tomavam o café da manhã. — Ah, não preciso, já tenho muitas— ela respondeu, despojada. — Não lhe ficam bem. — Está tentando me dizer que não tenho gosto para me vestir? — É isso mesmo. — E você tem? — Melhor que o seu, sim — respondeu ele, divertido. — Já sei. Fez o papel de costureiro numa das peças da NIDA... — Nada disso. Vista-se e vamos fazer compras. Foi uma experiência diferente fazer compras com ele. Dru se espantou com a mudança de expressão da vendedora quando o reconheceu. — Experimente este — disse ele, mostrando-lhe um vestido. — Não gosto dele. — Experimente. Tenho certeza de que vai ficar bem em você. — Meus ombros são muito largos... — É por causa da natação. — Mas não negou que seus ombros eram largos. — Vá, vista-o. O vestido caiu-lhe realmente bem. A vendedora lhe trouxe uma infinidade de roupas para experimentar, com os preços afixados nas etiquetas. Locke gostava ou criticava e só uma vez pareceu irritado. Tirou um vestido das mãos da vendedora, pedindo-lhe que o levasse. — Rosa não. Odeio rosa. Mais tarde ele deu outra mostra de irritação quando foi pegar o carro no estacionamento e ela se demorou um pouco para ir ter com ele. Ficou espantada com a sua expressão. — Pelo amor de Deus, veja se não se atrasa tanto! — Que há com você? Não pode esperar só um minuto?

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Sempre a mesma. Não acha que tenho razão? — Ele pegou-a por um braço, arrastando-a para dentro do carro com impaciência, e esse foi um momento infeliz que um fotógrafo vigilante, no outro lado da rua, captou. A foto de Dru com um ar incrédulo sendo arrastada pelo impaciente e belo astro só faria com que começassem as especulações acerca da "lua-de-mel. Mas, apesar de não ser uma lua-de-mel no verdadeiro sentido da palavra, não deixou de ser agradável. Navegaram pelo mar, foram até as montanhas e, chegando lá, Locke usou um disfarce para passar despercebido, quando foram ver a vista da cidade da torre de Sydney. Pôs uma barba postiça que lhe tapava completamente a boca e lhe dava um ar de gentleman inglês. Numa manhã, enquanto tomavam o café, ele entregou-lhe um script. — Quero que leia e me dê sua opinião. — Mas eu não sei nada sobre filmes, Locke — Dru retrucou. — Você é inteligente. E honesta. Se achar que é uma bobagem, quero que me diga — observou ele, lembrando-a da primeira leitura que haviam feito. Ela ficou lisonjeada por saber que sua inteligência e honestidade eram apreciadas. Leu o script, Brother Blade. O papel principal era característico de Locke Matthews: robusto e dominador, quase um Ransome Man. — Acho que gosto, sim. Vai aceitar? — Prentice é um bom papel... — Travers é melhor. — É um papel secundário. — Um bom ator faria dele um grande papel secundário. Ele olhou-a fixamente e disse por fim: — Talvez eu não seja um bom ator... Locke trouxe-lhe outros scripts para que desse opinião e suas discussões confirmaram o que Dru já suspeitava: Locke Matthews começava a duvidar de sua capacidade de fazer outra coisa que não o estereótipo do Ransome Man. Procurou entre as fitas de vídeo e não encontrou nenhum de seus filmes. Poucas pessoas acreditariam que um ator não possuísse cópias de seus próprios filmes. Foi a uma locadora e alugou um vídeo do único filme que ele fizera antes de Ramage. Estava vendo-o quando Locke chegou dos ensaios. — A que está assistindo? — Sentou-se numa cadeira e reconheceu a fita. — Oh, é um filme horrível. Foram seis semanas de exteriores perto de Birdsville. Lembro de ter-lhe contado sobre os mosquitos, o pó e as barracas que voavam. Pelo menos rendeu algum dinheiro, o que foi muito bom, na época. Mas por que esse filme, Dru? É uma história antiga. Nem sabia o que estava fazendo naquele tempo. Dru olhou-o e exclamou: — Estava representando! Locke recostou-se na cadeira e, algum tempo depois, estava inclinado para a frente, com as mãos nos joelhos. Dru levantou-se, deu-lhe o controle remoto e saiu. Ouviu-o rebobinando a fita e revendo partes dela, tomando consciência de Locke Matthews ator.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Três semanas depois, durante uma conversa casual, Dru revelou a Locke que Eric lhe contara sobre seu casamento com Eva. Ele mostrou-se bastante aborrecido. — Quero que saiba que não tive a intenção de lhe esconder nada que tivesse importância. Depois de tanto tempo, esse casamento já faz parte do passado. Mas Dru sabia que não era bem assim. Locke podia enganar a si mesmo, mas ela o ouvira gritar o nome de Eva durante seu sono agitado, lamentando sua perda mesmo após nove anos. Não havia fotos dela no apartamento e Dru ficava aliviada com isso. Eric apareceu no final da lua-de-mel. Dru estava no terraço quando ouviu Locke abrir-lhe a porta. Os irmãos conversaram sobre Acapulco e o diretor de Hollywood que Eric visitara em Montego Bay, aproveitando a ocasião. Era outro mundo, pensou Dru, e tinha que entrar nele de qualquer forma. O interlúdio com Locke tinha sido maravilhoso, mas agora precisava se habituar ao mundo irreal de um astro famoso. — Você terá que ir a Los Angeles, Locke — ouviu Eric dizer e o irmão protestar. — Há uma cláusula no contrato, Locke, e eles precisam refilmar algumas cenas. Mas não irá demorar mais do que uma semana. — Só irei se Dru for comigo — disse Locke. — Talvez possamos ficar em sua fazenda em Santa Mônica... — Claro, claro... As faces de Dru estavam coradas quando entrou, não tanto por ir a Hollywood, mas por Locke querer que ela fosse junto. Eric veio ao seu encontro, pegou-lhe nas mãos e beijou-lhe no rosto. — Dru, minha querida. Está com um ótimo aspecto. Que tal fazer um pouco de café enquanto tratamos de negócios? Dru fez o café bastante irritada, mas achou que a culpa era toda sua. Eric tinha razão em acreditar que ela era do tipo que precisava sair correndo para a cozinha enquanto os homens tratavam de assuntos importantes. Afinal, ele só a vira calada e parecendo não entender nada do que se passava à sua volta. — Quero falar com Bradman sobre Brother Blade — estava dizendo Locke, quando ela voltou com o café. — Tinha certeza que iria gostar do papel de Prentice. — Não quero fazer o Prentice. Quero o Travers. Eric ficou atônito. — Isso é impossível Locke. Está ficando louco? É um papel secundário e já devem ter escolhido alguém para ele. — Diga a Bradman que estou interessado nele. — Seja realista, Locke. Eles têm um bom orçamento, mas não podem pagar seu cachê e escalá-lo num papel menor. — Eu baixo o preço. — Um papel menor por menos dinheiro? Está brincando, não? — Virou-se para Dru. — Por mais que os jornalistas se esforcem, nunca conseguem retratar o verdadeiro senso de humor dos astros... — Ser um astro quase me custou meu senso de humor. Às vezes chego a

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton pensar que seria mais feliz sendo um ator menos conhecido e com cachê mais baixo... — Mas isso já aconteceu, e pelo que me lembro você não parecia mais feliz naquela época. — Sim, mas agora já não preciso tanto de dinheiro e quero aproveitar para fazer apenas o que me agrada. — Todo mundo precisa de dinheiro, mano. E a inflação e o imposto de renda são muito altos — declarou Eric. Dru reparou que esfregava o rubi como se esse gesto lhe trouxesse sorte. — Eu também gosto de ganhar dinheiro. Seria um idiota se não pensasse assim, mas quero papéis mais consistentes. Tenho consciência de que há anos não represento a sério. — Õra, que coisa mais boba. — Eric riu. — Já esqueceu que ganhou o prêmio de melhor ator de televisão há dois anos com Ramage? — Eric, sabe tão bem quanto eu que represento o mesmo papel há anos. Às vezes disfarçado com barba ou outros acessórios, mas basicamente é o mesmo: continuo representando o Ransome Man! Dru fez com que eu visse a verdade, dizendo que tudo que fazia no cinema e na televisão era exatamente igual aos comerciais da Ransome, com a única diferença que não me barbeava. Eric olhou para ela, espantado. Por um momento ela pensou que estava furioso, mas depois ele riu. — Essa de fazer tudo menos a barba é ótima, querida. — Depois olhou para Locke. — Vamos esclarecer as coisas: compreendo que possa se aborrecer de vez em quando, mas isso é normal. Até com Alec Guiness isso deve acontecer... Depois de fazer a peça, tenho certeza de que vai se sentir melhor. Quando ficar cansado de atuar ao vivo todas as noites, vai dar graças a Deus por ser um ator de cinema. È o que sempre digo, esse é o segredo do negócio: descobrir o que pode fazer e fazê-lo da melhor forma. Dru suspirou. Eric estaria tentando convencer Locke de que ele não seria capaz de fazer outra coisa a não ser o mesmo herói estereotipado? — Talvez seja hora de repensar minha carreira, Eric. O sucesso é muito enganador e não nos dá tempo de pensar. Não quero acabar fazendo plásticas e transplantes de cabelo para poder continuar representando o Ransome Man. Acho que tenho capacidade para apagar essa imagem e quero tentar. Estava tão insensível que nem consegui perceber o potencial de Travers. Foi preciso que Dru me apontasse. Eric olhou para ela novamente. Apesar de tentar disfarçar, dava para perceber sua contrariedade. Afinal, Eric era o conselheiro de Locke e ela gostaria de não ter seu nome mencionado. Mas Eric se recompôs, pelo menos aparentemente. — OK, se é isso que quer, falarei com Bradman. Já leu o script de Conexão"? — Já e não cheguei ainda a uma conclusão. Se fosse antes, talvez eu nem pensasse muito, mas acho que só estão interessados na minha imagem. Eric meneou a cabeça e riu. Depois, dirigiu-se a Dru. — Veja se consegue mudar um pouco a cabeça de meu irmão. Eu ando

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton perdendo os cabelos, tentando entrar dentro de meus ternos, e este felizardo queixa-se de sua boa aparência. — Deu um soco de brincadeira no irmão e Locke fingiu ficar amuado. — É o que eu digo, a vida é injusta... Dru riu de sua expressão e deixou-os a sós. Mais tarde, quando Eric se preparava para ir embora, pôs-lhe um braço em volta dos ombros e perguntoulhe: — Leu o script de Conexão, Dru? — Sim, e ele tem pouquíssimos diálogos; dá mais importância aos carros de dubles que aos atores. — Estou surpreso por tê-lo compreendido. Os scripts de Drepar são bem difíceis... Dias mais tarde. Quando soube que iam se encontrar também com um produtor-executivo, protestou. — Ora, vamos. Sei que não é tímida. — Não, mas não tenho vontade de ir. — Não vai demorar muito e gostaria que estivesse a meu lado. Ele continuou insistindo e Dru concordou em ir. Sentiu-se pouco à vontade no restaurante, apesar das roupas novas. Pensou que ao lado de Locke estaria deslocada em qualquer lugar, mas naquele hotel luxuosíssimo, com decoração dos anos trinta, a sensação aumentava ainda mais. Chegaram mais cedo e tomaram um aperitivo enquanto Locke lhe falava sobre seu convidado, Granam McCann. — Quando não é ele a pagar a conta, é capaz de comer por dois e beber duas garrafas inteiras do melhor vinho. É bastante influente e tem muitos contatos dentro da indústria. Eric chegou de braços dados com duas louras voluptuosas, fazendo uma entrada triunfal. Largou uma das moças momentaneamente para levantar a mão e cumprimentar o dono do restaurante, que já cumprimentara Locke discretamente, para não atrair a atenção das outras pessoas. No entanto, todas as cabeças se viraram para Eric. — Martin, meu velho amigo, prepare esta para mim. — Ele apontou uma das lagostas que estavam dentro de um tanque, e Martin veio correndo com um garçom para ver a escolha de Eric, supervisionando o trabalho de tirarem o animal do tanque com o auxílio de uma pequena rede. Depois, indicou uma mesa para as moças, que lançavam olhares esperançosos para Locke. — Temos de falar de negócios, minhas queridas. Peçam o que quiserem. — Eric levou as mãos aos lábios e atirou-lhes um beijo. Depois, virou-se para Dru, — Querida, está com uma roupa muito bonita. — Beijou-a, deu uma palmada amigável no ombro de Locke e pediu uma bebida ao garçom: — O de sempre, Mike. Dru teve um almoço como nunca tivera. Graham McCann era um homem enorme que parecia destinado a ficar mais gordo ainda. Conforme Lócke lhe contara, comeu por dois e bebeu tanto sozinho quanto eles todos juntos. Havia um constante vaivém de pessoas que conheciam Eric e que pareciam não conhecer Locke tão bem quanto gostariam. Ele sorria e conversava com seu

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton modo gentil. Comparando os dois irmãos, Dru pensou com ironia que, enquanto um tinha a aparência de um astro, mas não o modo de agir, o outro tinha o modo de agir mas não a aparência... — Queridos... — Uma mulher muito perfumada e cheia de jóias parou na mesa deles, e Eric levantou-se para cumprimentá-la. — Philomena, você está linda! Precisa me contar onde descobriu a fonte da eterna juventude. Ela riu, recebeu um beijo de Graham e virou-se para Locke, suspirando quando ele lhe deu um beijo no rosto. — Quando o vejo, desejaria que houvesse uma fonte da juventude. Ah, se pudesse voltar a ter trinta anos... Philomena falava como se soubesse que já fora uma mulher bastante desejada. Dru reconheceu-a. Philomena apresentara programas de televisão, escrevera um sem-número de colunas em revistas femininas sobre moda e outros assuntos. Comentava-se que já tinha mais de sessenta anos e seu passado era convenientemente mantido em segredo, sabendo-se apenas que era de origem européia. Sua maquilagem era tão carregada quanto seu sotaque. — Mas pense nas pessoas que beberiam da fonte de juventude — murmurou Locke, enquanto fazia sinal ao garçom para trazer outra cadeira. — Harve Randall, por exemplo. Os olhos da mulher faiscaram no meio dos cílios postiços exageradamente longos. Dava para perceber que esse nome não lhe trazia boas recordações. Fez alguns comentários sobre Randall com tanta avidez que Dru ficou boquiaberta. Philomena virou-se para ela e pegou-lhe na mão. — Então esta é sua mulher, Locke querido. — Encarou Dru com um olhar fixo durante algum tempo, enquanto continuava segurando sua mão. — Deixe-me adivinhar seu signo — ordenou ela e fechou os olhos por um momento. — Câncer ou Leão, acho. — Câncer — confirmou Dru. — Mas como adivinhou? Philomena levantou a mão e uma infinidade de jóias brilharam. — É segredo... — Ainda está fazendo horóscopos? — Eric riu. — Não acredito em nada disso. — Mas deveria, Eric. Talvez o ajudasse a ganhar nas corridas de cavalos com mais freqüência... Eric se engasgou com o vinho e ela continuou, imperturbável, olhando fixamente para Dru. — Câncer.. . Sensível e apaixonada e às vezes escondendo seus sentimentos dentro da concha, como o caranguejo, Mas não esqueça que esse animal possui fortes pinças. Você sabe segurar as pontas quando se vê ameaçada e não é do tipo que foge diante de situações difíceis. Dru engoliu em seco e olhou para baixo, fixando-se na mão dela. — Por que será que tenho a impressão de que você também é de Câncer? Philomena olhou para ela, espantada. — Gosto dela! — falou alto para que toda a gente no restaurante ouvisse. Insistiu em saber a data de nascimento de Dru para lhe fazer um mapa

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton astrológico, depois beijou todo mundo e foi embora. — Precisa fazer também meu mapa qualquer dia, Philomena! — gritou-lhe Eric e depois murmurou quando ela já não poderia ouvi-lo: — Grande chata! Já era tempo de se retirar. Mas talvez as indústrias de cosméticos fossem à falência se o fizesse... Graham pegou um táxi e os três foram para o estacionamento. O Porsche reluzente de Eric estava estacionado perto do Rover de Locke. Uma vez mais, Dru sorriu com a ironia... — Pelo que Graham me contou, podemos pedir o dinheiro, que quisermos pelos novos episódios de Ramage. — Não estou muito inclinado a fazer mais episódios da série. Sei que isso significa perder alguma publicidade, mas... Eric ficou paralisado. — Não pode desistir de Ramage. Nunca falou nisso... Locke pareceu não reparar na palidez do irmão. — Essa idéia está na minha cabeça desde minhas férias. Não acha que devo parar com Ramage, Dru? -— ele pediu sua opinião como se ela fosse muito importante, mas Dru achou conveniente não falar o que pensava na frente de Eric. Seu cunhado olhava-a quase em estado de pânico. —Bem, você sabe que não gosto da série, mas não sei o suficiente sobre assuntos artísticos para dar opiniões sobre se deve ou não assinar o contrato. — Está bem, temos tempo para pensar sobre isso — respondeu Locke. Era óbvio que ela estava incluída nesse "nós". Dru ficou um pouco aborrecida. Não queria criar atritos entre Locke e o irmão. — Certo, falaremos de novo sobre o assunto — disse Eric, ao mesmo tempo que o manobrista trazia seu Porsche. — Quando teremos de ir para Hollywood? — perguntou Locke. — Uma semana depois que sua participação na peça terminar. A propósito, a estréia é daqui a algumas semanas. Como e, mano, está nervoso? — E como... Tenho a impressão de que os críticos vão me malhar... — Foi você quem insistiu para fazer a peça, lembra? Vai estar presente na estréia, Dru? — Claro que sim! — Locke respondeu por ela. — Vai ser a primeira aparição pública de Dru como a sra. Matthews. — Não fique assustada com isso, querida. O mundo do espetáculo é uma selva, mas nós dois estamos do seu lado, não esqueça — reforçou Eric. Dru, que não estava nem um pouco preocupada com isso até então, começou a ficar. Eric despediu-se deles e dirigiu-se para seu carro. As duas louras reapareceram, olharam de modo provocante para Locke e entraram no Porsche. O manobrista e outras pessoas que estavam lá olharam para o carro quando este se afastou e também para Dru e Locke. — Sabe que eu acho que seu irmão é mais Ransome Man que você? — Deve ser porque ele se barbeia com mais freqüência... — observou Locke, divertido.

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CAPÍTULO VII Dru sempre sonhava um dia se casar e por amor. E uma coisa ia ficando clara: o amor que sentia por seu marido aumentava dia a dia. Gostaria de ter a coragem de ir ao seu quarto e dizer-lhe que queria que fossem algo mais do que amigos. Mas não tinha coragem. Sua confiança ainda estava muito abalada. Os anos a fio que passara sendo considerada o patinho feio da família deixaram marcas profundas na sua autoconfiança. — Esta noite... — disse Locke durante o café da manhã, no dia da estréia da peça. Dru olhou para ele com um misto de excitação e apreensão ao mesmo tempo. — Esta noite... o quê? Um sorriso apareceu em seu rosto. — Esta noite vamos abrir aquela garrafa de champanhe francês que eu guardei na geladeira há um mês. — Para comemorar a estréia da peça? — Quem sabe possamos fazer outra estréia... Naquela noite ela sentou-se na platéia do teatro ao lado de Eric e Vanessa. — Está gostando da peça? — perguntou-lhe a moça, durante o intervalo. — Não parece estar se divertindo muito... Dru quase corou. Seus olhos não se desviaram de Locke e quase nem prestara atenção" na peça. Estivera ocupada em recordar um cenário mais de sua preferência... Locke tinha guardado duas taças de champanhe no congelador... ela deixara uma camisola nova de seda em cima da cama... — É porque já sei a peça de cor — comentou sorrindo. — Tive o maior trabalho em ler as falas da "glamourosa Rhonda"... Melanie Cross, que fazia o papel de Rhonda, esteve bem, e Locke, que se sentira muito nervoso à tarde, dominava o papel muito à vontade. Dru ouvira muitos comentários elogiosos à sua representação, destacando o brilhantismo de seu lado cômico, até então desconhecido do público. Guardou os comentários para si e lhe contaria quando chegassem em casa. Rindo, entrariam abraçados no elevador. Talvez Locke á carregasse no colo para seu quarto e então... Dru olhou para o palco e perguntou-se se isso iria acontecer. "Se ele não me beijar", pensou, "eu o farei." Mordeu os lábios com a idéia de ser ela a tomar a iniciativa... Sim, estava decidida! Vestiria a camisola de seda e... Será que ele iria procurá-la? Aplausos. — Não vai aplaudir? — perguntou Vanessa. A cortina se fechou e Dru voltou à realidade, juntando seus aplausos ao do público. Quando foram para os bastidores, Dru foi apresentada ao resto do elenco. Olhavam-na com mais curiosidade que surpresa, certamente confirmando que ela era tão comum quanto se dizia. Não importava. Tinha uma comemoração a fazer dali a pouco...

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Locke deixou-a com Eric e Vanessa, e foi para seu camarim trocar de roupa. No meio de tanta gente que havia nos bastidores, Dru perdeu os dois de vista e ficou sozinha, perto das portas dos camarins. Ouviu o riso de Vanessa vindo de dentro de um deles, mas não entrou, porque a idéia de ficar num lugar apinhado de gente do teatro que mal conhecia não lhe agradou. A voz clara de Melanie Cross, que era mais conhecida por alguns comerciais de televisão do que por seus trabalhos no teatro, manteve-a onde estava. — ...quem sabe ela tenha algumas qualidades escondidas. Mas não há dúvida de que ele soube planejar bem as coisas. Toda a atenção dirigida para seu casamento acabou com os comentários sobre o caso Dorothy Falkland e... — fez uma pausa — ...ajudará a manter em segredo o caso dele com Sandy. — Sandy? O romance ainda continua? — perguntou outra mulher. Sandy era outra mufher? Dru sentiu-se gelar. — Quer dizer que o caso deles não acabou... — insistiu a outra. — É óbvio. Conhece Sandy e já viu a mulherzinha de Locke. Que lhe parece? — Melanie deu uma gargalhada. — Melanie... — observou Eric, sem muita convicção. — Isso são boatos, querida... As fofocas e os comentários maldosos continuaram e subitamente a conversa deu-se num tom mais baixo, como se de repente tivessem se lembrado que "a mulherzinha" poderia estar por perto. Quando Eric apareceu na porta do camarim e a viu, Dru se afastou rapidamente. Havia repórteres aguardando os atores na porta de saída dos artistas. Alguns dos atores do elenco se juntaram a eles, mas o alvo era Locke. Um fotógrafo bateu uma foto dele com Dru. — Que acha da peça, sra. Matthews? — perguntou um repórter. Era uma pergunta de ocasião que exigia uma resposta do mesmo teor. Todos olharam para ela, e Dru hesitou, tentando disfarçar a frustração e a raiva que sentia. E todos aqueles ensaios muitas vezes até tarde da noite... Olhou para Melanie Cross, que sorria com indulgência diante à hesitação da mulher de Locke. — A peça? Acho que é uma bobagem... — falou Dru claramente, e viu que as pessoas a olhavam, atônitas, incluindo o repórter — ... mas muito bem representada. Locke quase a jogou para dentro do carro. — Por quê? Por que diabo deu aquela resposta? Por acaso é alguma sabotadora? — Disse o que pensava. A fúria dele não abrandou, mesmo quando chegaram em casa. Andava de um lado para o outro, parecendo um vulcão prestes a explodir. — Já pensou bem que seu comentário pode acabar com a peça? — Oh, como poderia minha opinião influenciar alguém? — Porque você é minha mulher, sua idiota! — vociferou ele, sacudindo-a. — Mulher... Casou comigo para encobrir sua vida desregrada. Queria ter um escudo contra as fanzocas insistentes. E, agora que falei o que penso, vem me

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton ensinar... — Acha mesmo que isso é tudo o que quero de você? — Locke começou a arrastá-la para o quarto e ela defendia-se lembrando-se de como imaginara entrar vestida sensualmente, conformada com o fato de ser a segunda no coração dele. A essa altura já se via muito mais distante que isso. — Quer dizer então que a vida imita mesmo a arte? Já o vi fazer essa cena dezenas de vezes em seus filmes — ironizou ela, enquanto ele a jogava para cima da cama. — Ótimo! Sua representação está perfeita... — Fique caiada, ou não respondo por mim, Dru. Locke a segurava fortemente, sustendo o rosto dela entre as mãos fortes, preparando-se para beijá-la. Dru se lembrou de qual era seu real papel na vida dele quando os lábios masculinos esmagaram os seus. A emoção do beijo não conseguia apagar de sua mente que ele lhe mentira e permitira que fosse aos bastidores do teatro para ser objeto de escárnio para seus colegas. Dru conseguiu desvencilhar-se dos braços fortes. — Meu primeiro namorado beijava bem melhor e só tinha doze anos... — conseguiu dizer enquanto Locke passava uma mão sob sua blusa e lhe acariciava os seios. — Sorte sua! — sussurrou no seu ouvido enquanto lhe tirava o sutiã com um gesto rápido. — Talvez ele fosse demasiado novo para isto... Dru experimentava uma vasta gama de sensações. Não conseguiu segurar um suspiro de prazer, mas tentou desviar o corpo para escapar dele. Locke deixou que ela se levantasse e depois agarrou-a por trás. A vontade de se render ao fascínio dele a fazia frágil. Aproveitando-se disso, ele arrancou-lhe a blusa e beijou seu pescoço, acariciando-lhe os seios com as duas mãos com sofreguidão. Estava sendo cada vez mais difícil resistir à sensação de prazer e desejo que a inundava... — Dru, querida — murmurou ele, abraçando-a com mais força. Virando-se para ele, ela começou a abrir os botões da camisa. Afagou a pele macia do seu peito. Era tão agradável de tocar... O zíper de sua saia se abriu com o toque suave e experiente das mãos dele. Locke ficou algum tempo acariciando a cintura, os quadris... O desejo a invadiu por inteiro. Era tão fácil para ele fazer com que ela o desejasse... E Locke sabia disso. Poderia ter suas belas namoradas à vontade e, quando quisesse, faria amor com a mulherzinha que ficava apenas com as sobras das outras. Teve vontade de gritar: "Eu te amo", mas conteve-se, com medo de ferir-se ainda mais. — Dru quero que fique aqui comigo... Eu gosto de você. — Deitou-se sobre ela, a respiração descompassada. — Eu te amo, querida... Sam cotumava lhe dizer que nunca aceitasse ser a segunda em nada. Talvez ser a segunda não fosse tão ruim. Mas ser a terceira já era demais. Enrijeceu o corpo ao ouvir as palavras tão sonhadas: "Eu te amo..." Como os homens podiam banalizar palavras tão belas num momento de euforia sexual? Nem chegou a dizer: "Eu te amo, Dru", mas apenas o impessoal "querida", que era sempre muito conveniente para não haver a possibilidade de troca de nomes.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Não quero fazer amor com você — disse ela com firmeza. — Como está casado comigo sei que tem o direito de insistir. No entanto, espero que não o faça. Um silêncio constrangedor caiu entre eles. — Do que está falando, Dru? — Esqueceu-se de que me prometeu que tudo seria como eu quisesse? Pois bem, quero que tudo fique como está. — Mas você também me deseja! Acredito que tanto quanto eu... — Isso o surpreende? Sou apenas um ser humano e você é muito atraente... Os lábios de Locke se abriram como se fosse dizer alguma coisa, mas ele se conteve. Dava para notar o esforço que isso lhe custava. — Compreenda que não posso aceitar essa situação. Sexo apenas... sem amor. Ele olhou-a mostrando-se magoado e desiludido. — Pensei... você estava diferente durante as últimas semanas... É por causa do Michael, não é? Ainda o ama? Responda! — ele insistiu vendo que ela continuava calada. "Eva e Sandy", pensava ela. E quem mais haveria ser? Mas ele tinha o atrevimento de querer que ela esquecesse suas antigas ligações. — Sim — mentiu ela por fim, e ele virou-lhe as costas. Locke passou o dia seguinte falando apenas por monossílabos. A única vez que mencionou a noite anterior foi quando abriu a porta da geladeira e viu a garrafa de champanhe. — Vou deixar o champanhe e as taças onde estão. Pode ser que mude de opinião — disse secamente. Um jornal reproduzia o comentário dela sobre a peça. E o crítico dava-lhe razão. "Como a esposa do ator principal observou, a peça é uma bobagem, mas muito bem representada. Não encontro melhores palavras para definir o espetáculo do que as da sra. Matthews, que parece não ter perdido seu sentido crítico." Dias mais tarde, ficou claro que nem o seu comentário nem as críticas eram suficientes para afetar a popularidade da peça, mas o humor de Locke não melhorou muito. Aquilo não era comum nele... Eric apareceu no dia seguinte, olhando alternadamente para o irmão e Dru, com desconfiança. — Não vai ficar aborrecido com Dru por causa daquele comentário, não é, Locke? Afinal, ela não está habituada a lidar com o mundo do espetáculo. Com certeza estava muito nervosa... — Não fez nenhum mal à peça, portanto é melhor esquecer isso — cortou Locke, olhando para ela. Eric sorriu: — Seu comentário foi certamente inoportuno, mas com o tempo vai se habituar a se relacionar com a imprensa. Ele estava tentando ser simpático, mas ficara mais aborrecido do que aparentava. Locke continuou frio e distante até o sábado seguinte. Dru foi à varanda para

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton regar as plantas, quando ouviu um coro de vaias vindo da rua, seis andares abaixo. Para sua surpresa, o barulho vinha de cinco freiras, agrupadas no passeio em frente e olhando para o apartamento de Locke. Reparou que as freiras pareciam muito novas, estavam maquiladas e de alguma forma deslocadas dentro do hábito. Locke passou pela sala, em direção à cozinha, com a calça do pijama tão caída como sempre, o cabelo revolto e cocando o peito. Dru lembrou-se da primeira manhã em Sea Winds. — Algumas de suas admiradoras estão aí fora — disse ela. — Como estão vestidas? — De freiras. — Essa eu não posso perder. — Ele foi para a varanda com ela e olhou para baixo. As moças o viram e ficaram excitadas. Ele meneou a cabeça e riu. — Devem gastar um dinheirão alugando roupa. Uma vez apareceram com trajes futuristas... — Fui vaiada pelas freirinhas — Dru disse. — Quanto tempo acha que vão ficar lá embaixo? — Da última vez esperaram durante três horas que eu saísse, e rasgaram minha melhor camisa quando entrei no carro. Mas acho que agora temos uma solução para nos vermos livres delas. Só preciso de sua ajuda. — Mas é para isso que estou aqui, não é? Para afastar os inconvenientes e evitar que as pessoas continuem tentando adivinhar quem está na sua cama... — disse ela, pensando na ironia: a única pessoa que não estava definitivamente nela era sua própria mulher... — Então vamos lá. — Locke puxou-a gentilmente por um braço para o parapeito da varanda. — Se vai fazer uma pose para elas, acho melhor bocejar ou fazer alguma careta para afastá-las. Daqui não poderão ver sua barba por fazer nem a confusão em que está seu cabelo. — Não vou fazer uma pose para elas — ele levantou uma das mãos.e acenou para as moças. — Nós vamos. Acene para as fãs, querida. Ele pegou-lhe a mão e levantou-a. As moças ficaram caladas. Depois ele abraçou Dru e deu-lhe o tratamento cinematográfico: olhou dentro dos olhos dela durante alguns momentos e beijou-a. — Hummm. Tem gosto de laranja — murmurou ele de encontro a seus lábios. — Pode se considerar muito feliz. Podia ter gosto de limão... Ele riu, continuando abraçado a ela: — fá estou acostumado com o sabor. Não... não vá: ainda não acabamos — pediu ele quando Dru fez menção de ir embora, e beijou-lhe novamente. Desta vez ela também o abraçou, retribuindo o beijo. Ser a segunda ou a terceira não importava muito no momento. — Veja: funcionou! — Olhou com satisfação para a rua. As fãs com seus hábitos pretos e brancos tinham ido embora. Ele examinou-a dos pés à cabeça e fez uma reverência: — Obrigado, Dru. Foi o fim de seu mau humor, apesar de nunca mais terem tido a mesma

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton camaradagem que marcara os dias da "lua-de-mel". Quase não o via. Com raras exceções, ia dormir muito tarde depois do espetáculo e passava as tardes no seu clube de ginástica ou lendo no escritório. As corridas matinais pelo parque também foram canceladas. Era o fim de muitas coisas boas, pensava Dru com tristeza. Uma vez, depois de uma hora andando de um lado para o outro dentro do apartamento, convidou-a para jogar squash com ele. Quase ganhou. Quase... Como jogadora de um clube amador em Brisbane, jogara muitas vezes com equipes muito boas, mas Locke estava em ótima condição e usou o jogo para se livrar da energia excedente. Deixaram a quadra rindo alegremente. — Você é excelente jogadora — observou ele, respeitosamente. Ela mostrouse reservada e não fez comentários. Quando voltaram para casa ele perguntou: — Que tal nadarmos um pouco e fazermos sauna para relaxar os músculos? — Seria ótimo. — Imediatamente ela foi vestir um biquíni e voltou, — Pronto! — Pode tirar o maiô se quiser. Reservei o lugar só para nós — disse Locke quando chegaram ao pequeno quarto decorado com simplicidade que dava para a sauna e a pequena piscina coberta do edifício. A porta de acesso estava fechada para os outros inquilinos. — Não, obrigada. — Não se incomoda se tirar o calção? — perguntou ele como se estivesse pedindo permissão... Dru encolheu os ombros. — Fique à vontade. Ele tirou o calção, sem parar de observá-la, enquanto ela se dirigia para a sauna, recusando-se a olhar para ele. O rubor de sua face poderia ser interpretado como excesso de calor. Depois de algum tempo, ela foi para a piscina sem esperar que ele a acompanhasse. Mas assim que entrou na água viu que ele se aproximava, olhando-a intensamente. — O que está esperando? Pensa que vou começar a suspirar só porque está nu? Locke mergulhou e Dru fechou os olhos por causa da água que foi lançada ao ar. A parte de cima do biquíni desceu um pouco e ela ajeitou-a, incomodada. — Tire isso — pediu ele, chegando perto dela. Com um gesto delicado desatou-lhe os cordões do sutiã e tirou-o, segurando-lhe os seios. Dru escapou dele mergulhando, mas Locke a seguiu e a abraçou debaixo da água, trazendo-a de volta à superfície. — Não, por favor, Locke — pediu ela sem muita convicção. Com as mãos sobre os seios dela, Locke a acariciava, torturando-a docemente. Dru tentou se afastar, indo até a beira da piscina, mas ele não deixou. Prendeu as pernas dela entre as suas e continuou aquele jogo sensual. Rendendo-se às carícias e correspondendo, ela também tocou aquele corpo que lhe despertava tanto desejo. Só quando viu a calcinha do biquíni ser atirada para longe é que reagiu.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Por favor, Locke, não podemos... Mas ele calou seus protestos com um beijo, abraçando-a com tanta força que podia sentir todas as partes de seu corpo totalmente nu contra o dela. — Não... Locke... — sussurrou contra seus lábios, quando o desejo se tornava insuportável. Ele soltou-a de repente e ela arrependeu-se de seu próprio pedido. — É refrescante, não? — Seu imbecil... — ela falou quando recuperou a voz. — Fez de propósito! — Ele usara sua experiência para levá-la a um estado de excitação quase insuportável para depois abandoná-la. — Claro que não foi por acaso. Só tem que me dizer se devo continuar ou não. Não? Talvez noutra ocasião... Dru saiu da piscina. — Fica ótima totalmente nua, sabia? Você tem um belo corpo — ele disse enquanto ela se enrolava na toalha. — Não se importa se eu ficar mais um pouco dentro da água? As coisas... hã... se alteraram um pouco depois que entrei na piscina e não quero embaraçá-la. Dru olhou-o e precipitou-se para a porta. A gargalhada dele ecoou pelo corredor, até ela fechar a porta. Locke cumprira seu compromisso com a peça, atuando apenas no primeiro mês da temporada. Outro ator ficaria com o papel durante as apresentações em Sydney e também na turnê por outras cidades do país. Agora teria uma semana para descansar e depois iria para Hollywood. Mas viajaria sozinho... Eric dissera-lhe que sua casa estava ocupada por alguns amigos que deveriam se demorar mais do que o previsto. Locke procurou argumentar sobre a situação de Dru, obrigada a ficar o dia inteiro dentro do hotel enquanto ele trabalhava, mas, o irmão não se mostrou disposto a mudar os pianos: não poderia correr o risco de deixar a mulherzinha do astro à solta em Hollywood, com seus comentários desajeitados... — Que vai fazer enquanto estiver fora? — perguntou ele a Dru durante o café da manhã. — Talvez vá para a casa da praia. Quero ver se a cabana de Sam está em ordem. Desde que haviam contratado uma imobiliária, para que cuidasse da cabana até decidirem o que fazer com ela, Dru não voltou lá. O corretor aconselharaos a demoli-la, argumentando que a cabana não valia nada e podia desabar de um momento para o outro. Apenas o terreno em volta podia lhes render um bom dinheiro. A extensão da propriedade de Sam a surpreendera. Sabia que o terreno não era muito pequeno, mas desconhecia que as terras em frente à praia, com exceção de Sea Winds, pertenciam todas ao velho amigo. Ele devia ter resistido a muitas ofertas para continuar vivendo sua vida simples e solitária e ela nunca saberia a razão disso. Poderia ter sido muito rico... Pensou na bela e sofisticada mansão da mãe de Michael, em Ascot, e sua

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton atmosfera gelada. De certa maneira Sam fora rico... — Dru... — Locke pegou sua mão e olhou-a como sempre o fazia quando ela pensava no amigo. — Estou bem. Só estava pensando na casa da mãe de Michael e como... — ela parou e ele soltou sua mão, inconscientemente. — Esqueça esse homem de uma vez por todas. Ele nem se lembra da sua existência. — Não, não era isso que eu... — começou por dizer, mas Locke a interrompeu. — Não quero falar sobre ele. E não quero que vá para a praia sozinha: não é seguro. — Tem receio que apareça alguém no meu quarto no meio da noite e me confunda com outra pessoa? — Só quero que volte lá na minha companhia — disse sem adentrar na provocação. Ela levou-o de carro até o aeroporto. Por alguma razão desconhecida deles, a imprensa estava lá à sua espera. Locke abraçou-a numa cena de amor que sempre fazia tão bem e ela se esqueceu que estava representando para os fotógrafos e colunistas. Depois ele foi embora, relutante em deixá-la sozinha à mercê da imprensa, que foi mais insistente sem a presença dele, e bem menos polida. Afinal ela não passava de uma apagada desconhecida, que se tornara famosa apenas por causa de seu casamento. Eric devia estar lá, mas não havia nem sinal dele. — Algumas pessoas acham que formam um casal muito estranho, sra. Matthews. Como explica seu casamento? — Não explico. — Por que se casou com ele? — Como Locke conseguia continuar sorrindo, ouvindo perguntas tão estúpidas? Dru fingiu surpresa. — Por quê? Pela sua inteligência, é claro. Ouviram-se risos. — O que as fãs querem mesmo saber é por que ele se casou com você... — Mas não é óbvio? Pela minha beleza, naturalmente. Mais risos. Dru começou a andar e eles seguiram-na. Eric chegou afobado, se desfazendo em desculpas. Impediu com firmeza que os repórteres continuassem com as perguntas. Quando se viram a sós, observou-a com curiosidade: — Você se saiu muito bem... — Pensou que não seria capaz? — Francamente, não. Deve ser mais forte do que pensei. Preciso falar com você, Dru. Vou acompanhá-la até sua casa. Dru não sabia a razão de sentir-se perturbada ao ver Eric segui-la no Porsche. A sra. Curtis estava lá, polindo as molduras das fotos num canto da cozinha. Fez café para eles e voltou para seu trabalho. — Creio que ouviu as palavras de Melanie no dia de estréia da peça. Queria estar com você para lhe explicar que não precisa se preocupar com Sandy... Eric pegou em sua mão e Dru baixou o olhar. Reparou que o anel de rubi não

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton estava no seu dedo. — Quero que acredite em mim, Dru. São apenas boatos sem fundamento — continuou ele. — O romance deles é coisa do passado... e eu não acreditava que Locke continuasse a vê-la depois do casamento. — Ela é atriz? — Não, minha querida. Sandy Craig é modelo e está na capa de uma revista de moda este mês. — Depois de um breve silêncio ele disse: — Ei, Van e eu vamos dar uma festa amanhã à noite. Não quer aparecer? — Obrigada, mas... — Não precisa me dizer... Já sei, pensa que Locke poderá não gostar se for sem ele, certo? — Errado. Pensando bem, acho que gostaria de ir. Como devo ir vestida: à vontade ou com vestido de noite? — Como quiser. Estarão presentes alguns nomes importantes, se entende o que quero dizer... Então, até amanhã, Dru. Por volta das oito...

CAPÍTULO VIII Eric morava numa casa elegante que ficava sobre um rochedo, na baía de Whale. Mas passava ali somente alguns meses durante o ano, quando, não estava nos Estados Unidos ou na Inglaterra, negociando os contratos de Locke. Vanessa morava com ele no momento. Locke lhe contara que Eric tinha faro para os negócios e adquirira algumas propriedades para os dois durante os últimos anos. Mas parecia que ia além disso... Enquanto ele a introduzia no burburinho da festa, Dru observava os caríssimos quadros que cobriam as paredes e as preciosas antigüidades colocadas estrategicamente aqui e ali. Ela parou em frente a uma parede cheia de retratos. Havia três enormes de Locke: em um usava a camisa aberta, deixando ver seu peito e sugerindo o próprio homem de ação; no outro, de smoking e olhar insinuante, representava o playboy; e no terceiro, vestido a rigor, vendia a imagem do refinamento. — Sempre pensei que os astros tivessem fotos como estas nas suas próprias casas. Locke não tem nenhuma — observou ela e Eric sorriu, mas não respondeu, quando se afastaram. Ele abriu uma porta e o som da música e o barulho das vozes atingiu-a em cheio, fazendo-a hesitar. Os convidados se encontravam à beira de uma piscina coberta. O enorme salão era adornado de plantas tropicais e algumas pessoas dançavam. Dru reparou que todas elas tinham algo em comum: estavam em traje de banho! Sentiu-se subitamente ridícula dentro de seu vestido longo azul-safira, bordado com pedras da mesma cor. — Deveria ter me avisado que era uma festa à beira da piscina. — Não avisei? Desculpe, devo ter me esquecido. Dru olhou-o aborrecida, pensando se aquele esquecimento não fora proposital.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Oh, não sei onde anda minha cabeça, às vezes. Van sempre fica furiosa comigo — ele desculpou-se sorrindo e levou-a até o bar, onde serviu-lhe vinho branco gelado. Apresentou-a para algumas pessoas, dizendo: "Esta é minha cunhada" e fazendo para ela um resumo elogioso da vida profissional de cada um. Dru sorriu pensando em sua desvantagem, parecia que seu único ponto de destaque era ser casada com Locke. Apesar disso, os convidados foram simpáticos com ela. Vanessa saiu da piscina e, olhando para o vestido de Dru, perguntou: — Oh, não vem nadar? Dru ficou intimamente furiosa, embora procurasse não demonstrar. Vanessa a olhava como se ela fosse uma perfeita idiota e não desse para entender o que o cunhado vira nela. Com toda a certeza as outras pessoas presentes deviam estar pensando o mesmo... — Se estiver com muito calor, pode usar um de meus biquínis e pegar uma toalha — ofereceu a cunhada. Dru pensou que quanto mais rápido trocasse de roupa seria melhor. Quando passaram pelo corredor, um homem parou na frente dela com ar inquisitivo: — Acho que o azul não lhe fica muito bem. Vestia um calção enorme que quase lhe chegava aos joelhos e se apresentou como sendo Mort Flanagan, figurinista, decorador, artista, escultor e escritor. — Confesso que nunca ouvi seu nome, sr. Flanagan. E, se ouvisse, certamente pensaria tratar-se de algum atleta ou boxeador — observou ela, brincando, e ele riu. — É o que acontece quando se tem um nome como Flanagan... meus antepassados só poderiam ser irlandeses... Desculpando-se por interromper a conversa, Dru foi se trocar. Os biquínis de Vanessa pareciam ter sido desenhados para as câmaras de Cannes, de tão sumários. Escolheu um e enrolou uma toalha em volta da cintura, esperando passar despercebida. Eric veio ter com ela quando saiu do vestiário. — Vai entrar na água, Dru? — perguntou e ela se virou, percebendo que quase todos os olhares se concentravam nela. — Vamos, mergulhe... Se não souber nadar, Gale a salvará. Uma gargalhada veio acompanhar o comentário. Aparentemente, era apenas uma brincadeira, mas serviu para que Dru se sentisse mais deslocada ainda. Gale foi testar a água. Vestia um maiô imitando pele de leopardo e tão cavado que suas pernas pareciam ainda mais longas. — Está quente — disse para Dru. — É melhor ficar neste canto, como eu, para não se afogar... — Mergulhou perto dos degraus, onde dava pé, e voltou a olhar para Dru, sempre com um sorriso nos lábios. — Algo me diz que Gale vai aprontar alguma — murmurou Flanagan para Dru. — Bem... creio que ela teve uma ligação com seu marido há muito tempo. Saíram algumas vezes juntos quando participou de um episódio de Ramage. Cá para nós, Gale tinha esperança de que a ligação continuasse tanto dentro como fora das telas, se é que me entende... O problema dela é que tem ambição

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton demais e talento de menos... — E, voítando-se para a outra, falou: — Adoro seu maio, Gale querida! — E tornou a comentar para Dru: — Eu sei, sou um cínico, mas tenho a desculpa de ser tão talentoso... — E modesto — observou Dru. Mais outra ex-namorada de Locke... O mundo parecia estar cheio delas. — Muito modesto... — concordou ele. Nesse momento ouviu-se um grito vindo da piscina. A cabeça da Gale aparecia e desaparecia na água, gritando por socorro. Dru tirou a toalha e nem parou para pensar por que razão uma pessoa que confessava não saber nadar se aventurava a ir para o lado mais fundo da piscina. Ainda ouviu Flanagan avisá-la: — Não vá, querida, ela está fingindo... Mas já era tarde: Dru mergulhara, sentindo-se uma perfeita idiota quando Gale voltou à superfície, rindo, enquanto todos que assistiam riam também às gargalhadas. Dru pensou em sair imediatamente da piscina, mas mudou de idéia. Ela pedira para ser salva; pois bem, seria! Com um gesto rápido, agarrou a outra, que ainda tentou se debater, mas Dru foi mais rápida. — Calma! Nada de histeria ou então terei de lhe dar uns tapas — disse, decidida. Era tão tentador... Gale foi trazida para a beira da piscina, sem poder competir com a superioridade de Dru na água. Obviamente, sua cena preparada não incluía salvamento. Pelo menos por uma mulher... Dru ficou em pé na frente dela. — Acham que irá precisar de respiração artificial? — perguntou, fingindo ansiedade, e Gale se levantou imediatamente. — Era uma brincadeira. Eu sou uma boa nadadora. Não estava me afogando... Dru abriu os olhos, desmesuradamente, fingindo surpresa. — Oh, não? Jura? Parecia tão real... Algumas pessoas em volta riram, e Flanagam sussurrou: — Tem certeza de que não tem nenhuma experiência de palco? — Pois representou muito bem na água. Realmente nada muito bem. Meus parabéns! — comentou outra pessoa. — Aprendi com meu pai — disse Dru. — Wes Winters. — Pelo amor de Deus! — Gale comentou no meio das conversas sobre as proezas do pai de Dru. — Se fizerem outro filme de Tarzan você terárnesmo chance. Tem ombros para isso, querida... Dru olhou para o maio de leopardo. — Oh, só aceitarei se você me emprestar sua pele. Foi um pequeno triunfo. Muito pequeno... Durante a festa Eric falava sobre corridas de carro, cassinos em Montecarlo e Macau, férias nas Bahamas, enquanto o verdadeiro Ransome Man era um homem simples e discreto. Tudo isso lhe parecia um pouco confuso. — Não sabia que era tão boa nadadora, querida — disse-lhe ele quando ela se preparava para ir embora. — Você sabe que sou uma pessoa discreta. Ah, essa sua cabeça... — brincou ela e o riso de Eric a acompanhou até o táxi. Mais uma vez se esquecera de

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton beijá-la... Mas Mort Flanagan não. Dera-lhe um cartão com o nome de um amigo cabeleireiro e dissera-lhe que fosse vê-lo, recomendando que não voltasse a usar azul, mas sim bege ou pêssego. — Não se esqueça! O amigo de Flanagan se chamava Drakos. Era magro e franzino, e usava um pequeno diamante na orelha. Levou-a para uma salinha particular e ficou observando-a durante alguns minutos. Por duas vezes Dru tentou abrir a boca, mas ele pediu-lhe com delicadeza para que se mantivesse quieta, como se ela fosse uma pedra que ele fosse esculpir. Depois, massageou-lhe a cabeça e encaminhou-se para uma assistente para passar xampu. Quando Dru voltou com os cabelos molhados, começou a cortá-los. Não lhe perguntou como queria o corte e Dru fechou os olhos quando viu grandes mechas de seu cabelo caindo sobre o penteador. Quando terminou, Drakos virou a cadeira para que ela pudesse se ver no espelho, com ar de um mágico que acabara de inventar uma fórmula. — Olhe! Agora podemos ver seu rosto. Dru engoliu em seco. Levou as mãos ao rosto, inteiramente a descoberto. De repente, ficara com um ar jovem e vulnerável, e sentia-se nua! Quando Drakos terminou de secar-lhe os cabelos, passou-a para a maquiladora. "Mort Flanagan", Dru pensou, "se eu não gostar do resultado, vai sever comigo..." Mas gostou! Quase nem se reconhecia: seus olhos pequeno e cinzentos pareciam maiores e brilhantes por causa dos cabelos curtos. — Drakos — disse por fim —, você é um gênio! Dru voou para Brisbane para passar alguns dias com Barry, Jane e as crianças. Eles gostaram de seu novo visual, mas pareciam inconformados, de certa forma. Como se ela tivesse rejeitado o papel para o qual havia sido escolhida há muito tempo. Gillian ficou menos surpresa, quando conseguiu vêla durante um intervalo entre seus compromissos. — Sempre soube que você poderia ficar mais bonita se descobrisse a maneira correta de se pentear e maquilar. E você descobriu! — Deu-lhe uma carta. — Ia colocá-la no correio para seu novo endereço. Parece a letra de Michael. A irmã havia acertado. Dru leu a carta, sentindo-se surpresa por um dia ter gostado dele. — Diz que vai estar em Sydney em breve. Me deu o endereço do hotel. Quer que vá almoçar com ele. — E você vai? Dru sorriu divertida. — Não sei, vou pensar! Desafiando o pedido de Locke, Dru foi para Sea Winds na noite de sábado. No domingo, pintou a placa com o nome do lugar e imaginou que teria poupado muita confusão se tivesse feito isso mais cedo: Shelley não teria ido embora e

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Locke não a teria beijado sob o céu estrelado de abril... A praia ficava deserta em setembro e a cabana de Sam trazia-lhe uma forte saudade. Foi colocar flores em sua sepultura e ficou lá algum tempo em silêncio. Quando entrou na cabana para despedir-se do lugar, olhou em volta: o cronômetro e o sextante já não estavam mais lá, pertenciam agora a Desmond, mas os seus tesouros sem valor continuavam todos lá, exatamente onde Sam os deixara. O dragão de madeira também, e Dru o pegou. Na parte de baixo viu a inscrição "SILLA" desenhada à faca. Recolocou-o no lugar, junto às outras coisas, e, como havia pó por todo lado, aproveitou para fazer uma rápida limpeza. Foi um gesto simples que a deixou emocionada. Fechou a porta e saiu dali correndo. Já estava dentro do avião quando percebeu que se esquecera de trazer o dragão. No dia seguinte, foi esperar Locke no aeroporto, usando um vestido cor de caramelo. Uma nova visita ao salão de Drakos desvendara-lhe os segredos da maquilagem para realçar a cor dos olhos e fazer com que sua boca parecesse menor. Ficou pensando o que Locke acharia da mudança, se gostaria ou não. Para sua surpresa, Eric desceu do avião em primeiro lugar. Talvez tivesse feito uma "pequena" viagem até os Estados Unidos... Estava com um terno muito bonito, mas era Locke atrás dele quem chamava a atenção. De jeans e camiseta aberta no peito, com um agasalho sobre os ombros e a barba por fazer, estava muito atraente, como sempre. Parou, olhando para Dru, parecendo surpreso, depois sorriu e correu a abraçála. — Tosquiaram-na? — Gosta? — Muito... Está contente por me ver? — Não sei... Poderia ter se barbeado no avião... Ele riu. — Agora sei que voltei para casa. Dru estava feliz e emocionada por rever o marido. — Está muito bonita. O que fez? — Era Eric quem perguntava e assobiava de admiração. — Achei os sapatinhos encantados de Cinderela... — Dru brincou, satisfeita pela reação deles. Quando Locke se afastou um pouco, Eric disse-lhe em voz baixa: — Foi bom ter seguido o conselho de Mort Flanagan. Locke me disse que gostaria que o fizesse. O sorriso dela desapareceu, isso explicava o interesse do outro. Teria Locke lhe pedido que a ensinasse a ficar mais apresentável? Eric foi junto com ele para o apartamento. — Arrumei um comprador para o terreno de vocês na praia. Locke já lhe contou? — perguntou Eric a Dru e ela o olhou espantada. — Ainda nem tivemos tempo para conversar, Eric — disse Locke. — Certo. Mas, desde já, saiba que sou contra a venda do terreno! — A casa não vale nada. Poderia fazer um bom negócio com o terreno, apesar

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton de haver problemas de drenagem perto — retrucou Eric. — Não estou interessada num negócio assim, Eric — cortou Dru. — Aquele lugar tem um grande valor sentimental para mim, por isso quero conservá-lo do jeito que está. Eric chegou perto dela e apertou-lhe a mão, como se estivesse acalmando uma criança birrenta. — OK, está bem, está bem... A casa é de vocês. Mas é preciso encarar os fatos: não demorará muito até que ela caia, se o fogo não fizer esse trabalho primeiro. Deveria pensar em vender Sea Winds também. Poderia falar nisso com seus irmãos, e com o dinheiro da venda poderiam comprar um apartamento em Surfers. Foi nessa altura que Dru chegou à conclusão definitiva de que não gostava de Eric. Tentara, mas não conseguira. De alguma forma ele sempre estava relacionado com más notícias. Eric ainda se demorou mais um pouco, fazendo recomendações a Locke sobre seus próximos compromissos, e depois retirou-se. — Que fez enquanto estive fora? — perguntou Locke, pegando a revista que Dru deixara em cima da mesa. O belo rosto de Sandy Craig estava na capa. Ele começou a folhear a revista, com naturalidade, como a confirmar que o romance deles já pertencia ao passado. — Coisas demais. Freqüentei algumas aulas de culinária e nadei um pouco... Ah, sua mãe virá passar alguns dias conosco em breve. Não mencionou o final de semana passado em Sea Winds. Quando chegasse a hora, falaria com ele, mas no momento estava sem vontade de discutir. À noite, o antigo pesadelo com Eva voltou a atormentá-lo e Dru foi afagá-lo, murmurando palavras de amor e conforto até que ele se acalmasse. Quando voltou para a cama, pensava na ironia do destino que a fizera amá-lo tanto, enquanto ele nem tomava consciência de sua presença. No dia seguinte, Locke voou para Melbourne, acompanhado por Eric, para discutir sua participação nos próximos episódios de Ramage. Ao contrário do que havia afirmado, não voltara a falar nisso com ela, embora não tivesse se mostrado muito entusiasmado com a idéia. Ficou surpresa quando Eric voltou sozinho, dois dias depois, dizendo que ele concordara em fazer os novos episódios da série. — Agora só falta assinar o contrato — contou ele. — Oh, já ia me esquecendo: talvez Locke se demore lá mais alguns dias... Apesar de aborrecida, Dru não se surpreendeu. Harve Randall escrevera na sua coluna: "Será apenas coincidência que o astro de Ramage e seu antigo amor estejam na mesma cidade?" Dru se perguntara quem seria ela. Tinha quase a certeza de que se tratava de uma modelo muito conhecida... — Já se decidiu a vender aquele terreno na praia, Dru? O comprador ainda está interessado...

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Você já sabe o que eu penso sobre isso, Eric — respondeu ela, com o pensamento perdido em divagações sobre Locke. — Oh, valor sentimental, não é? Mas precisa ser mais realista, querida, e concordar que pode ser um bom negócio. — Você fala como alguém que eu conheci. Ele também só via o lado prático das coisas. — Deve ser um homem que está bem na vida. — Oh, sim. Michael não é do tipo que se prende a sentimentalismos. — Michael? Um antigo namorado, querida? Ela não respondeu e, quando ficou sozinha, pôs-se a andar, agitada, pelo apartamento. Locke e sua amiga eram muito discretos, sem dúvida. Talvez nem saíssem do hotel com receio de serem fotografados. Depois ele voltaria para sua mulherzinha que o ajudava a manter a imprensa afastada. Acendeu um cigarro e olhou-se num espelho, admirando sua nova aparência. Sorriu com ar de desafio e tirou a carta de Michael da bolsa... Sentiu-se feliz e vingada com a reação do ex-namorado, ao vê-la no hall do hotel. Algumas pessoas se viraram para olhá-la enquanto ela caminhava com elegância e de cabeça erguida. Estava se habituando ao fato de não ser apenas a mulher de Locke Matthews, mas uma mulher bonita. — Dru, como você está linda! — comentou ele, quando se dirigiam para o restaurante do hotel. — É só a aparência, Michael. Por dentro sou a mesma. Foi um almoço aborrecido, em que ele contou suas promoções, a nova decoração da casa da mãe e as qualidades de sua noiva. E o assunto terminou aí, já que Dru não estava disposta a falar sobre sua vida com Locke. — Sabe, Dru, estou começando a pensar que cometi um erro a seu respeito. Sinto falta de seu humor, sabe? — disse Michael por fim, tocando sua mão. — Nã cometeu nenhum erro, Michael. Estava absolutamente certo. Nunca daria certo nada entre nós. Ela apertou a mão dele e foi assim que o fotógrafo os flagrou. O homem foi embora antes que pudessem detê-lo. Dru não se preocupou com o fato de Locke ver a foto. Afinal, os direitos tinham que ser iguais para ambos. Michael, ao contrário, ficou muito preocupado. — Quando me pediu que o encontrasse deveria ter contado com o risco da publicidade... Oh, mas não se preocupe, sua noiva compreenderá. E sua mãe também — ela falou, tentando acalmá-lo. Tinha quase certeza de que jamais voltaria a vê-lo de novo. Eric entrou atabalhoadamente no apartamento dois dias depois, quase derrubando a sra. Curtis. Estava transtornado. — Locke já voltou de Melbourne. Está na sauna — foi informando Dru. — Ele enlouqueceu...

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Não acho, Eric. Fazer uma sauna é muito normal. Ele não estava achando nada divertido. — Vejo que andou lhe dando mais conselhos, não foi? Dru não sabia do que ele estava falando, mas confirmou com um gesto de cabeça. Eric olhou-a com ódio. — Ele se recusou a assinar o contrato, foi isso o que aconteceu. Como pôde fazer isso comigo? — Estava desvairado e saiu batendo a porta, do mesmo modo que entrara. — Está tudo bem, sra. Curtis? — perguntou Dru, vendo que a mulher dera um passo atrás, assustada. — Ele está muito preocupado. Deve ser por causa do dinheiro de sua porcentagem na série. — Não acho. Eric é muito rico — Dru interrompeu a conversa. Não lhe parecia correto discutir a vida de seu cunhado com empregados. — O dinheiro nunca é suficiente para os que jogam e ele andou vendendo algumas coisas ultimamente. Meu marido trabalha para um leiloeiro... Philomena falara em cavalos. E o próprio Locke lhe contara que o irmão dorava cassinos e corridas de automóveis. Eric tinha um padrão de vida alto: uma casa em Sydney, outra em Santa Mônica, uma coleção de arte, os carros, além de gastar em restaurantes luxuosos e boates, fora as namoradas. Sim, a decisão de Locke deveria ter sido uma desilusão financeira para Eric, mas, mesmo assim, ela não encontrava uma explicação adequada para o ódio que vira em seus olhos. Locke estava calmo quando subiu e disse apenas que Eric os tinha convidado para uma festa na sua casa, na noite seguinte. — Temos mesmo que ir? — perguntou Dru, sem conseguir esquecer o ódio de Eric. — A decisão é sua. Mas, se não, gosta de meu irmão o suficiente para aceitar seu convite, faça-o ao menos como parte das suas obrigações... — Não é nada disso... — mentiu ela. — Faça um esforço, Dru. Ele notou sua frieza tanto para com ele como para comigo... Vanessa elogiou seu novo penteado e o vestido. — Espero estar vestida de acordo com a ocasião, desta vez, Eric. Trouxe algumas roupas extras e um maio, caso seja necessário — brincou ela. Eric riu. Mas desta vez a surpresa que lhe preparara era outra. Dru logo percebeu algo de errado no ar. Ouviu Eric sussurrar para o irmão. — Ela veio com Charlie, mano. Eu não sabia... Uma loura alta caminhou na direção deles com a expressão altiva, sem tirar os olhos de Locke. Era Sandy Craig.

CAPÍTULO IX

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— Querido! Soube que se casou. Suponho que devo lhe dar os parabéns... — E o fez, beijando-o na boca. Eric olhou para Dru como se pedisse desculpas. Era a segunda vez que a colocava numa situação constrangedora. Todos os convidados sabiam da relação que houvera entre Locke e Sandy, e ela tinha consciência de que mesmo com seu novo visual ficava em desvantagem perante a modelo. Eric e seus contratempos... Aconteciam com tanta freqüência... Esse encontro não fora apenas coincidência! Locke se desembaraçou de Sandy, tentando apagar as marcas de batom. Pôs um braço em volta de Dru. — Minha esposa, Dru. Esta é... Sandra. Dru sorriu, achando tudo muito engraçado. Locke estava blefando: com um pouco de sorte, talvez ela não associasse essa bela Sandra com alguém chamado Sandy, que ligava a toda hora, incomodando-o. E, se não tivesse ouvido Melanie naquela noite, talvez não associasse mesmo. — Oh, me chame de Sandy, por favor. Ninguém me chama de Sandra, querido. E você sabe disso... Dru sentiu uma certa satisfação com o rubor nas faces do marido. Locke se afastou rapidamente com ela, e várias pessoas vieram cumprimentála. Dru foi apresentada a um maestro, a um locutor de televisão e a uma cantora de cabelos alaranjados. Melanie Cross estava de braço dado com um homem que Dru também não conhecia. — Como vai? — perguntou ela, constatando a mudança de visual. — Deve se lembrar de mim, na peça... E como, pensou Dru, mas falou muito devagar, como se estivesse puxando pela memória: — Acho que sim... Mas gosto mais dos seus comerciais... — Locke puxou-a pelo braço. Devia estar indignado com a indelicadeza de sua mulher. Philomena fez uma entrada triunfal, cheia de sedas e pérolas. Seu cabelo estava mais vermelho que nunca e trazia uma enorme piteira na mão. Andou na direção deles. — Oh, a vida é tão cruel... — disse ela, acariciando o rosto de Locke. — Sempre que o vejo tenho pena de não ser mais jovem! — Pegou na mão de Dru, como fizera antes. Suas unhas estavam prateadas. — Como vai, querida? Ainda não terminei seu mapa, mas quero avisá-la para tomar cuidado com alguém que não é o que parece. Dru sorriu. — Mas todo mundo não é assim no meio artístico? — Você já sabe... Mas é o que está escrito nos astros, alguém esperando! Por enquanto, ainda no escuro... E tome também muito cuidado com o fogo, querida. Dru sentiu um calafrio na espinha. Havia mais alguém que a prevenira sobre o fogo e quem estaria esperando no escuro... Parecia o script de um filme de terror. Pegou um copo de vinho e ficou zanzando, ouvindo aqui e ali pedaços

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton das conversas a sua volta. — Locke, é verdade que vai ser o próximo James Bond? — Oh, não, meu caro doutor. — ... Tack talvez seja o próximo presidente do sindicato. — ... com um nome como Mad Max... Então recusei o papel. Mel Gibson fez um ótimo trabalho, não é apenas um rosto bonito. — Lorrae, querida, está ótima... E a noite continuou... Uma mulher cantou, sem acompanhamento nem aplausos. Um convidado passeava vestindo apenas uma tanga e com o corpo tatuado. Locke ficou sempre ao lado dela, parecendo o perfeito marido. No fundo, tentava apenas que sua mulher e a amante não se encontrassem. Mas não foi possível evitar. Dru estava no banheiro retocando a maquilagem quando Sandy entrou. Duas outras mulheres estavam lá também e olharam apreensivas para elas. Sandy fitou Dru através do espelho. — Tudo isso deve lhe parecer muito estranho, não, Dru? Quero dizer, este gênero de festa... — Não muito. Fui algumas vezes ao circo quando era criança. — As duas mulheres sorriram. — Será que não se sente um pouco como a Cinderela, casando com alguém como Locke? Suponho que deva estar sempre receosa que chegue a meia-noite... Era óbvio que estava sendo irônica, mas não conseguia disfarçar o ciúme que sentia dela. — E por que razão deveria me preocupar com a meia-noite? Quando ela chegar vou ter que ir para casa com o Príncipe Encantado... Sandy precisou retocar o batom dos lábios por duas vezes, antes de sair. As duas mulheres também foram embora e uma disse-lhe: — Bravo, Cinderela! Mas suas defesas estavam ficando esgotadas e Dru atrasou sua saída do banheiro enquanto pôde. Quando o fez, viu a cabeça de Locke no terraço e a de Sandy por perto, então virou-se rapidamente e foi para um corredor onde não havia ninguém. Parou por alguns momentos na frente das três fotos de Locke. Sem Locke, Eric poderia continuar vivendo bem, permanecendo dentro do negócio que parecia amar tanto, mas não com a mesma importância e autoridade. Continuou a andar e foi parar numa sala mobiliada com sofás chineses. A parede estava coberta de estantes cheias de objetos de arte. Dru pegou uma concha do mar e passou os dedos por ela, pensativa. Tantos anos fazendo papéis parecidos tinham tirado de Locke a confiança de que poderia fazer outra coisa também, e parecia que Eric tinha contribuído para isso. Teria arrumado aquele papel no teatro para convencê-lo de que não seria capaz de atuar tão bem quanto nos papéis estereotipados? Se o fizera, o tiro saíra pela culatra, pois o talento de Locke para a comédia fora elogiado tanto pelo público quanto pela crítica. A imagem do Ransome Man tinha sido

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton um pouco prejudicada com aquele papel cômico! E com a aquisição de uma mulher... Uma mulher que encorajava suas pretensões de fazer apenas trabalhos mais sérios, mesmo que isso significasse menos dinheiro. Menos dinheiro... Dava para imaginar como Eric ficara preocupado com isso. E com que rapidez escondera seu aborrecimento quando Locke mostrara o respeito pela opinião da mulher... Eric, pensou, estava valorizando demais sua influência. Locke já tinha vontade de mudar o rumo de sua carreira, antes mesmo de conhecê-la. O problema é que Eric lhe atribuía toda a culpa. Já estava bastante claro que ele tentara prejudicar o bom entendimento entre ela e Locke. Apenas coisas pequenas, mas importantes num casamento como o deles, mais precário ainda do que Eric podia imaginar. Uma palavra aqui, uma observação ali... A casa de Santa Mônica oferecida a princípio e logo recusada quando ele descobrira que ela não era tão tímida e boba quanto pensava; sua chegada atrasada ao aeroporto para que ela se encontrasse a sós com a imprensa; a insinuação que Locke pedira a Flanagan para lhe dar conselhos sobre a aparência. Mas havia mais: Eric esquecendo de lhe dizer que a festa era à beira da piscina, fazendo com que aparecesse de longo e se sentisse totalmente deslocada; tentando desmentir o caso entre Locke e Sandy, ainda que encorajando a conversa porque sabia que ela devia estar por perto. Apertou a concha nos seus dedos, consciente de que, mesmo que o rapaz tivesse feito com que ela ouvisse tudo acerca de Sandy, não estava inventando a história. O próprio Locke colaborara com as evasivas sobre os telefonemas dela. — Dru — chamou Locke atrás dela, tirando-lhe a concha das mãos e fazendoa voltar para ele. — Lamento por causa de Sandy. Quando ela continuou ligando para o apartamento, quis lhe dizer, mas você deduziu que era um homem, e eu deixei que pensasse isso porque... bem, porque assim não teria que explicar. É sempre tão sarcástica sobre minhas... — Mulheres? — Ela soltou a mão que ele segurava. — Já havia terminado tudo entre nós quando a conheci. — A julgar pelos telefonemas, ela não sabia disso. — Sabia, sim. Nós tivemos um breve... — Caso? Ele sacudiu-a pelos ombros, parecendo zangado. — Não há mais nada entre nós, se é isso que está pensando. Juro, Dru! E vou lhe dar umas palmadas de novo, se insistir no assunto. Não menti para você, apenas deixei que pensasse que era um homem. Foi você mesma que deduziu isso. — Também cheguei a outra conclusão e creio que infelizmente estou certa, desta vez. Talvez Sandy seja a pessoa muito amiga com quem você ficou em Melbourne. — O quê? — perguntou ele muito espantado. — Harve Randall citou há três dias na sua coluna que você se encontrava em Melbourne com um certo alguém. Teria sido coincidência, querido?

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Sim, mas ele não mencionou o nome da pessoa... — Que bom para vocês, não? — Eu fiquei em Melbourne para ver Hal Spencer. Nós estudamos juntos na N1DA. Hal estava sem trabalho e fiquei sabendo que os produtores, no início de Ramage, tinham pensado também nele. Eric tinha as negociações praticamente concluídas quando eu decidi, em definitivo, que não iria assinar o contrato. Como devia um favor a Hal, liguei para ele e acabei convencendo os produtores a lhe entregarem o papel. Em troca, me comprometi a fazer algumas participações especiais. Claro que Eric não gostou muito, mas vai acabar aceitando. — Quer dizer que não estava com Sandy? — Não a via desde março... Agora me explique uma coisa, se pensava que eu estava com ela em Melbourne há alguns dias é porque já tinha ouvido falar dela antes, e não apenas esta noite, como pensei. Quando descobriu? — Na noite da estréia da peça. Ouvi Melanie dizer que você tinha casado comigo para encobrir seu caso com Sandy; e, como recebera alguns telefonemas dela, achei que era verdade. — Melanie é uma idiota... e eu também. A noite da estréia da peça... Foi por isso que nossa comemoração foi um fiasco, Dru? Foi um boato malicioso o responsável pelo seu comentário azedo acerca da peça? E por que me recusar? Foi isso que deixou que eu imaginasse que ainda pensava em Michael? — As mãos dele afagaram-lhe o pescoço delicado e seus lábios procuraram os dela para um longo beijo... — O champanhe... vamos tomá-lo hoje? — OK, OK, já chega — disse Eric, rindo na porta. — Não posso admitir que meu convidado principal fique se escondendo para beijar a mulher, mesmo que ele seja o meu irmão. — Bem, nesse caso acho melhor irmos embora. Vanessa e Eric foram se despedir deles e este entregou a Locke um envelope com os mais recentes recortes de jornais. — Veja se há alguém este mês que quer processar... — brincou ele. — Ei, Van e eu vamos passar alguns dias numa praia do norte; não quer vir conosco? — Desta vez não — respondeu Locke pondo o envelope debaixo do braço e sorrindo para Dru. — Talvez passemos o final de semana em Sea Winds, terminando a pintura. — Gostou do outro final de semana lá, Dru? A água não estava muito fria? — perguntou Vanessa. Dru olhou para a moça, surpresa. Como teria ficado sabendo de sua viagem? Locke apertou seu braço e ela pensou que seu silêncio talvez lhe desse um ar de culpa. — Sim, a água estava fria. Deveria ter-lhe contado, Locke, mas não o fiz porque sabia que não aprovava minha ida lá, sozinha. — Oh, seu machista — acusou Vanessa. — Não se pode ser muito mandão nos dias de hoje, meu irmão. A maior parte das mulheres não gosta disso. E quem disse que ela estava sozinha? — Ele deu um passo para trás, admirando-a e deu uma gargalhada. — Aposto que

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton não conseguia mais esperar para mostrar seu visual. A Michael, por exemplo... Sentiu que Locke ficava gelado. — Oh, espere aí. Era apenas uma brincadeira — Eric fingia-se muito preocupado. — Ora, Locke, só porque Dru foi sozinha sem lhe dizer nada não quer dizer que... — começou Van. — Pelo amor de Deus, Van — gritou Eric. — Fique calada... Foi uma cena muito bem elaborada. E convincente. Tudo acontecera por acaso... Pelo menos era o que Locke pensaria. — Um final de semana fora, e pura e simplesmente se esqueceu de mencionar... — observou Locke, quando já estavam no carro. — Não me esqueci, não. Só não falei antes para não aborrecê-lo. — Se foi sozinha... — Mas é claro que estava só. Não me diga que acreditou no que Eric... — Ela se calou. Precisava lhe contar que Eric estava tentando afastá-los, embora não tivesse provas, mas receava que o marido a achasse neurótica e malintencionada, afinal era seu irmão... — Fui ver Barry e Jan, depois me encontrei com Gillian e aluguei um carro para ir até a praia. Pintei a placa de Sea Winds e limpei um pouco a cabana de Sam. Sei que isso pode parecer estúpido, mas limpei o pó de suas coisas e varri o chão... Ele estacionou o Rover e entraram no elevador. Dentro do apartamento, Locke atirou o envelope com os recortes para cima da mesa e começou a andar de um lado para o outro. — Estava enganado quando pensei que fora o ciúme que a havia feito me rejeitar na noite da estréia da peça? Foi por causa de Michael que não quis ir para Hollywood comigo e em vez disso preferiu se embelezar toda para ir ao seu encontro? — Eu não quis ir com você? Claro que eu queria ir mas, como Eric não podia nos emprestar a casa, você falou que não gostaria que eu ficasse sozinha num hotel. E pensei também que você e Eric tinham decidido que não era muito conveniente que eu fosse junto, depois do que dissera da peça. E se eu dei a impressão de estar relutante foi porque estava com ciúme de Sandy: pensava que tinha se encontrado com ela todas as noites depois dos ensaios e representações. — Humm, sempre me esqueço que tinha isso na sua cabeça. E não a censuro, Dru. Com minha reputação e a natureza de nosso casamento... — Ele chegou bem perto e o coração dela começou a bater com mais força. — Também sou ciumento, Dru, e só preciso que me diga que não viu Michael para eu parar de agir como um idiota. — Locke, sobre Michael, eu não... — "o amo mais", era o que ia dizer, mas Locke, cada vez mais perto, interrompeu. — Me diga... Ela pensou no almoço tedioso com Michael, no hotel dele. Uma coisa sem a menor importância. Mais tarde, depois de lhe provar a noite inteira o quanto o amava, lhe contaria a anedota que fora aquele almoço. Dru

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton pôs os seus braços em volta do pescoço dele. — Não, não vi Michael, e não tenho a menor vontade de vê-lo — sussurrou ela, e fez o que tinha se prometido na noite da estréia da peça: beijou-o! Locke ficou surpreso. Os lábios se tocaram, e ela inclinou a cabeça para trás, rindo de sua expressão espantada. — Sabe, já é hora de termos aquela comemoração... — murmurou ele. — Concordo. O champanhe já está há muito tempo no gelo. E eu também... — Temos todo o tempo diante de nós. Por que não... — ... vou para o meu quarto e visto algo mais confortável? — Dru, minha querida... quero lhe dizer... não, vá se trocar. Convido-a para um brinde no meu quarto. Foi cada um para o seu quarto. Era a última vez que fariam isso, pensou Dru, enquanto despia seu lindo vestido. Pôs algumas gotas de perfume e vestiu a camisola de seda, amarrando os dois cordões que uniam a parte de trás à da frente. Ele estava esperando na sala. O balde de gelo com a garrafa já aberta estava em cima da mesinha de mármore, assim como duas taças. Locke estava de costas para ela, vestido com um roupão curto. O silêncio que se seguiu à sua chegada fez com que se colocasse em guarda. Todo o seu entusiasmo desapareceu quando ele se voltou: seu rosto era uma pedra de gelo, e seu olhar acusador. Viu que tinha os recortes de Eric na sua mão. — Então não viu Michael... — disse ele, atirando a lista de recortes para uma cadeira perto dela. Dru pegou-os, virando as páginas, até que viu: "A elegante Dru Matthews, esposa do ator Locke Matthews e filha do antigo nadador olímpico Wes Winters, almoçando com Michael Pennington no seu hotel, recentemente..." Ela fechou os olhos. — Locke, ia lhe contar amanhã. Isso não quer dizer nada... Não é o que está pensando... — E jurou que não o tinha visto... — Locke, ele me escreveu para o endereço de Gillian, pedindo para me ver, e eu não achei que havia mal algum. — Oh, e ia me contar! Suponho que também me contaria sobre o final de semana... Quantas coisas mais esqueceu de mencionar, Dru? Ela estava gelada. A magia desaparecera novamente. — Estamos no mesmo ponto, não é, Locke? Nem me contou que eu iria ser sua segunda esposa, nem mencionou Sandy. — Mas você e Michael... Não conseguiu resistir a lhe mostrar o que tinha jogado fora? "A elegante Dru Matthews"... Será que ele veio correndo para admirá-la, agora que já adquiriu o glamour de ser casada comigo? Eric tem razão: você mudou! Ouvir o nome de Eric foi a gota d'água... — Talvez seja melhor pensar duas vezes antes de dar crédito ao que seu irmão diz. Se não fosse por causa dele, estaríamos agora bebendo champanhe e

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton fazendo amor. — Eric? — Foi como se lhe tivesse dito que os marcianos tinham invadido a Terra. — Que tem isto tudo a ver com Eric? — Tudo! — gritou ela. — Fez com que Sandy me humilhasse e aparecesse entre nós, mas isso não deu certo. Induziu Vanessa a mencionar meu final de semana. E aposto que foi de propósito que lhe deu os recortes hoje... — Dru parou. Ele a olhava como se ela estivesse louca. Mas já que começara era melhor continuar. — Ele está tentando nos separar, Locke. Se não fosse Eric, não teria ouvido Melanie falando sobre você e Sandy. Tentou fazer com que me sentisse deslocada no teatro. E conseguiu! Foi Eric que não quis que eu fosse com você para Hollywood, e quando voltou fez-me pensar que você tinha pedido a Mort Flanagan para me dar alguns conselhos sobre minha aparência, porque estava envergonhado de mim... Locke deu um passo para trás. — Meu Deus... sua ingrata! Ele fez o melhor que pôde para deixá-la à vontade: convidou-a para uma festa enquanto eu estava fora, apresentou-a a outras pessoas e até a desculpou quando falou mal da peça. Mesmo quando vi sua foto ao lado de Michael estava convencido de que apenas mentira quanto ao fato de vê-lo. Mas tentar sujar o nome de Eric... Além de meu irmão, é um amigo que me ajudou nos piores momentos de minha vida, que lutou para que eu conseguisse chegar ao sucesso... Deve ter intenções muito pérfidas para fazer essas calúnias, Dru. Ela ficou lívida quando ele chegou perto dela e começou a soltar os laços que uniam as duas partes da camisola. Tocou-lhe os seios e passou um dedo por seu corpo. — Há menos de dez minutos eu a desejava com tanto ardor que estava ficando louco. — Calmo, ele fechou a camisola e amarrou os laços. — Agora, acho que prefiro um uísque... Depois dessa noite, passaram a se tratar como se fossem dois estranhos. Por fim, Dru fez a única coisa que estava ao seu alcance: foi ver Eric. Uma secretária, obviamente linda, introduziu-a no seu escritório. A mesa de Eric era pouco menor que uma piscina, com uma escultura esquisita em cima, um arranjo de flores e algumas pedras pintadas, que deviam ser obra de Vanessa. Filas de prateleiras e um bar cobriam inteiramente duas paredes, e fotos enormes de Locke cobriam a outra. A cabeça dele, com cabelos escassos, fazia um cruel contraste com as fotos. — Olá, querida — disse ele maquinalmente, sem se dar ao trabalho de mostrar sequer um sorriso. — Descobri seu plano, Eric — disse ela com frieza. — Bravo, já não era sem tempo. Pensei que chegaria a essa conclusão quando manipulei Sandy. Ela ficou alarmada. Ele nem ia se dar ao trabalho de negar. — Tenho certeza de que Locke vai gostar também de saber... Ele sorriu.

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Se eu fosse você, pensaria duas vezes antes de falar mal do querido irmãozinho dele... — Seu sorriso aumentou quando Dru engoliu em seco. — Ah, vejo que já descobriu isso pelos seus próprios meios... Garota estúpida! — Ele sacudiu a cabeça. — Que lhe disse a meu respeito? O canalha do Eric tentou me humilhar nas suas festas? Fez com que me sentisse deslocada algumas vezes? Não conseguiu nada, não é, boneca? — Então admite que tentou me humilhar... — Claro! O pessoal do meio é muito poderoso. No começo achei que você não iria causar nenhum problema. E, se tivesse ficado caladinha no seu canto, como no dia do casamento, em vez de pôr idéias idiotas na cabeça de Locke, teria se saído melhor. Dru sentiu um calafrio na espinha. — Mas descobriu que eu sabia me cuidar, no meio dos seus amigos cínicos e condescendentes, não foi? — É, fiquei desapontado com você, boneca. Tenho muita pena, querida, mas vai ter que deixar Locke e ir embora. A calma dele a irritou. Alguém esperando, dissera Philomena. Mas não mais no escuro... — Não vou, não. Philomena estava certa. Eu seguro o que quero e não fujo diante de situações difíceis. — Aquela louca, Que sabe ela? — Sabe o que eu sei, Eric! Não vou deixar Locke! — Vai deixar, sim. Em primeiro lugar, nunca lhe pertenceu verdadeiramente. Tentei avisá-lo, mas às vezes ele é mais teimoso que um cavalo. Quando a vi não acreditei que ele a tivesse escolhido entre todas as mulheres. E teve a coragem de me contar que você ainda gostava de um antigo namorado... O idiota nem tinha consciência de que as mulheres esqueciam os outros homens por causa dele. — Ele a encarou com desdém. — Não acha que foi uma boa idéia insinuar o nome de Michael ao mesmo tempo que mencionava seu final de semana? Seu silêncio deve ter feito com que tudo parecesse muito ilícito... Não é, boneca? — Suponho que alguém me viu no aeroporto... — Um de meus amigos. — Tem algum? — Ora, ora. Não abuse, Dru. Ela fez um esforço para se acalmar. Seu olhar parou nas fotos atrás dele. Uma era de Ramage. Reconheceu o carro usado no seriado: um Porsche vermelho... Lembrava-se agora de que o carro de Eric também era um Porsche vermelho... — Acho que Hal Spencer vai fazer um ótimo Ramage — comentou ela, testando sua reação. Eric quase deu um pulo da cadeira, e seu rosto expressava um misto de fúria e frustração. — Ninguém irá substituí-lo. Locke é Ramage. — Foi! — Suponho que terei de lhe agradecer por isso. Você e sua cabecinha suburbana... — Ele baixou o tom da voz. — Tinha certeza de que ele assinaria

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton o contrato. Deixou-me pensar que o faria e me enganou para fazer um favor a um amigo. — Parecia ter enlouquecido e Dru chegou a sentir pena dele, até que Eric a fitou com um ódio incontrolável. — Tudo por sua culpa! — Locke toma suas próprias decisões. Já tinha decidido parar de fazer Ramage antes de me conhecer. — Mentira! — berrou ele, como um louco. — Enfim, Eric, é preciso encarar a realidade. Acabou-se a história de Ramage e Ransome Man. Para Locke... e para você! — Eu o criei... — gritou ele, alucinado. — Eu o criei e não vou deixar que você acabe com anos de trabalho. — Você é o Ransome Man, não é, Eric? Criou a imagem e seu irmão deu-lhe vida na tela; mas você vive através dela. É por isso que não suporta a idéia de Locke fazer trabalhos mais sérios: além do dinheiro precisa da imagem! Mas Locke é mais humano e se cansou dela. Desista, Eric... Me afastar agora não vai fazer muita diferença. E não pretendo abandonar Locke! — É o que veremos. Mas agora compreendo que preciso trabalhar em cima dele, em vez de você. — Ele é seu irmão! — exclamou ela, enojada. — Como pode dizer isso? — É para o bem dele. Locke sabe que tudo o que fiz foi sempre pensando nos interesses dele. Desde que éramos crianças. "Desde que foi crescendo, feio e comum, e suas namoradas achavam o irmão mais novo bem mais interessante", pensou ela, sentindo pena dele. Por acidente, encontrara um modo de lidar com seus complexos: ao preparar uma campanha publicitária para um cliente, desenhou o homem de fantasia que gostaria de ser, que milhares de homens gostariam de ser, e pôs na sua criação tudo que invejava no irmão. Não era de admirar que Locke tivesse ganho o papel do Ransome Man. Fora escrito para ele... — E se eu contar a conversa que tivemos a Locke? — Ele não vai acreditar... — riu Eric. — Como sabe que não tenho um gravador na minha bolsa? Dru desviou-se para trás, mas ele foi mais rápido. Agarrou a bolsa, jogou todo o seu conteúdo no chão e devolveu-a vazia. — Desculpe o mau jeito, mas tinha que ter certeza. — O tom normal dele assustou-a mais que os momentos de violência. Ele voltou para sua mesa enquanto ela pegava as coisas do chão com mãos trêmulas. — Mamãe virá nos visitar em breve — disse Eric como se nada tivesse acontecido. — Ela sempre passa alguns dias com Locke e outros comigo. Portanto, creio que nos veremos durante algum jantar em família quando Van e eu voltarmos do norte. Quando saiu, a secretária dele estava passando batom nos lábios. Se não tivesse sido por causa daquela loura, pensou Dru com ironia, Locke nunca teria ido para Sea Winds... Dru não conseguia deixar de pensar em Eric durante os dias que se seguiram:

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton ele precisava urgentemente de ajuda! Mas como poderia fazer Locke entender isso, sem parecer estar denunciando-o? Eric continuaria com seu modo de agir, sempre amável, diante de todos, sem parar de destilar sutilmente seu veneno sobre ela. Pensou em abordar o assunto com Irene quando ela chegasse. Mas como dizer a uma mãe que seu filho havia sucumbido ao mundo de fantasia que criara? Daria a impressão de estar louca... Não havia outra alternativa senão esperar que Eric desistisse. Entretanto, seu casamento estava numa situação de impasse e evitava ficar em casa quando Eric aparecia. As suspeitas sobre Michael e a antipatia dela pelo irmão estavam matando o afeto que Locke sentia por ela... Quando Gillian apareceu um dia em Sydney, Dru quase lhe contou o inferno que sua vida se tornara. Mas o encontro fora rápido e a história era muito longa.. Resolveu nem tocar no assunto. Gillian estava com um novo namorado e continuava tão desinteressada por Sea Winds como sempre. Contara-lhe que Barry tivera uma proposta interessante para vender a casa, e ela já concordara por antecipação. — Barry não quer vender porque ouviu dizer que vão drenar o terreno e construir um cassino. Eu não acredito. Há anos que falam nisso e nunca acontece nada. Mas, se você concordar em vender, Barry fará o mesmo. — Quem fez a oferta? — Oh, sei lá, uma companhia de que nem recordo o nome. Diga que concorda em vender, Dru... Dru meneou a cabeça e Gillian suspirou. — Lá se vai meu apartamento em Hamilton... Barry ficou feliz quando ela lhe telefonou no dia seguinte e ficou sabendo que Dru partilhara de sua opinião. — Se esse projeto se concretizar, Sea Winds vai valer uma pequena fortuna. É melhor esperar para ver o que vai dar — aconselhou ele. Dru estava deprimida. Não queria segurar a casa por especulação, mas porque gostava dela. Constatou com amargura que os boatos sobre o projeto talvez correspondessem à verdade. Duas ofertas, uma sobre o terreno de Sam e outra sobre Sea Winds, indicavam um súbito interesse pelos terrenos em frente à praia que não poderia ser apenas coincidência. Se esses projetos se concretizassem, Sea Winds seria vendida, assim como a cabana de Sam, sem que ela pudesse fazer nada. Gillian usaria sua parte para comprar o apartamento em Hamilton; Barry iria investir o dinheiro, sem dúvida; e ela teria uma boa soma em sua conta bancária. E Sea Winds, com as recordações de sua infância, e onde conhecera Locke, desapareceria para sempre... Eric e Vanessa foram para uma praia no norte e Dru desejou que eles ficassem lá por várias semanas, em vez de uns poucos dias. Quem sabe algum ciclone os atirasse para o mar alto, quando velejassem, jogando-os para uma ilha deserta onde não pudessem prejudicar ninguém... Observou com um sorriso que Vanessa iria gostar disso: nenhum batalhão de louras para competir com ela...

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CAPÍTULO X Dru estava sozinha na noite em que recebeu um telefonema do corretor que tomava conta da propriedade de Sam. Uma hora atrás, contou ele, a cabana queimara completamente e não restara nada. Tudo fora reduzido a cinzas! Quando os bombeiros chegaram, não havia mais nada a fazer. Dru desligou e, como uma sonâmbula, foi para a janela e ficou a olhar para o céu. Quando voltasse a Sea Winds, não restaria mais nada para lembrar-lhe de Sam. Estava chorando quando Locke voltou para casa. Contou-lhe então o que havia acontecido e os braços dele a envolveram com um carinho que há muito não manifestava. — Eu também sinto muito, Dru... — Todas as coisas dele... Por que não trouxe comigo? Queria trazer o dragão e esqueci. Como pude me esquecer de trazê-lo? Ele confortou-a, e Dru se fortaleceu ao sentir seu calor. Apesar de tudo, Locke não lhe era completamente indiferente. Fingiram estar tudo bem entre eles quando Irene chegou e a atmosfera durante esses dias ficou agradável. Dru dormiu no quarto dele, para que Irene dormisse no seu. Foi uma sensação estranha partilhar o quarto com Locke. Havia um toque de intimidade nas roupas colocadas juntas, o travesseiro dele junto ao dela... Na primeira noite, ele chegou enquanto ela estava se despindo e, quando notou seu olhar indeciso, Locke comentou: — Não precisa se preocupar. Não vou tocar em você. Vai dormir em paz esta noite. Aliás, como sempre acontece, não é? Na manhã seguinte, ele saiu cedo do quarto. — Aula de esgrima — respondeu a Irene quando ela perguntou aonde ia. — Meu Deus, Lachlan. Vai fazer um papel de espadachim? — Quem sabe? É esgrima teatral, coreografia. Faz bem aos reflexos e é sempre bom aprender algo novo. — Ele teve o mesmo velho pesadelo esta noite — comentou Irene quando ele saiu. — Você escutou? — Bem eu o ouvi gritar: "Não... não..." e então pensei que estivesse lutando contra seus avanços, querida — brincou elas, mas logo ficou séria. — Suponho que já sabia sobre Eva. — Não muito. Era bonita? — Oh, sim. Bonita e alegre. — Irene olhou para sua expressão e meneou a cabeça. — Não, minha querida, não é o que está pensando. Se ele ainda sonha com Eva é por causa da forma como ela morreu... Oh, claro que ele a amava, e muito. Estava com vinte e quatro anos e ela com vinte e um, e não tinham um centavo, mas eram felizes. Lachlan combinou se encontrar com ela depois de

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton Eva sair do trabalho. Fora fazer um teste e tinha se atrasado um pouco. Quando chegou perto da rua onde tinham combinado o encontro, havia um carro capotado, polícia e uma multidão em volta. Passou pela multidão continuando a procurar por Eva, achando que ela estaria dentro de alguma loja, cansada de esperar por ele. Foi quando ouviu alguém falar que uma moça fora atropelada mortalmente... — Oh, não.. . — Dru cobriu o rosto com as mãos. — Ele não queria pensar que poderia ser Eva. Um policial até lhe perguntou se ela estava usando um vestido rosa, e ele chegou a jurar que Eva não tinha nenhum vestido com essa cor. "Ela não veste rosa", gritara ele na primeira noite em Sea Winds. Era uma negação da cor que poderia identificar sua mulher. Lembrava-se também que não deixara a vendedora da loja lhe mostrar um vestido rosa. E a tinha censurado por fazê-lo esperar, talvez imaginando outro acidente em outra esquina. — Há muito tempo que ele não tinha esse pesadelo, mas agora... — hesitou Irene, olhando para Dru. — Quem sabe o que fez sua mente voltar ao passado? Creio que um sentimento de culpa. Ele costumava dizer que, se tivesse chegado na hora marcada, ela não teria morrido. Ou talvez seja o medo de perdê-la, agora que ama alguém de novo. "Ama alguém de novo", repetiu Dru mentalmente. Gostaria de acreditar nisso. — Moças decentes são raras na vida de um homem como Lachlan. Certamente isso se tornou mais difícil depois que ficou famoso. Agradeço a Deus por aquelas duas semanas que passou na praia com você... Pôde vê-lo como realmente é e ele encontrou alguém de quem estava precisando. Naquela noite, Dru teria de sorrir e ser simpática pára Eric, se quisesse continuar era paz com Locke e Irene. O cunhado voltara do norte e insistira em dar um jantar de família. Locke chegara cedo em casa, naquela tarde, trazendo um ramo de flores. — É igual ao pai — comentou Irene para Dru. — Quando Johnny ficava bebendo com os amigos, trazia flores para me consolar. Portanto não queria nos convencer que passou a tarde inteira esgrimando, Lachlan. — En garde, madame! — Ele pegou um gladíolo e empunhou-o para Dru, como se fosse uma espada. — Vai se atrever a brigar com um homem por matar sua sede? En garde... — Avançou para Irene, com uma mão na cintura e o gladíolo na outra, imitando a pose de Douglas Fairbanks e tocando a orelha da mãe com a flor. — Vai se render, madame? — Oh, Lachlan, adoraria vê-lo como espadachim — riu Irene. — Não acha que ficaria ótimo, Dru? — Concordo plenamente. Poderia deixar crescer a barba e evitaria ter que se barbear durante meses. Ele acariciou o queixo de Dru. — Ah, minha senhoria... — brincou ele. Ao entrar no quarto mais tarde, Locke deparou-se com uma cena que já

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton estava ficando corriqueira: Dru despia o vestido e, na pressa ao ouvi-lo entrar, precipitou-se, esquecendo de abrir o zíper. Ouviu sua gargalhada. — Deixe-me ajudá-la! Ela não podia vê-lo, mas sentia-lhe os dedos tocarem seu pescoço, abrir o zíper e despir-lhe o vestido, de modo que ela ficou com os braços no ar. — Obrigada — disse ela, corando ao ver o olhar dele fixo no corpo quase nu. A bebida dera-lhe um brilho sexy e preguiçoso nos olhos e ele estava muito atraente com jeans e camiseta. — Importa-se que use agora o banheiro, Locke? Ia tomar um banho... Ele meneou a cabeça e, encostando um ombro na parede, numa pose familiar, perguntou: — Não me importo nem um pouco. Quer ajuda? — Fale baixo. Sua mãe pode ouvir... — Essa é sua única objeção? Dru ia pegar uma toalha, mas ele a segurou. — Você está bêbado... Ele nem respondeu. Abraçou-a e, com um suspiro, acariciou-lhe o rosto com gestos suaves. Seu beijo foi selvagem. Não era o amante experimentado, mas um rapaz imaturo, tentando lhe dizer algo... Dru retribuiu o beijo, desejando que não fosse apenas inspirado pela bebida. — Desculpe — murmurou logo em seguida, largando-a. — Prometi que não voltaria a tocá-la, não foi? Achei até que já não me importaria... — Locke, eu não amo Michael. Creio que nunca o amei... — Claro... — Ele pareceu ficar sóbrio de repente. Pegou uma toalha e dirigiuse para a porta. — Eu não amo Michael, seu casmurro... — insistiu ela querendo gritar, mas se lembrando da mãe dele. — Eu amo você! Mas a porta já se fechara. Ele tomou banho no outro banheiro e dormiu um pouco, pois bebera além da conta. Quando saíram para ir à casa de Eric, Locke já estava novamente controlado e distante. Eric e Vanessa foram perfeitos anfitriões como sempre. Mais ele que ela: Vanessa parecia um pouco alheia. De certa forma, Dru sentiu pena dela, apesar de ser cúmplice dos esquemas de Eric. Devia amá-lo bastante e suas chances de ter uma relação permanente com ele pareciam muito remotas... Talvez ele até já a tivesse mandado embora, pensou Dru, observando os esforços dela para comer. — Aquele comprador ainda está interessado no seu terreno da praia. E aumentou o preço, mano. Acho que deveria pensar melhor no assunto. Como era persistente quanto ao terreno de Sam, pensou Dru. E quem seria o insistente comprador? Talvez alguém que tivesse ouvido os rumores do projeto de construção... Quem sabe era o mesmo que fizera a oferta para comprar Sea Winds... Talvez fosse o próprio Eric o misterioso pretendente. A sra. Curtis tinha dito que ele vendera algumas coisas: o anel de rubi não estava mais no seu dedo há muito tempo e ela reparara que um dos

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton quadros mais valiosos da casa dele já não ocupava mais o seu lugar. — Pois é, mano. Foi uma pena ter acontecido aquilo com a cabana do velho. Mas o corretor falou que mais cedo ou mais tarde aquilo iria ocorrer. Deve ter sido um choque para você, Dru. Sei o quanto estava ligada àquele lugar... — Se pensa que agora vou concordar em vender, está muito enganado. E não pense que Locke poderá me convencer — disse ela perdendo a paciência com a hipocrisia de Eric. Irene olhou-a com ar de desaprovação, Locke suspirou e Vanessa parecia estar cada vez mais alheia a tudo. — Dru, querida — comentou Eric de um modo paternalista, fingindo-se levemente ofendido. — Não deve levar isso tão a sério. Sou responsável pelos negócios de Locke e não estaria agindo bem, se não o avisasse de uma oferta como esta. — Nossos... — sorriu ela, mesmo sabendo que estava parecendo arrogante. — A metade dessa propriedade me pertence. E nós decidiremos o que fazer com ela. — Por favor, Dru, vá com calma! — exclamou Locke. Irene murmurou algo e tentou mudar o tema da conversa. Nessa altura, a empregada de Eric veio retirar os pratos de sobremesa e, por sugestão de Irene, foram apreciar a coleção de arte dele. Passaram pela piscina, para que pudessem admirar uma escultura que estava lá, depois seguiram Vanessa. Dru era a última da fila, completamente deslocada. Seguiram para uma sala decorada com mobília oriental e com estantes cheias de objetos de arte e conchas do mar. Dru estava olhando para elas, quando se lembrou das palavras exatas que respondera a Eric, quando ele falara pela primeira vez em vender a propriedade de Sam: "Aquele montão de lixo pertenceu a um amigo e, enquanto estiver de pé, ninguém mexerá no terreno!" Enquanto estiver de pé... Neste exato momento seu olhar se deteu em uma das prateleiras e ela mal acreditou nos próprios olhos: ali, entre conchas e berloques, estava o dragão de madeira que Sam esculpira para ela! Seus olhos se encheram de lágrimas, mas ela logo as reprimiu. Precisava analisar com clareza a situação, senão poria tudo a perder. — Onde conseguiu isto? — perguntou para Vanessa, com voz trêmula. Locke seguiu seu olhar. — Oh, eu... o comprei no norte. É lindo, não é? Já reparou nesta estatueta? Também é muito bonita, não acha? Dru não olhou para a estatueta que a cunhada segurava nas mãos. — É uma das esculturas de madeira de Sam — disse ela, virando-se devagar para Locke. — O dragão! Como ele veio parar aqui? Devia ter se queimado na cabana... — Oh, é apenas um pedaço de madeira, querida — disse Eric, como se ela estivesse falando coisas banais e óbvias. — Mas pode ficar com ele, já que a faz lembrar do velho. Ele não sabia, pensou Dru. Ele não sabia que Vanessa os denunciara ao

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton trazer aquela peça de madeira sem valor. — Tem o meu nome escrito por baixo — disse ela temerosa, sentindo pena de Eric. E mais ainda de Locke, quando ele pegou no dragão de madeira e o virou. — Silla... — Seu polegar tocou nas letras. — Mas como... — Oh, eu reparei que tinha algumas letras escritas, mas não é o seu nome... — comentou Vanessa. — Meu nome é Drusilla. Sam me chamava de Silla. Fez-se um silêncio mortal... — Não sabia que Silla era o seu nome — disse Vanessa em voz alta. — Não o teria tirado se soubesse... Eric virou-se para ela furioso. — Sua idiota! Você não avalia a bobagem que fez? — Era lindo e não resisti. — Sua compostura caíra totalmente. — Oh, Eric, nunca deveríamos ter feito aquilo. Eu avisei que não ia dar certo... — Cale a boca, Van! — O que fizeram? Pode me explicar, Eric? — perguntou Irene. — E, por favor, quer parar de gritar? — O que ela quis dizer, Eric? —- perguntou Locke. — Estiveram na casa de Sam? O que é que não deveriam ter feito? — A expressão de seu rosto era austera, distante. — Ora, Locke, eu posso explicar tudo — tentou emendar Eric com um sorriso desesperado que enojou Dru. — Não valia nada. Era um monte de lixo e pretendia fazer-lhe um favor livrando-o daquilo... Dru virou o rosto, incapaz de continuar olhando para Eric e sentindo a dor no rosto de Locke. Seu movimento pareceu detonar o mecanismo desequilibrado da cabeça de Eric. — Estou feliz por ter incendiado aquilo. Era algo que você amava e isso me deu um prazer redobrado ao destruí-lo. Estragou tudo, nunca deveria ter se aproximado de Locke... — Fez um movimento ameaçador na direção dela, mas Locke o impediu. Vanessa agarrou-lhe o braço, chorando. — Desculpem... — ela falou, chorosa. — Devia ter feito alguma coisa antes, mas tinha medo de perdê-lo. Irene caiu pesadamente numa das cadeiras, arrasada. — Deixe-nos a sós, Dru — ordenou Locke e ela saiu, com o rosto inundado de lágrimas. Não havia pegadas na areia. Era madrugada e uma neblina marcava o horizonte. Ali, o mês de outubro não era muito diferente de abril. Os dias começavam frios e ficavam mais quentes por volta do meio-dia, mantendo um clima agradável. As gaivotas gritavam, voando sobre a areia branca. Dru olhou para as cinzas no meio dos algodoeiros chamuscados, através da janela do seu quarto. Era seu terceiro dia ali, e agora já podia olhar para os destroços da cabana de Sam sem se chocar. As gaivotas pareciam gritar de fome. Reparou um garoto que deveria ter uns doze anos, curvado com o peso de

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton sua cesta de peixes com um caniço de pesca ao ombro. Ele parou e atirou algo para o ar. As gaivotas se precipitaram para disputar o peixe, e o rapaz continuou sua caminhada, deixando suas pegadas na areia. Dru pegou no dragão de madeira. Lembrava-se do dia em que vira Sam esculpindo-o pela primeira vez. Se o tivesse pegado naquele final de semana, quanto tempo demoraria ainda até que Eric se expusesse? "Gostaria de vê-la feliz", dissera Sam. Olhou para o dragão e ele perdeu sua forma, tornando-se o pedaço de madeira que Vanessa pensara nunca pudesse vir a ser reconhecido. Talvez nem tivesse visto um dragão, apenas uma figura distorcida... Nem Locke nem sua mãe tinham voltado para casa naquela noite horrível. Irene chegara de táxi na manhã seguinte. Todo o otimismo que a caracterizava desaparecera de seu rosto. Enquanto arrumava um saco de roupa para Locke, confirmava que Eric confessara tudo. Chorara abraçada a Dru. — Ele vai precisar de tratamento. Locke está cuidando disso. Está sendo tão paciente e compreensivo, depois de tudo que Eric lhe fez... Eric estava sem dinheiro porque havia perdido muito no jogo e fizera dívidas. Descobriu que havia um grande projeto de construção perto da sua propriedade na praia e queria que a vendessem. O comprador era ele mesmo, e até tinha inventado o nome de uma companhia. Quando o projeto fosse anunciado oficialmente, iria revender com um grande lucro. Oh, minha querida, lamento por causa da casa de seu amigo... — e Irene continuava chorando. Eric pensava que poderia liquidar as dívidas com o próximo filme de Locke, e entrara num círculo vicioso. Precisava alimentar sua imagem; precisava ter dinheiro porque isso fazia parte da imagem do Ransome Man. E ambas as coisas dependiam de Locke! Dru aparecera no momento em que as coisas iam mudar... Eric vira seu pequeno império chegar ao fim, sem poder fazer nada. Então, centralizava sua revolta em Dru, tornando-a responsável por tudo que estava acontecendo. Um táxi levara as roupas para Locke. Irene dissera que ele não voltaria para casa até resolver todos os problemas do irmão. Ele e Vanessa arranjariam as coisas de modo a manter a imprensa afastada pelo maior período de tempo possível. E havia os problemas financeiros para solucionar... Locke teria que ir a Melbourne e aos Estados Unidos para saber a soma exata das dívidas de Eric. Dru queria estar com ele, oferecer-lhe o conforto que devia estar precisando. Mas ela simbolizava as perdas de Eric e tinha que se manter afastada, para não piorar ainda mais as coisas. Dru deixara uma carta com poucas palavras. Talvez ele ainda não tivesse voltado e por isso não soubesse... Passou o dia vagando pela praia. Foi a pé até a praia vizinha e voltou quando o sol já se punha. Prendeu a respiração quando viu uma bicicleta encostada na parede da casa. Havia pegadas que se dirigiam para os algodoeiros. Locke tinha chegado. Não havia outro som a não ser o da brisa, o murmurar do oceano e os gritos das gaivotas. Ela queria rir e chorar ao mesmo tempo, quando o viu ali, parado diante das ruínas de Sam. Parecia pálido e abatido e sua barba estava por

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton fazer. — Deve ter sido muito duro — disse ela, querendo correr para ele, mas se contendo com medo de gritar-lhe seu amor. — Foi... — Lamento muito, Locke. Eric ficará bem? — Ele concordou em se submeter ao tratamento. Foi para uma clínica no interior, no meio de um vale muito bonito, e Vanessa quis ficar com ele. Não sei se isso é bom ou não. Ela foi totalmente irresponsável, mas diz que o ama, e isso talvez ajude... — Ele suspirou. — Fui um idiota não percebendo tudo isso! Mas às vezes era eu quem parecia levar uma vida anormal. De vez em quando até brincava com ele, dizendo que poderia me substituir no Ransome Man, mas nunca pensei que estivesse obcecado com isso. — É compreensível, é seu irmão. E às vezes é mais difícil perceber as coisas nas pessoas mais chegadas. — Você tentou me avisar... — Eu apenas sabia metade da história... — Vai odiá-lo por causa disso, Dru? — E você? Ele virou a cabeça. — Odiei-o durante alguns minutos, quando constatei o que tinha feito, mas não, não posso odiá-lo. — Nem eu... Ele olhou para as ruínas da cabana e depois para ela. — Minha mãe me deixou uma carta com três páginas, contando algumas coisas que eu deveria ter visto com meus próprios olhos, sobre meus pesadelos com Eva... Três páginas! — Ele tirou um pedaço de papel do bolso da camisa. — Mas tudo que precisava saber estava na sua! — Eu... eu não sabia o que escrever... — Uma linha! A linha mais bonita que já li. "Estou esperando por você em Sea Winds. Eu te amo", escrevera ela. Os dois caíram um nos braços do outro. — Eu amo você, Dru... Ela esperara tanto tempo por aquelas palavras... — Eu também te amo, Locke. Às vezes queria te abraçar, te beijar, mas me detinha para não dar o primeiro passo. Queria que você dissesse que me amava. — Eu também te amava e desejava o tempo todo. Mas não queria forçá-la. Achava que ainda gostava de Michael, e a idéia de que pudesse obrigá-la a fazer amor comigo com a imagem dele na cabeça me revoltava. Queria esperar que me amasse. Era por isso que me reprimia: para te dar tempo. Ela estava comovida. — Estou feliz por ter aparecido naquela noite e ter-me agarrado no escuro, mas você me pregou um grande susto. — Prometo não voltar a fazer isso. — O quê? Me agarrar no escuro?

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton — Hummm, prometo não voltar a assustá-la. Ela riu. — Locke, o que Sam lhe pediu? — Eu menti a esse respeito, Dru. Ele sabia que eu estava interessado em você e me fez prometer que não... hã... que não a seduziria. Sam estava irredutível. O casamento ou nada, foi o que ele disse! E eu concordei: respondi que escolhia o casamento... — Apenas duas semanas depois de ter me conhecido? — E acha que é preciso mais tempo para reconhecer a sua outra metade? Os olhos de Dru se inundaram de lágrimas. — Essa promessa deve ter deixado Sam muito feliz. — Deixou, sim. Me olhou com aqueles olhos pequeninos e sorriu. Queria contar a você no dia do nosso casamento que contávamos com a bênção dele. Dru enterrou a cabeça no peito dele e deixou cair algumas lágrimas. Ficaram assim por algum tempo. — Sabe que eu acho que me apaixonei por você logo na segunda noite... quando fui para a sua cama? — Foi para... — Ele parou e pensou um pouco. — Humm, a porta estava aberta... Foi o pesadelo? — Sim. Você gritou por Eva e eu fui ao seu quarto. Logo notei que ela devia ser uma mulher muito importante para você. E, mais tarde, quando fiquei sabendo que foi sua mulher, deduzi que sonhava com ela porque ainda a amava. — Eva era... bem, eu jamais vou esquecê-la. Mas parei de pensar nela há muito tempo. Agora o modo como morreu... Creio que no fundo não consigo esquecer a idéia de que, se não tivesse chegado atrasado... Oh, eu sei, não adianta pensar nisso! Quando cheguei aqui, apesar de não compreender a situação, estava num momento de crise em relação à minha carreira. Eva eu falávamos muito sobre os trabalhos que eu queria fazer, papéis que eu queria representar sem me importar com o dinheiro, apenas pelo prazer. Nos últimos tempos pensava ocasionalmente que ele próprio não reconhecera o homem em que se tornara: um símbolo sexual em vez de um ator sério! Talvez tivesse sido por causa disso que os pesadelos com Eva voltaram. Locke encostou o queixo na cabeça de Dru. — Sabe que não consigo me perdoar... — Pelo quê, por ser preguiçoso? — Não. Por não ter acordado quando esteve na cama comigo... — Parecia dócil demais para um ator com sua fama... — Só fico dócil quando estou dormindo. — Ainda bem... — Acho que os astros tinham razão sobre você. — Que astros? — Os astros de Philomena. Ela terminou seu mapa astrológico e foi entregálo lá em casa. Teve uma longa conversa com a sra. Curtis, que ficou muito impressionada. Philomena está fazendo o mapa dela também. Li o seu no

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Julia 364 – Anjos da Noite – Ann Charlton avião... Uma mulher que sempre surpreenderá, até mesmo chocará os outros. Um pessoa correta, com uma natureza apaixonada. Uma mulher sensual... Mas nada disso era surpresa para mim... Diz que vai ter três filhos e ser muito feliz. — Que bom. — ... mais tarde vai se tornar uma pessoa famosa... — Já sou. Desde que casei com você. — ... por seus próprios méritos. Philomena disse que os astros indicam que vai se tornar muito conhecida. Sendo entrevistada, escrevendo coisas... Ela beijou-lhe o rosto. — Acho que vou estar ocupada demais para isso... — Amará um homem pelo resto de sua vida... e atravessará incólume por momentos difíceis porque... — Eu sei. Porque tenho garra. — Ela o beliscou e ele fingiu sentir dor. — Espero que essa parte esteja certa — disse ele, ficando sério. — Não é fácil manter um casamento nesta profissão. Mesmo sem a imagem do Ransome Man, continuarei a ser fotografado com atrizes, e os estúdios e a imprensa sempre tentarão passar a impressão de que estou tendo um caso com a atriz principal... — Não tem importância. Seremos um caso à parte. Nada nem ninguém conseguirá nos separar. — Passarei semanas e semanas longe de você, filmando. — Eu já tenho passaporte. — E uma resposta para tudo — constatou ele, encantado. — Para tudo, não. — Ela olhou em volta, apreensiva. — E sobre este lugar, Locke? Acho que não vou me habituar com a idéia de ver um clube ou cassino por aqui, mudando tudo. — Vamos esperar para ver. Pode levar anos... Suponho que será pedir muito, perguntar se tem champanhe no gelo... — murmurou ele ao seu ouvido. — Tenho champanhe no gelo, sim. E dois copos no congelador. — Isso quer dizer que vai me oferecer um quarto para passar a noite? — Creio que sim. Só que desta vez- não vou deixar durma com a bagagem. — Mas eu tenho toda a intenção de dormir com a bagagem... — Oh! Seu... Os dois riram, felizes, sabendo que desta vez a comemoração seria realmente concretizada. Um beijo apaixonado selou esse pacto, do mesmo modo que foi iniciado, sob o céu e milhões de estrelas brilhando. Foram caminhando pelas dunas, em direção a Sea Winds. A lua-de-mel ia começar. E, desta vez, para sempre...

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Edição 365 O Desafio de Um Amor Margaret Pargeter Scott Brady era o veneno, o desprezo, a ambição. Desde que chegara à Austrália, Sherry precisara se defender do poder que ele exercia sobre todos, sobre suas emoções. Mesmo quando a abraçava com desejo, Sherry sentia que suas carícias eram gestos de desprezo, seus beijos, chicotadas. Scott não acreditava nela, na força de uma mulher em dominar aquela terra hostil e cheia de perigos. E Sherry não podia amar aquele homem arrogante e egoísta que desejava usá-la como um instrumento de vingança contra seu próprio irmão!

Edição 366 Quando Duas Vidas se Encontram Anne McAllister Um reencontro inesperado, a emoção inesquecível do primeiro amor vindo à tona com toda a força. Julie e Jake frente a frente, depois de tantos anos! Jake a fitava com evidente desejo, admirando o corpo bem-feito da mulher que ele conhecera menina. Mas fora outro que a vira transformar-se nessa bela mulher, que a conduzira pelos caminhos da paixão. Era muita pretensão Jake querer ocupar o lugar deste homem... justamente ele que a havia rejeitado tão friamente no passado!

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Ann Charlton - Anjos da Noite -

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