Suzanne Enoch - O Salteador

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O Salteador Before The Scandal

Suzanne Enoch

Escândalo à vista... O coronel Phineas Bromley é uma lenda... não só no campo de batalha, como também na alcova. Embora ele tenha ganhado muitas guerras, e conquistado inúmeros corações femininos, nada poderia tê-lo preparado para sua nova vida. Quando Phin descobre que alguém está tentando arruinar sua família, ele assume o papel de um lendário assaltante de estradas. Cavalgando noite adentro, escondido atrás de uma máscara, ele se encaminha, sem saber, para um grande problema... e para os braços de uma linda mulher! Deparar-se frente a frente com um homem mascarado não assusta Alyse Donnelly como deveria. Em vez de ficar apavorada, ela o acha até atraente. Mas seu bom coração já lhe causou problemas antes, e ajudar um homem fugitivo pode prejudicar seus próprios planos, não importa quão maravilhosos os beijos dele possam ser. Porém, à medida que o perigo cresce, Alyse precisa escolher entre a liberdade e a chance de viver uma grande paixão...

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Querida leitora, Antes do escândalo, Alyse era uma linda jovem, destinada a casar-se com um duque ou com um príncipe. Porém, após uma atitude ingênua e impulsiva, sua vida sofre uma drástica reviravolta. Agora, ela passa seus dias servindo a uma tia rabugenta, sob o jugo de um primo insensível. Quando Phin, um querido amigo de infância, retorna após uma ausência de dez anos, ela passa a experimentar intensas e contraditórias sensações, dividindo-se entre o risco que ele representa e a promessa de felicidade. E enquanto se envolvem em uma perigosa trama de sabotagem, vêem a antiga amizade transformar-se em algo mais... Leonice Pompônio Editora Copyright ©2008 por Suzanne Enoch Originalmente publicado em 2008 por HarperCollins Publishers PUBLICADO SOB ACORDO COM HARPERCOLLINS PUBLISHERS NY, NY — USA Todos os direitos reservados. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. TÍTULO ORIGINAL: BEFORE THE SCANDAL EDITORA Leonice Pomponio ASSISTENTE EDITORIAL Patrícia Chaves EDIÇÃO/TEXTO Tradução: Carlos Gustavo Barros Jaimovich Copidesque: Paula Rotta ARTE Mônica Maldonado MARKETING/COMERCIAL Andréa Riccelli PRODUÇÃO GRÁFICA Sônia Sassi PAGINAÇÃO Ana Beatriz Pádua Copyrigh © 2010 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Texas, 111, sl. 20A, Jardim Rancho Alegre, Santana do Parnaíba - SP www.novacultural.com.br Impressão e acabamento: Prol Editora Gráfica

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Capítulo I

O tenente-coronel Phineas Bromley não esperava o paraíso. Verdade que, após dez anos combatendo os franceses na Espanha, qualquer lugar pareceria um avanço, mas, enquanto cruzava a ponte sobre o rio Ouse em direção a Quence Park, sentia-se mais como se estivesse adentrando o inferno. Seus amigos, agora antigos soldados, haviam lhe escrito ao longo dos últimos dois anos, relatando as condições da velha propriedade da família, de forma que sabia que as cercas precisariam de consertos e que haveria goteiras no teto do celeiro. O local, no centro de East Sussex, era ainda bonito, mas Phineas mal notou o verde da relva ou o frescor do ar. Fazia dez anos. A ausência parecia, ao mesmo tempo, longa e curta demais. A inquietude que o aturdia desde bem antes que alugasse o único meio de transporte disponível em Uckfield crescia, chegando às raias do pânico. Não que se importasse de aparecer à entrada de Quence em uma carroça de feno. O problema era o que estava além da entrada. Pegou a carta da irmã dentro do paletó do uniforme. Havia memorizado a correspondência de Elizabeth nos últimos seis dias, desde que a recebera e solicitara uma licença emergencial dos Primeiros Dragões Reais. Ainda assim, ele a releu. De acordo com a irmã caçula, William, o visconde de Quence, seu irmão mais velho, estava seriamente doente. A pressa era fundamental, ela escrevera, caso quisesse chegar em casa antes que fosse tarde demais. Ele deixou de lado os pensamentos sobre sua aparência, um oficial do Exército, de casaca escarlate, sentado atrás de um velho e cinzento pangaré, em uma igualmente destruída carroça. Deixou de lado também a maneira como a respiração acelerava e o coração disparava enquanto trotava pela via principal, em direção ao que outrora chamara de lar. O que quer que sentisse naquele momento não importava. Àquela altura, a única coisa pior do que avistar o irmão novamente seria chegar tarde demais para tanto. Branca, com janelas altas, estreitas e a planta assimétrica, típica de uma casa que se expandira ao longo de gerações, Quence situava-se em uma suave elevação, com vista para um lago e um grande jardim sinuoso, completado por falsas ruínas e uma estátua de mármore de Apolo, em franca desintegração. Fora um local magnífico, selvagem, repleto de veados e raposas, e, tinha certeza quando era criança, um gigante encantado ou dois. Fechou os olhos por um instante. Antes que tivesse partido, antes do escândalo, houvera ali uma princesa também. Alyse Donnelly, a garota de olhos negros. Não ouvira uma palavra sobre ela durante aqueles anos, mas se os planos dela tivessem prosseguido conforme pretendia, já teria se casado com um príncipe ou um duque. Para uma espevitada donzela de quinze anos, a moça tinha uma ideia bastante clara sobre o futuro. Phineas sorriu ao lembrar-se dela, e então afastou os pensamentos. Precisava preocupar-se com o presente. Exceto por parecer precisar de uma demão de tinta e de uma boa aparada nos jardins, Quence Park parecia a mesma que vira pela última vez, o que era estranho, já que ele não se sentia o mesmo. A não ser pela culpa mordaz, que o acompanhara ao 3

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longo dos últimos dez anos e que, imaginava, carregaria até o túmulo. Agora ela caía como um casaco velho e não muito confortável, frouxo o suficiente para deixá-lo respirar, mas justo o bastante para que precisasse fazer um esforço consciente para tanto. Conduziu a carroça pelo caminho sinuoso e elevado até a frente da mansão. Um criado que não reconheceu saiu dos estábulos e foi até ele. Phineas desceu do assento. — Isto aqui precisa ser devolvido à hospedaria em Uckfield — disse, enquanto o homem grisalho tomava as rédeas. — Sim, senhor — respondeu o criado, lançando-lhe um olhar curioso, antes de conduzir a carroça ao redor da casa. Havia amplos degraus de granito na entrada principal. Mantendo o passo firme, Phineas escalou-os, detendo-se diante do pórtico ladeado por colunas. A porta abriu-se. — Olá, Digby — disse ao velho mordomo, que o observava por trás do nariz aquilino, pontudo e curvado. Digby já era velho dez anos atrás. Agora parecia que toda a cor o deixara, como parte de sua metamorfose em uma severa e eficiente estátua. O mordomo piscou. — Mestre Phineas? Deus do céu! Entre, senhor! Ao constatar a ausência de uma faixa negra no braço do homem e de crinolina negra pendurada pela casa, Phineas expirou lentamente. O pior de seus temores não se concretizara. Aquilo não significava que estivesse confortável, ou que não merecesse a hostilidade que lhe dirigiriam, mas, ao menos, ninguém morrera. — William e Elizabeth estão em casa? — ele perguntou, ainda relutante em entrar. Perdera aquele privilégio, se não aos olhos de todos, ao menos aos seus próprios. — Eles estão na sala de jantar. Vou providenciar um prato para o senhor. — Não, isso não será necessário. Talvez eu... não fique. — Mas senhor... — Vá até lá e diga que estou aqui. Dê a eles um momento antes que eu apareça. — O mordomo assentiu, mas assim que se virou de costas, Phineas agarrou-lhe o braço. — Espere. Pensando bem, é melhor que eu mesmo vá. — Se fizesse de outra forma, talvez não tivesse chance de vê-los. — Como preferir, mestre Phineas. Endireitando os ombros, ele entrou. Ainda se lembrava de onde ficava a sala de jantar, no final do longo corredor, e parou do lado de fora da porta entreaberta. A conversa baixa dentro do aposento chegou aos seus ouvidos, apenas o suficiente para que escutasse as vozes, mas não para que identificasse as palavras. A irmã mais nova e o irmão mais velho. A única família que possuía. Vamos logo com isso, ordenou a si mesmo. Enfrentara o fogo dos canhões com menos tremores. A morte, no entanto, talvez fosse mais fácil, pois era necessário apenas desistir. Inspirando uma vez mais, ele abriu a porta. Foi quando se deu conta de duas coisas: primeira, William não parecia remotamente próximo ao leito de morte, o que significava que Elizabeth o enganara; e, segunda, uma vez que soubera que os dois estavam jantando, deveria ter perguntado se lorde Quence estava recebendo alguém. — Olá. Considerando-se a quantidade de tempo que tivera para elaborar um cumprimento habilidoso, seco, espirituoso ou cínico em seu retorno, Phineas pensou que podia ter se 4

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saído melhor. Ainda assim, ver o irmão sentado à cabeceira da mesa, com um garfo nas mãos e cor nas faces simplesmente o deixara... atordoado. Sentiu-se grato por ter conseguido pronunciar pelo menos uma palavra coerente. A jovem esguia e ruiva sentada ao lado de William levantou-se em um salto. — Phin! — ela gritou e atirou-se contra ele. — Elizabeth — ele murmurou, reconhecendo-a por causa da semelhança com a mãe falecida. — Sabia que você viria! — Você me pediu que viesse. — Pediu mesmo? — William indagou em voz baixa. Phineas soltou-se do abraço da irmã. — William, eu... — Eu escrevi e pedi que ele viesse — interrompeu Elizabeth, recusando-se a largar-lhe a mão. — Não contei a você porque... — Não importa — falou o visconde. O rosto empalidecera desde a entrada de Phin, mas ninguém poderia culpá-lo por isso. — Lorde Donnelly, sra. Donnelly, srta. Donnelly, podem nos dar licença por um instante? O homem de cabelos claros do lado oposto da mesa assentiu. — É claro, William. Creio que podemos nos distrair por alguns momentos. Phineas sobressaltou-se. Srta. Donnelly? Alyse? Antes que pudesse fazer mais do que apenas vislumbrar os grandes olhos escuros e os cabelos presos, o criado atrás de William puxou a cadeira do visconde, e o assento sobre rodas deslocou-se para longe da mesa. De súbito, toda a sua atenção voltou-se de novo para o irmão. — Para o aposento matinal, Andrews — William pediu, na mesma voz fria que usara anteriormente. Elizabeth praticamente arrastou Phineas consigo ao seguir William e a cadeira de rodas. Ele a olhou de novo. Bom Deus! Cachos ruivos, olhos castanhos e sorridentes... Uma bela jovem. E, da última vez que a vira, ela tinha apenas sete anos. Andrews conduziu William até a lareira e, em seguida, deixou o cômodo, fechando a porta. Por um instante, Phineas pensou em fugir atrás do criado, mas, dessa forma, jamais descobriria o que diabos estava acontecendo. William fitou-o em silêncio, antes de voltar-se para a irmã. — Por que pediu que ele viesse? — Porque faz dez anos — ela respondeu, com o queixo erguido. — Ela me disse que você estava no leito de morte — acrescentou Phineas. — Você não voltaria de outra forma. — Ela fez uma carranca, parecendo-se com a criança da qual ele se lembrava. — E não fiquem os dois gritando comigo, apenas para evitar falarem um com o outro. — Se a ideia é que esta seja uma reunião de família forçada, eu devo avisar que tenho obrigações em outro lugar — disse Phin. — Ah... Então você está desapontado por ver que ainda não estou nas últimas. — Não. Fiquei preocupado. 5

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— Não fique. Algum dia, você será o herdeiro. Não o excluí do testamento. Aquilo, na verdade, surpreendeu-o. Phineas inspirou fundo. Aproximar-se de uma batalha em posição de fraqueza não era algo a que estivesse acostumado e, após uma década como soldado, dar-se conta daquilo exasperava-o ainda mais. — Devo ficar então? Ou devo ir? — Você fica — disse Elizabeth, agarrando seu braço. Phineas lançou-lhe outro olhar, suavizando-o apenas ao notar a expressão tensa da irmã. Ela não era a fonte de seus problemas, embora desejasse culpá-la por tê-lo atraído de volta. — Por que diabos você me escreveria dizendo que William estava à beira da morte? Não gosto de ser feito de tolo. — Eu fiz isso porque você precisa estar aqui — ela afirmou. Phineas analisou o olhar de Elizabeth, procurando alguma pista. Era capaz de avaliar o caráter de uma pessoa em um piscar de olhos, e bastou o mais breve instante para perceber que a irmã estava preocupada. E não apenas com o fato de ele passar ou não a noite ali. — Pode detalhar um pouco mais? — Não creio que Beth e eu sejamos os únicos que devemos responder a perguntas, Phin. Phineas soltou o ar. Ficar com raiva seria mais fácil, mas, como Elizabeth dissera, haviam se passado dez malditos anos. — William, estou viajando há cerca de uma semana. Estou cansado. Podemos discutir amanhã, se quiser, ou posso partir esta noite, se preferir. Pediram que eu viesse, e eu vim. É tudo o que sei. — Sou um tanto cético a respeito de você fazer o que lhe é solicitado — disse o irmão em seu tom de voz baixo. De súbito, Phineas sentiu-se como se tivesse dezessete anos outra vez, escutando um sermão do irmão de vinte e quatro. — Tudo o que eu posso fazer para demonstrar que não estou aqui com qualquer intenção ruim é partir de novo. Como disse, eu estava preocupado. Essa é a minha motivação. — Não quero que os vizinhos pensem que rejeitamos nossa própria família — William disse. — Vou pedir que Digby arrume um lugar à mesa para que você jante conosco. Jantar. Aquilo provocava outro pensamento; um que, graças a Deus, não tinha nada a ver com culpa ou desconfiança. Dentre todas as coisas que se preparara para enfrentar, em seu retorno a Quence, ela não estava incluída. — Você disse que seus convidados eram os Donnelly — Phineas aventurou-se, com a voz controlada. — Parentes do visconde? — O homem é herdeiro dele. Richard, visconde de Donnelly. A mulher mais velha é sua mãe, Ernesta. E você conhece Alyse. Ela é acompanhante de Ernesta. — Alyse — ele murmurou. — Não a vejo há... anos. — Bufou, maldizendo a si mesmo. Não poderia distrair-se, mas Alyse Donnelly fora sua melhor amiga, embora não pudesse classificar sua afeição por ela como fraternal. 6

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— Sim, imagino que ela esteja pensando a mesma coisa sobre você — devolveu o irmão. — Beth, vá buscar Andrews para mim, por favor. E diga a Digby... — Deixe comigo. — Enviando a Phineas um olhar indecifrável, ela se apressou para fora da sala. Sabiamente, deixou a porta aberta. — Ela não é como eu me lembrava — disse Phineas. — Seja gentil com ela — William aconselhou quando Andrews retornou ao aposento. — Ela o adora. Não a faça arrepender-se. Phineas permaneceu onde estava, enquanto o irmão, empurrado por Andrews, retornava à sala de jantar. Por Deus! O tiro que levara no braço tinha sido menos doloroso que aquilo. Contudo, permaneceria ali pelo período que William determinasse. Era o mínimo que devia ao irmão. As terras malcuidadas indicavam que deixara a culpa mantê-lo distante por tempo demais. Porém, era mais do que isso. A carta de Elizabeth, os olhares que ela lhe enviava, as pequenas pistas na correspondência... Ele tinha que estar ali. E precisava descobrir por quê. Phin Bromley. Alyse Donnelly jamais pensara que poria os olhos nele novamente. Suas mãos tinham começado a tremer no momento em que ele entrara na sala, e ela as cruzara sobre o colo. Sabia que ele se unira ao Exército, mas ele não usava a farda como um soldado em um desfile. Ele a usava como uma segunda pele, como se já não o notasse havia muito tempo. E... Richard bateu em seu ombro. — Quem é ele? — seu primo sussurrou. — Irmão deles — Alyse respondeu. — Irmão do meio. — Você nunca mencionou outro irmão. — Ele está distante há muitos anos. — Mesmo assim, eu diria que não mencionar o fato de lorde Quence ter um herdeiro é uma omissão significativa. — Sim, é claro — concordou depressa, esperando evitar um sermão. — Contudo, foram dez anos ou mais. — Sorriu, lembrando-se. — Não o vejo desde que eu tinha quinze anos. — Bem, essa pode ser uma oportunidade para você, prima — murmurou Richard. — Afinal, se ele não surgiu em suas conversas, talvez você não tenha surgido nas dele. Alyse sentiu o rosto esquentar. Após cinco anos, deveria estar acostumada aos insultos, diretos ou implícitos, mas evidentemente eles ainda a afetavam. — Obrigada, Richard, mas eu prefiro me apresentar primeiro. — Ou renovar as apresentações, parecia-lhe, já que duvidava de que Phineas ainda aceitasse desafios infantis de saltar no lago ou se divertisse com sapos escondidos no colo insuspeito de uma jovem dama. — Sugiro que fale com seu primo com menos sarcasmo, Alyse — a tia admoestoua. — Você já não é mais a mesma. Sim, e ninguém na família a deixaria esquecer-se do fato. — Eu me lembro, tia Ernesta. 7

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— Peça que alguém me arranje uma manta. Minhas pernas estão geladas. Disfarçando a irritação, Alyse gesticulou para o criado mais próximo e transmitiu o pedido da tia. As coisas na propriedade dos Bromley podiam estar em franca reviravolta, mas sua vida progredia com a previsibilidade de um relógio. Um infinito girar de ponteiros. A porta da sala abriu-se de novo. Lorde Quence entrou primeiro, com um ar sombrio no rosto. Beth veio logo atrás, e tinha a expressão tensa. A porta fechou-se, mas Alyse não desviou o olhar. Phineas Bromley. Phin. A última pessoa que imaginara ver no Exército. Obviamente, as vidas dos dois não tinham se desenrolado conforme o planejado. Não sabia que insígnia era aquela, nos ombros dele, mas ele era, com certeza, um oficial. Um momento mais tarde, ele entrou no aposento e olhou ao redor, para todos os ocupantes, até seus olhares se encontrarem. Alyse enrubesceu diante daqueles olhos castanhos. Se não fosse pelos olhos, não tinha certeza se o reconheceria. Os cabelos castanho-escuros estavam um pouco longos, como se ele estivesse ocupado demais para procurar um barbeiro, e o rosto estava mais magro do que se lembrava. Uma fina cicatriz partia a sobrancelha direita e chegava à face, dando à aparência dele o toque informal que sempre tivera por dentro. — Alyse — ele disse, sentando-se no lugar recém-colocado diante dela. — Srta. Donnelly. William contou-me que seus pais faleceram. Lamento profundamente. — Obrigada. Foi... inesperado. Richard inclinou-se para o lado, cobrindo sua mão. — Fico feliz por termos podido oferecer a Alyse um lugar em nossa casa. Phineas olhou para seu primo como se ele fosse uma mosca irritante, antes de voltar-se para ela. — Você ainda gosta de montar? — ele perguntou. Era estranho, naqueles dias, que alguém lhe dedicasse atenção, especialmente em detrimento de seu nobre primo. — Não tenho tido muita oportunidade — ela respondeu. — Minha tia não anda bem, e eu passo um bom tempo com ela. — Se eu ficar por aqui tempo suficiente, deveríamos cavalgar — Phin insistiu. — Eu adoraria — ela disse, sorrindo. — Quanto tempo você vai ficar, afinal? — Richard indagou. Dessa vez, Phin olhou para o irmão. — Pelo tempo que for necessário. Tenho alguns meses de dispensa pela frente, caso os requeira. — Onde está servindo? — perguntou Alyse, desgostando do fato de os olhos de Phin terem-na deixado. — Norte da Espanha, no momento. Estou com os Primeiro Dragões Reais. — É um... tenente, é isso? — Richard examinou a farda escarlate e azul. — Tenente-coronel — corrigiu Elizabeth em tom orgulhoso. — Phin recebeu cinco promoções no campo de batalha. — Isso é extraordinário. — Richard ergueu uma taça na direção de William. — Você deve estar muito orgulhoso dele. — Sim — disse lorde Quence, voltando à refeição. — Muito orgulhoso. Era evidente que as coisas não andavam bem em Quence Park, embora Alyse já 8

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soubesse disso. Mesmo assim, Richard cutucar as feridas ainda mais... Aquilo não era do feitio dele, ao menos em público. Na intimidade, era tudo o que ele fazia. — Quando éramos crianças — ela comentou, para ninguém em particular —, lançávamo-nos às aventuras mais arrepiantes. Phineas sorriu brevemente para ela. — Eu posso encarar canhões sem medo, tendo sobrevivido aos desafios no lago. — Você já era destemido desde muito antes disso. — Os Primeiros Dragões Reais — disse Richard, lentamente. — Foram vocês que invadiram Maguilla, muitos anos atrás. Phin estremeceu. Alyse abriu a boca para mudar de assunto, mas, antes que pudesse fazer isso, ele assentiu. — Aquele foi um dia difícil — falou com calma. — Preciso concordar com isso. Vocês perderam o quê? Um quarto da companhia? — Phin não liderou aquele ataque, Richard — Beth interferiu com firmeza. — E seu amigo mais querido foi ferido, salvando-lhe a vida. — Deus do céu! — Alyse sussurrou, sem dar-se conta de ter pronunciado as palavras até sentir o olhar de Phineas voltar-se para ela outra vez. — Não se preocupe. Sullivan e eu sobrevivemos. — Ele olhou de novo para Richard. — Eu não me esqueceria da perda de cento e noventa e sete homens, mas obrigado por me lembrar. Agora sim, aquele era o Phineas de que Alyse recordava, sempre pronto para um confronto, disposto a cuspir no olho do próprio diabo apenas para perturbá-lo. Richard levantou-se. — Esta é claramente uma noite familiar — disse a William. — Não devemos mais nos intrometer. — Vocês são sempre bem-vindos, Richard. Meu irmão esteve na guerra por dez anos. Seus modos são um pouco bruscos. — Eu não comecei a conversa — Phin murmurou. — Eu compreendo, William, e não me sinto ofendido. Beth, posso conduzi-la até Lewes amanhã? — Isso seria ótimo, Richard — ela respondeu, corando. Murmurando suas próprias desculpas pela partida apressada, Alyse levantou-se e foi até o vestíbulo apanhar seu agasalho e o da tia com Digby, o mordomo. Tentando não franzir o cenho, colocou o xale nos ombros de tia Ernesta e ocupou o lugar da bengala da velha senhora, enquanto deixavam a casa e desciam os degraus da entrada principal. Depois de ajudar a tia a subir no coche, Alyse girou os ombros. Beth e Phin estavam à porta, e ela lhes lançou um sorriso que, esperava, não parecesse muito desapontado. Ela queria ficar. Phineas estava tão impressionantemente... magnífico, alto, esguio e corajoso. Aquele menino selvagem com quem brincara e com quem sonhara estava de volta. E falara com ela como se ainda fossem os queridos companheiros que tinham sido no passado. Ela subiu no coche, e então partiram rumo à casa dos Donnelly, situada em um monte, a cerca de um quilômetro e meio dali. Antigamente, ela apreciava a jornada, o 9

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retorno para casa depois de tardes de charadas, jogos de cartas ou outras brincadeiras. Agora aquilo significava apenas que as portas da jaula estavam se fechando outra vez. — Você não perdeu muito tempo, não é? — comentou tia Ernesta, com uma carranca. — O quê? — Não acredite que enganou alguém, Alyse — continuou o primo. — Você estava praticamente babando nele. — Não estava! Ele é um velho amigo, a quem não vejo há muito tempo. — Não parece que ele é mais bem-vindo naquela casa do que você é na nossa — disse Richard com frieza. — Se está procurando uma alternativa, cara prima, deveria mirar o visconde. — Isso é maldoso, Richard. — Não. É a lógica. Você já sabe como funciona o mundo, Alyse. E, para ser sincero, você conseguiria um casamento melhor com um aleijado da nobreza do que com o distante irmão mais novo. Alyse comprimiu os lábios para não responder. Por mais que desse valor à amizade com a família dos Bromley, lorde Donnelly agora dirigia os assunto da sua família. E lorde Donnelly não era mais o seu amável e querido pai. Ela precisava ser agradável com eles. O dinheiro que estava juntando lentamente ainda não era suficiente para sua fuga. Ainda que não pudesse ser grata por Richard e tia Ernesta terem lhe oferecido abrigo, pelo menos tinha um teto sobre a cabeça, comida à mesa, e um centavo ou dois, toda vez que a enviavam às compras. — Pensei que isso pudesse clarificar-lhe a visão — murmurou Richard. — Agora, conte-nos o que sabe sobre o tenente-coronel Phineas Bromley. Alyse respirou fundo. — Como eu disse, não o vejo desde que eu tinha quinze anos. Os irmãos eram muito próximos, mas Phin... — Phin o quê? — insistiu o primo. — Ele tinha uma veia selvagem — ela disse, com relutância, embora aquilo tivesse sido de conhecimento geral na época. — Mulheres, farras, bebidas, tudo o que pudesse fazer, ele fazia. E então houve um acidente, e ele partiu. Não o vejo desde então. — Um acidente? — repetiu Richard. — O acidente de William? — Sim. Foi algum tipo de corrida de cavalos. Tudo se tornou caótico quando William se feriu, e eu não conheço os detalhes. — Isso explica algumas coisas — o primo murmurou. — Se eu vou me casar e fazer parte da família, quero conhecer todos os esqueletos no armário. A última coisa que desejo é um escândalo. — Então pergunte a Beth sobre ele. Tenho certeza de que ela vai lhe contar. Alyse encolheu-se em um canto do coche. Ainda não era tarde, mas ela tinha muitas tarefas a cumprir. Pôr a tia na cama levaria uma hora, e então ela teria que costurar e planejar o desjejum, o almoço e o jantar do dia seguinte. Depois disso, com sorte, poderia dormir um pouco no pequeno cômodo que lhe haviam cedido, um andar acima de onde ficava seu antigo quarto. E, se dormisse, sabia com quem sonharia. Phin Bromley estava de volta. 10

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Assim que os Donnelly deixaram a casa, William fechou-se em seu gabinete. Alegou ter algumas tarefas a cumprir, mas não precisaria ter se preocupado em inventar desculpas. Phineas não esperara muito de seu retorno, mas não negava que um abraço emocionado teria sido bem-vindo. Afinal, Elizabeth lhe pedira que voltasse. — Estou tão feliz por você estar aqui — disse a irmã, segurando seu braço, enquanto iam até a sala de estar do andar superior. William mantinha outra cadeira de rodas no topo da escada, e parecia haver uma terceira no andar acima daquele, cada uma pronta para ser usada pelo visconde. Phineas fechou os olhos ao sentir mais uma pontada de culpa. — Você me disse que ele estava no maldito leito de morte. Ela se sentou no sofá, puxando-o para o seu lado. — Você teria vindo se eu tivesse escrito que sinto sua falta? Porque eu já fiz isso. — Então essa é a sua maneira de organizar uma visita social? — Não. — Fico feliz em ouvir isso. Eu acho. — Ele se afundou nas almofadas macias. — Não consigo acreditar em como você está crescida, Elizabeth. Você é a própria imagem de mamãe. — Meus amigos me chamam de Beth agora. E passaram-se dez anos, Phin. Eu tinha sete quando você partiu. — Eu me lembro muito bem, obrigado. — Vi seus amigos há um mês — ela disse de repente. — Lorde Bramwell e Sullivan Waring. Sabe que Sullivan acabou de se casar, não é? — Sim. Recebi a carta dele uma semana antes da sua. — A missiva mencionara diversos assuntos. Porém, o trecho mais relevante era o que relatava que William tivera uma febre e que parecia mais frágil do que antes. Aquilo tornara a carta de sua irmã ainda mais plausível. — Se você não me enganou para que eu viesse, por que estou aqui? É óbvio que William não me quer por perto. — Não é verdade, Phin. Ele ficou surpreso. Assim como eu. Eu não tinha certeza se você viria. Em vez de falar sobre o pânico que lhe tocara o coração ao ler a carta ou sobre a velocidade com que conseguira uma longa dispensa e cavalgara por metade da Europa, Phineas abriu o botão da casaca. — Você ainda não respondeu minha pergunta, Beth. Por que estou aqui? A porta abriu-se. — Por causa da tolice de uma jovem — William respondeu, sendo conduzido por Andrews para dentro da sala. — Você não pôde nem esperar até conversar conosco antes de voltar a fazer aquilo, não é? — Aquilo o quê? — Brigar com um convidado. E flertar. Com a pobre Alyse, desta vez. Você não fica contente a menos que arruíne a si mesmo ou outra pessoa. — Isso não é verda... — Fui informado de que você chegou em uma carroça de feno. Como isso é possível? 11

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— Eu implorei uma carona, desde Dover, com Malcolm Pepper, um advogado de Uckfield. Chegando lá, a carroça era o único meio de transporte disponível até amanhã. Pensei que a velocidade fosse fundamental. — Por quanto tempo planeja ficar? — William indagou. — Não tenho a menor ideia. — Olhou para Beth. — Não esperava uma recepção calorosa, mas eu fui convidado. Partirei pela manhã. — Levantando-se, ele passou pela cadeira de rodas e seguiu em direção à porta. — Sully tem uma casa em Sussex agora. Vou visitá-lo, e então voltarei para a Península. — William... — Beth foi até Phin e pegou-o pelo pulso. — Nós todos vamos para a cama agora e, pela manhã, nos sentaremos para o desjejum às oito horas e seremos muito civilizados e cordiais uns com os outros. Fui clara? A expressão de William suavizou-se ao olhar para a irmã. — Ainda que seus métodos não me agradem, acho que não posso criticar seus motivos — ele disse, por fim. — Andrews. A cadeira de rodas passou por Phineas e pela porta novamente. — Vejo vocês dois pela manhã — o visconde disse. — Beth, posso ter uma palavrinha com você? — É claro. — Com um sorriso de desculpas para Phineas, ela também saiu da sala. Abandonado, Phin retornou ao sofá. No que quer que tivesse sido atirado, Beth o queria por ali. Ela queria dizer-lhe algo. Algo que William preferia que ele não soubesse. Considerando as opiniões do irmão a seu respeito, não devia ser nada. Ainda assim, aprendera a levar em consideração o arrepio na nuca, que salvara sua vida em diversas ocasiões. De qualquer forma, William ainda sabia como atingi-lo. Mulheres, brigas, bebidas... A receita parecia sempre a mesma, qualquer que fosse o mau hábito pelo qual seu irmão escolhesse ralhar com ele. E, se William achava que nada mudara em mais de dez anos, ele deveria mesmo partir. Porque, em sua alma, ele sabia que, no momento em que o irmão caíra daquele cavalo, tudo tinha mudado. Especialmente ele mesmo. Além disso, ele não flertara com Alyse Donnelly. Os dois sempre tinham se dado muito bem, e ela parecia ser a única pessoa conhecida na casa que não estava tentando arrancar-lhe a cabeça e que não tinha alguma espécie de intenção oculta com seu retorno. É claro que conversaria com ela. Alyse. Alyse dos olhos escuros. Tinham apenas dois anos de diferença na idade e, justo no momento em que partira, estava começando a perceber que sua boa amiga convertia-se lentamente em uma jovem bastante adorável. Os outros rapazes em Lewes haviam notado isso antes, e ele não imaginava como ela podia, aos vinte e cinco anos, ainda ser solteira. Pelo que se lembrava, ela tinha planos de casar-se com um duque ou um príncipe. Sorriu. Naquela época, já se sentira desapontado por não ser nenhum dos dois. A porta da sala abriu-se de novo, e Beth entrou. — Desculpe-me — ela sussurrou, pálida. — Presumo que ele tenha dito para não discutir nada comigo. — Ele só está surpreso. Eu devia tê-lo informado de que você poderia voltar para casa. 12

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— Nada disso é culpa sua, Beth. Todos os “eu devia” cabem a mim. — Ainda assim, você faz parte desta família. Uma parte muito grande. E eu não gosto de segredos. Nem ele gostava, embora tivesse visto sua necessidade tanto na guerra quanto em tempos de paz. — Vou seguir seu conselho. Vou para a cama agora e serei cortês pela manhã. Se William quiser me incluir nos assuntos da família, imagino que ele me dirá. Enquanto se punha de pé, a irmã abraçou-o. — Estou tão feliz por você ter voltado, Phin — ela disse, com a voz abafada contra a frente da casaca. — Estou feliz por estar de volta — ele falou, dando-lhe um tapinha no ombro. — Mandei que levassem seu baú para seu antigo quarto, que foi mantido exatamente como estava quando você partiu. — Então vejo você de manhã, Beth. — Boa noite, Phin — ela disse, beijando-o no rosto. Assim que ela se recolheu, Phineas caminhou pela casa. Pouca coisa havia mudado. Exceto por alguns poucos tapetes, e um vaso aqui e outro ali, ele parecia ter sido transportado para o passado. Quando finalmente abriu a porta de seu antigo quarto, encontrou o fogo aceso, e seu baú aberto aos pés da grande cama. — Tomei a liberdade de abri-lo para o senhor — disse Andrews, saindo do quarto de vestir, situado ao lado. Phineas escondeu o mal-estar. — Obrigado. Foi lorde Quence quem pediu que viesse me ajudar? — Não, senhor. Mas, como não tem um criado, pensei em oferecer-lhe meus serviços. — Muito obrigado, Andrews, mas não será necessário. — Phineas tinha seu próprio homem, o sargento Thaddeus Gordon, mas o deixara na Espanha, junto com o restante de seus pertences. E não gostava que outras pessoas mexessem em itens dos quais dependia sua segurança. — Boa noite. — Boa noite. — Andrews saiu do quarto e fechou a porta. Era evidente que William o mandara até ali, provavelmente para averiguar o que trouxera consigo e, portanto, por quanto tempo pretendia ficar. Soltando o ar, Phineas sentou-se à beirada da cama, para tirar as botas e a casaca azul e escarlate. Teria de usar a farda de novo até conseguir desamassar alguns trajes civis que atirara no baú. Levantou-se novamente. — Maldição! — Caminhou até a janela, abriu as cortinas e a janela. O vento frio o atingiu e agitou o fogo na lareira. Inspirando profundamente, foi até a escrivaninha. William podia não querer conversar, mas ele contaria com outras fontes de informação. Tinha dois amigos que lhe haviam enviado notícias sobre a família nos últimos anos. E eles podiam muito bem informá-lo o que diabos estava acontecendo. Sentando-se, ele pegou uma folha de papel e molhou a pena, pondo-se a escrever. 13

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Era melhor que Sullivan Waring e lorde Bramwell Lowry Johns cooperassem, pois não pretendia ficar esperando uma armadilha, não importava quem quisesse acertá-lo. Por um momento, enquanto Alyse despertava, tudo parecia perfeito. De olhos fechados, podia apenas imaginar a luz tênue da manhã infiltrando-se pelas cortinas. À distância, ovelhas baliam e um galo ou dois cantavam, enquanto as cobertas, puxadas até a altura do queixo, envolviam-na no mais confortável calor. Então, o sino começou a tocar. Não, não a tocar. A soar estridentemente. As rápidas e fortes badaladas golpeavam seus ouvidos. Tentou ignorá-las. Se, por aqueles poucos segundos, fingisse e se concentrasse o suficiente, poderia ser Alyse Donnelly, filha do visconde e da viscondessa de Donnelly, o diamante de East Sussex e a dançarina de valsa mais requisitada da região. — Alyse! Ao mesmo tempo em que a voz abafada de mulher gritou seu nome, ela ouviu uma batida no centro do piso do quarto. Suspirou enquanto o som se repetia. Para uma inválida, tia Ernesta era bastante hábil com a bengala. Não tinha ideia de como a mulher era capaz de alcançar o teto deitada na cama. Enquanto afastava as cobertas e sentava-se, a perfeição desvaneceu. Era agora filha dos falecidos visconde e viscondessa e prima do atual senhor de Donnelly. E raramente valsava. Dançar era algo difícil, com a tia insistindo em tê-la como companhia constante durante todo o evento aos quais eles compareciam. — Alyse! Sua menina preguiçosa! — Estou indo! — ela gritou, levantando-se. A tia havia se instalado em seu antigo quarto, ainda que Alyse não soubesse se por despeito ou por apreciar a vista. Tinha suas suspeitas. Seu novo quarto, no ventoso terceiro andar, pertencera à antiga governanta. Se tivesse ideia do quanto a sra. Garvey sentia frio no inverno, teria insistido para que a boa senhora se instalasse no andar de baixo. Colocando depressa um vestido verde, Alyse prendeu os cabelos e apressou-se para o segundo andar. — Estou aqui, tia — disse, batendo à porta antes de entrar. — Não ouse fazer tanto barulho — Ernesta admoestou-a, com o rosto severo ainda menos amistoso do que o habitual. — Já é ruim o suficiente ouvir seus passos ruidosos lá em cima até tarde. — Desculpe-me — Alyse disse, juntando-se à criada da tia, Harriet, ao lado da cama. Cada uma apanhou um cotovelo e puxou. — Tenham cuidado! Não sou um saco de farinha. Não, sacos de farinha não reclamavam tanto. Alyse manteve o pensamento para si. Havia coisas piores do que ser acompanhante de uma senhora desagradável. Havia até graus de dissabor. E ela sabia muito bem disso, pois já experimentara meia dúzia de aspectos diferentes. — Vou a Lewes hoje procurar tecidos para vestidos — anunciou tia Ernesta, enquanto a criada a vestia. — Temos muitas festas nos próximos quinze dias, e não creio ter trazido vestidos suficientes. Aquilo significava que Alyse teria de ir à cidade também. Pelo menos, era melhor do que ficar bordando, além de ser mais uma boa oportunidade para alimentar suas parcas e secretas economias. O dinheiro da fuga, como gostava de pensar. — A que horas devo cuidar para que Winston traga o coche? 14

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— Não fique tão ansiosa — a sra. Donnelly disse bruscamente. — Ainda não tomei meu desjejum. — Nem eu, tia. Apenas perguntei para que a senhora não ficasse esperando quando estivesse pronta para sair. — Dez horas. E quero o coche aberto. O ar fresco pode me fazer bem. — Certo. Vou cuidar disso. Antes que qualquer um pudesse mudar de ideia ou pô-la para escovar os cabelos da tia, Alyse saiu do quarto e foi até o vestíbulo. — Saunders — ela disse ao mordomo —, a sra. Donnelly deseja ir até a cidade às dez horas no coche aberto. — Sim, senhorita. Informarei Winston. — Ele comprimiu os lábios. — Creio que haja uma quantidade muito limitada de morangos à mesa, dado o início do verão. Morangos. Ela adorava morangos. — Obrigada, Saunders. Mas não deixe que Richard o ouça. — Estou surpreso por eu ainda estar aqui, srta. Alyse. E não me esqueci de que sempre gostou de morangos. Com um sorriso afetuoso, Alyse pôs a mão no braço dele. — Obrigada. Eu... — Alyse! — tia Ernesta berrou. Sem querer arriscar que Saunders fosse culpado por sua ausência, Alyse correu até a sala do desjejum, escondeu três morangos sob a torrada e voltou a subir depressa. — Sim, tia? — Você está ociosa de novo. Encontre meus brincos de ouro. — Sim, tia. Terminando de se vestir, tia Ernesta virou-se para ela. — Decidi que vou convidar a sra. Potter e lady Dysher para o almoço amanhã. Envie os convites e selecione algumas passagens de Milton. Você as lerá para nós, para que possamos discuti-las. — Milton? Isso parece um pouco... pesado para o almoço. Tem certeza de que não prefere Shakespeare ou Chaucer? — Shakespeare é picante demais, e eu nunca leria Chaucer, sua garota tola. Será Milton. — Ela gesticulou para que saísse do quarto. — E formule algumas questões para conduzir a discussão. — Sim, tia. Fazendo uma carranca, agora que ninguém podia vê-la, Alyse foi até a biblioteca pegar Paraíso Perdido, e então se dirigiu até a sala do desjejum. — Ah, bom dia, Alyse — disse o primo, da cabeceira da mesa. Os restos do que pareciam ser todos os morangos, exceto os que ela escondera, estavam empilhados ao lado do prato do rapaz. Enviou um agradecimento mudo ao mordomo. — Bom dia — ela disse, aceitando um prato de Donald, o criado, e dirigindo-se às 15

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torradas. — Como está minha mãe hoje? — Bem. Ela quer ir até a cidade. Os morangos ainda estavam onde os deixara. Agilmente, ela mordeu o mais robusto e colocou os outros sobre o prato. Morangos tinham gosto de verão. E, mais especialmente, dos verões de sua infância... quentes, úmidos, doces. — Venha sentar-se ao meu lado — propôs Richard, antes de Alyse acomodar-se em seu lugar habitual, na metade da longa mesa. Desconfiada, ela obedeceu. — Obrigada. — De nada. Diga-me, prima, por que você acha que Elizabeth Bromley jamais mencionou o outro irmão para mim? — Ele ficou longe muito tempo. Acho que ela não pensou em discuti-lo com você mais do que você pensou em perguntar se havia outro irmão por perto. — Bem, ele está por perto agora, não é? Por que será? Alyse puxou seu prato para mais longe do primo. — Você sabe tanto quanto eu, Richard. — Sim, mas me dê sua opinião. Ele pareceu conhecê-la bem. Terminando de comer o presunto, o primo esticou a mão e pegou um dos morangos de seu prato. Alyse não falou nada sobre o furto. Sabia que ele a lembraria de como tinha sorte por contar com parentes dispostos a abrigá-la, e então pegaria o outro morango. Aliás, era o que ele faria de qualquer forma. Antes que isso acontecesse, ela o enfiou na boca. Pronto. — Na minha opinião — ela disse, após mastigar e engolir o fruto —, ele pode ter vindo por causa da saúde de lorde Quence. Você sabe que o visconde mal deixou a casa, desde que chegaram, no final da temporada. — Concordo. Não parecia, no entanto, que William esperasse esse retorno. Eu apostaria que Beth o chamou. Aquilo fazia sentido. Richard balançou a cabeça, concordando consigo mesmo. Portanto, aparentemente a opinião de Alyse não era mais necessária. Para ela, o fato de Phin estar de volta era bem mais interessante do que saber os motivos pelos quais ele retornara. — Qual é a sua proximidade com o coronel Bromley? — perguntou Richard de repente. — Nós éramos grandes amigos. Mas, como eu disse, não o vejo há dez anos. Não sei nada sobre ele hoje em dia. — Respirou fundo, imaginando se satisfazer sua curiosidade valeria a surra verbal que receberia em retorno. A curiosidade venceu. — Por que está tão interessado no coronel Bromley, primo? — Estou cortejando a irmã dele. Seria tolice ignorar a presença de um homem que pode ter planos diferentes. Há algo mais que deseje me perguntar? — Não. É claro que não. — Achei mesmo que não. — O primo gesticulou para que Donald lhe servisse uma xícara de café. Após tomar um gole, ele prosseguiu: — Imagino que quando falou com você, ontem à noite, o coronel ainda a julgasse um diamante. Pergunto-me se lhe conta16

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ram que você não passa de uma imitação. Tia Ernesta claudicava desde a porta. — Saberemos da próxima vez em que os virmos. As bochechas de Alyse ferveram. — Não é necessário que sejam cruéis — ela disse em voz baixa, afastando-se da mesa. — Não somos cruéis — disse Ernesta. — Se não fosse verdade, não magoaria. Dizem mesmo que o orgulho precede a queda. Verdade ou não, Alyse não queria ouvir aquilo. Para ser honesta, ela detestava aquela gente! — Com licença. — Sim, querida. Vá ler Milton até a hora de irmos para a cidade. Sem responder, Alyse retirou-se para o quarto. Estivera ansiosa para ir a Lewes, mas agora já não tinha tanta certeza. E se Phineas estivesse lá? Será que ele lhe lançaria o mesmo olhar de satisfação maligna com seu infortúnio, como haviam feito seus supostos amigos após o escândalo? Na noite anterior, identificara nos olhos dele apenas surpresa e alívio ao vê-la. Para Phin, ela fora um rosto amigável, que pertencia a um passado mais benevolente. Reconheceu aquele olhar, pois se sentira da mesma maneira. Ainda assim, uma vez que ele soubesse o que ocorrera, como sua sorte mudara, não sorriria quando se encontrassem de novo. Ou pior, ele sorriria pelas suas costas. Frustração, raiva e nojo de seus parentes se misturavam. Por cinco anos, tentara extrair o melhor das coisas e aprendera a ser grata por pequenas gentilezas que antes jamais lhe chamariam a atenção. E, por fim, começara a planejar sua fuga. Ainda assim, cada dia terminava um pouco pior do que havia começado. Até a noite anterior. Mas sentir esperança ou ansiedade significaria apenas que se magoaria ainda mais quando as pessoas a encontrassem e rissem dela. Fechou os olhos por um instante, antes de abrir Paraíso Perdido, e fez uma prece silenciosa. Por favor, não permita que Phineas Bromley ria de mim. Phineas despertou antes do amanhecer. Estava acostumado aos horários que cumpria na Espanha e, dada a forma como fora recebido ali, não via muita utilidade em alterar seus hábitos. Bocejando, acendeu a lamparina sobre a mesa e sentou-se, para barbear-se. Eles realmente haviam deixado o quarto como costumava ser. Se tivesse que adivinhar se aquilo acontecera por deferência ou porque queriam lidar com ele o mínimo possível, provavelmente escolheria a última hipótese. De qualquer modo, da última vez que dormira ali, nem barba ele tinha. Felizmente, colocara tudo de que necessitaria no baú antes de deixar o regimento. Contemplou-se no espelho: sem camisa, descalço, vestindo as calças velhas que usava para dormir. Exibia uma bela coleção de cicatrizes, resultado de ter sido baleado, esfaqueado e de um ou dois cavalos terem caído sobre ele, mas nada se comparava ao que fizera com William. Afinal, todos os seus membros ainda funcionavam. Os cabelos precisavam de um corte, e o rosto estava mais magro, e bronzeado pelos longos dias sob o sol da Espanha. Até mesmo os olhos pareciam diferentes desde a última vez que se sentara ali. Mais... velhos. 17

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Ao ouvir uma batida à porta, Phineas sobressaltou-se. — Entre — ele disse, pondo a lâmina de lado. Afinal, a única guerra ali era a travada em seu íntimo. A porta abriu-se. — Bom dia, coronel. Por alguns instantes, Phineas ficou imóvel. — Gordon? Que diabos está fazendo aqui? — É uma história e tanto — o corpulento escocês falou. — Aquele camarada lá embaixo pegou as minhas malas. Espero que ele trabalhe aqui. — Um camarada alto e velho como Matusalém? Thaddeus Gordon estalou os dedos. — Sim, é ele. Meio esquentado também. — Você bateu na porta da frente? — Sim. Não seria educado escalar uma das janelas. — Foi isso que O irritou. O escocês ergueu uma sobrancelha. — Eu não ter entrado por uma janela? — Você ter batido na porta da frente. Você, sargento, não foi convidado. E pior: é meu homem. — Quando Gordon continuou encarando-o, Phineas sorriu. — Use a porta dos fundos. — Ah! Está certo então. Casas grandes, porta dos fundos. Você poderia ter dito antes. — Você não devia estar aqui. — Phineas levantou-se. — O que me leva de volta à pergunta inicial. Por que veio? — Você mesmo já respondeu essa pergunta. Sou seu homem. Não poderia ficar para trás e deixar que se defendesse sozinho. — Você está a serviço de Sua Majestade, sargento. Não pode simplesmente partir quando lhe der vontade. — Não fiz isso. Eu disse ao capitão Brent que você mandou me buscar. Deixei suas coisas com o capitão, caso esteja se perguntando. Estão a salvo. Phineas suspirou. Em outras circunstâncias, a desobediência de Gordon o teria irritado bastante. Após a noite anterior, no entanto, estava feliz por ver um aliado. — Já que está aqui, então, ajude-me a me vestir. — A farda? Ou é um civil agora? — Considerando o estado atual das minhas roupas civis, ainda sou um soldado. — Ergueu uma das sobrancelhas. — Na verdade, creio ter algum trabalho com o ferro de passar para você também. — Oh, Deus! Phineas poderia revirar o antigo guarda-roupa, mas, estando dez centímetros mais alto e doze quilos mais pesado, nada lhe serviria. Graças a algumas vigorosas sacudidas e à aplicação estratégica de um ferro quente que Gordon conseguiu em algum lugar, sua 18

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farda ficou apresentável, mesmo após uma semana de uso intenso. — Muito bem, coronel — comentou o homem, examinando-o. — Acho que suas botas precisam de polimento. — Agora não. — Phineas checou o relógio de bolso. Estava na hora de descer para o desjejum e comportar-se de maneira civilizada, como Beth pedira. E estava na hora de ver se conseguia decifrar o que diabos, além do mau estado da propriedade, fizera sua irmã mentir para que retornasse ao local que outrora chamara de lar. O sargento Gordon abriu a porta do quarto e seguiu-o para fora. — Acho que estou sentindo cheiro de frango assado — ele disse, esfregando as mãos. — No momento, sr. Gordon, você não é um militar. Você é meu... criado. — Bem, isso não soa elegante? — o escocês debochou. — Criados comem com o restante da criadagem, na cozinha. E eles não arrumam confusão, não bebem nem fazem fuxicos. — Maldição! Quem gostaria de ser um criado, então? — Você, aparentemente, já que me seguiu até aqui. Desça as escadas do fundo até a cozinha. Sem confusão, sargento. — Hesitou. — Encontre algumas roupas civis para você. Quero ficar sabendo de qualquer coisa que possa escutar a respeito de Quence Park. Thaddeus Gordon endireitou-se e fez uma continência. — Tem minha palavra, coronel. Phineas podia apenas esperar que o sargento falasse a sério. Só a presença dele já era ruim o suficiente. Não sabia como William reagiria diante de parte tão pouco ortodoxa da vida do irmão mais novo aparecendo de repente. E, francamente, ele não queria descobrir. — Eu vou cobrar. Faltavam ainda alguns minutos para as oito horas quando ele começou a descer a escadaria principal. Pelos sons que escutava, a casa estava em plena atividade, ainda que não tivesse visto ou ouvido nenhum dos irmãos. Ele se deteve diante da cadeira de rodas vazia ao pé das escadas. Seu irmão, que adorava sair para pescar e montar, estava confinado àquela armadilha de madeira por causa dele. E aquilo complicava tudo. Investigar os assuntos do irmão seria difícil o bastante, mas fazê-lo quando tinha uma dívida que jamais poderia pagar... Ele precisava ser duas pessoas. Uma com a qual William pudesse brigar e outra que pudesse descobrir os mistérios de Beth sem ferir o orgulho do irmão ou atropelar as responsabilidades dele. Passos pesados soaram na escada, fazendo-o olhar para cima. Andrews descia, carregando William. O visconde tinha um dos braços ao redor dos ombros do criado, enquanto com o outro segurava a manta em volta das pernas. Carregado daquela maneira, William parecia alquebrado e frágil, muito mais velho do que os seus trinta e quatro anos. — Eu... — Não planeja ficar muito tempo, então? — interrompeu o visconde, enquanto 19

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Andrews o acomodava na cadeira. Phineas meneou a cabeça. Não podia pedir perdão. O perdão precisava ser oferecido. — Como? — Você ainda está usando a farda. — Ah, nada do que eu tenho estava... em ordem, esta manhã. — Andrews contou-me que você tem um criado agora. — Sim. Gordon. Meu sargento. Ele... me seguiu até aqui. — Todos os seus homens são tão bem disciplinados? — Gordon é teimoso e se preocupa comigo. Se não o quiser por aqui, posso acertá-lo no crânio e colocá-lo em um navio de volta para a Espanha. William contemplou-o por um instante com uma expressão indecifrável. — Se está aqui como um cavalheiro, é bom que tenha alguém para ajudá-lo. — Quando ele terminou de falar, Andrews, como se tivesse recebido um sinal invisível, virou a cadeira e o conduziu até a sala do desjejum. Phineas seguiu-os. — Pensei em ir a Lewes hoje, se me emprestar algum transporte. — Já está entediado com Quence Park, não está? Praguejando de novo em silêncio, Phineas foi até o aparador e examinou os alimentos ali dispostos. A comida era menos abundante do que se lembrava, mas, após dez anos de pão velho e carnes de origem duvidosa, ele não se queixaria. — Ontem, quando cheguei, esperava vê-lo acamado — disse, escolhendo as palavras com cuidado. Acostumara-se à ação, a fazer avaliações rápidas e reagir. Mas agir com cautela, sem ter conhecimento de qualquer informação pertinente nem sequer para uma conversa... Era algo de que não gostava. Ainda assim, seria obrigado a tolerar. — Hoje, estou sendo civilizado, cordial e o mais discreto possível. — Vou pedir a Warner que lhe arranje uma montaria — disse lorde Quence, no mesmo tom monótono que usara anteriormente. — Obrigado. — Bom dia, meus dois belos irmãos. — Elizabeth irrompeu no recinto, com um sorriso brilhante. Beijou William no rosto e moveu-se para a frente, a fim de fazer o mesmo com Phineas. — Bom dia. — Ele retribuiu o beijo, notando que o sorriso da irmã era luminoso, e a voz, determinada demais. Se ela queria uma manhã harmoniosa, ele faria a sua parte. — Você me parece muito bem, se é que posso dizer isso. — Sim, pode sim. Eu vou até os jardins colher algumas flores, e então Richard virá me apanhar aqui. Phineas colocou o prato na mesa e sentou-se à esquerda de William. — Sei. E estamos encantados por Richard vir aqui, ou eu devo estar armado? — Eu estou encantada — disse Beth, rindo. — William ainda não ameaçou ninguém, mas você pode agir como quiser. — Enviou-lhe um olhar zombeteiro. — Dentro de certos limites, é claro. Sem atirar nele ou esfaqueá-lo. 20

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— Você tem minha palavra, sujeita a futura reavaliação. — Muito bem. — Phin vai a Lewes esta manhã — comentou William. Beth franziu a testa, mas desfez a expressão tão rapidamente que Phineas não teve certeza se a imaginara. — Vai? — A não ser que tenha outra sugestão para mim. — Uma que acolheria de bom grado, mas que provavelmente não receberia. Ela aparentemente dera sua palavra a William. — Não, é claro que não. Você está em casa. Deve familiarizar-se de novo com as cercanias. — Alguma cercania em particular? — É claro que não. Pelo amor de Deus! Muito bem. Ele não a forçaria a nada, muito menos na presença de William. — Há alguma fofoca boa, então? A expressão de Elizabeth suavizou-se. — Oh, eu sei uma porção de fofocas. — Ela se inclinou para a frente. — Elas dizem, por exemplo, que lorde Roesglen tem tomado as estradas, à noite, para buscar e levar de volta para casa sua amante. Ninguém ainda descobriu quem é ela. Phineas riu. — Por um momento, pensei que fosse dizer que Roesglen rumava pela noite como um salteador. Eu até gostaria de ver isso, uma vez que, da última vez que pus os olhos nele, ele pesava mais de cento e vinte quilos. — Acho que ele não consegue nem mais montar um cavalo. — Ela riu. — Isso realmente seria uma visão. Você se lembra das histórias que papai nos contava sobre o Cavalheiro? Nós não temos um salteador decente há trinta anos. — Graças a Deus por isso — opinou William. — Não precisamos de mais problemas. — Mais problemas? — Phineas enfatizou a palavra. Talvez não pudesse interrogar a irmã, mas, caso William oferecesse algo voluntariamente, ele precisaria se esforçar menos. Um músculo no rosto do visconde contraiu-se. — Vá fazer seu passeio, Phin. Lewes tornou-se um lugar bem mais sofisticado. Tenho certeza de que vai encontrar cantoras de ópera e atrizes suficientes para satisfazêlo. Com o rosto quente, Phineas pôs-se de pé. Então era assim que jogariam. — Eu não vim até aqui para procurar alguém com quem compartilhar a cama — ele grunhiu. — Os bares e tavernas também abrem cedo. Andrews? — Sim, milorde. A cadeira de rodas afastou-se da mesa e saiu do recinto. Phineas sentou-se de novo, tentando controlar a crescente frustração. 21

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— Phin, ele... — Não crie desculpas para nenhum de nós — ele a interrompeu. — Vai me contar por que enviou a carta ou devo descobrir sozinho? Para sua surpresa, os olhos dela marejaram. — Tudo o que posso fazer é pedir que não permita que ele o afaste daqui. — Beth? — A voz de William ecoou do corredor. — Você tem correspondência. — Já vou. — Ela se pôs em pé. Ao passar atrás de Phineas, tocou-o no ombro. — Por favor, fique — pediu, antes de retirar-se. Então era isso. Nem mesmo o diabo em pessoa seria capaz de arrastá-lo de lá agora. O passo seguinte era avaliar o terreno e preparar-se para a batalha, sabendo ou não contra o que lutaria. — Alyse, carregue minha bolsa. Alyse aproximou-se dela e pegou a bolsa, que parecia quase vazia. Tia Ernesta parecia estar mais interessada em ter alguém que lhe carregasse as coisas do que em ser aliviada de algum fardo. Sacudiu a bolsinha. Havia ali algumas moedas, mas precisaria esperar para ver se conseguiria subtrair um centavo ou dois. Deus sabia o quanto aprendera a ser paciente, ao mesmo tempo em que percebera que se sentia contente por, aos poucos, reunir fundos que, caso o primo tivesse algum coração, seriam seus por direito. O pai tentara mantê-la segura, mas fora forçado a deixar tudo sob os cuidados do herdeiro. E Richard recusara-se a cumprir as vontades do antigo visconde. — E fique por perto — continuou Ernesta. — Você sabe que detesto quando você sai por aí. — Sim, tia. Elas atravessaram a rua até a loja de roupas de Daisy Duvall. O lugar estava uma década atrasado em relação à moda, e parecia mais popular entre as grandes damas de Lewes do que entre as mais jovens. Alyse jamais comprara algo ali, e nunca tinha entrado no local até um ano antes. Não que tivesse dinheiro para gastar no estabelecimento. Mas, mesmo que tivesse, não gostaria de empregá-lo daquela forma. Passaram cerca de uma hora lá dentro. A sra. Duvall e suas ajudantes flutuavam ao redor de tia Ernesta e de lady Hestley, que se juntara ao grupo. Alyse sentou-se, manteve uma expressão interessada e deixou a mente divagar. Sua mente divagava bastante nos últimos tempos, uma vez que seus pés não podiam levá-la a parte alguma. Se pudesse escolher, faria uma visita à loja de doces. Ela adorava quebra-queixos, e o sr. Styles costumava deixar alguns separados todas as terças, o dia em que ela e as amigas costumavam ir até Lewes para fazer compras e almoçar. Tia Ernesta não gostava de doces, embora adorasse rosquinhas. O mais perto que Alyse chegara de um doce ultimamente havia sido dos morangos que escondera de Richard. — Alyse! Ela piscou. — Sim, tia? — Eu disse para ir até a padaria comprar meia dúzia de rosquinhas para mim. E é melhor que preste mais atenção. Pelo amor de Deus! 22

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A mãe do visconde entregou-lhe uma moeda. Alyse levantou-se e saiu da loja, ignorando o burburinho e as risadinhas às suas costas. A tia não precisava lembrar-lhe de que sua vida fora irrevogavelmente alterada; tudo o que ela precisava fazer para saber disso era abrir os olhos todas as manhãs. Pena que tia Ernesta não fosse receber o troco pelas rosquinhas. Como acontecia havia um ano. — Bom dia, srta. Donnelly. Alyse olhou para cima no momento em que um cavalo parava à sua frente. Seu coração disparou ao reconhecer a voz do cavaleiro. — Coronel. Bom dia. Desmontando, ele segurou as rédeas em uma das mãos e estendeu a outra para tomar seus dedos. Alyse observou-o, enquanto ele se curvava para beijá-los. O menino alto e magro se transformara em um homem esguio e musculoso. E lindo, com aqueles cabelos escuros e selvagens, a boca sensual e a farda azul e escarlate. Olhos castanhos ergueram-se para contemplar seu rosto quando Phin endireitou-se. Parecia feliz por vê-la, e não estava rindo. Alyse recuperou o fôlego ao afastar sua mão da do coronel. — O que o traz à cidade esta manhã? — E se eu dissesse que foi você? Ela sentiu as bochechas quentes. — Eu diria, Phin Bromley, que esses dez anos não apagaram minha inteligência. Você não sabia que eu estaria aqui. — Esperta e bonita — ele disse, sem se deixar intimidar. — Eu quase a abracei ontem à noite, Alyse. Encontrá-la aqui... — Ele pigarreou. — É bom vê-la de novo. O coração de Alyse se acelerou. — E você — ela falou, tentando encontrar a esperteza que ele acabara de elogiar —, o que o traz a Lewes? — De volta ao início, não é? Então o desejo por ar fresco me trouxe até aqui. — Olhou ao redor. — A cidade cresceu, não? — É verdade — Alyse concordou, mais à vontade agora que não era o assunto da conversa. — Esta é a égua de Warner, não é? O sorriso dele se aprofundou. — Sim. Daffodil. Eu teria chegado à cidade mais cedo, mas receio que fazê-la trotar a teria matado. Aparentemente, Warner vai a todos os lugares bem devagar. Alyse sorriu-lhe de volta. Não podia evitar. — A farda fica bem em você. — É um fato universalmente reconhecido — ele disse, baixando o olhar para sua boca — que, entre dois cavalheiros semelhantes, a mulher vai escolher flertar com o homem fardado. Havia algo desconcertante na atenção que Phineas lhe dedicava. Com uma risada, ela meneou a cabeça. — E presumo que tenha feito um estudo científico a esse respeito, não? — Quem fez foi a srta. Jane Austen. Eu sou um simples soldado, srta. Donnelly. — Você nunca foi um simples nada, Phin. Ou melhor, coronel Bromley. — Phin. Por favor. Afinal, você jogou lama nas minhas costas. Alyse riu. — Ah, sim, mas eu tinha nove anos na época. E você tinha o quê? Onze? 23

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— Bom Deus! Sim, acho que sim. — Ele desviou o olhar para as lojas repletas ao longo da rua. — Você está aqui com amigos? Ele realmente não sabia. Por um instante, ela desejou que as coisas permanecessem dessa forma. — Não. Vim com minha tia. Ela me mandou até a padaria comprar rosquinhas. De imediato, Phineas ofereceu-lhe o braço. — Permita-me acompanhá-la. — Não é necessário. — O que me torna incrivelmente galante. Ele agitou os dedos em sua direção e, sorrindo, Alyse passou a mão ao redor do braço dele. Fazia quase cinco anos que ninguém se preocupava em ser galante com ela. — Se me permite tomar a liberdade — ela se aventurou enquanto caminhavam, com Daffodil logo atrás —, sua família pareceu surpresa ao vê-lo. — Uma falha na comunicação — ele disse, prontamente. — Pensei que me aguardassem. — É verdade o que Beth falou, a respeito de você ter tido cinco promoções no campo de batalha? Você deve ser bem heróico, além de ser galante. Phineas riu. — Até o momento, tenho tido êxito em não ser morto. — Ficou sério de repente. — Mais uma vez, lamento muito por seus pais. Ninguém me informou, ou eu teria escrito. Teria mesmo? — Obrigada. Ambos tiveram aquela febre terrível que circulava cinco anos atrás, e não se recuperaram. Mas fico contente que tenham partido juntos. Pelo bem deles. — Então seu primo herdou o título? Alyse assentiu. Richard herdara muito mais do que o título de visconde de Donnelly, mas ela não revelaria a Phin o seu sofrimento. Não quando fazia dez anos que não o via. — É bom que você não tenha tido que sair da casa dos Donnelly. Phin realmente não sabia de nada. Dividida entre querer desabafar seus problemas e rir, Alyse soltou o braço dele. — Obrigada pela companhia, Phin — disse, tentando manter a voz firme —, mas minha tia detesta esperar. — Com um meio sorriso, ela continuou caminhando. Após cerca de meia dúzia de passos, sentiu a mão dele no ombro, fazendo-a parar. — Alyse — ele falou, a voz mais baixa e íntima — Posso fazer uma pergunta? Só entre nós. Isso não pode sair daqui. Alyse franziu a testa. Evidentemente, ela não era a única com problemas. — Qual é a sua pergunta? — Você sabe de algo que meu irmão possa considerar... problemático? — Problemático? Você se refere a algo como a inundação das pastagens de Quence a leste? Aquilo aconteceu há cerca de quinze dias. Richard, o meu primo, está 24

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ajudando a erguer um novo dique, já que William não pode supervisionar as obras. — Sim, algo assim. Obrigado. Se pensar em algo mais, por favor, me diga. Na verdade, posso levá-la para passear amanhã? "Aquela era a segunda vez que Phineas sugeria um passeio. O coração de Alyse se acelerou, mas ela tentou ignorá-lo. Ele somente queria informações e achava que ela seria capaz de fornecê-las. — Vou pedir para a minha tia. Phineas ergueu a sobrancelha com a cicatriz, de um modo atraente e perigoso. — Ainda que eu não esteja disposto a levar um tapa, você não tem vinte e cinco anos? E eu não consigo lembrar-me de você pedindo permissão para fazer qualquer coisa. Alyse libertou-se do toque dele em seu ombro. — Tenho certeza de que você sabe que as coisas mudam. E não apenas para você. Mantendo o queixo erguido e os ombros eretos, ela andou até a padaria. Phineas podia não saber como haviam sido os últimos quatro anos e meio na vida de Alyse, mas ela não se esqueceria. Phin Bromley sempre representara em partes iguais problemas e excitação. E Alyse não precisava de nenhuma das duas coisas. Não importava o quanto fosse belo o rosto que as trouxesse ou o quanto fossem boas as lembranças que tinha dele. Phineas observou Alyse desaparecer no interior da padaria. Obviamente, ele dissera as coisas erradas, mas não imaginava quais. Teria alguém lhe partido o coração, transformado-a em uma daquelas mulheres assustadas que detestavam homens? Aquilo fazia sentido, considerando que se mantivera solteira, mas também o inquietava. Quando partira, ela era uma flor começando a desabrochar. Desistira de qualquer intenção com ela quase antes de perceber que ela poderia ser mais para ele do que uma amiga querida. E vê-la agora... Ela era sua Alyse e, ao mesmo tempo, alguém diferente. A idéia de que algum homem a tivesse magoado... o enfurecia. Bem, desvendar Alyse era algo que teria que esperar. Ela lhe dera uma pista que precisava seguir. Montou de novo. — Vamos, Daffodil. No melhor passo que a égua era capaz de suportar, ele levou quase trinta minutos para alcançar os limites das vastas pastagens de Quence Park. No passado, ovelhas estariam espalhadas pela relva baixa, convidando algum artista a retratar o cenário pastoril. Agora, no entanto, estava tudo vazio, com raios de luz refletindo por entre as folhas e libélulas passando sobre as largas extensões de terra inundada. — Bom Deus — ele murmurou. Devia haver quase dez centímetros de água cobrindo todo o pasto. Na parte mais alta, ele viu diversos homens, e encorajou a égua relutante a atravessar o charco até a margem mais elevada do rio. Três dos homens discutiam com um quarto, mais bem vestido e montado em um cavalo. — Boa tarde, cavalheiros — disse Phineas, parando ao lado de uma carroça cheia de pedras. 25

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Os homens pararam de discutir para mirá-lo. — Quem é você? — perguntou o mais corpulento, enfiando uma pá no solo molhado e descansando os braços cruzados no cabo. Phineas olhou-os com firmeza, inabalado pela demonstração de agressividade. — Coronel Phin Bromley — ele falou, cruzando os próprios punhos sobre a parte dianteira da sela. — Quem são vocês? — Brown — retrucou o camarada. — E o que estão fazendo nas minhas terras, sr. Brown? Tecnicamente, as terras pertenciam a William, mas estavam na família havia gerações. E ele era um Bromley, afinal. Brown cuspiu na lama. — Se as terras fossem suas, saberia por que estamos aqui, coronel Bromley. Hum. E ele sabia, mas apenas porque Alyse lhe contara. E agora que se identificara como um Bromley, precisaria comportar-se de maneira relativamente civilizada. Aquilo podia ser um problema, e não apenas ali. Uma vez que Beth não estava disposta a ser comunicativa, ele podia apenas imaginar o que teria de enfrentar com o restante dos cidadãos. — Pergunto apenas porque vocês parecem conversar mais do que trabalhar. — Diga isso ao maldito sr. Stuggley ali. — O camarada gesticulou em direção ao homem que parecia bravo sobre a sela do cavalo, do outro lado do riacho. O nome era familiar, e incomum o suficiente para que Phineas se arriscasse a estar errado. — Stuggley — repetiu. — Não John Stuggley. A expressão do homem desanuviou-se um pouco. — O próprio, coronel Bromley. Meu pai aposentou-se há um ano. Estou cuidando dos interesses de Roesglen desde então. Poucos anos mais velho que William, John Stuggley não fazia parte do círculo de amigos dos Bromley. O pai dele era bastante respeitado pelo marquês de Roesglen, e Roesglen fora amigo do pai de Phineas. Uma conexão um tanto distante, mas Phineas sentia-se mais inclinado a ouvi-lo do que ao tosco Brown. — Talvez o senhor possa me iluminar então, sr. Stuggley — disse. — Qual é a dificuldade aqui? — A dificuldade é que, caso um novo dique de irrigação seja construído aqui, ele poderia até salvar as pastagens de Quence, mas a água contida voltaria e inundaria as pastagens de Roesglen, assim como faria transbordar o lago dos peixes. Lorde Roesglen não encararia as notícias sobre a perda de seu lago favorito muito bem. — Este riacho está nas terras de Quence — argumentou Brown. — E lorde Donnelly diz que o dique será aqui. — Isso é roubo — Stuggley falou. — Você vai deixar Roesglen e Quence às turras. Phineas contemplou os arredores encharcados e as terras de Roesglen, na direção nordeste, à distância. — O que impedia que essas pastagens fossem inundadas antes? — ele perguntou, desejando ter prestado mais atenção à administração das terras em sua juventude. Mas aquele havia sido o dever de William, enquanto ele tinha outros interesses. 26

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— O velho dique, a cerca de oitocentos metros, ao sul do afluente a leste — Stuggley respondeu. — Ele rompeu há quinze dias. — Então talvez o novo dique deva ficar onde estava o antigo, que serviu por mais de vinte anos — disse Phineas. — Lorde Donnelly já se decidiu contra isso. — Brown cuspiu de novo, por pouco não acertando o casco de Daffodil. — Um dia a mais não fará diferença. Stuggey, você tem um mapa das terras da propriedade? — Tenho. — Leve-o a Quence pela manhã, por favor. — É claro. — O funcionário olhou para os trabalhadores. — E vocês todos — continuou Phineas — vão para casa. — Mas e nossos pagamentos? Não ficamos aqui por nada. Phineas ergueu a sobrancelha. — Procurem lorde Donnelly. Ele os contratou. Brown resmungou uma grosseria. Se Phineas não estivesse usando sua farda e não tivesse a reputação de William nas mãos, teria ficado bastante disposto a dar-lhe uma lição. Jamais desejara tanto ser duas pessoas separadas. Cavalgar braviamente para longe seria uma boa maneira de dar fim à conversa, mas ver Daffodil cair morta na lama, certamente não. Precisava de uma montaria melhor. Enquanto lidava com o animal e virava-o para o lado, notou o olhar agradecido de Stuggley. Ao menos alguém apreciara sua presença. Ele saiu das pastagens e cavalgou para a grande casa branca. Os campos inundados eram má sorte. No entanto, o modo que Donnelly escolhera para resolver a questão o incomodava ainda mais. Com um projeto descuidado, e um erro facilmente evitável, o visconde poderia ter provocado a inimizade entre duas famílias aliadas. E, uma vez que Donnelly mudara a localização original do dique, Phineas era obrigado a se perguntar se aquilo teria sido intencional. Beth gostava de lorde Donnelly, e William parecia considerá-lo um amigo. Phineas franziu o cenho. Se fosse sair procurando conspirações, precisaria ser cuidadoso. Sua posição na casa já era incerta o bastante sem que ele acusasse amigos e vizinhos de delitos, especialmente quando não tinha qualquer evidência ou motivo real para tanto. Nenhum motivo, exceto os instintos de soldado. Precisava usar esses instintos para descobrir o que perturbava Quence e a família, sem que isso levasse William a expulsá-lo de lá. — Bem-vindo de volta, sr. Bromley — disse Warner, encontrando-o à frente da casa. — Daff está com um brilho nos olhos. Deve ter apreciado a jornada. — Obrigado por emprestá-la. — Há algo que o senhor... A porta da frente se abriu, e Gordon aproximou-se dele, com um Digby quase apoplético aos calcanhares. — Coronel, você tem... — Essa é minha tarefa, seu intrometido — interrompeu o mordomo, literalmente dando um safanão no sargento. 27

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Aquele não era o movimento mais inteligente para o velho Digby, considerando-se as habilidades de Gordon como soldado. — Chega, Gordon — Phineas interferiu antes que eles começassem a trocar socos. — Sim. — O mordomo estendeu a bandeja de prata que trazia na mão, com uma missiva dobrada ao centro. — Há uma carta para o senhor, mestre Phineas. — Obrigado — ele disse, pegando-a. Em letras grandes e familiares, estava escrito: Coronel Phineas Bromley. — É de Sullivan — disse em voz alta, rompendo o selo de cera. — Com licença, coronel — interrompeu Gordon de novo —, mas você precisa vir ao estábulo comigo. O homem estava rubro e praticamente vibrando, de modo que Phineas gesticulou para que ele liderasse o caminho. — E melhor que seja coisa boa, Gordon, ou vai se arrepender. Gordon empurrou as grandes portas duplas e pôs-se de lado. — Oh, é coisa boa. Muito boa. Phineas entrou no estábulo... e imobilizou-se. — Bom Deus — ele murmurou. — Tentei avisá-lo, senhor — disse Warner, de uma das baias, onde removia a sela de Daffodil. — Não se preocupe — disse Phineas distraídamente, com o olhar fixo no monstro que resfolegava para ele, no centro do recinto. Negro, lustroso e claramente um purosangue, a fera o olhava e batia os cascos. — Isso, sim, é um cavalo — Gordon falou com reverência. De repente, Phineas lembrou-se de que ainda estava com a carta de Sullivan nas mãos e abriu-a, lendo-a em voz alta para o sargento: — "Phin, bem-vindo de volta. Achei que um bom cavalo seria útil. O nome dele é Ájax." — Ájax — repetiu Gordon. — Sim, o capitão Waring sempre conheceu bem os cavalos. — Ele tem um estábulo em Sussex — disse Phin, aproximando-se do animal para avaliá-lo melhor. Sullivan provavelmente era o melhor criador de cavalos do país, mesmo após a ausência de quatro anos, durante a qual servira entre os Primeiros Dragões Reais, na Espanha. Com relutância, tirou os olhos do cavalo e voltou a ler a carta — "Espero que seus irmãos estejam bem, e que minhas preocupações e as de Bram sejam infundadas. Se precisar de qualquer coisa estou a apenas algumas horas de distância. Sullivan." — Esse, sim, é um bom amigo — comentou Gordon, e então perguntou: — Que preocupações? — Ainda estou descobrindo — respondeu Phineas, passando a mão pela crina do garanhão. — Você é um rapaz bem bonito, não é? Ajax dificilmente seria um cavalo adequado para alguém disposto a fazer uma investigação discreta. Mas também o mesmo camarada não deveria atrair atenção sobre si ao usar uma farda. Hum... Não. Não deveria cavalgar Ajax, a não ser que pudesse usar a impressionante aparência do animal para a própria vantagem. Um plano começou a 28

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desenrolar em sua mente. Ele olhou para Warner por sobre o ombro. — Você é daqui mesmo, não? — Sim, senhor. — Você se lembra das histórias sobre o Cavalheiro? — Sim. Um ladrão de estrada, de mais ou menos trinta anos atrás. Meu avô conduzia um dos coches que ele abordou. — Com uma risada, ele gesticulou em direção a Ajax. — Eu me lembro de que ele montava um cavalo parecido com esse. — Sim, ele supostamente tinha o animal mais veloz da região, não é? — disse Phineas, mais para si mesmo. Gordon olhou do cavalariço para Phineas. — E o que aconteceu com esse Cavalheiro, se posso perguntar? — Ninguém sabe — respondeu Warner. — Imagino que tenha se aposentado com uma das belezinhas que pilhava e encantava. Ele roubou tantos corações quanto dinheiro. — Posso ter uma palavra com você, coronel? — o sargento indagou asperamente. — Claro. — Phin caminhou até a porta do estábulo, e então olhou para Warner. — Gostaria que ninguém soubesse sobre Ájax por enquanto. Embora parecesse curioso, o criado assentiu. — Sim. Assim que saíram, Gordon abordou-o. — Você voltou para casa para se tornar um salteador? O que diabos está... — Sugiro que pense bem antes de prosseguir, sargento — interrompeu Phineas, sombrio. — Mas... — O que você percebeu, desde que chegou? — Perceber? — Gordon franziu o cenho. — Se vou me complicar, não será por insultá-lo ou sua família. — Obrigado, mas quero que seja honesto. O que você percebeu? — Alguns campos precisam ser arados, há poucos empregados, uma carruagem, apenas quatro cavalos no estábulo... Bem, cinco agora, e há várias cabanas de arrendatários destruídas. Phineas analisou seu suposto criado por um instante. Notara o restante, mas não sabia a respeito das cabanas. E tudo aquilo apenas após um dia de estadia. Inspirou profundamente. — Minha irmã admite ter mentido sobre a saúde de meu irmão para que eu viesse, mas, aparentemente, ela também prometeu não me envolver em mais nada. Tudo o que sei é que algo está errado e que eu não vou partir até descobrir o quê e ajeitar as coisas. — Creio que isso é belo e nobre de sua parte, coronel, mas não vejo como tornarse um salteador pode... — Preciso de informação, mas sem levantar suspeitas sobre minha família ou sobre mim. E, nessas circunstâncias, eu... vou aproveitar a oportunidade de obter algumas respostas que eu não conseguiria como Phin Bromley. Posso contar com você, 29

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Gordon? — Sempre. — Explique a Warner. Por enquanto, ninguém pode saber que Ajax está aqui. — Certo. Mas se você se tornar um salteador, coronel, estará se arriscando a ser enforcado. — É um risco que estou disposto a correr. Digby, ainda parecendo aborrecido por Gordon ter se intrometido em seu território, abriu-lhe a porta quando ele chegou aos degraus da frente. — Está tudo bem, senhor? — perguntou o mordomo. — Sim. Beth já retornou? — Não, senhor. Não a esperamos na próxima hora. — E onde eu posso encontrar William? — Lorde Quence está no gabinete. Deseja que... — Eu me lembro de onde fica — Phineas interrompeu-o, caminhando na direção dos aposentos no fundo da casa. A porta do gabinete estava aberta, mas, ainda assim, ele parou para bater. — Entre. — Boa tarde, William. — Ele entrou, mantendo um olhar amistoso. Andrews estava parado em um dos cantos do aposento, imóvel como uma estátua, mas obviamente pronto para, a qualquer momento, tornar-se as pernas do visconde. — Phin — William fechou o livro de contabilidade no qual estava trabalhando —, como foi seu passeio? Estaria William tentando esconder dele a situação real de Quence? Ou haveria algo a mais no ar? — Foi interessante. Podemos falar em particular um instante? Um músculo na face magra de William saltou. — Isto é o mais particular possível para mim. Phineas contraiu a mandíbula, mas anuiu. Se o irmão queria Andrews ali, o criado ficaria. Dera-se conta, havia muito tempo, de que não era muito talentoso para a diplomacia. Deixava aquilo para os mais qualificados. No que ele tinha excelência era em atacar após o fracasso dos diplomatas. Inspirou, fechando a porta. Novas situações, novas táticas. — Cavalguei pelas pastagens a leste. — E?... — O local onde Donnelly quer colocar o novo dique vai inundar as pastagens e o lago de Roesglen. — E?...:— ele repetiu. — E então eu disse aos homens dele para esperarem um dia. John Stuggley virá aqui de manhã, para que vocês dois possam decidir o melhor lugar para o dique. — Muito bem. — William reabriu o livro de contabilidade. — Muito bem? — Phineas repetiu. — Isso é tudo? 30

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Com um suspiro, o visconde fechou o livro pela segunda vez. — O que você quer que eu diga? "Graças a Deus por você ter retornado a Quence a tempo de impedir que lorde Roesglen perdesse o lago"? — Donnelly não mencionou que estava mudando o local do dique, e que isso poderia causar atritos entre você e Roesglen? O irmão fechou o rosto por um breve instante, mas logo suavizou a expressão outra vez. — Não pensei em perguntar. — Onde está seu gerente? Onde... Qual é o nome dele? Boling. Onde está o sr. Boling? — Casou-se com uma jovem, cujo pai possui um moinho em Darbyshire. Ele cuida do moinho agora. — Por que não contratou alguém para substituí-lo? William estreitou os olhos. — Você não está realmente questionando minha administração da propriedade, está? — Não, é claro que não. Mas... — Você reaparece após dez anos e, apenas porque encontrou por acaso um dique sendo construído no lugar errado, acha que se tornou a salvação da família? — Eu não disse isso. Só fiquei preocupado que a decisão de Donnelly pudesse afetar a amizade da família com Roesglen. Isso é tudo. — Richard Donnelly tem sido muito útil desde que chegou, no ano passado. E ele não pede nada em retorno. Nenhum reconhecimento, nenhum dinheiro, nada... — Nada, a não ser Beth, talvez. — Beth gosta dele. Ele se tornou parte desta família. Phineas compreendeu aquilo. — Você quer dizer que ele tomou o meu lugar nesta família — ele disse, rigidamente, virando-se de costas e rumando para a porta. — Alguém precisava fazer isso. — Pode me insultar o quanto quiser, William. Eu mereço. Mas isso não vai fazer com que eu vá embora. Com os dentes cerrados, Phineas caminhou pelo corredor. Já esperava uma briga, e com certeza não achava que William o recebesse de braços abertos, mas não ter nenhum lugar... Aquilo jamais lhe ocorrera. No entanto, deveria ter pensado nisso. Praguejando, seguiu até o quarto. No passado, teria ficado amuado. Ou então teria ido até Lewes, disposto a arranjar confusão. Naquela noite, no entanto, pretendia tornarse outra pessoa e, como um estranho, aventurar-se por lugares que o velho Phin Bromley não seria capaz de perscrutar. — Milton — disse Alyse, pondo o livro na mesa da biblioteca com um estampido. Costumava diverti-la o fato de tia Ernesta selecionar para suas tolas discussões passagens repletas de pesada moralidade e temas sobre maldição eterna. Após um ano daquilo, no entanto, dava-se conta de que a ironia perdia o sabor quando a vítima não notava estar sob a mira. Dessa forma, a tia esgoelava-se em discussões sobre pecado e 31

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arrogância, sem notar que cometia aqueles mesmos atos no dia a dia. Arrastou o banquinho até a prateleira correta e pegou o livro da mesa, guardando-o. Do lado de fora das janelas altas e estreitas, a lua era minguante, mas seu brilho ainda incidia sobre as folhas do belo jardim. Richard, pelo menos, não arrancara as rosas, substituindo-as por algo mais a seu gosto. Na sala de recreação, a tia e o primo jogavam cartas e faziam comentários ácidos sobre todos que não eles mesmos. Suspirando, Alyse passou pela porta entreaberta e desceu as escadas. — É um pouco tarde para passeios, srta. Alyse — comentou Saunders, virando-se após apagar um par de velas no vestíbulo. — Sim, mas está maravilhosamente tranqüilo lá fora. — Ela pegou um xale do cabideiro e envolveu-o nos ombros. — Se minha tia perguntar por mim, pode lhe dizer que estou procurando adornos para seu chapéu para a festa de quinta-feira? — Não se demore, senhorita. — Não vou demorar. Em sua juventude, antes que o escândalo arruinasse tudo, ela adorava o jardim. Alyse sorriu, sentando-se no banco de pedra sob o velho olmo, a melhor árvore para se escalar em toda a Inglaterra, segundo Phin. Isso antes que ele fizesse dezessete anos e que seu pai lhe pedisse para não passar mais tanto tempo com ele, antes dos rumores de que ele andava com atrizes e mulheres casadas e de que começara a beber. E antes que ele desaparecesse por dez anos. O movimento abaixo da janela do escritório chamou sua atenção. Seu coração se acelerou, mesmo que dissesse a si mesma tratar-se de um coelho ou uma marmota. A não ser pelo fato de que a sombra era maior do que aquilo. Um cão? Um veado? Ela apertou as bordas do xale. Oh, céus! Um homem. E grande, apesar dos movimentos silenciosos ao longo da parede. De repente, ele parou e, devagar, virou o rosto em sua direção. Alyse levantou-se, com um grito formando-se na garganta. Como um raio, ele a alcançou e pressionou-a contra o tronco da árvore, pondo a mão enluvada em sua boca. — Shh... — ele sussurrou com gentileza. Ela não pôde ver-lhe o rosto. O homem usava uma máscara por baixo do antigo chapéu de três bicos e um casaco longo, com o colarinho virado para cima sombreandolhe a boca. Por um breve instante, ela pensou tratar-se do Cavalheiro. Porém, o sujeito seria um ancião àquela altura. — Je ne vous lésez pás — ele murmurou em voz profunda. — Comprenez-vous? Ele dissera que não a machucaria. Assustada como estava, ela acreditou e lentamente assentiu. A mão deixou sua boca. Ele tomou seus dedos nos dele e conduziu-a de volta ao banco. Alyse sentou-se, grata pelo sólido apoio. O vulto escuro afastou-se para as sombras, e logo ressurgiu, com uma rosa vermelha nas mãos. — Merci, ma belle mademoiselle — ele disse em voz baixa, entregando-lhe a flor. Fez uma reverência antiquada, e sumiu na noite. Logo depois, ela o avistou sobre um enorme cavalo negro, indo em direção às árvores. Alyse ficou sentada por um longo instante. Suas mãos tremiam, e ela sentia o aroma suave da rosa no ar da noite. Quem seria aquele francês? Teria ele vindo assaltar 32

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a casa? Quem quer que fosse, o que quer que desejasse, ele se desviara do objetivo para demonstrar não ter intenção de feri-la. Teria o homem seguido Phineas até East Sussex? Afinal, Phin passara dez anos combatendo os franceses. Se um deles estivesse procurando vingança, poderia ter terminado na casa errada. Não, algo mais estava acontecendo. E, ao levantar-se e caminhar para casa, segurando a rosa, ela soube que não informaria nem Richard, nem tia Ernesta a respeito de alguém estar espionando a propriedade. Ele não levara nada, pelo que tinha notado. E seus parentes mereciam alguma desventura. Se encontrasse esse francês de novo, ela se preocuparia. Por ora, encararia aquilo como uma experiência estranha, mas não inteiramente desagradável, e colocaria a rosa em um vaso. Não diria nem ao coronel Phin Bromley que encontrara um francês mascarado. Já tinha problemas suficientes. Àquela altura, causar um derramamento de sangue não faria bem a ninguém, muito menos a si mesma.

Capítulo II

Phineas adiou deliberadamente o momento de descer para o desjejum. Queria tempo suficiente para que os boatos se espalhassem. Pretendera ser visto na noite anterior, ainda que Alyse fosse a última pessoa que imaginara encontrar. E a presença dela tinha alterado seus planos. Pretendera quebrar algumas janelas e assustar os cavalariços, tornando óbvia a aparição do estranho mascarado. Se conseguisse perturbá-los como um suposto ladrão, teria a oportunidade de, como Phin Bromley, ver o que fosse revelado. Um homem culpado costumava ter uma reação diferente da de um inocente. Porém, ele não quisera, de maneira alguma, assustar Alyse. Ela o convertera literalmente em um cavalheiro, apenas por encontrar-se no jardim na noite anterior. — Bom dia — ele disse, enquanto entrava no aposento do desjejum, às nove e meia da manhã. Beth e William estavam inclinados sobre algum tipo de panfleto, e ambos olharam para cima quando ele se aproximou. — Bom dia. — Beth cumprimentou-o com um beijo no rosto. — O que é tão interessante? — Phin indagou, apontando para o papel. — Vamos ao teatro, esta noite. — A irmã sorriu. — Uma ópera. Por favor, diga que vai conosco, Phin. Ele piscou. — É claro. — Não responda tão rápido — William sugeriu. — É um compromisso para a noite inteira. 33

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— Imagino que seja o auge da diversão em Lewes — Phin devolveu, esperando que um dos irmãos lhe contradissesse, contando a história de como Alyse encontrara um intruso mascarado. — É o auge mesmo — disse Beth, às risadinhas. — Quais são seus planos para hoje? Phineas tinha a intenção de ir ver as cabanas destruídas. Mas agora precisava ver Alyse. E não apenas porque desejara beijá-la na noite anterior. — Enviei o sargento Gordon até a cidade para que me arranje uma montaria que não caia morta, caso eu tente fazê-la trotar. Pensei em cavalgar com Alyse depois que ele voltar. A irmã franziu a testa. — Mas... — Não crie problemas para Alyse — disse William, voltando à refeição. — Ela já sofreu o suficiente. Sentando-se à mesa e servindo-se de presunto, Phin o fitou. — Você poderia ser mais claro? — Não faço fofocas. Andrews? Em silêncio, o criado aproximou-se e empurrou a cadeira de rodas. Em um instante, os dois deixaram o recinto, rumo ao gabinete. — Esplêndido — grunhiu Phineas, voltando-se para a irmã. — E quais são os seus planos para o dia, já que não vai me contar por que estou aqui? — Eu não posso contar, Phin, mas isso não quer dizer que não precisamos de você aqui. — Ela se levantou e saiu do cômodo. — Maldição! Antes que tivesse terminado seu desjejum, Gordon reapareceu. — Usei a maldita porta dos fundos — resmungou o sargento, aproximando-se. — Vim até a frente da casa e então dei toda a volta. Malditos costumes ingleses! — Tome — disse Phin, atirando-lhe um pêssego e pondo-se de pé. — O que você conseguiu para mim? — Nada bom demais — comentou o criado, seguindo-o até a porta da frente. — Lewes não é exatamente um centro de criação de cavalos puros-sangues, é? — Não, não é. Esta é a terra das ovelhas. — Certo. Eu percebi isso. Digby abriu-lhes a porta, tratando de enviar a Gordon um olhar irritado. Phineas saiu da casa... e ficou imóvel. — O que diabos é isso? — ele perguntou. — O seu cavalo. — É amarelo, sargento. Gordon foi até o animal e afagou-lhe a crina. — Ele não é amarelo. É castanho amanteigado. Phineas olhou do cavalo para o escocês. 34

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— Castanho amanteigado? — De que outra forma explicaria essa cor? — E de que cor é o seu cavalo? O sargento afastou-se dele. — Você disse um baio ou um alazão, algo que ninguém notaria. Assim, Galante é castanho, coronel. Não queria ser pego cavalgando algo mais vistoso do que a montaria do meu comandante. Mesmo estando tentado a discutir, Phin precisava admitir que o cavalo amarelo serviria a um propósito; ninguém que tivesse um cavalo como Ajax seria surpreendido cavalgando aquilo. — Qual é o nome dele? — perguntou, montando. O sargento pigarreou. — O cavalo é seu. Pode chamá-lo como quiser. — Ele deu um tapa no traseiro do animal. O movimento destinava-se a pôr cavalo e cavaleiro a galope, mas, com um preciso movimento dos joelhos e uma leve puxada nas rédeas, Phineas fez com que o animal circundasse Gordon. — O nome, sargento —- ordenou. — Açafrão, senhor — Gordon disse, fazendo uma continência. Açafrão. Pelo menos, não era Icterícia, ou algo do tipo. — Vou ao teatro, esta noite — ele disse. — Quero que esse seja o último evento ao qual compareço com minha farda. Marque uma hora para mim com um maldito alfaiate. E lustre minhas botas. — Sim, coronel. Phineas incitou Açafrão em direção à casa dos Donnelly. O cavalo tinha um trote frouxo, mas era um avanço em relação à montaria de Warner. E supunha que sua farda sobreviveria à duvidosa honra de cavalgar um animal amarelo. Já iria causar prejuízos suficientes à sua carreira ao cavalgar pelos campos como um salteador. — Você sabe que não fico bem de verde — ralhou tia Ernesta, atirando o chapéu quase pronto sobre a mesa. — O que, por Deus, fez com que você escolhesse o verde? Alyse sufocou a resposta que queria dar. — A senhora admirou as fitas verdes na loja, tia. Pensei que... — Amarelo. Quero flores amarelas e um laço amarelo. Não vou permitir que você tente me fazer passar por tola. Sabe que nós podemos mandá-la de volta para sua tiaavó, não? — Desculpe, tia Ernesta. Vou apanhar a fita amarela. — Achei mesmo que você faria isso. Enquanto se levantava, Saunders bateu à porta, abriu-a e anunciou: — Sra. Donnelly, srta. Donnelly, coronel Phineas Bromley. De forma decidida e impositiva, Phin adentrou o recinto e fez uma rápida mesura. — Bom dia, senhoras. Tia Ernesta pôs-se de pé. — Coronel. O que o traz até aqui hoje? 35

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— Pensei em levar a srta. Donnelly para cavalgar, se a senhora puder prescindir da companhia dela durante algum tempo. O coração de Alyse estava descompassado. Ele dissera que desejava levá-la para um passeio, mas não percebera que ele tinha falado a sério. — Eu... Eu estou arrumando o chapéu... — Deve trazê-la de volta para o almoço — disse a tia, gesticulando para que Alyse saísse da sala. — Não vou conseguir uma conversa decente com ela, a não ser que ela faça o que quiser. Bem, aquilo era desnecessário, além de ser mentira. Ainda assim, discutir seria péssimo, uma vez que jamais seria autorizada a cavalgar, caso protestasse. — Obrigada, tia Ernesta. — Hum. — Tomei a liberdade de pedir que selassem um cavalo para você — disse Phin, oferecendo-lhe o braço enquanto saíam da sala. — Preciso trocar de vestido — ela falou, rapidamente, temerosa de que ele mudasse de idéia. — Vou esperar lá fora, está bem? — Sim, por favor. Ela não usava o vestido de montaria verde havia mais de três anos, mas, felizmente, o traje ainda lhe servia. Agilmente, abotoou-o e colocou as botas, antes de descer depressa as escadas. Saunders abriu a porta, e Alyse respirou fundo para acalmar-se. — Devo voltar em breve — ela disse, saindo. Então, começou a rir. — Oh, céus! Phineas ergueu a sobrancelha marcada pela cicatriz. — Devo presumir que minha montaria a diverte. — Pobrezinho. Qual é o nome dele? — Açafrão. Vamos? Com um olhar de relance para o criado que segurava as rédeas do cavalo baio que fora selado para Alyse, Phin virou-a de frente para si e ergueu-a até a sela. A sensação de ser suspensa, sem esforço, deixou-a sem fôlego. Ninguém mais fazia esse tipo de coisa por ela. Por Deus, ninguém nem mesmo lhe oferecera flores nos últimos quatro anos... exceto pela noite anterior. Phin liderou o caminho, e ela apressou sua montaria para acompanhar o chamativo Açafrão. Então percebeu que o cavalariço os seguia. Um acompanhante. Fazia anos que não contava com um. — Duas conversas em dois dias — disse, tentando recompor-se. — Você não está se apaixonando por mim, está? — Eu sempre fui apaixonado por você — respondeu Phineas tranqüilamente, com os olhos fixos em sua boca. Problemas, Alyse disse a si mesma quando ele desviou o olhar. Ele representava problemas, e ela não podia dar-se o luxo de envolver-se em confusão. — Suponho que isso explique a porção de sapos que eu recebi. — Ela ficou feliz 36

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ao notar que sua voz soava estável e divertida. Nos últimos anos, aprendera a esconder seus sentimentos. — Posso prometer que não haverá mais sapos. — Ele a encarou. — Afinal, você não tem mais doze anos. — Sim, há treze anos. — Eu mesmo já passei dos dezessete há bastante tempo. — Ele hesitou. — Como você pode estar solteira, Alyse? Aos quinze anos, todos os rapazes de East Sussex já a perseguiam. — Você não perde tempo com bate-papo, não é? — Não. Como soldado, aprendi a ir direto ao assunto o mais rápido possível. — Por que você quer saber? — ela indagou, incerta quanto a resposta que desejava ouvir. — Porque já cometi muitos erros na vida, e tenho pensado que ter partido daqui pode ter sido o maior deles. — Phineas conduziu-os para o caminho estreito ao longo do riacho. — Depois de ouvir o que aconteceu, você talvez fique grato. — Alyse não conseguiu conter a súbita amargura no tom de voz. Oh, tinha sido tão jovem e tola!... — Tecnicamente, creio que você e eu já estamos casados, considerando a cerimônia que William celebrou para nós. Tudo bem que tínhamos apenas oito ou dez anos de idade. Alyse riu com relutância. — Você só fingiu se casar comigo para que pudesse fingir partir para a guerra, ser morto e me deixar viúva. — Pensando bem, talvez aquilo tenha sido mais divertido para mim do que para você. — Ele deteve Açafrão e desmontou, dando a volta para passar os braços ao redor da cintura dela e baixá-la até o chão. — Espere aqui — instruiu o cavalariço, oferecendo o braço para ela. Alyse envolveu os dedos na manga escarlate e, lado a lado, caminharam até a margem do riacho. — Eu não quero contar o que aconteceu — ela disse. — Então não conte. No entanto, eu pretendo descobrir, e prefiro ouvir de você. Se ajuda, eu mesmo estou longe da perfeição, de modo que não a espero de ninguém. Soltando o ar e fingindo estar mais irritada do que preocupada que ele se virasse e a deixasse ali, ela deu de ombros. — Está bem. Para ir direto ao ponto de uma história muito longa, fui passar uma maravilhosa primeira temporada em Londres. Tive quatro propostas de casamento em duas semanas. Mas eu queria me apaixonar e, por isso, esperei. — Fora tão tola ao pensar que poderia amar e ser amada, e que tudo seria um mar de rosas. Deveria ter desposado seu primeiro pretendente. — Você estava determinada a se casar com um príncipe ou, no mínimo, um duque, se bem me lembro. — Sim, bem, eu era uma menina boba. — Continue. 37

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Alyse gostou do jeito como ele falou aquilo, como se estivesse realmente interessado em escutar o que ela tinha a dizer. — No início da minha terceira temporada, eu o conheci. Phillip Ambry, o marquês de Layton. Phin franziu o cenho, e os músculos de seu braço enrijeceram. — Mas ele... — Sim, ele se casou com Roberta Engles, a herdeira americana. — Ela parou por um instante, mas o orgulho não a feria mais como antes. Muitas outras coisas lhe tinham dado uma perspectiva melhor da importância relativa de seu coração. — Ele pediu a permissão de papai para casar-se comigo, e meu pai recusou-se a dá-la. Phillip era um caça-dotes, e todos sabiam disso. Todos, menos eu. Ou talvez eu até soubesse, mas pensasse que comigo seria diferente. Ele era tão galante, entende? — Creio conhecer bem o tipo. — Quando ele sugeriu que fugíssemos para nos casar, achei muito romântico. Eu deveria fazer uma mala e, então, no meio da festa dos Windicott, ele me levaria embora em seu coche, e ninguém poderia nos deter. — Algo a deteve. — Duas semanas antes do baile, papai morreu, e mamãe, quatro dias depois. — Eu lamento tanto, Alyse. — Obrigada. Sinto falta deles. — Layton voltou atrás porque seus pais faleceram? Isso é... — Alguns dias depois dos funerais, o advogado do meu pai foi me visitar. Eu tinha perdido tudo, toda a propriedade dos Donnelly. As pinturas nas paredes, os móveis, e até minhas roupas... Tudo pertenceria ao meu primo Richard. Entrei em pânico, tentei encontrar Phillip e dizer-lhe que queria partir imediatamente. Não podia suportar a idéia de ver Richard tomar posse da casa, do título... e de tudo. Mas não consegui encontrá-lo. — Você foi ao baile, não foi? — Sim, com a mala pronta. Ele estava lá, dançando com Roberta Engles. A princípio, ele fingiu que não me conhecia. Depois ele tomou minha mala e atirou-a no chão, dizendo que eu estava louca e que deveria parar de persegui-lo, antes que ele encontrasse alguém para me internar no hospício. Phin murmurou uma palavra que Alyse não conseguiu compreender, mas que soou extremamente rude. — Mas e uma mesada? Uma herança? — Isso ficaria por conta da vontade de Richard. — Ficaria — ele repetiu. — O que aconteceu? — Eu tinha arruinado a mim mesma. Não podia continuar em Londres, com todos rindo de mim, por ter sido tão estúpida e cega, de modo que Richard enviou-me para viver com uma tia na Cornualha. — Alyse estremeceu ao lembrar-se do cheiro de gatos e mofo. — Não éramos muito compatíveis. E eu... ainda tinha orgulho demais para me adaptar. — Alyse, você nunca foi orgulhosa. — Eu era, sim. Lembre-se, eu queria um príncipe. E amor. Achei que os merecia. Afinal, como você mesmo disse, metade dos jovens daqui queriam se casar comigo. 38

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Metade dos homens de Londres também... Até que minha sorte virasse, e eu agisse como uma completa idiota. E as mulheres com as quais eu deveria ter sido mais gentil não escondiam a satisfação diante da minha nova situação. O provérbio sobre orgulho e queda é bastante verdadeiro, sabia? Sua voz tremeu um pouco, mas Phineas fingiu não notar. Quando ele se deteve à margem da lenta correnteza, pareceu-lhe bastante natural manter os dedos ao redor do braço dele. Ambos ficaram observando o riacho, enquanto ela continuava a falar: — Escrevi para Richard, pedindo-lhe que me deixasse voltar a Londres, mas ele respondeu que eu não encontraria nada melhor lá. Em vez disso, mandou-me para a casa de uma segunda prima, mas ela e o marido não tinham condições financeiras de me manter ali. Depois de várias mudanças de endereço, Richard trouxe-me de volta à casa dos Donnelly. Como é solteiro, ele queria que alguém servisse de anfitriã, e sua mãe, a minha tia, é frágil. — Você é a acompanhante dela. — Sim. Bem, ele conhecia a história agora. Sabia que, para o divertimento de muitos de seus conhecidos, ela fora empurrada de seu pedestal... ou pulara dele sozinha. Alyse analisava a expressão dele, esperando para ver quanto tempo Phin levaria até começar a procurar uma desculpa para levá-la de volta. Afinal, ela não era mais a cobiçada filha de um visconde. Agora era apenas a pobre e solteira acompanhante da mãe do visconde, sem qualquer perspectiva de uma vida melhor. — Por mais que você pensasse merecer a felicidade, Alyse — ele disse, por fim, fitando-a —, você não estava errada. — Ele inspirou profundamente. — Eu jamais deveria ter ido embora daqui. — E o que você teria feito? — ela indagou, embora tivesse a sensação de que ele se referia mais à própria família do que a ela. Os olhos castanhos encontraram os dela, e então Phin deu um único passo adiante. Tomando-lhe o rosto entre as mãos, inclinou-se e beijou-a. Os lábios quentes tocaram os seus, suavemente, experimentando. A sensação... a incendiava. Um longo instante depois, Phin ergueu a cabeça, afastando-se alguns centímetros. — Se eu não tivesse ido embora, Alyse, pelo menos nenhum de nós teria ficado sozinho. Ela precisou de alguns segundos para recobrar o fôlego. — O que você quer de mim, Phin? Nós dois sabemos que você não voltou a Quence Park por minha causa. Phineas sorriu brevemente. — O que eu quero de você? Talvez você me conceda mais do que dois dias para descobrir. Pelo bem de nós dois. E não, não voltei por sua causa, porque eu não sabia. — Eu sei o quanto você gosta de aventuras e desafios, Phin. Não crie problemas para mim. — Vou tentar não criar mais nenhum problema para você. Mas eu não me assusto com facilidade. — Ele olhou para trás, na direção dos cavalos. — Há uma ópera na cidade esta noite, e um baile amanhã. Você vai a algum dos eventos? — Não à ópera. Tia Ernesta acha monótono. — Ao baile então? 39

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— Ainda não sei. Depende da vontade dela. — Talvez eu devesse tentar persuadi-la. — Não ouse — ela disse, empalidecendo. — Muito bem. — Phin riu, provavelmente para aliviar-lhe o evidente temor. — Tentarei me comportar. Guarde uma dança para mim, caso você vá, porque eu quero vêla de novo. Eles ficaram ali por mais alguns instantes antes de voltarem até os cavalos e continuarem o passeio. Somente depois de ele tê-la deixado em casa, Alyse percebeu do que ele dissera. Phin tentaria não criar mais nenhum problema para ela. Ele já teria feito alguma coisa? Ou talvez ele estivesse se referindo àquele beijo. Sim, já que, pela maneira como seu coração tinha batido com força, apenas aquilo já poderia representar um enorme problema. Phineas entregou Açafrão a Warner e subiu os degraus de Quence no momento em que lorde Donnelly deixava a casa e montava em seu belo cavalo castanho. — Donnelly — ele cumprimentou, acenando com a cabeça. — Coronel Bromley — disse Donnelly, virando o cavalo de forma que pudesse encará-lo. — Não sei se já notou, mas o céu está escurecendo. Se chover muito antes que o sistema de irrigação for consertado, Quence pode perder as pastagens a leste pelo restante da estação. — É triste ver que sua preocupação com Quence não se estende a Roesglen — Phin retrucou, descendo de novo os degraus e praguejando intimamente. Maldição! Esquecera-se da reunião com Stuggley e não tinha a quem culpar, exceto a si mesmo, pois quisera ver Alyse e descobrir por que ela não revelara a ninguém o encontro com o francês na noite anterior. — É triste ver que você não tem nenhuma preocupação — disse o visconde, incitando a montaria e partindo. — Isso não faz o menor sentido — murmurou Phin, subindo os degraus mais uma vez. Digby abriu a porta quando ele a alcançou. — Bom dia de novo, mestre Phineas. — Bom di... — Phin? — A voz de William ecoou pelo corredor. Ele não parecia satisfeito. Maldição! — Estou indo — ele respondeu, passando pelo mordomo. — Phin! — Diabos! — Phineas resmungou, andando até o gabinete do irmão. — Desculpeme — ele disse, entrando. — Eu planejava voltar a tempo para a reunião com Stuggley. William, sentado atrás da escrivaninha, tendo Andrews em pé ao seu lado, apertou com força a xícara de chá. Por um instante, Phineas achou que o irmão fosse atirá-la nele. — Digby e Andrews procuraram por você. Caso você pretendesse participar da reunião. — Eu realmente pretendia. Peço desculpas, William. Você conseguiu resolver o 40

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assunto? — Sim. Tudo não passou de um mal-entendido entre Richard e os homens que ele contratou. Você poderia ter simplesmente vindo falar comigo primeiro, antes de se intrometer, marcar reuniões e mandar embora homens raivosos. Phineas disfarçou a testa franzida. Não fora um mal-entendido. Richard Donnelly podia desejar manter o orgulho intacto com essa explicação, mas Phin não gostava de ser chutado no traseiro por causa de outro sujeito. — Peço desculpas outra vez — ele falou. Protestos não o i ajudariam em nada. — Onde você estava? — Cavalgando com Alyse. — Phin, muita coisa ocorreu em sua ausência. Alyse não é... Nesse momento, alguém bateu com força na porta. Como Andrews se manteve imóvel, Phin foi abri-la. Gordon estava ali, com um largo sorriso no rosto. — Com licença, coronel, mas eu marquei um horário com você e sr. Murdock, o alfaiate, se você puder levar seu traseiro até lá à uma da tarde. Phineas estremeceu. — Obrigado, Gordon. Eu me unirei a você em um instante. — Ah, não, Phin — William interferiu. — O sr. Murdock é muito popular entre a nobreza. É melhor você apanhar sua nova montaria e se dirigir para o seu compromisso. E feche a porta quando sair, por favor. Phineas fechou a porta. Com um olhar de relance para Gordon, foi até a porta da frente. — Maldição, sargento — ele grunhiu. — O que eu lhe disse sobre irromper para dentro dos recintos? — Eu bati na porta. — Permita-me acrescentar, então, que você não deve começar a falar imediatamente também. — Desculpe, mas o que, exatamente, há de errado em dizer que eu fiz o que você mandou que fosse feito? Sim, como poderia explicar aquilo sem mergulhar na triste história que foi sua juventude? — Diga a mim então. A ninguém mais. — Ser um criado é como mexer em um maldito covil de cobras. — Que seja. Lustre minhas botas enquanto eu estiver fora, certo? Gordon anuiu e indicou que deveriam entrar na sala de estar. Outra violação das normas sociais. Porém, Phineas ignorou-a e, fazendo o que o sargento queria, entrou no cômodo e fechou a porta. — O que foi? — ele indagou. — Você descobriu por que ninguém está comentando sobre a aparição do salteador ontem à noite? — Sim. Eu apareci para alguém que não queria admitir ter se deparado com um estranho. Se eu quiser afetar a gente daqui, é melhor eu fazer uma aparição mais... 41

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espetacular. — Ah, sim. Não queremos que você seja sutil. — Eu vou ser sutil. Nosso salteador, não. Esse é o ponto. — Longe de mim discutir com um louco. Phineas sorriu. — Exatamente. O processo de transportar o visconde de Quence para uma noite na cidade era mais complexo do que Phineas imaginara. Primeiro Andrews o conduzia até o vestíbulo na cadeira de rodas. Então o criado o erguia e o carregava pelos degraus até o coche. Após sentá-lo cuidadosamente onde ele pudesse agarrar-se a uma correia para equilibrar-se, Andrews retornava, pegava a cadeira e a carregava para baixo, prendendoa à parte traseira do coche. Eles haviam aperfeiçoado o sistema, o que fazia sentido, após dez anos de prática. Phineas não fez comentários a respeito da eficiência. Em vez disso, manteve a boca fechada e subiu no coche, sentando-se ao lado de Beth. — Você gosta de ópera? — ela perguntou, segurando-lhe o braço. — Eu devia ter descoberto isso antes de convidá-lo a ir conosco. — Tolice. É claro que eu gosto de ópera. Você vai com freqüência? — Nós tentamos ir ao teatro a cada nova produção. Eles quase nunca apresentam óperas, então estou muito animada. Tenho aprendido italiano e posso traduzir para você, se quiser. — Obrigado. Eu consigo pedir informações de como chegar à taverna mais próxima em italiano, mas é o máximo que meu conhecimento alcança. — Aquilo não era inteiramente verdade, mas gostava de ver a irmã feliz. — Que surpresa — William disse. — Agora que está aqui, por favor, verifique quais tavernas locais são freqüentadas pela nobreza, para não embaraçar a família ao entrar em um lugar indecente. — Não estou indo a nenhuma taverna. Estou indo ao teatro com você e com Beth, e, durante o intervalo, vou conversar e me comportar como o mais fino cavalheiro. — Ao menos por esta noite. Peço perdão por manter-me cético em relação a mais do que isso. Phin sobressaltou-se com a palavra "perdão". Suspeitava de que William a usara de propósito. — Você pode estar correto. Se eu encontrar alguém disposto a me pagar uma cerveja, talvez eu deixe os modos de lado. — Você está muito bonito esta noite, Phin — Beth interferiu. — E um tanto selvagem, com essa cicatriz. Ele quase se esquecera da cicatriz. Distraidamente, tocou o lado direito do rosto, onde a antiga e estreita marca repartia sua sobrancelha, interrompia-se à altura do olho e continuava por mais alguns centímetros, bochecha abaixo. — Se o camarada estivesse um pouquinho mais perto quando me atacou com o sabre, eu pareceria ainda mais selvagem, com um tapa-olho. — Agradeço a Deus que nada pior lhe tenha acontecido — disse Beth. 42

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— Eu tive sor... De repente, o coche deu um solavanco. Beth encolheu-se, enquanto, com um estouro, o veículo foi arremessado para a frente. Phineas sentiu o movimento nauseante quando o coche oscilou. Sem tempo para pensar, ele comprimiu Beth contra a parede para evitar que ela caísse, e então se lançou para o outro lado, agarrando William e colocando-se sob o irmão. Enquanto Beth gritava, o coche tombou para o lado e ameaçou virar de cabeça para baixo antes de parar. — Beth! Quieta! — Phineas comandou. Ela obedeceu, choramingando. — Você se machucou? Beth! Você... — Não, não. Acho que não. — William? — Intacto, até onde posso notar. Felizmente, o óleo na lamparina do coche apagara a chama, mas, ainda assim, estavam todos cobertos pela substância viscosa. Dentro do veículo tombado, estava escuro, mas, olhando para cima, Phineas vislumbrou o céu nublado pelas janelas ao lado das quais estivera sentado. Ouviu os cavalos empinando e relinchando, porém nem sinal dos homens que tinham estado sentados no banco do condutor. — Warner? Andrews? — ele chamou. — Aqui, senhor! — Andrews falou. — Alguém está ferido? — Não. — Dê-nos um momento para soltar os cavalos, para que eles não arrastem o coche. — O que aconteceu? — Beth indagou em voz trêmula, movendo-se com dificuldade até agarrar a mão de William. — Eu diria que perdemos uma roda — Phineas falou. William pesava sobre seu peito, mas ele não se queixaria. Quando seus olhos se ajustaram à escuridão, permitindo que visse os irmãos, sua tensão cedeu um pouco. Eles estavam doloridos e arranhados, mas, felizmente, nada pior acontecera. — Quero sair. Reconheceu também o início do pânico na voz da irmã. — Vou ver o que posso fazer. William, vou movê-lo para a minha direita. — Posso fazer isso sozinho. — Ele agarrou as bordas dos assentos e ergueu-se o suficiente para que Phineas saísse de baixo dele. — Lembre-me de jamais desafiá-lo para uma queda de braço — ele murmurou, desembainhando o sabre e pondo-o de lado. Levantou-se e empurrou com força a porta sobre a cabeça, conseguindo abri-la. Estendeu a mão para a irmã, pondo-a de pé com cuidado no espaço apertado. — Vou erguê-la. — Passou as mãos em volta da cintura de Beth. — Apoie os cotovelos no coche e fique em pé sobre os meus ombros para subir. Ela esticou os braços enquanto Phin a içava e, em poucos segundos, conseguiu sair. — E vocês dois? — Ela enfiou a cabeça para dentro, e Phin entregou-lhe o sabre, antes de acocorar-se de novo. — Vamos esperar por Andrews e Warner. E você, fique aí em cima, até que um 43

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dos dois a ajude a descer. Não esfaqueie ninguém, a menos que seja realmente necessário. Enquanto ela assentia, segurando a arma contra os seios e sentando-se fora de sua vista, Phineas percebeu que aquela era a primeira vez em dez anos que ele e William estavam a sós. — Lamento que não possa mais ir à cidade — William disse. — Não dou a mínima para ir à cidade — Phineas respondeu. — E com o que você se importa? — Com você e Beth. Com meus homens e meus amigos. Ou seria essa apenas uma pergunta retórica? — Eu não quero brigar com você, Phin. Apenas não sei por que você está aqui. — Eu não devia ter ficado fora por tanto tempo — Phineas falou devagar, esperando o próximo insulto do irmão. Como poderia explicar por que se mantivera afastado? Como sua vergonha e... covardia podiam comparar-se a William, que não tinha tido alternativa, exceto encarar o que acontecera? — Eu não espero que seja tudo como antes. Mas talvez... — Milorde? — Andrews olhou para baixo, pela porta aberta, com uma expressão preocupada. — Estou perfeitamente bem — William afirmou. — Receio dizer que a cadeira foi amassada — o criado disse. William contraiu a mandíbula por um instante. — Não importa. Daremos um jeito. Quando Andrews passou as pernas pela porta, preparando-se para saltar para dentro, Phineas levantou-se. — Fique aí, Andrews. Vou erguê-lo para você. — Milorde? — o criado indagou. — Não me importa como vocês farão isso — William falou. — Apenas me tirem deste maldito buraco. Ele devia detestar aquilo, ser completamente dependente de outros, não apenas para o resgate, mas para tudo. Será que odiava a pessoa que fizera aquilo com ele? Como poderia não odiar? Mais tarde, disse Phineas a si mesmo. Poderia contemplar a própria estupidez depois. — Se eu erguê-lo — disse, espremendo-se atrás de William e segurando-o à altura do peito —, você consegue agarrar-se às pernas de Andrews, enquanto eu mudo de posição? — Sim. Phineas ergueu William. O irmão era sólido, e as pernas, nada além de peso morto e arrastado. Ainda assim, ele recusou-se a arfar ou a dar qualquer indicação do esforço que fazia. O visconde agarrou-se às canelas do criado, e Phineas o soltou apenas o suficiente para agarrá-lo pela cintura e erguê-lo de novo. Com alguns puxões, empurrões e reclamações da parte de William, conseguiram levá-lo até o lado de fora. Assim que fizeram isso, Phineas pulou, agarrou o batente da 44

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porta e também saiu de lá. — Posso sugerir que venha em minhas costas, senhor? — perguntou Andrews. Ele desceu do coche, e Phineas abaixou William até seus braços. — Vamos nos alternar. — Phineas também desceu, e então se agachou para analisar o eixo parcialmente enterrado do veículo. A peça havia se rompido, embora ele não pudesse ver mais do que isso na escuridão. — Não sei o que aconteceu — Warner dizia a Beth, segurando os cavalos indóceis. — Confiro o coche todas as manhãs. Não notei nada de errado com ele. De outra forma, jamais teria... — Acalme-se, Warner — disse William, do chão onde fora acomodado. — Foi um acidente. Ninguém está culpando você. — Obrigado, milorde. Devo cavalgar até lorde Donnelly e trazer outro coche? Phineas apreciou o desejo do criado de consertar a situação. Porém, deixar William sentado no chão por pelo menos meia hora enquanto as nuvens carregavam-se parecia uma péssima idéia. — Voltar a Quence de uma vez parece mais prudente — ele sugeriu, tentando fazer com que aquilo não parecesse uma ordem, de forma que William não sentisse necessidade de contradizê-lo. — Sim, para casa — concordou o visconde. Eles ajudaram William a subir nas costas de Andrews, e todos seguiram em direção a Quence. No escuro, com três quilômetros a percorrer, com Beth usando sandálias finas, Phineas percebeu que levariam pelo menos quarenta minutos até chegarem em casa. Olhou mais uma vez para o céu escuro. Teriam sorte, caso chegassem antes que a chuva caísse. Uma mão agarrou a sua. — Fico feliz por você estar aqui esta noite — sussurrou Beth. Por um instante, ela se pareceu com a menina de sete anos e olhos arregalados de quem se lembrava. Apertou-lhe os dedos. — Também fico feliz por estar aqui, qualquer que seja a razão pela qual você me queria de volta. — Phin, ele me fez prometer. — Beth comprimiu os lábios. — Então, deixe que eu tente. Se eu acertar, você aperta a minha mão. Com um rápido olhar culpado para William, agarrado às costas de Andrews, Beth anuiu. — Quence Park tem enfrentado uma maré de azar ultimamente. Apertão. — Durante o último ano, houve fogo, enchentes e alguma perda financeira. Apertão. — William está preocupado que mais uma maré ou duas de azar custe à família a propriedade. Apertão. — Ele não me quer por perto porque teme que eu vá interferir e piorar as coisas. Nada. Phineas olhou para a irmã, ao lado. Beth mantinha o olhar fixo à frente, atenta ao caminho irregular. 45

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— William não me quer aqui porque ainda está com raiva de mim. Nada. Aquilo fez seu coração bater mais forte com algo semelhante a esperança, mas ele deixou as perguntas resultantes disso para depois. Aquilo não dizia respeito aos seus próprios demônios, e sim aos de Quence. Com isso em mente, em vez de continuar com adivinhações a esmo, decidiu-se por mudar um pouco de rumo. — Você me queria aqui porque acha que eu posso ajudar. Apertão. Beth achava que ele poderia ajudar. Portanto, assim como ele, a irmã suspeitava de algo além de má sorte. Quem, no entanto, desejaria expulsar os Bromley de sua propriedade? Fazer-lhe essa pergunta não adiantaria nada, uma vez que nem ela e nem William sabiam a resposta. Se soubessem, já teriam feito algo. — William não me quer aqui porque está preocupado que eu me machuque. Apertão. Phineas teve a melhor noite de sono desde que recebera a carta de Beth. Ainda assim, levantou-se cedo, escolheu algumas roupas das quais Gordon conseguira remover os amassados mais gritantes e vestiu-se antes que o sargento aparecesse para tirá-lo da cama. Estava já colocando as botas quando seu suposto criado bateu na porta do quarto, abrindo-a em seguida. — Bem, acordou com as galinhas esta manhã, não é? — Sei que só discutimos a respeito de bater, mas você deveria aguardar uma resposta antes de abrir a porta. — Como responderia, coronel, se estivesse dormindo? Phineas encarou-o por um instante. — Não importa. Venha comigo. — Ele saiu do quarto. — Ir aonde? — Quero dar uma olhada no coche sob a luz do sol. O velho mordomo ainda não assumira seu posto à porta da frente, de forma que Phineas destrancou-a e abriu-a. Fechando-a com cuidado, ele e Gordon foram até o estábulo selar Açafrão e Galante. O sargento Gordon não parou de tagarelar sobre assuntos diversos. Sem prestar muita atenção, Phineas perguntava-se como poderia usar o salteador para descobrir o que estava provocando tamanha má sorte em Quence Park. Estava fora fazia dez anos. Não conhecia mais vizinhos ou amigos e não tinha idéia de quem poderia ter algum rancor de William, Beth ou da família. Chovera a noite toda, e suas botas estavam salpicadas de lama quando chegaram à última curva da estrada. — Companhia — murmurou Gordon. Phineas ergueu o olhar e, em meio à névoa, avistou dois homens e uma mulher, parados sobre seus cavalos ao lado do coche tombado. Estavam todos bem-vestidos e na última moda. Um dos homens desmontou e subiu no veículo. — Não vejo nenhum cadáver — ele avisou, endireitando-se. — Charles, que coisa horrível — disse a jovem mulher. 46

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— Eu disse que não vejo... — ele se interrompeu ao ver os dois homens aproximando-se — ...nenhum cadáver. — Saltou de volta ao chão. — Bom dia, cavalheiros. Os outros dois moveram-se para encará-los também. — Bom dia — respondeu Phineas, notando que Gordon afastara Galante para sua direita. — Você não sabe o que aconteceu aqui, sabe? — indagou Charles. — Isso depende — disse Phineas. — Quem é você? — Lorde Charles Smythe. Aquele é lorde Anthony Ellerby e a adorável donzela é sua irmã, lady Claudia. — Ele ergueu uma sobrancelha, de forma confiante e arrogante, — E quem é você? Como oficial, Phineas aprendera a analisar as pessoas rapidamente. E ele não gostava daquele lorde Charles Smythe. O nome Ellerby, no entanto, soava-lhe familiar. — Ellerby — ele falou. — Alguma relação com Edward Ellerby, o duque de Beaumont? — Sim. Ele é nosso avô. Estamos visitando-o. Beaumont tinha uma propriedade a sudoeste de Lewes. Ele e o antigo lorde Quence, pai de Phineas, haviam se envolvido em uma disputa acerca de quem teria prioridade quanto ao celeiro local. Aquilo ocorrera vinte anos atrás. Ele não tinha conhecimento de nada recente, mas preferia ser cauteloso até descobrir mais detalhes sobre o que estava acontecendo. — Você ainda não se apresentou, amigo — comentou lorde Charles, enfiando a mão direita no bolso do casaco. Aquilo indicava que ele provavelmente estava armado. Phineas não estava, exceto pela faca enfiada na bota direita. Por ele, aquilo os deixava em condições praticamente iguais. Porém, ainda não sabia o suficiente para envolver-se em um confronto. Ainda não. — Phineas Bromley — disse, excluindo Gordon intencionalmente das apresentações. Quanto menos os outros pensassem no sargento, mais livre ele estaria para atacar sem resistência. Lorde Anthony piscou. — Bromley? E parente de lorde Quence? Phineas identificou apenas surpresa na expressão do rapaz. — Irmão dele. — O camarada do Exército? — Estou de licença. Phineas notou que, embora todos estivessem diante de um coche tombado, com o brasão dos Quence na porta, ninguém fizera nada além das perguntas mais superficiais a esse respeito. Teria algum deles razão para estar tão pouco surpreso diante das conseqüências do acidente? Lorde Charles aproximou-se, analisando o cavalo amarelo e a velha casaca que Phineas escolhera para sair em investigação. — O Exército, é? Você se parece mais com aqueles ciganos que andam pelo campo, roubando as pessoas. 47

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— Charles! — Claudia admoestou-o. — Eu não pretendia ofender, sargento — continuou Smythe. — Coronel — Gordon explodiu, ruborizando-se. — Tenente-coronel, na verdade — disse Phineas, tranqüilamente. — E não me ofendeu, lorde Charles. — Bem, coronel Bromley — disse Claudia —, espero vê-lo no baile esta noite. É um tanto monótono aqui. — Farei o possível. Meu coche parece ter sofrido um acidente. Lorde Charles Smythe montou outra vez. — E nós vamos sofrer um acidente se não voltarmos a Beaumont a tempo do café da manhã. Phineas observou-os até sumirem atrás dos arbustos. Então desmontou, foi até o coche e se agachou. — Dê uma olhada nisso — disse. Gordon inclinou-se ao seu lado, pondo a mão sobre uma roda. — Quebrou ao meio, de uma forma suspeita, não? — Exatamente. — Phineas já vira destruição intencional, e era o que lhe parecia ter acontecido. Nada que pudesse provar. Contudo, adicionou o fato à lista de má sorte que estava compilando. — Então o que pretende fazer a esse respeito? Phineas endireitou-se e limpou as mãos nas coxas, antes de dar um tapinha nas costas do criado. — O que nós vamos fazer é cavalgar até a cidade e ver se conseguimos arranjar outro coche. Quero ir ao baile esta noite. — Eu devia ter ficado na maldita Espanha. Começo a achar que teria sido mais seguro. — Você provavelmente está certo. Mas isto aqui está se revelando bem mais interessante. Phineas levou ao lugar do incidente o ferreiro e alguns cavalos para endireitarem o veículo e deixá-lo em condições de retornar a Lewes para ser consertado. Enquanto Gordon supervisionava a operação, ele cavalgou até uma loja, onde alugou um coche de duas rodas. Teria preferido algo maior, mas como grande parte da nobreza retornara ao campo após a temporada em Londres, não havia nenhum disponível. E ele precisava ir ao baile. Seguiu de volta até o ferreiro para apanhar o sargento. — Quais são os prejuízos? — perguntou, enquanto o escocês amarrava o próprio cavalo ao pequeno coche e se acomodava no assento ao seu lado, ignorando o fato de que um criado deveria sentar-se no estreito assento na parte traseira do veículo. O sargento Gordon não era exatamente um criado típico, afinal. — Recolocar o eixo e três rodas e a porta esquerda... Carter disse que são vinte libras, é pegar ou largar. — Ele concordou em fazer o serviço? — Eu dei a ele uma nota de cinco libras. — Gordon fitou-o. — Vai me pagar para ser seu criado, não vai, coronel? 48

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— Eu não lhe pedi que me seguisse até aqui. Mas, sim, acho que sim. Ainda que cinco libras me pareçam generosidade demais. — Mas que diab... — Você ofereceu o dinheiro ou foi ele quem pediu algo antes de começar o conserto? — Phineas interrompeu. — Ele pediu. Phineas assentiu. Os habitantes locais sabiam, então, que Quence enfrentava problemas financeiros. De outra forma, um aldeão jamais pediria a um nobre que lhe pagasse antes de fazer o serviço. — Sei que me disse para não fazer fofocas, mas isso inclui eu não contar o que ouvi por ai? — Não, não inclui — Phineas disse, depressa, virando o coche em direção à estrada, rumo a Quence. — Estão se perguntando por aí quanto tempo os Bromley vão conseguir manter a propriedade, com todo o azar que têm tido. — Isso veio do ferreiro? — Veio. E com a concordância do curtidor e do estalajadeiro. — E como você respondeu? — intrigou-se Phineas. — Com ultraje, temperado com respeito por meu mestre cavalheiro. — Hum. — Aquilo era esperado, mas boatos podiam causar muitos danos. — Quanto dinheiro você tem à mão? — Quase quarenta libras. O restante do pagamento, eu mandei para casa, para minha pobre mãezinha. — Você foi encontrado sob uma pedra, Thaddeus. — Está certo, homem cruel. Sessenta libras. Mas esse é meu dinheiro para beber. — Depois de comprar Açafrão e Galante, eu tenho ainda umas duzentas à mão, e outras quinhentas ou mais que posso retirar do banco em pouco tempo. — Ele tinha mais. Porém, levaria mais tempo para conseguir o dinheiro. — É uma boa quantia, coronel. O que pretende fazer com isso? — Virar os boatos a nosso favor, e ver se consigo descobrir quem está tentando expulsar os Bromley de Quence Park. — Posso prever a confusão se instalando. — Acho que sim. — Excelente. — Prosseguiram em silêncio por alguns minutos. — Quanta confusão você está pensando em arranjar por aqui? — Estou quase convencido de que alguém tem feito essas coisas para a minha família — Phineas respondeu, deixando finalmente que a raiva do inimigo desconhecido se revelasse em sua voz. — Pretendo arrancá-lo do esconderijo e enterrá-lo. E o que eu não puder fazer, nosso amigo mascarado poderá. A começar por hoje à noite. — Está certo. Esse sujeito começou uma guerra, e nós vamos encerrá-la por ele. 49

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Phineas respirou fundo. Guerra. Ele conhecia a guerra, mas, assim que pusera os olhos em Alyse de novo, aquilo se tornara muito mais complicado. Ele a beijara, e queria fazer isso outra vez. Desejava cavalgar com ela e conversar com ela... e queria aquelas coisas que buscara com outras mulheres porque pensara que nunca teria a chance de experimentá-las com Alyse. Queria sentir a pele macia sob as mãos, senti-la vibrar de prazer. — ...ajuda no estábulo, não acha? — Gordon dizia. Phineas voltou ao presente. Se estava prestes a travar uma batalha, a distração representada por Alyse seria perigosa. Tinha virado as costas para sua antiga vida. Estava satisfeito em deixar para trás parte dela. Mas outras partes, ele queria de volta — e com uma ânsia que jamais esperara. Alyse estava incluída nessa categoria. — Está me ouvindo? — o sargento reclamou. — Você acha que precisamos de outro cavalariço. Concordo. Cuide disso. Alguém em quem possamos confiar, sargento. — Você não poderia ter decidido isso antes que tivéssemos voltado metade do caminho? — Desculpe. Pegue Galante e veja o que consegue fazer. Gordon suspirou enquanto descia do pequeno coche. — Da próxima vez que me disser para ficar quieto na Espanha, eu vou obedecer. — Então posso considerar essa lição aprendida. E, se voltar para casa antes de mim, estarei nos Donnelly, levando a srta. Donnelly para passear. — Ela vai pensar que você está apaixonado por ela. — Eu estou. Gordon empalideceu. — No meio de uma batalha, coronel? Não... Phineas ergueu a mão. — Acredito que eu possa governar meus próprios assuntos, sargento. Além do mais, hoje estou apenas atrás de informação. — E de outro beijo, se a jovem dama fosse afável. — O que você acha, Richard? — perguntou tia Ernesta, inclinando a cabeça para os lados ao examinar o chapéu enfeitado de amarelo no espelho. — Não está muito chamativo, está? Alyse tentou ignorar o enfeite, enquanto arrematava o bordado que a tia teoricamente havia finalizado no dia anterior. — Você tem tudo para dar uma boa chapeleira, Alyse — observou Richard, por trás do jornal. — Ou uma costureira, talvez. Alyse teria mostrado a língua para o primo, mas a tia a teria flagrado. A mulher podia detectar pecado e ingratidão a quilômetros de distância. — Obrigada, primo — disse. Nesse momento, o mordomo entrou no recinto. — Milorde, uma carta de Quence Park — anunciou, estendendo a bandeja de prata. 50

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Richard deixou de lado o jornal e apanhou a missiva. — Maldição — murmurou, após ler. — Saunders, mande selarem Raleigh. — Agora mesmo, milorde — ele disse, retirando-se. — William está bem? — perguntou Alyse. — Sim. O coche deles tombou ontem à noite. O maldito irmão sem dúvida os fez cair num buraco. — É isso o que diz o bilhete? Phin está bem? Richard fitou-a enquanto saía do aposento. — Cuide da sua vida, Alyse. Alyse encostou-se no assento. O que diabos Phin estava fazendo? Ele se tornara descuidado, raivoso e egoísta ao crescer, mas parecia ter mudado desde o retorno. — Alyse, certifique-se de que a cozinheira saiba que a sra. Potter não suporta pepinos. — Sra. Potter? — ela indagou, confusa. — Para o almoço. Você se esqueceu de que Eloise vem almoçar comigo hoje? — Claro que não. Vou lembrar a cozinheira agora mesmo. Oh, ela se esquecera por completo! Phin a distraía demais. Deixando de lado o bordado, saiu do aposento e desceu até a cozinha. — Sra. Jones, devo lembrá-la de que não deve servir pepinos. — Sim, senhorita. — Obrigada — disse Alyse, sorrindo, e então espiou as tortas de frutas que esfriavam sobre a mesa. — Sirva-se, senhorita — a cozinheira falou, com um sorriso. — Sei o quanto gosta de frutas. — Oh, Deus a abençoe, sra. Jones. Tortas de frutas silvestres. Um pedaço do paraíso na Terra. Dando pequenas mordidas, para que o doce durasse mais, ela caminhou de volta até a frente da casa. A tia não tocaria nas tortas durante a refeição e, portanto, esperava-se que ela fizesse o mesmo. Agora, ao menos, poderia fazer isso sem salivar tanto. Retornando ao aposento matinal, ela escutou a tia falando, e uma profunda voz masculina respondendo à velha senhora. Saunders estava na sala de jantar, supervisionando os preparativos para o almoço, mas ao sentir um arrepio na espinha, ela soube que não se tratava do mordomo ou de um dos empregados. Endireitando os ombros, entrou na sala. Phin Bromley, elegantemente vestido com um casaco azul e calças sob longas botas, estava sentado na cadeira que ela tinha ocupado. Quando a viu com o canto dos olhos, pôs-se de pé. — Srta. Donnelly. — Ele inclinou a cabeça. Céus! Ninguém mais se curvava diante dela, exceto como uma zombaria. Contudo, não viu nada no rosto delgado que denunciasse algum tipo de chiste. Por fim, ela fez uma reverência. — Coronel Bromley. 51

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— O coronel tenta convencer-me de que posso dispensá-la por uma hora, a fim de que lhe mostre os arredores — falou a tia. — Gostaria de me familiarizar de novo com as cercanias de Lewes — disse Phin. — E sua irmã? Não está disponível para levá-lo a um passeio? Tia Ernesta estava a ponto de mandá-lo embora. Alyse deu um passo à frente. — Imagino que Beth tenha preferido ficar em casa para encontrar-se com Richard. — Bem, deve trazer Alyse de volta em uma hora, coronel. Estou esperando visitas e conto com a ajuda dela. Phineas ofereceu o braço a Alyse. — Trarei a srta. Donnelly de volta ao meio-dia. — Leve uma das criadas com você, Alyse. Atônita por ser liberada da presença da tia pelo segundo dia seguido, Alyse assentiu e puxou Phin em direção à porta. Tia Ernesta poderia mudar de idéia enquanto estivessem por ali, de modo que ela apenas agarrou uma das criadas com a mão que estava livre. — Mary, venha comigo — disse, e os três praticamente correram pela porta da frente. — Presumo que devamos partir depressa — murmurou Phin, pondo-lhe as mãos nos quadris e erguendo-a até o assento do coche. A sensação deixou-a sem fôlego. Sempre que Phineas a tocava, Alyse parecia perder o controle. Ele ajudou Mary a subir no pequeno banco traseiro, e então deu a volta, sentandose ao lado de Alyse. Com um assobio, incitou os cavalos ao trote. Assim que cruzaram as cercas vivas, Alyse soltou o ar que estava prendendo. — Graças a Deus! — Ela suspirou, pondo de lado o chapéu que pegara apressadamente ao sair. — Você pensou rápido, ao dizer que Beth estava ocupada. Onde está, de fato, seu primo? — Seu irmão mandou chamá-lo — ela respondeu, surpresa por ele não saber. — Algo sobre você ter tombado o coche. Um músculo no maxilar dele contraiu-se. — Eu não fiz isso — ele grunhiu. — Um dos eixos quebrou, e o coche capotou a caminho da ópera, ontem à noite. Alyse tocou um pequeno arranhão no queixo dele. — Com todos vocês dentro? — Ela ofegou. — Sim. Mais azar para Quence Park. — Mas estão todos bem? Beth? William? — Um pouco doloridos, mas sem danos adicionais. Sem danos adicionais. Alyse queria muito perguntar o que exatamente acontecera naquele dia, dez anos atrás, mas isso já o fizera sumir uma vez, e ela gostava de tê-lo de volta. Seria melhor ater-se a tópicos mais seguros. 52

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— Você tinha em mente algum destino para nós esta manhã? — Pensei em ver as cabanas dos arrendatários em Quence. Alyse sorriu. — Faz séculos que não vou até lá. Você acha que a sra. Hutchens ainda faz aquele queijo maravilhoso? — Não está sabendo? Meu criado me informou que metade das cabanas foram queimadas no ano passado. — O quê? — Até o momento, são rumores, já que ainda não as vi pessoalmente, mas pretendo corrigir isso. Você saberia dizer se outras propriedades foram... atingidas pelo infortúnio? — O que você quer dizer? — Que o infortúnio de Quence é deliberado. Alyse sentiu-se como se tivesse levado um soco no estômago. E pensar que, alguns momentos antes, ansiava por um beijo. — Você é louco. Ou então está tentando me causar problemas ao me envolver em algum tipo de... conspiração. Pare o coche, Phin. — Não. — Você prometeu que não tornaria as coisas mais difíceis para mim. — Eu não... — Ele inspirou fundo. — Há quatro pessoas em East Sussex em quem confio, Alyse. Duas delas não falam comigo porque temem o que poderia acontecer. A terceira chegou aqui junto comigo. E a outra é você. Este não é o tipo de conversa que eu queria ter com você, mas, honestamente, não há mais ninguém com quem eu possa falar. — Foi por isso que me beijou? Porque precisa da minha ajuda e está tentando me encantar? — Eu a beijei porque eu tenho desejado beijá-la nos últimos dez anos. Aquilo a deteve por alguns instantes. Se ele queria confundi-la, estava fazendo um trabalho brilhante. Alyse fitou-lhe o perfil, olhando a cicatriz na sobrancelha direita. — Por quanto tempo pretende ficar em Quence? — ela perguntou, por fim. — Ainda não sei. Aparentemente, há uma linha tênue entre evitar problemas e começar a causá-los. — Você não deveria ter partido daquela maneira. É claro que ninguém sabe o que fazer com você agora. Phineas virou-se e encarou-a com uma dureza no olhar que não existia quando era mais jovem. — Se você acha que pode dizer qualquer coisa com a qual eu já não tenha duelado interminavelmente, saiba que está enganada. — Por que você partiu? — Porque eu não podia ficar. — Meu pai disse que você o fez prometer que cuidaria de William e de Beth. Disse que você lhe deu cada centavo que possuía. — Não era muita coisa. Eu tinha dezessete anos e tinha roubado metade do 53

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dinheiro de William, para financiar minha fuga daqui. Alyse olhou para as próprias mãos por um momento. Ele fugira dez anos atrás, e agora era ela quem estava tentando escapar. A única diferença era que ela não tinha qualquer intenção de um dia retornar para a sua suposta família. — Por que você parou as obras do dique? — perguntou, recusando-se a desviarse do assunto por ter percebido que eles tinham mais em comum agora do que quando crianças. — Porque eles o estavam colocando em um ponto ruim, onde teria inundado metade da propriedade de Roesglen, e eu não vi necessidade disso. Alyse concordava. — Por que William faria isso? — Duvido que William soubesse dos detalhes. Ela cutucou as costelas de Phin com o cotovelo. — Você vai parar de ser deliberadamente obtuso? — Eu não... — Você disse que precisava de ajuda. Então deixe de enrolar e diga que essa pessoa de quem você suspeita de... danos intencionais é meu primo. — Eu ainda não tenho certeza. Além disso, temos companhia. — Ele indicou Mary, sentada logo atrás. — Companhia empregada por lorde Donnelly. Alyse olhou por sobre o ombro para a criada. Mary não estava na casa dos Donnelly havia muito; era uma das novas criadas que Richard havia contratado quando decidira mudar-se para lá. No passado, Alyse poderia confiar que a serviçal guardasse a conversa ouvida para si mesma. Nos últimos anos, no entanto, vira o quão facilmente a fofoca poderia espalhar-se e quão danosos seriam os rumores. — Você faz perguntas difíceis — disse Phin, após um instante. — Estou tentando descobrir qual é meu papel em sua pequena trama. Não o vejo há dez anos, Phin. As coisas não são como costumavam ser. Ele a percorreu com o olhar dos pés à cabeça. — É, eu reparei. — Pare com isso — ela disse, enrubescendo. — Parar com o quê? Olhar para você? — Você sabe muito bem o que quero dizer. Posso ter sido mimada, Phin Bromley, mas nunca fui tola. Além do mais, para sua informação, Richard só firmou residência aqui há cerca de um ano, de forma que talvez não soubesse dos detalhes da inundação. Phin deteve o coche e desceu, dando a volta no veículo até alcançar Alyse. Mas antes que pudesse passar-lhe as mãos pela cintura de novo, ela desceu sozinha. Phineas ofereceu-lhe o braço. — Voltaremos logo — ele disse para Mary. — O que foi? — perguntou Alyse, cruzando as mãos às costas, para não se sentir tentada a tocá-lo ou virar presa de seu charme. — Pensei que você estivesse infeliz com lorde Donnelly e sua situação atual. — Isso deve ficar entre nós — ela disse, preocupada com a hipótese de ele 54

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mencionar isso em algum outro lugar. — E minha situação atual, como você diz, é bem melhor do que a situação anterior. Ou do que a outra, antes daquela. Leve-me de volta a Donnelly, Phin. O que quer que você esteja buscando, eu não posso lhe dar. Além disso, não vou trocar informações por seu afeto. Ele a encarou. — Você tem o meu afeto de qualquer maneira. — Ele se aproximou. — Phin, não... Phineas passou a mão por sua cintura. Em silêncio, depositou um beijo leve no canto direito de sua boca, e depois outro, à esquerda. E então, enquanto o coração de Alyse acelerava, tomou-lhe o rosto nas mãos, ergueu-o e beijou-a de novo. O calor arrepiante percorreu sua espinha. Oh, seria tão fácil deixar-se levar por seus melhores devaneios... Exceto por aquele pequeno quinhão de lógica que ficava repetindo que Phineas não tinha voltado para vê-la. Ele havia voltado para ver a família, e ela era apenas... uma espécie de coincidência. Empurrou-lhe o peito. Foi como se tivesse empurrado um muro de pedra. — Você se aproveita demais de nossa velha amizade, Phin — disse ela, com a máxima indignação que conseguiu. — Já estive comprometida, prestes a me casar. Sei muito bem o que os homens fazem para conseguir o que querem. Por um longo momento, Phineas a fitou. E então, com um músculo da face contraindo-se, ele anuiu. — É claro. — Gesticulou para que voltassem ao coche. — Peço desculpas. Alyse ficou aliviada por ele ter desistido. Sim, porque nunca fora beijada daquela maneira. E havia gostado muito. — Levantou-se cedo ou está fora desde ontem à noite? — perguntou William, sentado atrás da mesa de seu gabinete. — Levantei cedo — Phineas respondeu, lutando contra a sensação de ter dezessete anos e ser cobrado pelo irmão mais velho. — Levei o coche até Lewes, para ser consertado, e aluguei um menor. — Interessante. — William abriu o livro de contabilidade. — E quanto isso vai me custar? — Já tomei as providências. — Você pagou tudo — disse o irmão, fitando-o. Phineas limitou-se a assentir, embora estivesse tentado a observar que não era um completo inútil. — Ah, então as contas que estão se acumulando em Lewes nas últimas semanas continuam pendentes, enquanto Quence paga por serviços mais recentes. Isso deve soar muito bem. — Isso não é culpa minha. Não podíamos deixar o coche no meio da estrada. Além disso, mandei Gordon pagar o ferreiro; não o fiz diretamente. E, se Quence está sofrendo com problemas financeiros, você poderia ter dito algo. Tenho algum dinheiro se... — Os assuntos de Quence não são seus. Você não pode reaparecer depois de dez anos e se intrometer em tudo. 55

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— Então por que você não me conta o que está acontecendo? — Nada está aconte... —- Pastagens inundadas, cabanas incendiadas, coche destruído, criados indo embora... Eu me esqueci de algo? Ah, e Warner mencionou algo sobre ração de cavalos estragada e sobre você perder dois deles e vender outros quatro. — Quence tem sofrido alguns infortúnios — William falou, após um longo momento. — Já passamos por isso antes e conseguimos nos virar sem a sua ajuda. Aquilo magoava, mas ele merecia. — Estou aqui agora — Phineas disse. — E gostaria de ajudar. — Então faça sua visita e volte para a Espanha sem causar mais problemas. Mover o dique de novo para acomodar o lago de Roesglen custou-me outras vinte libras. Se havia uma coisa que Phineas aprendera no Exército era a discernir quando seria mais prudente retroceder, em vez de continuar avançando, em face da derrota iminente. — Muito bem, mas ainda não terminamos esta conversa. Por mais que quisesse ficar em paz com o irmão, tinha mais com o que se preocupar além da harmonia familiar. Alguém estava tentando atingir Quence Park, ou seus proprietários, ou ambos. Pelo que sabia, nenhum fazendeiro local teria meios ou motivos para vandalizar as terras dos Bromley. Portanto, sobrava a nobreza. A sua gente. E à noite ele os encontraria. O salteador tomaria as rédeas dali em diante. Deteve-se. O salteador a quem Alyse parecia achar intrigante. Talvez aquele camarada conseguisse arrancar-lhe um beijo. — Oh, céus! — disse tia Ernesta, enfiando os dedos no braço de Alyse. — Eu não tinha idéia de que estaria tão cheio. Talvez devêssemos voltar para casa. Alyse forçou um sorriso. — Todas as suas amigas estão aqui, tia. Vão ficar muito desapontadas, caso a senhora simplesmente vá embora. — Não finja que está preocupada comigo, Alyse. Você já foi cavalgar com ele ontem e passear com ele hoje. Ser vista insinuando-se para ele dificilmente fará bem à sua reputação. — Não estou me insinuando para ninguém — ela retrucou. — Acho que esta noite será agradável para nós duas. Ernesta puxou-a para mais perto. — Veja bem como fala comigo, Alyse. Eu poderia ter feito com que Harriet me acompanhasse, deixando-a em casa. — Besteira, mamãe — Richard intrometeu-se de súbito, removendo as garras do braço de Alyse e pousando-as sobre o seu. — Alyse tem tido poucas oportunidades de dançar e conversar. Não devemos negar-lhe uma dessas. O apoio inesperado deixou-a desconfiada. — Obrigada — ela disse, hesitante. 56

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— Mas você não deve se desapontar caso o seu cartão de dança fique vazio. Bem, na verdade vou acompanhá-la na primeira quadrilha. Assim, você terá ao menos uma oportunidade de dançar. A idéia de dançar com Richard tornava o fato de ter ficado em casa bastante razoável, mas, de qualquer forma, ela sorriu. — Vou guardá-la para você, então — respondeu. O olhar de Richard desviou-se delas. — Com licença. Alyse virou-se enquanto o primo passava por ela. Os Bromley haviam chegado. Por um momento, permitiu-se esquecer que estava com raiva e frustrada com Phin. Em um casaco cinza-escuro, calças mais claras e um colete creme, ele estava tão bonito que ela literalmente parou de respirar. Estaria sendo tola ao suspeitar da gentileza dele? Afinal, independentemente dos próprios planos, Phin dedicava-lhe atenção. Nenhum outro homem fizera isso em quatro anos — exceto o ladrão mascarado, que não levara nada que Richard tivesse notado. Um pensamento súbito deixou-a gelada. E se o francês fosse o vândalo que Phin procurava, e ela não tivesse dito nada a respeito dele? Estavam em guerra contra a França, afinal. — Boa noite — lorde Quence cumprimentou, quando Richard conduziu os Bromley até o lado do salão onde ela e tia Ernesta aguardavam. — Boa noite, milorde — a tia respondeu, sorridente. — E como você está adorável, Beth. Preciso dizer que amarelo é a sua cor. — Obrigada, sra. Donnelly. Fica muito bem na senhora também. — Oh, por favor, querida, quantas vezes preciso pedir que me chame de Ernesta? Alyse ficou um pouco atrás, assistindo à encenação. — Estamos nos falando? — A voz lenta e grave de Phineas surgiu ao seu lado. — Claro que estamos nos falando — respondeu Alyse. — Nunca confiei muito em você, mas ainda somos velhos amigos. — Acho que isso é melhor do que um soco no olho. — Phineas observou o recinto apinhado de gente antes de voltar a fitá-la. — Será que dançam valsa nesta parte da Inglaterra? — Sim. Haverá duas valsas esta noite. — Sendo assim, pleiteio uma delas. Alyse gostou da maneira como ele disse aquilo, como se estivesse disposto a lutar pela oportunidade de valsar com ela. Claramente, Phin não percebera que nenhum homem, além de Richard, lhe dirigira a palavra. — Por quanto tempo pretende deixar-me esperando por uma resposta? — ele perguntou. — Eu adoraria valsar com você, Phin. Devo marcar seu nome agora ou prefere analisar o restante dos convidados e procurar agentes do mal, antes que eu o force a comprometer-se com algo? — Eu quero dançar com você — ele falou, e então abriu o mais fascinante sorriso. — Porém, pelo resto da noite, eu posso muito bem me misturar. — Você deveria ter usado a sua farda esta noite, coronel — comentou Richard. — 57

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As moças adoram uma farda, quem quer que a esteja vestindo. — Nunca precisei gabar-me de minha posição para atrair a atenção de uma dama — respondeu Phineas, e tocou o alfinete de diamante na gravata de Richard. — Aliás, você está muito bem. Alyse lutou contra o desejo súbito de sorrir. Ver o primo presunçoso desconcertado era uma cena rara e bem-vinda. Quando se virou de novo para Phin, ele tinha o olhar fixo nela; em sua boca, mais especificamente. Ela corou. Cautelosa em relação a ele ou não, precisava admitir que ele era lindo e beijava muito bem. Richard comprometeu-se para a quadrilha com ela e a primeira valsa com Beth. Alyse começava a imaginar se Phin pediria uma segunda dança com ela quando ele ofereceu o braço à irmã. — Estou imaginando se você ousaria me apresentar para os seus amigos e nossos vizinhos — ele disse, sorrindo. — É claro. — Ela sorriu. — Mas eu pretendo dizer a todos que você comprou um cavalo amarelo. — Assim vai me condenar, princesa. — Sujeito esperto — comentou Richard, fitando os irmãos. — Conseguiu roubar a vista mais bonita do salão. Alyse revirou os olhos. — Alguém gostaria de uma bebida? — ela ofereceu, certificando-se de que lorde Quence soubesse estar incluído na pergunta. — Uma taça de vinho tinto seria esplêndido — disse o visconde. Se ele se aborrecera com os irmãos se afastando, não demonstrou. — Madeira — acrescentou tia Ernesta, e Richard acompanhou o pedido de William. Anuindo, Alyse afastou-se em busca de um criado. Os partícipes misturavam-se, conversavam e riam ao seu redor, mas ninguém se aproximava para incluí-la. Aquela altura, sabia que não adiantaria insinuar-se para um dos grupos. Se fizesse isso, as pessoas apenas a encarariam em silêncio antes de descobrir que precisavam estar em outro local. Ao ouvir o som familiar da risada de Phin, ela olhou para o lado. Com um sorriso charmoso, ele se inclinava para anotar o nome no cartão de danças de alguma moça. A bela loira ria, estendendo a mão para que ele fizesse uma reverência. — Srta. Donnelly? Alyse assustou-se, virando tão depressa que quase golpeou o homem atrás de si. — Sim? Oh, lorde Anthony. O senhor me assustou. O neto do duque de Beaumont sorriu. — Peço-lhe desculpas. Eu a vi e pensei que seria melhor eu me aproximar, antes que fosse engolida pela multidão. — Bem, o senhor conseguiu — ela disse, sorrindo. — O que posso fazer pelo senhor? — Eu estava imaginando se você teria espaço em seu cartão de dança para mim. Alyse tentou manter a expressão amigável. No entanto, aquele sujeito era amigo de Richard, e ela não conseguia pensar em uma única razão pela qual ele pudesse 58

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querer dançar com ela. — Claro — ela respondeu, pegando o cartão de sua bolsinha. — Pode escolher. Lorde Anthony tomou o papel e o lápis de suas mãos. — Ah, vejo que concedeu uma valsa ao coronel Bromley. — O senhor o conhece? — Já nos encontramos. Ele nos surpreendeu olhando o coche tombado dos Quence. Por um instante, eu pensei que ele fosse o fantasma daquele velho salteador. Qual era o nome dele? Vovô sempre nos contava histórias a respeito dele. — O Cavalheiro? — ela arriscou, tentando não corar. Já tinha quase se convencido de que sonhara com a aparição dele... até que alguém mais mencionasse salteadores. — Sim, esse mesmo. Ele devia estar um pouco mais bem-vestido do que Bromley estava, e eu não acho que o Cavalheiro teria sido pego montando um cavalo amarelo. — Sim, ele era um notório cavaleiro, se bem me lembro das histórias locais. — Sorrindo, Alyse indicou o cartão de danças. — Deseja mesmo uma dança, milorde, ou estava apenas procurando um pretexto para conversar? Lorde Anthony olhou o cartão mais uma vez. — Você ainda tem uma valsa — ele disse, marcando o nome ao lado da segunda valsa e devolveu-lhe o cartão e o lápis. — Obrigado. — Não há de quê. Hum. Primeiro Richard, e agora um de seus amigos resolvia ser... agradável com ela. Quando lorde Charles Smythe aproximou-se, alguns instantes depois, e pleiteou uma quadrilha, Alyse não tinha idéia do que estava acontecendo. A antiga Alyse esperaria que homens se aproximassem e a tirassem para dançar. A Alyse de agora, no entanto, aprendera o bastante para desconfiar dos cavalheiros. A música terminou, e Phineas conduziu Claudia Ellerby para fora da pista. Passar alguns minutos ao lado da moça fora de grande utilidade. Alguns minutos de dança, e já havia descoberto que Anthony Ellerby e Charles Smythe cavalgavam freqüentemente pelos campos, o que os tornava suspeitos. Acrescentando a isso a atitude indiferente ao encontrarem o coche tombado de um vizinho, eles tinham ganhado um lugar no topo da lista. Na verdade, no momento, todos em Lewes e nos arredores estavam em sua lista de suspeitos. Quanto aos motivos, ainda não concluíra nada. Quando o fizesse, tinha a impressão de que todas as peças se encaixariam. — Phineas Bromley. O chamado feminino eriçou-lhe os pelos dos braços; a mesma sensação que experimentava logo antes de descobrir uma emboscada. Perigo iminente. Virou-se. A mulher alta e ruiva parecia familiar. As curvas generosas dos seios no decote baixo provocaram-lhe algumas lembranças, mas não era capaz de lembrar-se de seu nome. — Ficaria ofendida por não se lembrar de mim, não fosse o fato de que, se eu não tivesse ouvido o seu nome, não o teria reconhecido. — Os olhos verdes o percorreram. — Você era um menino. E definitivamente cresceu. O nome, então, junto com outras lembranças, veio-lhe à mente. — Lady Marment. 59

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— Rebecca. — Ela sorriu. — É bom vê-la novamente. Como tem passado? — Estou bem melhor agora. Pouco mais velha que ele, Rebeca era a esposa entediada do estudioso conde de Marment. Eles haviam passado algumas noites interessantes na sala de estar, enquanto o marido dormia no andar de cima. — Espero que lorde Marment esteja bem — ele disse. — Você não costumava importar-se com isso. — Como disse, eu cresci. — Gostaria de ouvir mais sobre... A música para a primeira valsa da noite começou. — Com licença — ele falou, fazendo uma mesura. — Estou comprometido para esta dança. Quando se virou, viu Alyse. Ela estava um pouco atrás da tia, e claramente procurava por ele no salão. Os músculos de seus ombros, rígidos desde que começara a dançar com Claudia, relaxaram um pouco. Se havia uma pessoa ali que ele sabia ser inocente de qualquer ataque à sua família, essa pessoa era Alyse Donnelly. Caminhou até ela. — Vamos? — Estendeu-lhe a mão, comovendo-se com o súbito alívio nos olhos dela. Será que Alyse esperava que ele fosse aparecer? — Sim. — Ela sorriu, apertando seus dedos. Quando chegaram à pista de dança, ele a encarou, deslizou um braço pela fina cintura e pôs-se a valsar. — Como está sendo sua noite? — ele perguntou. — Agradável. Tia Ernesta está de bom humor. — Algo raro, eu presumo. — Você não faz idéia. — Tenho diversos oficiais comandantes. Eu provavelmente faço uma boa idéia da importância e da raridade do bom humor. — Poderíamos discutir o assunto, mas, francamente, estou feliz demais por estar dançando. Phineas pensou em responder, porém mudou de idéia. Estava absorto em descobrir pistas enquanto ela queria apenas dançar. De alguma forma, aquilo parecia melhor da parte dela do que da dele. — Você tem outros parceiros para esta noite? — perguntou, percebendo que, ainda que quisesse que Alyse dançasse, ficaria feliz em ser seu único cavaleiro em uma armadura brilhante aquela noite. — Sim. Richard e seus amigos estão caridosos hoje. — Isso é algo bom, ou eu devo fugir com você? Uma risada irrompeu do peito de Alyse. Phineas gostava do som. Lembrava-o de verão... e inocência. E o fez querer beijá-la de novo. Havia, no entanto, perdido um pouco da confiança dela, após tantas perguntas. Se a pressionasse agora, por beijos ou infor60

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mações, ela provavelmente se afastaria. E isso era algo que ele não queria que acontecesse. — Não acho que um seqüestro, amigável ou não, seria bom para mim. Mesmo assim, obrigada pela oferta. Incapaz de resistir, Phin puxou-a mais para perto. — Não há de quê, Alyse. Ela o fitou por alguns instantes, fazendo seu coração bater mais forte, antes de retomar a conversa. — Lorde Anthony disse que, quando o viu cavalgando pela estrada esta manhã, achou que você fosse o fantasma do Cavalheiro. A despeito de sobressaltar-se, Phineas bufou. Precisaria agir com cuidado dali por diante. — Acho que eu estava mais sujo de lama do que elegante. — Por um momento, deixou de lado o pensamento de que Alyse conhecia Anthony Ellerby bem o suficiente, a ponto de terem conversado... mesmo ela dizendo que quase ninguém lhe dirigia a palavra. — E ele me acusou de ser um maldito francês fora da lei. Alyse hesitou. — Ele provavelmente se esqueceu de que você passou os últimos anos combatendo Bonaparte e os franceses. Ainda assim, ela não mencionou o encontro com o francês mascarado. — Sim, bem, sendo sincero, eu não estava fardado. — Phin suspirou profundamente, rezando para que não a tivesse pressionado demais. — Senti sua falta, Alyse. — Aposto que não pensou em mim nem uma vez entre o dia em que partiu e o dia em que retornou. — Pensei, mas não é isso o que eu quero dizer. — E o que você quer dizer, Phin? Ele franziu a testa. — Que senti sua falta. Os lábios suaves se comprimiram. — É assim que você derrota os franceses? Atacando de maneira despropositada, até que eles fiquem tontos e caiam? Alyse exibia lampejos da perspicácia e do ímpeto que tanto apreciara quando eram crianças. Mesmo com um irmão sete anos mais velho, Phineas ainda a considerava, sendo dois anos mais nova, sua companheira e amiga mais destemida. E poderia ter sido mais, caso ele não tivesse destruído tudo e fugido. Phineas sorriu. — O cinismo é novo, não? — É uma lição que foi bem aprendida, Phin. E é por isso que você me deixa nervosa. De novo, ele a puxou para mais perto, ciente ao mesmo tempo de que a valsa terminaria e de que não desejava soltá-la. — Eu deixo você nervosa? Por quê? — Porque eu sei que você representa confusão e, mesmo assim, quero que me 61

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beije de novo. Phineas quase perdeu o passo e levou ambos ao chão. — Esqueci de acrescentar sinceridade aos seus atributos — ele falou em voz baixa. — Eu o assustava naquela época? — Um pouco. — Ótimo. Então você sabe como eu me sinto. A música chegou ao fim. Alyse passou os dedos pelo braço de Phineas enquanto caminhavam de volta até a tia. Atrás da sra. Donnelly, Richard cumprimentava lorde Charles Smythe. Um segundo depois, Smythe deslizou algo para dentro do bolso do casaco. Aquilo em si não era nada, mas Phineas se tornara muito bom em decifrar pessoas, pois sua vida com freqüência dependia disso. E, pelo olhar de relance que Smythe lhe lançou, notou que ele estava nervoso. De repente, ele quis ver o que o sujeito guardara no bolso. Se sua família precisava de proteção, ele daria a vida por isso. E parecia que ele acabara de avistar a caçada da noite. Ellerby, Smythe e Donnelly tinham aproximadamente a mesma idade e, mesmo Richard tendo se tornado visconde por sorte, ele era de linhagem aristocrática. Poderiam ter freqüentado a escola juntos, e Alyse os chamara de amigos. Aquilo não era surpresa, mas levantava outra pergunta: se Ellerby ou Smythe, ou ambos, estivessem vandalizando Quence, será que Donnelly sabia? Não, aquilo não fazia sentido. Donnelly tinha gastado bastante tempo e energia ajudando a consertar os vários problemas que haviam ocorrido em Quence. Na verdade, a amizade dos outros homens com Richard tornava o envolvimento deles menos provável. Se pudesse descobrir o que lorde Charles pusera no bolso, saberia por que o sujeito estava desconfortável. Poderia até excluí-lo como suspeito. Ou incluí-lo. — Você está muito sério — comentou Beth, aproximando-se. — É mesmo? Estou tentando me lembrar dos passos da próxima quadrilha — Phin improvisou. — Eu sei que você freqüentou muitos bailes no Continente — devolveu-lhe a irmã. — Porque você me escreveu e contou. — Não foram tantos assim. Você não deveria acreditar em tudo o que escrevo, princesa. — É claro que eu acredito em tudo o que escreve. Embora eu percebesse que você deixava algumas coisas de fora. As piores, imagino. — Ela envolveu seu braço com as mãos e sussurrou: — Vou ficar exausta e precisar partir agora porque William nunca admitirá que está cansado. Você devia voltar conosco. Cerrando os dentes, Phineas assentiu. Podia ao menos levá-los para casa, não importava o quanto desejasse investigar mais. — É claro. Pela maneira bem ensaiada com que Beth alegava cansaço e William concordava em partir, Phineas notou que eles haviam feito aquilo incontáveis vezes, em diversos eventos. 62

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— Fique, se quiser, Phin — disse William, enquanto Andrews o acomodava no coche. — Você parece ter parceiras de sobra. Phineas montou. Não cabiam todos no pequeno coche, mas ele podia ao menos aparentar estar cumprindo seu dever fraterno. — Deixe-as sempre querendo mais. Esse é meu lema. Chegando a Quence, Phineas entregou o cavalo ao novo cavalariço e desamarrou a cadeira de rodas de William da parte de trás do veículo, enquanto Andrews o erguia do assento e o carregava até os degraus da frente. — Bem-vindo de volta, milorde — Digby falou, abrindo a porta. — Obrigado, Digby. — Estou cansado também — anunciou Phineas, seguindo até as escadas. — Boa noite a todos. — Boa noite — respondeu Beth, com a voz tristonha. Teria de renunciar a um jogo de cartas ou xadrez com a irmã. Porém, por mais que quisesse vê-la feliz, mantê-la a salvo era mais importante. Encontrou Gordon aguardando no quarto e, agilmente, enfiou as velhas roupas, tornou a dar o nó na gravata e vestiu o grande casaco militar. A máscara estava dentro do bolso. — Pronto? Gordon puxou um velho chapéu de três pontas sobre os olhos e entregou-lhe o outro, similar, que Phineas encontrara no sótão. — Pronto. Ambos se esgueiraram pelas escadas dos fundos e ao redor da casa até o estábulo. Uma vez selados os cavalos, Phineas montou em Ájax. — Bom rapaz. — Deu-lhe um tapinha no pescoço. — Vamos ver como você corre. — Afundou o antigo chapéu de três pontas na cabeça. Então, se abaixando ao passar pela porta do estábulo, com Gordon e Galante logo atrás, incitou o garanhão negro. Partiram como o vento, irrompendo pela estrada em franco galope. Phineas inclinou-se contra o pescoço do animal, mal segurando o chapéu antes que voasse para longe. Ele riu, e Ájax sacudiu as orelhas. Por um longo momento, ficou tentado a apenas cavalgar, galopando até deixar de lado os problemas e seu passado. — Maldição, coronel! Um pouco mais devagar! — o sargento gritou atrás dele. Phineas poderia até escapar dos problemas, mas sabia que o sargento Thaddeus Gordon, mais cedo ou mais tarde, o localizaria de novo. Suspirando, reduziu a velocidade para um trote. — Eu sempre disse que você era o diabo sobre o dorso de um cavalo, coronel — Gordon ofegou, alcançando-o. Diversos veículos passaram por eles enquanto aguardavam nas sombras. Então, outro coche fez a curva naquela direção, com o brasão amarelo à porta aparecendo sob a luz da lua. Beaumont. — Ali está — ele sussurrou, puxando a gola da capa para cima e prendendo a máscara em volta dos olhos. — Lembre-se: fale apenas em francês. — Jamais pensei que fosse morrer como um sapo — resmungou o sargento. Phineas pegou a pistola no bolso. Histórias sobre o Cavalheiro eram famosas no 63

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local, e certamente haviam povoado a mente de lorde Anthony aquela manhã. E um salteador não precisaria ter escrúpulos com os vizinhos de Quence. Que o jogo comece. Lorde Anthony moveu os quadris para mais perto de Alyse, e ela se afastou o máximo possível no assento repleto do coche. — Pare de me apertar, Alyse — reclamou tia Ernesta. — Peço desculpas pelo aperto — disse lorde Anthony, sem retroceder um milímetro do espaço que havia conquistado. — Besteira — respondeu a tia. — Foi muito generoso de sua parte oferecer-nos uma carona para casa. — Foi igualmente generoso oferecer o seu coche para lorde e lady Bagston — comentou Claudia, sentada entre Donnelly e Charles. — Não posso imaginar o que teria acontecido a eles, caso permitissem que o cocheiro os levasse de volta. — O homem estava bêbado demais — Charles falou. — Imagino que, quando estiver sóbrio, vai ficar chateado ao descobrir que perdeu o empre... Nesse instante, ouviu-se um tiro na noite silenciosa. Claudia gritou. Richard provavelmente também gritou, mas, com o coche lotado balançando até parar e uns se chocando contra os outros, Alyse não teve certeza. Não podia tratar-se do francês mascarado. — Sortez de Ia voiture! — gritou a voz profunda. — Ouvrez Ia porte! — Bom Deus, é o Cavalheiro. — Lorde Anthony empalideceu. — Eu jamais deveria ter mencionado o maldito nome. — Tolice — disse Charles. — Fantasmas não têm pistolas. — O que ele está gritando? — resmungou Richard, olhando pela cortina. — Há dois deles! — Sortez vitte. — Oh, céus, alguém sabe o que ele quer? — tia Ernesta indagou. — É francês. Eu só falo grego — disse Anthony. Era mesmo o francês. Embora estivesse mortificada e assustada, Alyse sentiu uma súbita vontade de rir. Por mais importantes e poderosos que se julgassem seus companheiros, eles não eram capazes de comunicar-se com um salteador francês. — Acho que ele quer que saiamos — ela disse. — Não vou sair daqui e ser baleado — sussurrou Richard. — Faça o que quiser, Alyse. A porta se abriu. — Sortez! Aquele devia ser o segundo camarada, pois a voz dele não era tão impositiva quanto a do primeiro. Quando ele gesticulou com a pistola, nem mesmo os ignorantes em francês puderam enganar-se sobre o que ele pretendia. Um a um, eles se espremeram para fora do coche. Alyse olhou para cima para ver o primeiro salteador. O homem estava sobre um monstruoso cavalo negro, com a gola do 64

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casaco erguida para cima, o elegante e antigo chapéu de três pontas enfiado na cabeça e uma máscara em volta dos olhos, de modo que ela pôde apenas entrever um brilho indistinto. Não havia segredo, no entanto, no braço esticado, apontando a pistola para o cocheiro. Era o mesmo sujeito, e ele sabia o que estava fazendo. Por um breve instante, os olhos sombreados pareceram dedicar-se diretamente a ela. Alyse tremeu. — Videz votres poches. — Alyse, o que ele está dizendo? — indagou Claudia. — Perdão, meu bom senhor — disse Richard em uma voz muito alta —, mas não falamos a sua língua. Alyse pensou ter ouvido uma imprecação baixa em francês. — Abram seus bolsos — o homem falou, com um sotaque bastante carregado. — Vitte. Agora. Rápido. — Você não vai safar-se com essa, seu bandido. — Charles tirou dos bolsos a caixinha de rape, o relógio, o lenço e um pente de marfim. — Mon ami, o alforje — disse o francês. O outro sujeito apressou-se até ele e, com a mão livre, o francês entregou-lhe a bolsa de couro cru. O cavalo mantinha-se imóvel, controlado apenas pelos calcanhares do cavaleiro. Com a pálida luz da lua por trás, ele parecia... estonteante. Lendário, até. — Vitte — disse o outro camarada, sacudindo o alforje em frente a lorde Anthony. — Malditos! — grunhiu Richard, enfiando o relógio de bolso e um punhado de moedas dentro da bolsa quando o homem parou diante dele. — Vamos colocar o Exército atrás de vocês. Espero que apreciem ser enforcados. O cavaleiro desmontou em um movimento harmonioso e apontou a pistola para Richard. Alyse prendeu a respiração enquanto, com longas passadas, o salteador aproximou-se de seu primo. — Como proteger as donzelas quando se está morto, monsieur? — Oh, céus! — Ernesta ofegou. — Eles vão nos arruinar! O salteador fez um som de desdém. — A senhora está a salvo, madame. — Virou-se para Claudia. — Seu colar, mademoiselle. E os... boucles d'oreille. — Os o quê? — perguntou Claudia, de modo trêmulo, tirando o colar e enfiando-o no alforje. — Seus brincos — Alyse traduziu. O rosto sombreado virou-se de novo para ela. — Parlez-vous français? Ele não pretendia denunciar o fato de que já haviam se encontrado. Graças a Deus! — Oui. Sim. — Então vou tirar seus enfeites eu mesmo. — Pondo a pistola no bolso, tomou-lhe as mãos nos dedos enluvados, puxando-a mais para perto, e depois a virou de costas. Os dedos em sua nuca a fizeram estremecer. 65

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— S'il vous plâit, monsieur — ela disse baixinho — c'est de ma mère. Cest precieux à moi. —- O colar de pérolas era um dos poucos pertences da mãe que conseguira manter. — Então vou guardá-lo próximo ao coração, ma chère. — Ele a virou de novo. Afastando-lhe os cabelos com gentileza, removeu os brincos e os pôs no bolso. — Merci, mademoiselle. — Tomou-lhe a mão e curvou-se para beijá-la. Alyse engoliu em seco. — Já chega, senhor. A pistola reapareceu, desta vez apontada para lorde Anthony. — Revirem os bolsos. Todos vocês. Aquilo fez surgirem muitas notas e moedas e mais duas libras de Richard, tudo indo diretamente para o alforje. Por fim, o salteador moveu-se, e seu companheiro jogou a bolsa por sobre o ombro, montando o cavalo castanho. O francês retrocedeu até alcançar a própria montaria. Em outro gracioso movimento, saltou sobre a sela, sem desviar nem por um instante a pistola do alvo. Ele tocou a aba do chapéu, em uma saudação zombeteira. — Merci, senhoras e senhores. Bon soir. — Ele incitou o animal e sumiu na noite, sendo seguido de perto pelo cavalo castanho. — Oh, céus! — Tia Ernesta desmaiou. — Então os importantes daqui não falam francês, é? Isso foi uma certa surpresa. — Estão muito ocupados caçando e dançando, evidentemente. — Da próxima vez que roubarmos um coche, o senhor poderia me avisar antes para que eu, pelo menos, tenha uma pistola carregada? — ele pediu, devolvendo a que usara. Phineas guardou-a no bolso e, ao fazer isso, seus dedos envolveram as pérolas de Alyse. — Você deveria ter trazido uma — ele falou, tirando as luvas com os dentes e estendendo o braço para pegar o alforje. Com Ajax caminhando, ele analisou o conteúdo. Haviam recuperado três cartas. Uma delas devia ser a que Charles escondera no casaco. — Então estamos ricos além da imaginação agora? — O quê? Ah! — Guardando as cartas no bolso e fechando o alforje, devolveu-o para o sargento. — Gaste o dinheiro por aí e faça o que quiser com o resto. Apenas seja cauteloso. — Então isso tudo foi por causa das cartas? — Uma delas. Assim espero. — Bem, esta foi uma noite agradável. E as pérolas? — Dessas, cuido eu. Gordon, certifique-se de que Warner e o novo menino, Tom, compreendam que estamos ajudando minha família, e que Ájax não deve deixar o estábulo durante o dia, haja o que houver. É difícil confundi-lo com outro cavalo. — Ah, sim. Cavalgaram em silêncio por alguns instantes, cruzando a ponte de volta à 66

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propriedade de Quence. Tomar o caminho mais longo fazia sentido, e Phineas esperava que a precaução bastasse. — Coronel? — Sim? — Você sabe que eu o seguiria até os portões do inferno, mas o que exatamente nós conseguimos? — Estou tentando encontrar um vândalo. Assim que souber mais, eu lhe aviso. — Parou, olhando para o escocês. — E obrigado, sargento. Você é um bom homem. — Para um salteador francês. — Para qualquer coisa. O escocês ruborizou. — Obrigado. Assim que retornaram a Quence, Phineas levou Ájax até o estábulo e lhe deu uma maçã. Quando tudo aquilo terminasse, precisaria devolver a Sullivan o garanhão negro, ou correria o risco de ser desmascarado como o salteador, mas esperava que o estratagema valesse a perda de um belo animal. Digby parecia já ter se retirado, de modo que Phineas entrou sozinho na casa. Subiu as escadas em silêncio e fechou-se no quarto. Quando teve certeza da privacidade, largou o par de armas na cama e pegou as pérolas de Alyse no bolso. — Maldição — ele murmurou, estudando-as sob a luz das velas. Ele quisera o papel de Smythe. Se tivesse idéia, antes de parar o coche, que Alyse e os outros Donnelly estariam dentro... Provavelmente, o teria roubado de qualquer forma. Não faria sentido iludir-se, quisesse ser um homem mais gentil do que era ou não, Uma vez resolvida a questão, providenciaria que as pérolas fossem devolvidas a Alyse. Até lá, faria conforme o prometido e as manteria a salvo. Indo até seu baú, abriu-o e pressionou a parte interna da tampa. Um painel solto deslizou, e ele inseriu as pérolas ali, pondo-as ao lado de suas três medalhas por bravura e da carta de recomendação que recebera do próprio Wellington. Fechou a arca de novo, e só então pegou no bolso os três pedaços de papel que conseguira. Tirando o casaco, atirou-o sobre uma cadeira e sentou-se diante do fogo fraco, abrindo a primeira missiva. Era uma fatura do mesmo alfaiate ao qual fora. Aparentemente, lorde Anthony tinha um gosto refinado. Com a testa franzida, inclinou-se para a frente e atirou-a na lareira. Não tinha intenção de ser enforcado por causa de uma conta de roupas. A segunda carta era maior, feita de papel muito fino. Enquanto a desdobrava, virando-a para um lado e para o outro, ele notou que as linhas e pontos aleatórios formavam um mapa. Ou melhor, eram destinados a ser colocados sobre um mapa. A questão era: que mapa? E o que ele veria quando os colocasse juntos? Deixando-a de lado por um instante, abriu a terceira missiva e grunhiu. Lorde Donnelly considerava-se um poeta. E, aparentemente, Elizabeth deveria rimar com céu azul-celeste. Bem, o visconde precisaria começar a se esforçar de novo, pois o poema seguiu a fatura no fogo. Passou a analisar o papel marcado. Não havia nenhuma palavra escrita e, portanto, ele não sabia se estava olhando para um jardim ou para o condado inteiro. Era algo rural, mas até mesmo isso era mais uma intuição do que uma conclusão lógica. Diversos círculos pareciam marcar áreas importantes, enquanto um pequeno "X" parecia 67

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coisa de piratas. Bem, ele quisera uma pista, e aquela se parecia com uma. Uma pista para quê, no entanto, ela ainda não sabia. Perguntar, especialmente depois da maneira como a conseguira, estava fora de questão. Ajax teria de ficar em Quence por mais algum tempo. Encostou-se na cadeira, fitando o fogo. Havia abusado da amizade com Alyse, levando-a a desconfiar dele, mas ainda podia fazer algo gentil por ela. Ou melhor: o Cavalheiro poderia. Antes que recobrasse o bom-senso, ele pôs o casaco, a máscara e o chapéu de novo, guardando no bolso as pérolas que escondera, e se esgueirou até o estábulo. Warner e o jovem Tom já haviam se retirado. Portanto, ele mesmo selou Ájax. Escolhendo as pastagens em detrimento da via principal, ele se dirigiu à casa dos Donnelly. As janelas estavam escuras, de modo que, por mais irritado que Donnelly tivesse ficado com o roubo, estava conseguindo dormir. Lembrava-se de onde costumava ser o quarto de Alyse. Deteve Ájax abaixo da pequena fileira de árvores a oeste da casa e seguiu os últimos metros a pé. Escalou agilmente as treliças e empurrou a janela com as pontas dos dedos. Jamais invadira a casa dos Donnelly antes, já que, no passado, sempre fora bem-vindo ali. As coisas tinham mudado, e não apenas porque ele estava disfarçado de salteador. Apoiando uma das botas no parapeito, conseguiu entrar em silêncio. Enquanto abria as cortinas, ocorreu-lhe que não sabia o que dizer para ela. Nos últimos dez anos, acostumara-se à idéia do logro, pois fazia parte da guerra. Porém, enganar Alyse, especialmente quando ela já fora enganada por outro homem antes, um que lhe prometera casamento, parecia errado. Ainda assim, ficou ali, no quarto de Alyse, vestido como um salteador. Deixando as cortinas abertas apenas o suficiente para que um raio de luar iluminasse o quarto, aproximou-se da cama em silêncio. Ela se mexeu, virando-se de costas... e emitindo um indelicado ronco. Com um xingamento mudo, Phineas recuou. A maldita tia! Ele se moveu depressa até a porta e esgueirou-se para o corredor. Céus! Aquilo com certeza afastara qualquer pensamento romântico. Se Alyse não estava em seu quarto, onde mais poderia estar? Como acompanhante da tia, era provável que estivesse por perto, mas os quartos de ambos os lados do da sra. Donnelly estavam vazios, assim como o do outro lado do corredor. Bem, agora que estava ali, teria de vê-la. Hum. A governanta costumava usar o quarto do terceiro andar, diante do sótão. Ele subiu as escadas dos fundos. A porta estava trancada, mas as dobradiças eram tão frouxas que tudo o que precisou fazer foi erguê-la e empurrar. Ela deixara abertas as cortinas da pequena janela, e ele pôde vê-la encolhida na cama estreita. Phin cerrou os dentes. O diamante de East Sussex, e sua própria família a mantinha trancada no sótão. Bem, não trancada, mas sem dúvida esperavam que ela ficasse ali. Por um longo momento, ele apenas a contemplou, com a mão sob a face e os longos cabelos cobrindo-lhe parte do rosto. Ela era adorável! Apenas o ato de fitá-la o fazia sentir-se protetor, possessivo e ansiando por algo que poderia ter sido. Talvez ainda pudesse ser, caso ele não fosse enforcado ou renegado pela família. — Monsieur! — ela sussurrou, arregalando os olhos escuros. Sentou-se e puxou as cobertas até os seios. 68

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Phineas deixou de lado os devaneios. Como poderia fazer aquilo sem mentir para ela? — Je regrette — ele murmurou um pedido de desculpas e, retirando as pérolas do bolso, estendeu-as para ela. — Pour un baisser. Alyse esticou a mão, mas a recolheu de novo. — Você vai me devolver as pérolas em troca de um beijo? E isso é tudo o que você quer? — Oui. — Um pouco de honra, vinda de um voleur de grand chemin. — ela sussurrou, corando. — Un peu — ele concordou. Um pouquinho de honra, vinda de um salteador. Alyse respirou fundo e anuiu. — Muito bem. Pelas pérolas. Com o coração acelerado, Phin sentou-se na beirada da cama. Gentilmente, ergueu o queixo de Alyse com os dedos enluvados e tocou-lhe a boca com a sua. Já tinham se beijado antes, mas ele não tivera a oportunidade de saboreá-la de maneira apropriada, de experimentar a maciez daqueles lábios, de sentir a paixão que ela guardava no íntimo. Agora sim, conseguiu fazer isso, avançando, recuando, aprofundando o beijo até que ela gemesse. Queria tudo dela. Contudo, quem quer que fingisse ser naquele momento, prometera que não lhe causaria mais problemas, e já estava trilhando um caminho perigoso. O velho Phin, antes que tivesse se unido ao Exército, não teria nem mesmo percebido que havia um caminho a trilhar. Pensaria apenas em si mesmo. Agora, no entanto, tudo no que podia pensar era em Alyse. Com pesar, afastou-se, passando os dedos no rosto delicado. — Merci, mademoiselle — murmurou, virando-lhe a mão e depositando na palma as pérolas roubadas. — Votre baisser est bien valoir son prix. — Sim, o beijo definitivamente valera o preço. E mais. Ele se levantou, pegou uma rosa do buquê abaixo da janela e colocou-a no colo de Alyse. — Merci — ela sussurrou. Phin assentiu, abriu a porta e deslizou para o escuro corredor. — De rien. De nada... Não, aquilo era muito. Ele duvidava que voltaria a ser o mesmo. E, por essa noite, ao menos, a mudança era bem-vinda. — Bom dia — cumprimentou William ao entrar na sala de desjejum, com Andrews, como de costume, empurrando-lhe a cadeira. Phineas terminou de mastigar o presunto e os ovos. — Bom dia. — Presumo que esteja tudo bem, não? Andrews me disse ter visto seu criado indo para o estábulo ontem à noite. 69

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Phineas forçou um sorriso e assentiu. — Gordon queria testar um novo par de dados. Ganhou cinco libras de Warner. — Ele jogou no estábulo — disse o irmão. — Seu criado. — Eu queria me unir a eles, mas bebi muito vinho no baile. — Entendo. Andrews, Digby, podem nos dar licença um instan... — Bom dia, meus doces irmãos — cantarolou Beth, rodopiando para dentro do aposento. Beijou William e fez uma pirueta ao redor da mesa para dar um abraço em Phineas. William sorriu. — Vejo que está feliz hoje, princesa. — E por que eu não estaria? — ela indagou, rumando até o aparador e servindose. — É uma manhã adorável, e eu vou sair para cavalgar com um homem bonito que me prometeu um belo poema. Phineas tinha suas dúvidas àquele respeito. Sobre a parte do poema, ao menos. — Isso soa ótimo. — E quais são seus planos para hoje? — Pensei em ir até Lewes e visitar uma ou duas das tavernas que William sugeriu no outro dia. — Ou visitar o escritório do agrimensor e analisar alguns mapas locais, comparando-os com o quebra-cabeças que adquirira. A besteira sobre as tavernas seria outra mancha em seu caráter, mas, se admitisse estar se intrometendo nos assuntos de Quence contra a vontade de William, talvez fosse obrigado a partir. Embora não soubesse se ser renegado era melhor ou pior do que o olhar desapontado de Beth e o... nada vindo de William, ser banido não serviria aos seus propósitos. Muito menos após a noite anterior. — Talvez você gostasse de cavalgar com Richard e comigo — sugeriu Beth, já sem a expressão feliz. — Não se preocupe. Eu vou me divertir. Você acha que lady Marment está recebendo visitas? Uma faca chocou-se contra o prato de William. — Posso ter uma palavra com você em particular, Phin? — ele grunhiu. — Não quero ter minha orelha arrancada. Você me disse para cuidar da minha vida, e é o que estou fazendo. Elizabeth abriu e fechou a boca. — Mas... — O que você achou, Beth? Que eu viria galopando até Quence e consertaria tudo? — Terminando o chá, levantou-se. — Caso se lembrem, sou o que fez tudo errado desde o princípio. Com licença. Ele subiu os degraus, dois por vez. Dentro do quarto, apoiou-se na porta e respirou fundo. Dez anos atrás, aquele seria Phin — raivoso, desafiador, sem um pingo de sutileza. Se precisasse parecer aquele desordeiro de novo, a fim de manter-se próximo à família enquanto descobria o que diabos estava ocorrendo, que assim fosse. Ninguém estava surpreso, é claro. Para os irmãos, ele nunca deixara de ser aquele 70

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garoto tolo. Pegou seu casaco, decidindo deixar o militar para as próximas atividades noturnas. Ao descer, ele se deteve. Pretendia ir para o estábulo, apanhar Açafrão e seguir em direção a Lewes. Contudo, pelas vozes elevadas na sala de desjejum, pareciam ter companhia. Alguém que aparentemente fora roubado. Forçando uma expressão curiosa e esperando que Alyse também estivesse ali, abriu a porta. — ...o maldito francês fugiu com meu poema! — Richard gritava, com o rosto vermelho. — Um francês roubou seu poema? — Phineas interrompeu. Nada de Alyse. — O belo poema que você prometeu a Beth? — Phin... — sussurrou a irmã, corando. O visconde encarou-o. — Aquele mesmo. — Desculpe, mas estamos em guerra contra a França. Onde você estava, para que um francês pudesse roubar-lhe qualquer coisa? — Você perdeu a primeira parte da conversa — disse William, pálido. — Isso é evidente. O que está acontecendo? — Um salteador deteve o coche de Beaumont ontem à noite — explicou Beth. — Dois salteadores franceses. — E eles levaram seu poema. — Pelo amor de Deus, Bromley, veja se nos acompanha, sim? — Donnelly disse, bruscamente. — Você é o oficial aqui. Você devia nos proteger dos malditos franceses que rondam os campos. Esplêndido. Se tudo prosseguisse com a ironia de sempre, ele poderia muito bem acabar perseguindo a si mesmo por East Sussex. — Talvez você devesse recomeçar a história — ele sugeriu. — Não tenho tempo para isso — respondeu o visconde. — Vim apenas para avisar William e me desculpar com Beth por não levá-la para passear esta manhã. Estou a caminho da polícia. — Com isso, curvou-se sobre a mão de Beth, acenou com a cabeça para William e passou por Phineas ao sair para o corredor, com Digby logo atrás. Os três irmãos se entreolharam. Diga alguma coisa, ordenou Phineas a si mesmo. — Talvez o Cavalheiro seja mais esperto do que pensávamos. — Não temos um assalto a coche há doze anos — William falou. — É óbvio que alguém usou a lenda local em benefício próprio. — Sem dúvida. — Phineas deu de ombros. — Donnelly disse algo mais? — Disse que o líder montava um enorme garanhão negro e que fez com que todos esvaziassem os bolsos. Levou até as jóias de Claudia e de Alyse. A única que deixou intocada foi a sra. Donnelly. — Ele levou as jóias de Alyse? — Phin repetiu, permitindo que um pouco da raiva que sentira de si mesmo se revelasse em sua voz. — Apenas fique grato por ninguém ter sido baleado — disse William. — Não deve ser difícil para a polícia localizar dois franceses, não é? — perguntou Beth. 71

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— Não, não deve — William afirmou. — Enquanto isso, no entanto, você não vai a parte alguma sem um acompanhante armado, princesa. — Virou-se para Phineas. — Você também não deveria. — Tenho matado franceses há dez anos. Creio ser capaz de lidar com dois deles. Deve ser até divertido ver se consigo caçá-los. — Deixe isso para as autoridades — disse o irmão. — Você não me deu mais nada para fazer aqui. — Prefiro que você vá fazer o que quer que estivesse planejando antes que ouvisse nossa conversa. Phineas ergueu uma sobrancelha. — Isso é uma ordem, lorde Quence? — É uma maldita sugestão. Aquilo era ótimo... Agora, além dos problemas com as terras de Quence, William tinha um salteador e um irmão errante com quem se preocupar. Phineas seguiu para o estábulo e pegou Açafrão. O buraco que cavava estava tão fundo que ele nunca conseguiria sair caso caísse lá dentro.

Capítulo III

— Obrigada, Jones — disse Alyse, descendo do pequeno coche de Richard. — Voltaremos em um instante. — Não se apresse, senhorita. Com Mary a segui-la, Alyse entrou na loja de roupas de Daisy Duvall, a fim de apanhar os dois novos vestidos da tia. Ernesta tinha a intenção de fazer aquilo, mas o encontro com o salteador, na noite anterior, a esgotara. Fosse por causa das pistolas e das ameaças ou porque o elegante sujeito não se incomodara em roubar-lhe nada, Alyse não sabia, mas tinha suas suspeitas. Richard, a despeito da raiva por ter sido roubado em seis libras, um relógio e um poema, não parecia muito preocupado com a segurança de ninguém. Com certeza não objetara que a prima saísse em coche aberto, tendo apenas uma criada e um velho cavalariço por companhia. Ela não sabia o que pensar. Beijara um salteador! Um homem cujo nome desconhecia e cujo rosto jamais vira. Um habitante da casa responsável teria gritado por ajuda. Verdade que ela não sentia muita lealdade pelo primo ou pela tia, mas isso não justificava sua atitude. Não era nem por achar o ladrão... irresistível, ainda que gostasse do som da voz dele. Não podia pensar em ninguém que vivesse mais livremente do que um salteador. E, ao beijá-lo, sentira isso também. Uma fagulha de fogo, de vida. E gostara daquilo. A história sobre o roubo já se espalhava por Lewes, e ela precisou contá-la duas 72

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vezes somente dentro da loja de roupas. A meia dúzia de senhoras presentes já tinha concluído que o Francês, como ele agora era chamado, se não fosse o fantasma do Cavalheiro, devia ser um nobre destituído que escapara de Bonaparte e estava tentando reunir fundos suficientes para recuperar as terras e o título. — Você nunca disse isso tudo — murmurou Mary detrás de uma pilha de caixas de chapéus, enquanto elas saíam da loja. Alyse carregava os vestidos dobrados. — Eu não sabia. Elas inventaram. — E a versão era boa. — Mas... — Srta. Donnelly. Alyse virou-se e viu Phin Bromley descer do cavalo. Sem conseguir evitar, ela sorriu. — Esse é um cavalo amarelo. — Já o admirou antes. — Sim, mas achei que devia estar sonhando. Phineas afagou a crina do animal antes de se aproximar dela. — Pobre Açafrão. Exótico demais para ser apreciado. — Colorido demais, você quer dizer. Ele tomou os vestidos de seus braços e dirigiu-se ao coche de Richard. — Donnelly apareceu esta manhã — ele comentou, colocando os trajes no banco. — Você está bem? — Sim, estou ótima. Foi tudo bastante excitante, na verdade. Phineas encarou-a. — Ele levou suas jóias. A expressão séria e preocupada no rosto delgado surpreendeu-a. Hesitou. Contudo, em um dia ou dois poderia dizer ter encontrado o colar abandonado no jardim ou algo parecido. — Vou sentir falta das pérolas de mamãe, mas fico feliz que ninguém tenha se ferido. — Duvido de que seus acompanhantes tenham reagido com tamanha bondade. Alyse disfarçou um breve sorriso. — Não, não reagiram. Phineas ofereceu-lhe o braço. — Você tem tempo para uma xícara de chá e uma rosquinha? Ela não deveria. Tia Ernesta ficaria zangada se ela não retornasse de imediato e, como punição, talvez terminasse com uma porção de remendos para fazer à noite. Phin, no entanto, era a única pessoa que encontrara que perguntara sobre as suas perdas. Além do mais, o salteador não fora o único homem que tinha beijado nos últimos tempos. Oh, Deus! As pessoas escreviam peças moralizantes sobre mulheres como ela. Não poderia nem mesmo dizer que Phin era mais seguro que o Francês. Devia ser justamente o contrário. Envolveu o braço dele com os dedos. — Tenho alguns minutos. — Bom — ele disse enquanto atravessavam a rua até a padaria. — O que o sujeito 73

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levou? — Ele mandou que os homens revirassem os bolsos e levou também as jóias de lady Claudia. Alguns relógios de bolso e umas vinte libras, mais ou menos. Phin abriu a porta, e então puxou uma cadeira para ela em uma das doze mesas na pequena área aberta, à frente da loja. — Donnelly disse que eram franceses. — Sentou-se diante dela e sinalizou para que levassem chá e rosquinhas para a mesa. — Na verdade, ele parecia pensar que era culpa minha deixar um sapo entrar na Inglaterra. — Pelo modo como ele e lorde Charles falavam, parecia que Bonaparte em pessoa nos atacou. — Os olhos dele encontraram os seus, deixando-a sem fôlego. — Fico feliz que você não estivesse lá. — Por quê? — Porque você não ficaria satisfeito em xingar o francês depois de ele desaparecer. Você teria lutado, e então ele o teria matado. — A idéia a deixava gelada. — É pouco provável — ele falou, secamente. — Não zombe. Sei que você é um oficial treinado, mas ele parecia bastante mortal. — E instigante, ainda que, surpreendentemente, não tanto quanto Phin. Parou de falar, enquanto uma menina trazia a chaleira, as xícaras e uma bandeja de rosquinhas quentes. Quando ficaram a sós de novo, inclinou-se para a frente e disse em voz baixa: — O que eu não compreendo é por que um homem cujo país está em guerra com o nosso se arriscaria roubando nobres ingleses em sua própria terra, e por tão pequena recompensa. — Talvez esperasse recompensa maior. — Duas dúzias de coches deixaram a festa no período de uma hora. Estou apenas pensando em voz alta, mas me parece que ele e seu amigo poderiam ter obtido muito mais, se quisessem. Phineas afagou-lhe o dorso da mão com um dedo. — Fico feliz que não tenha se ferido. Um agradável arrepio desceu pelas costas de Alyse. — Eu poderia ficar mais inclinada a acreditar em seu galanteio, se você não tivesse você desaparecido sem uma palavra por dez anos. — Não parti por sua causa. — Não voltou por minha causa também. — Sabe, cada vez que eu lhe digo algo decente, você não precisa atirar-me de volta na cara. — Talvez seja porque o tenha visto esgueirar-se de festas em inúmeras ocasiões, sempre em companhia de mulheres mais velhas e geralmente casadas. Não sou nenhuma das duas coisas. — Isso foi há dez anos, Alyse. Pelo amor de Deus! — Sim, mas, desde que retornou, já me beijou duas vezes. — E por que eu não deveria? Você é incrível. De corpo e alma. Alyse ruborizou. — Obrigada, mas eu me sentiria menos perturbada se você conhecesse menos 74

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moças às quais possa me comparar. — Certo. — Phin levantou-se. — Você não confia em mim. Junte-se à vasta horda daqueles que não esquecem e não perdoam. — Atirou várias moedas sobre a mesa para pagar a conta. — Mas eu nunca disse ou pensei qualquer coisa indelicada sobre você. Jamais. Alysse observou-o sair da padaria e atravessar a rua. Lançando-lhe um olhar indecifrável, ele montou o cavalo e trotou rua abaixo. — Oh, droga! — ela murmurou. Se ele ainda queria algo dela, Alyse não sabia o que poderia ser. Se não queria, se estivesse atrás dela apenas por vontade... Será que poderia permitir-se acreditar nisso? E o que significaria? Estava de licença do Exército e claramente passava o tempo livre longe da família. Ele partiria em breve, de volta à Península. E então ela ficaria sozinha de novo. O Francês beijava muito bem, mas ele simplesmente não era Phin Bromely. Além do mais, a expectativa de vida do salteador era ainda menor do que a do velho amigo. — O que você quer, Phin? — sussurrou consigo mesma. Ele provavelmente não responderia, mesmo se pudesse. Quanto ao que ela queria, a questão tornava-se mais complicada a cada instante. Aquilo fora por pouco. Alyse tinha a mente aguçada. E, ainda que distraí-la da linha de pensamento tivesse sido necessário, desviar a conversa para uma tentativa fracassada de flerte não fora. Não, aquilo tinha sido... estúpido. Tudo de que precisava era entrar em uma disputa consigo mesmo pelo afeto de Alyse. — Droga! — resmungou. Em sua defesa, no momento em que pusera os olhos nela, quisera estar mais perto. Aquilo estava se tornando uma obsessão. Desejava Alyse. Sua... lascívia começava a interferir no objetivo de descobrir quem estava vandalizando a propriedade e pôr um fim à situação. Inferno, estava arriscando o disfarce apenas ao beijá-la! Deixou Açafrão na esquina do escritório do agrimensor. Teria sido útil saber ao menos o nome do homem encarregado do pagamento de impostos na região, mas ele não podia pedir a ninguém que os apresentasse. William e Beth não deviam saber o que tramava, e ele não confiava em mais ninguém. Exceto em Alyse. — Olá? — chamou, abrindo a porta. O escritório estava repleto de livros e mapas; as mesas mal eram vistas, cobertas por pilhas de papéis e mais mapas enrolados. Phineas espirrou. Ninguém surgiu. Tirando o casaco e o paletó, ele enrolou as mangas da camisa e lançou-se sobre a pilha mais próxima. Se suas suspeitas estivessem corretas, o esquema de Smythe teria algo a ver com a área em torno de Lewes, e mais especificamente com Quence Park. O problema, no entanto, era a escala. Uma combinação perfeita seria quase impossível, mas a coleção de mapas do agrimensor era sua melhor chance. Precisava primeiro, é claro, encontrar um mapa que cobrisse Quence. Felizmente, ao longo dos anos, ele passara bastante tempo analisando mapas de terrenos e táticas de guerra, de forma que, em pouco tempo, eliminou uma mesa inteira. Restavam-lhe apenas algumas centenas de mapas antes de passar ao cômodo dos fundos. Com um rangido, a porta se abriu. Phineas pôs um sorriso confuso no rosto e se virou. — Graças a Deus! Por favor, diga-me que este é seu escritório. 75

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Um homem alto, de cabelos brancos e óculos entrou. — Este é meu escritório — ele respondeu, asperamente. — Quem é você? Phineas aproximou-se dele e estendeu a mão. — Phin Bromley. E o senhor? — Artemis Spyres. — Cumprimentaram-se. — Bromley. Quence Park? — Sim, sr. Spyres. Pode me ajudar? — Isso depende, senhor. Sou o único que deve pôr as mãos nesses mapas. São do governo. Todos muito precisos. — Esplêndido! — Phineas exclamou. — Temos tido alguma dificuldade para recolocar nossos diques de irrigação. Meu irmão, o visconde, discorda, mas eu pensei que o senhor tivesse os mapas mais precisos que pudéssemos encontrar em qualquer parte. — Devo dizer que sim. De outra forma, não estaria fazendo direito meu trabalho. Agora vejamos o que podemos descobrir. Pelas duas horas seguintes, encontraram seis mapas de Quence. Um de toda East Sussex, um da área ao norte de Lewes, um das terras que margeavam o rio Ouse, dois contendo as terras de Donnelly, Beaumont, Quence e Roesglen, e um que mostrava apenas a propriedade da família Bromley. Com ura rápido olhar para Spyres, Phineas pegou no bolso de seu casaco o fino papel e desdobrou-o. — Um amigo desenhou-me isto, mas estou passando o diabo para decifrar o que ele queria dizer. O sr. Spyres colocou-o sobre o mapa, deslizando-o de um lado para o outro. — Que escala o seu amigo usou? — Não tenho a menor idéia. — Bem, eu diria que o mapa de seu amigo não é de Quence Park. Essas linhas aqui parecem uma estrada, e não há lago ou rio com esses contornos na propriedade. — Apontou para outro rabisco. — Além do mais, a não ser que você tivesse construído um celeiro ou outra estrutura com paredes, o que custaria um imposto adicional, não há nenhum anexo aqui. Phineas analisou o esquema. — Posso dar uma olhada? — Quando Spyres recuou um passo, ele virou o papel cerca de quarenta e cinco graus. Se o deslizasse um pouco para Norte e Oeste, havia pedaços que cruzavam com o verdadeiro mapa... uma ponte, o velho monte de ruínas, nas pastagens ao sul, um trecho do rio, onde passava por Donnelly e chegava às terras de Quence. — Em que escala está este mapa? — Uma polegada para um quarto de milha — ele respondeu. Aquilo não era bom. Phineas ficou inquieto. — Muito obrigado, sr. Spyres. — Ele dobrou o papel e guardou-o no bolso. — O senhor foi de grande ajuda. — Fico satisfeito em servir, sr. Bromley. Vestindo o paletó e o casaco, Phineas saiu do escritório. Açafrão permanecia onde o deixara. Ao menos para fazer-se presente, teria que ir até uma das tavernas para almoçar, ainda que estivesse disposto a pagar uma boa soma para evitar seus velhos 76

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fantasmas. Depois, precisaria examinar as pastagens onde alguém evidentemente pensava que havia ou que deveria haver uma estrada. Mal se sentara na taverna para tomar uma cerveja quando Gordon irrompeu no local. Avistando-o, o sargento apressou-se até ele. — Graças a Deus, eu o encontrei, coronel! — O que aconteceu? — perguntou Phineas, sobressaltado, pensando de imediato em William e na saúde instável do irmão. — São cães. Uma dúzia deles invadiu as pastagens a oeste e fez um estrago com as ovelhas. Deixando algumas moedas sobre a mesa, Phineas levantou-se. — Vamos lá. Em um instante, galopavam em direção a Quence. — Você viu os animais? — ele perguntou. — Vi. O sr. Bibble, o pastor, veio gritando pela estrada, e eu e Warner cavalgamos até lá. Matei dois dos malditos eu mesmo, enquanto o resto fugia. — O estrago foi grande? — Sabe como os cães podem ser sanguinários, coronel. — Quantas ovelhas? — Talvez metade de um rebanho. Phineas praguejou. Quence tinha três rebanhos de ovelhas. Se a avaliação de Gordon estivesse correta, eles tinham perdido dez por cento dos animais. Em boas condições, Quence suportaria o golpe, mas aquele não era o caso. Enquanto cavalgavam pelas pastagens, Phineas reduziu a velocidade. Meia centena de corpos brancos, manchados de vermelho, jaziam estraçalhados na relva. No limite oposto, entre as árvores, ele avistou o restante do rebanho. O sr. Bibble estava em pé no meio da carnificina, chorando a plenos pulmões. — Onde estão os cães que você abateu? — grunhiu Phineas. — Por aqui, coronel. Gordon conduziu-o até os dois grandes corpos marrons. Phineas desmontou. — Cães de caça. — Ele se agachou diante do mais próximo, examinando o interior das orelhas do animal e então erguendo o lábio superior, para checar as gengivas marcadas de sangue. — Alguma coisa? — O sargento pôs-se ao seu lado. Phineas endireitou-se, limpando as mãos nas calças. — Não. Maldição! Sem qualquer marca. — Você acha que é apenas uma matilha selvagem? — Não. Se doze cães estivessem soltos por aqui, teríamos sabido antes. — Quem faria isso de propósito? — Garanto que pretendo descobrir, sargento. Era já final de tarde quando Phineas entrou de novo na mansão. 77

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— Digby, onde está William? — indagou. — Santo Deus! — Beth ofegou, apressando-se pelas escadas. — Phin, por favor, me diga que não está machucado. Phineas afastou-a com um cotovelo, antes que ela o agarrasse. — Não é meu sangue — ele grunhiu. Uma lágrima correu pelo rosto dela. — Das ovelhas? — Sim, Onde está William? — Analisando as contas. Tente não aborrecê-lo. — Farei o possível. Phineas deteve-se do lado de fora do gabinete. Ele parecia ter perdido uma briga, mas não queria esperar até lavar-se e trocar de roupas. Inspirando fundo, bateu na porta. — Entre. Ao abrir a porta, viu o irmão cercado por livros de contabilidade. — William. — Digby falou que o seu sr. Gordon foi procurá-lo. — Sim. — Phineas tirou do bolso trinta libras e colocou-as sobre a mesa. — Quarenta e sete ovelhas. Nós as levamos até a cidade e as vendemos ao açougueiro. É provável que acabem servindo de comida para os mesmos cães que as mataram. — Você descobriu a quem pertenciam? — Não havia nenhuma marca de proprietário. Ainda assim, estavam saudáveis e bem alimentados. Não creio que mais alguém tenha sido incomodado por matilhas de cães selvagens, não é? William mirou-o por um instante e depois meneou a cabeça. — Obrigado por ajeitar as coisas. — Isso é tudo? Sem raiva, sem frustração? Apenas "obrigado por tirar minhas ovelhas massacradas do meio da pastagem"? — O que esperava que eu fizesse? Que eu gritasse e batesse os pés no chão? Que eu fugisse e me alistasse no Exército? Está feito. Agora, nós seguimos em frente. — Siga você em frente — ele murmurou. William sabia como desferir o golpe mais doloroso. — Eu me certificarei de que o caminho esteja livre — disse, virando-se. — Phin! Mantendo em mente o pedido para não aborrecer o irmão, Phin interrompeu sua retirada. — Partirei assim que terminar por aqui. — Olhou para o irmão. — Mas não vou a parte alguma com as coisas do jeito que estão. — Peço desculpas — disse William. — Eu não devia ter di... — Não — Phineas o interrompeu. — Não me peça desculpas. Jamais. — Oh, eu detesto histórias estrangeiras! — disse tia Ernesta, deixando de lado o livro de Richard sobre Roma antiga. Ergueu os olhos até Alyse, que tentava bordar sobre 78

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um buraco em um lenço. — Apanhe meu tricô, Alyse. Mantendo a expressão impassível, Alyse assentiu e foi em direção ao corredor. Ninguém lhe dera remendos adicionais para fazer no dia anterior, mas ainda tinha muitas horas de trabalho. Tivera que escutar um sermão de vinte minutos sobre oportunidades, e sobre seu alto grau de egoísmo, por ter deixado a tia à espera. Mesmo com a maneira como Phin partira, ainda valera a pena. Por alguns instantes, tinha sido uma bela e jovem donzela, acompanhada por um belo cavalheiro, interessado apenas nela. Desceu as escadas e apanhou a cesta de linhas. No caminho de volta pelo corredor, parou diante do espelho. Aquela era sua imagem agora. Roupas limpas, mas saindo de moda a cada dia, cabelos presos de forma simples, como conseguia sem a ajuda de criadas, e um punhado de itens apanhados para outra pessoa nas mãos. Guardara trinta libras até o momento. Aquilo a levaria a Londres e permitiria que alugasse uma casa por algum tempo, mas ainda não era suficiente. Teria que ganhar a vida quando chegasse lá. Abrir uma loja, talvez. Precisaria de mais fundos, o que levaria mais tempo. Uma lágrima inesperada desceu por seu rosto. Enxugou-a depressa, mas a cesta oscilou, e três rolos de linha caíram. — Droga! — murmurou, apressando-se atrás das linhas. Apanhou o primeiro novelo e adiantou-se para a frente. Tudo o que precisava agora era que a tia decidisse que estava sendo desafiadora e preguiçosa de novo. Porque, por mais desagradáveis que fossem suas atuais circunstâncias, podiam sempre piorar. — ...perdeu quarenta e sete e ganhou trinta libras. — Ela escutou a voz no gabinete de Richard, que parecia de lorde Charles. — Foi realmente uma idéia rápida — respondeu Richard. — Espere um momento. A porta abriu-se diante de Alyse. Ela se endireitou, quase derrubando a cesta. — Richard, você me assustou! Ele se abaixou para pegar os outros dois novelos. — Desculpe — ele falou, endireitando-se e entregando-lhe as linhas. — Você devia levar isso tudo para minha mãe. — Sim, é o que vou fazer. Obrigada. — Com um sorriso forçado, ela se apressou de volta à sala de estar. Sentia-se inquieta ao entregar as linhas para a tia e subir para o seu quarto, a fim de apanhar a cesta de remendos. Trinta libras e idéia rápida. O que significava? Talvez a insistência de Phin sobre algo estar sendo tramado tivesse penetrado em sua mente mais do que imaginava. A única coisa pior do que um problema seria procurar onde não havia nenhum. — Srta. Donnelly. Sobressaltou-se de novo. Alguém ainda a mataria de susto. — Lorde Anthony. Não havia me dado conta de sua presença. Anthony encontrava-se à porta de seu quarto, observando-a. — Charles e eu vamos atirar com Richard. — Ele observou o minúsculo aposento. — Aqui é... aconchegante. — É conveniente, se minha tia precisar de ajuda durante a noite. — Sem dúvida. — Ele entrou no quarto e seguiu em direção à janela, onde Alyse mantinha seus livros. — Vi o marquês de Layton durante a última temporada. 79

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Alyse sentiu o coração pesado. — Viu? — Sim. Aquela esposa americana dele parece um asno quando ri. — Fitou-a de relance. — Você lê Donne? — Leio o que estiver disponível. Eu preciso voltar até minha tia. Sinta-se livre para pegar emprestado qualquer livro. Com licença. — Você passou a infância aqui, nesta propriedade, não? Alyse parou, a caminho da porta. — Sim, passei. — Há quanto tempo conhece lorde Quence e sua família? — Toda a minha vida. Nos últimos anos, no entanto, não temos sido muito próximos. — O coronel Bromley parece um camarada bastante amistoso. Carismático parecia mais apropriado, mas ela concordou. — Sim. — Ele disse por quanto tempo pretende ficar em Quence? — Não sou confidente dele, lorde Anthony. Com licença. Deixá-lo sozinho em seu quarto a fez sentir-se desconfortável, mas ela preferiu adicionar o fato à estranheza do dia. Fazer tia Ernesta esperar seria pior do que qualquer sentimento. Duas vezes, em um punhado de dias, lorde Anthony Ellerby havia procurado por ela. A antiga Alyse teria ficado lisonjeada. Afinal, ele era um rapaz bonito, pouco mais velho do que ela e destinado a herdar uma fortuna. Do jeito que as coisas estavam agora, no entanto, precisava imaginar quais seriam as intenções dele e por que estava tão interessado em Phin. Se o primo e os amigos dele iam sair para atirar àquela altura da tarde, não podia evitar o pensamento de que talvez fossem caçar algo diferente de um coelho ou um esquilo. Algo que falasse francês e que cavalgasse como o demônio. Especialmente agora, que ele devolvera as pérolas de sua mãe, não tinha certeza de querer que o Francês fosse pego. Seria um pouco como se ela também fosse pega. Passou por Saunders do lado de fora da sala de estar. — Chegou um bilhete da srta. Bromley — o mordomo disse antes de descer as escadas. Tia Ernesta ainda o lia quando Alyse entrou na sala e sentou-se de novo. — Onde você esteve? — perguntou a tia, fitando-a. — Lorde Anthony queria um livro emprestado — improvisou. — Você não vai querer ser vista como uma sabichona, Alyse. — Não sou uma sabichona. Apenas gosto de ler quando posso. — Hum. Não discuta comigo, pelo amor de Deus! E os Bromley não se juntarão a nós para o jantar. Lorde Quence está com febre. — Dobrou o bilhete e o pôs de lado. — Não me surpreenderia, caso aquele irmão intratável o levasse à morte. 80

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— Que coisa horrível de se dizer! — Alyse não conseguiu conter-se. — Phin apenas voltou para casa para ajudar a família. — Assim diz você. Já eu, penso que ele voltou na expectativa de herdar o título. Com Quence doente, é apenas questão de tempo. Alyse sentiu-se enojada. A tia falava sobre a perda de William da mesma maneira que falava sobre... pudim. Era doloroso e errado, ainda que não ousasse dizer mais nada. Não por enquanto. Um dia, planejava contar a tia Ernesta precisamente como se sentia. Alyse sabia que Phin não estava atrás de herança. E, por mais difícil que ele fosse, era bom tê-lo de volta. Desde que ele retornara, ela sentia-se... considerada. E esperançosa. Ambas, sensações das quais sentira muita falta. Quase tanta falta quanto do próprio Phin. — Não é uma boa idéia — murmurou Gordon. — Precisamos assaltar mais alguém, ou podem descobrir que somos nós — disse Phineas, olhando para o vale escuro. — Ou podemos não roubar ninguém, e eles vão se esquecer do assunto. — Preciso de algo mais de Smythe. Isso vai tirá-los da trilha. Além do mais, não quero apostar tudo em um só cavalo. — Se posso perguntar, coronel, tirar quem da trilha? — Smythe e quem quer que o esteja ajudando. — A fazer o quê? — Não vou ficar me explicando para você, sargento. Una-se a mim. Ou não. — Eu nunca o abandonaria. Se formos enforcados, só quero saber por quê. — Porque alguém está tentando destruir Quence Park e minha família, e eu pretendo descobrir quem, como e por quê. E então detê-los, usando os meios que forem necessários. — Bem, então encontre um coche que possamos parar, coronel. Ele começou a perceber que era um processo traiçoeiro decidir a quem roubar. Não podia ser alguém incapaz de arcar com uma modesta perda de valores. Afinal, estava ali para resolver um problema, e não queria criar outro para quem quer que fosse. Por fim, avistou as oscilantes lamparinas de um coche, rumando em direção a Roesglen. — Ali — ele disse, apontando e incitando a montaria. Dessa vez, cada um contava com um par de pistolas carregadas. Não pretendia atirar em ninguém, mas aprendera havia muito tempo sobre a eficiência da confiança e da aplicação correta da agressividade. Colocaram-se adiante do coche, escolhendo um ponto estreito e cercado por árvores para a abordagem. Phineas puxou uma pistola, aguardou que o veículo fizesse a curva e atirou para cima. — Pare e entregue-se! — gritou, mudando a entonação e assumindo a inflexão francesa. O condutor puxou as rédeas, rapidamente. 81

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— Não atire! Pelo amor de Deus! Considerando que, da última vez, apenas um dos seis ocupantes falava francês, Phineas optou por valer-se de um inglês imperfeito. — Fora do coche! Devagar! Pela choradeira do lado de dentro, havia ao menos uma mulher presente. Como Roesglen era um viúvo idoso, aquilo era interessante. Poderia ser ela a amante misteriosa sobre quem Beth fofocara? — Ouvrez! Abram! — repetiu. — Agora! Gordon seguiu até a traseira do coche, de onde tinha uma boa visão das duas portas. Ele sabia que não devia matar ninguém, mas nenhum dos dois estava isento de atirar em legítima defesa. Por fim, uma das portas, empurrada pela robusta mão de um cavalheiro, abriu-se. — Estamos desarmados — o marquês disse em voz trêmula. — Fora — ordenou Phineas. — Sortez! O rotundo Stephen Orville, lorde Roesglen, desceu desajeitadamente do coche. Phineas franziu a testa. O marquês parecia bastante... descabelado; tinha a gravata virada para o lado e as calças estavam apenas parcialmente abotoadas. — Tenha piedade! — balbuciou Roesglen, com as mãos erguidas, enquanto olhava para dentro do coche. — Fora! Ou vou puxá-lo para fora — disse Phineas. — Vitte! Um braço bem mais esguio que o de Roesglen esticou-se para fora do coche e segurou a mão do marquês. Por um instante, Phineas pensou que ela estivesse nua. A mulher, no entanto, conseguira envolver-se por inteiro em um manto. Quem quer que ela fosse, era alta, esguia, com uma silhueta similar a de... Sentiu-se transpassado pela raiva. — Mostre o rosto, mademoiselle — comandou, aproximando Ájax um pouco mais. A mulher retirou o capuz, e Phineas relaxou. Lady Marment. Aparentemente, os gostos dela variavam, bastante. Por que chegara a imaginar que pudesse tratar-se de Alyse? Não tinha idéia, exceto por pensar nela o tempo inteiro. Alyse não teria motivos para humilhar-se com um bode como Roesglen. Ainda assim, só a idéia o enojava. Era uma sensação péssima, e não gostaria de experimentá-la outra vez. — Abra os bolsos — ele ordenou, enquanto Gordon desmontava, com uma sacola de tecido. — Você não vai se livrar desta — respondeu o marquês, aparentemente mais ousado agora que seu bolso estava sendo ameaçado. — Mademoiselle, está usando algo de valor? — Veja por si mesmo, monsieur. — Devagar, lady Marment desfez o laço à gola do manto, abrindo-o. Gordon assobiou. Até mesmo Roesglen, que já se deleitara com o corpo desnudo, parecia não ser capaz de desviar o olhar. — Apenas os presentes que Deus lhe deu — Phineas falou com o carregado sotaque francês. — Pode mantê-los, então. — Tem certeza, monsieur! Estou à sua mercê. Phineas afundou ainda mais o 82

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chapéu de três pontas. — Talvez em outra ocasião. Rebecca continuava linda, mas ele não era mais um garoto. Tinha assuntos de que cuidar. Além do mais, não era ela a quem desejava. Fez com que Gordon aliviasse Roesglen de sessenta libras, o relógio de bolso e um colar de rubi que, sem dúvida, destinava-se a lady Marment. — Você vai ser enforcado por isso, francês — grunhiu o marquês. — Já ofereceram cem libras por sua cabeça. — Merci. — Ele gesticulou para Gordon, que montou Galante. — Adieu, monsieur, mademoiselle. Incitando Ájax com os joelhos, Phineas liderou o caminho para o meio das árvores. Após cerca de três quilômetros, viraram em direção a Quence. Parando por um instante, ele baixou a gola do casaco e removeu a máscara dos olhos. — Deus do céu! — exclamou Gordon. — Você viu aquilo? Nada de roupa sobre a moça. Nua como a manhã. — Eu já tinha visto antes. — Phineas sorriu. — Por Cristo, quero ser você! — Ele apanhou a bolsa. — Vai querer algum desses tesouros, coronel? — Não. Faça o que quiser com isso. Apenas... — Tome cuidado — completou o sargento. — Vamos voltar separados. — Certo. Cuide-se. Há gente por aí que o mataria e empalharia por uma centena de libras. — Seja discreto, Gordon. — Sempre. O sargento virou em direção a Lewes, sem dúvida para esconder ou gastar a nova fortuna. Phineas, no entanto, continuava inquieto. Ninguém poderia dizer agora que o Francês tinha um nobre em especial como alvo, mas, além disso, os esforços da noite de nada o haviam ajudado. Partiu em disparada pelos limites de Roesglen, e depois de Donnelly, mantendo-se próximo às árvores, para proteção, e apreciando o ar cortante da noite. Ájax era um animal impressionante, e era uma pena que fosse obrigado a desistir dele dentro de poucos dias. Antes de cruzar a ponte para Quence, ele deteve o garanhão. Na quietude da noite, escutou o sacolejo ritmado de um coche aproximando-se. Por entre os arbustos, avistou-o. O coche de Beaumont outra vez, aparentemente deixando a casa dos Donnelly. — O que você acha, garoto? — murmurou, afagando o pescoço de Ájax. Então recarregou a pistola e subiu a gola do casaco. Sem Gordon ali, o risco era bem maior, mas, com os ocupantes desse veículo, ao menos teria a chance de descobrir algo útil. E, com William ardendo em febre e preocupado com o massacre das ovelhas, tinha a nítida impressão de que o tempo estava se esgotando. — Vamos, Ájax. — Cavalgando até a estrada, Phineas atirou para o alto. — Parem 83

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e entreguem-se! O coche não reduziu a velocidade. Controlando o cavalo com os joelhos, Phin colocou-se no meio da estrada, puxando a segunda pistola e mirando a cabeça do condutor. — Parem e entreguem-se! — repetiu. O condutor puxou as rédeas com tanta força que o cavalo da esquerda quase caiu. A lamparina do lado de dentro apagou-se, deixando o interior do coche às escuras. Maldição! Phineas parou de frente para o veículo. Enfiou a pistola usada no bolso, liberando uma das mãos. — Fora do coche! — gritou. O longo cano de um mosquete surgiu pela janela, apontado em sua direção. Praguejando, ele atirou na porta. Estilhaços se espalharam, e o cano da arma oscilou para o lado. Sem saber quantos ocupantes havia lá dentro, e quantos estavam armados, atingiu com força as costelas de Ájax, fazendo-o disparar em meios às árvores. Ouviu outro tiro de mosquete. Um meio sorriso surgiu em seu rosto enquanto se inclinava sobre o pescoço do animal. Aquilo não se comparava a uma batalha ou a uma luta, mas ele não podia negar que era... divertido. E era mais do que isso. Quem quer que estivesse no coche de Beaumont previra que o Francês retornaria. A probabilidade de aquilo acontecer era mínima... exceto para alguém que tivesse algo a esconder. Para essa pessoa, as ameaças estavam por toda parte. A pergunta era, então, quais passageiros estavam no coche de Beaumont. Por mais que ele quisesse voltar e arrancá-los lá de dentro, encontrava-se em desvantagem numérica. Não. Precisaria ser paciente e, com sorte, os boatos — ou ainda melhor, Alyse — revelariam o que acontecera no dia seguinte. — Mas, se ele não se sente bem, vai preferir não receber visitas — disse Alyse, equilibrando o pote de sopa quente no colo. — Bobagem — protestou tia Ernesta, do banco oposto do coche. — Todos gostam de receber visitas. No mínimo, podemos animar a irmã dele. Não é verdade, Richard? O primo virou-se, deixando de observar a paisagem. — Hum? Sim. Imagino que Beth possa apreciar algo que a distraia da doença de William. Era mais provável que Richard não quisesse que Beth fosse distraída pela doença de William. Alyse manteve o olhar na sopa. Fazia apenas alguns dias que não via Phin, mas não sabia descrever a sensação que comprimia seu peito como algo diferente de ansiedade. E, considerando os boatos que percorriam o local aquela manhã, mal podia esperar até ver a reação dele. Geralmente detestava fofocas, mas Roesglen contara tudo à polícia. Por quanto tempo lady Marment vinha... redesenhando o interior da casa de Roesglen, e por que fazia aquilo no meio da noite? Sabia que Phin e Rebecca haviam sido amantes. Em sua opinião, lady Marment baixara consideravelmente seu padrão. Digby abriu a porta de Quence, enquanto desciam do veículo. — Bom dia, milorde. Sra. Donnelly, srta. Donnelly. 84

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— Digby. — Richard entrou. — Como está a srta. Bromley? — Está bem, milorde. Vai encontrá-la na sala do desjejum. — Certo. Ninguém perguntou onde estaria Phineas, e Alyse não pôde evitar um olhar na direção das escadas antes de entrar na sala. Ele se levantava cedo ou tarde? Não tinha idéia, mas supunha que aquela questão a tornava tão egoísta quanto o resto da família. Ninguém perguntara a respeito de William. Beth pôs de lado um livro e levantou-se ao vê-los. — Richard, Alyse, sra. Donnelly! — exclamou, com o sorriso caloroso de sempre. — Que surpresa adorável! Richard adiantou-se, tomando-lhe a mão e levando-a aos lábios. — Como está seu querido irmão? Trouxemos um caldo que minha cozinheira recomenda especialmente para casos de febre. — Está bem melhor. Obrigada pela preocupação e pelo caldo. — Gesticulou para a criada. — Meg, você pode, por favor, levar o caldo até a cozinha? — Permita-me — interrompeu Alyse antes que a criada respondesse. — Eu conheço o caminho até lá. Como ninguém protestou, ela saiu da sala. Não precisariam dela, até que tia Ernesta quisesse que afofasse uma almofada. Aquilo lhe daria um tempo para respirar e uma chance melhor de encontrar-se com Phin. Espiou para dentro de cada porta entre a sala do desjejum e a cozinha, mas todos os cômodos estavam vazios. — Srta. Donnelly! — exclamou a cozinheira quando entrou no grande cômodo. — Eu a reconheci de imediato. Não a vejo desde que o jovem mestre Phineas e a senhorita costumavam vir roubar biscoitos do forno. — Queimei minha língua várias vezes — disse Alyse, sorrindo. Entregou-lhe o pote de sopa e repetiu as instruções dadas pela cozinheira dos Donnelly. Então, respirou fundo. — Você não saberia, por acaso, se o coronel Bromley está em alguma parte, saberia? — Eu o vi seguir para o estábulo há uns dez minutos, senhorita. — Obrigada. — Ela saiu pela porta dos fundos. O estábulo era ligado à casa apenas por um velho toldo, onde os coches paravam nos dias de chuva. Caminhou por baixo da cobertura, como fizera centenas de vezes muitos anos atrás, até emergir no pátio pedregoso do estábulo. As portas duplas de madeira do estábulo estavam abertas, e ela pôs a cabeça para dentro. — Olá? O som de passos ecoou sob o amplo toldo no pátio atrás de si. — Alyse! Ela se virou e viu Phin aproximar-se. — Aí está você. Disseram-me que estava no estábulo. — Eu estava — ele respondeu, fitando-a. — O que a traz aqui? — Viemos saber sobre William. Como ele está? — Bem melhor. A febre cedeu ontem à noite. Imagino que estará fora da cama à 85

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tarde. — São boas notícias. — São, sim. — Phineas estendeu-lhe a mão. — Venha passear comigo. Alyse já se arriscara a zangar a tia por ter se afastado. Portanto, ficar distante por mais alguns minutos não tornaria as coisas piores. Tomou a mão de Phin. O silêncio e os dedos entrelaçados a deixaram... perturbada. — Você soube que o Francês atacou novamente? — ela indagou de repente. — Duas vezes. — Espero que não você. — Oh, não. Lorde Roesglen e lady Marment, e lorde Charles e lorde Anthony outra vez. — Mas você disse que ele atacou duas vezes. — Lorde Roesglen e lady Marment estavam juntos. De acordo com o depoimento dele à polícia, ela o está ajudando a redecorar a casa. — Muito bem. Nem uma gota de divertimento obsceno, e nem mesmo uma indicação de não acreditar na história que contaram. — Fofocas não me divertem como antigamente. — Diga-me uma coisa, Alyse. Você veio até aqui apenas para contar-me sobre um salteador? — E se não foi por isso? Puxando-a mais para perto, Phineas beijou-a. Alyse fechou os olhos, deliciando-se com a sensação. Sem abandonar seus lábios, ele a fez recuar até que estivesse pressionada contra a parede sob o toldo. Ela apertou os ombros largos. As mãos de Phineas, ansiosas, roçaram-lhe as laterais dos seios e baixaram até os quadris. — Alyse — ele murmurou, desviando os lábios para o pescoço macio. — Alyse dos olhos escuros. Deus do céu! Estivera comprometida antes, mas Phillip jamais a beijara assim. O salteador chegara perto. Porém, por mais excitante que aquilo tivesse sido, ninguém nunca a beijara de um modo que fizesse todo o seu corpo arder. Queria que Phineas a tocasse daquela forma sempre. Deteve-se. Palavras como sempre eram incompatíveis com o Phin Bromley que conhecia. — Pare — ela murmurou, empurrando-o pelos ombros. — Pare, Phin. — Empurrou mais forte, e Phin recuou alguns centímetros. — Por quê? — Porque você não deveria estar me beijando. — Você preferia estar beijando outra pessoa? — ele perguntou em voz baixa e profunda. — Quem você preferia estar beijando, Alyse? Diga-me. Vou buscá-lo para você. Ciúmes? A idéia a emocionou, sobrepondo-se ao pensamento mortificante sobre o que aconteceria, caso alguém descobrisse que o Francês a beijara. — Ninguém — ela respondeu com sinceridade. — Apenas não quero ser vista. — Não seremos vistos. Além disso, eu gosto de beijá-la. — Ele se aproximou de 86

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novo. — Você tem sabor de... eu não sei, mas é irresistível. — Mordiscou-lhe o lábio inferior. — Você é irresistível, Alyse. A sensação deixou seus joelhos fracos. — Irresistível ou conveniente? — ela se obrigou a perguntar. — Definitivamente, não conveniente. E eu não recomendaria que me provocasse. — Eu? Provocar você? Eu não... — Você veio até aqui para me encontrar. E, quando a vejo, eu quero... — Com uma careta, afastou-se. — Vamos voltar para dentro antes que comecemos a discutir de novo. Ou a nos beijar. Phineas também não era conveniente. Deus sabia que sua vida seria mais simples sem o retorno dele. Mesmo com isso em mente, no entanto, não conseguia querer que ele partisse outra vez. Phin era como... fogo: quente, brilhante, fascinante e, sem as devidas precauções, extremamente destrutivo. Desta vez, ele lhe ofereceu o braço, mas Alyse fingiu hão notar. Tocá-lo ali não seria sensato, considerando que seu coração ainda batia com tanta força e rapidez que ele provavelmente poderia ouvir. Ela cruzou as mãos às costas e começou a caminhar em direção à entrada da casa. Um instante mais tarde, Phineas pôs-se ao seu lado. — Então Ellerby e Smythe foram assaltados pela segunda noite seguida? Deve ter sido embaraçoso. — O Francês não foi bem-sucedido. — Ela ficou grata pela mudança de assunto. — Aparentemente, eles estavam esperando problemas. Lorde Charles atirou. Ele jura que acertou, mas eu tenho minhas dúvidas. — Tem? E por quê? — O Francês parece saber o que faz. Eu diria que ele também esperava problemas, parando o mesmo coche duas vezes. — Você não gosta desse francês, gosta? — Ele a fitou. Alyse enrubesceu. — É claro que não! Ele roubou minhas pérolas. É só que ele parecia... fascinante. — Hum. — O quê? — Acabo de dar-lhe o que considero um beijo bastante eficiente, e você se consome em pensamentos sobre um salteador. Alyse bufou, começando a perguntar-se se Phineas era capaz de ler mentes. — Não estou me consumindo em nada. Disse apenas que o comportamento dele foi fascinante. — E o beijo de Phineas fora bem mais do que bastante eficiente. Ela nem mesmo tinha certeza de que estava andando em linha reta. Chegaram à entrada dos criados, e Phineas abriu-lhe a porta. Mesmo sem olhar, Alyse tinha consciência da proximidade de Phin. Perturbador, sem dúvida. E excitante. — Aí está você. — Tia Ernesta encarou-a, quando ela entrou na sala. — Foi culpa minha — disse Phin. — Pedi a Alyse que me ajudasse a convencer a cozinheira a preparar uma torta de canela. Sempre tive um fraco por tortas de canela. Ele mentia com tanta facilidade e com um charme tão convincente! Sim, aquilo provavelmente a salvara de um sermão, mas, se ele mentia tão bem, como poderia saber se era sincero quando dizia achá-la irresistível ou atraente? 87

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— Beth estava me contanto que vocês tiveram um problema com cães anteontem — disse Richard. — Sim, tivemos — Phin respondeu, sentando-se. — Uma dúzia de cães invadiu as pastagens e matou quarenta e sete ovelhas. — Isso é horrível! — Alyse exclamou. — Realmente — concordou Richard. — Devo enviar alguns homens, a fim de ajudá-lo a livrar-se das carcaças? — Já cuidei disso — devolveu Phineas. — Obrigado pela oferta. Quarenta e sete ovelhas. Com tudo o mais que se abatia sobre Quence Park, a perda de tantos animais poderia ser devastadora. Não surpreendia que William tivesse adoecido. — O que você fez com os bichos? — perguntou tia Ernesta. — Com os cães? Abatemos dois deles. Tentamos rastrear o resto da matilha, sem sucesso. — Céus! Richard, e o nosso rebanho? — Ernesta perguntou. — Vou pôr alguns homens a mais para que o vigiem. — Richard tomou as mãos de Beth. — Sinto muito, minha querida. Se precisar de algo, por favor, me avise. — Como você só soube disso agora? — Phin perguntou. — O que você quer dizer? — Richard franziu a testa. — Seria irresponsável de nossa parte manter a notícia sobre uma matilha de cães selvagens apenas para nós mesmos, não acha? — Eu não colocaria desta forma, mas... — Informei as autoridades pessoalmente anteontem — prosseguiu Phin. — As notícias sobre o maldito francês parecem ter circulado, mas você ainda não tinha escutado nada a respeito das nossas perdas até agora? Richard corou. Observando-o, Alyse lembrou-se da inquietude que sentira ao ouvir a conversa entre Richard e Charles sobre... quarenta e sete algo. Quarenta e sete ovelhas, percebeu. Deus do céu! Ele realmente sabia. Por que fingira ignorar o fato e por que informara a mãe e a prima sobre o salteador, mas não mencionara nada a respeito dos cães e das ovelhas? Alyse virou-se para Phineas. Ele a fitava, com a expressão indecifrável. Um instante depois, ele riu, voltando a olhar para Richard. — Obviamente, os fofoqueiros estão ocupados demais com o maldito sapo francês, se não se dignam a comentar mais nada. É lamentável — comentou, sorrindo. — Sem dúvida. — Richard também sorriu. — Detesto falar sobre algo tão frívolo em um momento assim, mas, caso William esteja disposto, espero que compareçam a um jantar em casa depois de amanhã. Se quiserem dormir lá, para que William possa descansar antes e depois, creio que uma distração seria boa para todos. — Eu não sei — disse Beth. — William é nossa primeira preocupação, e não estou... — Tem certeza de que não se importaria que passássemos a noite lá? — Phineas interrompeu-a. — Porque, pelo que ouvi dizer, sua nova cozinheira é a melhor de Lewes. Eu detestaria perder essa oportunidade. 88

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Alyse percebeu a testa franzida de Beth, rapidamente disfarçada. Ela concordava com a preocupação da garota. A saúde do visconde era delicada desde o acidente e, com essa febre, transportá-lo pela estrada para que o irmão comesse faisão parecia o auge do egoísmo. Mas, é claro, conhecendo o novo Phin, sabia que era bem provável que ele tivesse motivos para querer estar na casa dos Donnelly. Inspirou fundo. Poderia ser ela o motivo? Se fosse, precisaria pensar um pouco. Ser descoberta flertando com Phineas poderia arruinar seus planos. Valeria a pena? — ...espero que o matem — dizia Beth. — Fico preocupada que Phin vista seu uniforme e vá atrás do homem simplesmente porque ele é francês. — Ele precisa ser morto por ser um salteador — opinou Richard. — Ser um sapo francês apenas o torna mais afrontoso. Alyse olhou para Phin, mas, felizmente, ele não parecia inclinado a anunciar que ela achava o Francês... fascinante. — Um centavo por seus pensamentos — disse Phin, sentando-se no sofá ao seu lado. — O que você quer de mim? — ela murmurou. — Ah. Você estava pensando em mim. Eu deveria pagar dois centavos então. Um pela informação e outro pela lisonja. — Não é lisonja, uma vez que você me preocupa. O que quer? — De você? Ainda não sei. — Isso não me confortou. — Gosto de ficar perto de você. — Phineas ofereceu-lhe uma bandeja com biscoitos, roçando seus dedos e quase a fazendo derrubá-los. — Eu gosto de tocar você, Alyse. — Você vai me arruinar mais uma vez, se não parar com isso. — Você acha que eu sou um salafrário? — Não que eu queira, mas, da última vez que o vi, você era um salafrário. Eu deveria ignorar isso, apenas porque hoje você alega ser... benevolente? — Eu nunca disse isso. — Phin. Ele se manteve imóvel por um instante. — Eu sei que você disse que não pode me ajudar, mas me responda isso: Richard já sabia sobre o ataque dos cães, não sabia? — Não é meu primo quem está atacando Quence. Olhe para ele. Está cortejando sua irmã. — Não foi o que perguntei. Ele sabia, não sabia? Alyse fez menção de levantar-se, mas Phin pôs a mão em seu braço. — Solte-me — ela resmungou. — Muito bem. Não vou fazê-la escolher, por enquanto. Porém, em algum momento, você vai precisar escolher um lado. — Convertendo o toque em seu braço em outra carícia, ele se levantou. — Se me dão licença, tenho certos assuntos a tratar. 89

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Acima de tudo, ele precisava de tempo para recobrar o fôlego e a presença de espírito. Antes que alcançasse a porta, Donnelly levantou-se. — Pode perguntar ao seu irmão se ele vai me receber? Tenho certos assuntos a tratar com ele. Phin manteve a expressão calma e agradável. Então lorde, Donnelly ainda tentava tornar-se indispensável para Quence Park... — Posso, sim. — Se era o que William desejava, que assim fosse. Por enquanto. Até que tivesse provas. Subindo as escadas, bateu na porta do quarto principal. — Entre — disse William. Ao empurrar a porta, encontrou o irmão sentado na cadeira de rodas, diante da janela aberta, com uma manta sobre as pernas e um livro de contabilidade no colo. — Você está fora da cama. — Seu poder de observação continua impressionante. — E o seu senso de humor continua surpreendente — Phineas devolveu. — Como está se sentindo? — Eu apenas dormi, pelo amor de Deus! — Certo. Donnelly pede uma audiência, se estiver disposto. — Vou vê-lo. — Vou avisá-lo. — Ele se virou para sair. — Phin. — O que é? — Detendo-se, encarou o irmão de novo. — Você agiu bem no caso das ovelhas. Obrigado mais uma vez. — Você perdeu quase cinqüenta cabeças. Não me agradeça por ajeitar a situação depois da carnificina. — Você lidou bem com isso. Com cada fibra de seu ser, Phineas desejava dizer a William que não confiasse em Richard, pois suspeitava que o visconde tinha relação com ao menos parte do infortúnio que se abatera sobre Quence. — Obrigado, então. — E Phin? — Sim? — Esta janela aqui tem uma bela vista. Dá para o estábulo, caso queira que eu seja mais claro. Maldição! Inferno! — Eu... — Já lhe avisei para não piorar as coisas para Alyse. Ela já pagou o suficiente por um único momento de tolice. — Não estou tentando piorar as coisas. Eu... — Aquela não parecia a hora certa para ser honesto. O que poderia dizer, afinal? Que correra até o estábulo a fim de impedir que Alyse visse Ajax, e que ela preenchia um vazio que o acompanhava havia mais de dez anos? 90

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— Deixe-a em paz, Phin. — Não vou pedir que confie em mim, mas direi que não estou brincando. — Virouse de novo. — Vou dizer para Donnelly subir. Quando retornou ao andar de baixo, inclinou-se para dentro da sala e informou o visconde que William o receberia. As três mulheres ficaram ali, conversando. Por um momento, pensou em voltar a unir-se a elas, mas precisava fazer planos para os próximos dias, a fim de garantir que nenhum outro infortúnio se abatesse sobre a propriedade. Portanto, saiu em busca de Gordon. O suposto criado estava no estábulo, dando a Galante uma maçã. — Você deveria estar passando as minhas gravatas e lustrando as minhas botas — ele disse, escolhendo uma maçã. — Já passei suas gravatas, e você está usando suas malditas botas, coronel. Phineas mordeu a maçã. Depois, pegou a faca na bota, partiu o restante ao meio e ofereceu um pedaço a Açafrão e outro a Ajax. — Donnelly alegou desconhecer o ataque dos cães. O que você faria, caso tivesse vários rebanhos de valor, e subitamente soubesse que uma matilha de cães havia acabado de matar meia centena de ovelhas do seu vizinho? — Eu iria para casa, apanharia minhas armas e meus homens, e sairia para caçar — respondeu Gordon. — Sem dúvida. — Eu também. — Então acha que os cães são dele? — Dele ou de Smythe, seria meu palpite. O sargento aproximou-se. — Eu escutei alguns rumores hoje de manhã. — Que rumores? — Que o Francês foi baleado ontem à noite, ao parar um segundo coche. — Rumores são coisas ruins. Você não pode acreditar neles. — Não comece a gostar demais disso, coronel. Sua família não ficaria bem, caso alguém descubra que é um salteador. — Sei disso. — Phineas afagou Ajax e saiu da baia. — O problema é que eles já não estão bem, nas atuais circunstâncias. — Mais uma ou duas febres altas para William, ou outro coche tombado, e talvez ele nunca mais tivesse a chance de consertar as coisas. — E agora? — Vamos até Uckfield ver se conseguimos comprar cerca de cinquenta ovelhas. Vamos também encomendar madeira e contratar trabalhadores para consertar as cabanas incendiadas. E depois arranjaremos alguns homens para que vigiem as coisas por aqui. A noite, sairemos para tentar descobrir quem possui uma matilha de cães. Aquilo provavelmente acabaria com seus recursos financeiros imediatos, mas também colocaria Quence Park de volta a um ponto próximo de onde estivera antes que a desintegração começasse. E tudo sem qualquer custo adicional para William. No cenário geral, podia ser pouco, mas era um começo. — Isso resolve o dia de hoje — disse Gordon. — E amanhã? — Amanhã depende do que vamos descobrir esta noite. 91

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— Aonde você está indo? Disfarçando o sobressalto, Phineas virou-se para a escada. — Talvez seja tarde para você, princesa — ele falou, forçando um sorriso. — Mas, para mim, a noite mal começou. — Se não quer dormir; venha jogar cartas comigo. Ou bilhar. Phin meneou a cabeça. Graças a Deus, Beth não vira o Francês, ou poderia ter reconhecido o casaco do Exército que carregava. — Não é o tipo de diversão que estou procurando, Beth. — Mas você... Nós... — Não espere acordada. — Phineas abriu a porta e saiu de casa. Assim que se afastou, começou a praguejar. E se estivesse errado? E se tivesse inventado algum tipo de conspiração apenas para evitar admitir que a família não o queria por perto? — Sele Açafrão — ordenou, entrando no estábulo. Gordon, já montado sobre Galante e segurando as rédeas de Ajax, olhou-o. — Como? — Beth pode estar olhando. Warner foi pegar o cavalo amarelo na baia. — Então o que... — Espere cinco minutos depois que eu partir e me encontre na clareira, a sudoeste da ponte. Aquela com o carvalho partido pelo raio. Sabe onde fica? — Sei. Não faça nenhuma besteira sem mim. — Vou esperar para fazer uma besteira quando se unir a mim. — Muito bem. Um instante mais tarde, Warner trouxe Açafrão. — Mestre Phineas? — falou o cavalariço. — O sr. Gordon disse que essa história de salteador é para ajudar lorde Quence e a srta. Beth. É isso mesmo? — Sim, essa é a minha intenção. — Então tome cuidado, senhor. E pode confiar em mim e no jovem Tom aqui. — Obrigado, Warner. — Comum movimento dos calcanhares, conduziu Açafrão para fora do estábulo. Contando com o fato de Beth ou William estarem observando, ele cavalgou na direção a Lewes até sair do alcance da vista. Só então mudou o percurso, rumando para o rio Ouse. Desmontou ao lado da velha árvore partida e levou Açafrão até um local em que havia um bom pasto. Assim que deixou o cavalo amarelo onde ninguém o encontraria por acidente, vestiu o traje de salteador. Ouviu então um assobio baixo. Assobiando de volta, saiu dos arbustos e juntou-se a Gordon, na clareira. — Vamos começar por Beaumont — disse, montando Ajax. — Podemos dar uma olhada em Donnelly na volta. — Certo. Alguma idéia do que fazer, se encontrarmos cerca de cães de caça com uma preferência por ovelhas? — Atirar neles é uma idéia. 92

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— Não acho que o Francês se importaria com cães. Não, realmente. A não ser que o estivessem perseguindo. Aquilo ligaria o salteador a Quence, algo que não podia acontecer. — Bem, caso nós os encontremos hoje, vou planejar como descobri-los de novo amanhã, como Phin Bromley. E vou levar a polícia comigo. Assim que cruzaram a ponte, saíram da estrada, atravessando pastagens, pântanos e as velhas árvores pertencentes aos vizinhos de Quence. Sem inundação ali. Sem incêndios, sem ovelhas massacradas ou ração envenenada. Apenas os rebanhos pacíficos e um ocasional cão pastor. Aquilo, por si só, deveria ser suficiente para convencer William de que Quence Park estava sendo atacado. O irmão, no entanto, parecia acreditar que os vizinhos eram tão honestos quanto ele mesmo, ou que deveria esperar certo quinhão de azar. Afinal, a má sorte o encontrara dez anos atrás, e não o abandonara desde então. — O que acha, coronel? — perguntou Gordon. — Começamos pelo estábulo? — Vamos dar uma olhada, embora eu duvide de que alguém mantivesse cães que matam ovelhas perto dos criados. Afinal, East Sussex deve sua prosperidade às ovelhas. — Certo. E é difícil manter aqueles cães em segredo. — Exatamente. — Ele desmontou. — Mas eu sou um sujeito cuidadoso. Portanto, vamos conferir os estábulos e todos os edifícios, aqui e em Donnelly, e onde quer que eu consiga imaginar que possamos encontrá-los. — Esta pode ser uma noite bastante longa. Phineas ignorou o comentário. — Vamos. E lembre-se de ser francês. As luzes brilhavam em alguns dos cômodos no andar de cima de Beaumont e, ainda que os estábulos estivessem em silêncio, ele não apostaria que todos os criados já estavam dormindo. Gesticulando para que Gordon ficasse do lado de fora e vigiasse, abriu uma das portas e esgueirou-se para dentro. Havia cerca de dezesseis cavalos, mas nenhum cachorro. E nem ao menos um sinal de que cães tivessem sido abrigados ali. Beaumont não tinha um canil. Saiu de lá. — Nada. Vamos tentar nos outros edifícios. — Certo. Dividir e conquistar? — Será mais rápido assim. Vou pelo lado oeste. Revistaram o galpão do jardineiro, a pequena estufa, o celeiro de grãos, as cabanas em volta e o pequeno chalé do administrador. A frustração crescente ao não encontrarem nada enrijecia os músculos de Phineas. Uma hora depois, notou uma silhueta sobre o dorso de um cavalo afastando-se da casa, pelo caminho que margeava o pequeno lago e seguia para a colina. Ainda que as famílias de Beaumont e Quence jamais tivessem sido amigas, ele se lembrou de algumas histórias a respeito das bebedeiras do atual lorde, quando jovem, na cabana de caça da família. — Maldição! — ele murmurou, indo até Ájax. Uma cabana de caça podia significar um canil. Assobiou para Gordon, mas, sem querer perder sua presa, montou e seguiu o cavaleiro. Passaram pelas árvores, dirigindo-se para a colina. Phineas manteve a maior distância possível, tentando escutar ao mesmo tempo o cavaleiro à sua frente e algum sinal de que o sargento o seguia. 93

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Uma luz acendeu-se à frente, e ele se deteve. No mesmo instante, ouviu o som abafado de cães latindo. Grandes cães. Avançando lentamente, aproximou-se da luz, em meio às árvores. A pequena cabana era comprida, baixa e escura. A luz emanada de uma lamparina oscilava na parte traseira de uma carroça, parada ao lado de um grande canil. Diversos homens transferiam os cães para a parte de trás do veículo. Diabos! Pela manhã, os animais não estariam mais ali. Phineas pegou a pistola. Ninguém poderia remover a única prova que tinha. De repente, algo atingiu seu ombro esquerdo, vindo de trás. Então, ele ouviu o tiro. Tentando evitar cair da sela, Phineas atirou na direção de onde viera a bala. Soltou as rédeas, sendo percorrido por uma dor latejante. Guardando a pistola usada no bolso, agarrou as rédeas de novo e incitou Ajax. Em um segundo, subiam a colina. Um mosquete disparou atrás dele. E então outro. — Vamos lá, Francês! — Ele ouviu a voz de Smythe, trêmula com a mal contida excitação, vinda da direção das árvores. — Roube-nos agora! Vitte! Vitte! — Vozes gargalhavam, também excitadas com a perspectiva de sangue. — Encontrem-no! Esperando que Gordon tivesse ouvido a comoção e se afastado, Phineas galopou para oeste. Baleado e na mais completa escuridão, não teria conseguido manter-se sobre a sela, se não tivesse passado a maior parte dos últimos dez anos em cima de um cavalo. E duvidava de que Smythe e seu bando se equiparassem a ele ou a Ájax. Imaginando que eles pudessem soltar os cães atrás dele, cavalgou em meio aos rebanhos de Beaumont, dispersando-os. Uma vez que um cão matasse ovelhas, sempre as perseguiria. Dirigindo-se ao lago, ele notou que era perseguido por meia dúzia de homens e cavalos. Sem cães. O grupo encurtava a distância, e Phineas tomou as rédeas entre os dentes para apanhar a pistola no bolso esquerdo. De repente, o garanhão virou para o lado. Uma silhueta emergiu do breu diante dele. — Não se mova — disse, erguendo a arma. — Coronel! — Era a voz de Gordon. Phineas não perdeu tempo perguntando o que diabos o sargento ainda estava fazendo ali. — Venha — ele grunhiu, enfiando a pistola no bolso e agarrando as rédeas de novo. — Você foi atingido — Gordon constatou, com a voz tensa. — Foi um arranhão. Outra pistola disparou, e uma bala passou perto de seu ouvido. Ou a mira deles estava melhorando, ou sua sorte o estava abandonando. Cada pisada de Ájax na relva refletia-se em seu ombro, e um calor pegajoso escorria por suas costas. O sargento olhou para trás. — São seis — ele falou. — Como eles saberiam que viríamos? — Eles não sabiam. Os cães estão na cabana. Smythe os está tirando de lá. — Então... — Pessoas ruins esperam sempre o pior. 94

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Eles atravessaram um riacho. Sentindo uma dor lancinante, Phineas oscilou e agarrou-se à sela para manter o equilíbrio. — Coronel. — Gordon estendeu um braço para estabilizá-lo. Aquilo não era bom. Haviam entrado nas terras de Donnelly, e estavam a cerca de oitocentos metros da casa. Em qualquer outra noite, Phineas e Ájax poderiam correr em círculos ao redor de seus perseguidores. Agora, no entanto, estava ficando sem tempo. — Gordon, pegue Ájax e leve esses tolos para longe de Quence. Encontro você em casa. — E como vai ser isso? — Estamos a cerca de um quilômetro e meio de Açafrão. Posso seguir caminhando, mas não creio que consiga cavalgar. Pelo menos, não nesse ritmo. — Então ficamos e lutamos. Phineas meneou a cabeça, atirando as rédeas para o sargento. — Quero provas antes de começar a matar as pessoas. Espere por mim no meu quarto. Livrou os pés dos estribos e pulou. Caiu sobre os joelhos e rolou. Com dificuldade, levantou-se e correu para o lado oposto ao qual Gordon seguia. Agachando contra o galho caído de um olmo, manteve-se imóvel enquanto os cavaleiros passavam, perto o suficiente para avistá-lo, caso fosse dia. Permaneceu ali até que a perseguição saísse do alcance de seus ouvidos. Então ergueu-se, cambaleando. Se não conseguisse conter o maldito sangramento, não seria capaz de chegar até a droga do cavalo amarelo. Ele olhou por sobre o ombro. Ao topo do aclive, distinguiu a silhueta escura da casa dos Donnelly. Não era exatamente território amigo, mas bem mais próximo do que o cavalo ou sua casa. Lorde Charles Smythe era um inimigo. Se conseguiria ou não provar era outro assunto, mas ele sabia que era verdade. Suspeitava de um envolvimento mais amplo; contudo, ainda não reunira fatos suficientes. Caso se aproximasse de Donnelly, que fora tão útil ao irmão, será que o visconde o ajudaria ou terminaria o que Smythe começara? No entanto, havia ainda outro caminho, algo que não envolveria um confronto direto antes que ele estivesse preparado. Havia uma pessoa naquela casa em quem podia confiar. Assim esperava. Alyse despertou de repente. Virou-se de lado, puxando as cobertas até o queixo. Então ouviu a maçaneta da porta girar lentamente. Com o coração acelerado, sentou-se na cama. Ele. Oh, era demais! Por mais charmoso e misterioso que fosse o Francês, aquilo não poderia prosseguir. Ela e Phin podiam não ter alcançado nenhum tipo de entendimento, mas ele era o homem que desejava em sua vida. Devagar, a porta se abriu. Tremendo, Alyse levantou-se. Pretendia dizer-lhe que fosse embora e que ninguém precisaria saber que ele estivera na casa. Observou o homem alto com o chapéu de três pontas e o colarinho do casaco erguido esgueirar-se para dentro do quarto... e cair de joelhos. — O que... O que você está fazendo? — ela sussurrou. O homem ergueu a cabeça, com os olhos sombreados brilhando. — Baleado — ele murmurou. 95

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— Você foi baleado? Quando ele assentiu, todos os protestos que ela preparara sumiram. Ninguém poderia apanhá-lo. Não assim. Passando por ele, Alyse trancou a porta. Voltando para o lado da cama, acendeu uma lamparina. O Francês permanecia no lugar, apoiado nos joelhos e em uma das mãos, com o outro braço comprimido contra o peito. Alyse enxugou as mãos nas coxas, notando que vestia apenas uma fina camisola. Depressa, pegou o penhoar e vestiu-o. — Deixe-me ver onde está ferido. — Pôs a lamparina no chão de madeira e ajoelhando-se ao lado dele. — Primeiro, você deve saber de algo — ele murmurou, sem qualquer sotaque francês na voz familiar. Phin? Todo o sangue deixou o rosto de Alyse. — Você? Phineas ergueu a cabeça. Mesmo com o chapéu e a máscara, sob a luz da lamparina, Alyse o reconheceu. Esticou as mãos trêmulas e retirou-lhe o disfarce. A luz iluminou os cabelos castanho-escuros, úmidos de suor e sujos com poeira e pedaços de grama e, sem dúvida, pertencentes a Phin Bromley. — Desculpe — disse Phin. — Eu não... Alyse deu-lhe um tapa. Com força. — Saia daqui! Seu mentiroso! Seu ladrão! Como pôde? Você me roubou! Você me beijou! Ergueu a mão para bater nele de novo, mas Phin segurou seu pulso. — Deixe-me expli... — Não! — Libertando-se da mão dele, Alyse levantou-se. — Não vou mais ouvir você. Saia daqui! — Ela o empurrou pelos ombros na direção da porta. Phin esquivou-se dela e, ofegando, caiu de costas. Alyse não sabia dizer quanto daquilo era dor real e quanto era uma tentativa de conquistar sua compaixão. Não se importava. Ele apontara uma arma, se não para ela, para seu primo. Ele a roubara, e então ouvira, com aparente compaixão e solidariedade, quando ela lhe contara tudo mais tarde. Ele a enganara para ganhar um beijo. Oh, e ela praticamente admitira para ele que o misterioso francês a intrigava! Phin havia brincado com ela. Recuando o pé, ela o chutou. — Mentiroso! — repetiu. Ia chutá-lo de novo, mas, com uma agilidade impressionante, Phin segurou seu tornozelo no meio do golpe. Então, virando-se de bruços, derrubou-a no chão ao lado dele. — Pare — ele grunhiu. — Isso dói. — Que bom. Por que eu deveria parar? — Porque eu fui baleado, maldição! — Puxou-a para mais perto, fitando seu rosto a centímetros de distância. — Preciso que me ajude a conter o sangramento. Alyse afastou a preocupação sobre Phin estar gravemente ferido. — E se eu me recusar? — Então você vai precisar explicar minha presença em seu quarto no meio da 96

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noite. E... — Arrastou-a para baixo de seu corpo. — E eu vou dizer para quem quiser escutar que você sabia de tudo o tempo todo, — Você não faria isso. — Só se não me deixar escolha. Vai me ajudar? — Suponho que eu não tenha escolha. — Não, não tem. Ajude-me a sentar e desabotoe meu casaco. Alyse encarou-o antes de se afastar e sentar-se. — Certo. Mas nós não somos mais amigos. Ela segurou o braço de Phin que não estava ferido e puxou-o. Com um grunhido, ele conseguiu sentar-se. Fitando-o mais de perto, Alyse notou que ele estava pálido, exceto pela marca vermelha no rosto, no lugar que o estapeara. Resmungando, ela começou a desabotoar o pesado casaco. Havia algo... inquietante no ato de despi-lo, mesmo que fosse apenas uma peça, ou que estivesse furiosa. — Onde foi o tiro? — perguntou, tendo que se aproximar demais para alcançar os últimos botões. — Atrás do ombro esquerdo. — Ele apoiou a testa em seu pescoço, enquanto Alyse tirava seu casaco. — Por que veio até aqui? — Estava sendo perseguido, e não achei que conseguiria chegar em Quence... E por sua causa. — Oh, por favor. — Ajoelhando-se, Alyse olhou por sobre o ombro dele, para verlhe as costas. O sangue escuro manchava o paletó, espalhando-se por um buraco na extremidade da escapula. — Oh, meu Deus! — Você precisa conter a hemorragia antes que eu desmaie. Remova o paletó. Com cuidado. Deslizando as mãos pelas clavículas, ela liberou primeiro o braço direito, e depois o esquerdo. Ao olhar para baixo, para o rosto de Phin, desconcertou-se ao perceber que seus seios estavam à altura dos olhos dele, e que Phin os observava. — Quem atirou em você, afinal? — Não posso contar, se não somos mais amigos. Meu colete. Deus do céu! Aquilo significava aproximar-se dele ainda mais, equilibrando-se entre os joelhos dobrados, enquanto ele se inclinava para trás, apoiando-se no braço bom, para dar-lhe acesso às roupas. — Seria merecido, caso sangrasse até a morte. — Sem dúvida. Se isso acontecer, pode me empurrar pela janela, para que ninguém saiba que estive aqui. — Você cairia sobre as rosas. Phineas emitiu um som quase divertido. — Como estarei morto, não vou me importar. Alyse sentia-se corada e envergonhada e confusa, como se sua mente não estivesse funcionando direito. — Eu estava preocupada com as rosas. 97

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— Ah... Assim que ela retirou o colete, inclinou-se para trás. — Suponho que queira que eu tire a camisa e a gravata agora. — Posso cuidar disso, se puder arranjar água e tecidos limpos. Por um breve instante, ela ficou decepcionada. Era como desembrulhar um presente e deixá-lo na caixa. Não que tivesse a intenção de permitir que ele soubesse disso. Ela foi até a pequena cômoda e pegou a bacia e o jarro de água. — Se você pode cuidar da camisa, por que me fez tirar o resto? — Não poderia lidar com os botões com apenas uma das mãos. — O que você quer que eu faça? — Em primeiro lugar, ainda está sangrando? — Está. — Eu tive um motivo para fazer isso tudo, Alyse. E não foi magoar você. Ela se esforçou para ignorar as palavras suaves. — E em segundo lugar? — Limpe o ferimento, para que você possa ver o que está fazendo, e passe os dedos em volta do buraco. — O quê? — Preciso saber se a bala está perto o suficiente da superfície para que você possa retirá-la. Mantenha-se firme, Alyse. Claramente, ele a procurara por pura necessidade, pois sabia que ela ficaria furiosa. Inspirando fundo, ela mefgulhou a ponta do tecido na bacia e começou a passá-lo gentilmente sobre a pele de Phin. — Acho que o sangramento está diminuindo — observou. — Bom. Se a bala tivesse atingido alguma artéria, eu já estaria morto. Acho que o estrago não foi grande. Quando ela terminou de limpar a ferida, pôs o tecido de lado. — Vou tentar encontrar a bala agora — anunciou. Phineas assentiu, tomando fôlego. Com cuidado, Alyse pressionou dois dedos ao lado do ferimento. — Isso dói? — Sim. Continue. — Como vou saber se encontrei? — Vai sentir um caroço abaixo da pele. É claro que sim. Tola. Prosseguiu até pressionar o local logo abaixo da bala. — Acho que encontrei — falou com nervosismo. — Bom — ele disse por entre os dentes. — Você precisa se apressar agora, para que possa enfaixar. Você não teria algum uísque ou conhaque por aqui, teria? — Claro, eu mantenho a bebida no bolso. — Vamos precisar, para limpar a faca e o ferimento. 98

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— Eu também não tenho uma faca. Phineas retirou uma lâmina de dentro da bota direita. — Eu tenho. Lutando contra o pânico, Alyse levantou-se. — Há conhaque na sala de jogos. Volto em um instante. — Lembre-se de que, se você for pega, estamos ambos perdidos. Com raiva, ela assentiu. — Sei disso. Enquanto saía do quarto e esgueirava-se pelas escadas, até o primeiro andar, Alyse pensou que Phin provavelmente a deixara com raiva de propósito. De outra forma, ficaria horrorizada, tanto ao pensar no que aconteceria, caso Richard encontrasse Phin em seu quarto, quanto no que precisaria fazer, caso isso não ocorresse. Encontrando o conhaque, apressou-se a subir. De volta ao quarto, segurou a faca sobre a bacia e entornou a bebida no objeto. Da mesma forma, entornou o líquido nas costas de Phineas, prendendo o fôlego enquanto ele gemia de dor. Ajoelhando-se atrás dele, apoiou a mão esquerda na parte superior de seu braço. — Está pronto? — ela perguntou. — Estou. Vá em frente. *** Phineas expirou ao ouvir o som da bala tilintando na bacia de porcelana. Alyse pressionou um tecido ensopado de conhaque em seu ombro, fazendo-o retorcer-se e praguejar. — Você não emitiu um ruído quando enfiei uma faca em suas costas — ela falou —, mas grita quando o toco com algodão? — Algodão e álcool — ele corrigiu, passando a mão trêmula na testa. — Você não me avisou. E isso não foi um grito. — Apóie-se na cama, e eu vou pegar algumas bandagens. Então Alyse ainda estava com raiva dele. Phineas mal podia culpá-la por isso. Deslizando para trás, deixou que ela o conduzisse, para que o tecido permanecesse pressionado entre o ombro e a armação de carvalho. Observou Alyse encontrar um lençol, dentro do que parecia ser uma pilha de roupas a serem remendadas, e rasgá-lo em tiras. — Explique uma coisa para mim, Phineas — ela disse, ajoeIhando-se diante dele. — Você está roubando as pessoas. O que quer que pense estar fazendo por sua família, você é o vilão nessa peça. — Ela dobrou uma das bandagens em um quadrado e pôs em sua mão a ponta de uma segunda tira de tecido. — Segure isto. — Não sou o... Ai. Alyse puxou-o para a frente, substituindo o tecido pela bandagem dobrada, e puxou a outra ponta da tira em volta do ombro. — Não comece a chorar agora — disse, apanhando a ponta que ele segurara e amarrando-a ao redor do peito. 99

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Alyse cheirava bem; cheirava a sabão e conhaque. Agora que a bala saíra de seu corpo e que podia mover-se sem tanta dor, ignorar-lhe a presença quase nua tornava-se cada vez mais difícil. Quando ela se inclinou para envolver outra tira de tecido em suas costas, ele não pôde resistir a roçar os lábios no ouvido dela. — Pare com isso. — Parar com o quê? — Envolveu nos dedos uma mecha dos cabelos castanhoclaros. — Pare de me tocar. — Alyse afastou-se para olhá-lo. — Estou com raiva de você. — Sim, mas eu sou grato a você. Com raiva ou não, você está se arriscando bastante para me ajudar. — Ninguém vai saber. E, se você tentar contar a alguém, vou dizer que chorou e ficou chupando o dedo. Ele riu. — Seja minha amiga de novo, e eu lhe conto o que sei. — Quando éramos amigos, você me roubou e fingiu ser francês. Não vejo vantagem em uma aliança como essa. — Olhe mais de perto. — Tomou o queixo dela entre os dedos, puxou-a para perto e beijou-a com gentileza. — Por pior que tudo tenha terminado, fico feliz por você não ter se casado com Layton. — Beijando-a de novo, notou que a boca de Alyse se suavizava, moldando-se à sua. — Dado o caráter do sujeito, ele jamais a mereceu. Os dedos de Alyse entrelaçaram-se nos cabelos de Phin. — Você nunca o encontrou. Não conhece o caráter dele. — Eu conheço o seu. E sei o que ele fez com você. — Ele não foi o único a me abandonar. Phineas tomou-lhe a mão livre e a pressionou em seu peito. — Você consegue sentir o meu coração? Você é a razão pela qual bate tão forte. — Phin. — Você estava destinada a casar-se com alguém importante e incrivelmente rico. E eu não era nenhum dos dois. — Por que você partiu? — Ela ofegou, intensificando os beijos para corresponder a ele. — Eu nunca fui nada. — Ele se deitou no chão e puxou-a junto para que não precisasse parar de beijá-la. — A última coisa que meu pai me disse foi que, se eu não deixasse de trilhar o caminho no qual me encontrava, o melhor que ele poderia esperar era que eu quebrasse o pescoço, antes de ferir mais alguém. Os dedos de Alyse interromperam o carinho no peito de Phin. — Tenho certeza de que ele não pretendia que essas fossem as últimas palavras para você. E era um alerta, não uma condenação. É claro que você sabe disso. — Agora, sim. Na época, eu estava bem certo de que devia continuar no mesmo caminho tortuoso e causar o máximo de estrago possível no tempo que eu tinha. — Você deveria ter conversado comigo. Éramos amigos. — Seu pai me disse para eu me afastar de você antes que a arrastasse até o inferno comigo. 100

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Alyse beijou-o no pescoço, e Phineas estremeceu. Aquilo era ruim. Precisava partir antes que fizesse o que o pai dela o avisara para não fazer e arruinasse o que restara da reputação de Alyse. — Eu teria ido até o inferno com você — Alyse sussurrou. Envolvendo-a nos braços, ele se virou até tê-la deitada sob seu corpo, fitando-o. Abaixou a cabeça e beijou-a de novo, revelando, com os lábios, o que seu corpo queria. Antes que Alyse correspondesse, no entanto, precisava contar-lhe tudo. — Naquele dia, no dia em que William... — Parou, pigarreando. — Fui para casa no meio da manhã, provavelmente fedendo a uísque e ao que mais estivesse fazendo na noite anterior. William me deteve à entrada e disse que já me deixara ser tolo por tempo demais. Eu ainda estava de porre e lhe disse que a única maneira de fazer-me ouvi-lo seria se ele pudesse me derrotar em uma corrida de cavalos até as ruínas. Porque, se eu conseguisse superá-lo estando bêbado, ele nada poderia oferecer-me quando estivesse sóbrio. Pressionei para que aceitasse. — Foi um acidente. — Não, não foi. Eu estava à frente, até que, nos últimos cem metros, ele recuperou a vantagem e começou a me ultrapassar. Impulsionei meu cavalo contra o dele, e ambos caímos. Mas eu continuei em frente até circundar as ruínas. Eu já estava caçoando dele quando me virei e o vi deitado de costas, imóvel, sobre uma das velhas pedras. Pensei têlo matado. O horror que surgiu nos olhos de Alyse, a constatação de que qualquer motivo romântico que ela tivesse inventado para sua fuga estava terrivelmente errada, era demais para ele. Phineas afastou-se, pondo-se de pé com dificuldade. — Então agora você sabe. Assim que o médico disse que William sobreviveria, mas nunca mais voltaria a andar, obtive de seu pai a promessa de ajudar a administrar Quence, arrumei minhas coisas e parti. Se eu fosse ferir mais alguém, não seria alguém com quem eu me importasse. — Com cuidado, ele se abaixou para pegar a camisa. Escutou Alyse levantar-se atrás dele. — Você não deve ir embora ainda. Precisa descansar um pouco. — Não vou ficar. Desejo você. Se ficasse, eu a arruinaria. Alyse tomou-lhe o braço são, virando-o de frente para ela. — Eu já estou arruinada — sussurrou, puxando o rosto de Phin para baixo. Phineas poderia discordar, já que, àquela altura, ela podia ao menos dançar nos bailes do interior, mas os lábios doces e o corpo esguio em seus braços tornavam impossível que se opusesse. Com um gemido, puxou-a mais para perto, derrubando a camisa. Passou as mãos pelos ombros delicados, retirando-lhe o penhoar. Conduziu-a até a cama, e ambos se deitaram, beijando-se intensamente. A luz da lamparina no chão projetava nas paredes sombras grandes e disformes, as dele cobrindo e consumindo as dela. Ele tocou o seio esquerdo, por cima da camisola e gemeu de novo, ao sentir o mamilo intumescer. Com dedos ágeis, abriu os dois primeiros botões e afastou o tecido, acariciando a pele nua antes de tocá-la com os lábios. Alyse ofegou, contorcendo-se sob ele, enquanto ele saboreava os seios macios. — Phin... — Ela arqueou as costas. 101

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Phineas pôde ouvir-lhe a urgência na voz, principalmente porque a sentia também. Passara-se semanas desde que possuíra outra mulher, mas isso nada tinha a ver com o que experimentava. Aquela era Alyse, e tudo o mais desaparecia. Ajoelhando-se, encontrou a barra da camisola e ergueu-a, acompanhando o movimento com os lábios. Torcendo-se um pouco, livrou-se das botas, esfregando um pé no outro. Quando uma delas chocou-se contra o chão, Alyse congelou. — Quieto. — Ela o afastou, tomou a outra bota e colocou-a no chão com cuidado. — Desculpe — ele murmurou, deitando-a de novo e retomando os beijos na parte interna das coxas de Alyse. — Se isso ajuda, escutei sua tia roncando bem alto enquanto eu subia as escadas. — Ela tem o sono pesado — ela disse, ofegante. O som do desejo de Alyse excitou-o ainda mais. — Vou manter isso em mente. Phineas deslizou os dedos pela úmida feminilidade. Céus, ela estava pronta para ele! Para ele. Mesmo sabendo o que ele fizera a ambos, dez anos antes, e a ela pessoalmente, havia apenas algumas noites. — Alyse — sussurrou, substituindo os dedos pelos lábios. Alyse arqueou-se, enterrando os dedos em seu cabelo enquanto ele a saboreava. Phineas ergueu uma das mãos para acariciar-lhe os seios, e sentiu-a comprimi-lo com os calcanhares. Ergueu-se novamente, detendo-se no ventre macio para mordiscar-lhe a pele. Por fim, retirou a camisola. — Quero possuir você, Alyse Donnelly — murmurou, livrando-se das calças. Notou o modo como ela o observava, arregalando os olhos ao vê-lo por completo. — Quero que me possua, Phin Bromley. Phineas ajeitou-se entre as coxas de Alyse, beijou-a de novo e, lentamente penetrou-a. A sensação do calor úmido e apertado foi quase o suficiente para enlouquecê-lo e o obrigou a lutar para manter o controle. Alyse. Sua Alyse. Sua amiga, e agora sua amante. Aquela noite, nenhum dos dois estaria só. Alyse apertou seus ombros quando ele a invadiu, mas não gritou. — Agora você é minha — ele sussurrou, beijando-a. Os dedos de Alyse perto de sua ferida o machucavam, mas ele não se importava. Quando ela relaxou um pouco, ele moveu-se de novo, em um ritmo lento. William lhe dissera que a deixasse em paz. Mas como poderia fazer isso, quando ela era a melhor parte de suas lembranças ali? — Alyse. — Mordiscando-a no pescoço, acelerou o ritmo e o reduziu de novo, deliciando-se com o prazer que ela demonstrava. — Phin, é demais... — Ela ofegou, pressionando-se contra ele.— Tem mais — ele falou. Alyse balbuciou algo que não conseguiu entender, e ele aprofundou as investidas, cada vez mais depressa, até senti-la estremecer, pulsando e arrastando-o com ela ao êxtase. Ela se agarrou a Phin enquanto ele atingia o clímax, torcendo para não ter gritado de prazer. Deus do céu! Não tinha palavras para descrever o quanto fora... maravilhoso. 102

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Estar com Phin, sentir o desejo e o prazer dele — aquilo poderia representar mais problemas, mas, com o peso dele sobre seu corpo, seus dedos na pele dele, Alysê não era capaz de arrepender-se. Não agora. Não naquela noite. Seria racional e responsável na manhã seguinte. Com um suspiro, Phineas beijou-a outra vez e virou-se para que ela se aconchegasse ao peito forte. Por Alyse, ele jamais sairia daquela cama. Ela passou os dedos de leve sobre uma cicatriz, logo acima da cintura dele. — O que aconteceu com você? — perguntou. — Um cavalo caiu sobre mim. Quebrei algumas costelas, mas não teria sido tão ruim se ele não tivesse entrado em pânico e tentado se levantar em cima de mim. — Então é a marca de um casco. — Sim. Alyse dirigiu a atenção para o ombro direito. — Isso parece familiar. Quantas vezes você foi baleado? — Incluindo hoje, três. — Dobrou o joelho direito e apontou para a parte de baixo da coxa. — Aqui está o outro. Alyse tocou o local, sentindo a cicatriz. Depois, passou a ponta do indicador pela testa, pela sobrancelha e pela face dele. — Você quase perdeu um olho. — Quase mesmo. Os oficiais franceses são bons espadachins. A voz grave reverberou em seu íntimo, uma sensação de que gostava muito. O quanto ele chegara perto de morrer aquela noite? O quanto ela estivera perto de nunca sentir-se daquela forma? — Quem atirou em você, Phin? — Lorde Charles Smythe. — O quê? Por que ele... — Porque o surpreendi retirando uma matilha de cães de caça do canil de Beaumont. As implicações daquilo a aturdiram. — Beaumont gosta de caçar. Por que não teria cães? — Não há razão. — Você estava vestido como um salteador. Eu também teria atirado. — A menos que estivesse ocupada demais beijando-o. — É bom saber — disse Phin, secamente. — Você sabe o que eu quis dizer. Você está dizendo que lorde Charles é responsável pelo ataque ao rebanho de Quence. Por que ele faria uma coisa dessas? — Eu ainda não sei, mas pretendo descobrir. Smythe trouxe cães de caça quando veio de Londres? — Não. — Se eles realmente pertenciam a Beaumont, você consegue pensar em algum 103

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motivo para que Smythe os estivesse retirando de lá após a meia-noite, acompanhado por homens armados? — Phin, você tentou roubá-lo duas vezes. Phineas soltou o ar, virando-se um pouco para apanhar uma mecha dos cabelos sedosos entre os dedos. A sensação fez Alyse estremecer. — Preciso de ajuda, Alyse. Algo está sendo tramado. No último ano, Quence foi vítima de algo além de acidentes. Sei que Smythe está envolvido. Se souber o motivo, posso detê-lo antes que William precise vender a propriedade. Isso agora está afetando também a saúde dele. Você sabe de qualquer coisa que possa me ajudar? Por um segundo, Alyse perguntou-se se tudo aquilo fora parte de um plano para conquistá-la e torná-la alguma espécie de cúmplice. Permitir-se ser baleado, no entanto, parecia-lhe algo extremo. O tiro poderia tê-lo matado. — Outro dia, ouvi Charles conversando com Richard — ela disse. — Tudo o que pude escutar foi o número quarenta e sete, e então trinta libras. Depois que descobrimos sobre as ovelhas, percebi que era o número que haviam perdido. — Eu as vendi para o açougueiro por trinta libras. — Isso não quer dizer nada. — Isso quer dizer que Richard sabia do ataque antes que eu lhe contasse. — Não sou particularmente afeiçoada a Richard, mas ele permitiu que eu tivesse um teto sobre a cabeça. E, no último ano, ele passou bastante tempo ajudando seu irmão. — E cortejando minha irmã. Já discutimos isso. Eu apenas... Não sei quanto tempo mais eu tenho para resolver isso. Não quero que traia a sua família, mas, se ouvir algo que possa me contar, por favor, faça isso. — Farei o que puder. — Obrigado. A respiração de Phineas tranquilizou-se, e os dedos soltaram seus cabelos, relaxando em seus ombros. Por um longo instante, Alyse ouviu as batidas do coração, sentiu o peito largo erguer-se e baixar enquanto ele dormia. Prometer que faria o que pudesse era uma coisa; se não ouvisse nada, seria fácil manter a palavra. Mas se descobrisse algo... Phin, no entanto, a estonteava. Acima da bela aparência, simplesmente gostava dele. Gostava de falar com ele, de ouvi-lo e de beijá-lo. Mas ele estava com pressa para descobrir a culpa pelos infortúnios de Quence. E, quando ele resolvesse a situação, voltaria para a Espanha. Afinal, ele estava apenas de licença. O que quer que acontecesse, ficaria sozinha de novo. As únicas questões eram quanto prejuízo estava disposta a sofrer e quanto silêncio sua consciência poderia suportar.

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Capítulo IV

Phin, acorde. Ele se sentou, estendendo a mão para pegar a pistola que mantinha sob o travesseiro. Contudo, não a encontrou. De repente, percebeu que não estava na sua cama, e de que Alyse estava em pé ao seu lado, encarando-o com uma expressão assustada. — Você está vestida — ele falou, desapontado. — Estou de volta aos meus trajes de dormir — ela o corrigiu. — São quase cinco horas da manhã. Phineas piscou. Concentre-se. Ele perdera sangue, mas não o suficiente para impedi-lo de fazer um ótimo sexo... com Alyse. Sentiu a rigidez no ombro e, suprimindo um gemido, girou o braço. Devagar, pôs as pernas para fora da cama. — Por que você me deixou dormir? — Porque foi baleado. Como está se sentindo? Ele a admirou por inteiro e, ao vê-la corar, seu desejo despertou outra vez. — Estou com fome — ele falou, levantando-se. — Hum. Vai precisar cuidar disso sozinho. Vista-se. Agachando, Phineas apanhou as calças e as colocou. — Está zangada? — perguntou. Afinal, na noite anterior, dissera a Alyse coisas que ela provavelmente não gostaria de ouvir. Ela meneou a cabeça, ocupada em observá-lo enquanto se vestia. Se ele não abotoasse logo as calças, talvez não conseguisse mais fazer isso. — Assustada? — Por que você parou o coche e roubou minhas pérolas? — Ah. — Encontrou a camisa e vestiu-a. — No baile, vi Smythe pondo algo no bolso. Queria dar uma olhada no que era. Não sabia que você estaria no coche. Se eu não tivesse... levado algo de você, os outros poderiam ter suspeitado de mim. Phineas pegou a mão de Alyse, puxou-a para perto e beijou-a. Sentiu o peito apertado até ela começar a corresponder. — Vim vê-la como o Francês porque precisava devolvê-las. Sei o quanto significam para você. — Então por que pediu um beijo em troca? — Porque eu queria beijá-la — ele respondeu, soltando-a para pegar o colete. — Por que as pergunta agora? — Ainda estou tentando descobrir onde me encaixo nisso tudo, depois que você salvar Quence. Phineas franziu o cenho. O mesmo pensamento o perturbava. — Você pelo menos dormiu, ou passou a noite procurando razões para não confiar em mim? 105

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— Não precisei procurar tanto. Tive até tempo para um cochilo. Phineas vestiu o paletó, estremecendo quando o tecido tocou seu ferimento. Em seguida, pôs o casaco e o chapéu, colocando a máscara no bolso. Não tinha a intenção de ser visto. — Dê-me tudo o que estiver sujo de sangue. — disse, removendo da cama o lençol manchado. Gostava da evidência de ter sido o primeiro homem de Alyse, mas não queria que ninguém soubesse disso. Embora tivesse rompido a promessa de não lhe causar mais problemas, poderia minimizá-los ao máximo. Ela enrolou os tecidos e bandagens dentro do lençol e amarrou-os em uma trouxa. O sangue dele e o dela, juntos. Por alguma razão, isso parecia... significativo para Phin. Mais tarde. Pensaria naquilo depois. — Vou queimá-los, quando chegar a Quence. Por fim, ele se sentou na cama e pôs as botas, tomando cuidado para não batê-las no chão. Quando se levantou, Alyse foi até a porta e destrancou-a, olhando para o curto corredor do sótão. — Tudo livre — sussurrou. Ao passar por ela, Phineas inclinou-se e beijou-a. Após a noite que havia passado, fazê-lo parecia vital. — Sei que você não confia inteiramente em mim. Mas vai confiar. — Assim espero. As palavras dela foram quase inaudíveis, mas ele as escutou. E, baixas como tinham sido ditas, ou talvez por causa disso, elas o incomodaram. Alyse gostava de sua companhia, mas não acreditava que ele soubesse o que estava fazendo. Queria que ela acreditasse. De certa forma, aquilo se tornara tão importante quanto ajudar os irmãos. E o preço do fracasso seria alto. Esgueirou-se pelas escadas e pela porta lateral até o lado de fora. A névoa rente ao chão tomava conta da terra e do céu azul-acinzentado esmaecido do luar quase findo. Fechando o casaco no ar frio, apressou-se pelo jardim e seguiu o leito do rio, em meio as árvores. Smythe e seus cavaleiros provavelmente tinham desistido da caçada horas antes, mas, ainda assim, manteve-se próximo aos arbustos. Açafrão estava onde o deixara, roncando suavemente. Phineas fez um ruído para chamá-lo, sem querer que o animal se assustasse e chamasse a atenção de alguém que estivesse na área. Enfiando a trouxa de panos ensangüentados sob o casaco, ele montou. — Vamos para casa, garoto — murmurou, fazendo-o trotar. O movimento provocava dor em seu ombro, mas, cerrando os dentes, ele seguiu em frente. De volta a Quence, acordou Tom, para que cuidasse do cavalo, foi até a casa e subiu as escadas para o quarto. — Onde diabos esteve, rapaz? Sobressaltou-se quando Gordon praticamente pulou em cima dele. Olhando para o sargento com uma sobrancelha erguida, ele deu um passo para trás. — Como? — Eu quis dizer, onde diabos esteve? Quase fiz um buraco no piso, de tanta preocupação. 106

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Phineas foi até a lareira e atirou a trouxa de roupas ao fogo. — Precisei de curativos antes de voltar. Algum problema com Smythe? — Não. Conduzi todos eles em uma caçada divertida. A essa altura, devem estar a meio caminho do País de Gales. — Espero que não. Desejo-o próximo o suficiente para que possa esganá-lo pessoalmente. — Phineas tirou o casaco. Enfiando o dedo pelo buraco na parte de trás, lançou-o para Gordon. — Consegue remendar isto? — Santo Deus! — exclamou o escocês, adiantando-se para segurar o ombro de Phin. — Chama isso de arranhão? — Ai! — ele reclamou, afastando-se. — Já cuidei disso. Você vai precisar livrar-se dessas roupas para mim. É uma pena que eu só as tenha usado uma vez. — Não pode deixar a bala aí dentro. — Não há bala. Agora me ajude a tirar o paletó, sim? Preciso de algum maldito descanso. — Olhou de soslaio para Gordon. — E ninguém pode saber que fui ferido. Tudo depende disso. — Certo. E lorde Charles e seus cães? — A esta altura, os cães devem estar bem distantes. Ou afogados. — Ele cerrou os dentes. Encontrara a maneira mais fácil e direta de provar que o que estava acontecendo era intencional, mas perdera tudo. Havia errado feio na noite anterior, e mais de uma vez. A melhor maneira de demonstrar que se importava com Alyse era manter-se ó mais longe possível dela. — O que faremos agora? — Smythe não sabe que fui eu quem o descobriu com os cães. O Francês e eu podemos ter algum tipo de vantagem... se eu conseguir descobrir como aproveitá-la. — E como fazer com que nenhum de vocês dois seja morto. — Isso também. O sargento conferiu os curativos e, com relutância, declarou que um bom trabalho fora feito ali. Assim que Gordon saiu do quarto, Phineas jogou-se na cama. Adormeceu com o aroma suave de Alyse em sua pele. Alyse estava sentada sobre os calcanhares, examinando seu trabalho. O piso de madeira estava úmido, mas, sob a luz crescente vinda da janela, não era possível identificar manchas. Felizmente, a maior parte do sangue de Phin havia ficado nas roupas. Levantou-se e abriu a janela, atirando o resto da água sobre o roseiral. Virou-se, analisando o pequeno quarto. Estava limpo, arrumado, com novos lençóis na cama feita... como sempre estivera. Exceto por não estar. Ela tampouco era a mesma. Phin havia estado ali, e ela ainda podia vê-lo, senti-lo sobre si, dentro de si. Um calor gostoso tomou seu corpo. Era velha demais para uma paixão, especialmente uma vez que vira, e agora conhecia, o pior sobre ele. Mas não era paixão. Vira nos olhos dele a mesma solidão e a mesma frustração que sentia todos os dias. E, por algum tempo, na noite anterior, não se sentira solitária. O piso foi golpeado. 107

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— Alyse, sua menina preguiçosa! Desça já aqui! Ela respirou fundo. Pondo os sapatos, destrancou a porta e apressou-se escada abaixo. — Bom dia, tia — disse, sorrindo. — Posso apanhar-lhe chá? — Vou tomar meu chá durante o desjejum. Quero que vá com a cozinheria até Lewes agora mesmo e certifique-se de que ela compre tudo o que precisamos para o jantar desta noite. Jantar. Quase se esquecera de que os Bromley jantariam ali. Arrepiou-se. Veria Phin outra vez. — É claro. — Richard convidou também os hóspedes de Beaumont. Portanto, lembre a cozinheira de que seremos nove. Oh, céus! Phin e lorde Charles jantando juntos. — Mas Beaumont e Quence nunca se deram be... — Estamos cientes disso — a tia interrompeu. — Por isso Richard convidou apenas os mais jovens. São amigos dele, afinal. — Eles vão passar a noite também? — Não. Apenas os Bromley. Embora eu não saiba por que aquele irmão horroroso deles não possa cavalgar de volta para casa. — Talvez ele prefira ficar com os irmãos — sugeriu Alyse, contente por manter a voz estável diante da ideia de Phin passar uma segunda noite ali. — Parece-me que os irmãos estavam bastante bem, até que ele resolvesse voltar do Continente. — Hum — respondeu Alyse. Com certeza, não podia fazer nenhum comentário a respeito daquilo. Depois que ela e Harriet ajudaram a tia a se vestir e a conduziram até a sala do desjejum, Alyse rumou para os fundos, em busca da cozinheira. Mas assim que saiu do aposento, colidiu com um vulto alto, vindo do vestíbulo. — Phi... Pelo amor de Deus — murmurou, recuando. Phineas com certeza não estaria na casa até aquela hora. Uma mão agarrou-lhe o cotovelo, endireitando-a. — Minhas desculpas, Alyse — disse Charles Smythe. Recuperando o equilíbrio, ela se soltou. — Oh, não, a culpa é minha — falou, combatendo o súbito ímpeto de socar o homem que atirara em Phin. — Apenas não esperava ver um visitante tão cedo. — Certamente, não foi ideia minha. — Lorde Anthony passou pelo amigo, tomou a mão de Alyse e beijou-a. — Saunders disse que Richard estaria em seu gabinete. — Não sei. Ainda não o vi hoje. — Ela fez uma breve mesura, nervosa com a companhia e culpando Phineas por aquilo, também. — Com licença. — Claro. — Lorde Anthony sorriu para ela. — Alyse — disse lorde Charles, agarrando-lhe o braço outra vez —, tome cuidado, caso saia de casa hoje. 108

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— O quê? Por quê? Você não acha que o Francês atacaria durante o dia, acha? — Isso depende do quão desesperado ele está. Oh, ela não sabia como participar daquele jogo! Não queria ter de jogá-lo. Referirse a Phin como o Francês... simplesmente não conseguia. — Desesperado pelo quê? — Ajuda, suponho. Atirei nele ontem à noite. Alyse ofegou, esperando soar convincente. — Você... — Tem certeza disso, desta vez? — perguntou Richard, saindo de seu gabinete. — Porque já ouvi você alegar isso antes. — Desta vez eu encontrei sangue. Precisamos conversar. — Primeiro o café da manhã. — Richard gesticulou, indicando a sala de desjejum. — Já comeram? — Não — disse Anthony. — Vai se juntar a nós, Alyse? — Tenho algumas tarefas a cumprir — ela respondeu. — Creio que qualquer tarefa possa esperar até que você tenha comido. — O primo recuou, permitindo que ela retornasse à sala. — Mas sua mãe... — ela murmurou. — Não se preocupe com a minha mãe. Sente-se conosco. Tia Ernesta a fitou, mas não disse nada ao vê-la servir-se de comida no aparador. Após aquela noite, estava faminta, mas, uma vez que nem deveria fazer aquela refeição, escolheu com parcimônia. Não valeria a pena arriscar-se a ouvir da tia que estava comendo mais do que valia. — Richard contou-lhes que alguns cães atacaram um dos rebanhos de Quence? — perguntou a tia, quando todos se acomodaram à mesa. Alyse olhou de relance para lorde Charles, que fitava Richard. — Sim, ele contou. Horrível. — Foi provavelmente obra daquele salteador. Ele vai nos matar a todos, em nossos leitos. Tenho certeza — continuou tia Ernesta. — Eu não me surpreenderia — concordou Richard. — Não havia matilha alguma por aí, antes da chegada dele. — Mas onde ele os manteria? — Alyse aventurou-se. — Ele deve ficar escondido em algum lugar durante o dia. Uma matilha de cães é algo difícil de ser mantido em segredo. — Você não é a sabichona? — disse a velha tia. — Seja pensou em tudo, então onde está o Francês? — Não tenho a mínima idéia. Estou apenas dizendo ser pouco provável que ele ande com uma matilha de cães barulhentos. — E eu estou dizendo que ele já está escondendo aquele monstruoso cavalo negro em algum lugar, menina tola. Alguns cachorros não seriam tão mais difíceis. — Alyse, você está mais familiarizada com a geografia local do que o restante de 109

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nós — disse Richard, com um sorriso. — Consegue pensar em algum lugar onde ele possa estar se escondendo? Ela esganaria Phineas Bromley por envolvê-la naquela confusão. — Eu não me escondi muitas vezes das autoridades quando era criança. — Richard disse que você costumava brincar em algumas ruínas romanas — lorde Anthony falou. — Conte-nos sobre elas. — As ruínas? Elas ficam nas terras de Quence, no meio de uma grande clareira. Ninguém conseguiria esconder um cavalo ali. — Olhou para a tia. — Ou um cachorro grande. — O que havia de especial nas ruínas? — perguntou Charles. — Achamos que era uma antiga casa de banhos romana — ela respondeu. — Pelo menos, era isso o que costumávamos fingir que era. A água da fonte era quente o bastante. — Passei por ali outro dia — disse Richard —, conferindo o sistema de irrigação para Quence. O vapor ainda se ergue do chão por toda parte. Parece já ter sido um grande complexo, quase o dobro do tamanho de Great Bath. — Você e suas fontes quentes — disse tia Ernesta. — Você fala tanto delas que parecem estar nas terras dos Donnelly. — Não posso evitar o fascínio — Richard falou, sorrindo. — Se são tão maravilhosas — prosseguiu a velha senhora —, por que Quence não fez nada com elas? — Nós costumávamos brincar ali — Alyse repetiu. — As ruínas são bonitas, mas acho que William mal pensou nelas nos últimos anos. — Ele perdera o movimento das pernas ali, que era com certeza o motivo pelo qual a família as ignorava. Claro que não sabia de nada daquilo até a noite anterior, mas, ainda assim, fazia sentido. — Creio que lorde Quence tenha assuntos suficientes com os quais se preocupar — completou o primo. — E isso, sem o irmão intrometendo-se para questionar as decisões que já tomamos. — Ele faz parte da família. — E você não, acrescentou Alyse, não ousando dizer aquilo em voz alta. Eles faziam Phin parecer inútil e prejudicial aos familiares. Ainda que ela duvidasse dos métodos que empregava, ele conquistara a atenção de lorde Charles e de seus dois amigos. — Alyse, não devemos atrasá-la mais para suas tarefas — disse Richard. — E, quando voltar, vai precisar arejar os quartos de hóspedes e preparar as camas para lorde Quence e para Beth. — E para Phin. — Sim, e para o coronel Bromley. Olhando com pesar para o desjejum pela metade, Alyse pediu licença e deixou a mesa. Tudo o que havia conseguido ao defender Phin fora ser expulsa. Ninguém ali gostava dele, com exceção dela. E ela ainda precisava avaliar sua crescente afeição por ele em relação à também crescente quantidade de problemas. — Está cedo para um salteador — Phineas falou, de seu canto no recémconsertado coche. — E já estamos a cinqüenta metros da porta dos Donnelly. Eu diria 110

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que estamos a salvo. Beth desviou o olhar da janela. — Se eu fosse um salteador, confiaria em pensamentos como os seus, a fim de aumentar a minha fortuna. Phineas riu. — Não tinha percebido que você estudou as estratégias dos fora da lei. — Estou apenas usando a lógica. — Ah. — Olhou para o irmão mais velho. — Tem certeza de estar se sentindo bem o suficiente para isso? William deu de ombros. — É importante para Beth que compareçamos a este jantar e, portanto, é o que faremos. — Importante como? — Phineas olhou de William para Beth, analisando o belo vestido verde. A constatação o atingiu como um tapa no rosto. — Você tem apenas dezessete anos. — Você entrou para o Exército com dezessete. Com uma carranca, virou-se para William. — Você aprova isso? — Richard gosta muito de Beth. Vai cuidar bem dela. — Nós vamos cuidar dela. William ergueu uma sobrancelha. — Perdoe-me pelo ceticismo, mas você esteve fora por mais da metade da vida de Beth. — Estou sentada aqui — ela interveio, aborrecida. — E lorde Bram Johns? — sugeriu Phineas, um tanto desesperado. — Alguns meses atrás, você era louca por ele. — Você me enviou mais de uma dúzia de cartas avisando-me para ficar longe dele. E ele é seu amigo, o que não é uma boa recomendação. — Talvez não. Mas eu juro que você jamais vai precisar se casar com alguém para ficar bem. — A voz dele tremia um pouco, mas a situação de Beth também era culpa sua. William precisava pensar no futuro da irmã. E ele fizera planos sem levar em conta o irmão errante. Aquilo iria mudar. Teria que mudar, pelo bem de todos. De repente, Beth inclinou-se para a frente e abraçou-o. Os dedos tocaram o ombro ferido, mas ele apenas cerrou os dentes, recusando-se a encolher-se. Quando flagrou William olhando-o, ergueu a sobrancelha, desafiando-o a fazer qualquer comentário. Era a opinião dos irmãos sobre ele que precisava mudar. Ou não. Ele não estava exatamente revelando a eles seu melhor lado, mas fazia o necessário para ajudá-los, uma vez que lhe tinham ordenado o contrário. Apesar daquilo, não era mais o garoto estúpido e insensível que fora anos atrás. Chegando à casa dos Donnelly, ele ajudou Beth a descer e recuou, cedendo espaço para que Andrews pudesse lidar com William. Tinha a desculpa de ser considerado um sujeito egoísta, mas, ainda assim, aborrecia-o afastar-se. Pior, no entanto, seria abrir o ferimento ao tentar erguer o irmão e ter que se explicar. — Sejam bem-vindos — disse Richard com um sorriso, encontrando-os à porta. 111

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— Obrigado por nos receber — devolveu William, enquanto dois criados juntavamse a Andrews para erguer a cadeira de rodas sobre os degraus da frente. — Fico feliz em saber que está se sentindo recuperado o suficiente para ter vindo. Phineas seguiu o grupo pelo grande vestíbulo, onde se encontrava a sra. Donnelly. Acenou-lhe coma cabeça, mas manteve os olhos em movimento. Não era ela quem desejava ver. — Estamos conversando na sala de visitas — anunciou a velha senhora. — Lady Claudia nos contava a respeito de uma loja de vestidos em Londres. Os Bromley não eram os únicos convidados? William não mencionara aquilo. Mas pela expressão rapidamente disfarçada do irmão, via-se que ele também não sabia. — Quem vai jantar conosco esta noite? — perguntou Phineas. — Lady Claudia e lorde Anthony. E, é claro, lorde Charles. Não sei o que faço, com tantos jovens bonitos ao meu redor — disse a sra. Donnelly, sorrindo. Lorde Charles Smythe. Cerrando os punhos, Phineas forçou-se a devolver o sorriso. — Sem a senhora presente, a proporção entre jovens damas e jovens rapazes ficaria tristemente desequilibrada. — Oh, céus! Enquanto o grupo seguia pelo corredor, Phineas inclinou-se e segurou o braço de William. — Você quer ficar? — sussurrou. — Se não quisesse, seria capaz de inventar minhas próprias desculpas. Phineas endireitou-se. Aquele tinha sido um belo tapa no rosto. E considerando que o irmão vinha inventando as próprias desculpas nos últimos dez anos, era um tapa merecido. Idiota! Na sala de visitas, os três convidados conversavam de um lado; do outro, com o olhar perdido pela janela, sentava-se Alyse. Ele ficou sem fôlego. Seu corpo foi percorrido por um calor que nunca experimentara, e ele sentiu uma intensa vontade de tocá-la. Os olhos escuros ergueramse até encontrá-lo, e Phineas foi tomado pelo desejo. — Não creio que apresentações sejam necessárias — disse Richard, gesticulando para que um criado trouxesse taças de vinho. — Claro que não — respondeu Claudia. — Somos todos amigos aqui. Phineas repreendeu-se. Desejar Alyse já era perigoso o suficiente, mas o homem que o baleara encontrava-se a poucos metros. Não tinha esperado encontrar seu inimigo ali. Mas agora que Smythe estava presente, não podia permitir-se qualquer distração. Mesmo assim, viu-se, de repente, diante Alyse. — Olá — ele disse, não confiando em si mesmo para tomar-lhe a mão. — Olá. Como você está? — ela indagou, fitando seu ombro. — Muito bem, obrigado. — Aproximou-se um pouco. — E como você está? — Muito bem — ela sussurrou, corando. 112

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Deus, como queria beijá-la! Estar tão perto sem poder tocá-la era uma tortura. Então, Beth agarrou seu ombro, provocando-lhe uma dor intensa. — Não é verdade, Phin? Depressa, ele lhe agarrou a mão, beijando-a para disfarçar. — O que não é verdade, princesa? — perguntou, sorrindo. — Que você fala quatro línguas. Lorde Anthony não acredita em mim. — Eu nunca disse que não acreditava, srta. Beth — ele falou, sorrindo. — Eu disse que deveríamos nos considerar com sorte porque o salteador era francês. Fosse turco ou russo, ninguém teria compreendido o que estava balbuciando. Smythe observou-o antes de perguntar: — Quais línguas você fala, coronel? Maldição! — Ah... Eu falo a língua das cartas, do vinho, das mulheres e da música. São quatro, não? Richard gargalhou. — E francês, espanhol e italiano — insistiu Beth. — Não caçoe de sua cultura. Phineas beijou-lhe a mão de novo, esforçando-se para pensar em uma saída daquela encruzilhada. Jamais notara que a irmã tinha tanto orgulho dele. — Servi no Continente por dez anos, Beth. O sujeito tende a aprender o básico da língua das pessoas que está matando ou a quem está enganando nas cartas. — É essa a sua maneira educada de dizer que aprendeu todas as palavras que não devem ser repetidas? — Alyse contribuiu. — E como pedir informações — acrescentou Phineas, tentando não revelar no rosto sua gratidão. — Mas você... — Desculpe-me por ter exagerado, Beth — murmurou, apertando-lhe os dedos um instante antes de ela puxá-los. Por favor, que eu tenha a oportunidade de me explicar depois. William dissera que a irmã o considerava um herói; era bem provável que houvesse um lugar especial no inferno para irmãos que despedaçavam os sonhos e as esperanças de suas irmãs... e logo depois de ele ter dito que sempre cuidaria dela. O número de pessoas que acreditavam nele parecia estar se reduzindo a zero. Respirou fundo. — Eu o escutei corretamente? — indagou a lorde Anthony. — Disse que o salteador era francês? Alguém o ajudou no caminho para o além? — Este seria eu — disse Charles, sorrindo. — Acertei-o nas costas. Ou talvez na nuca. Como estava escuro, não tenho certeza. De qualquer forma, apostaria cem libras que ele está morto. — Muito bem, lorde Charles. — Beth aplaudiu. — Embora eu admita que deva ser excitante ver um salteador. — Eu preferiria vê-lo enforcado — interveio Richard, tomando o braço de Beth. — Mas, pelo menos, nos livramos desse incômodo. Phineas assentiu. — De certa forma, é uma pena. Eu teria gostado de experimentar meu francês impróprio com ele. Ficaram todos na sala de visitas enquanto os criados carregavam as malas para o 113

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andar de cima. Não parecia que os outros convidados fossem passar a noite ali, o que facilitaria as coisas quando Phin fosse... explorar, mais tarde. Todos podiam achar que Richard Donnelly era um santo, mas ele tinha suas dúvidas. Até que estivessem satisfeitas, não pararia de caçar, qualquer que fosse o custo. *** Alyse não conseguia deixar de olhá-lo a cada minuto durante o jantar. Nunca duvidara da coragem de Phin, mas ouvi-lo conversar calmamente sobre a suposta morte do salteador, escutá-lo rir do relato de como Charles levara o Francês a uma emboscada para matá-lo... aquilo lhe dava arrepios. E não eram os arrepios agradáveis que sentia quando pensava em Phin. Imaginava que aquela fosse a diferença entre ver um homem fardado dançando uma valsa e vê-lo em ação no campo de batalha. Phin era um soldado, e claramente possuía nervos de aço. Ao mesmo tempo em que aquela disposição a impressionava, também a preocupava. Tentara dizer-lhe que a vida dele não seria a única a mudar, caso as ações fossem descobertas. Ainda assim, Phin continuava a pressionar. Será que ele não percebia que havia coisas mais importantes do que provar ter razão? — Dei uma volta pelos campos ontem à tarde — ele disse —, e fiquei surpreso ao descobrir que ninguém parece ter cães de caça. Será que saíram de moda? — Riu. — Claro, se estão matando as ovelhas, posso ver por que ninguém com juízo os desejaria por aí. — Acho que são mais populares ao Norte — Charles comentou com a voz um pouco tensa. Se Phin não tivesse lhe contado que os cães pertenciam a ele, Alyse talvez não percebesse. — Ah, talvez seja esse o problema. Deveríamos procurar visitantes que tenham vindo do Norte para caçar. — A sobrinha de lady Matthews é de York — disse tia Ernesta. — Não creio que a srta. Harper seja uma boa caçadora — comentou Richard. — Além disso, receio que quase todos os visitantes de East Sussex venham do Norte. — Ou de Brighton — disse Beth. — Mais e mais a cada ano, é o que parece. — Sim, bem, podemos agradecer a Prinny por isso. — William mexia na comida. — Aonde ele vai, todos vão atrás. — Devo admitir que minha relação com Prinny ajudou a me convencer a fixar residência aqui — Richard falou. — Não me espanta que os romanos parassem em suas termas, a caminho de Brighton, milorde — declarou tia Ernesta. — Acho que Brighton é um pouco mais recente do que isso, mamãe. — Richard mudou o rumo da conversa. — Diga-me, coronel Bromley, por quanto tempo pensa que Wellington pretende caçar Bonaparte? — Até que Bonaparte seja morto ou capturado, imagino. — Mas as termas ficam a caminho de Brighton — a tia insistiu. — Devia haver algo ali. Ou então, por que se ocupariam de construir algo aqui, no meio de East Sussex? — De que termas vocês estão falando? — indagou Claudia. Phin não demonstrou ficar desconfortável com o assunto das ruínas, e ela 114

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raramente sabia o que William estava pensando. Ainda assim, Alyse preferia que eles discutissem a respeito de outra coisa. — Umas velhas ruínas em Quence — disse Richard. — Com cinco promoções no campo de batalha, pensei que você talvez conhecesse o duque pessoalmente. — Ah, nós nos conhecemos. Eu apenas não gosto de me gabar. Oh, céus! — Vejo que vocês mandaram consertar o coche — Alyse interveio. — Fico feliz que o prejuízo não tenha sido tão grande. Richard inclinou-se para a frente. — Está me acusando de novo de ser arrogante, coronel? Porque posso assegurar que não sou assim. — Eu só fiz um comentário. Foi você quem concluiu que eu poderia estar falando de você. — Phin — disse William. — Já chega. Richard havia começado, mas era óbvio que ninguém o censuraria. Ninguém jamais o fazia. Aquilo sempre provocava em Alyse o desejo de gritar ou de dar-lhe um soco no nariz. Phin devia estar tão frustrado, tentando fazer algo para ajudar a família, sem qualquer auxílio, sem ninguém que acreditasse ne... Ele chutou seu tornozelo. Alyse sobressaltou-se, olhando para o outro lado, da mesa. Phin ergueu a sobrancelha da cicatriz, sutilmente indicando a porta da sala de jantar. Alyse ignorou-o. Não iria sair dali com ele. — Essas termas — disse Claudia, rompendo o incômodo silêncio — são como aquelas em Bath? Aquelas costumavam estar sempre na moda. — Costumavam, mesmo — William concordou. — Agora você encontra principalmente velhas senhoras jogando cartas e aleijados como eu nas águas. — Não se refira assim a si mesmo — Beth interferiu. — Você se banhou nas águas? — perguntou Phin, subitamente. — Não estou doente — ele respondeu. — Não vejo motivos. — Mas... — Podemos discutir minha saúde mais tarde, se desejar — interrompeu o visconde. Será que ele culpava Phin pelo que acontecera? Phin certamente se culpava. Alyse repreendeu-se. Ver-se presa aos problemas dele era a última coisa que desejava, não importando o quanto apreciasse aquele homem. Ao sentir outro chute, olhou para Phin e meneou a cabeça, mas ele repetiu o gesto pela terceira vez. — Pare com isso — ela sussurrou. — Por favor, me dêem licença por um instante — ele disse, levantando-se e saindo da sala sem dar explicações. A conversa prosseguiu. — Tia, está com frio? — Alyse indagou de repente. — O quê? Não, estou bem. 115

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— Estou com um pouquinho de frio. Vou apanhar um xale. Ninguém pareceu importar-se. Ela se levantou e foi até o corredor, fechando a porta da sala de jantar. Phineas estava do outro lado do corredor e entrou no aposento matinal quando ela surgiu. Ofegante, ela o seguiu. Assim que passou pela porta, ele agarrou seu braço e, pressionando-a contra a parede, beijou-a. Estendeu a mão livre e fechou a porta. — Alyse — ele sussurrou, segurando seu outro pulso e erguen-do-lhe ambas as mãos acima da cabeça. O único modo de tocá-lo era com seus lábios, e aquilo tanto a frustrava quanto a instigava. — Solte-me — ela murmurou. — Não. — Ele voltou a atenção para o seu pescoço. — Achei que você ia brigar com Richard depois daquela conversa — ela conseguiu dizer, sentindo-se quente e mole. — Queria beijá-la. Eu não ligo a mínima para o seu primo, exceto no que ele afeta a minha família. Alyse sabia o que viria em seguida; ele perguntaria se ela tinha descoberto algo útil para a investigação. Quando se mexeu de novo, tentando soltar-se, Phin liberou suas mãos, sem deixar de beijá-la. Por fim, ele recuou alguns centímetros, apoiando a testa na sua. — Isso deve me segurar durante o jantar — ele falou ante de beijá-la mais uma vez, com gentileza. — Não se esqueça do xale. Então ele abriu a porta e esgueirou-se para o corredor. Alyse respirou fundo. Ele não lhe perguntara nada. Sorrindo, sentindo-se leve como havia muito não se sentia, foi até o sótão buscar o xale. Após o jantar, todos foram até a sala de música. Ficava no andar de cima, e dè novo Phineas manteve-se afastado enquanto Andrews e outro criado da casa carregavam a cadeira de rodas do irmão. A resposta áspera de William sobre as águas de Bath o intrigava. Teria ele tentado? Os poderes restaurativos das águas eram lendários e, mesmo que fossem exagerados, uma tentativa poderia ser válida. Um braço esguio envolveu o seu, interrompendo sua linha de raciocínio. — Por que deixou que todos pensassem que você é um grosseiro? — perguntou Beth. Ele gostaria muito de poder explicar-se. — Porque eu sou, princesa. — Você me escreveu cartas inteiras em francês, para ajudar-me com os estudos. Agora diz que só sabe xingamentos. Não entendo. — Você pode me imaginar como quiser, Beth, mas eu sou um soldado. Um assassino remunerado. Eles me vêem como sou. Não sei por que você não faz isso. A irmã soltou-o. — Você é um mentiroso, Phin Bromley — ela disse com a voz baixa e trêmula. — Você tem orgulho de usar a farda. Como ousa dizer o contrário? 116

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— Beth — ele disse, mas ela se afastou. Maldição! — Cartas inteiras, é? — indagou uma voz grave atrás dele. Charles Smythe. A noite melhorava a cada minuto. — Contanto que ninguém compare a letra muito de perto — ele murmurou, com um sorriso breve. — Quem a escreveu pela você? — Um cavalheiro nunca revela essas coisas. E, como mal sou um cavalheiro, vou dizer apenas o primeiro nome. Marie. Rindo, Smythe deu-lhe um tapa nas costas. Com força. Phineas precisou de toda a disciplina que desenvolvera para não se encolher de dor. Claramente, lorde Charles suspeitava que ele era o Francês. O estrategista em Phineas imaginou que aquilo talvez não fosse tão ruim, pois Smythe desviaria a atenção da propriedade, focando-se nele. E, ao contrário do restante da família, ele estava preparado para problemas. Na verdade, ele os receberia bem. Claudia sentou-se ao piano. Enquanto todos ocupavam seus lugares para escutála, Phin olhou para Alyse... justo a tempo de ver lorde Anthony sentar-se ao lado dela. Foi tomado pelo ciúme. Cerrando os dentes, sentou-se ao lado de William, lembrando a si mesmo que, por mais satisfatório que fosse socar Ellerby, ele tinha outras coisas a considerar aquela noite. E, enquanto lorde Anthony e seus amigos partiriam ao final da recepção, ele passaria a noite ali. Um criado ofereceu-lhe uma taça de Porto. Aceitando, ele a virou de uma vez, e pegou uma segunda. Essa seria discretamente vertida no vaso ao lado. Phineas ainda não sabia se Smythe era o único culpado. Ser grosseiro e barulhento, ou seja, ser notado, poderia alimentar o plano do inimigo de removê-lo da equação, o que, esperava, pouparia Quence e seus habitantes de futuros desastres. — Phin, permiti que vivesse sua vida como quisesse — disse o irmão, baixinho —, mas devo pedir que se comporte com mais decoro esta noite. — Você permitiu! — Começava a perguntar-se se simplesmente atirar em Smythe e entregar-se para ser enforcado não seria menos doloroso do que deixar que o tênue respeito de sua família por ele definhasse e morresse. — E você me disse que havia mudado. Começo a pensar que consegue arcar com as palavras, mas não com as ações para prová-las. — E você deveria ter assumido essa cadeira anos antes que eu o colocasse nela. O martírio lhe cai muito bem. William o estapeou. Não doeu. Não fisicamente. E, ainda assim, aquilo o marcaria para o resto da vida. Esboçando um sorriso que esperava que não parecesse tão desagradável quanto o sentia e ignorando o arfar horrorizado de Beth, ele se levantou. — Talvez seja melhor que eu me sente ali. — Ele se moveu para o outro canto da sala, sentando-se no sofá ao lado da sra. Donnelly. Claudia hesitou ao piano, mas, sob um olhar de Richard, ela prosseguiu. Aquilo devia resolver o assunto. Ninguém acharia que ele tinha contado algo a William. Pela manhã, usaria a farda outra vez, para enfatizar a idéia de ser um forasteiro. Mandaria Gordon buscá-la. — Alyse, sente-se ao meu lado — ordenou a sra. Donnelly, sem dúvida desejando 117

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distanciar-se dele. Considerando que isso traria Alyse para perto, ele não se queixaria. Desculpando-se com lorde Anthony, ela foi até o sofá. Phineas cedeu-lhe espaço, grato por um rosto amigável, que sabia o que ele estava tramando e por quê. — Alyse — ele murmurou. — Não fale comigo — ela disse sem olhar para ele. — Você é horrível. Cometi um erro, pensando que tivesse mudado. Phineas fechou os olhos por um instante. Podia lidar com a falta de respeito ou de orgulho, pelo bem da família. Sem Alyse, no entanto, sentiu-se subitamente destituído de esperança. E com a falta daquilo não sabia se conseguiria lidar. Saber que fazia o que era necessário, que seu comportamento, ainda que constrangesse os irmãos, poderia também salvá-los, não tornou sua noite mais fácil. Porém, ele manteve a farsa e aceitou, com um humor inebriado que não sentia, quando Beth não quis dar-lhe um beijo de boa-noite antes de ir para a cama. Por fim, Phineas subiu as escadas até o quarto a ele destinado, tropeçou ruidosamente por alguns minutos e apagou a lamparina. Sentado na beirada da cama, tirou o paletó e as botas, e guardou a faca na cintura. Os quartos dos Donnelly ficavam na mesma parte da casa — com exceção do de Alyse, um andar acima —, e ele pôs-se ao lado da porta, escutando, até que a casa se aquietasse. Passos pesados vieram pelo corredor, parando à sua porta. Em silêncio, ele pegou a faca. Aqueles não eram passos de mulher, e William não andava. Sobrava Donnelly. Ele e... A pessoa bateu na porta. Franzindo o cenho, Phin escondeu a faca às costas e puxou a maçaneta. — Gordon? O que... — Trouxe sua farda — sussurrou o escocês, esgueirando-se para dentro do quarto, com uma trouxa nas mãos. — Obrigado. E por que ainda está aqui? — Porque sou seu maldito criado. É o que você fica repetindo, pelo menos. E devo cuidar de colocá-lo na cama, não devo? — Sim, mas não depois de eu supostamente já estar dormindo. — Eu sabia que não estaria dormindo. Aliás, os criados estão falando o diabo sobre você. Quase precisei deixar o mordomo com um olho roxo. — Eles estão falando mal de mim porque eu estou me comportando mal. — Por quê? — Beth mencionou que eu falava francês fluentemente. Smythe agora suspeita de que eu seja o Francês. Não queria que ele pensasse que minha família participa do meu disfarce. Quero que ele, e quem mais estiver aliado a ele, preste atenção apenas a mim. — E para isso precisa que sua família o odeie? — Preciso deixar nosso estranhamento evidente. — Por que você não mata o maldito Smythe e resolve tudo de uma vez? — Não me tente. — Phin colocou a faca na cintura. — Sem os cães, não tenho provas do envolvimento dele. E não sei quem está trabalhando com ele. Até o momento, ele é mais útil vivo. — A si mesmo, podia admitir que, se tivesse escolha, preferia 118

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encontrar provas, pois desejava ao menos alguma chance de redenção. O sargento gesticulou para suas roupas. — Você não está exatamente vestido para dormir. Se vai caçar mais pistas, creio ter chegado aqui na hora certa. — Não. Você deve descer e encontrar uma cama. Mantenha os olhos e os ouvidos abertos. Nesta casa, você tem um dever, sargento: garantir que minha família fique em segurança. Gordon fez uma breve continência. — Sim, coronel. Até meu último suspiro. — Obrigado. Agora vá. E não bata em ninguém. Phineas esperou vinte minutos depois que Gordon saiu, antevendo a confusão que o criado criaria com a criadagem e dando-lhes tempo para adormecer. Então abriu a porta e esgueirou-se para o corredor. Ansiava por ir até o quarto de Alyse, explicar-lhe que sua grosseria tinha sido intencional e dizer-lhe que precisava dela, pelo menos para ter alguma esperança de não ser um completo fiasco como amigo, irmão e homem. Isso, no entanto, teria de esperar. Não sabia com quanto tempo contava e precisava caçar, como Gordon colocara. Tinha um alvo em mente: Donnelly. Beth podia considerá-lo atraente, e William, um irmão que substituísse o inútil que o sobrecarregava, mas Phineas não acreditava nisso. A vida de trabalhos caridosos de Donnelly havia começado apenas quando ele chegara a East Sussex. E devia haver uma razão para tanto. Até o momento, tinha pouco mais do que suspeitas e alguns fatos estranhos. Donnelly providenciara que o novo dique de irrigação fosse colocado em um lugar que aborreceria os vizinhos de Quence. Ele ficara sabendo do ataque dos cães e alegara desconhecimento, sem qualquer motivo aparente. Pior de tudo, era amigo tanto de lorde Charles Smythe quanto de lorde Anthony Ellerby. Não, não era muito. Ainda não. Mas havia também seus instintos de soldado. Se estivessem no campo de batalha, não viraria as costas para o visconde. Precisava de provas e pretendia remediar a situação aquela noite. Movendo-se em silêncio, desceu as escadas e caminhou descalço até a porta do gabinete de Donnelly. Estava trancada. Sinal de culpa? Não sabia, mas uma tranca não o deteria. Pegando a faca, deslizou-a entre a porta e o batente, empurrando para baixo. Com um clique, a porta se abriu. Simples. Ele entrou e fechou a porta. Donnelly mantivera a enorme mesa de carvalho de que Phineas se lembrava da infância, quando o pai de Alyse sentava-se ali. As janelas tomavam a maior parte das paredes à esquerda, enquanto atrás da mesa havia duas grandes estantes de livros; a terceira ficava na parede oposta. Ele começou pela mesa, abrindo uma gaveta por vez e examinando o que houvesse de interessante, sob a luz da lua crescente. Contabilidade da propriedade, correspondência de advogados e amigos, comunicados. Nada fora do comum. A frustração crescia, mas ele continuou procurando. Metade dos livros em uma prateleira parecia tratar das termas romanas espalhadas pelo sul da Inglaterra. Aparentemente, Donnelly tinha uma obsessão. Mais interessante era o mapa dobrado entre duas páginas de um desses livros. Puxou-o, desdobrando-o. A escala era de uma 119

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polegada para um quarto de milha, a mesma do fino papel que roubara de Smythe. Uma pesquisa geológica de Quence Park, considerando elevações, vegetação e fluxo de água, junto com marcas que ele não conseguia discernir no escuro. Phineas foi assolado pela raiva. Por mais solícito que fosse Donnelly em relação a Quence, não tinha o direito de fazer pesquisas sobre a propriedade de outro homem. Pôs o mapa no bolso. Quando voltasse para casa, poderia fazer sua própria pesquisa, combinando aquele mapa ao outro que conseguira de Smythe. Folheou o livro sobre a história da restauração da cidade de Bath. Para onde quer que se virasse ali, ruínas e termas romanas — a última coisa sobre a qual queria pensar. Fora lá que destruíra o irmão, e a si mesmo. Qual era a atração daquilo? Atração. Algo surgiu no fundo de sua mente. Algo sobre o que todos falavam durante o jantar. Pegou o mapa outra vez. Nesse instante, a porta do gabinete se abriu. Phin abaixou-se atrás da mesa. Quem quer que estivesse entrando, carregava uma vela. — Phin? Era a voz suave de Alyse. Graças a Deus! Phin levantou-se. — Sim, o coronel Bromley — respondeu lorde Donnelly. Maldição! Phineas escondeu-se outra vez. — Por que você diria algo assim? — perguntou Alyse. — Além de Phin ter passado os últimos dez anos combatendo os franceses, ele retornou para ajudar o irmão, e não para se tornar um salteador. — Ele fala francês. — Eu também falo. Assim como Beth. Isso nos torna companheiras do Francês? — Ele é o Francês. Tentando disfarçar o desconforto com tantas mentiras, Alyse olhou para o primo enquanto entravam no gabinete. Richard parecia certo do que dizia; ainda assim, não decidira confrontar Phin. Portanto, ele tinha apenas suspeitas, que queria que ela confirmasse. — Bem? — Richard apoiou os quadris na mesa e observou-a. — O que você quer que eu diga? Isso é ridículo. — Estou em uma posição que, em breve, pode render-me uma grande soma em dinheiro. Phin Bromley, com seu comportamento, pode facilmente pôr... a empreitada em risco. Preciso detê-lo. — E, ainda assim, ele está dormindo lá em cima. — Preciso de provas. Preciso provar que ele cavalga pelos campos, roubando coches. — Richard, por que está me contando isso? Mal tenho sua confiança... — Porque vocês dois costumavam ser amigos. Se ele fala com você, então fale comigo. — Eu não poderia fazer isso. Amizade significa mais do que isso. — E Phineas, então, significava ainda mais. O primo endireitou-se. — Como eu disse, tenho uma grande soma em dinheiro pronta para fluir para os 120

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cofres da família. E estaria disposto a compartilhar parte dela com você. — O quê? — Você me ouviu. Na verdade, se você me ajudar, oferecendo-me essa informação em particular, eu lhe darei dez mil libras, Alyse. Alyse mal conseguia respirar. Dez mil libras? Aquilo era mais do que seria capaz de juntar em uma centena de vidas. Poderia adquirir sua própria casa, contratar seus criados e jamais ter de ser acompanhante de alguém de novo. Os jovens de seu círculo de repente voltariam a aceitá-la. Uma rica e independente herdeira. Ela. — Considere isso, minha cara. E você estaria fazendo algo bom. Phineas Bromley é indesejável e inútil, especialmente para a própria família. E, se ele não parar, as coisas podem ficar piores. Para todos os envolvidos. Pense nisso. Richard passou por ela, apagando a vela, e saiu do aposento. Alyse sentou-se em uma poltrona. Dez mil libras. E já sabia o suficiente para ganhá-las. Tudo o que precisaria fazer seria trair Phin. Ele já lhe pedira para trair Richard ou os amigos dele. E não oferecera nada em troca. Nada que ela pudesse usar para conquistar a liberdade. Oh, precisava pensar! E não no meio do gabinete de Richard. Voltou para o andar de cima. Quando Phin chegara, ela estive-ra ansiosa para que ele a visitasse no meio da noite. E então, quando ele dissera aquelas coisas horríveis para William, quisera que ele subisse para conversarem. Agora, no entanto, não sabia mais o que desejava. Ou melhor, sabia, sim, o que desejava. Tudo o que permanecia incerto era se desistir de um valeria o preço do outro. Alyse estava sentada no velho tapete diante da pequena lareira. Com o queixo apoiado nos joelhos, observava as chamas enquanto refletia. A porta abriu-se e se fechou. Não era Richard. Ele já estivera ali e batera na porta antes de levá-la para o andar de baixo e fazer uma proposta que faria Judas corar. Ele — e Alyse sabia quem era sem olhar — sentou-se no tapete atrás dela. Acariciou de leve seus cabelos, fazendo-a arrepiar-se. Por um longo instante, permaneceu ali, sem falar nada. — Eu lamento — Phin disse, por fim. — Lamenta pelo quê? — Primeiro, por ser tão... horrível, como você colocou. Não tive escolha. — Não é para mim que precisa pedir desculpas. — Sim, eu sei. Smythe suspeita de que eu seja o Francês. E eu não queria que ele pensasse que William sabe o que estou fazendo. — Ainda assim, você magoou sua família. — É meu inferno, então. Mas eu devo desculpas a você também. Ela respirou fundo. Parte de si desejava que pudessem sentar-se daquela forma para sempre. — Vai pedir desculpas por me beijar ou por me levar para a cama? — Nenhum dos dois. Tudo, desde que voltei para cá, tem sido uma surpresa. E você é a melhor parte. Se havia algo que pudesse fazê-la sentir-se ainda pior e mais conflituosa do que antes, era ouvi-lo dizer aquilo. 121

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— Acho melhor você ir. — Acho que você deveria confirmar as suspeitas de Richard a meu respeito. — O que você quer dizer? — ela gaguejou, sem ousar virar-se para ele. — Eu estava no gabinete de Richard, procurando algo que pudesse explicar esta confusão. Não pretendia escutar a conversa, mas não tive muita alternativa. Ela enrubesceu. — Se o seu plano era ser gentil comigo ou seduzir-me para que eu fique em silêncio, seria melhor não ter dito nada. — Eu a envolvi nesta confusão. — Phin pôs a mão em seu ombro, virando-a de frente para ele. — Quero compensá-la. — Fazendo-me entregar você? Se você está tramando algum jogo, é bom que seja verossímil. — Estou falando sério. Dez mil libras, Alyse. Nunca mais servir a sua maldita tia. — E você enforcado. Phin meneou a cabeça, inclinando-se para roçar os lábios na testa de Alyse. Ela apreciou o gesto. Era como se ele não conseguisse se conter, como se precisasse tocála. — Isso não vai acontecer. — Então você vai fugir de volta para o Continente? Nunca mais vai poder voltar para casa. — E aquilo a perturbava bastante. — Preciso pedir que espere alguns dias até contar a Richard o que sabe. Pode me dar três dias? — Não vai pedir minha ajuda, ou quer que eu conte as coisas que sei? — Eu quero, mas não vou fazer isso. Já tenho inimigos suficientes, e não quero que você se torne uma. Apenas me conceda três dias, e eu farei o resto. Pode fazer isso? Ela supôs que aquilo podia ser uma manobra. A versão de Phin do amigo compassivo para fazê-la mudar de opinião. No entanto, sentia não tratar-se disso. O olhar de Phin era sério e perturbado. — Conte-me o que sabe — ela pediu. — Alyse, eu já lhe causei problemas suficientes. Se você me perguntar, eu vou contar. Mas quanto mais você quiser envolver-se, mais eu vou envolvê-la. Tenha cuidado com o que está pedindo. Alyse analisou o rosto de Phin por um longo momento. Ele lhe dera uma chance de escapar, removendo até mesmo um quinhão de culpa da questão. — Não quero ser usada, Phin. — Eu compreen... — Se você quer minha ajuda, peça. Sem truques, sem seduções e sem mentiras. Apenas peça. E me diga a verdade. Para sua surpresa, ele sorriu. O sorriso aberto e genuíno que tinha quando garoto, antes... do escândalo. Antes que tudo desse errado. — Não vou prometer não seduzi-la, mas juro que é apenas porque não consigo manter as mãos longe de você. 122

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— Posso aceitar isso — ela murmurou. — Ótimo. Phin inclinou-lhe o rosto e beijou-a, com suavidade a princípio, e depois com mais e mais... intensidade. Gemeu de encontro aos lábios de Alyse e, envolvendo-a com os braços, deitou-a de costas. — Não vai me contar o que sabe? — Ela arquejou quando Phin abriu os botões da camisola e acariciou-lhe o seio, circundando o mamilo intumescido. — Mais tarde — ele murmurou, baixando a cabeça. — Não consigo pensar agora. — Tomou-lhe o seio entre os lábios. Alyse revirou os olhos. Certamente, compreendia a incapacidade de Phin de pensar no momento. Não havia nada tão bom! — Phin... — Arqueou os quadris, enquanto ele erguia sua camisola até a cintura. — Levante-se — ele ordenou, retirando-lhe o traje. Ele voltou a beijá-la, antes de deslizar os lábios pelos seios, ventre e por entre as coxas. Ofegante, ela lhe agarrou os cabelos, sentindo-se em chamas. Aquele era Phin, seu Phin, e ele desejava estar ao seu lado. Era uma constatação poderosa... Sedutor e perigoso como ele era, Phin escolhera estar ali, com ela. Ele se sentou, afastando-se um pouco para tirar o colete e a camisa. Alguém fizera um novo curativo no ombro dele, Alyse reparou. Alguém mais o tocara. Esperava que tivesse sido o criado. — Venha aqui — ele gemeu. Alyse também se sentou. Phineas tomou suas mãos, guiando-as até o cós das calças. Com a respiração acelerada, observou-a passar a língua pelos lábios enquanto lidava com o fecho. Sobressaltou-se, semicerrando os olhos. — Isso o excita — sussurrou Alyse, trêmula. — Você me excita. Ela abriu os botões depressa, retirando-lhe as calças e admirando a masculinidade ereta. Phin envolveu-a com os braços, deitando-se e colocando-a sobre seu corpo. Beijou-a com ardor, provocando-a com a língua, pressionando o corpo excitado ao dela. Ela o queria dentro de si. — Phin... Com uma das mãos, ele a segurava pelos quadris, enquanto com a outra ajudou-a a abaixar-se sobre seu corpo. Suspirou, extasiado com a sensação maravilhosa e excitante de preenchê-la. Alyse gemeu, inclinando-se sobre seu peito. — Você não vai desmaiar, vai? — ele perguntou, e a voz profunda revelou divertimento. — Não. — Ótimo, porque não seria conveniente. — Apoiando ambas as mãos nos quadris de Alyse, ergueu-a e baixou-a de novo, arquean-do-se. Ela ofegou, repetindo o movimento, e ele arremeteu os quadris de encontro aos dela. O ritmo foi se intensificando cada vez mais, a urgência crescendo, até Alyse quase não poder mais respirar. Então ela estremeceu, largando-se sobre o peito de Phin. Abraçando-a, ele a acompanhou no êxtase, emitindo um gemido de prazer. 123

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Alyse ficou deitada sobre o corpo dele, até recobrar o fôlego. Então se ergueu um pouco. — Como está seu ombro? — Dói como o diabo. Que tal irmos para a cama? Assentindo, ela se levantou e tomou-lhe a mão para ajudá-lo a erguer-se também. — Continue me olhando assim e não conseguiremos chegar até a cama — ele murmurou, inclinando-se para beijá-la mais uma vez. Quando se endireitou, um cacho de cabelos castanhos caiu sobre a testa, fazendo-o parecer jovem, desalinhado e diabolicamente delicioso. Alyse sorriu. — Sua mente voltou a funcionar? — ela perguntou, deslizando em meios aos lençóis e virando-se para deixar espaço para Phin. — Funcionando mal. — Ele se deitou de costas e puxou-a de encontro ao peito, pondo a coberta sobre ambos. — Quem refez seus curativos? — Gordon. Meu criado. — Ainda desejando tocá-la, Phineas pôs a mão em seu ombro. — Ele disse que você fez um belo trabalho, e ele já me remendou o suficiente para saber. Ela riu. Não havia lágrimas ou pânico para Alyse Donnelly. Ela já vira o que o mundo tinha a oferecer para aqueles que... desapontavam. E continuava vivendo a vida da melhor forma possível sob as atuais circunstâncias. Deus, ela era uma alma corajosa! Mais do que ele. Se ela queria saber de tudo, ele lhe contaria. — Eu disse que flagrei Smythe com os cães — começou. — E ele negou outra vez esta noite. — Sim, eu percebi isso. Ainda é apenas a sua palavra. Ou a palavra do Francês. — Encontrei um mapa no gabinete de Richard que se encaixa no que roubei de Smythe. Dê uma olhada. — Esticou-se para alcançar as calças ao lado da cama, tentando não gemer de dor, e pegou o mapa no bolso, desdobrando-o. — O esboço de Smythe está em Quence, mas parece que as atenções estão focadas nas ruínas. — As velhas termas? — Sim. — Você tem algo além de um mapa que prove isso? — O que você é, uma advogada? — É você quem está arriscando o pescoço. Gostaria de acreditar que não o faz por causa de uma pista ou outra. — Entendo. Você quer ter certeza de que eu tenho um barco antes de pular no lago comigo. — Um barco e os remos. — Não tenho certeza do que eu tenho. — Phin... — Você pediu que eu fosse sincero. O desenho de Smythe mostra o que parece uma estrada, passando pelas ruínas, e diversas construções à margem. Além de um punhado de historiadores e pintores de paisagens, não consigo pensar em ninguém que 124

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se interessasse em viajar para vê-las. E isso não é um afluxo de pessoas suficiente para que se construísse uma estrada, muito menos infra-estrutura. — Ninguém pode construir uma estrada em Quence sem a permissão de William. — Pode, se William não for o dono de Quence. — O quê? — A propriedade pode ser perdida ou vendida. Alyse acomodou a cabeça em seu ombro bom. Phineas não conseguia lembrar-se de quando se sentira tão... confortável com uma amante. Mas também, ele e Alyse se conheciam havia anos. — Você acha que os cães, as pastagens inundadas e todo o resto tinham o propósito de forçar William a vender a propriedade? Para quem? Phineas respirou fundo. Para alguém que pedira para não se envolver, Alyse estava começando a fazer várias perguntas pertinentes. Mas ele dissera que seria sincero, e era o que faria. — Se eu fosse William e estivesse prestes a perder Quence, gostaria de vendê-la para alguém em quem confiasse, um sujeito familiarizado com o funcionamento da propriedade. — Richard, você quer dizer. — Alyse sentou-se, encarando-o. — Ele acabou de contar para você que espera a entrada de uma grande quantidade de dinheiro. Ser dono de Quence mais do que dobraria suas propriedades em East Sussex. Ela pensou naquilo por um instante. — É um grande passo, passá-lo de útil a um vizinho deficiente e criminoso. — Na sua opinião. — Incapaz de evitar, Phin esticou a mão a tomou-lhe o seio direito. — Pare, Phin. Isso é sério. — Eu sei. E sei que ele deseja Quence, seja por aquisição ou por herança. Imagino que cortejar Beth faça parte do plano para conquistar a amizade de William. A única coisa que não entendo é como ele planejou lidar comigo. Com certeza, independentemente do que houvesse entre nós, William passaria a propriedade para mim, antes de transferi-la ao marido de Beth. Sentiu Alyse sobressaltar-se. Seus instintos de soldado lhe diziam que ela sabia de algo, mas ficou em silêncio. Dissera que não lhe pediria nada, exceto que ela esperasse três dias antes de revelar a Richard o que sabia, e não quebraria a promessa. — Ele não sabia sobre você — disse Alyse após um instante. Phineas ergueu a cabeça para fitá-la. — Ele não sabia sobre mim? — Quando você chegou, ele pareceu bravo comigo porque eu nunca mencionei um terceiro irmão Bromley. Aquilo, sim, era interessante. — Ele ficou bravo, é? Boas notícias, já que pretendo deixá-lo ainda mais zangado. — Eu... Talvez eu saiba um pouco mais — ela ofereceu inesperadamente —, mas primeiro preciso pensar. 125

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Phin manteve a expressão impassível. — É justo. Alyse fechou um punho e socou-o nas costelas. — Ai! Por que diabos você fez isso? — Por que está sendo tão moderado, Phineas Bromley? — Porque fiz com que minha família desgostasse de mim, provavelmente mais do que antes do meu retorno. E eu vi a maneira como você me olhou na sala de música. Eu quero um aliado. Eu... preciso... de um amigo. — Respirou fundo. — E agora que a reencontrei, tenho medo de perdê-la. Alyse virou-se e tocou-o no rosto. — Você sabe, às vezes, ser muito gentil. E me faz esquecer de que estou sozinha. — Você não está sozinha. E nem ele estava. Alyse beijou-o de leve. Ele desejava devorá-la, mas permitiu que ela imprimisse o ritmo. Quando ela deslizou a mão por seu ventre, ele gemeu. Sim, um camarada podia ficar bem confortável com aquilo. Se não fosse morto antes. Quando Alyse despertou, Phin já tinha ido embora. Sentou-se. O único sinal de que ele estivera ali era a rosa vermelha que colocara sobre o travesseiro, ao seu lado. Com um sorriso, espreguiçou-se, deliciando-se com a sensação da pele nua contra os lençóis macios. Ele não devia ter partido havia muito tempo, já que o travesseiro que usara ainda estava morno. Ela dormira bem, especialmente considerando que, após a oferta de Richard, achara que não conseguiria dormir nunca mais. Ele teria as provas que queria em três dias, depois que conversasse com Phin a respeito do que ele queria que ela dissesse. Aparentemente, ela escolhera um lado em tudo aquilo, ainda que várias questões permanecessem no ar. Escutou a batida no piso. — Alyse! — Mas que inferno! — resmungou, jogando de lado as cobertas e levantando-se à procura de um vestido. Os Bromley estariam na casa, para o desjejum, e voltariam para Quence assim que William estivesse disposto. Mais por ela do que pela tia, ansiava por descer e fazer a refeição com eles. Com Phin. Fora um alívio ouvi-lo dizer que tivera uma razão para afastar-se dos irmãos. Porque, mesmo estando zangada e desapontada, não se sentira pronta para condená-lo. Após a noite que haviam passado, tinha outro motivo para estar satisfeita por ele não ser de fato quem demonstrava ser em público. Apressadamente, vestiu-se e saiu no quarto. No andar de baixo, bateu à porta da tia antes de abri-la. — Bom dia, tia Ernesta, Harriet — disse, ajoelhando-se aos pés da velha senhora para ajudá-la com os sapatos. — Por que está tão feliz? — E uma bela manhã — improvisou, controlando o sorriso. — Talvez para você. Você me deixou acordada metade da noite, com o barulho que fazia acima da minha cabeça. 126

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Oh, bom Deus! — Peço perdão, tia. Derramei um pouco de água e precisei enxugar, antes que penetrasse a madeira. — Você devia ser mais cuidadosa. Não quero sua falta de jeito deixando meu quarto úmido. Nem me mantendo acordada. — Serei mais cuidadosa. Alyse e a criada ajudaram tia Ernesta a se levantar, para que seguisse até a penteadeira e Harriet pudesse arrumar seus cabelos e maquiá-la. Inquieta e desejando descer logo, Alyse balançava os braços e caminhava pelo quarto. Ao ouvir som de passos do lado de fora, abriu a porta e olhou para o corredor. O criado de Phin, o sargento, passava por ali. — Volto em um instante — disse por sobre o ombro, saindo do quarto e fechando a porta. — Você. Gordon, não é? Ele se virou. — Sim. O que posso fazer pela senhorita? — Ph... O coronel Bromley ainda está na cama? — Não, senhorita. Está lá embaixo, tomando café. Estou indo fazer a mala dele. — Você serviu com ele na Península, não? — Sim. — Estufou o peito. — Ainda sirvo. E com orgulho. O coronel é um belo oficial. O melhor. Alyse pretendia perguntar-lhe a respeito de como era Phineas longe da confusão de East Sussex, mas o homem deixara aquilo bastante claro. As palavras, no entanto, lembraram-na de outra coisa e serviram para recolocar seus pés flutuantes de volta no chão. — Ele disse quando vocês devem voltar à Espanha? — Ainda não. Dentro em breve, imagino. Ele fica inquieto, sem uma batalha por perto. — Sem dúvida. — Alyse controlou a súbita vontade de chorar. — Não vou mais distraí-lo de suas tarefas — disse, virando-se. Phin dissera que ela não estava sozinha. Provavelmente quisera dizer que ela contava com a companhia dele para aquela noite. É claro que ele voltaria ao regimento. Ajeitaria a situação ali, o que envolveria destruir a relação com os irmãos para além de qualquer reparo, e partiria de novo para lutar, assim que garantisse que jamais poderia retornar para casa. Alyse, por sua vez, ganharia dez mil libras, mais do que suficiente para comprar o silêncio de um amante discreto, caso escolhesse um dia seguir esse caminho. Mas, de alguma forma, na noite anterior, quando imaginara seu futuro, vira Phineas nele. Garota estúpida, sussurrou para si mesma, voltando ao quarto da tia. — Não encha demais o seu prato — instruiu a tia, enquanto desciam as escadas. — Posso não ser capaz de aturar aquele homem por muito tempo, e seria rude se você se levantasse com o prato cheio de comida. Alyse quis perguntar se ela também comeria pouco, mas se controlou e assentiu. — Posso sentar-me entre vocês dois, caso prefira. 127

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— Sim, prefiro assim. Aquele homem merece um bom sermão. Ele... Oh. A hesitação de Ernesta era compreensível. Quando entraram na sala do desjejum, Phin estava de pé, diante do aparador, empilhando pão e presunto no prato. O apetite, no entanto, não foi o que perturbou a tia. Foi a farda. Ele dissera que pretendia usá-la de novo, e ali estava ele, com a casaca escarlate, adornada por medalhas e insígnias, as calças brancas e apertadas contra os músculos das coxas, as longas botas negras lustrosas. — Bom dia — ele as cumprimentou. — Bom dia. — Alyse esperou, mal notando que Beth e Richard já estavam à mesa. E então o olhar de Phineas encontrou o seu, caloroso e receptivo. Em uma fração de segundo, ele desviou os olhos e tomou um assento à metade da mesa. Ainda assim, durante aquele segundo, eles pertenciam um ao outro. — Quais são seus planos para hoje? — perguntou Richard, com a atenção voltada para Beth. Aquele interesse era uma manobra? Pretendia usar a garota para tornar-se dono de Quence Park? Se fosse assim, ele era mais monstruoso do que Phin conseguiria fingir ser, mesmo nos dias mais sombrios. Mas eram apenas conjecturas, e ela não tinha idéia de como Phin arranjaria provas... muito menos nos três dias que lhe pedira. — Vou voltar para casa com William — respondeu Beth. — E depois do almoço, lady Claudia, Janet Harving e eu vamos cavalgar. — Espero que as donzelas tenham companhia. Há um salteador percorrendo os campos. — Pensei que ele estivesse morto — comentou Phin. O sorriso de Beth dirigiu-se a Richard, e não ao irmão. — Está se oferecendo, Richard? — Certamente. — Ótimo. Então vá a Quence por volta das duas horas. — Estarei lá. — Você poderia ter me pedido — Phin intrometeu-se, com a boca cheia de presunto. — Não, obrigada — Beth falou com a voz fria. William, com o criado logo atrás, entrou na sala. — Bom dia para todos — disse, sem olhar para o irmão. Oh, aquilo era horrível. Se Phin estivesse errado sobre Richard e lorde Charles, e sobre o infortúnio que se abatia sobre Quence, jamais seria capaz de ajeitar as coisas com a família. E, se estivesse correto, a perspectiva era ainda mais preocupante. Alyse imaginava até onde ele iria a fim de proteger a família de uma ameaça. Ele era um soldado, e via as coisas em preto e branco. Vida ou morte. — Você parece bastante oficial, coronel — comentou Richard. — Vou sair para cavalgar. Não queria ser confundido com o maldito francês e arriscar-me a levar um tiro. Todo o sangue deixou o rosto de Alyse. Se aquilo tivesse sido um pouco mais direto, envolveria desafios para duelos. Ainda assim, Phin se comportava como se tivesse 128

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acabado de contar uma piada. — Casaca vermelha e cavalo amarelo — comentou Alyse, forçando uma risada. — Com certeza será notado. — Precisamente minha intenção. — Phineas olhou o prato dela, ao lado do seu. — Sem apetite esta manhã? Alyse não podia confessar ter sido proibida de apanhar um desjejum completo. — Não sobraram morangos — ela falou. — Ah. Se me dão licença, acho que vou procurar algo com o que me ocupar. Meu criado trouxe-me o cavalo, de modo que me despeço. Adieu. — Ele se afastou da mesa e saiu do aposento. — Peço desculpas pelos modos do meu irmão — disse William, dirigindo-se a ninguém em particular. — Acho que está tendo dificuldade em adaptar-se à vida civil. — É compreensível — comentou Richard. — Ele serviu ao país por dez anos. Não há por que se desculpar. De repente, Alyse sentiu-se sozinha de novo, e em uma armadilha. Todos desgostavam de Phineas e o rejeitavam. Embora ele tivesse planejado isso, ela não tinha o luxo da ignorância. Olhou para seu prato. A meia dúzia de morangos que estivera no prato de Phin agora estava no seu. O homem tinha a habilidade de um mestre ilusionista. E pensara nela, mesmo tendo tanto com o que se preocupar. Sorrindo, mordeu uma das doces frutas. Ao erguer o olhar, percebeu que William fitou seu prato e então seu rosto. E ela não achou que ele estivesse desejoso de morangos. Quanto a ela, o que desejava mesmo era o homem que lhe dera as frutas. — O que vamos olhar agora? Phineas fechou os olhos por um instante. Deveria ter feito aquilo sozinho. Considerando o local, não se sentia disposto a conversar. O soldado em si, no entanto, sabia haver uma boa possibilidade de que estivesse sendo observado, se não caçado, de modo que quisera mais um par de olhos ao seu lado. — As ruínas. — Acenou para o declive, depois da clareira. — Até lá embaixo? — Sim, até lá embaixo. Quero dar uma olhada no perímetro. — Ah. Não creio que os romanos estejam armando um cerco, se é isso que o preocupa. — Você é um sujeito divertido. Apenas mantenha os olhos abertos, sargento. — Sim, coronel. Phineas queria comparar o terreno com as anotações no mapa de duas partes, mas não na crista do desfíladeiro, onde qualquer um com uma luneta pudesse ver o que estava fazendo. Aquilo teria de esperar até que descesse até a clareira e as ruínas. O problema era que não queria se aproximar. Era ridículo. Enfrentara batalhões de soldados franceses, cavalaria e artilharia, linhas de canhões. E nada lhe provocara arrepios como aquelas velhas ruínas. Melhor tratar logo do maldito assunto. Endireitando os ombros, incitou Açafrão, e desceram até o centro da clareira, com Gordon e Galante logo atrás. 129

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— Era um lugar grande — o sargento comentou, inclinando-se para passar a mão em uma das colunas de pedra remanescentes. — E é quente aqui. As fontes de água quente ainda jorram? — Sim. Cuidado com o chão. É alagadiço aqui, onde os lírios estão crescendo. — Hum. Provavelmente no inverno. Você vinha nadar aqui quando garoto? — Sim. — As águas deviam ser boas para seu irmão, não? Se você conseguisse trazê-lo até aqui... — Na época, William não estava inválido. Ele podia descer sem ajuda. Phineas desmontou e caminhou até um muro tombado, longe da parte principal das ruínas. Havia acontecido ali. Supunha que seria devastadoramente poético, caso imaginasse que ainda via marcas de sangue. Lembrava-se, no entanto, de não ter visto sangue algum naquele dia. Apenas William, deitado em um ângulo estranho, com o rosto branco e a boca aberta, como se gritasse, ainda que nenhum som emergisse. — Coronel? Coronel? — O quê? — exclamou, voltando ao presente. — Você está bem? — Sim. Estou ótimo. E só que quase matei meu irmão neste local, e não venho aqui desde então. Detesto este lugar. — Circundou lentamente o muro. — Então por que estamos aqui? — Porque é importante. — Ainda se sentindo quase... tonto, como se estivesse em um pesadelo, ele pegou os dois mapas do bolso. Esticando o de Richard por baixo, deslizou o de Smythe por cima. Era uma combinação melhor do que a que conseguira no escritório do agrimensor, ainda mais precisa. As margens do riacho haviam se deslocado nos últimos anos, mas o curso mais recente estava cuidadosamente anotado. — Você já fez mapas de terrenos para mim antes, Gordon. Venha olhar e diga-me o que acha. O sargento desmontou e aproximou-se dele. Phin entregou-lhe os mapas, que Gordon analisou por alguns instantes. — É aqui — Gordon falou, virando-se com os mapas nas mãos —, mas não é. — Por que não? — Phineas tinha sua própria teoria, mas desejava uma segunda opinião. — As ruínas se foram. E há um prédio novo no lugar. E outros dois ou três aqui, no alto do monte. E uma estrada grande unindo todos. — Olhou para a clareira acima e para baixo outra vez. — Por que alguém iria querer construir uma casa no meio de uma maldita fonte de água quente? — Não é uma casa. São termas. E eu imaginaria que as outras construções sejam hospedarias, ali em cima, onde o terreno é firme o ano inteiro e de onde teriam uma vista. — De que diabos se trata isso, coronel? Phineas suspirou, controlando a crescente frustração e a raiva. Sabia como aproveitar aquelas emoções, como guardá-las e nutri-las até que pudessem ser usadas — com resultados decisivos. 130

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— Na minha opinião — ele pegou os mapas de volta e dobrou-os —, este é o princípio de uma outra cidade como Bath. — Bath saiu de moda. — Sim. — Phineas olhou para o sul. Do fundo da clareira, tudo o que podía ver era o aclive, mas ao topo, havia campos, árvores e rios. Para além, o mar. E Brighton. — Imagine um lugar onde é possível banhar-se nas águas, entre Londres e Brighton. Não um local para instalar-se, jogar cartas e ficar velho e senil, mas apenas para passar alguns dias e então seguir em frente. — Santo Deus! — Ofegou Gordon. Brigthon estava se tornando muito popular, principalmente graças à obsessão de Prinny em construir para si mesmo um palácio lá. Além disso, era um ponto de partida para as Américas, para a África ou ainda mais longe. — Esses planos... — disse o sargento, gesticulando para os mapas. — Seu irmão não faz parte deles. — William não sabe de nada a respeito disso. — Isso é coisa de Donnelly? — Começa a parecer que sim. — Phineas guardou os mapas no bolso e caminhou até Açafrão. — Por que Donnelly não fala com seu irmão, e eles se tornam sócios? — Porque o dinheiro está nas terras. O alcance do que começara a decifrar o atordoava. Esse era um plano que, uma vez iniciado, levaria anos até se tornar realidade. Não era de surpreender que Donnelly e Smythe ficassem satisfeitos com um ataque de cães aqui e uma inundação nas pastagens acolá. Eles podiam ser pacientes. Uma vez que tivessem assegurado as terras, haveria anos de planejamento e construção adiante. — Então vamos matá-lo? — Ainda não. Não posso matar um visconde, mas posso matar um ladrão. Infelizmente, preciso primeiro provar o que ele é. — Claro que havia uma segunda opção. Phineas Bromley poderia não resolver o assunto com uma pistola, mas conhecia alguém que faria isso. O Francês. Por mais satisfatório que isso pudesse ser, no entanto, a parte dele que queria o respeito da família sabia que precisava de provas. Tudo o que tinha, no momento, eram algumas conversas sobre fontes de água quentes, alguns infortúnios questionáveis e um mapa. Dificilmente o suficiente para obrigar Donnelly a confessar. Puseram-se a caminho de casa, e foi quando outro pensamento lhe ocorreu. Destruir Donnelly salvaria Quence, mas duvidava de que um visconde encarcerado estivesse disposto a entregar dez mil libras à prima, qualquer fosse o acordo entre os dois. Alyse seria deixada sem nada outra vez ou, na melhor das hipóteses, cuidando de uma mulher com um filho desgraçado e encarcerado. — Maldição — resmungou. — O que deixa o senhor amargo agora? — Uma escolha entre duas caixas. Em uma, há uma cobra venenosa. — E na outra? 131

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— Minha maldita consciência. — Era mais do que aquilo, mas não sabia como exprimir-se. Era tudo uma maldita confusão. A única coisa que sabia era que precisava de ajuda. Felizmente, tinha ajuda à espera, ali bem perto.

Capítulo V

Richard entrou no aposento matutino. — Alyse, pode vir aqui um instante? Apreensiva, ela se levantou, deixando o bordado de lado. — É claro. — Busque um chá de hortelã para mim — disse a tia. — Vou mandar que alguém traga — Richard falou, afastando-se da porta e liderando o caminho até as escadas. — Saunders, peça a alguém que leve uma xícara de chá de hortelã para a sra. Donnelly. — Sim, milorde. — Venha comigo, Alyse. — Richard gesticulou para que ela o seguisse, subindo as escadas até o primeiro andar. — Ainda não sei de nada — ela falou de repente. — Eu só o encontrei no desjejum, e você viu como ele foi embora depressa. O... — Eu sei, eu sei. Não se preocupe. Ele caminhou até a ala oeste da casa, onde ficavam os quartos. Alyse estava inquieta. Richard jamais demonstrara qualquer afeto por ela, mas, se ele fosse o vilão que Phineas alegava, supunha poder esperar qualquer coisa. Se tentasse atacá-la, no entanto, descobriria que ela não deixaria de reagir. Quando ele parou diante de um dos quartos de hóspedes, seu pulso acelerou, e ela recuou. — O que é isso? — perguntou, fechando os punhos, pronta para lutar ou fugir. — Ocorreu-me que oferecer um preço generoso por algo é bom e perfeito, mas, ainda assim... intangível. — Ele virou a maçaneta, abrindo a porta. — Entre. — Eu... — Minha mãe está no seu antigo quarto, mas este aqui tem uma bela vista para o jardim e para a clareira. O que você acha? Com cautela, Alyse seguiu-o para dentro do quarto. E parou. Todas as suas coisas estavam ali. O espelho, a cama e a penteadeira, misturados à mobília que já estava no local. — O que... 132

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— É seu, se lhe agrada. Seu novo quarto. Gosta? — Eu... sim, eu gosto — ela gaguejou. — Mas... por quê? — Considere um... adiantamento. Um gesto de confiança. — Virou-se para sair do quarto, mas a encarou de novo. — Quase me esqueci. Mary vai assumir suas tarefas com mamãe, e vai ajudar você também. Já instruí os criados que a égua Snowbird deve ser mantida para seu uso exclusivo. — Isso é... ah... muito bom — Alyse disse, relutante em abandonar completamente suas suspeitas. — Mas... e se acabar acontecendo de eu não poder provar nada a respeito de Phin? E se ele não for o Francês? — Então você vai olhar seu antigo quarto no sótão e desejar que ainda pudesse ser seu. Descanse. Aproveite o dia. — Ele fechou a porta, deixando-a sozinha. Alyse olhou para a porta por um momento. A ameaça deixara bastante espaço para a imaginação, mas ela a compreendeu. Se não fizesse o que ele pedia, o que viria em seguida seria pior do que qualquer coisa que já tivesse experimentado. Sentando-se na cama, percebeu que era bem mais macia e confortável do que a do sótão. Ela não precisava perder esses inesperados presentes. Phin queria que ela revelasse o segredo a Richard. Porém, se aquilo representasse a prisão dele, não estava certa de ser capaz de fazê-lo. Aquilo poderia custar a vida de Phin. Por outro lado, as coisas não ditas, piores do que o sótão, poderiam matá-la. Sem casa nenhuma? A vida nas ruas de Londres? Se a própria família a pusesse para fora, ninguém a contrataria como governanta ou acompanhante. E o dinheiro que tinha à mão apenas adiaria o inevitável. Queria pensar que uma aliança com Phin a ajudaria, mas não pretendia confiar o futuro à idéia de que abandonasse o Exército por ela. Deitou-se na cama nova. Se Phin jamais tivesse voltado para casa, nada daquilo teria acontecido. Ainda estaria no sótão, mas não teria que pensar em passar o inverno ao relento, em algum lugar. Teria tido o tempo de que precisava para escapar de lá quando estivesse pronta. Se pensasse naquilo logicamente, Richard estava tentando intimidá-la. Será que isso significava que ele suspeitava de sua lealdade? Ou estaria ele tão desesperado pela resposta que queria que a pressionaria a mentir, apenas para obtê-la? Hum. Era melhor olhar para aquilo como um problema que poderia ser resolvido, em vez de uma ameaça à sua contínua... o que, felicidade? Exceto que estava feliz agora por Phin estar de volta. Sempre apreciara aquela amizade, e ficara zangada quando as ações dele e as advertências de seus pais tinham acabado por separá-los. Agora, no entanto, era mais do que amizade. Phin parecia parte de sua vida. Uma parte importante. Perguntava-se se uma soma de dez mil libras o convenceria a ficar. Poderia perguntar-lhe. E precisava avisá-lo de que estava em outro quarto antes que ele aparecesse no meio da noite e não a encontrasse. Mary estaria no sótão, o que seria desconcertante. Conteve um sorriso inesperado. Sentando-se, olhou pela janela a tempo de ver Richard cavalgando em direção a Quence. Bem, poderia ficar no quarto, desejando falar com Phin, ou poderia fazer algo que o ajudasse. Ele fizera uma busca no gabinete de Richard, mas fora no escuro e obviamente sem muito tempo. Ela teria ao menos uma hora. Se fosse expulsa da casa dos Donnelly, que fosse ao menos por algo que tivesse feito, e não por ser incapaz de tomar alguma atitude. Ignorando o ritmo rápido de seu 133

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coração, levantou-se, saiu do quarto e desceu as escadas. Na sala matutina, escutou tia Ernesta queixando-se. O fato de que, pela primeira vez em quase dois anos, não precisava sentar-se e ouvi-la, no entanto, era divino. Se aquela fosse aquela apenas uma condição momentânea, e tivesse que retomar sua vida no sótão, seria grata por aquilo. Tocou os lábios ao entrar no gabinete. Na verdade, não só por aquilo. Em silêncio, fechou a porta. Onde diabos teria Phin se escondido na noite anterior? O único esconderijo parecia ser sob a mesa. Céus! Ele estivera tão perto, sem que ela ou Richard tivessem percebido. Claramente, ele não sobrevivera a dez anos de guerra por acaso. Sentou-se à mesa. Devagar e com cuidado, abriu as gavetas, uma a uma, olhando o interior. Se o primo a apanhasse ali, não teria chance de dormir uma única noite no novo quarto. Nada. Comprimindo os lábios, foi até a estante. Livros sobre Bath e história romana, almanaques, vários títulos sobre jardinagem e arquitetura. A maior parte dos livros a respeito do campo pertencia a seu pai. Já os outros deviam ter sido trazidos por Richard. O primo parecia ter uma obsessão por termas romanas. Primeiro, ficara todo agitado quase dois anos atrás, quando ela mencionara as ruínas em Quence Park. E então, quando decidira residir em Donnelly Park, em vez de ficar em Halfens, falara do desejo de ver as ruínas quase que diariamente. Alyse ficou paralisada. Tinha sido apenas um interesse inocente. Com certeza, Richard não planejara nada sinistro quando decidira instalar-se com a mãe em East Sussex. Aquilo não tinha acontecido porque mencionara as ruínas das termas para ele, quando ainda residia com a horrível tia-avó Stevens, em Hereford. Quando o primo havia acabado de decidir que ela seria a acompanhante da mãe dele. Meneou a cabeça, recolocando os livros na prateleira. Não, não, não! Era uma coincidência. A mudança para East Sussex não tinha nada a ver com ela, e nada a ver com qualquer coisa na propriedade dos Quence. Mas ela queria contar a Phin a respeito das coincidências? Ele gostaria de saber. Se não fosse apenas acaso, aquilo tudo podia ser culpa sua. Os problemas em Quence, e até mesmo o retorno de Phin. Bem, não se lamentaria por ter provocado o retorno de Phin. — Vou chamá-la, milorde. — Ela escutou a voz de Mary, seguida pelo som de alguém se apressando pelas escadas. Oh, bom Deus! Richard não poderia já estar de volta. Droga! Conferindo se tinha deixado o gabinete arrumado, Alyse entreabriu a porta e espiou em direção ao corredor. Pôde apenas avistar o vestíbulo... e lorde Anthony Ellerby ali, de pé. Não havia modo de deixar o gabinete sem ser vista. Fechou a porta e virou-se. A janela. Apressando-se, destrancou-a e abriu-a. Sem dar-se temrjo para pensar, sentou-se no parapeito e passou as pernas para o outro lado. Tomando um impulso, saltou e aterrissou na grama. Esticando-se, empurrou a janela, conseguindo fechá-la. Correu até a frente da casa, e então passou a caminhar com calma. Subiu os degraus e abriu a porta. — Oh! — exclamou. — Lorde Anthony! Estava passeando pelos jardins. Não tinha idéia de que estava aqui. Com um sorriso, o rapaz tomou-lhe os dedos e curvou-se. 134

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— Fico feliz que esteja aqui. — Receio que Richard tenha ido cavalgar com sua irmã e Beth. — Eu sei. Estava imaginando se conseguiria persuadi-la a cavalgar comigo. Ela disfarçou o espanto. Saberia lorde Anthony que ela ganhara alguma liberdade? Se ele estivesse envolvido naquilo, talvez estivesse tentando conquistá-la, após as ameaças de Richard. Bem, poderia fazer suas próprias perguntas enquanto evitava responder às dele. — Ficaria encantada. Deixe-me subir e trocar de roupas. — Tentarei entreter sua tia enquanto a aguardo. Ao subir as escadas depressa, quase se chocou com Mary. — Santo Deus! — Estava procurando a senhorita — disse a criada, nervosa. — Eu estava no jardim. E melhor que vá até a sra. Donnelly antes que ela fique impaciente. Mary deu-lhe um sorriso dolorido. — Obrigada, senhorita. Então ela conquistara alguma liberdade, por mais temporária que fosse, à custa de outra pessoa. Se acabasse recebendo as dez mil libras, levaria Mary com ela, para longe daquele lugar. Assim como Saunders, o mordomo. Suas roupas também tinham sido levadas para o quarto novo e, ainda que não se houvessem tornado mais elegantes ao serem transportadas por um lance de escadas, ela notou que se importava menos com isso. Abotoou rapidamente o vestido verde de cavalgar, calçou as botas e apressou-se escada abaixo. Lorde Anthony estava ouvindo alguma reclamação sobre rigidez nas juntas quando ela entrou na sala. — Estou pronta — disse, sorrindo por saber que tia Ernesta não ficaria feliz ao vêla deixar a casa sem pedir permissão. — Leve um criado com você — disse a tia. — Se você arruinar-se pela segunda vez, ninguém vai querer se relacionar com nenhum de nós. Alyse preferiu assentir, em vez de anunciar que fora arruinada várias vezes por Phineas Bromley. — Voltarei logo. — Sim, vá, menina ingrata. Winston selou a égua branca, Snowbird, e ajudou-a a montar. Achava que a égua fora comprada como um presente para Beth, mas, aparentemente, seus planos não eram os únicos que estavam mudando. Depois que um dos cavalariços surgiu, montando outro animal, lorde Anthony gesticulou para que Alyse os conduzisse pelo caminho que margeava o pequeno lago. — Você monta bem — Anthony disse, emparelhando com ela, enquanto Winston os seguia. Bom Deus, levara quatro anos para conseguir sair com um acompanhante outra vez. — Obrigada. Até poucas semanas atrás, eu não tinha a oportunidade de montar há um bom tempo. 135

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— Você teve uma boa dose de infortúnio em seu caminho, não? — Alguma — concordou, mantendo em mente que estavam ambos em busca de informação. — E alguma bondade também. — Está se referindo ao fato de Richard tê-la abrigado. — Sim. — Já pensou no seu futuro, caso Richard peça a mão de Beth? Alyse sabia o que ele queria dizer; Beth se tornaria a senhora da casa, e provavelmente seria a escolha de Richard para a acompanhante da mãe. Pobre Beth. Porém, não era a isso que lorde Anthony se referia. — Estou certa de que Richard encontraria um local na casa para mim — mentiu. — Somos uma família, afinal. — É claro. No entanto, é um lugar que você desejaria? — Por que me pergunta isso, milorde? — Anthony, por favor. Já nos tornamos amigos, não acha? Não por sua definição de amizade. — Sim, é claro. Anthony, então. — Muito bem. — Ele sorriu. — Então me conte, Alyse, qual é o seu lugar favorito no campo? — Gosto muito do lago. — Hum... E há alguma ruína romana nas terras dos Donnelly, ou as últimas estão em Quence Park? De novo, as ruínas eram o tópico de interesse. Phin suspeitava de Smyhte e de Richard. Estaria lorde Anthony interessado apenas porque todos pareciam estar, ou haveria um terceiro membro naquela conspiração? — Apenas em Quence Park. Há alguns velhos túmulos nas terras de seu avô, que podem preceder qualquer ruína romana. — Sim, já os vi. Você conhece história antiga, então. — Apenas o que aprendíamos, quando crianças, após sermos pegos brincando nas velhas termas. — Você era uma criança aventureira. Fale-me sobre as condições dessas termas. Quantas piscinas separadas há ali? — Ainda não as viu? Pensei que Richard tivesse levado você e lorde Charles para cavalgar por Quence. — Oh, fizemos nosso passeio, mas você conhece o lugar. Tenho certeza de que tem informações de que nenhum de nós dispõe. — Deveria perguntar a lorde Quence, ou a Beth, ou a Phin. As termas são deles, afinal. Um músculo sob o olho esquerdo de Anthony saltou. — Eu poderia achar que você está evitando a pergunta — ele falou, com um sorriso. — Tudo o que estou tentando evitar — ela respondeu, fitando-o — é discutir algo 136

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sobre o que tenho muito pouco conhecimento. Pergunte-me sobre a moda em Paris ou sobre quem está interpretando Ofélia e Hamlet no teatro, e serei toda informação. Ela o teria aborrecido? Ou ele desconfiaria que Alyse sabia mais do que estava disposta a dizer? Lorde Anthony riu. — Uma boa réplica. Diga-me então, como uma antiga moradora de East Sussex, quem suspeita que possa ser o salteador francês? Oh, céus! Ela realmente caíra no fogo. — Eu cresci aqui, mas, antes de retornar com Richard, receio ter ficado ausente quase cinco anos. Não sei nada a respeito de nenhum francês, mas isso não significa que não haja um rondando por aí. Se é que lorde Charles não o matou, como alega. — Não está curiosa a respeito da identidade dele? — Apenas por ele estar com as minhas pérolas, e eu as querer de volta. Do contrário, só gostaria que ele fosse embora daqui. — E isso é tudo o que tem a dizer sobre o assunto? — Receio que sim. Tem alguma idéia de quem ele pode ser? — Tenho sim, mas prefiro não dizer nada sem provas. — Se sabe quem é, por que está perguntando a minha opinião? — Você é uma bela jovem, que se comportou de forma tola, Alyse. — Ele esticou o braço e puxou Snowbird ao parar ao seu lado. — Sob as circunstâncias certas, você poderia ser muito útil. Do jeito que as coisas estão, é do jeito que podem ficar, sugiro que não brinque com a sorte. — Liberou as rédeas do cavalo. — Podemos tratar do assunto da maneira que considerarmos mais eficiente, de forma que suponho que o momento para que você seja mais útil é... agora. Eles matariam Phin. E talvez William também, e até mesmo Beth, caso ela não concordasse com os planos de Richard. Alyse sentiu-se enjoada. Tudo por causa de algumas ruínas romanas? Por quê? Mal conseguia acreditar naquilo. Ainda assim, seriam as crenças deles e as intenções deles que contariam. Respirou fundo. — Richard disse que queria provas. E todos vocês me ameaçando não vai garantirlhes isso. Se querem provas, preciso de alguns dias. E talvez de tempo para cavalgar com Phin, e não com o senhor, lorde Anthony. — Ah. Então agora não somos amigos -— ele falou tranqüilamente. — Continue sendo útil, Alyse. Ou teremos que encontrar outra coisa com a qual ocupar seu tempo. — Os olhos baixaram até seus seios. — Imagino que haja muitas maneiras de ser útil. Alyse virou Snowbird em direção à casa dos Donnelly. — Winston, lorde Anthony nos deixará agora. Por favor, leve-me para casa. — Sim, srta. Alyse. O que queria fazer era sair e procurar Phin, mas, ao mesmo tempo, não sabia onde estava lorde Charles, ou o que faria lorde Anthony agora. Se pensassem que tinha ido contar a Phin o que estava acontecendo, poderiam simplesmente atirar nele de novo. E, dessa vez, ele talvez não tivesse tanta sorte. Ainda assim, tinha muito poucas alternativas. Não podia enviar a Phin uma carta porque Richard ficaria sabendo, mesmo que não conseguisse dar um jeito de lê-la. Franziu a testa, olhando por sobre o ombro e avistando Anthony à distância, cavalgando em direção à propriedade do duque de 137

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Beaumont. — Mudei de idéia, Winston — falou, assim que o homem sumiu de vista. — Gostaria de ir até Quence visitar meus amigos. — Muito bem, senhorita. E, se posso dizer, é bom vê-la cavalgando outra vez. — Obrigada, Winston. É bom cavalgar de novo. — Por quanto tempo durasse. O que seria ao menos até que conseguisse alcançar Phin. Provas podiam ser coisas bastante elusivas. Na guerra, ninguém tinha tempo para aquilo. Uma evidência serviria, ou mesmo um instinto, se uma decisão precisasse ser tomada com agilidade. Aquele, no entanto, era um tipo diferente de guerra. Phineas inclinou-se sobre a porta da baia de Ajax e deu-lhe uma maçã. — Acho que vamos exercitá-lo um pouco esta noite. — Esfregou o focinho do animal. O nível de provas que necessitava era inversamente proporcional ao nível de fé que tinham nele as pessoas a quem precisava convencer. Dessa forma, precisaria de um bom bocado de provas. E até aquele momento, continuava incerto sobre o quanto queria contar à família. William não estaria disposto a um confronto violento com ninguém. E o que o impedia de tomar o assunto nas próprias mãos era o desejo de... o que, perdão? Aceitação? — Coronel, alguém se aproxima — avisou o jovem Tom. Phineas saiu do estábulo e avistou uma égua branca aproximando-se, com outro cavaleiro atrás. Reconhecendo de imediato a amazona, seu coração se acelerou. — Alyse. — Adiantou-se para apanhar as rédeas do animal. — Phin, ajude-me a descer. Não tenho muito tempo. Ciente de que o local era visível da maioria das janelas da casa, Phineas passou as mãos pela cintura de Alyse e ajudou-a a descer. Foi necessário todo o seu autocontroie para não abraçá-la e beijá-la. — O que a traz aqui? — perguntou, atentando-se à proximidade do criado. — Vim ver seu cavalo amarelo. Fiquei inexplicavelmente encantada com ele. Winston, fique aqui com Snowbird, por favor. — Sim, senhorita. Alguns dias antes, ele não ousaria deixá-la entrar no estábulo. Agora, no entanto, não mantinha segredos de Alyse. Ofereceu-lhe o braço, tentando ignorar a contração de seus músculos enquanto ela o aceitava. — Açafrão vai deliciar-se com sua visita. Assim que entraram no estábulo, ele a empurrou de costas contra uma pilastra e beijou-a. — Assim é melhor — sussurrou de encontro aos lábios doces. Ansiava por ela. Ela envolveu seu pescoço. — Bom Deus — murmurou, olhando por sobre o seu ombro. — Ele parece capaz de comer crianças e pequenos animais. Phineas sorriu. 138

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— Esse é Ájax — disse, sabendo, sem precisar olhar, o que chamara a atenção de Alyse. — Na verdade, ele é bastante cavalheiresco. A menos que você esteja falando sobre mim, nesse caso, é melhor tomar cuidado. Alyse aninhou o rosto em seu ombro. O desespero naquele toque era um pouco alarmante. — Podemos conversar aqui? — ela perguntou em voz baixa. Então ela não fora até Quence atrás apenas de beijos. Respirando fundo, ele recuou alguns centímetros. — Sim, podemos conversar aqui. — Algumas coisas aconteceram hoje. — Para sua surpresa, uma lágrima rolou pelo rosto de Alyse, e ela a enxugou depressa. — Acho que pode ser culpa minha. — Como assim, culpa sua? Isso é ridículo. — É melhor que eu diga logo. Richard foi me ver quando eu morava em Hereford. Mencionou estar em dúvida entre fixar moradia em Halfens ou na casa dos Donnelly. Já que eu havia vivido em ambos os lugares, queria saber qual dos dois eu achava que seria melhor para ele. Durante a conversa, mencionei as ruínas romanas, em Quence. Ele ficou muito interessado. Logo depois, ele me tirou da casa de tia Stevens para que eu acompanhasse sua mãe, e então nos mudamos para Donnelly. Ele jamais teria sabido sobre as termas se eu não estivesse tentando tão desesperadamente ser interessante. — Não é culpa sua, Alyse, pelo amor de Deus! Você mencionou algo interessante. A maioria das pessoas não teria tido a ideia de arrancar o vizinho da propriedade e transformar as fontes em um recanto para os aristocratas que viajam entre Londres e Brighton. O rosto vermelho de Alyse empalideceu. — Ele pretende fazer isso? — Sim. Coloquei os dois mapas juntos, usei alguma lógica e fiz algumas conjecturas, mas isso tem mais sentido do que qualquer outra coisa. Tudo de que preciso agora é de alguma maldita prova. — É isso o que eles querem também. Rapidamente, ela falou sobre o novo quarto, o cavalo, o passeio com lorde Anthony e as ameaças. O sangue deixou-lhe o rosto enquanto ele escutava. Os desgraçados podiam ameaçá-lo, mas ninguém poderia ferir sua família. E isso incluía sua Alyse. Sua Alyse. Não sabia quando aquilo acontecera, mas era assim que pensava nela agora. E de tudo o que dissera, a parte que mais o revoltava era a sugestão de lorde Anthony sobre as maneiras como poderiam torná-la útil. — Phin? — Ela o tocou no braço. Phineas sobressaltou-se. — O quê? — O que você vai fazer? — Entrar e pegar minhas armas — disse, passando por Alyse. — Você não pode matar ninguém. — Ela lhe agarrou o pulso. — Não temos provas, lembra? — Não vou matar Ellerby. — Ele se soltou. — Vou só me certificar de que a única maneira de conseguir levar uma mulher para a cama seja na imaginação dele. 139

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— E depois você vai para a prisão, ou ser deportado, ou enforcado. O que será de sua família? Phineas deteve-se, esforçando-se para respirar normalmente. Não era nem na família em que estivera pensando. Era nela. — Vou correr o risco. — Não! Não. Eu não vou permitir. — Não vai permitir? — ele indagou, fitando-a. — Ainda temos alguns dias, Phin. Nada mudou, a não ser o fato de eles terem revelado algumas intenções. Isso pode apenas nos ajudar, não é? Ela tinha razão. Droga! — Eu não quero que volte para lá. Você fica aqui. — E perder tanto a pouca confiança que Richard tem em mim quanto as dez mil libras? Acho que não. — Se eu vencer, ele não está em condições de dar-lhe nada. — Eu sei disso. O ritmo do coração dele se alterou. Ele o sentia mais... vivo. Mais forte. Mais protetor. Soube por que e quis dizer-lhe em voz alta: Eu amo você, Alyse. Eu amo você, eu amo você, eu amo você. — Você é uma boa amiga — optou por dizer, a voz rouca. — Acho que chegou a hora de parar de esperar pelo que vão fazer e partir para o ataque. — E como faremos isso? — Usaremos nosso salteador. — Phin, eles vão matá-lo! Não vão precisar provar que você é o Francês porque terão seu cadáver para mostrar ao mundo. — Morrer não está nos meus planos. Aproximando-se, Alyse agarrou-lhe a lapela. — Tem certeza disso? Porque você parece ter decidido que a única maneira de consertar a situação com William é salvar Quence Park e ser morto no processo. Talvez tudo tivesse começado mesmo assim. Alyse o conhecia incrivelmente bem. Phineas sorriu. — Descobri recentemente que tenho várias coisas pelas quais desejo viver. — Ah, tem? Ele a beijou suavemente. — Sim, eu tenho. — Então não tente fazer isso sozinho. — Não vou prometer nada, mas tenho algumas idéias. Falo com você nos próximos dias. Tente manter meu segredo até lá, se puder. Mas caso isso comprometa a sua segurança, conte-lhes tudo. — Eles esperam que eu ganhe a sua confiança. Sugiro que você vá me visitar. — Como eu poderia recusar esse convite? — Ele sorriu. 140

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— Hum. Snowbird e eu precisamos voltar antes de Richard, ou ele pode pensar que Anthony me deixou em pânico e que eu corri para pedir sua ajuda. — Ela fez uma careta. — O que eu fiz. — Você veio até aqui com informações necessárias. Ainda estou para vê-la entrar em pânico. Alyse ficou nas pontas dos pés e beijou-o. — Ainda não sei se você é bom para mim, mas definitivamente gosto de estar com você. — Ela soltou seu casaco e deu um passo para trás. — Por favor, tenha cuidado. — Tenha cuidado você, Alyse. Vejo-a amanhã, se puder. Não queria deixá-la ir. Mantê-la ali, no entanto, não seria bom. Portanto, ficou observando-a cavalgar em direção à casa dos Donnelly. Ele tinha que lidar com mais do que a salvação de Quence Park. Uma coisa de cada vez. Agora era hora de fazer o que havia dito a Alyse e partir para o ataque. De volta à casa, Digby abriu-lhe a porta da frente. — Devo preparar-lhe o almoço, mestre Phineas? — William está comendo? — Lorde Quence pediu uma sopa de ervilhas, senhor. — Vou querer também. Onde ele está? — Na biblioteca. — Obrigado, Digby. Ele subiu as escadas e percorreu o corredor até a biblioteca. — Boa tarde — falou, entrando no grande e iluminado recinto. — Phin — disse o irmão, desviando o olhar do livro que tinha no colo e, em seguida, baixando-o de novo. — Andrews, dê-nos alguns minutos, sim? — pediu Phineas. — Milorde? — perguntou o criado, sem se mover. — Cuide para que meu almoço seja servido aqui, por favor. — Sim, milorde. — Ele rumou para a porta. — O meu também, Andrews — Phineas acrescentou, mas o criado não demonstrou ter escutado o pedido. — É muito leal a você, esse sujeito. — Ele é minhas pernas. O que você quer? Phineas foi fechar a porta e depois puxou uma cadeira, sentando-se diante do irmão. — Preciso falar com você. — Percebi. William não facilitaria as coisas. Depois do que lhe dissera na noite anterior, no entanto, não podia culpá-lo pela aspereza. — Você é o patriarca desta família, e eu... — Estou ciente da minha posição. Respirando fundo, Phineas lembrou a si mesmo de que nenhum insulto de William 141

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poderia deixá-los quites. — Você precisa saber o que está ocorrendo. — Aqui? — Sim, aqui. — Ah. E onde você esteve nos dez últimos anos para vir dizer-me o que está ocorrendo aqui? — Sei bem onde estive. Mas estar aqui não significa que você tenha visto tudo o que... — Você quer dizer que eu fico sentado na cadeira de rodas, olhando pelas janelas? Phineas rangeu os dentes. — Não é... Estive em uma posição única para ver as coisas de fora. E o... — Única. É uma das maneiras de colocar as coisas. — O mensageiro não é importante. Mas a mensa... — Procurando compreensão agora, é? Phineas levantou-se de repente, com os punhos cerrados. — Você pode calar essa maldita boca por uma droga de minuto e deixar-me falar? William encarou-o. — Já era chegada a maldita hora. — O quê? — Não sou capaz de contar a quantidade de vezes que nós discutimos ao longo dos anos, Phin. E, dez anos atrás, tornou-se muito evidente que você preferia não ter nenhum contato comigo, se isso significasse uma possibilidade de desentendimento. — Não tenho direito de discutir com você. — E por que não? — Porque não. — Phineas respirou fundo. Preferia falar sobre qualquer outra coisa, mas não sobre aquilo. Qualquer outra coisa. — Porque você chocou sua montaria contra a minha, e eu acabei quebrando as costas? — Sim. — Sente-se, Phin. Sentindo-se incrivelmente tenso, ele obedeceu. — Meus... pecados não são o que importa no momento. Você precisa me escutar. E, quando eu tiver terminado, vou embora. Já prejudiquei bastante esta família. — Você é um terço desta família. Mas seus paradeiros não são decisão minha. Não vou pedir que fique e nem que vá. — Você pode estar calmo e superior agora, William, mas você tinha que me odiar. Você tem que me odiar. — Não. Eu fiquei bravo com você. Você nos deixou no momento em que mais deveria ter ficado. 142

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— Eu quase o matei. Intencionalmente. — Honestamente, Phin, magoou mais que você tenha desistido e fugido quando poderia ter se tornado... o homem que todos queríamos que se tornasse. E eu acho que ambos sabemos que, caso você quisesse mesmo me matar, eu estaria morto. Phineas queria levantar-se e caminhar, mas ficou sentado, uma vez que William precisava permanecer sentado. — Eu não... conseguia olhar para você. Arruinei sua vida, William. Eu jamais teria me permitido voltar para esta casa. — Eu fiquei furioso por você ter me abandonado com a espinha quebrada, uma irmã de sete anos de idade e uma propriedade que precisava ser administrada. Mas jamais o odiei. — Ergueu uma sobrancelha. — Imagino que você tenha cuidado disso sozinho. Eu estava acordado quando você veio me ver, no dia que partiu. Deus! Phineas abaixou a cabeça. — Seu desgraçado rastejante. — Sim, bem, minhas costas estavam quebradas. Eu podia ser rastejante, se quisesse. — William, isso... — Você foi para o Exército a fim de ser morto. Suicidado por Bonaparte. — Não quero falar sobre isso. Você precisa saber o que descob... — Eu quero falar sobre isso. Phineas expirou, pondo-se de pé. — Não ouse sair daqui. — Não vou sair. Preciso de uma maldita bebida! — Seguiu até as garrafas, sobre a escrivaninha, e serviu-se de uísque. — E você? — O mesmo. Serviu um segundo copo e entregou-o ao irmão antes de sentar-se. Na época, ele pensara em ir embora para que William nunca mais precisasse... vê-lo. A verdade, contudo, era que se mantivera afastado porque ele não queria pensar no que fizera. Como se tivesse conseguido pensar em qualquer outra coisa durante aquele tempo. — O que você quer que eu diga? — Phineas perguntou. — Por que você estava tão bravo? Antes da nossa corrida. — Naquele dia, ou em geral? — Em geral. — Logo antes de nosso pai morrer, escutei-o conversando com lorde Donnelly. Estavam falando sobre as filhas, ou algo assim. Papai e mamãe tinham desejado um filho e uma filha. Lembro-me bem de ouvi-lo dizer: "Conseguimos o que queríamos, com Phin no meio. O menino é um tanto inútil, mas serve de reserva, suponho." — Phin, nossos pais o amavam. Amavam todos nós. — Sei disso. Eu tinha catorze anos, e era um idiota. Mas então eles morreram, e eu me dei conta de que estava vivendo abaixo das expectativas dos dois. Era como... como se eu tivesse caído em algum buraco, e não conseguisse sair. Após um tempo, parei de tentar. Era mais fácil cavar para baixo do que para cima. — Inclinou-se para a 143

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frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Então, você está preso a essa cadeira por nada. — Tomou um longo gole de uísque. — A não ser por minha própria estupidez, é claro. William fechou os olhos, bebendo seu uísque. Por fim, voltou a abri-los. — Você não tem idéia de há quanto tempo espero ouvir isso. — Mas isso não é desculpa! — É uma explicação. — O visconde tomou outro gole da bebida. — Então o que é essa coisa que tanto preciso ouvir? — Isso é tudo o que você queria? Que eu dissesse não ter motivos para o que fiz? — Que você dissesse algo. Lidaria com aquilo mais tarde. Naquele momento, precisava ser lógico e calmo, ou William não acreditaria em nada, além da hipótese de o irmão mais novo estar inventando algo com o que se distrair. — Encontrei algumas coisas — ele falou, pegando os mapas no bolso — e gostaria de sua opinião sobre o que são. Ele os abriu sobre a rriesa, colocando o de Smythe sobre o de Donnelly, e conduziu a cadeira de William até onde pudesse vê-los. Contou ao irmão sobre a conversa que tivera com Alyse, sobre Smythe ser o dono dos cães, sobre as suas teorias acerca da inundação, do fogo, da ração envenenada e das possibilidades monetárias de instalar as termas ali. Por fim, falou de suas suspeitas quanto às intenções de Donnelly com Beth. William não o interrompeu, mas ficou a maior parte do tempo passando o dedo sobre as linhas do mapa. — Você deixou de mencionar como conseguiu isto — disse, por fim, fitando-o. — Essa é outra história. — Conte-a. — Maldição, William, não posso lhe contar tudo! — Hoje, pode. Vamos lá. Phineas praguejou. Batendo o copo na mesa, foi até a janela mais próxima e contemplou a paisagem. — Certo. Eu roubei. Os dois. — Você o quê? — Eu sou o Francês. Pelo reflexo na janela, pôde ver William olhando-o fixamente, e a cor drenando do semblante já pálido do irmão. — Você é um salteador. — Eu não sabia de que outra forma poderia obter as informações necessárias sem colocar você e Beth em perigo. — E colocou a si mesmo em perigo. Eu sabia. Maldição! — O que você sabia? — Que, caso Beth lhe escrevesse a respeito de nossos problemas, você se atiraria 144

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nisso de cabeça. — Você já suspeitava de algo. — Beth estivera certa. William tinha se preocupado com ele. — Suspeitava de que o azar estivesse sendo ajudado. Mas um salteador, Phin? Pelo amor de Deus! Smythe disse que atirou no Francês. — Ele atirou. Porém, a mira dele não é fatal, como ele alega. Phineas escutou um copo cair no chão atrás de si. — Bom Deus! — Não estou morto. — Virando-se, ele se agachou para recolher os cacos. — Nem eu. Vamos manter isso assim para nós dois, certo? Andrews retornou à biblioteca com duas tigelas de sopa e meio filão de pão fresco. Enquanto comiam, Phin notou que suas confissões de estupidez e a história sobre a possível perda de Quence não haviam abalado o irmão, enquanto a menção ao fato de ele ter sido baleado o tirara do sério. Talvez houvesse esperança para ele, afinal. Talvez existisse uma chance de perdão. Quando Phin enviou um bilhete, perguntando se Alyse gostaria de cavalgar, ela sabia que o primo o lera. Ele nem se dignou a disfarçar a intromissão. — Passe a tarde com ele — Richard disse, juntando-se a ela e a sra. Donnelly na sala de estar e abrindo o jornal. — Ela vai nos desgraçar, passando o tempo com aquele louco — grunhiu tia Ernesta. — Não entendo por que as coisas não voltam a ser como eram. Era tudo muito mais agradável e apropriado. — Sim, mamãe — disse Richard, continuando a leitura. — Suponho que vamos cavalgar por quanto tempo Phineas quiser — disse Alyse, lendo a carta. — Vou mandar-lhe uma resposta. — Já cuidei disso. — Ele baixou o jornal por um instante. — Em seu nome, é claro. Tanto fazia. Não poderia mesmo revelar por escrito a Phin todas as coisas que queria contar-lhe. Não quando sabia que sua correspondência seria lida. Richard perguntara sobre o passeio com lorde Anthony; sabia que o vilão faria uma visita, e provavelmente o que ele desejava discutir. Qualquer gratidão que tivesse sentido quando ele a levara para aquela casa desaparecera. Apenas saber que Phineas estava caçando o primo tornava as conversas com ele toleráveis. Assim que Richard voltou a atenção ao jornal e tia Ernesta ao bordado, Alyse permitiu-se um sorriso. Fazia séculos desde a última vez em que fora capaz de sorrir naquela casa, muito menos na presença dos parentes. Phin podia ter-lhe tirado a virgindade, mas lhe dera muito em troca. Ele lhe devolvera seu espírito. Não pensava mais apenas em fugir; ela queria revidar. Como, então, poderia deixar Phin partir outra vez? Não que pudesse fazer algo para evitar que fosse embora, mas só pensar em Phin cavalgando para longe, em direção ao perigo e talvez à morte, a fazia sofrer. Ainda assim, se ele nunca tivesse voltado... seria ainda pior. 145

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— O que você vai vestir? — perguntou Richard, de repente, sobressaltando-a. — Para cavalgar? Minha roupa de montaria. — A verde? — É a única que eu tenho. — Acho que você e Beth são do mesmo tamanho. Mary, vá até o quarto verde e procure no guarda-roupa. Há um traje dourado na gaveta de baixo. Mary levantou-se e apressou-se até o quarto. — Tem certeza de que pretende me dar todos os presentes de Beth? — ela perguntou. — Acho que vai usá-los com sabedoria — ele respondeu, de alguma forma capaz de fazer com que mesmo uma sentença benigna soasse como uma ameaça. — Concordo com Alyse — intrometeu-se a tia. — Quando pedir a mão de Beth, não vai querer explicar que sua prima arruinada tomou emprestados todos os presentes que pretendia dar a sua noiva. Céus! Ele realmente pretendia se casar com Beth. Aquilo lhe daria mais condições de apossar-se de Quence, mas não parecia positivo para a sobrevivência nem de William e nem de Phin. — Vou ter muitos outros presentes para Beth, mamãe. Não há razão para deixar de ser caridoso quando o assunto é minha prima. A tia riu. — Você deve estar mesmo apaixonado, Richard, para tornar-se tão generoso com alguém de tão pouco valor. Alyse conteve um suspiro. Teria ficado satisfeita ao saber que estava prestes a receber dez mil libras e que nunca mais teria de apanhar o que quer que fosse para a tia; porém, quanto mais ajudava Phin, menos provável seria receber qualquer coisa do primo. Talvez pudesse pedir um pagamento parcial em dinheiro, para conseguir pelo menos sair de Lewes com fundos suficientes para manter-se em segurança. Hum. Como Phin dissera, tinha chegado a hora de partir para o ataque. Mary voltou à sala, com o vestido de montar nos braços. A cor era adorável. Richard tinha um gosto elegante, ainda que uma péssima maneira de conseguir o que queria. — Obrigada, Richard — disse, pegando o traje da criada. — Vá vesti-lo. Mary, ajude-a. — Sim, milorde. — Phin não estará aqui pelas próximas três horas, Richard — comentou Alyse. — Então você vai estar pronta quando ele chegar. — Você não está pretendendo casá-la com aquele... soldado, está, Richard? A própria família mal o suporta. Haverá fofocas. — Ele não vai ficar em East Sussex por muito tempo, mamãe. Enquanto isso, Alyse vai mostrar-se bem, com esta roupa. Talvez atraia o olhar de algum comerciante. Mostrar-se bem — como um cavalo. Bem, mal sabiam que Phineas já a havia... cavalgado. Ela bufou. 146

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— Algo a diverte, Alyse? — perguntou Richard, baixando o jornal para observá-la. — Apenas o fato de ter um vestido novo. Obrigada mais uma vez. — Ergueu-se, devolvendo o vestido a Mary. — Vamos? — Sim, senhorita. Assim que abotoou o vestido, deu-se conta do que Richard quisera dizer quando falara que se mostraria bem. Nunca vestira algo tão justo. O primo pretendia que seduzisse Phin para que ele confessasse. — Minha nossa, Srta. Alyse! — Mary admirou-a após prender seus cabelos. — A senhorita está linda. Alyse girou diante do espelho. — Obrigada. Eu me sinto linda. — Com o decote profundo, sentia-se também escandalosa. Para qualquer outro, que não Phin, teria se recusado a vestir aquilo. Agora, tudo o que precisaria fazer era esperar que ele chegasse, e então os dois poderiam escolher a melhor maneira para que ela o traísse. Phineas deixou Açafrão com um cavalariço e subiu os degraus até a casa dos Donnelíy, Quando Saunders abriu a porta, ele sentiu como se estivesse prestes a entrar em território francês, armado apenas com sua presença de espírito. Esperava que fosse o suficiente. — A família está na sala de estar — anunciou o mordomo. — Obrigado, Saunders. Conheço o caminho. — Mas eu gostaria de anunciá-lo, senhor. Ele se deteve e olhou para o mordomo. O homem estava no posto havia pelos menos trinta anos, e era um dos poucos rostos que reconhecia da infância, de suas visitas à casa dos Donnelíy. — Como está a srta. Donnelly esta manhã? — perguntou. — Muito feliz em ver um amigo, presumo, senhor. Phineas assentiu. Reconhecia um aliado quando o via. — Anuncie-me então, Saunders. — Certo, senhor. Ele esperou do lado de fora da sala, enquanto o mordomo abria a porta e entrava. — Milorde, coronel Phineas Bromley. E o ato seguinte da peça começou... Phineas podia apenas esperar que não fosse outra tragédia. Entrou no aposento. — Boa tarde, Donnelly, sra. Donnelly, srta... Donnelíy. Bom Deus! Se os trajes de Alyse tinham a intenção de fazer os botões de sua calça pularem, quase conseguiram. Dourado e decotado, moldado às deliciosas curvas, o vestido era estonteante. Ela era estonteante. Não tinha idéia de como diabos seria capaz de cavalgar agora. Os outros dois Donnelly e os criados acenaram e curvaram-se, porém ele mal notou. Não conseguia desviar os olhos de Alyse. Naquelas roupas, ela teria atraído um duque. Ou um príncipe. Ou um rei. Lentamente, começou a compreender fragmentos do que Donnelly dizia, algo 147

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sobre o tempo agradável para cavalgar. Phineas repreendeu-se. Estava no meio do maldito território inimigo. — Realmente — ele falou, tentando algo que não o comprometesse. Pigarreou. — Vamos? — Estendeu a mão para Alyse. Ela deslizou os dedos por seu braço. — Sim — respondeu, sorrindo. Os pelos de seus braços eriçaram. O que diabos ela estava fazendo, deixando Donnelly perceber como eram próximos? Ela poderia arruinar-se. Phineas engoliu seco. — Trago-a de volta antes do anoitecer — disse. — Divirtam-se. Esperou até que estivessem ambos montados, sendo seguidos por um criado, antes de voltar a falar. — Duas perguntas — ele disse. — Estou ouvindo. — Primeiro, onde diabos você conseguiu esse vestido? — Não gosta? — Não é uma questão de gostar. É questão de quanto tempo conseguirei manter as mãos longe de você enquanto o estiver vestindo. Alyse sorriu, corando. — Não devo contar-lhe, então, que Richard me deu. A diversão de Phin converteuse em algo sombrio. — O quê? — Ele me deu com a intenção de que eu seduzisse você para desvendar seus segredos. Pelo menos, é isso o que eu acho que ele queria. Ele me disse que eu me mostraria bem nele. Apesar da imundície das sugestões do primo, a informação fazia Phin sentir-se melhor. Não toleraria a invasão de propriedade. Particularmente, não da parte de alguém que tinha um alto nível de controle sobre o futuro de Alyse. — Como ele sabia que eu a convidaria para cavalgar? — Este era um presente para Beth. Ele quer informações, Phin. Aquele salafrário comprara aquele vestido para sua irmã? Phineas respirou fundo. Sua animosidade particular contra Richard poderia esperar. Salvar Quence e Alyse vinha em primeiro lugar. — Minha segunda pergunta, então: ele a ameaçou de novo? — Não. Apenas o mesmo assunto sobre como seria melhor que eu cumprisse bem a minha tarefa. — Oh, você vai cumpri-la muito bem. — Você já tem um plano? Phineas observou-a. Imaginava que a maioria das mulheres que tivessem enfrentado o mesmo que Alyse não hesitariam em entregá-lo em troca do que lhe oferecera o primo. Apesar da consciência, dez mil libras serviriam como uma bela 148

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coberta, em qualquer noite fria e insone. — O que você está olhando? — ela perguntou. — Já disse que o vestido não foi idéia minha. — Não estou olhando para o vestido. — Oh... — Ela corou lindamente. — Vou pedir que confie em mim. — Eu confio em você. Phineas sorriu. Não conseguiu evitar. Se Alyse soubesse o quanto significava para ele ter alguém... tê-la... dizendo que: Mais tarde, Phin. — Certo. Há partes do plano que não posso contar para você. Phin viu nos olhos dela que Alyse não gostou daquilo. — Talvez eu devesse ter pensado em perguntar se você confia em mim. — Confio em você com minha vida — ele falou com a voz um pouco trêmula. — E juro que, quando isto estiver terminado, vou responder todas as perguntas que você me fizer. — Todas as perguntas? — Sim. — Muito bem, estou ouvindo. Enquanto falava, Phin fez uma rápida oração. A maior parte de seu plano brilhante dependia de duas pessoas que ainda nem haviam chegado a East Sussex. E, se eles não aparecessem a tempo, ele perderia tudo, inclusive a própria vida. *** — O que ele lhe contou? Alyse parou no meio da escada enquanto Richard inclinava-se da varanda, logo acima. Seu coração batia com força. O que Phin lhe pedira para fazer parecia... mortal, se não para ela, ao menos para ele. Ainda assim, dera-lhe a palavra. — Podemos conversar em particular? — perguntou, continuando a subir. — Ele contou algo, então. — Richard, eu... — Sim, sim, venha até a biblioteca. — Gostaria de trocar de roupas primeiro. — E reunir os pensamentos por mais tempo do que Phin lhe dera no caminho de volta. — Depois. Não temos o dia todo para esperá-la. — Quem mais está aqui? Quando chegou ao topo da escada, o primo tomou seu braço e praticamente a arrasou em direção à biblioteca. Como detestava aquele homem! Mas não podia deixar que ele soubesse disso. Lorde Charles e lorde Anthony sentavam-se, à biblioteca, ambos fumando charutos e parecendo terrivelmente satisfeitos consigo mesmos. Alyse endireitou os ombros. Poderia fazer aquilo. Phin acreditava nela e precisava que fosse bem-sucedida. 149

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— Cavalheiros — disse, livrando-se do toque de Richard enquanto o primo fechava a porta. Quando ele fez isso, as ameaças de Anthony sobre como ela poderia ser útil vieram-lhe à mente. — O que ele disse? — Richard repetiu, enfatizando cada palavra e deixando claro que não perguntaria outra vez. — Ele não confessou ser o Francês. — Maldição — murmurou Charles. — Para que diabos ela serve? — No entanto — ela prosseguiu —, ele mencionou várias vezes o baile na casa de Roesglen, daqui a duas noites. Então ele esfregou o ombro esquerdo e disse que esperava que o senhor, lorde Charles, estivesse em um coche. Acho que realmente o atingiu, afinal. — Eu sabia que sim. — Algo mais? — perguntou o primo. — Uma coisa. — Diga logo. Alyse respirou fundo. Phin não mencionara essa parte, mas ela precisava de algum incentivo para entregar um velho amigo. — Primeiro, eu quero as cinco mil libras. — O quê? — Anthony levantou-se. — Está brincando? — Não, não estou. Eu... gostaria de alguma garantia de que vocês não vão simplesmente pegar minhas informações e esquecer de que temos um acordo. — Espertinha você, não? — Richard estreitou os olhos. — Não terminarei pedindo esmolas nas ruas. Richard abriu a porta e saiu do aposento. Enquanto os outros dois a observavam, fazendo-a sentir-se nua e suja ao observar seu decote, Alyse manteve o olhar na lareira. — Quanto a mais teríamos que pagar para nos deitarmos com você? — Anthony perguntou. — Vocês não têm o suficiente para me tentar — ela respondeu. — Todos têm um preço, Alyse — Charles falou. — Acabou de dizer a Richard qual é o seu. — Ele me prometeu muito mais — ela falou, enquanto o primo entrava no aposento. — Essa é apenas uma demonstração das intenções honradas dele. Richard entregou-lhe uma bolsinha. — Duas mil e quinhentas libras — resmungou. — Tudo o que eu tinha à mão. Diga de uma vez, Alyse, ou vou deixar que meus amigos a convençam. Alyse apertou a bolsinha pesada. Aquilo era uma fortuna, comparado ao que fora capaz de economizar. — Phin me devolveu as pérolas de mamãe. O Francês as levou na noite em que fomos roubados. — Isso é o suficiente para mim — Anthony disse. — Por Deus, nós o pegamos. — Não. Vamos pegá-lo depois do baile de Roesglen. — Richard virou-se para 150

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Alyse. — Vá contar teu dinheiro, Judas. Temos assuntos a discutir. — Quando vocês o pegarem, quero o resto do que me prometeu. — Ela caminhou com a máxima dignidade possível até a porta, considerando que desejava correr, fugir do cômodo e da casa, e não parar de correr até encontrar Phin. — Vai tê-lo. E lembre-se, Alyse. Se você disser algo a ele, vou fazer com que ele fique sabendo do nosso acordo. Endireitando os ombros, ela deixou o recinto e fechou a porta. Quando chegou em segurança ao quarto ela soltou o ar e atirou-se na cama. Phin já sabia sobre o acordo com Richard. Esperava apenas que o conhecimento o mantivesse vivo. Quando Phineas desceu para um rápido desjejum, surpreendeu-se ao ver William ali. — É cedo até mesmo para você, não? — perguntou, colocando pão e presunto no prato. — Não quero você cavalgando pela propriedade — o irmão falou. — Você se tornou um alvo. — Nada mais será destruído em Quence enquanto eu estiver aqui. Gordon vai vigiar o norte e o leste da propriedade, enquanto eu fico com o sul e o oeste. Não estarei sozinho. Também contratei alguns homens para vigiar. — Apenas fique dentro da casa, Phin. Por favor. — Por quanto tempo? — Sentou-se ao lado do irmão. — Smythe me surpreendeu na outra noite porque eu estava ansioso demais. Agora sei o que pretendem, e estarei preparado. — Ele sorriu. — Afinal de contas, eu sou um oficial treinado. — Eu preferia vender Quence para Richard hoje a vê-lo arriscar a vida — disse William. — Você não vai fazer isso. Pode não confiar em mim, mas acredite que eu não permitirei que nada disso continue. — E como você pretende fazer isso, exceto matando pessoas? Matar pessoas começava a parecer uma resposta razoável. — Vou encontrar provas. Se eu não conseguir, ameaças devem resolver. — Deu de ombros. — Se não forem suficientes, então... — Pelo amor de Deus! Nem diga isso. — William sacudiu a cabeça. — Como vou dizer a Beth para ficar longe de Donnelly? — Não creio que isso seja um problema. — Por que não? Ela já está se apaixonando por ele. Ou pensa que está. E eu a encorajei, maldição! — A ajuda está a caminho — disse Phineas, embora relutasse em fazê-lo até que a ajuda realmente chegasse. Já estava atrasada. — A ajuda chegou — disse uma voz, da porta. Phineas levantou-se, levando a mão à pistola, no bolso, antes de reconhecer a pessoa. Sorrindo, foi até ele. — Bram. 151

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Lorde Bramwell Lowry Johns ignorou a mão estendida e abraçou-o. — Bem-vindo de volta, Phin. — Obrigado. E Sulli... — Logo atrás de mim. — Bram soltou-o e seguiu até a cabeceira da mesa para cumprimentar William. Um instante depois, Sullivan Waring entrou. Sorrindo, passou os braços em volta de Phin e ergueu-o do chão. — Você não devia ter esperado tanto para mandar nos chamar — disse, soltando Phin. — Você acabou de se casar — devolveu Phin, mais aliviado do que poderia descrever. Notórios cavalheiros, companheiros oficiais, amigos, irmãos. A ajuda realmente chegara. — Não queria afastá-lo da esposa, caso pudesse evitar. — Ele está insuportavelmente feliz — disse Bram, ignorando a comida sobre o aparador e pedindo ao mordomo uma garrafa de uísque. — Muito entediante de se ver. — Por Deus, Bram, são sete da manhã! — Sullivan tomou um assento à mesa. — Do que você precisa, Phin? — O sol ainda não nasceu — devolveu Bram. — Sendo assim, ainda é ontem à noite. Além disso, estou cavalgando há seis horas. — Tomou o copo e a garrafa de Digby e a abriu. — Então, meus amigos — disse Phin, sentando-se outra vez —, preciso que vocês sejam salteadores. — O quê? — Sullivan encarou-o. Bram atirou-se a uma cadeira, brindando ao recinto em geral, antes de tomar um longo gole de uísque. — Excelente. Quando começamos? Após uma hora de discussão, Sullivan estava de acordo, com algumas restrições, William estava bravo por outras pessoas assumirem riscos que ele estava fisicamente impossibilitado de encarar e Bram estava se perguntando por que teriam que esperar até o dia seguinte para agir. Phineas continuava pensando nos possíveis cenários. O sucesso ou o fracasso dependeriam dele; e, se alguém se ferisse, a culpa seria sua também. — William — Beth falou, abrindo a porta —, é verdade que temos convidados? Eu... — Abriu um largo sorriso. — Lorde Bram! Sullivan! Meu Deus! Phin disse que vocês não viriam visitá-lo. — Estou aqui para vê-la. — Sullivan aproximou-se e tomou os dedos de Beth. — Nem sabia que Phin estava em casa. Bram, por outro lado, parecia querer enfiar-se embaixo da mesa. Phineas conteve um sorriso. A única coisa no mundo que ele temia, aparentemente, era a irmã de dezessete anos de um amigo. Particularmente, uma que sonhasse com ele desde que tinha retornado da Península. — A questão, Beth — disse Phineas, chutando o tornozelo de Bram antes de levantar —, é que Bram está se escondendo do pai. — Não vou contar para ninguém que está aqui — ela concordou. — Mas precisa deixar-me levá-lo em um passeio pelos jardins. 152

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Lentamente, Bram pôs-se de pé. — Eu adoraria — ele murmurou, aparentando o oposto. — Leve Jenny com você — disse William. — William, por que... — Leve Jenny. Beth bateu o pé. — Oh, muito bem. Vou buscá-la. — Fitando o irmão mais velho, deixou o recinto, em busca da criada. — Vim até aqui para apagar algumas das marcas que o diabo tem contra mim — disse Bram, sombrio. — Não para ajudá-lo a começar um novo capítulo. — Não quero que ela saiba que suspeitamos de Richard — disse Phineas. — Ela não é muito boa em disfarçar os sentimentos. — Eu reparei. Deixe Sullivan passear com ela. Ele é casado. Praticamente um castrado. — Permita-me discordar — comentou Sullivan, com uma careta divertida. — E eu preciso conversar com Phin. — Maldição! — Se empurrar a cadeira, posso acompanhá-los — sugeriu William. — Sim, por favor. Phineas observou-os sair dali. Bram podia ter pensado que William estava sendo generoso, mas aquilo tinha mais a ver com a reputação de Bram e com uma donzela bastante impressionável. Pelo menos com Bram por perto, o destino fatal de Richard perturbaria menos a irmã. — Você está mantendo Beth fora disso. — Até onde consigo. — Mas envolveu a srta. Donnelly até o pescoço. — Eu não tive escolha. — Bram me disse que ela se envolveu em um escândalo alguns anos atrás. — E quando vocês dois tiveram essa conversa? — Sua carta mencionava os Donnelly, e nós passamos a maior parte da noite cavalgando até aqui. Você conhece Bram. Se há fofocas, ele as ouviu. — Desculpe-me. E que... ela está uma posição complicada, e é culpa minha. Queria dizer mais, para de alguma forma explicar o quanto Alyse sempre havia significado para ele, mesmo quando não se dava conta. E como ela se tornara importante para tudo. Considerando que a transformara em uma espiã contra. a própria família e pusera seu bem-estar e seu futuro em risco, dizer-se apaixonado não transmitiria a... profundidade do que sentia. — Bem, pelo menos você encontrou uma utilidade para Ajax. — Sim. Ele me ajudou a começar a minha carreira criminosa. Não teria conseguido sem ele. — Tendo alguma... familiaridade com questões legais, Phin, tudo o que posso dizer é que tenha cuidado. Você tem uma família, que vai pagar o preço, caso você seja pego. 153

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— Sei disso. Por que acha que chamei vocês dois? — Sobre isso. Você sabe que faríamos qualquer coisa por você, mas... — Assim como eu, por vocês — interrompeu Phin, começando a temer uma retirada. Porém, Sullivan era recém-casado e, caso quisesse manter-se fora daquela confusão, ninguém o culparia. — Eu sei. Apenas fique de olho em Bram. Ele gosta de vestir-se de negro, mas, ultimamente, esses trajes têm combinado demais com ele. — Então fico grato que ele tenha pavor de Beth. A porta da sala foi aberta. — Capitão Waring! — exclamou Gordon, entrando. — Por todos os santos! Sullivan sorriu. — Sargento Gordon. Vejo que ainda está tentando manter Phin longe de confusão. — Sim, e tem sido uma tarefa e tanto. — Gordon, acredito ter mencionado algo a respeito de bater às portas. E sobre decoro. — Certo, mas é o capitão Waring! O mais exímio cavaleiro! — Sim, ele tem um estábulo em Sussex, onde cria os animais. Você sabe disso. — Eu esperava que, quando chegássemos aqui, fôssemos visitar o senhor, mas, com todos os problemas e o coronel atrás da menina dos Donnelly, fi... — Sargento! — Phineas admoestou-o. O escocês corou. — Certo. Sem fofocas também. Vim apenas dizer que Açafrão está selado e pronto para o senhor. — Girando sobre os calcanhares, marchou para fora da sala. — Atrás da menina? — indagou Sullivan. — Conheço Alyse a vida toda. Somos amigos. — Certo... Tem certeza de que não há mais nada que gostaria de me contar? — Não antes de contar a ela. — É justo. Por que não me mostra aqueles mapas? Depois podemos ir ao terreno, escolher o ponto de ataque. Aliviado com a mudança de assunto, Phineas gesticulou para que Sullivan saísse à frente. Tinham muito a fazer Ainda que esperasse por isso, Alyse não conteve o aperto no peito quando um dos cavalariços entrou na sala matinal. Fazia dois dias que não via Phin. Deixara até as janelas e a porta de seu quarto destrancadas, caso ele decidisse visitá-la, mas ele não aparecera. A festa de Roesglen seria aquela noite. E ela estava preocupada. — Milorde — disse o criado —, o senhor pediu que fosse avisado de qualquer rumor a respeito do Francês. Richard inclinou-se para a frente, deixando de lado a correspondência. — O que você ouviu? — Peter Adams veio aqui em sua carroça esta manhã e disse que o Francês cavalgou por Lewes ontem à noite, atirando moedas pelas ruas. Sei que lorde Charles diz que o matou, mas Peter jura que era ele. Disse que ele distribuiu quase cinqüenta libras. 154

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— E ninguém tentou detê-lo? — perguntou Richard, furioso. — Havia um punhado de soldados de folga, mas eles não conseguiram alcançar aquele monstro negro que ele cavalga. Eles dizem que a fera solta fogo pelas ventas e que os olhos do Francês brilham, vermelhos. — Isso é besteira. Volte ao trabalho. Saunders, dê ao menino alguns centavos. — Obrigado, milorde — o criado agradeceu. — Ouviu isso? — resmungou tia Ernesta. — O homem horrível está tentando se transformar em algum tipo de Robin Hood. — Isso não vai durar, mamãe. Ele está vigiando a lei, e será detido. Alyse notou que o primo dissera detido, em vez de preso. Ela sabia o que eles pretendiam fazer com o Francês quando tivessem oportunidade. Iriam matá-lo. Phin. Aquela noite. Ela escondera com cuidado suas duas mil e quinhentas libras em um local onde Richard jamais pensaria em procurar. Afinal, tinha crescido naquela casa, e não lhe contara tudo sobre o lugar. O primo lhe prometera outras sete mil e quinhentas, mas a perspectiva parecia cada vez menos promissora. Dois dias antes, ele possuía apenas uma quantia relativamente pequena à mão. Desde então, não visitara nenhum banqueiro ou contador, mesmo pretendendo fazer uso completo das informações que lhe fornecera. No momento, a aparente disposição do primo para enganá-la a fazia sentir-se um pouco melhor. Ele não era nenhum herói tentando deter um vilão; ao contrário, era o vilão, disposto a fazer qualquer coisa para conseguir o que queria. Mentir para a prima, que dependia dele para comer, vestir-se e abrigar-se, não o fizera nem ao menos- piscar. — Ousaremos ir até Roesglen esta noite? — perguntou a tia. — Não tenho nenhum desejo de ser parada e assaltada de novo. — Vamos, sim. Não precisa temer. Pretendo tomar precauções. — Espero que sim. — Ela olhou para Alyse. — Presumo que vá cavalgar outra vez, exibindo suas roupas emprestadas. — Alyse vai ficar aqui hoje — ele disse, voltando à papelada. É claro que ficaria. Richard mal a deixara sair de vista, desde a conversa na biblioteca. Não queria arriscar que ela avisasse Phin que uma armadilha estava sendo preparada. Alyse virou a página do livro que escolhera ler na presença da tia. Ernesta detestava ver mulheres lendo. Precisou de todo o seu autocontrole para não sorrir. Porque a armadilha de Richard não sairia como esperava. Sua única frustração era não saber exatamente o que Phin planejava. Compreendia que ele não tivesse lhe contado, mas suspeitava que ele arriscaria a vida. E, pela maneira como se sentia a respeito da... parceria deles, a única coisa pior do que vê-lo voltar para a guerra seria vê-lo morto. Tanto o sol quanto todos os relógios da casa pareciam determinados a se arrastar. Conforme o dia avançava devagar, Alyse pensou que não se importaria se tivesse algumas peças para remendar, pois, ao menos, manteria as mãos ocupadas. Por fim, começou a escurecer, e ela foi até o quarto preparar-se para a festa. Depois, precisou sentar-se para jantar e ouvir a tia falando sobre as chances de permanecerem vivos por tempo suficiente para chegar a Roesglen. A mulher era uma tirana de mente estreita, mas parecia não saber nada sobre os planos do filho. Não era o bastante para que Alyse a visse com bondade, mas evitava que enviasse pensamentos 155

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maus na direção dela a cada minuto. — Você está muito bem esta noite — comentou Richard, ajudando Alyse a subir na carruagem. — O verde combina com você. — Obrigada. Puxou-lhe a mão, detendo-a. — Se você disser algo a ele que pareça minimamente suspeito, Alyse, você vai se arrepender. — O que eu diria, Richard? Que concordei em receber dez mil libras, caso ele se entregue gentilmente às autoridades? — Não sei o que você diria. Mas sei que não arrumou os cabelos para mim. Você já escolheu o dinheiro, minha querida. E não vale a pena se arriscar por ele. Ela puxou a mão. — Eu lhe disse o que sabia. Por favor, não me ameace mais. Ao chegarem a Roesglen, vinte minutos depois, todas as janelas da casa pareciam brilhar. Aparentemente, o constrangimento do marquês nas mãos do Francês não fora suficiente para evitar que abrisse as portas para os vizinhos. Ou talvez fosse tão extravagante porque queria que os amigos pensassem na festa, em vez de se ocuparem de seus delitos. Alyse olhou ao redor, procurando o coche de Quence, mas não o distinguiu em meio à confusão de veículos. — Céus! — tia Ernesta exclamou, agarrando seu braço. — Todos os membros da nobreza de East Sussex devem estar aqui. — As festas de lorde Roesglen são famosas — Alyse comentou. — Parecem superar-se a cada ano. — E faz muitos anos que você não comparece, não é? — comentou Richard, enquanto juntavam-se aos que aguardavam à entrada. Ele sabia muito bem que fazia quatro anos. — Sim — ela respondeu. — De modo que não sei o que esperar. — Espere uma dança comigo — disse Richard, sorrindo, enquanto entregava os convites ao mordomo. — E imagino que Charles e Anthony também desejem um giro ou dois pela pista. Você realmente está muito bem esta noite. Seria aquilo parte do plano, mantê-la cercada por seus comparsas, de forma que não pudesse ver Phin, e muito menos dançar com ele? Aquele podia ser o melhor caminho para ela, mas seu coração queria uma valsa com Phin. E ali estava ele, conversando com alguns convidados. Por um segundo, ela perdeu o fôlego. Quase esperara vê-lo adentrar o baile de Roesglen vestido como o Francês, exibindo seu chapéu de três pontas e brandindo pistolas. Em vez disso, ele vestia um paletó cinza-escuro e calças pretas, com um colete creme e as negras botas polidas. Estava... magnífico. E, pelos olhares que recebia das outras mulheres presentes, ela não era a única a ter aquela opinião. Os olhos de Phineas passeavam pelo ambiente enquanto ele conversava, até que a avistaram. Uma onda de calor a percorreu ao ver que ele pedia licença e cruzava o recinto, em sua direção. 156

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— Alyse. — Sorrindo, ele tomou sua mão e roçou-a com os lábios. — Você ensina as tochas a brilharem. — Ah, estamos roubando de Shakespeare agora, é? — disse Richard friamente, estendendo-lhe a mão. Phineas deu de ombros, ao cumprimentá-lo. — O homem está morto. Não creio que se importe. Santo Deus! Alyse sentiu-se como se assistisse a um duelo, no meio da festa. Em seguida, eles puxariam as adagas. — Você veio com William e Beth? — ela perguntou, pondo-se deliberadamente entre os dois. — Sim. Conceda-me uma valsa e a levo até eles. — Eu... — Receio que as duas valsas estejam reservadas — interrompeu Richard. — Pertencem a mim e a lorde Anthony. — Bem, eis o dilema. Uma dança típica ou uma quadrilha, Alyse? Ela sorriu. — Uma dança típica. Se prometer não pisar no meu pé. — Não faço promessas que não posso cumprir. — Ele pôs sua mão sobre o braço. — Meu irmão e minha irmã estão ali. Assim que se misturaram à multidão, com Richard e tia Ernesta logo atrás, Alyse inclinou-se para Phin. — Não sei o que estão planejando, mas é... — Não precisa desculpar-se pela valsa — Phin interrompeu. — Tenho certeza de que encontro uma parceira ou duas com quem me divertir. Phineas soava tão... insensível que, por um instante, ela se espantou. Quando ele a fitou novamente, no entanto, Alyse viu apenas afeto e segredos. Segredos por ela. Endireitou os ombros. Muito bem. Havia dito que confiaria nele, e assim seria. — Se você for morto — sussurrou, soltando a mão —, vou ficar furiosa com você. Phineas apertou-lhe os dedos brevemente. — E eu também. Se Richard julgava necessário manter Alyse longe dele, Phineas não se arriscaria a despertar ainda mais suspeitas do primo dela. Em vez disso, juntou-se à conversa, alfinetando Richard sempre que possível. Queria a atenção do desgraçado sobre si. Não sobre Alyse, nem sobre Beth ou William. Grande parte do assunto da noite centrou-se no Francês. As mulheres pareciam achá-lo assustador, mas fascinante, e surpreendentemente generoso com o povo da cidade. Os homens, por outro lado, tinham planos de matá-lo ou ensinar-lhe os perigos de deter o coche de um inglês. O benefício principal da cautela de todos era que ficara mais difícil para alguém soltar cães assassinos ou inundar pastagens. Aquilo já era algo, mas Phineas não queria um mero adiamento nos ataques. Pretendia acabar com eles. O Francês o ajudara a descobrir o jogo de lorde Donnelly, e agora serviria para 157

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desconcertar os jogadores mais uma vez. No processo, poderia render-lhe ainda o resto de informação de que precisava. Escreveu seu nome no cartão de dança de Alyse e pediu licença. Quanto mais longe ficasse dela, melhor. Além disso, queria ficar de olho em Smythe e Ellerby. Antes que pudesse recuar mais do que alguns metros, Beth agarrou-lhe o braço. — Você vai dançar comigo esta noite, não vai? — Pensei que estivesse com raiva de mim. — Estou. Estava. Mas ainda quero dançar com você. Sorrindo, Phineas passou um braço ao redor do ombro da irmã. — Isso tem algo a ver com a visita dos meus amigos? — Talvez. — Ela corou. — Eu ficaria mais feliz se eles tivessem vindo à festa. — Não enquanto Bram estiver escondido. E, lembre-se, nem uma palavra a ninguém. — É claro que não. — Então me conceda uma valsa. — Escolheu a segunda da noite. Richard havia tomado, a primeira com Alyse, o que deixaria o visconde impossibilitado de dançar com Beth. Aquilo seria bom. — Br... Ele — consertou a jovem — não disse por quanto tempo eles pretendem ficar. — Suponho que isso dependa do pai dele. Beth, você sabe que Bram não é a melhor companhia para você. — Oh, eu sei. E sei que sou jovem demais para o gosto dele. — Sorriu. — Eu gosto de vê-lo assustado. É muito divertido. Phineas relaxou. Graças a Deus, Beth tinha algum bom senso! E, mesmo que Bram fosse apenas uma distração de Richard, era exatamente do que ela precisava. — Bom. Aterrorize-o o quanto quiser. Apenas não lhe dê seu coração. — Eu jamais seria tão boba, Phin. — Ela o beijou no rosto. — Eu gosto quando você esquece que deveria ser mau. Só queria que você me contasse por que está fazendo isso. E ele que achara estar enganando a criança. — Conto assim que puder. — Acho bom. Ele não precisava ter se preocupado em manter os comparsas de Donnelly à vista. Eles o seguiram a noite inteira. Se aquelas eram as habilidades deles para o disfarce, Phineas os superestimara. Por outro lado, talvez não estivessem tentando ser sutis. Deviam estar esperando que vacilasse ou cometesse algum erro. Revelar a própria identidade, quem sabe. Conteve um sorriso, enquanto gesticulava ao pedir vinho do Porto. Não precisava beber; bastava que parecesse estar exagerando. Phineas passou a noite dançando com mulheres que outrora julgara fascinantes, mas de cujos nomes mal se lembrava. Mesmo se o mundo soubesse que ele estava atrás de Alyse, não poderia pedir mais do que duas danças com ela. Ainda assim, ele queria todas. Queria tudo com ela. Aproximando-se dela cedo demais para a dança, precisou contentar-se em assistir 158

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ao rotundo jovem que a girava, nos últimos momentos da quadrilha. Quando a dança terminou, ele se adiantou. — Vamos? — Perdão, mas nem deixamos a pista — reclamou o sujeito. — Quem é você? — Phineas perguntou. O homem enrubesceu. — Francis Henning. — Phin Bromley. E agora que fomos apresentados, pode se afastar da srta. Donnelly. — Phin — ralhou Alyse, soltando-se das mãos de Henning e pondo os dedos entre os seus. Phineas repreendeu-se. O fato de estar se preparando para uma batalha não significava que devia sair atacando qualquer um. — Peço desculpas. Henning. Boa noite. — Ah. Boa noite. A dança foi uma tortura. Donnelly, Smythe e Ellerby estavam na pista, impossibilitando qualquer conversa. Seus dedos tocavam os de Alyse brevemente e se afastavam, quando tudo o que ele desejava era puxá-la para seus braços e beijá-la com paixão. Repetiu para si mesmo que a frustração de uma noite seria um preço baixo a pagar por que tudo ficasse bem outra vez. Assim que a dança terminou, entornou um copo de uísque. — Phin, isto é mesmo necessário? — perguntou William, sendo conduzido por Andrews até ele. — Sim, é necessário. Agora vá embora. Você está bravo comigo, lembra-se? — Não ouse assumir riscos adicionais para me proteger. Sou eu quem deve protegê-lo. Por mais absurdo que aquilo deveria ter soado, dito por um homem que não podia usar as próprias pernas, vindo William transmitia tanto força quanto dignidade. — Não vou arriscar nada desnecessariamente — disse Phin. — Mas, pelo amor de Deus, fique longe de mim esta noite! Grite comigo por estar bebendo ou algo assim. William resmungou e fez uma carranca antes de ser conduzido por Andrews para o meio da multidão. Bem, não era tão bom quanto as atuações que vira no palco, mas serviria. Seria mais simples se pudesse falar com Alyse e determinar quanta encenação seria necessária, mas podia cuidar daquilo sozinho. Na verdade, suas razões para querer conversar com Alyse tinham pouco a ver com o primo ou com Quence. Sabia que era egoísta, mas queria estar perto dela. Falar com ela, ouvir o som de sua voz, tocar a pele macia. E então a avistou seguindo em direção a uma das alcovas isoladas, fora do salão. Agilmente, virou na direção oposta, evadiu-se por uma porta e saiu do alcance da visão dos comparsas de Richard. Eles podiam ser eficientes ao atirar em faisões, mas nada sabiam sobre caçar um soldado treinado. — Alyse — ele murmurou, segurando-lhe o braço quando ela deixava a alcova. Ela o puxou para trás das cortinas. 159

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— O que você está fazendo? — ela sussurrou. — Já dançamos. Pensei que você quisesse ficar longe de... — Shh... — Phin beijou-a, deliciando-se com a forma como Alyse correspondia, envolvendo-o com os braços e pressionando o corpo esguio contra o seu. A excitação era dolorosa. Queria arrancar-lhe o vestido e acariciá-la por inteiro, enterrando-se no corpo macio outra vez. — Eu quero você — murmurou, correndo os lábios por seu pescoço. — Sem mais danças típicas. Apenas valsas. — Pare com isso. Se Richard nos vê, mata você aqui mesmo. Phineas não se importava, mas Alyse sim. Com um último beijo, afastou-se. — Sei que você ficaria mais segura longe de mim — ele disse, passando o dedo nos lábios sedutores. — Mas eu não consigo. — Talvez ficar longe tivesse sido mais seguro quando isso começou, mas agora eu prefiro estar onde estou. — Obrigado por isso. Ela o tocou no rosto antes de, com um suspiro, soltar-se de seus braços e abrir as cortinas. — Fiz Richard me pagar pela informação. Recebi duas mil e quinhentas libras, e não acho que vá receber mais alguma coisa. — Quero você fora daquela casa esta noite. Se ele pretende me assassinar, não quero imaginar o que faria com você. — Ele não ousaria. Tem uma desculpa para tentar deter o Francês. Comigo, teria muito mais dificuldades para explicar-se. — Você é uma mulher muito corajosa, Alyse. — Não é em mim que eles vão atirar. Phineas encarou-a por um longo momento. — Vamos resolver essa maldita coisa de uma vez — ele murmurou. — Você pode se oferecer para acompanhar Beth e William até em casa? Alyse assentiu. A maneira como ele a fitava... a fazia ter dificuldades até para falar. Phin beijou seus dedos e esgueirou-se para fora. Ela ficou onde estava por alguns instantes, recobrando o fôlego antes de seguir em busca de Richard. Phin já estava lá, de pé, sem muita firmeza, olhando o irmão mais velho. — Eu já lhe disse — ele falou para William em uma voz alta demais — que estou com dor de cabeça. — Então vá para casa — ralhou William. — Eu vim com você — ele disse com sarcasmo. A diferença entre o homem que acabara de beijar e o que estava ali era notável. Graças a Deus, Alyse sabia que era uma farsa! — Estou certa de que podemos levar William e Beth para casa, mais tarde — ela sugeriu. — Não podemos, Richard? — Sim, é claro. 160

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Phineas fez menção de hesitar, olhando entre o irmão e o primo de Alyse, mas acenou com a cabeça. — Presunçosos — balbuciou, esbarrando nos outros convidados ao sair do salão. Logo depois que ele saiu, Charles e lorde Anthony apareceram ao lado de Richard. O que quer que discutissem, não pareciam satisfeitos. Enquanto ela observava, William conferiu o relógio várias vezes. Após cerca de dez minutos, ele gesticulou para o criado e aproximou-se do trio. — Peço desculpas — ele disse —, mas hesito em enviar meu irmão de volta a Quence sem um de nós lá para... ficar de olho nele. Detesto pedir-lhe tal favor, Richard, mas... — Não diga mais nada. É claro que vamos levá-lo para casa. Charles, Anthony, vocês cavalgam conosco? Não tenho a intenção de encontrar o Francês esta noite. Charles e lorde Anthony haviam ido à festa cavalgando. Aquilo preocupava Alyse. Esperava que Phin tivesse previsto essa possibilidade. O Francês cavalgava um monstro negro, mas nem mesmo ele poderia escapar de um ataque vindo de três direções diferentes. Além disso, ele partira em um coche. Enquanto o coche avançava pela estrada, Alyse olhava pela cortina. Sob a fraca luz da lamparina, distinguiu Charles alguns metros à esquerda. Enquanto observava, o homem pegou uma pistola no bolso. Se tivessem a chance, jamais entregariam Phineas às autoridades. Eles o matariam. Aquela noite. — Parem e entreguem-se! No eco daquele grito, um único tiro foi ouvido. Alyse controlou-se para não apertar as mãos sobre o peito. Por favor, que ele fique bem, orou em silêncio. Por favor, que saia tudo como ele planejou. — Oh, bom Deus! — esganiçou-se tia Ernesta, agarrando o braço de Richard. — Sabia que devíamos ter ficado em casa hoje! — Calma, mamãe. — Richard pegou duas pistolas na parte de trás dos assentos. — Isso é necessário? — perguntou William. — Não quero arriscar que Beth se machuque. Lorde Anthony abriu a porta do coche de repente, assustando Alyse. — Não é conosco — ele avisou. — O quê? — Ele parou outro coche, logo após a curva, o tolo. Vamos, e nós o cercarerrios antes que ele perceba. — Esperem aqui — Richard ordenou ao restante dos ocupantes do coche e desceu. Alyse encarou William. Não era aquilo o que tinha previsto. Beth agarrou-se ao braço do irmão, com os olhos arregalados, e tia Ernesta continuou reclamando sobre o destino. E esperava-se que ela ficasse ali, de braços cruzados, enquanto três homens tentavam matar Phin! Não conseguiria fazer isso. Levantou-se e ia sair quando William tentou agarrar seu braço. — Alyse, fique aqui — murmurou. 161

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— Não consigo. Vou ter cuidado. O som de gritos a levou adiante, seu coração batia com tanta força que ela começou a achar que desmaiaria na estrada. Ao fazer a curva, deteve-se de súbito. Ali estava Phin, com os punhos erguidos, circulando... o Francês? Piscando e perguntandose se realmente havia desmaiado e estava sonhando, ela ofegou. Não soube por quanto tempo ficou ali, confusa. No instante em que viu, de relance, o cano de uma pistola em meio aos arbustos, apressou-se adiante. — Richard! — ela sussurrou, agarrando-lhe o braço. — Não ouse! Você vai acertar Phin! Richard empurrou-a com o cotovelo. — O que estão dizendo? — ele perguntou. Os dois homens falavam francês. O parceiro do salteador ainda estava montado, apontando a pistola para o condutor do coche de Quence, mas com o olhar na discussão que se desenrolava. — Alyse — Richard sussurrou, irritado. — Phin está ordenando que o Francês se entregue. — E qual a resposta? Alyse escutou. Era algo sobre Phin dançando com um vestido cor-de-rosa. Seus lábios se torceram. O que quer que estivesse ocorrendo, parecia ser parte do plano. — Ele diz que jamais vai se render — improvisou. Phineas avançou no salteador. Os dois caíram e rolaram até quase debaixo do coche. Golpearam-se até o outro lado da estrada e para dentro das moitas; folhas, terra e xingamentos espalhavam-se. Era hipnótico. Até mesmo Richard estava imóvel, esperando o que aconteceria em seguida. Com dificuldade, Alyse desviou o olhar dos homens em luta e virou-se para o segundo salteador. Ele sumira. O cavalo castanho permanecia ali, tranqüilo, mas o homem desaparecera. Depressa, ela voltou a olhar para o mesmo ponto, não querendo que Richard reparasse que algo lhe chamara a atenção. De repente, o primo enrijeceu. — Votre soeur est une guenuche — disse a voz atrás dos dois. — Alyse — sussurrou Richard, com o rosto lívido, sentindo o cano da pistola nas costas. Obviamente, ela não poderia traduzir, dizendo que a irmã dele era um macaco. — Ele disse para você largar a arma —- ela decidiu. Os dedos do primo abriram-se, e a pistola caiu. — Pelo amor de Deus, não me mate! O salteador fitou-a, com os olhos brilhantes sob a máscara. — Vá — ele disse com um sotaque carregado, empurrando Richard para a frente. — Et vous. — Fez uma breve reverência para Alyse, que seguiu ao lado do primo até a clareira. — Dit à lês autres idiots à nousjoignez. — Ele disse para vocês saírem, ou vai atirar em Richard — ela traduziu livremente. Chamar Smythe e Ellerby de idiotas poderia melindrá-los. — Apareçam! — ganiu o primo. 162

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Após um momento de xingamentos abafados, duas pistolas foram jogadas na estrada. Charles e lorde Anthony surgiram. — Cest une pitíe — o salteador comentou. Embora o sujeito estivesse desapontado com o fato de todos cooperarem, Alyse estava grata por ninguém ter sido baleado. — Ele disse para vocês se sentarem — ela falou, e o homem a fitou de novo. Phin e o Francês rolaram diante do grupo, cada um comentando sobre a falta de virilidade e o mau gosto para bebidas do outro. Aquilo soava desagradável, o que, ela supunha, era o objetivo. Atirando longe o criminoso, Phin abaixou-se brevemente para pegar as duas pistolas descartadas. Atirou com uma delas na direção do Francês... e de alguma forma errou. — Chega — ele rosnou, ofegante, com sangue escorrendo de um corte na testa. — Você perdeu, seu porco francês. Ainda murmurando em francês, desta vez sobre a falta de higiene de Phin, o camarada recuou alguns passos. — Você venceu — ele admitiu, com um forte sotaque francês. — Então volte para a França. Podemos nos encontrar no campo de batalha, onde, pelo menos, você pode morrer com honra. Quando o Francês retornava para o garanhão negro, Phineas o deteve. — Creio que não, mon ami. Você perdeu sua montaria para mim. Pode cavalgar com seu companheiro. Entregando a Phin a pistola, o segundo salteador montou o cavalo castanho. Fazendo um último gesto rude, o Francês subiu atrás dele. — Adieu — ele disse, e eles sumiram na noite. — Oh, céus! Olhando ao redor, Alyse avistou a tia ao lado de Beth, agarradas uma à outra. E então a velha senhora desmaiou. De novo. Quando voltou o olhar para a cena do quase-roubo, Phin caminhava em sua direção. — O que você está fazendo aqui? — ele perguntou. Alyse tocou o corte na cabeça dele. — Estávamos levando William e Beth até em casa. Você está bem? — Vou sobreviver. — Preciso admitir — ela disse, olhando para o primo enquanto ele e seus companheiros começavam a levantar-se — que houve algumas vezes em que pensei que você fosse o Francês. — É compreensível — Phin ofereceu-lhe o braço —, já que eu ainda não havia sido parado por ele. — Pensei que você estivesse se sentindo mal — comentou Richard, não tão amistoso. — Um pouco de briga, e já estou bem melhor — Phin respondeu. — Por que não atirou neles quando teve chance? 163

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— Não queríamos acertá-lo por engano — disse o primo. — Dou-lhe cinqüenta libras pelo cavalo do Francês — lorde Anthony ofereceu. — Obrigado, mas não. Acho que conquistei o direito de ficar com ele. — Ele levou um dedo ao ferimento na testa, sem deixar que Alyse se afastasse. — Muito bem — sussurrou quando Richard finalmente foi ver a mãe desmaiada. — Quem eram eles? — ela perguntou, baixinho. — Mais tarde. — Soltando-a, Phineas foi até Beth. — Como você está, princesa? Ela se atirou em seus braços. — Você foi magnífico! Queria que William tivesse visto, mas ele pediu para ser deixado lá atrás com Andrews. Vou contar-lhe sobre seu heroísmo! — Olhou para onde Richard estava, com a mãe gemendo nos braços. — E você foi admirável também. Richard parecia furioso. Alyse permitiu-se um momento de satisfação, antes de preocupar-se. O primo fora superado e, certamente, não gostara disso. Não mesmo. Mas, pelo menos por aquela noite, Phin estaria a salvo, e ninguém mais suspeitaria de que fosse o salteador. Faltava agora salvar Quence. E Alyse perguntar-se como lidaria com duas mil e quinhentas libras e a idéia de que Phin partiria de novo.

Capítulo VI

— Aonde você está indo? — perguntou Sullivan quando Phineas pegou um pedaço de queijo na bandeja sobre o aparador e dirigiu-se à porta. — Vou sair em meu novo cavalo, que decidi chamar de Ajax, e ver se Alyse quer cavalgar comigo. Bram cambaleou pela porta e jogou-se em uma cadeira. — Café — resmungou, apoiando a cabeça nos braços cruzados. — Não o atingi com tanta força, Bram. — Phineas interrompeu a retirada com relutância. Parecia fazer dias, e não horas, desde que vira Alyse pela última vez. Queria conversar com ela, dizer-lhe o que não lhe dissera antes a respeito do plano para livrar-se do Francês. E queria certificar-se de que ela sabia que aquilo poderia forçar Donnelly e seus asseclas a agirem com mais vigor. — Não foi rolar no chão com você — ele grunhiu. — Foi garrafa de Porto com a qual comemorei depois que voltamos para cá. — Bem, então é culpa sua, e eu não terei pena. Dessa vez, Phin conseguiu chegar até a porta antes que William surgisse e a bloqueasse com a cadeira de rodas. — Aonde você vai? — o irmão perguntou. — Ele quer cavalgar com Alyse — disse Sullivan. 164

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— Não acha que ela já arriscou demais por você? — perguntou William, sem sair da frente. — Richard não gosta de você, caso não tenha notado, e cada vez que você fala com ela, torna-lhe a vida mais difícil. — Se você não reparou, ainda precisamos da ajuda dela. O Francês se foi, e tenho que saber o que Donnelly pretende fazer. — E, se você não reparou, ela já fez o bastante. Você não pode esperar que a moça dê passos que a façam sacrificar o teto que tem sobre a cabeça. Deixe-a em paz. Por um instante, Phineas encarou o irmão. William estava correto, mas, ainda assim, ele não conseguia deter-se. Precisava vê-la. Não podia esperar que eles compreendessem, já que ele mesmo mal entendia. Tudo o que sabia era que Alyse tornara-se vital para ele. — Não! — Ele empurrou os braços da cadeira de rodas, até que conseguisse passar pelo irmão e chegar ao corredor. Quando Phineas sumiu, Bram ergueu a cabeça. — Este, meus amigos — rosnou —, é um tolo. — Um tolo apaixonado, eu diria — acrescentou Sullivan. William olhou de um para o outro. Ainda que não tivesse considerado a intensidade dos sentimentos do irmão, os amigos podiam estar certos. O que Phin precisava perceber era que não poderia manter Alyse e a carreira militar. Porque, nos últimos quatro anos, quase todos na vida de Alyse a tinham abandonado. Ele não podia, em sã consciência, permitir que Phin fizesse o mesmo. — Por quanto tempo vocês vão ficar? — perguntou. — Eu me ofereci para ficar até que toda a confusão estivesse resolvida — disse Bram, erguendo a cabeça de novo quando uma xícara de café surgiu diante dele. — Mas Phin preocupa-se que, caso sejamos vistos, Donnelly descubra nosso esquema. — Pensamos em partir esta manhã, antes de sermos descobertos. Mas, se precisarem de nós, William, mande nos chamar — Sullivan acrescentou. — Phin sabe que vocês estão partindo? — Sabe — respondeu Bram. — Se não estivesse tão encantado com a srta. Donnelly, provavelmente teria se lembrado de se despedir. E de agradecer-nos de novo pelo heroísmo. Sullivan sorriu. — Eu faria tudo de novo, apenas pela diversão. Com ou sem agradecimento. — Isso é porque você foi domesticado, e sua vida é um tédio sem fim. — Hum. Vai me visitar no caminho de volta a Londres? — É claro que vou. Mas antes, preciso tomar o maldito café da manhã. Phineas estava no vestíbulo da casa dos Donnelly, esperando Alyse. Ainda que não tivesse poderes telepáticos, diria que o solar inteiro parecia... tenso aquela manhã. E furioso. Imaginava que aquilo se devia a Richard. Ele fora superado. A questão então era: o que ele tentaria em seguida? Donnelly entrou no vestíbulo, vindo do gabinete. — Coronel Bromley — disse, acenando com a cabeça. 165

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— Milorde. — O que o traz aqui esta manhã? Ah, Alyse, imagino. — Vamos cavalgar. — Sim, bem, divirtam-se. Phineas franziu o cenho, mas disfarçou rapidamente a expressão. — Isso soou um tanto agourento — arriscou. — Soou? Apenas quis dizer que Alyse revelou-se uma péssima acompanhante para mamãe. Não posso manter alguém inútil em minha casa indefinidamente. Afinal, ainda que eu acredite em caridade, isso está se tornando ridículo. Ela já passou por cinco casas. — Ela sabe que pretende mandá-la embora? — Ainda não. Talvez você queira contar-lhe. Tenho certeza de que será mais gentil do que eu. — Desgraçado — murmurou Phin. Donnelly teve o desplante de sorrir. — Tenha um bom dia — disse, sumindo por outro corredor. Phineas queria segui-lo e dar-lhe a surra que merecia. Ser um maldito cavalheiro, sabendo que a reputação de outras pessoas estava ligada à sua, era irritante. — Pronto? — Alyse desceu as escadas. — É claro que estou. Ela vestia o traje dourado, e tinha no rosto um sorriso caloroso destinado apenas a ele. Ciente do que Donnelly planejara para ela, sentiu-se predador e protetor ao mesmo tempo. Desejava-a, e não queria que a infelicidade ou a desesperança a afetassem outra vez. Seu sorriso sumiu. — Há algo errado? — Não — ele mentiu, tomando-lhe a mão. — Com o seu cavalo branco e o meu negro, espero que ninguém nos julgue pretensiosos. Alyse sorriu. — Excêntricos, talvez, mas jamais pretensiosos. Do lado de fora, Phineas passou-lhe as mãos pela cintura e a ajudou a montar. Cada vez que a tocava, tornava-se mais difícil soltá-la de novo. Será que Alyse se sentia da mesma maneira? Nunca se apaixonara, mas não conseguia imaginar que ela não sentisse ao menos uma parte do que sentia por ela. Enquanto se afastavam, com o cavalariço atrás, lembrou-se tardiamente de que Sullivan e Bram partiriam naquela manhã. Estivera tão envolvido com a ideia de ver Alyse que se esquecera por completo. — Pode me contar quem eram seus ajudantes ontem à noite? — ela perguntou em voz baixa. — Dois grandes amigos meus, Sullivan Waring e lorde Bramwell Johns. Servimos juntos. — Lorde Bram Johns? — ela repetiu. — Já dancei com ele. Uma pontada de ciúme o atingiu, mas ele se controlou. Claro que haviam dançado. Alyse passara quase três 166

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temporadas como a jóia de Londres, e Bram tinha um olho bom para a beleza. Durante meia hora, conversaram sobre nada em particular. Ele precisava fazer algumas perguntas, mas poderia esperar um pouco. Se fosse egoísmo querer passar algum tempo com ela, sem qualquer razão, que assim fosse. E, assim que voltassem a falar dos que estava acontecendo, teria que revelar os planos de Donnelly. — Funcionou? — ele perguntou, por fim, quando não pôde mais adiar. — Nossa farsa? — Sim. Richard acha que você o enganou, mas parece saber que nunca será capaz de provar. Ele está bem nervoso hoje. — Presumi. — Você falou com ele? Maldição! Como Donnelly dissera, Phin seria mais gentil. Não que gentileza alterasse a situação. Respirou fundo. Preferiria encarar uma linha de canhões franceses, mas aquilo precisava ser feito. — Ele me disse que pretende mandá-la embora. A expressão de Alyse fechou-se por completo. — Não posso dizer que estou surpresa — disse, após alguns instantes, com a voz trêmula. Uma lágrima correu por seu rosto. — Alyse. — É tolo, eu sei — ela prosseguiu, outra lágrima, e então mais duas seguindo a primeira —, já que não gosto nem de Richard nem de tia Ernesta. Mas pelo menos, voltei para cá. Eu... — Eu amo você. Phineas não teria certeza de ter dito aquilo em voz alta, se não fosse a surpresa nos olhos de Alyse. — Ph... Phin, você não precisa se sentir culpado. Eu sabia o que poderia acontecer. Ele estendeu a mão e segurou as rédeas de Snowbird, detendo os dois cavalos. Ainda sem falar, mal podendo pensar, com o coração disparado, ele desmontou. — Você, fique aí — ordenou ao cavalariço, enquanto ajudava Alyse a descer. — Você, venha comigo. — Phin. — Ela resistiu. — Eu disse para vir comigo. — Puxou-a com mais força, e ela cedeu, andando pela trilha com ele. Continuaram por uma curta distância, até que Phin avistasse uma pequena clareira, revestida de pequenas flores brancas. — Não. — Ele a virou em sua direção. — Eu fiz isso a você e vou consertar as coisas. — E como pretende fazer isso? Convencendo Richard a ver o erro que está cometendo? — Case-se comigo. Alyse encarou-o, boquiaberta, por diversos instantes, antes de recuar e sentar-se em um tronco de árvore caído. Phineas não soube avaliar a reação. — Bem? — pressionou. 167

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— Você... não pode apenas fazer isso. — Não posso pedir que se case comigo? Permita-me discordar. — Você acaba de dizer que minha situação é culpa sua e, no momento seguinte, me pede em casamento! É muito nobre, suponho, mas não quero que você se prenda a mim por pena. Isso é horrível. É a pior coisa que posso imaginar. Especialmente quando ambos sabemos que você pretende voltar para a guerra. — Oh, bem, obrigado. — Virou-se de costas e caminhou até a margem da clareira e de volta, tentando afastar o súbito... desgosto da idéia de ser separado de Alyse. — Como posso ajudá-la então? — Eu não sei. Na verdade, eu não preciso da sua ajuda. Tenho duas mil e quinhentas libras, além do dinheiro que tenho roubado de tia Ernesta. Eu... — O quê? — ele a interrompeu. — Sempre que me mandava à cidade, eu guardava um pouco do troco. Jamais pretendi ficar com eles para sempre. — Então por que está tão aborrecida com a idéia de partir agora? — Por que você acha? Vou sentir falta de East Sussex. — Ah. — Phineas viu-a torcer as mãos sobre o colo. — Você se casaria comigo, se Richard lhe desse todo o dinheiro que lhe deve? — O que uma coisa tem a ver com a outra? — Eu não sei! — gritou Phineas. — Estou confuso! — Não grite comigo! — Não estou gritando! Pelo amor de Deus, Alyse! Eu disse que a amo, e agora, subitamente, você me diz que é culpa, e não amor, e que não precisa de mim. Como diabos eu vou saber o fazer ou dizer agora? — Bem, para começar, você não me ama. — Amo, sim. — Não, não ama. Sou um rosto amigo, depois de dez anos. — Há várias pessoas que não vejo há dez anos, e não saí por aí dizendo a todas que as amava. Nem mesmo me esgueirei para o quarto delas no meio da noite. Alyse corou. — Nós temos uma... ligação. Isso, eu admito. Mas... — Mas o quê? Você sabia que, antes de partir, eu tinha começado a cavalgar sob sua janela à noite? E não só porque eu queria conversar com você. — Eu... Você é um soldado, Phin. Você deixou sua própria família, dez anos atrás, e eles ficaram magoados. Eu vi. Fiquei magoada também, mas... isso não importa. Eu não... Não posso suportar a idéia de ser abandonada outra vez. Especialmente não por você. Phin ajoelhou-se diante dela. — Então você quer a mim, ou a outra pessoa, para companhia. Como um cão. — Não! Não, é claro que não. — Então o que é? 168

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Mais lágrimas correram pela face de Alyse. Ele detestava a idéia de fazê-la chorar, mas precisava de algumas malditas respostas! — Certo. Eu não quero amar você. Sei que vai me magoar, que vai embora. Não posso nem... pensar em outra coisa além de você, e agora você me pediu em casamento, e não pelos motivos certos, e... Phineas ergueu-se e beijou-a. Os lábios tinham gosto de lágrimas, e ele continuou beijando-a até que Alyse o abraçasse e baixasse até a relva, pressionando-se contra ele. — Somos bons juntos — ele murmurou. — Você desperta o melhor em mim. — Phin, pare. — Não. — Beijou-a novamente. — Phin, pare. — Não, não vou pa... — Olhe! Confuso, ele ergueu o rosto. Alyse olhou por sobre seu ombro, e Phin virou-se, talvez esperando ver Donnelly e os comparsas surpreendendo-os, armados. Em vez disso, viu uma nuvem negra sobre as árvores. Fumaça! Erguendo-se sobre Quence. — Meu Deus! — Ele se levantou e puxou Alyse. — Vamos. Eles correram até os cavalos. Com o peito comprimido e dificuldade para respirar, ele ajudou Alyse a montar e saltou sobre Ajax. — Fique com ela — gritou para o cavalariço, incitando o cavalo a um galope em direção à casa. Phineas inclinou-se para a frente, cortando o vento, apressando o garanhão ainda mais. Beth e William estavam em casa. Beth poderia sair, mas ela não deixaria o irmão. Rezou para que Sully e Bram ainda não tivessem partido, para que ele e Alyse não tivessem sido os únicos a verem a fumaça, para que a criadagem tivesse encontrado baldes e água, e soubesse o que fazer. Enquanto se aproximava, viu a fumaça erguer-se, negra e espessa, à frente da casa. Um trio de cavalos passou à distância, galopando para longe de Quence. Donnelly e seus amigos. Então não havia sido um acidente. A fúria tomou-lhe o peito, mas ele a afastou. Mais tarde. Eles pagariam por aquilo, mas primeiro precisava saber se a família estava a salvo. Dos jardins, viu a fumaça saindo pela meia dúzia de janelas no andar térreo. A porta principal estava fechada. Warner, Tom e alguns outros corriam por toda parte, atirando baldes de água nos vidros quebrados. Não conseguia ver ninguém mais em meio à cortina escura. Saltou de Ajax antes mesmo que o cavalo parasse. — Beth! — berrou, correndo até a porta da frente. — William! — Tossindo, ele empurrou a maçaneta. Não se movia. — Phin! — gritou Beth do outro lado da porta. — Não conseguimos sair! — Está trancada? — ele perguntou. — Phin! — Sullivan gritou. — Eles pregaram as portas! Recuando e agitando as mãos para afastar a fumaça, Phineas olhou para a porta. Na parte de cima, alguém prendera uma grossa tora de madeira. Nada muito visível para alguém que chegasse ao 169

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local após o incêndio, mas bastante eficiente. Enfiou os dedos por baixo e puxou. A madeira cedeu, mas ele não tinha apoio suficiente para arrancá-la. — Sully! — ele gritou. — Ajax sabe dar coices? — Sabe! Ele correu até o cavalo, que resfolegava nervosamente. Montando-o, levou o animal em direção aos degraus da entrada. — Vamos lá, garoto — disse, controlando a tosse e tentando manter a voz tranqüila. Relinchando, Ajax subiu os degraus e parou no pórtico. Phineas virou-o de costas para a porta. — Para trás! — ele gritou e, erguendo-se nos estribos, atingiu Ajax nas ancas. — Upa! — comandou, grato por saber como Sullivan adestrava os animais. — Upa, Ajax! Ambas as patas chutaram para trás, com força, e as portas racharam de cima a baixo. — De novo, Ájax! Upa! O garanhão deu outro coice. A porta vergou para dentro, pendurada pela dobradiça inferior. Depressa, Phineas levou Ajax de volta ao pátio e desmontou. Ao chegar à porta, ela foi puxada para trás. Sullivan surgiu, com Bram ao lado. — Onde está William? — Ele agarrou o braço de Beth e puxou-a para fora. — Vá ficar com Ájax — ele ordenou. — Aqui dentro — gritou o irmão, tossindo. — Tirem William de lá! — Beth falou com voz trêmula. Phineas entrou. — Estão todos aqui embaixo? — perguntou, curvando-se sob a grossa fumaça. — Conferi rapidamente — disse Bram, tossindo. — Não vi mais ninguém. Sullivan ajudava os criados a saírem, mandando que apanhassem baldes e se unissem à crescente fila de pessoas atirando água pelas janelas. — Peguei o pessoal da cozinha quando conferi a porta dos fundos. Eles a pregaram também. William, com Andrews, como sempre, em pé atrás dele, estava no vestíbulo. — Você é o próximo — disse Phineas. — Meu povo primeiro. — Não. — Inclinando-se, Phineas pegou o irmão nos braços. — Traga a cadeira — disse para Andrews, saindo da casa. A alguns metros, Alyse segurava um balde cheio de água. — Não joguem nas paredes! — ela gritou. — Joguem para dentro dos quartos! — Aqui, senhor. — Andrews pôs a cadeira no chão, e Phineas, baixou William até o assento. — Você está bem? — perguntou, agarrando o ombro do irmão. — Apenas traga todos para fora. — Farei isso. 170

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Ele voltou para dentro da casa, rasgou as cortinas das janelas do vestíbulo e foi até a sala do desjejum. Com a fumaça baixa, ele mal podia ver. Ainda assim, conseguiu abafar o fogo nas tábuas do chão, em um canto da sala. Atirou pedaços da mobília em chamas pelas janelas quebradas, arrancou cortinas e, pegando baldes, jogou água nas peças que não podia mover. Com o canto dos olhos, notou que Bram estava ali com ele, e escutou Sullivan e Gordon gritando na sala de estar, do outro lado do vestíbulo. Finalmente, Bram agarrou seu braço. — Acho que conseguimos — disse, com o rosto coberto de fuligem. Curvou-se, tossindo. — Fique aqui e mantenha-se alerta — instruiu Phineas, com a própria voz rouca por causa da fumaça. Caminhou até o cômodo do outro lado do vestíbulo. — Alguém ferido? — Algumas pequenas queimaduras — disse Sullivan. —- E acho que Gordon teve uma sobrancelha chamuscada. Phineas encostou-se à soleira da porta e fechou os olhos por um longo momento. — Graças a Deus vocês estavam aqui! — É a primeira vez que ouço alguém agradecer a Deus por mim — disse Bram, logo atrás. — Phin? Phin? — Alyse tropeçou nas ruínas da porta da frente e voou para os seus braços. Com o coração descompassado, ele a abraçou com força. — Você foi magnífica lá fora — sussurrou. — Sabia que você não deixaria a casa. Não queria que se queimasse. Eu amo você. Ele queria apenas ficar abraçado a ela, esquecendo-se de todo o resto. Alyse amavà-o. Naquele momento, sentia-se capaz de conseguir qualquer coisa. — Há algo mais que não tenha nos dito, Phin? — perguntou Bram. Tomando fôlego, Phineas olhou de um amigo para o outro. — O que, exatamente, aconteceu? — Dois deles irromperam pela sala de desjejum — disse Sullivan. — Deveríamos ter esperado algo, mas... — Eu deveria ter esperado algo — interrompeu Phineas. — Donnelly e Smyhte — contribuiu Bram. — Eles apontaram pistolas para nós, provavelmente enquanto outra pessoa pregava as portas, e então nos trancaram do lado de dentro. Em menos de um minuto, começamos a sentir o cheiro da fumaça. Estávamos tentando decidir como passar William pela janela quando você chegou. — Eu esperava que a próxima ação fosse mesmo mais direta, mas pensei que seria contra mim. No entanto, eles sabiam que eu estaria fora. — Phineas olhou para os amigos, horrorizado. — Eles não esperavam por vocês. E, se não estivessem aqui, eu... — A questão é — Bram interrompeu —, como pretende reagir a esse pequeno gesto? Phineas sabia como queria reagir. Porém, olhando ao redor, para a destruição do recinto, e para Alyse, segurando-lhe a mão, decidiu como pretendia reagir. 171

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— Estou cansado de espreitar e usar disfarces. Gordon, tenho uma tarefa para você. — Sim, coronel. — Sullivan e Bram, faremos uma visita à casa dos Donnelly. Alyse agarrou seu braço. — O que você vai fazer? — Vou acabar com isso. — O que você vai fazer? Matá-lo? — perguntou William. — Phin, o homem é um visconde! Você vai destruir seu futuro. — Vou detê-lo. Deixarei que ele escolha o método. — Montando Ajax, virou-se para Alyse. — E deixarei que você escolha o destino dele, Alyse. Ela o fitou por um instante, antes de dizer: — Não o quero morto. Na verdade, apenas não desejo vê-lo ou tia Ernesta nunca mais. — Feito. — Phin — disse William —, não pense que deve sacrificar-se para consertar as coisas. Você não nos deve nada. — Devo, sim. Bram saudou os espectadores ali reunidos. — Cuidem para que haja almoço à nossa espera. Imagino que voltaremos famintos. Os três amigos seguiram rumo à casa dos Donnelly. William havia tocado no ponto. Ele devia muito aos irmãos. Fugira deles dez anos atrás, não porque William não suportasse encará-lo, mas porque ele não conseguia olhar para si mesmo. Fora covardia. Nos últimos anos, ele enfrentara exércitos, matara homens, fora baleado e, ao longo de todo esse tempo, o mais assustador fora a idéia de retornar a Quence Park. Mas então ele voltara e, gradualmente, tanto ele quanto os irmãos começaram a perceber que ele não era mais o tolo autodestrutivo que havia sido aos dezessete. E Alyse... No passado, uma companheira destemida. Agora, muito mais do que isso. Fizera a ela algumas promessas e pretendia encontrar uma forma de mantê-las. No momento, contava com uma espécie de vantagem. Se tivesse chegado em casa minutos mais tarde, se Sully e Bram não estivessem lá, os irmãos estariam mortos. A idéia trouxe sua fúria à tona de novo. Dessa vez, deixou os sentimentos fluírem por seu corpo. Donnelly pretendera cometer assassinatos. E o visconde devia achar que realmente matara William e Beth, e todos os outros ocupantes da casa. Tudo de que Donnelly precisaria para assegurar uma boa oportunidade de tomar Quence Park seria a morte do único irmão restante. Estariam esperando por ele. Esperando que ele estivesse cego de dor, pensando apenas na vingança. E esperariam que estivesse sozinho. Por mais que quisesse atacar a casa, com as pistolas em punho, seria melhor usar a lógica. Donnelly sabia que ele não estaria em Quence quando pôs fogo na casa. O que significava que pretendia lidar com ele mais diretamente. Queriam matá-lo de perto. E isso, ele poderia usar. Logo antes da última reta em direção à casa dos Donnelly, havia na estrada uma curva com um antigo olmo e uma série de carvalhos. Phineas 172

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deteve Ajax e desmontou. — Alguma preferência? — ele perguntou, enquanto liberava o rolo de corda que amarrara à sela e jogava-o sobre os ombros. — Exceto Donnelly. Ele é meu. Bram conferiu a pistola antes de recolocá-la no bolso do casaco. — Sempre achei a colônia de Smythe irritante. — O que me deixa com Ellerby — murmurou Sullivan. — Tentem mantê-los vivos, se possível — disse Phineas, enfiando um par de pistolas no colete. — Prefiro que confessem. — Apenas uma vez — comentou Bram, enquanto se moviam por entre as árvores, em direção ao jardim principal — seria bom que pudéssemos nos sentar, só nós três, com uma garrafa de vinho, sem ninguém tentando nos matar. Sullivan riu. No jardim, eles se separaram. Phin carregava um segundo par de pistolas nos bolsos do casaco e, independentemente do que planejara, estava disposto a usá-las. Aquilo lhe dava ainda outra vantagem: enquanto Donnelly e seus amigos tinham matado alguns faisões e atirado contra ele no escuro, nos últimos dez anos ele tornara matar sua profissão. E era bom naquilo. Mantendo-se abaixado, deixou as árvores e, abrigando-se no muro do jardim, seguiu até os fundos da casa. Conhecia bem o lugar, e fizera para os amigos um esboço com o máximo de detalhes. Ao mesmo tempo, não sabia quantas armas ou quantos olhos o estariam esperando. Os que mais o preocupavam eram Ellerby, Smythe e Donnelly. De uma perspectiva defensiva, ele colocaria dois homens no andar de cima, em lados opostos da casa. Bram e Sullivan deviam estar pensando a mesma coisa, pois o primeiro seguiu para a ala leste enquanto o segundo ia para a oeste. A menos que tivesse avaliado o caráter de Donnelly de forma equivocada, presumia que o visconde estaria no andar térreo, esperando para desferir o último tiro após um dos outros homens o levarem para baixo. Usando uma pequena trepadeira como cobertura, analisou as janelas. Se eles estivessem contando com sua fúria, provavelmente estariam concentrando-se na frente da casa. Supunha que, se eles tivessem mesmo matado sua família, ele teria galopado diretamente para a entrada. Saltou sobre a cerca baixa, esgueirando-se adiante, até encontrar novo abrigo sob a estátua de mármore de Afrodite. Um sorriso curvou seus lábios. A única coisa que já conhecera que o fazia sentir-se mais vivo do que uma boa luta era Alyse. Podia desistir da luta, mas não de Alyse. Era como se tivesse tomado uma decisão antes mesmo de conscientemente fazer a si mesmo a pergunta. Avançou mais uma vez. Ao chegar à base da casa, rastejou sob as janelas até espiar por uma que estava aberta alguns centímetros. Olhou depressa para dentro e se abaixou de novo. Parecia ser uma das salas de estar, e estava vazia. Abriu a janela um pouco mais, deslizou sobre o batente e foi até a porta. Retirou uma pistola do bolso e, por um longo momento, apenas escutou, combatendo a impaciência. O tempo era seu aliado, e pretendia usá-lo. Silêncio. Em uma casa grande e ocupada, a ausência de som e movimento no meio da manhã era um tanto desconcertante, mas aqueles a quem ele e os amigos caçavam deviam ter a mesma sensação. Devagar e com cuidado, saiu do aposento e caminhou pelo corredor, certificando-se de não haver ninguém nos pequenos cômodos de 173

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cada lado. A casa, entre as alas leste e oeste, parecia deserta. Donnelly tinha uma natureza desconfiada. Era possível que tivesse reunido e trancado seus criados no sótão ou no salão. Ernesta devia estar escondida no quarto. A menos que ela interferisse, Phineas a deixaria em paz. Estava a meio caminho no corredor principal, que levava ao vestíbulo e aos cômodos da frente, quando escutou o visconde. — Nenhum sinal do desgraçado ainda? — Donnelly gritou de algum lugar à esqueda da escadaria principal. Idiota. Considerando que ninguém respondeu, Phin teve o sinal que esperava. Hora de agir. Ergueu um grande peso de papel, feito de vidro, da mesa do corredor e atirou-o na janela do aposento à direita do vestíbulo. Escondeu-se de novo nas sombras da escada enquanto o som de vidro estilhaçado ecoava pela casa. — Ele está aqui! — Donnelly gritou, saindo do aposento matinal. — Venham até aqui! Phineas mirou e disparou a pistola. O visconde ganiu quando a arma dele voou para longe, chocando-se contra a porta da frente. — Assim é melhor. — Phineas deixou de lado a arma usada e emergiu do meio das sombras. — Smythe! — gritou o visconde. — Anthony! — Desculpe — devolveu Phineas, avançando —, mas receio que sejamos apenas nós dois. — Seu assassino! — Eu? E o que, precisamente, você andou fazendo esta manhã? — Nada! Você é o louco que invadiu minha casa e me deu um tiro! — Vou dar-lhe uma chance. — Phin tirou o grande casaco. — Você pode tentar me superar cara a cara. Sem traições e sem ferir gente inocente para alimentar sua ganância. Apenas você e eu. — O quê, para que você possa me surrar até a morte? Phineas sorriu sombriamente. — Essa é a idéia. — Jamais. — Donnelly recuou, em direção à porta da frente. — Vou fazer com que seja preso por invadir a minha casa e me ameaçar. Você vai para a prisão, e eu ficarei com Quence Park. — Não acho que William gostaria muito dessa idéia. — W... William? — Sim. Recentemente, ele passou a não gostar tanto de você. E também acho que ele não vai mais aprovar que continue cortejando Beth. — Ele andava em círculos, impedindo o visconde de chegar até a porta. — Esqueci de mencionar que você não conseguiu matá-los naquele incêndio, afinal? — Eu... Eu não tenho idéia do que está falando. Claramente, você enlouqueceu. Um assobio agudo soou por trás do muro do jardim. 174

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— Você parece ter outro convidado, Donnelly — comentou Phineas, abrindo a porta da frente e assobiando de volta. — Saia, Bromley. Não vou dizer-lhe outra vez. — Eu realmente gostaria que você tentasse me obrigar — ele falou, suspirando. A fúria ainda o compelia. Por ora, no entanto, deixaria que passasse. Havia outras coisas mais importantes. O sargento Gordon subiu os degraus. — Tudo certo, coronel? — ele perguntou, enviando a Donnelly um olhar desconfiado ao entrar na casa. — Isso depende do êxito da sua tarefa. — Oh, sim, foi bem-sucedida. — Inclinou-se para fora da porta. — Por aqui, senhor, por favor. Phineas virou-se e viu a tarefa de Gordon entrar no recinto. — Sr. Pepper — ele disse —, obrigado por vir. — Seu homem aqui não me deixou muita alternativa — devolveu o advogado. — Estava com um cliente quando ele irrompeu no escritório e me arrastou para fora. Quando eu compartilhei com você a condução para Uckfíeld, não esperava ser seqüestrado. — Espero que perceba que a causa vale a interrupção. Vamos até a sala de desjejum, sim? — sugeriu Phineas. — Não vou a parte alguma — Donnelly falou, com o rosto vermelho. — Vocês vão sair da minha ca... — Escutei o que disse antes. Lorde Donnelly, este é o sr. Malcolm Pepper, advogado em Uckfield. Sr. Pepper, lorde Donnelly. — Ah, olá — disse Pepper, sentindo a tensão no ar. Quando Donnelly continuou recusando-se a sair dali, Phineas foi até ele, agarrou-o pela lapela e empurrou-o para a sala da desjejum. — Talvez eu não tenha sido claro. Eu lhe dei uma chance de me enfrentar cara a cara, mas você declinou e, portanto, perdeu. Eis agora as conseqüências. Quando chegaram à sala, Phin pegou uma das pistolas no colete e atirou-a para Gordon. — Mantenha-o aqui por um instante. E, sr. Pepper, por favor comece a escrever uma confissão. O sargento Gordon vai ajudá-lo com as palavras. Phin assobiou junto às escadas. Ellerby pôs-se à vista, com Sullivan logo atrás. Um momento depois, Bram aparecia também, arrastando Smythe pelos calcanhares. — O que foi? — Bram perguntou. — Ele tentou fugir. — Certo. Tragam-nos até aqui. Arrastaram Smythe e Ellerby até o andar de baixo. Quando terminaram de amarrálos às cadeiras, Pepper já pusera boa parte da história no papel. — Mencionei as ruínas, os cães, a inundação e, é claro, o fogo — disse Gordon. — Não se esqueça do coche tombado e dos cavalos envenenados. Estou certo de que lorde Donnelly tem relação com isso também — orientou Phineas. — Isso tudo é verdade? — perguntou o sr. Pepper. A expressão dele passara de 175

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incerta a severa. — Esses são apenas os incidentes dos quais estou ciente — respondeu Phin. — Tenho certeza de que há mais, mas esses devem bastar. — Você não pode provar nada disso. Phineas ignorou o protesto. Quando tudo estava escrito de maneira adequada, ele pôs o sr. Pepper para trabalhar em um segundo documento. — Esse deve ser simples. Por favor, escreva o seguinte: "Eu, Richard, lorde Donnelly, destino a soma de dez mil libras para a minha prima, srta. Alyse Donnelly. A quantia será entregue integralmente em quarenta e oito horas, a partir do presente ato, e poderá ser usada como ela decidir." Precisamos de outra cópia disso, para o lorde aqui. — Não vou assinar. Eu não vou assinar nada. — Vai assinar os dois, ou eu mato você. — Phineas apoiou o quadril na mesa. — Eis o que faremos. Vou entregar sua confissão, lacrada, a William. Ele não fará nada com ela, sob a condição de que você deixe esta propriedade e nunca mais retorne. Pode se estabelecer em Halfens ou onde preferir. Se mais algum infortúnio se abater sobre Quence Park ou qualquer integrante da minha família, sua confissão chegará ao magistrado em Londres. — Conte-lhe a outra parte — Bram falou. — Oh, sim. Obrigado, lorde Bramwell. Quence Park vai revitalizar as velhas termas romanas. Descobrimos que elas podem tornar-se populares em meio à nobreza que viaja entre Londres e Brighton. — Não vou assinar a ridícula confissão. Você não tem provas, ou teria ido... Phineas puxou a segunda pistola do cinto e disparou na perna de Donneliy. O visconde gritou, e Pepper escondeu-se embaixo da mesa. Nenhum de seus homens piscou. — Eu mencionei que o fato de você cortejar minha irmã sob falsos pretextos não é algo que me deixa muito feliz? — ele murmurou. — Sr. Pepper, por favor, mostre a lorde Donnelly onde assinar a confissão. E então lorde Anthony e Charles servirão de testemunhas. O advogado saiu debaixo da mesa. Apanhando a tinta, a pena e os papéis, levouos até o soluçante visconde. — Aqui, milorde. — Você atirou em mim! — Isso quase não conta. Há mais três pistolas nesta sala, e o você tem mais dois braços e uma perna. Assine. Com a mão trêmula, Donnelly mergulhou a pena na tinta e assinou todos os documentos. Os papéis seguiram para Smythe e Ellerby, e Sullivan desamarrou-lhes as mãos para que pudessem assiná-los como testemunhas. — Agora, Donnelly, meus homens vão remendar você. Depois, não teremos mais nenhum contato com você, exceto pelos homens que vou enviar para pegarem as coisas de Alyse. Fui claro? — Sim, pelo amor de Deus! Ajude-me, antes que eu sangre até a morte. — Caso eu veja você de novo, em qualquer local que não em eventos públicos em Londres, terei que finalizar este encontro. E garanto que você não vai gostar do resultado. 176

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De acordo? — De acordo, de acordo. Seu salafrário. — Ah, e pode mandar o dinheiro de Alyse para Quence Park. — Eu já dei a ela... — Dez mil libras — Phineas repetiu. Ele aguardou enquanto Gordon fazia o curativo, e então gesticulou para que o sargento e o sr. Pepper saíssem do aposento. — Está acabado, Donnely — disse,deixando uma cópia da doação a Alyse sobre a mesa e levando consigo o restante dos papéis. — Não só sou eu que sei o que você fez. — Olhou na direção de Bram. Qualquer que fosse a reputação do amigo, como o segundo filho do duque de Levonzy, sua palavra teria bastante valor. — Ninguém mais precisa saber disso tudo, a menos que você me force a tanto. Apenas quando eles cavalgavam para Quence, ele voltou a respirar com calma. Agora, restava apenas uma coisa. Alyse estava irriquieta. Phin já fora baleado uma vez. E não precisava arriscar a vida para consertar as coisas — exceto por ele acreditar no contrário. — Já faz duas horas — disse Beth, com a voz baixa e preocupada. — Eu devia ter imaginado a verdade sobre Richard. Eu só queria que Phin viesse para casa. Agora ele vai ser morto, e a culpa é minha. — Nada disso é culpa sua, princesa — disse William, do outro lado da biblioteca. Ele pedira para o criado empurrá-lo até a janela, e não saíra mais de lá. — Não sei como pude ser tão cego. Alyse recomeçou a andar pelo aposento. William e Beth não percebiam que aquela confusão não teria acontecido se ela não tivesse tentado agradar o primo. Fora ela quem lhe havia falado a respeito das ruínas. E agora, quando finalmente encontrara Phin de novo, estava prestes a perdê-lo. — Vejo cavaleiros — anunciou William. — Quatro deles. Por favor, faça com que um deles seja Phin, orou Alyse em silêncio. Por favor, faça com que ele esteja bem. Que todos estejam bem. Alguns instantes depois, a porta da biblioteca foi aberta. — Phin! — Soluçando diante da visão da figura descabelada e coberta de fuligem, ela se atirou nos braços dele. Ele a abraçou com força, enterrando o rosto em seus cabelos. Não era suficiente. Alyse queria unir-se a ele, tornar-se parte dele, para que sempre soubesse onde ele estava, que ele era real e que estava em segurança. — Alyse — ele sussurrou. — Alyse. — O que aconteceu? — perguntou William. Céus! Ela se esquecera de que havia outras pessoas presentes. Afrouxou o abraço, mas Phin não a soltou. — Está acabado — ele disse. 177

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— Donnelly? — Estão todos vivos — contribuiu Bram em um tom pesaroso, entrando na biblioteca. — E sem danos permanentes — continuou Phin. — Richard vai deixar a casa dos Donnelly. Imagino que vá para Halfens. Pelo menos, foi essa a minha sugestão. — O que vai impedi-lo de tentar mais alguma coisa? — perguntou William. Phin soltou Alyse tempo suficiente para pegar um papel dentro do bolso. — Isto — respondeu, tomando a mão de Alyse e levando-a consigo, enquanto entregava o documento para o irmão. — Eu disse a ele que estaria lacrada quando a entregasse para você, mas ele me aborreceu. De qualquer forma, devemos mantê-la em segurança, e ele vai se comportar. William baixou a cabeça, abrindo o papel. Empalidecendo, ele fitou o irmão. — Há sangue aqui. Phin deu de ombros. — Não é sangue nosso. Precisei usar um pouco de persuasão. William retomou a leitura, e então, lentamente, dobrou o papel mais uma vez. — Você agiu bem, Phin — ele falou. — Bom Deus! — Informei Donnelly que nós vamos renovar as termas. — Eu adoraria. No momento, eu... — O rosto pálido corou. — Preciso reformar os cômodos da frente. Isso vem primeiro. — Tenho alguns fundos à disposição — disse Phin, pondo a mão livre no ombro do irmão. — E acho que estou prestes a mudar de carreira. — Olhou para Alyse ao dizer aquilo. Beth aproximou-se e agarrou-se a ele. — Você está falando sério? Vai ficar? De verdade? — Se vocês quiserem... — Pelo amor de Deus, Phin! — sussurrou o visconde. — É claro que queremos que fique. Alyse tentou soltar-se. Aquele era claramente um momento familiar, que não a incluía. Phin, no entanto, não a soltou. Em vez disso, livrou-se da irmã. — Podem nos dar licença um momento? — Sem esperar uma resposta, ele puxou Alyse para o corredor. — Cuide da sua família — ela murmurou. — Estou tentando. Pare de se debater. Alyse parou de lutar contra o aperto firme. — Certo. O que foi? — Primeiro, preciso deixar algo claro. Sempre valorizei sua amizade. Sempre. Lágrimas assomaram-lhe aos olhos. — Phin. — Quando voltei para cá, esperava encontrar ressentimento e ceticismo, já que os merecia. Mas não esperava encontrá-la, Alyse. Você... você não é a única razão pela qual eu quero ficar. Mas é a única que não consigo me imaginar deixando para trás. 178

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Uma lágrima correu pelo rosto de Alyse, e Phin tocou-a com o dedo. — Sei que todos em sua vida a abandonaram ou menosprezaram. Não farei isso. Jamais. Eu amo... — Ele pigarreou, a voz instável. — Eu amo você, Alyse. Não sou um duque, e certamente não sou um príncipe. Mas sou seu amigo. Para sempre. Alyse agarrou-lhe a lapela e ergueu-se nas pontas dos pés para beijá-lo. — Eu amo você — ela sussurrou, trêmula. — Amo você. — Vou pedir mais uma vez que se case comigo — Phin murmurou. — Mas antes que me responda, quero que veja isto. Quero que sua resposta refira-se ao que realmente deseja, e não ao que acha que pode precisar. Franzindo a testa, sem a menor idéia do que Phin queria dizer, viu-o pegar no bolso um segundo pedaço de papel, que lhe entregou. Ela o abriu devagar. Reconheceu a escrita e a assinatura de Richard, bem como os nomes dos dois amigos dele como testemunhas, sob o texto que lhe destinava dez mil libras. Alyse ofegou e leu-o de novo antes de conseguir acreditar no que estava escrito. — Phin, como você... — Ele estabeleceu as condições para o dinheiro, e você as cumpriu. O dinheiro é seu. Eu só me certifiquei de que ele cumprisse a palavra. — Isto é... Não consigo acreditar. Phin sorriu. — Acredite. — Tocou-a no rosto com extrema delicadeza. — E agora, Alyse, você quer... — Espere — ela falou, cobrindo a boca de Phin com os dedos. Oh, poderia ela? Por que não? Fazia sentido. Fazia todo o sentido. E ela poderia ficar ali. — Espere aqui. Antes que ele pudesse responder, Alyse voltou correndo à biblioteca e encontrou todos reunidos bem atrás da porta entreaberta. Ignorando esse fato, aproximou-se de William. — Tenho uma proposta a fazer — ela disse. — Sim? — o visconde indagou, parecendo surpreso. — Acabo de... receber uma grande quantia em dinheiro, que eu gostaria de investir na restauração de Quence e das termas romanas. — Eu... — Diga sim — Phin sugeriu, atrás dela. — O... — Diga sim — ele repetiu. — Bem, sim — William falou por fim. E então sorriu. Phin puxou-a de volta para o corredor e imediatamente tomou-lhe os lábios. Beijoua com tamanha... paixão que roubou seu fôlego. Pareceu roubar sua alma. — Case-se comigo — ele murmurou de encontro à sua boca. — Eu... Ele voltou a beijá-la, empurrando-a de costas até pressioná-la contra a parede. Alyse gemeu, envolvendo-o pelos ombros, abraçando-o com força até que não houvesse mais nenhum espaço entre os dois. — Case-se comigo, Alyse — ele repetiu. 179

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— Sim — ela conseguiu dizer, entre os beijos. — Sim, eu me caso com você. Eu amo você, Phin. — Minha Alyse dos olhos escuros — ele sussurrou, com a voz repleta de felicidade. — Minha querida, querida amiga. — Meu amor — ela murmurou, beijando-o na ponta do nariz. — Meu salteador. Meu Phin.

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