MUNAKATA, K. Produzindo livros didáticos e paradidáticos

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Ka z u mi

Mu n a k a t a

Produzindo livros didáticos e paradidáticos

Do u t o r a d o Hi s t ó r i a e Fi l o s o f i a d a Ed u c a ç ã o

PUC- SP 1997

Ka z u mi

Mu n a k a t a

Produzindo livros didáticos e paradidáticos

DOUTORADO: Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTOR em História e Filosofia da Educação, sob a orientação da Prof.ª Doutora Mirian Jorge Warde

Co mi s s ã o J u l g a d o r a

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Resumo do Trabalho

Sobre os livros didáticos produzidos no Brasil recaíram série de acusações como se fossem os principais responsáveis pelas mazelas da Educação brasileira. Análises abstratas de conteúdo denunciavam-lhes a ideologia subjacente e abordagens de indústria cultural caracterizavam-nos como instrumentos da hegemonia burguesa e da acumulação capitalista. Numa outra vertente, recusou-se aos livros didáticos uma historicidade própria, porquanto subsumidos às ações e iniciativas do Estado. Esta tese envereda por um outro caminho, buscando descrever e analisar as práticas efetivas desenvolvidas por vários agentes que participam da produção do livro didático. Para isso, é analisada a dimensão do mercado brasileiro de livros didáticos, a relação desse mercado com as ações do Estado – principal consumidor desse produto –, mas também as reações e ações dos agentes efetivos nos vários momentos dessa relação. A tese aponta também para a importância de não abstrair do exame do processo de produção de livros didáticos os aspectos técnicos da edição e editoração. Entrevistas com editores e autores complementam a análise, fornecendo representações e expectativas que os próprios agentes desse processo têm a respeito de suas práticas.

Agradecimentos

Embora tivesse procurado se submeter a todos os rigores exigidos em um trabalho acadêmico, esta tese constitui, num sentido, minhas memórias. Reencontrar velhos colegas espalhados na diáspora após a queda da nossa editora-mãe, conhecer novos, entrar de novo na sede daquele sindicato que nos idos dos anos 70 ousamos reconquistar para a categoria, ouvir todos eles recontarem como produzem livro, num dialeto próprio que só quem já pertenceu a essa guilda consegue entender, rememorar às gargalhadas as incontáveis “barrigas” que cometíamos – “e aquele diretor, que deixou sair ‘ouviu-se um estampado de tiro’ e depois pôs a culpa no paste-up?” –, sentir o clima de redação, que, reparei, agora chamam “editorial”, esse clima que, embora já sem o ruído das máquinas de escrever, permanece o mesmo, talvez menos barulhento, muito menos barulhento... – é disso, dessa familiaridade, mas já irremediavelmente perdida, passada, ultrapassada, que é tecida esta tese. A toda essa família, cujos membros permitiram com toda boa vontade que eu os fizesse personagens, meus profundos agradecimentos. No rápido convívio com os autores, de quem eu me aproximei com o olhar de entomologista a examinar uma rara espécie, pude recuperar a lembrança perdida de ter sido eu, também, autor de um livro didático e de um quase-paradidático. A todos eles, que contribuíram com suas falas para construir letra por letra as páginas desta tese, devo muita gratidão. Em particular, agradeço ao professor Imenes, a quem devo essa lembrança de ter sido autor. A tese também simboliza um reencontro: ovelha negra desgarrada da Academia, eis-me aqui novamente. A Professora Mirian Jorge Warde foi, mais que paciente orientadora, a grande patrocinadora e fiadora desse regresso, atiçando e

estimulando o que me restava de curiosidade e ânimo intelectuais. Por tudo isso, estarei sempre em dívida para com ela. Talvez a Professoara Mirian não saiba, mas nessa minha recondução à Universidade ela pôde contar com a retaguarda tenazmente guarnecida pela Carminha, minha mulher e valente companheira, que soube suportar as minhas crises intelectuais, emocionais, profissionais e até financeiras. Por tudo isso registro aqui a minha especial gratidão a ela. A Professora Circe Bittencourt e o Professor Reginaldo de Moraes participaram da banca de qualificação, contribuindo para mais estímulos e instigações, pelo que estou muito agradecido. Se as suas contribuições não obtiveram eco nesta tese, a responsabilidade por esse deslize deve ser inteiramente atribuída à minha incompetência. Os professores Luiz Barreira e Odair Sass, velhos companheiros de outras jornadas, participaram da conspiração para me trazer de volta à Universidade – o que merece uma boa rodada de cerveja além dos meus agradecimentos. Por falar em cerveja, os meus colegas de pós-graduação não só possibilitaram que eu recuperasse o gosto pela polêmica acadêmica, como também me fizeram lembrar que a Universidade não se limita ao cinzento da teoria. Muito obrigado a todos e a rodada de que fala o parágrafo acima é extensiva a este (e aos demais). A Régi, minha gentil cunhada, transcreveu pacientemente parte das minhas entrevistas, realizadas com equipamentos precários e portanto quase inaudíveis. A Filó e o Salvador acabaram herdando essa ingrata tarefa. O Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, e sua equipe, como sempre, atendeu-me de braços abertos para minhas pesquisas. A Sonia, da assessoria de imprensa da Câmara Brasileira do Livro, enviou-me imediatamente os documentos de que eu precisava. A Beatriz, da Papirus, indicou-me uma obra importante para a tese. A todos meus agradecimentos e espero ter conseguido minimamente fazer juz aos esforços que empreenderam para a realização desta tese. Por fim, agradeço ao Zorro que, numa prestimosa mensagem eletrônica, explicou-me que ele e Lone Ranger são personagens diferentes – informação que, infelizmente, não pude utilizar.

Sumário

Introdução............................................................................................................ 1

Capítulo 1 De volta à caverna ................................................................................... 15

Capítulo 2 Um grande negócio ................................................................................. 35

Capítulo 3 Estado e mercado .................................................................................... 61

Capítulo 4 Como se faz livro, inclusive didático e paradidático .............................. 79

Capítulo 5 Livros e editoras .................................................................................... 105

Capítulo 6

Profissionais da edição .......................................................................... 119

Capítulo 7 Autor: professor no texto....................................................................... 154

Epílogo.............................................................................................................. 199

Bibliografia ...................................................................................................... 206

Introdução

O exemplo dos alemães me faz recordar a palavra alemã Verbalhornung, literalmente balhornização. Johann Balhorn era um editor de Leipzig, do século XVI; editou um abecedário, no qual, como de costume, incluiu um desenho que representava um galo; mas no lugar da figura habitual, aparecia um galo sem esporas e com um par de ovos ao seu lado. Na capa do abecedário se lia: “Edição corrigida por Johann Balhorn”. Desde então, os alemães dizem Verbalhornung para referir-se às correções que na prática pioram o corrigido. (V. I. Lênin.)

Em 30 de maio de 1996, o jornal O Estado de S.Paulo, tradicional diário paulistano, causou furor em certos círculos. “Livro didático de história sofre plágio”, anunciava o título geral de uma matéria, cuja chamada esclarecia: Destinado a estudantes do segundo grau, o livro “Toda A História”, de Jobson e Piletti, reproduz 55 páginas do livro “História Moderna e Contemporânea”, de Pazzinato e Senise, ambas as obras da Ática. [O Estado de S.Paulo, 30/5/1996.]

O artigo propriamente dito complementava: A descoberta de que o livro História Moderna e Contemporânea tinha sido plagiado em pelo menos 55 páginas, levou os historiadores e autores Alceu Luiz Pazzinato e Maria Helena Valente Senise a buscarem apoio na Justiça contra os também historiadores e autores José Jobson de Arruda e Nelson Piletti. Pazzinato e Senise publicaram, em 1991, pela Editora Ática o trabalho em que consumiram pelo menos dois anos de pesquisas seguidas. A obra deles, tanto quanto a de Arruda e Piletti, é voltada para alunos de segundo grau. Em agosto do ano passado, no entanto, Pazzinato e

2 Senise descobriram, numa leitura rápida, uma coincidência – inclusive em subtítulos de sua obra – que não poderia ser explicada de outra forma a não ser plágio. Em contato com a Editora Ática, que também publicou a obra de Arruda e Piletti Toda a História, conseguiram um acordo pelo qual serão ressarcidos em R$ 50 mil por perdas materiais e morais. Autores de outra obras didáticas, o casal Pazzinato e Senise não tem nenhum curso de pós-graduação. Este não é o caso da dupla José Jobson de Arruda e Nelson Piletti. Arruda [é] professor titular do departamento da História da Universidade de São Paulo. Piletti é professor livre-docente da Faculdade de Educação da USP. [O Estado de S.Paulo, 30/5/1996.]

A denúncia, por si já grave, era acompanhado de um comentário do historiador Paulo Miceli, então chefe do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cujo teor transparecia no próprio título: “Copistas foram úteis, mas na Idade Média”. Sua feroz crítica não se restringiu aos diretamente envolvidos no suposto plágio, mas teve como alvo toda uma parcela do sistema educacional brasileiro: Triste constatar que uma casa editorial, a quem a cultura brasileira deve grandes e valiosos serviços, escancare suas portas para que mercadores pratiquem rasteiro mercantilismo, funcionando como receptadora de coisas subtraídas ao trabalho alheio, para revendê-las após nenhuma maquiagem. [...] E quanto aos estudantes e professores, para quem dirige-se especialmente o livro didático? Que tipo de consideração podem esperar os consumidores compulsórios dessa pseudo-cultura, amestrados por uma longa tradição que transformou o ensino numa das mais rentáveis atividades econômicas do País? Ora, quando o próprio Ministério da Educação foge à sua responsabilidade de informar a sociedade sobre os livros repletos de erros que, às suas custas, são comprados para distribuição nas escolas, o plágio de Jobson & Piletti parece coisa pequena e talvez não mereça atenção, já que honestidade intelectual, a exemplo da honestidade administrativa, é coisa fora de moda. Mas, isso é apenas pequena parte de um grande mosaico de improbidades, a transformar os programas educacionais em algumas das maiores mentiras nacionais. Assim, enquanto o Ministério da Educação teima em defender os interesses de certa indústria livresca, os estudantes são enganados como sempre, orientados por desinformados professores, ingenuamente influenciados por “educadores” apenas versados na mais estreita e malandra dialética do lucro fácil e ilícito. Mais ainda, em vez de combater as pragas que proliferam em seu quintal, as autoridades educacionais viram reféns de poderoso e empresarial sistema de “ensino”, que envolve algumas editoras e “autores”, fundações e instituições privadas formadoras de lobbies à custa de alguns políticos, sensibilizados a partir de procedimentos que são de domínio público, defendem vigorosamente os interesses desses usineiros da cultura espúria. [O Estado de S.Paulo, 30/5/1996.]

3 Consultado pelo jornal, Piletti, um dos acusados, apresentou a sua versão dos acontecimentos: [...] ele e Arruda tinham duas obras [...] já publicados pela Ática sobre história antiga e medieval e história moderna e contemporânea. A editora decidiu, então, segundo ele, “fundir os dois trabalhos num único” e eles teriam concordado com isto. O problema [...] é que a editora contratou um redator para fazer a fusão e, segundo ele, essa pessoa teria cometido o plágio e não eles. [O Estado de S.Paulo, 30/5/1996.]

Segundo uma edição posterior de O Estado de S.Paulo (6/6/1996), Piletti também teria esclarecido que “o plágio, entre as páginas 338 e 391 de Toda a História, cobre o assunto tratado por José Jobson de Andrade Arruda e não por ele”. Em 6/6/1996, um artigo assinado por José Jobson Arruda reiterou a versão de Piletti, chegando a apontar o nome do suposto responsável por todo esse episódio. Narra Jobson Arruda: Em 1994 recebi um telefonema do editor da Ática, sr. João Guizzo, dizendo-me que a editora pretendia produzir rapidamente um texto já intitulado Toda a História, para atender a demandas do mercado e que a fórmula alvitrada era reunir num só livro os dois melhores textos de História Geral e História do Brasil, respectivamente os meus livros História Antiga e Medieval (18ª edição, 1ª edição 1976) e História Moderna e Contemporânea (28ª edição, 1ª edição 1974) e História do Brasil, do Professor Nelson Piletti (18ª edição, 1ª edição 1981). Para reduzir as quase 1.500 páginas a não mais do que 500, a editora contrataria os serviços profissionais de um jornalista, excelente redator, o sr. Mylton Severiano da Silva, que se incumbiria de fazer a redução necessária e modernizar, atualizando o texto onde fosse preciso, a partir de pesquisa pessoal. Uma segunda redação era indispensável para dar unidade a textos originários de dois diferentes autores, submetendo-se, é claro, a síntese realizada à revisão dos mesmos. [...] Fiz a revisão do texto do redator que na maior parte do trabalho estava muito colado no texto original e, quando pareceu distanciar-se, entendi que era o produto de sua ação modernizadora, baseada em pesquisa própria, e não em cópia. Eu não tinha qualquer possibilidade de saber que o texto a mim remetido para revisão era fruto da cópia de outro livro também publicado pela Ática. Simplesmente por que não leio livros didáticos. Não tenho em minha casa os livros didáticos de autores concorrentes da Ática. Confiei, como sempre confiei, na editora e em seus representantes. [...] [...] Portanto, nem o professor Jobson, nem o professor Piletti, plagiaram qualquer texto.

4 O plágio é da responsabilidade do redator do texto, Mylton Severiano da Silva, que acabou, por sua incúria, vitimando os autores de Toda a História. [O Estado de S.Paulo, 6/6/1996.]

O novo acusado, Mylton Severiano da Silva é jornalista e, de acordo com O Estado de S.Paulo, “um veterano profissional, conhecido por seus colegas como Miltainho”. De fato, ele foi um dos principais nomes do jornalismo paulistano que, nos tempos do regime militar, participou ativamente da chamada “imprensa alternativa”, atuando em publicações como Realidade, Bondinho, Ex, Doçura etc., como atesta o expediente desses periódicos. Em carta enviada a O Estado de S.Paulo (11/7/1996), ele rechaçou a caracterização de seu trabalho como plágio e anunciou que, “diante da ofensa, que me atinge como pessoa e como profissional com 37 anos de carreira”, iria acionar a editora. Basicamente, ele argumenta que esse tipo de trabalho, que passou a ser considerado plágio, era exatamente o que a Ática havia lhe encomendado: [...] fui contratado para fazer uma reprodução de obras publicadas pela Editora Ática, de autores da Ática tais como História Antiga e Medieval e História Moderna e Contemporânea, de autoria de José Jobson de Andrade Arruda; História Moderna e Contemporânea e URSS, Formação e Queda de um Império (suplemento de atualização), dos autores Alceu Pazzinato e Maria Helena Valente Senise; História do Brasil, de Nelson Piletti; História do Brasil Contemporâneo, de Francisco M. P. Teixeira; O Ensino da Geografia e as mudanças recentes no espaço geográfico mundial, de José William Vesentini. Além destes, foram-me fornecidas apostilas de cursinho e cópias xerocadas de livro sem identificação de autoria, sempre trabalhos de autores da Ática. [...] A tarefa consistia em redigir um livro de 400 páginas ou pouco mais, com os devidos exercícios para estudantes a cada capítulo, previamente intitulado Toda a História - ou seja, a trajetória humana da pré-História aos nossos dias. Uma vez que fui contratado para realizar uma reprodução autorizada, de livros editados pela Ática, caberia aos autores, todos relacionados com a editora, conferir, fiscalizar e constatar a autenticidade da obra. A eles caberia revisar o conteúdo e dar a obra como boa. À Ática caberia entender-se com os autores sobre como e quem assinaria a obra; creditar fotos e ilustrações; e decidir sobre a listagem das obras usadas no trabalho de reprodução, sob forma de “bibliografia” ou “fontes”. [O Estado de S.Paulo, 11/7/1996.]

Todo esse episódio – que ainda mereceria réplica de Jobson Arruda a Miceli (O Estado de S.Paulo, 6/6/1996) e comentários do articulista Elio Gaspari (O Estado

5 de S.Paulo, 11/6/1996) – teve como desfecho, como se viu, o pagamento da indenização aos autores lesados e a retirada, da quarta edição de Toda a História, de “todo o material entre as páginas 338 a 391” (O Estado de S.Paulo, 6/6/1996). Em todo caso, os materiais publicitários da Ática referentes aos anos de 1995 a 1997 não trazem referência a tal “retirada”, permitindo apenas constatar as oscilações no número de páginas, embora o formato (17 cm x 24 cm) tivesse permanecido constante: 480 páginas, na edição anunciada para 1995 (primeira edição); 408 páginas, para 1996; e 448 páginas, para 1997. Esta última edição inclui, segundo o material publicitário, um suplemento especial “de questões de vestibular para o professor”,1 embora tal anexo certamente só esteja contido na versão da edição destinada aos professores.

Uma proposta de leitura Esse episódio pode ser lido – e certamente o será – como prova cabal de que os livros didáticos, ao menos no Brasil, são produzidos com desleixo, de modo inescrupuloso, visando apenas o lucro. “Indústria cultural!”, denunciarão, dedo em riste, seus detratores, que terão assim comprovado as teses de que a produção cultural sob o capitalismo está irremediavelmente corrompida. Aos adeptos de totalizações, o caso será tomado como sintoma de um sistema educacional falido, ineficaz, disfuncional ou mesmo a-sistêmico, expressão de uma certa fase do modo de produção capitalista. Mas os espíritos menos exaltados podem reter do episódio não o anedótico, não as pessoas diretamente envolvidas, nem tampouco a generalidade do seu contexto, mas os indícios, as pistas, que possam contribuir para desvendar as relações peculiares, constituídas por agentes determinados, em que esse tipo de incidente pode ocorrer. Esses agentes lá estão: a empresa editorial, o editor, o autor, o “redator”, o crítico, a mídia. Eles estabelecem entre si relações precisas, que constituem as condições e o circuito de produção, distribuição e divulgação de uma mercadoria também determinada, o livro didático (e paradidático).

1

Agenda do professor para disciplinas de Geografia, História, OSPB, Educação Moral e Cívica, Sociologia, Filosofia e Ensino Religioso, da editora Ática, referentes a 1995, 1996 e 1997. Essas publicações, contendo agenda diária e textos publicitários, são distribuídas no final de ano via mala direta aos professores cadastrados, segundo área e grau de ensino em que atuam.

6 Tal análise é possível? Do ponto de vista “logístico”, construíram-se listas bibliográficas e arquitetou-se um banco de dados o mais completo possível sobre livros didáticos e paradidáticos. Vasculharam-se catálogos formados segundo critérios diversos e consultaram-se materiais publicitários das editoras. Publicações técnicas sobre edição e editoração foram cotejadas com reminiscências de experiência pessoal para a reconstituição dos momentos e dos procedimentos do ofício de produzir livro. Tomaram-se também depoimentos de vários agentes envolvidos na produção de livro didático e paradidático, não apenas para obter informações, mas sobretudo para apreender o que para cada um deles significa o exercício de seu ofício – ainda que não houvesse preocupação de seguir à risca as prescrições da história oral. A bibliografia sobre o tema e adjacências foi companheira permanente.

A assim chamada realidade Mas esse protocolo nem sempre pôde ser observado à risca. Nem é preciso mencionar as limitações de ordem pessoal (e logístico). Do lado da assim chamada realidade objetiva, inúmeros impedimentos ocasionaram o quase colapso da investigação proposta. O que à primeira vista parecia o momento mais fácil da pesquisa – quantificar a produção de livros didáticos e paradidáticos no Brasil – revelou-se uma quase impossibilidade. Ninguém – nenhum órgão ou entidade, nenhum centro de pesquisa – sabe quantos títulos ou exemplares são produzidos efetivamente no país. Um critério fácil seria contabilizar tão somente os livros catalogados oficialmente, isto é, pela Biblioteca Nacional, segundo as normas internacionais do ISBN (International Standard Book Number), mas, como se sabe, poucas editoras encaminham a esse órgão suas publicações. Além disso, o próprio fichário da Biblioteca Nacional, ao menos em sua versão eletrônica (em CD-ROM) apresenta uma série de problemas, como ausência de co-autores e erros de digitação, o que faz com que o mesmo autor compareça em registros diferentes. Uma incursão ao Bienal do Livro (o de 1996), em São Paulo, dissiparia as ilusões de alcançar a totalidade: há muito mais editoras que produzem livros didáticos e paradidáticos do que as que possam estar relacionadas nos catálogos e nas listas disponíveis – mesmo que sejam editoras de um só livro!

7 Esse é também um dos motivos pelos quais se abandonou o exame dos livros infanto-juvenis – embora muitos dessa categoria sejam concebidos como instrumentos auxiliares do ensino (notadamente para alfabetização) e tenham um uso paradidático. Mas o que para livros didáticos e paradidáticos aparece como grande dificuldade é, no caso dos infanto-juvenis, praticamente uma impossibilidade: não há como recensear a imensa quantidade de pequenas editoras (muitas delas quase “caseiras”) e muito menos a sua produção nessa área dos infanto-juvenis. Além disso, como separar as obras que efetivamente se prestam a uso didático ou paradidático dos que não têm ou que não mereceram essa utilização? Feitas as contas, restou um universo de 2.117 livros, didáticos e paradidáticos, destinadas a um público de pré-escola e de todas as séries do 1o e do 2o graus.2 A base para a constituição desse universo foram as listas publicadas pelos sucessivos números da revista Lecionare,3 à qual se acrescentaram dados colhidos de catálogos de editoras. Não é portanto um universo homogêneo e há evidentes lacunas (sobretudo na área de línguas estrangeiras), mas que ao menos permite vislumbrar uma tendência geral. A falta de homogeneidade marca também as séries de dados referentes à quantidade de livros, produzidos e adquiridos pelo governo ou diretamente pelo usuário final. As fontes são diversas e os critérios de organização dos dados, díspares e nem sempre transparentes. Muitos dados não são sequer confiáveis, pois é da tradição das empresas editoriais brasileiras ocultar ou “maquiar” os números relativos à produção e à venda. O jornal Leia ao publicar os resultados da pesquisa “Quem é quem no mercado editorial” já comentava em 1988:

2

Aqui, entende-se por “livro” a unidade de publicação que compreende o livro propriamente dito e, quando houver, o manual do professor, o caderno de atividades e demais anexos. Optou-se por essa definição para contornar as dificuldades que adviriam com o emprego do termo “título”, que abrange, no caso de livros didáticos, todos os volumes seriados. Assim, por exemplo, uma obra didática em quatro volumes (para 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries do primeiro grau) e seus respectivos manuais e cadernos foi desdobrada em quatro livros. Esse critério se impôs, pois, nas obras didáticas, ao contrário do que ocorre em demais gêneros literários, os volumes são, de modo geral, adquiridos separadamente por mais que se suponha continuidade entre os volumes. 3 Lecionare é uma publicação anual, editada pela Free Shop Editora e Comunicações, de São Paulo. O seu primeiro número data de 1993 e prometia reunir “os principais lançamentos de livos didáticos, paradidáticos, literatura e magistério para o 1o e o 2o graus” (Lecionare, n° 1, set. 1993, p. 2). A revista, cujo conteúdo resume-se praticamente a esse catálogo bibliográfico, não traz, portanto, a totalidade de livros didáticos, paradidáticos etc., além de não seguir normas de catalogação, apresentando uma série de equívocos e lacunas.

8 [...] mais uma vez o “Quem é Quem” não conseguiu localizar a produção proclamada oficialmente como a cifra da indústria livreira no país “cerca de 300 milhões de livros”. Os dados da pesquisa chegam apenas a um terço deste total, e é difícil acreditar que critérios de classificação diferenciados ou editoras pequenas não alcançadas pela nossa pesquisa sejam responsáveis por triplicar a cifra dos quase 100 milhões apurados. Assim, ao que tudo indica, ou os números oficiais são exageradamente inflados ou os editores, desconfiadamente, continuam escondendo leite. [...] [A crise que não houve. Leia, ano X, n° 116, jun. 1988, p. 21. Texto assinado por Flávio Andrade.]

Por sinal, o jornal Leia – que antes se chamava Leia Livros e se tornaria uma revista (Leia. Uma revista de livros, autores e idéias) – constitui uma fonte privilegiada de pesquisa aqui proposta, não apenas por veicular importantes informações sobre o mundo editorial, mas também por publicar seções sobre livros didáticos, muitos dos quais resenhados. As sua extinção, em 1991, deixou uma irremediável lacuna, que não seria preenchida por suplementos de jornais e publicações pretensamente similares.4 Se essas disparidades de dados dificultam a construção de uma história da produção de livros didáticos, um outro aspecto da pesquisa praticamente impossibilitou que ela se constituísse como uma pesquisa histórica, ao menos na acepção que confunde história com cronologia: os livros didáticos, em sua quase totalidade, não são datados e não contêm nem tampouco o número da edição! Não foi, portanto, possível acompanhar as alterações que um livro sofre nas sucessivas edições – adaptação do estilo do texto ao gosto da época, modificações introduzidas na diagramação e no uso de ilustrações e de outros elementos gráficos etc. – ou as modificações nas estratégias de planejamento da produção e de divulgação e venda. Não se pôde tampouco confrontar essas alterações com as transformações da demanda, definidas tanto pelas políticas públicas para o setor quanto pelo perfil do consumidor final, isto é, os estudantes de 1o e 2o graus, além daqueles na faixa préescolar.

4

Entre estas merece citar a natimorta revista Livros Etc. (transformada em Livros & Artes a partir do número 3, para desaparecer após a publicação do número seguinte) – uma aventura editorial da Projetos Editoriais S/C Ltda. e, depois, da S3 Editora e Consultoria em Comunicação Ltda., esta ligada à ex-ministra Zélia Cardoso de Mello e que, segundo o expediente da revista, contou “com o apoio do Ministério da Cultura, Secretaria Política Cultural e Funarte”.

9 Outras temporalidades Esse, porém, não era mesmo o principal objetivo desta pesquisa. Ela pretendese histórica, sim, mas não por aderir a esse tempo da cronologia da contabilidade empresarial ou das decisões governamentais. Certamente que, produção para o mercado, os livros didáticos e paradidáticos passam pela sobredeterminação das esferas macroestruturais. Isso, porém, implicaria dizer que “o livro didático não tem uma história própria no Brasil” (Freitag et alii 1993, p. 11)? Segundo esse argumento, essa [...] história não passa de uma seqüência de decretos, leis e medidas governamentais que se sucedem, a partir de 1930, de forma aparentemente desordenada, e sem a correção ou a crítica de outros setores da sociedade (partidos, sindicatos, associações de pais e mestres, associações de alunos, equipes científicas etc.). Essa história da seriação de leis e decretos somente passa a ter sentido quando interpretada à luz das mudanças estruturais como um todo, ocorridas na sociedade brasileira, desde o Estado Novo até a “Nova República”. [p. 11.]5

Esse raciocínio, no entanto, na sua generalidade, pode ser estendido a tudo: indivíduos, grupos, as assim chamadas sociedades civil e política, instituições e, também, institutos de pesquisa, pesquisadores, financiamentos, pesquisas sobre livros didáticos – tudo e todos somos, “em última instância”, subsumidos à “história da seriação de leis e decretos” que “somente passa a ter sentido quando interpretada à luz das mudanças estruturais como um todo”. A rigor, tal postura apenas repõe para o objeto “livro didático” uma das vertentes de uma modalidade historiográfica que ficou conhecida como “História da Educação no Brasil (ou Brasileira)”, como esclarece Nunes (1992): A nossa história da educação tem primado por focalizar a escola seja sob a lente da legislação e organização escolar, seja sob a lente das demandas de escolarização da sociedade brasileira, seja sob a perspectiva do pensamento pedagógico ou do ideário. [p. 152.]

Tais lentes – verdadeiros telescópios que permitem ver galáxias inteiras – deixam, por isso mesmo, outras regiões na obscuridade. Prossegue Nunes:

5 Aqui, obviamente, o disparate cronológico situando o Estado Novo em 1930 deve ser creditado à licença poética para construir o binônio “Novo/Nova”...

10 Muito pouco sabemos, no entanto, sobre as suas práticas: como elas se materializavam? quais os seus efeitos? [...] Estas questões crescem em importância se considerarmos que elas operam um deslocamento de enfoque dos modelos dominantes de escolarização (a Escola Tradicional, a Escola Nova, por exemplo) para as múltiplas e diferenciadas práticas de apropriação desses modelos nas quais a ênfase da problematização recai sobre os usos diversos que os agentes escolares fazem da própria instituição escolar, sobre a prática de apropriação de práticas não-escolares no espaço escolar e os múltiplos usos não-escolares dos saberes pedagógicos. [p. 152.]

Do mesmo modo, os livros didáticos: certamente, a sua produção está determinada pela legislação a respeito e “as mudanças estruturais como um todo”. Mas estruturas, suas mudanças e a legislação não dão conta da produção deste ou daquele livro em particular nem tampouco o modo peculiar com que este ou aquele foi produzido por agentes efetivos de produção editorial. Em outras palavras: em tal abordagem macroscópica muito pouco ou quase nada se sabe a respeito das práticas efetivas de produção dos livros (didáticos), de como elas se materializaram.

Da História a histórias Paul Veyne (1979 e 1983), em sua obra fundamental, alertava contra a tentação idealista que reduz todo o histórico à imobilidade e à imutabilidade d’A História. A fórmula que ele propõe, editada, é um bom exemplo da historicidade própria da produção de livro, que não pode ser reduzida à História. Na edição francesa (1979, de Seuil), a fórmula, estampada no título, aparece assim:

No Brasil e em Portugal, no entanto, esse alerta não surtiu efeito e, pelo contrário, deu margem a discussões mirabolantes. A composição da tradução da singela frase, tanto na edição brasileira (da UnB) como na portuguesa (Edições 70), havia alterado completamente o seu significado, como se vê no fac-símile abaixo:

11

Os editores, brasileiro e português, da obra traduzida não perceberam que o próprio Veyne havia escrito: o que não existe é “a História, com maiúscula” (1983, p. 38). Essa sutileza havia se perdido ao se compor todo o título exatamente com maiúsculas. O mesmo aconteceu com o próprio título da obra: uma coisa é escrever “Comment on écrit l’histoire” (Éditions du Seuil); outra, completamente diferente, é grafar “COMO SE ESCREVE A HISTÓRIA” (Edições 70), tudo em maiúscula. Esses pormenores gráficos revelam um aspecto do livro que é irredutível a estruturas e suas expressões jurídicas (ao menos onde houver liberdade de escolha de caracteres tipográficos e formato de livros). Sua inteligibilidade não se efetiva “à luz das mudanças estruturais como um todo”, mas é imanente a processos de produção do livro, que dependem das decisões e das ações efetivas de agentes nela envolvidos, decisões e atividades propriamente editoriais. Não que uma eventual história do livro didático se pretenda isolacionista. Ao propor um roteiro para história do livro, Darnton (1990) considera necessário “enxergar o objeto como um todo” e apresenta “um modelo geral para analisar como os livros surgem e se difundem entre a sociedade”, segundo um “ciclo de vida”. Este pode ser descrito como um circuito de comunicação que vai do autor ao editor (se não é o livreiro que assume esse papel), ao impressor, ao distribuidor, ao vendedor, e chega ao leitor. O leitor encerra o circuito porque ele influencia o autor tanto antes quanto depois do ato de composição. (...) A história do livro se interessa por cada fase desse processo e pelo processo como um todo, em todas as suas variações no tempo e no espaço, e em todas as suas relações com outros sistemas, econômico, social, político e cultural, no meio circundante. 6 [p. 112.]

Mas essa busca do todo, que Darnton não hesita em denominar “visão holística do livro” (p. 112), nada tem em comum com a redução, em nome da totalidade, da história do livro (didático ou não) a leis e estruturas. Se elementos econômicos, políticos, jurídicos, culturais, educacionais, psicológicos etc. têm relação com o livro nesse circuito é simplesmente porque a história do livro refere-se a coisas e pessoas

6.

O esquema que Darnton propõe na p. 113 ilustra bem esse circuito.

12 cuja efetividade histórica é visada como seu objeto. Cada uma das fases do circuito, diz Darnton, está ligada a: (1) outras atividades que uma determinada pessoa desenvolve num determinado ponto do circuito; (2) outras pessoas no momento temporal em outros circuitos; (3) outras pessoas em outros pontos no mesmo circuito; (4) outros elementos na sociedade. [p. 114.]

Em outras palavras, o livro não pode ser abordado na sua imediatez abstrata. Sob (e às vezes contra) uma ordenação institucional que o regula, pessoas de carne e osso conceberam-no, escreveram o seu texto, editaram-no, diagramaram-no, “fizeram arte” e imprimiram-no; algumas foram acusados de “plágio”, elaboraram planos de venda, alimentaram expectativas, imaginaram que poderiam estar contribuindo para a educação no Brasil, sonharam com os bens que poderiam adquirir com o pagamento dos direitos autorais, uns examinaram obras dos “concorrentes” enquanto outros orgulharam-se de não ler livros didáticos embora os escrevessem, enfrentaram impasses na redação ou na edição, amarguraram o erro que saltou à vista logo que o livro chegou da gráfica. Outras adquiriram o produto assim confeccionado e, eventualmente, leram-no. Mesmo restringindo o foco ao âmbito da produção do livro didático e paradidático, lá onde parecia haver apenas a História, aos poucos emergem as histórias de Gilberto Cotrim, autor de livros de História e presidente da Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale); Elian Alabi Lucci, de Geografia e Estudos Sociais; José Ruy Giovanni, veterano autor de livros de Matemática; João Guizzo, editor da Ática;7 Helena de Brito, editora-assistente da Língua Portuguesa, da FTD; Isabel Simões, editora da Ática; Marcelo Lellis, da Matemática e parceiro, em tantos livros, de Luiz Imenes; o próprio Luiz Imenes, expresidente da Abrale; Lizânias de Souza Lima, editor da FTD; Maria Lúcia de Arruda Aranha, de Filosofia e coordenadora editorial de uma coleção de paradidáticos; Francisco de Moura, de Português; Jaime Pinsky, editor, autor e pesquisador de livros didáticos; Rosiane Oliveira Silva, editora de arte, da FTD; Sandra Almeida, editora da Ática; Ricardo Yorio, José Olavio Dutra, Neri E. Stein e Rosi Meire M. Ortega, do Sindicato dos Empregados em Empresas Editoras de Livros e Publicações Culturais

7 Um dos envolvidos no episódio do suposto plágio, João Guizzo foi entrevistado antes que a questão viesse à baila, razão pela qual no seu depoimento não há menção ao ocorrido.

13 de São Paulo (SEEL); e Wilma Silveira Rosa de Moura, editora da Ática. Se entre essas pessoas há padrões recorrentes de práticas, cada uma delas, no entanto, e a despeito de toda a determinação das estruturas, aparece como sujeito de uma história e de temporalidade que lhe é própria e, mais ainda, como sujeito de memória que reconstrói essa história numa narrativa que lhe tenha significação. Outras entrevistas alterariam essa avaliação? Embora na escolha dos entrevistados não tivesse havido preocupação em constituir nenhuma espécie de amostragem – apenas se entrevistaram aqueles com quem foi possível estabelecer contato – e apesar de a pesquisa estar prejudicada pela ausência de certas personagens, como os diretores de Abrelivros (Associação Brasileira de Editores de Livros) ou do SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros), sempre escudados em secretárias eficientes que prometem “retornar a ligação”, sanar todas essas deficiências estatísticas não alteraria em absoluto os resultados a não ser em seu aspecto quantitativo: apenas haveria mais histórias particulares, não redutíveis a uma história maior (das “mudanças estruturais”), ou melhor, à História. Trata-se então de narrar essas histórias. De certo modo, o que se pretende aqui é tão somente propor um roteiro de análise do processo de produção desse objetomercadoria, tão presente na vida escolar brasileira. Essa é, pois, uma análise que antecede à avaliação da adequação dessa mercadoria, seja em relação à Ciência, seja em relação à Educação. Qual investigador que reúne fragmentos de provas, depoimentos esparsos, pistas tênues, indícios, sinais,8 essa pesquisa apenas pretende instruir um processo que talvez possa ser útil, posteriormente, para um veredito no tribunal da Razão (ou da Ideologia). Mas essa é uma tarefa para outros pesquisadores, mesmo porque a presente pesquisa não partilha da tradição da História da Educação, que nasceu, como constata Warde (1990), “para ser útil e para ter sua eficácia medida não pelo que é capaz de explicar e interpretar dos processos históricos objetivos das Educação, mas pelo que oferece de justificativas para o presente” (p. 9).

***

8 Sobre o paradigma indiciário e suas implicações metodológicas e epistemológicas, cf. Ginzburg (1989).

14 As análises sobre livros didáticos e paradidáticos, em suas diversas vertentes, são recenseadas no Capítulo 1. O Capítulo 2 descreve o crescimento e a dimensão do mercado editorial de livros didáticos e paradidáticos e o surgimento de um cliente especial: o Estado. A relação desse mercado com o Estado é exposta no Capítulo 3, que se detém especialmente no rumoroso episódio, ocorrido em 1996, envolvendo a avaliação, pelo MEC, dos livros didáticos. O Capítulo 4 dedica-se a expor os aspectos técnicos da produção de livro, procurando, assim, estabelecer melhor as determinações dos livros didáticos e paradidáticos. Como esses livros apresentam-se efetivamente? Essa descrição, já introduzida nesse capítulo, é mais pormenorizada no Capítulo 5, que expõe os padrões que se consolidaram no Brasil para livros didáticos e paradidáticos, segundo decisões tomadas pelas editoras e recomendações do Estado. Então, os trabalhadores entram em cena e tomam a palavra. No Capítulo 6, quem fala são os editores e os sindicalistas do setor: eles narram sua trajetória profissional e contam como trabalham; as mudanças ocorridas no processo de trabalho; os cuidados que tomam na elaboração do material, levando em conta o seu caráter didático; a relação com os autores; e o modo como encaram as críticas que recebem. No Capítulo 7, a vez é dos autores, que também descrevem suas vidas; sua rotina de trabalho; suas relações com a editora; suas preocupações didáticas. O tamanho de suas falas pode parecer excessivo, como se esses documentos – em que se transformaram seus depoimentos – “falassem por si”. Convém lembrar, no entanto, que esses documentos passaram por controle em dois momentos: na entrevista, com as perguntas dirigindo a fala, e na sua edição para compor o texto final desta tese.

Capítulo 1 De volta à caverna

Houve outrora um editor pretensioso e arrogante que fora contratado para idealizar uma revista para uma prestigiosa instituição universitária. Quando, porém, a publicação, impressa e encadernada, veio da gráfica, constataram-se erros de digitação e de confecção de gráficos e tabelas. A instituição então cogitou no cancelamento da circulação da revista: a Ciência fora conspurcada! O desastrado editor, que tinha certa vocação para sofisma, tentou argumentar que a Ciência reside numa outra esfera, a das idéias puras do mundo inteligível e que lá permanece incólume em suas certezas apodíticas; o acidente, por seu lado, ocorrera na esfera das coisas sensíveis, na qual, por isso mesmo, o erro é inerente. Tratava-se apenas de erro material, em tinta e papel, e não do conceito; uma errata bastaria para sanar o mal. A errata foi providenciada e a Ciência não perdeu uma fagulha sequer do seu esplendor, mas esse editor nunca mais seria chamado para executar novas edições da conceituada revista. A fábula não serve apenas para mostrar que a incompetência não é companheira do sucesso profissional. Ela também aponta para uma irremediável dificuldade de relacionamento entre as luzes da razão e o seu simulacro no preto-nobranco das páginas impressas, entre a produção científica do saber e a sua divulgação/vulgarização. A filósofa Marilena Chaui (1978) trouxe a público essa dificuldade ao resenhar o livro ISEB: fábrica de ideologias, de Caio Navarro de Toledo, alertando em nota de rodapé:

16 Esta resenha foi solicitada pela revista IstoÉ. Por motivos ignorados pela autora, o texto foi publicado com vários cortes e com um outro título. [p. 113.]

Na outra extremidade dessa dificuldade, Claude Cherki, editor, até 1989, de La Recherche, importante revista francesa de divulgação científica, expõe o ponto de vista do “outro lado do balcão”: Em La Recherche todos os artigos são mais ou menos retrabalhados, em contato estreito com o autor. Não publicamos os artigos na forma em que chegam, isso não é possível. Há um enorme trabalho de reescritura, mas nós procuramos respeitar a personalidade do autor através do artigo, preservando seu estilo e isto não é sempre fácil. [...] [...] Existem, para os cientistas, discursos que são inadmissíveis na sua formulação, e talvez mesmo na sua intenção. A comunidade científica sente-se então atingida e eu gostaria de dizer que é normal que ela seja desconfiada. [...] Por outro lado, a comunidade dos cientistas gosta, com razão, de preservar seu próprio poder. Ora, qualquer discurso sobre a ciência, vindo do exterior, lhe dá o sentimento de perda deste poder. Cada vez que ela o perdeu, sentiu-se maltratada. No fundo, a ideologia da comunidade científica é muito cientificista, mesmo se não se tratar de um cientificismo formulado de maneira clara. [...] [La Recherche. A aventura da imprensa científica. Leia. Uma revista de livros, autores e idéias, ano XIII, n° 148, fev. 1991, pp. 35 e 36. Entrevista originalmente publicada em L’Esprit, n° 154, set. 1989.]

Escrever e publicar A esse cientificismo repugna a possibilidade de que o ser possa ser dito de várias maneiras. O Autor deve ser soberano na enunciação da Idéia; é-lhe inconcebível que seu texto – o Texto! – possa ser alterado, a não ser para corrigir certos erros de datilografia/digitação, essas insignificâncias provocados pela imperfeição da máquina. Esse cientificismo também desdenha o aspecto gráfico que o seu texto – o Texto! – assume quando impresso. Que importam o tipo e o tamanho das letras, a diagramação ou o papel se as idéias – a Idéia! – permanecem imutáveis? O livro, no entanto, não pode ser abstraído como uma mera causa material de seu “conteúdo”, o modo imperfeito (porque simulacro) pelo qual as idéias sempiternas assumem comunicabilidade. Refutando esse platonismo ingênuo, escreve Chartier (1990):

17 Contra a representação [...] do texto ideal, abstrato, estável porque desligado de qualquer materialidade, é necessário recordar vigorosamente que não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele chega ao seu leitor. Daí a necessária separação de dois tipos de dispositivos: os que decorrem do estabelecimento do texto, das estratégias de escrita, das intenções do “autor”; e os dispositivos que resultam da passagem a livro ou a impresso, produzidos pela decisão editorial ou pelo trabalho da oficina, tendo em vista leitores ou leituras que podem não estar de modo nenhum em conformidade com os pretendidos pelo autor. Esta distância, que constitui o espaço no qual se constrói o sentido, foi muitas vezes esquecida pelas abordagens clássicas que pensam a obra em si mesma, como um texto puro cujas formas tipográficas não têm importância, e também pela teoria da recepção que postula uma relação direta, imediata, entre o “texto” e o leitor, entre os “sinais textuais” manejados pelo autor e o “horizonte de expectativa” daqueles a quem se dirige. [pp. 126-127.]

Nesse sentido, tanto Chartier como Darnton relatam uma pesquisa (de D. F. MacKenzie), segundo a qual “transformações tipográficas aparentemente diminutas e insignificantes” (Chartier 1990, p. 127), como a do formato do livro, tornaram o “obsceno e desregrado” William Congreve em um autor “pudico neoclassista” (Darnton 1990, p. 128). As análises de Chartier sobre a coleção Bibliothèque Bleue (muitas vezes traduzida indevidamente como “literatura de cordel”) também apontam para elementos gráficos como constitutivos do significado do livro. Inicialmente, acreditou-se que esses livros, difundidos nos séculos XVII e XVIII, na França, populares pelo material empregado, pelo preço e pelo sistema de distribuição e venda, eram-no também pelo tema, restando decidir a questão: “a literatura ‘popular’ é adaptação de obras eruditas ou, ao inverso, emerge, às vezes, nas obras dos literatos?” (Chartier e Roche 1976, p. 109). Posteriormente, investigações mais cuidadosas revelaram que [...] os textos passados a livros de cordel não são “populares” por si mesmos, pertencendo antes a todos os gêneros, a todas as épocas, a todas as literaturas. [...] A especificidade cultural dos materiais editados no conjunto das obras de cordel prende-se, portanto, não com os próprios textos, eruditos e diversos, mas com a intervenção editorial que tem por objetivo adequálos às capacidades de leitura dos compradores que têm de conquistar. [Chartier 1990, p. 129.]

18 Em suma, esses livros são populares pela edição: a Bibliothèque Bleue é uma “fórmula editorial” (Chartier 1990, p. 178). A rigor, isso implica outras atividades que não simplesmente as de natureza tipográfica. O texto não é apenas composto (tipograficamente) em tal ou qual fonte (tipo de letra), segundo um certo estilo de diagramação; mais do que isso, o texto passa por série de transformações, que suprimem “capítulos, episódios ou divagações considerados supérfluos” e simplificam frases; subdividem os textos “criando novos capítulos, multiplicando os parágrafos, acrescentando títulos e resumos”; por fim, censuram “as alusões tidas como blasfematórias ou sacrílegas, as descrições consideradas licenciosas, os termos escatológicos ou inconvenientes” (pp. 129-130). Essas adaptações não seguem apenas a consciência moral e religiosa dos editores, mas são também orientadas pela “representação que estes têm das competências e das expectativas culturais de leitores para quem o livro não é algo de familiar” (p. 129). Em outras palavras, o editor produz um texto de acordo com a “leitura implícita” de um “leitor implícito”, que nem sempre coincide com os imaginados pelo autor (cf. Chartier s.d., p. 17) – muito menos com o leitor e a leitura efetivos.1 A investigação desse “encontro entre o ‘mundo do texto’ e o ‘mundo do leitor’”, diz Chartier (1991), tem como eixo duas hipóteses fundamentais: A primeira hipótese considera a operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) como um processo historicamente determinado cujos modos e modelos variam segundo os tempos, os lugares, as comunidades. A segunda considera que as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas pelas quais é recebido por seus leitores (ou seus ouvintes). Estes, com efeito, nunca se acham frente a textos abstratos, ideais, separados de toda materialidade: manejam objetos cujas organizações dirigem sua leitura, por conseguinte sua apreensão e sua compreensão do texto lido. [p. 167.]

Não há, em suma, o Texto, essa idealidade eidética a pairar no mundo inteligível. O que há, efetivamente, é, papel e tinta (além de cola, linha e outros materiais) em sua brutalidade empírica, na qual se inscrevem significados. Livro é signo cultural na e pela sua materialidade, pela sua natureza objetivada como mercadoria, resultado de uma produção para mercado. A análise do livro requer, pois,

1.

Davis (1990) introduz a distinção entre “audiência” e “público” para distinguir, respectivamente, os “que efetivamente liam os livros” daqueles “a quem os autores e editores destinavam seus trabalhos” (pp. 159-160) .

19 a recusa do idealismo que sobrevaloriza a ideação da Obra e desdenha o momento da produção material. Ao contrário do que muitos acreditam, não há no livro a imediatez das idéias; é a forma (material) como elas se apresentam, tão desprezada em certos meios, que lhes conferem possibilidade e ocasião de significação. Definitivamente, “TUDO É HISTÓRICO, LOGO A HISTÓRIA NÃO EXISTE” não é o mesmo que “Tudo é histórico, logo a História não existe”. Por essa razão, Chartier (1990) faz questão de declarar que quem faz o livro não é o autor – e cita R. E. Stoddard, um bibliógrafo americano: Façam o que fizerem, os autores não escrevem livros. Os livros não são de modo nenhum escritos. São manufaturados por escribas e outros artesãos, por mecânicos e outros engenheiros, e por impressoras e outras máquinas. [p. 126.]

Do mesmo modo, o título do primeiro capítulo da obra de Nyssen (1993) sobre edição adverte: “Este não é um texto” (p. 11) – o que o leitor tem diante de si já é um livro. E um manual de um programa de editoração eletrônica para computador cita o escritor inglês Edward G. E. Bulwer-Lytton em epígrafe: “Uma coisa é escrever, outra é publicar” (Holtz 1990, p. IX).

O tribunal das “belas mentiras” No Brasil, a grande maioria de pesquisas sobre livros didáticos (e paradidáticos) desconsideram essas questões. Não que não haja outros aspectos a serem abordados, muito pelo contrário. Como aponta Bittencourt (1993): A natureza complexa do objeto explica o interesse que o livro didático tem despertado nos diversos domínios de pesquisa. É uma mercadoria, um produto do mundo da edição que obedece à evolução das técnicas de fabricação e comercialização pertencente aos interesses do mercado, mas é também um depositário dos diversos conteúdos educacionais, suporte privilegiado para se recuperar os conhecimentos e técnicas consideradas fundamentais por uma sociedade em uma determinada época. Além disso, ele é um instrumento pedagógico “inscrito em uma longa tradição, inseparável tanto na sua elaboração como na sua utilização das estruturas, dos métodos e das condições do ensino de seu

20 tempo.” E, finalmente, o livro didático deve ser considerado como veículo portador de um sistema de valores. [p. 3.]2

Bittencourt também constata que o que se destaca entre esses vários enfoques possíveis do livro didático é “a linha que privilegia avaliações de seus diversos conteúdos” (p. 3). De fato, os dados colhidos pelo Projeto Livro Didático,3 embora já desatualizados, mostram que dos 426 títulos pesquisados sobre livro didático, entre livros, artigos, teses, eventos etc. (alguns deles catalogados mais de uma vez), 256 (60%) classificam-se na rubrica “conteúdo/método” (cf. Unicamp 1989). Desses, uma parte não desprezível dedica-se a denunciar a ideologia dominante subjacente nos livros didáticos – o que contribuiria para a manutenção e a reprodução da dominação burguesa. Variante desse enfoque são as análises que desmascaram os preconceitos raciais, culturais e sexuais que se insinuam nos livros didáticos. Não por acaso, os livros de História e disciplinas correlatas (como Estudos Sociais), são particularmente visados por essa vertente de análise. Segundo Cordeiro (1994), nos anos 70 e 80 publicaram-se, entre artigos e livros, 13 textos sobre livros didáticos de História, cuja “maioria [...] tem operado em termos da análise ideológica, examinando os seus textos quanto à consistência teórica e aos conteúdos veiculados” (p. 141). Os títulos e os subtítulos de algumas dessas publicações já indicam o teor das acusações: “versão fabricada”, “história mal contada”, “belas mentiras”.4 Um caso exemplar é a análise de Franco (1982), que se propõe a examinar [...] o tratamento dado ao “povo” e à “violência”, em movimentos insurrecionais do Período Regencial, tal como veiculados nos livros didáticos de História do Brasil para o ensino de 2° grau. [p. 36.]

Em particular, escolheram-se os movimentos de Cabanagem e Balaiada. Neles, os temas de “povo”, previamente definido como “conjunto de indivíduos pertencentes às classes economicamente dominadas pelos proprietários rurais do Período Regencial”

2. O trecho citado é de Alan Choppin, L’histoire des manuels scolaires: une approche globale, Histoire de l’Éducation. Paris, INRP, nº 9, déc. 1980, pp. 1-25. 3. Projeto executado em 1987-1988 por pesquisadores da Biblioteca Central, da Faculdade de Educação e do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o financiamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Seus dados foram posteriormente publicados em livro (Unicamp 1989). 4. Essas expressões encontram-se nos títulos de, respectivamente, Franco (1982), Telles (1984) e Deiró (s.d.).

21 (p. 37), e de “violência” forneceriam o índice da adesão de cada autor dos livros didáticos a uma concepção de realidade que se edifica numa abordagem que concebe a História como um processo, cujo movimento se assenta nas contradições presentes no seio da própria realidade social. [p. 58.]

A essa concepção, segundo Franco, opõe-se a “positivista”, fundada em duas premissas:

a) b)

os fatos sociais estão submetidos às mesmas leis naturais, invariáveis, previsíveis, que regem a natureza; a ordem social está diretamente ligada à ordem natural e, como tal, deve ser mantida. [p. 59.]

Essa classificação dos autores e suas interpretações fez-se segundo os procedimentos de “análise de conteúdo”, que “tem por finalidade produzir inferências sobre qualquer um dos elementos básicos do processo de comunicação” (p. 47). Em outras palavras, e citando Holsti,5 “toda análise de conteúdo implica comparações; o tipo de comparação é ditado pela teoria do investigador” (p. 48). Trata-se, portanto, de estabelecer previamente o que deve ser uma interpretação satisfatória de acontecimentos como Cabanagem e Balaiada – literalmente uma ortodoxia (opinião correta) – e compará-la com as versões correntes. Nesse processo de julgamento, raramente o investigado consegue coincidir com a linha justa. Assim, os autores examinados revelam uma “inconsistência”, pois usam indiferentemente os termos “movimentos revolucionários”, “revoltas”, “insurreições”, “levantes”, “sedições” para designar os movimentos que analisa, ignorando que [...] os mesmos não podem ser considerados como revolucionários. Em outras palavras, não podem ser concebidos como lutas voltadas para a transformação radical da estrutura social vigente, uma vez que não colocaram em questão nem mesmo o sistema produtivo que tinha no trabalho escravo sua sustentação. [pp. 45-46.]

Do mesmo modo, até no grupo de autores com “uma visão mais progressista da História”, portanto supostamente “não-positivista”, Franco constata “algumas

5. O. R. Holsti. Content analysis for the social sciences and humanities. California, Addison-Wesley, 1969.

22 limitações básicas”, “informações [...] insuficientes e/ou ambíguas”, “a forma precária [...] mediante a qual são caracterizados os ‘agentes sociais’ dos movimentos insurrecionais”, além da limitação no que se refere “às explicações dadas para o término dos movimentos e para a mensagem associada à conclusão” (pp. 97, 98, 99 e 100). Esta última limitação, em que os autores “amenizam ou, às vezes, omitem a violência com que foram reprimidos os movimentos sociais”, é a mais grave, pois “faz com que esse grupo de autores acabe por identificar-se com o segundo enfoque interpretativo” (p. 100), isto é, positivista. Numa linguagem arcaica, pode-se dizer que esses autores apresentam sérios “desvios” e “objetivamente” fazem jogo do “outro lado”, adversário ou inimigo. A análise de Franco é um exemplo de um padrão interpretativo compartilhado por várias outras investigações sobre livro didático e que tem, talvez, origem na célebre obra de Eco e Bonazzi (1980), uma espécie de antologia de preconceitos, mistificações, “delirante reacionarismo arcaico” e “freqüente tendência fascista” recolhidos de livros didáticos italianos. O que ali importa não é tanto a análise, confinada a poucas linhas de apresentação de cada capítulo, mas, como afirma Eco na “Introdução”, a denúncia de conteúdos perpetrados por autores que, “para satisfazer a maioria, para não causar discórdias, para evitar susceptibilidades, para agradar a todos”, não ultrapassam o “nível do óbvio ululante, do corriqueiro, do acrítico, da imbecilidade respeitável” (p. 18). A surpreendente conclusão de Eco é bastante conhecida: A aspiração máxima seria que Mentiras que Parecem Verdades se tornasse o único livro de texto adotado nas escolas. Desta forma, as crianças seria educadas para reconhecer e julgar as mentiras que tentam incutir-lhes. Contudo, trata-se de um desejo paradoxal, porque a linha pedagógica mais sensata que parece hoje prevalecer, junto aos mestres mais responsáveis, é a de que não se façam mais livros de texto. [p. 18.]

Esse mesmo padrão de interpretação – que tem também parentesco com a obra de Ferro (1983) sobre livros de História – é desenvolvido no Brasil por Deiró (s.d.), em conhecida obra que procura desmascarar as “belas mentiras” divulgadas por livros didáticos na área de Comunicação e Expressão (disciplina de Português) adotados, em 1977, nas quatro primeiras séries do 1° grau das escolas da rede oficial de Espírito Santo. Também nessa obra constitui-se a priori uma ortodoxia (o “Referencial

23 Teórico”, pp. 18-28), à luz do que se pode flagrar a insídia da ideologia dominante. Esta se insinua por toda parte, como nessas três singelas frases: Numa manhã, bem cedinho, papai e eu fomos pegar siris; Num domingo, eu fui pescar com o papai (...); Há alguns dias, na hora do almoço, papai chegou com uma novidade: – Vamos para a praia. [apud Deiró s.d., p. 37.]

Singelas apenas na aparência! – o leitor é logo despertado do seu torpor ideológico pela crítica vigilante: A mensagem ideológica, claramente presente nestes textos, reproduz, de maneira fixa, a figura paterna, limitando-a a dois comportamentos fundamentais: sustentar o lar e fazer passeios. Isto teria a finalidade de esvaziar a riqueza da personalidade de cada pai, tornando-o um indivíduo único. Há sempre uma imposição de comportamentos estanques, tanto para os pais como para os filhos, que correspondem a atitudes desejadas por um determinado tipo de sociedade, para a preservação de suas estruturas. [p. 37.]

A ideologia também se insinua ali, por exemplo, num livro didático de Ciências para primeiros anos do 1° grau, em que se lê: “Na Terra nós encontramos tudo o que precisamos para viver: os animais, as plantas, o ar que respiramos, o solo, a água”. Em frases como essa, como aponta Pretto (1985), “vemos nitidamente uma tendência em fazer com que a criança veja a Natureza e os recursos naturais como uma fonte interminável de benefícios” (p. 69). Eis a ideologia dominante, que concebe uma “Natureza que está aí para ser manipulada e não para que o ser humano com ela interaja”. (p. 70). E a ação deletéria da ideologia nessa faixa etária será irremediável: É óbvio que muito pouco adiantará, futuramente, a criança ter noções de ecologia e de proteção ambiental. Mais tarde, estas noções serão apenas e unicamente utilizadas para que a Natureza forneça mais e mais. [pp. 70-71.]

Segundo Pretto, as [...] características mais marcantes destes livros são: que possuem um enorme vazio de informações; reproduzem uma prática autoritária dos que sabem em relação aos que nada sabem; são calcados na repetição do conteúdo, induzindo à memorização; apresentam o conhecimento de

24 forma compartimentalizada; colocam a ciência se utilizando da Natureza como uma fonte inesgotável de recursos; apresentam o método que a ciência utiliza como tendo na experiência a base de tudo e visando controlar a Natureza; mostram o universo e os homens vivendo em perfeita harmonia; consideram o cientista um indivíduo especial, absolutamente diferente do homem comum; apresentam a experimentação como palavra final, sem vínculos com os modelos teóricos; e colocam os efeitos do desenvolvimento científico e tecnológico (ou não) como sempre benefícios. [p. 55.]

Tudo isso, como não poderia deixar de ser, choca-se frontalmente com o conjunto de reflexões teóricas de Pretto – uma mescla de análises sobre discurso competente de Marilena Chaui, epistemologia à Kuhn e Foucault, ceticismo empirista de Rubens Alves e forte dose de tecnofobia ecológica e ambientalista. É por esse referencial que se pode medir a taxa de ideologia contida nos livros didáticos de Ciência,6 surpreendendo-a até mesmo em trechos onde elementos ideológicos parecem ser criticados. O texto a seguir, por exemplo: Sr. Raul andava muito satisfeito com os ensinamentos do eletricista Edson. E, pouco a pouco, foi entendendo que o estudo das Ciências pode ser uma prática de vida. Ali, no seu dia a dia [sic], foi aprendendo a explicar todos os fenômenos produzidos pela eletricidade, à medida em que [sic] adquiria um conhecimento mais científico dos mesmos. E foi assim quando o paciente eletricista lhe explicou o que é magnetismo.7

Aqui, a idealização, freqüente em livros didáticos, da figura do cientista como um herói quase super-homem, é aparentemente desmistificada pela introdução na narrativa de um simples eletricista para ministrar ensinamentos científicos. Mas, sempre alerta, Pretto adverte: Alguns livros se arriscam em tentar analisar criticamente o papel do cientista. Estas tentativas não passam de afirmações contraditórias que, no nosso entender, reforçam uma visão elitista do cientista e da ciência. [p. 75.]

Tamanha dialética também permite denunciar a falácia da pedagogia que primeiro induz o aluno a perguntar tudo ao professor, para, depois, exigir pesquisa.

6. Analisaram-se os livros de Ciência mais utilizados em Salvador, Bahia. O trecho acima mencionado, sobre a natureza como provedora de recursos, é do livro mais utilizado, de Joanita Souza (Ainda brincando, 2ª série, São Paulo, Editora do Brasil). 7. Extraído de Geraldo Soares, Ciências como prática de vida, 4ª série, Recife, Inojosa, pp.128-129.

25 No primeiro momento, instruções no livro didático do tipo “Pergunte à sua professora...” levam a criança a não ter como obter a resposta por si mesma, o que é ruim para a sua formação. Ela ficará sempre na dependência de uma informação a ser dada por aquele que sabe algo mais. [p. 57.]

Mas, quando aparecem perguntas do tipo “Pesquise e descubra” nos livros de séries mais avançadas, isso não significa que ao aluno já é permitido “obter a resposta por si mesma”, pois a criança já estará condicionada a pedir auxílio de alguém que supostamente saiba mais, por exemplo, os pais. É aí que a ideologia revela toda sua perversidade: Todos sabemos da realidade da maioria das famílias dos alunos das escolas públicas e das particulares que atendem às classes de baixa renda. Pais analfabetos, com uma longa jornada de trabalho, inexistência de livros, jornais e revistas em casa e tantos outros condicionantes que irão certamente impedir a essa maioria de crianças o acesso às respostas que o livro solicita. [p. 58.]

Em suma, ruim sem pesquisa, pior com ela. A ideologia fecha o cerco, o que leva Pretto a concluir: Percebemos que os livros didáticos de Ciência nada mais são do que instrumentos para que a ideologia dominante seja passada aos alunos durante o período escolar [...]. Uma ideologia que não é apenas um conjunto de idéias apresentadas mais ou menos arbitrariamente para ocultar a realidade do sistema, mas que cria condições concretas para que a “massa” possa assimilar tais idéias, permitindo o funcionamento e a reprodução do sistema como um todo. [p. 83.]

Não basta, porém, apenas denunciar a ideologia em geral incrustada nos livros didáticos – aponta Faria (1991): é preciso desmascará-la ali onde ela supostamente mais incide, no tema de trabalho, [...] já que a contradição principal na sociedade capitalista é capital x trabalho, já que o desenvolvimento do trabalho é a chave para entender o desenvolvimento do homem, já que a divisão do trabalho implica a divisão da sociedade em classes [...]. [p. 9.]

No final dessa sucessão de “já que”, Faria postula a necessidade de “adotar o materialismo histórico-dialético” e afirma pretender “fazer um exercício do método e,

26 pensando na transformação social, contribuir para o conhecimento da realidade onde nós educadores atuamos” (pp. 9-10). O procedimento adotado é analisar “35 dos livros mais vendidos em 1977”, mas “sem dar tratamento estatístico” (p. 10). Nessa amostra, compreendendo livros de Comunicação e Expressão, Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica, não foram incluídos “os livros didáticos da primeira série, pois sua preocupação maior é alfabetização” (e não, obviamente, de incutir ideologia nas crianças!), nem os “de Matemática e Ciências já que o que interessava era o conceito de Trabalho e nada ou muito pouco seria encontrado sobre ele nos livros dessas disciplinas” (pp. 10-11). Definido o material a ser examinado, [...] a análise propriamente dita está relacionado com o referencial teórico adotado: está baseado em como o trabalho é hoje na sociedade capitalista para que se possa verificar como esta realidade é explicada pelo livro. [p. 11.]

Novamente, o recurso analítico é a construção de uma ortodoxia que serve de medida para avaliar o grau de desvio dos textos examinados. Desde então, a tarefa de Faria (pp. 18 ss.) consiste em cotejar trechos selecionados dos livros com os de Marx e Engels. Faria, no entanto, vai além e considera ser “necessário verificar também como é visto o TRABALHO pelas crianças que freqüentam as escolas e aprendem nestes livros”, pois [...] não interessa apenas constatar a ideologia burguesa transmitida pela escola e pelo livro didático em particular. Para que se possa pensar em alternativas pedagógicas é necessário conhecer a realidade onde se atua e o contato com as crianças será considerado o contato com a realidade. [p. 12.]

Esse contato foi propiciado pela entrevista realizada com alunos de uma escola pública, supostamente com maior freqüência de crianças de origem operária, e com os de uma escola particular, logo, burguesa. Além disso, o método adotado é dialeticamente inovador: a escola particular cujos alunos foram entrevistados não adota nenhum livro didático, ao menos nas primeiras séries do 1° grau (p. 16). Isso possibilita examinar não o contágio ideológico por livros didáticos de que a criança é vítima, mas efetuar “a comparação entre o conteúdo do livro didático e a percepção que as crianças fazem deste mesmo conteúdo” (p. 12). Por esse método pode-se

27 chegar a conclusões de grande alcance: na rede pública, o livro didático serve para reforçar a ideologia dominante de que a instituição escolar é reprodutora, anulando a contradição entre a experiência da criança proletária e o conteúdo dessa ideologia; em crianças burguesas, ao contrário, apesar “de não ser adotado livro didático na sua escola, seu discurso muitas vezes é idêntico ao do livro” (p. 77). A pesquisa, que teve como “referencial teórico” a ubiqüidade da ideologia dominante e sua constante reprodução, encontrou, no final do percurso, a ideologia dominante sendo reproduzida em todo lugar, à exceção, talvez, de livros de alfabetização, de Ciências e de Matemática. Freitag et alii (1993), no entanto, apresentam uma série de objeções a esse procedimento. Em primeiro lugar, o método de Faria impossibilita determinar qual exatamente a responsabilidade do livro didático na formação ideológica, pois [...] parece ignorar que durante esse mesmo período a criança estava sendo simultaneamente ideologizada por possíveis aulas de catecismo, pelas novelas de rádio e televisão, por revistas em quadrinhos, pelos próprios pais e parentes e assim por diante. [p. 90.]

Em segundo lugar, a comparação entre a fala das crianças entrevistadas e o conteúdo ideológico dos livros didáticos peca por não levar em conta a heterogeneidade dos discursos examinados, produzindo discrepâncias (p. 91). Por fim, todo esse procedimento reduz o objeto da pesquisa à teoria já-dada: Tudo que não cabe no esquema é abandonado, o que sobra é usado como simples ilustração, como exemplo da validade da teoria, que não se modifica, mas molda o material empírico segundo o a priori, sempre o mesmo, de que o texto didático reproduz as relações capitalistas de produção. [p. 91.]

Esse, por sinal, parece ser o grande problema desse padrão interpretativo que pretende denunciar as “belas mentiras”: a ideologia pode ser encontrada em todo lugar onde se queira encontrá-la – até mesmo em passeio pela praia, na narrativa do eletricista sobre magnetismo ou na sugestão de atividade de pesquisa. Mas, dependendo do ponto de vista, isso também pode ser uma grande vantagem, pois tudo pode ser facilmente demonstrado. Além disso, o que se discute efetivamente nessas “análises de conteúdo” são as idéias contidas nos livros didáticos – e tão somente o que elas apresentam de concordância ou divergência em relação a outras idéias, justas e corretas, ditadas pela

28 ortodoxia. Nessa etérea esfera em que as idéias relacionam-se livremente entre si, não há lugar para outros elementos, por exemplo, professores e alunos. Como constata Cordeiro (1994), essas análises têm realizado poucos avanços “na investigação dos usos concretos desse tipo de obra praticados por professores e alunos” (p. 141). A presença destes na investigação, quando ocorre, serve apenas para ilustrar a gravidade da situação educacional, na qual os professores encontram-se despreparados para efetuar a crítica consistente do livro didático (Pretto 1985), ou para constatar a “ideologização” dos alunos, com ou sem livro didático (Faria 1991). Na maioria das vezes, a discussão das idéias dos livros didáticos se faz pela sua cristalização em conteúdos unívocos, monossêmicos, com o que só resta atribuir-lhes as rubricas de verdadeiro ou de falso. As várias estratégias didáticas que o professor eventualmente elabora em torno dos livros didáticos; a possibilidade mesma de eles propiciarem “melhores condições ao professor de gerenciar os problemas de sala de aula, mais ou menos independentemente da eficácia pedagógica” (Oliveira et alii 1984, p. 76); as diversas leituras possíveis que o professor e o aluno, individualmente ou em grupo, fazem desses livros; enfim, as múltiplas práticas que eles implicam – nada disso faz parte desse mundo platônico de idéias. O livro propriamente dito e os agentes reais nele envolvidos devem ser buscados em outro lugar.

Repulsa da mercadoria A constatação de Cordeiro (1994) vai além: Ainda quanto aos livros didáticos, outro ponto importante que não foi muito levado em conta na maioria das análises realizadas na época é o seu caráter de mercadoria – aliás, mercadoria muito consumida. [p. 149.] Esse aspecto, ao que parece, é o que mais repugna aos estudiosos do livro didático: é um terreno sujo, mesquinho, em que prevalecem interesses materiais, capitalistas, em vez de elevados ideais educacionais ou científicos. Por sinal, Sérgio Waissman, um empresário do ramo, não mede palavras para confirmar o caráter mercantil da sua atividade: “a indústria editorial não é composta de sociedades filantrópicas: o lucro é a mola mestra para o seu desenvolvimento” (apud Pretto 1985, p. 40). Freitag et alii (1993) ratificam: Enquanto mercadoria, o livro didático tem valor de uso e valor de troca. Seu valor de uso se realiza nas mãos do professor desqualificado

29 e da criança frustrada do verdadeiro aprendizado. Como valor de troca, o livro didático enriquece editores e burocratas. E tudo isso sob o manto da “assistência à criança carente”. [p. 63.]

Nessa esfera, tudo é inescrupuloso: Com a crescente expansão da rede de ensino [...], o livro didático passa a ser visto como um produto muito especial. Vislumbra-se, por intermédio dele, a possibilidade da apropriação do grande mercado [...]. A decorrência imediata é a luta feroz pelo mercado, onde o objetivo maior é o lucro. [...] Depois de editorados os livros [...] a sua promoção costuma ser feita de uma forma tão agressiva quanto aquela que se vê para os produtos de outros setores mais sofisticados de nossa sociedade de consumo. Tudo isso, sem contar outros mecanismos de que lança mão para a conquista desse almejado mercado. Assim é que o estabelecimento de privilégios entre compradores e editores/autores, as constatações de subornos e a existência de professores que recebem propinas para adotar esse ou aquele livro já deixaram de ser temas de “fofocas nos corredores” e passaram a ocupar espaço, como denúncias, na grande imprensa. [Franco 1982, pp. 18-19.]

Na disputa pelo mercado, afirma Ezequiel Theodoro da Silva, na “Apresentação” à obra de Molina (1987), as editoras “aplicam” [...] estratégias de “marketing” [...] no contexto das escolas, fazendo a cabeça dos professores, impondo modismos, incentivando o consumo e, por trazerem na capa um “de acordo com a lei n° tal”, iludindo consciências através do embelezamento do produto e de regras do mínimo esforço. [p. 9.]

Um dos traços que parece mais chocar o pesquisador de livros didáticos é exatamente esse “embelezamento”, um verdadeiro canto de sereia para seduzir compradores incautos, como se a virtude residisse unicamente na feiúra. “Para comunicar”, diz Zamboni (1991), “a mídia estende seus tentáculos a um público enorme e heterogêneo” (p. 76). E prossegue, ao analisar a produção dos livros chamados “paradidáticos”: Na conquista deste público, a sedução ocorre em várias direções: [as editoras] oferecem uma coleção de livros bonitos, com temas variados e conhecidos, sem originalidade, aparentemente interdependentes. A sua inovação ocorre pelos aspectos mais visíveis e exteriores; a apresentação se caracteriza por ser fora do convencional, colorida. Lançam mão do recurso de novas formas narrativas com textos curtos e letras grandes. [p. 78.]

30 Nessa linha de análise, é bastante freqüente a crítica do esmero formal, apontado como expediente adotado pelas editoras para encobrir deficiências de conteúdo. Em sua obra clássica sobre livros didáticos de comunicação e expressão, Lins (1977) emprega o termo “disneylândia pedagógica” para denunciar o “delírio iconográfico” e o excesso de recursos lúdicos extra-pedagógicos a que as editoras recorrem para tornar seus produtos mais atraentes. A defasagem entre a “novidade” formal e as “velhas idéias” é também apontada por Glezer (1984), em relação a livros paradidáticos de História: O processo de modernização dos livros didáticos ocorreu em todas as disciplinas, mas, fixando-nos especialmente nos de História, observamos que a introdução de cores, gráficos, mapas, textos complementares e nova linguagem, tanto visual – como no uso da história em quadrinhos – quanto estilística – preocupação com linguagem mais acessível ao aluno, utilização de vocabulário corrente e quotidiano –, correspondeu a uma necessidade de atingir a clientela escolar, aparentemente desinteressada das aulas de História pela pobreza gráfica dos manuais. [...] Vários dos grupos de estudo do ensino de História no 1º e 2º graus têm feito leituras críticas do conteúdo “modernizado” dos livros didáticos, e o que encontraram é a demonstração cabal [de] que a “modernização” é falsa: o conteúdo veiculado é basicamente o mesmo das obras de 1940 e 1950, apenas acrescido de novas informações, ou pior ainda, em nome da “modernidade” o conteúdo é restrito e empobrecido. [p. 150.]

As coleções mencionadas por Glezer – “Redescobrindo o Brasil”, da Brasiliense, e “Cotidiano da História”, da Ática –, além da “História em Documentos”, da Atual, são objeto de minucioso exame de Zamboni (1991), que investiga exatamente a dicotomia entre a forma e o conteúdo nos livros, no caso, paradidáticos de História. A empreitada, arriscando-se pelo terreno escorregadio de análise icônica, chega à conclusão de que, ao menos nos livros analisados, “a mudança foi aparente naquilo que expressava a ‘modernização conservadora’ tão conhecida nos processos escolares” (p. 201): [...] apesar da ênfase com que é veiculada a relação entre paradidático e inovação pedagógica, ela não se concretiza em termos reais. Isto porque o simples emprego de uma técnica discursiva (seja história em quadrinhos, documentos ou narrativa ficcional) considerada a priori como inovadora, seja no sentido de não usual, seja no sentido de facilitadora da percepção, não define a produção da mudança cultural, no caso, o livro paradidático como objeto inovador. [...] [...] Portanto, o emprego da forma isolada, por mais inovadora que seja, impossibilita o alcance de inovações que apontem para a

31 transformação, que somente será alcançada com mudanças substanciais nas abordagens de conteúdo proposto. E isto [...] não ocorreu, pois, no final a história veiculada continuou sendo aquela exaltadora de heróis, excludente das minorias, reforçadora dos laços de dominação. [p. 200.]

No final das contas, a questão da relação entre forma (moderna) e conteúdo (arcaico) repõe o predomínio do conteúdo. Se as idéias justas e corretas descem à caverna habitada por mercadorias é para nelas flagrar melhor a farsa: bonitinhas, mas ordinárias, fetiches da ideologia dominante e da reprodução ampliada do capital.8 Não por acaso, uma das referências obrigatórias dessa abordagem do livro (didático) como mercadoria é a reflexão pessimista de Adorno e Horkheimer (1971) sobre indústria cultural. Para eles, a produção e consumo em série de objetos culturais, padronizados, pasteurizados, tendo em vista o lucro, neutraliza a eventual potencialidade crítica da cultura, tornando-os meio de mistificação: A indústria cultural é corrupta não como Babel do pecado, mas como templo do prazer elevado. Em todos os seus níveis, de Hemingway a Emil Ludwig, de Mrs. Niniver a Lone Ranger, de Toscanini a Guy Lombardo, a mentira é inerente a um espírito que a indústria cultural recebe já pronto da arte e da ciência. [p. 172.]

Num artigo em que retoma o tema, diz Adorno (1986): As mercadorias culturais da indústria se orientam [...] segundo o princípio de sua comercialização e não segundo seu próprio conteúdo e sua figuração adequada. Toda a prática da indústria cultural transfere, sem mais, a motivação do lucro às criações espirituais. [p. 93.]

Desse modo, o conceito de indústria cultural refere-se ao modo predominante de produção cultural na sociedade capitalista e não exatamente àquilo de que não gostamos – embora Adorno e Horkheimer, eles próprios, freqüentemente parecem esquecer-se disso. Na indústria cultural, o ideológico não está diretamente associado ao “conteúdo” do produto, mas ao próprio modo de produção (e reprodução),

8

Segundo Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira, foi ele o responsável pela introdução, no Brasil, de “ilustrações nas capas dos livros, que em nosso país seguiam o modelo francês, ainda basicamente tipográficas. Até o meu sogro [o editor Octalles Marcondes Ferreira, da Companhia Editora Nacional-CEN, que então detinha o controle acionário da Civilização Brasileira] se horrorizou. Aquilo só se fazia em livros de pouco prestígio cultural, como os publicados nas coleções populares da CEN”. Além disso, o editor, que não prima pela fama de inescrupuloso argentário, confessa: “audácia suprema, fiz uma campanha publicitária intensa sobre nossos lançamentos” (Ênio Silveira. Memórias provocadoras de um editor também. Leia. Uma revista de livros, autores e idéias. Ano XII, n° 146, dez. 1990, p. 36).

32 distribuição e consumo dessa mercadoria, e desse circuito não escapam nem sequer as obras de Adorno e Horkheimer. Os produtos da indústria cultural estão, desde sempre, condenados não pelos “conteúdos” que veiculam, mas pelo próprio modo pelo qual são produzidos. Isso também significa que os produtos da indústria cultural, exatamente por serem determinados por essa causa final que é o lucro, passam por mudanças, ainda que não na sua constituição essencial. Fonseca (1993) descreve tais mudanças ocorridas em livros didáticos de História, produzidos no Brasil. Num primeiro momento, o crescimento, nos anos 70, da indústria de livros didáticos fez parte de um “projeto de massificação do ensino e da cultura” promovida por uma política educacional baseada no “binômio segurança/acumulação” (p 134). Tal projeto “beneficiava a acumulação do capital, os ideais de segurança nacional e correspondia aos interesses multinacionais no Brasil e na América Latina” (p. 139). Posteriormente, no [...] final dos anos 70 e início dos 80, o movimento de ampliação das pesquisas históricas e do repensar do ensino é acompanhado por um processo de mudanças nas relações entre o conjunto da Indústria Cultural e as instituições educacionais produtoras de conhecimento. A indústria editorial passa a participar ativamente do debate acadêmico, adequando e renovando os materiais, aliando-se aos setores intelectuais que cada vez mais dependem da mídia para se estabelecerem na carreira acadêmica. [...] [...] [...] No caso do ensino de História, ocorre um fenômeno interessante. Na medida em que se amplia o campo das pesquisas históricas, a exemplo do ocorrido na Europa, através da ampliação dos campos temático e documental, ao mesmo tempo que começam a ser publicadas experiências alternativas no ensino de História, o mercado editorial aponta também suas novidades. Constatamos um duplo movimento de renovação. Um tratou de rever, aperfeiçoar o livro didático de História. Como uma mercadoria altamente lucrativa, procuraram ajustá-las aos novos interesses dos consumidores. Renovaram os conceitos, as explicações de acordo com as novas bibliografias. Propuseram mudanças na linguagem, na forma de apresentação e muitas buscaram alternativas, tais como a seleção de documentos escritos, fotos, desenhos e seleção de textos de outros autores. Um outro movimento foi o lançamento de novas coleções de livros visando atingir o leitor médio. Os livros destas coleções, denominados paradidáticos, tornaram-se um novo campo para as publicações dos trabalhos acadêmicos. A nova produção historiográfica, abordando temas até então pouco estudados, tornou-se mercadoria de fácil aceitação no mercado de livros. [pp. 142-143 e 144-145.]

33 Essa renovação – “modernização conservadora”? –, como não poderia deixar de ser, é determinada não por razões pedagógicas, acadêmicas, científicas ou políticoideológicas, mas sobretudo pelo lucro: Quanto às diretrizes ideológicas [...] os editores entrevistados têm posição consensual. Para eles, no momento de redemocratização vivido por nós, o que importa não é a ideologia contida no livro e sim a sua aceitação no mercado; ou seja, a ideologia do mercado. Não importa se o livro é de “tendência x ou y”, mas suas vendas. Pode ser um livro crítico, bem elaborado, atual e interessante, mas se ele não for bem vendido deixa automaticamente de ser publicado. O importante é agradar o leitor, socializar o conhecimento e torná-lo um excelente negócio. Para elaborar este produto, nem sempre o melhor especialista do ramo é o mais capaz. É preciso criatividade (o elemento ficcional é importante) e capacidade de simplificação para tornar o produto interessante. [p. 147.]9

Juntamente com esse processo produziram-se novos autores: segundo Fonseca, os “especialistas do meio acadêmico” são “atraídos pela lógica do mercado” e “aliamse às editoras” (pp. 145-146), mesmo porque a própria Universidade nutre-se cada vez mais dessa lógica, valorizando, entre seus membros, preferencialmente aqueles que publicam (pp. 143-144 e 146-147). Tornar-se autor (de obras de divulgação), porém, implica aceitar as recomendações, os limites da indústria editorial, demarcando, assim, a diferença entre as teses que ficam, na maioria dos casos, restritas ao público especializado, e o saber de divulgação guiado pelos interesses da sociedade em geral, dos partidos, dos alunos etc. [p. 147.]

O resultado disso, ao menos na disciplina de História, é que o produto da indústria cultural, ao mesmo tempo em que assimila novas propostas pedagógicas também as condiciona: [...] os agentes da Indústria Cultural tornaram-se, nas últimas duas décadas, agentes poderosos na definição de o que ensinar em História e como ensiná-la na escola fundamental. Algumas propostas de mudanças emergentes das experiências oriundas das escolas são incorporadas pelos diversos agentes que as transformam em mercadorias de fácil consumo, destituindo-as muitas vezes de seu caráter criativo e experimental. [pp. 149-150.]

Aqui, onde poderia se iniciar mais um dos “caminhos da História ensinada”, que se propôs examinar, Fonseca encerra abruptamente a sua análise do livro didático

34 (de História), como se a constatação de que a “definição de o que ensinar” passou às mãos da vilania do mercado, comprando almas e inteligências, fosse já suficientemente conclusiva. Mas exatamente porque a indústria cultural passou a condicionar o quê e como ensinar (no caso, em História) é que talvez seja interessante examinar mais de perto essa mercadoria peculiar que ela produz, em vez de torcer o nariz e encerrar a análise. Num mundo em que a própria crítica da indústria cultural – de Adorno e Horkheimer a Fonseca – passa necessariamente por ela (caso não se opte pelo silêncio), talvez seja fundamental sujar as mãos e mergulhar na caverna sombria onde reinam não o fulgor dos ideais educacionais ou científicos, mas os mais inescrupulosos interesses, a busca do “fácil consumo”, se se quiser ainda compreender isso que se transformou em “agentes poderosos na definição de o que ensinar” e de como ensinar. Será preciso, assim, examinar o modo como essas mercadorias aparecem, em papel e tinta, espaço vazio e espaço preenchido. Talvez seja também interessante perceber, então, que a realização do lucro só é possível porque essas mercadorias são também cristalizações do trabalho efetivado por um contingente de trabalhadores mais ou menos especializados, executando tarefas distribuídas segundo um esquema de divisão de trabalho mais ou menos pormenorizado. Nesse mundo humano, demasiadamente humano, esses trabalhadores, agentes da produção editorial, que vendem a alma para o capital, fazem-no até mesmo pensando na melhoria da qualidade de ensino, do mesmo modo que um médico assalariado, por exemplo, ao engordar o lucro do patrão, pode também procurar atender bem o paciente. Se o efeito disso é a retroalimentação do sistema é outra história.

9.

Apesar da menção a “editores entrevistados”, não há, na obra de Fonseca, vestígios das entrevistas.

Capítulo 2 Um grande negócio

Na verdade, o roteiro da análise da produção de livros didáticos existe há pelos menos desde 1976. Num artigo da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Albuquerque (1976) lamentando a quase inexistência de estudos sobre livros didáticos, apontou para uma série de possíveis temas de pesquisa: Qual a estrutura da empresa editorial brasileira? Qual a relação ofertademanda dos livros didáticos? Qual a relação custo-preço de venda? Qual a situação da distribuição e do comércio de livros didáticos entre nós? Quem são e como se comportam os consumidores? Qual o peso do livro didático nos custos da educação? [...] Quais os processos vigentes de divulgação e promoção de livros didáticos? Quais os aspectos éticos envolvidos? [pp. 219 e 222.]

Suas indagações também se referiam aos autores: Praticamente nada se sabe sobre os autores dos nossos livros didáticos, seus métodos de trabalho, a maneira como são escolhidos pelos editores. Eles seriam, em sua maioria, professores em exercício de cátedra ou autores profissionais? Seus métodos de trabalho seriam científicos, com base em pesquisa, testados e validados ou meramente empíricos? Seus originais seriam submetidos aos editores por iniciativa própria ou sob encomenda prévia? [p. 219.]

Além disso, Albuquerque insistiu na necessidade de estudar a legibilidade dos livros, o que incluía a análise tanto do vocabulário adequado a ser empregado quanto dos

36 elementos gráficos apropriados a cada segmento do público. Citando pesquisas realizadas no exterior, esclareceu: O grau de legibilidade de um texto depende: (a) do tamanho e do desenho dos caracteres tipográficos; (b) da largura das linhas impressa; (c) dos espaços entre as letras, entre as palavras e entre linhas: do tamanho das margens; (d) do contraste do texto impresso com o papel. [p. 220.]

Essa questão da legibilidade sob a perspectiva psicopedagógica também havia sido objeto de estudo de Pfromm Netto et alii (1974) e seria retomada por Molina (1987) – embora, como ressaltam Freitag et alii (1993, p. 84), não fosse obter nenhuma repercussão entre os críticos do “conteúdo” dos livros didáticos. Ao que tudo indica, um grande fosso separava as duas abordagens do livro didático. De um lado, a crítica do “conteúdo” alimentava-se do crescimento, a partir da segunda metade da década de 70, da oposição ao regime militar, e a denúncia das “belas mentiras” nos livros didáticos, que tinham a chancela oficial, era certamente tomada como parte dessa oposição. De outro lado, a atenção estava muito mais voltada para o estudo da produção propriamente dita do livro didático, incluindo aspectos técnicos de editoração e impressão, e não seria abusivo imaginar que essas pesquisas tivessem como perspectiva fornecer subsídios para o Estado de modo a possibilitar formular políticas para o mercado de livro didático, então em expansão. No caso da equipe de Pfromm Netto,1 seus estudos visavam orientar os professores usuários de livros didáticos na avaliação desse material, segundo hipóteses psicológicas testadas experimentalmente. Para isso, expunham-se as estratégias de legibilidade e de inteligibilidade adotadas nos livros didáticos – o que não deixava de constituir um verdadeiro manual de produção dessa mercadoria. De modo semelhante, em 1969, a mesma equipe de Pfromm Netto já havia elaborado para a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED), do Ministério de Educação e Cultura (MEC), um manual (MEC/COLTED 1969) para professores primários sobre a utilização de livro didático. Nesta obra, toda a primeira parte é dedicada à explanação das vantagens do livro didático. Ele permite: enriquecer o vocabulário (o que possibilita entender mensagens, por exemplo, de rádio sobre “uma epidemia de tifo na cidade”); ler depressa (o que facilita, por 1 A equipe era composta de Samuel Pfromm Netto, Nelson Rosamilha e Cláudio Zaki Dib.

37 exemplo, a leitura de legenda de cinema); seguir instruções escritas (como responder a perguntas, sublinhar palavras, formar frases, resolver problemas); valorizar textos como fonte de informações; ter acesso a recreações sadias; tornar-se mais independente, sem ter de recorrer a outros para estudar; desenvolver ritmos próprios de estudo; evitar erros ortográficos; facilitar a recapitulação da lição e, com isso, “fixar a matéria”; fornecer ao aluno o mínimo indispensável de conhecimentos; trazer aos alunos “aquilo que [...] teriam dificuldade em ‘experimentar’ diretamente” (como erupção de um vulcão ou chegada da corte de D. João VI); “antecipar situação que será encontrada mais tarde”; descobrir problemas na criança e corrigi-los; ordenar os “pontos de uma matéria” segundo uma seqüência adequada; dar unidade às lições (por exemplo, mediante a permanência de uma mesma personagem); facilitar o trabalho do professor sugerindo atividades. Em suma, o livro didático é já um fato: não se trata mais de decidir se deve usá-lo ou não, mas de usá-lo bem. Em outras palavras, o uso do livro didático não depende do método de ensino adotado. O que o professor deve fazer é escolher o livro adequado – o que, estimulando a concorrência, deve contribuir para a melhoria geral de sua qualidade. Em particular, a equipe de Pfromm Netto apresenta uma justificação prática do chamado “texto programado”, sendo o próprio manual editado de acordo com tal recurso.

38

Crescimento do setor A divulgação que equipe de Pfromm Netto faz do livro didático coincide com a expansão, no Brasil, do mercado dos livros didáticos, sobretudo dos chamados “consumíveis” ou “descartáveis” – livros que, tal qual os de “texto programado”, apresentam espaços a serem preenchidos, impossibilitando, portanto, a sua reutilização. Embora os dados disponíveis não permitam avaliar a participação dos livros didáticos no total da produção brasileira de livros até o início da década de 70, há certo consenso de que nesses anos verificou-se um grande crescimento na área. Segundo dados do IBGE (apud Andrade 1978, pp. 41 e 145) houve em 1969 a produção de 904 títulos (primeira e demais edições) de “manuais escolares”, somando 37 milhões de exemplares, para um total de 5.114 títulos e 68 milhões de exemplares – menos de 1/5 de títulos, mas mais da metade de exemplares produzidos. Nesse ano, a área de “manuais escolares” já ocupava o primeiro lugar em tiragem, sendo seguida de “generalidades” (5,4 milhões), “religião e teologia” (4,7 milhões), “literatura” (4,5 milhões), “ensino e educação” (4,2 milhões) e “literatura infantil” (3,2 milhões). Não se sabe exatamente em que consiste essa área de “ensino e educação”, mas ela certamente iria englobar a de “manuais escolares” nos dados de 1973, quando atingiu o primeiro lugar em tiragem, com mais de 50 milhões de exemplares e 1.232 títulos, seguida de “generalidades” (26,5 milhões), “filologia, lingüística e literatura” (22 milhões) e “religião e teologia” (7,8 milhões). Os dados totais desse ano (Andrade 1978, p. 42) são inverossímeis. Para 1974, os dados elaborados pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) também são de difícil interpretação: a categoria que apresenta maior número de títulos (2.093) e de exemplares (91 milhões) é de “ciências sociais” que, como explica uma nota de rodapé, “engloba livros didáticos até o 1º grau” (Andrade 1978, p. 43). Em seguida vem o grupo 2 – “outros” – da categoria “obras gerais”, com 1.471 títulos e 36,5 milhões de exemplares; depois “literatura” (1.577 títulos e 23,7 milhões de exemplares) e “literatura infanto-juvenil” (grupo 1 de “obras gerais”, com 13,3 milhões de exemplares, mas apenas 424 títulos). Sem apoio nos dados que cita, Andrade (1978) acrescenta uma informação: “O Mobral/Supletivo representa 40,60% e o 1° Grau 43,78% do total dos didáticos lançados,

39 101.194.385 exemplares” (p. 43). Em todo caso, esse número total tem a confirmação de Hallewell (1985, p. 588), que também afirma que o crescimento da área de livros didáticos sofreu um estancamento no final dos anos 70: O mercado escolar brasileiro indubitavelmente é grande, representando, de fato, quase metade da produção nacional de livros. Representava 44,7% dos exemplares impressos em 1950 (segundo o SEEC)2 e ainda constituía 36,2 dos totais do SNEL para 1979. [...] Até princípios da década de 70 a publicação de livros didáticos também era muito sedutora por causa das grandes tiragens, as maiores do mundo nãocomunista, talvez com exceção de Portugal de Salazar [...]. Enquanto os livros escolares americanos e alemães vendiam edições de 150.000 exemplares, e os da França e do Reino Unido edições de cerca de 100.000 exemplares, a regra no Brasil eram tiragens de 200.000 exemplares no caso de livros didáticos para o secundário e de 300.000 ou mais para o primário. A Tabela 34 mostra claramente que a situação já não é essa. Os livros para o ensino primário têm atualmente tiragens médias em torno de 50.000 exemplares por edição e os do secundário aproximadamente a metade, embora ainda haja, sem dúvida, casos de tiragens bem maiores. [p. 589.]

A referida Tabela 34 (Hallewell 1985, p. 588) mostra a estagnação em torno de 72 milhões de exemplares da produção de livros didáticos para primário em 1977-1980, após ter atingido cerca de 79 milhões em 1977. No caso dos livros para o secundário, houve uma grande expansão de quase 11 milhões de exemplares em 1978 para cerca de 16,5 milhões em 1979, após o que a produção iria se estabilizar em torno de 17 milhões. Em 1982, se os dados forem homogêneos em relação aos anteriores, houve até mesmo uma retração na produção de livros de 1° grau (58 milhões), enquanto a de 2° grau permanecia estabilizado. Os dados disponíveis não permitem acompanhar a evolução dessa série. Em todo caso, na obra comemorativa dos 30 anos da editora Ática, Momentos do livro no Brasil, há, além da confirmação de alguns dos dados de Hallewell, indicações de que o setor dos didáticos cresceu vertiginosamente: Segundo dados do SNEL, os didáticos – que em 1979 representavam 36% do mercado editorial – foram alargando seu espaço até se tornarem seu principal segmento na segunda metade dos anos 80. [Editora Ática 1996, p. 158.]

2 Serviço de Estatística da Educação e Cultura.

40 Uma outra série, produzida pela Fundação João Pinheiro em convênio com a Câmara Brasileira do Livro, mostra o comportamento do setor de didáticos na década de 90.3 Em 1990, da produção total de 239 milhões de exemplares de todos os gêneros, foram vendidos 72,8 milhões de livros didáticos. Em 1991, entre primeira edição e reedições produziram-se 303.492.000 exemplares, dos quais 139.549.804 (46%) foram catalogados como “didáticos até 2o grau”. Desde então (e até ao menos o ano de 1995), ao mesmo tempo em que se verificava uma retração na produção editorial, a categoria dos “didáticos” passou a representar mais da metade do total de exemplares publicados, como se pode ver na Tabela 2.1: Tabela 2.1 Produção editorial no Brasil Número de exemplares: total e do setor didáticos (primeira edição e reedições) 1992-1995 1992

1993

1994

1995

Didáticos (D)*

105.050.267

129.028.074

146.013.359

193.736.323

Total (T)

189.892.128

222.522.318

245.986.312

330.834.320

D/T (em %)

55%

58%

59%

58%

Fonte: Câmara Brasileira do Livro/Fundação João Pinheiro. * Didáticos: inclui pré-escolar, 1o e 2o graus e paradidáticos.

Também não é desprezível a participação do setor de didáticos em relação a quantidade de títulos publicados, só perdendo para a categoria genérica “obras gerais” (que engloba tudo que não for classificado como “didáticos”, “religiosos”, “científicos, técnicos e profissionais” ou “coleções”):

3 Os dados da CBL/Fundação João Pinheiro, no entanto, têm de ser examinados com reserva, como adverte em sua entrevista o editor Jaime Pinsky (da editora Contexto), ele próprio diretor da CBL: [...] estas pesquisas da Fundação João Pinheiro são péssimas. Eu tentei cotejar algumas delas. Elas não bateram minimamente. Eu falei para as meninas que estavam fazendo isso. Daí elas simplesmente..., sabe, são números manipulados. [...] Esses números podem te dar uma ordem de grandeza, mas não são confiáveis.

41 Tabela 2.2 Produção editorial no Brasil Número de títulos: total, didáticos e obras gerais (primeira edição e reedições) 1992-1995 1992 Didáticos (D)*

1993

1994

1995

6.166

7.863

9.417

13.104

Obras gerais

10.752

12.181

14.240

11.650

Total (T)

27.561

33.509

38.253

40.503

D/T (em %)

22%

23%

25%

32%

Fonte: Câmara Brasileira do Livro/Fundação João Pinheiro. * Didáticos: inclui pré-escolar, 1o e 2o graus e paradidáticos.

O crescimento do setor de livros didáticos fica ainda mais evidente ao examinar a evolução das editoras que os publicam, segundo os dados do jornal (e depois revista) Leia, reorganizados na Tabela 2.3:

319

Círculo do Livro

Ática*

Saraiva*

Vozes

Brasiliense

Globo

FTD*

Do Brasil*

3

4

5

6

7

8

9

10

63

1.204

19.110

s.d.

9.996

Fonte: Leia, 1988, 1989, 1990. * Editoras que publicam regularmente livros didáticos e paradidáticos.

43

Lê*

s.d.

2.169

17.838

35.133

s.d.

9.780

6.684

8.952

25.680

29.322

Ao Livro Técnico FTD*

Do Brasil*

Cultrix

Scipione*

Vozes

Paulinas

Círculo do Livro

Saraiva*

Record

-

233

233

249

291

344

363

415

440

490

601

Total de títulos

s.d.

1.810

6.490

-

6.708

1.927

2.985

3.046

9.395

3.704

Total de exemplares (milhares) 7..998

-

-

-

-

-

s.d.

8.224

7.340

21.351

7.560

Tiragem média por título 13.307

Atlas

Loyola

Cultrix

Vozes

Do Brasil*

FTD*

Paulinas

Círculo do Livro

Record

Saraiva*

Ática*

Editora

Atual*

181

217

5.454 10.635

Ática*

Editora

37

Scipione*

17

4.513

10.786

s.d.

3.374

2.707

3.733

11.248

12.901

5.105

2.792

Tiragem média por título 9.948

Scipione*

Melhoramentos*

15

253

307

405

417

438

440

480

512

Total de exemplares ( milhares) 8.157

1988

27

Atual*

13

10

345

Paulinas

2

820

Total de títulos

Record

Editora

Posição (total de títulos) 1

1987

Tabela 2.3 Desempenho das editoras 1987-1989

55

84

250

250

305

321

362

410

411

474

481

489

609

Total de títulos

1989

s.d. 2.527

-

-

-

-

8.961

11.651

3.201

3.506

s.d.

7.941

Total de exemplares (milhares) 7.945

s.d. 45.945

-

4.246

4.064

5.979

24.754

28.417

7.788

7.397

s.d.

16.239

Tiragm média por título 13.045

43

A Tabela 2.3 não contém dados anteriores a 1987, pois até então a pesquisa, realizada por Leia não incluía números relativos à produção de livros didáticos. Em conseqüência dessa alteração, algumas editoras – como a Ática e a Editora do Brasil – avançaram consideravelmente suas posições na classificação geral de 86 para 87. [Quem é quem no mercado editorial de 1987. Leia, ano X, n° 116, jun.1988, p. 22.]

Pelo novo critério, a Ática, que estava em 12° lugar em 1986, passou no ano seguinte para o quarto e a Editora do Brasil, de 25° para o décimo. Observe-se, no entanto, que essas posições referem-se ao número de títulos publicados e não ao total dos exemplares. Se este fosse considerado para classificar as editoras, a Ática estaria em primeiro lugar já em 1987, a Saraiva, em segundo, a Editora do Brasil em terceiro – todas elas atuando na área de didáticos e paradidáticos – , e só então, em quarto lugar, apareceria a Record. Os dados relativos à tiragem média por título indicam a disparidade entre as editoras de livros didáticos e paradidáticos e as que (quase) não participam dessa fatia do mercado: enquanto, em 1987, a média da Record, apesar de lançar best-sellers com tiragens de dezenas de milhares de exemplares, é de 9.948 por título, a da Editora do Brasil é de 35.133, a da Ática, 29.322, a da Saraiva, 25.680 e a da Lê, em 43° lugar em relação ao total de títulos, é de 19.110. Essa disparidade pode também ser constatada numa mesma editora: em 1987, a “Saraiva, [...] manteve uma média de tiragem de 5.200 exemplares para os livros jurídicos e 52 mil exemplares para os didáticos” (Os cinco maiores editores do país. Leia, ano X, n° 116, jun. 1988, p. 25). O desempenho da Atual, editora especializada em literatura infanto-juvenil e paradidáticos, é digno de nota: embora sua posição em relação ao total de títulos tivesse caído, entre 1987 e 1989, de 13° lugar a 55°, sua tiragem média por título subiu de 17.838 para a surpreendente cifra de 45.945. Um artigo da revista Leia faz um balanço do crescimento do setor de didáticos e paradididáticos em meio à estagnação geral: Após um período de intenso crescimento, até 1987 [ano base=1984], a produção editorial no país estabilizou-se num patamar de 72 milhões de exemplares, com crescimento praticamente zero entre 1988 e 89. [...] O balanço exclui as publicações oficiais, embora inclua as maiores editoras universitárias. A editora Ática, de São Paulo, lidera [em 1989] o ranking de publicações com 609 títulos, seguida pela Saraiva. Em

44 volumes impressos, a recordista do ano foi a FTD, também paulista, com quase 12 milhões de exemplares. A Ática passou a liderar o ranking já em 1988, quando subiu da quarta posição. A Saraiva esteve na terceira colocação em 88 e na quinta em 87. Entre as dez maiores do ano, a editora que mais cresceu foi a FTD, com um incremento de 75% no volume de títulos publicados, seguida pela Editora do Brasil, com 45%. [...] [Bons desempenhos, apesar da inflação. Leia. Uma Revista de Livros, Autores e Idéias, ano XII, n° 142, ago. 1990, p. 25. Artigo assinado por P.M., isto é, Paulo Montóia.]

Os dados sobre faturamento e vendas são extremamente escassos e dispersos. A partir de 1990, porém, os dados da CBL/Fundação João Pinheiro permitem construir uma série, que mostra que os didáticos e os paradidáticos também são responsáveis pela maior fatia de vendas e faturamento da produção editorial no Brasil (Tabela 2.4): Tabela 2.4 Produção editorial no Brasil Exemplares vendidos e faturamento (total e didáticos) 1990-1995 Exemplares vendidos (unidades)

Didáticos

1990*

1991

1992

1993

1994

1995

72.847.992

s.d.

70.163.457

161.789.628

146.308.441

232.001.678

212.206.449

289.957.634

159.678.277

277.619.986

267.004.691

374.626.262

34%



44%

58%

55%

62%

(D) Total (T) D/T (em %)

Faturamento (US$ mil) Didáticos

235.152

s.d.

332.515

312.966

612.813

1.059.437

803.271

930.959

1.261.374

1.857.377

49%

57%

(D) Total (T)

901.503

D/T (em %)

26%

871.640 –

41%

34%

Fonte: Câmara Brasileira do Livro/Fundação João Pinheiro. * Em 1990, foram excluídas as vendas à FAE, entregues em 1991.

O setor de didáticos só não obteve a primeira colocação no faturamento em 1900, quando a categoria “coleções” foi responsável por 30% do faturamento global. Em todos os demais anos do período (à exceção de 1991, sem dados), o de didáticos foi o setor da produção editorial no Brasil que mais vendeu e mais faturou – e a

45

tendência é a de ampliar ainda mais a sua participação. Nesse sentido, a comparação do desempenho do setor entre o primeiro semestre de 1995 e o primeiro semestre de 1996 (últimos dados disponíveis) pode ser esclarecedora (Tabela 2.5): Tabela 2.5 Produção editorial no Brasil Exemplares vendidos e faturamento (total e didáticos) 1o semestre de 1995 e 1o semestre de 1996 1o sem 1995 (A)

1o sem 1996 (B)

Variação B/A (%)

Exemplares vendidos (unidades) e variação Didáticos (D) Total (T) D/T (em %)

98.624.399

160.122.878

62,35%

170.737.544

242.396.127

41,97%

58%

66% Faturamento (US$ mil) e variação

Didáticos (D) Total (T) D/T (em %)

636.099

895.622

40,80%

1.058.159

1.383.038

30,70%

60%

65%

Fonte: Câmara Brasileira do Livro/Fundação João Pinheiro.

Embora os dados sejam insuficientes para arriscar projeções, as taxas de variação são eloqüentes. De um ano para outro, no mesmo período, as vendas de didáticos crescem pouco mais de 62%, enquanto seu faturamento aumentava em quase 41% – e isso numa fatia do mercado que cresce de 58% para 66% do total em relação à vendagem e de 60% para 65% no faturamento. A que se deve toda essa vitalidade do setor dos didáticos?

O Estado cliente Entre os dados da CBL/Fundação João Pinheiro para 1990 há uma nota segundo a qual da rubrica “didáticos” foram “excluídas as vendas à FAE no ano de 1990, entregues em 1991”. Isto parece explicar o baixo desempenho do setor de didáticos naquele ano, mostrado na Tabela 2.4: 34% do total de exemplares vendidos e 26% do faturamento (perdendo, como se viu, para o setor “coleções”, com 30%). “FAE” é também um item que aparece na tabela de dados para 1995, abaixo dos tradicionais

“subsetores

editoriais”

(segundo

a

nomenclatura

da

pesquisa

46

CBL/Fundação João Pinheiro) em que se classificam a produção editorial: “didáticos”, “obras gerais, “religiosos” e “científicos, técnicos e profissionais”. Nessa tabela, há um esclarecimento: “No ano de 1955, o subsetor Didáticos respondeu por 57% do faturamento total do setor editorial brasileiro [...]. As compras da FAE estão incluídas no subsetor Didáticos.” Do mesmo modo, na Tabela 2.4, acima, os valores da vendagem e do faturamento do setor de didáticos foram obtidos, nos respectivos campos, pela soma dos itens “Didáticos” e “FAE”, pois, originalmente, os dados estavam dispostos da seguinte maneira:

A decisão de criar um item à parte – “FAE” –, que não é exatamente um “subsetor editorial” não deixa de ter sentido: afinal esse item responde, em 1995, por nada menos que 33% do total de faturamento e 34% de vendas do total da produção editorial, chegando a superar, em exemplares vendidos, até mesmo o próprio setor de didáticos! “FAE”, como se sabe, é a sigla da Fundação de Assistência ao Estudante, um órgão ligado ao Ministério da Educação e do Desporto (MEC). 1 É esse órgão o responsável pela compra dos livros didáticos para serem distribuídos às escolas públicas de todo o Brasil. De certa forma, o Estado assim subsidia os livros didáticos. De acordo com Franco (1980), as primeiras medidas pelas quais o governo brasileiro passou a subsidiar os livros didáticos datam de 1961, quando o Banco do Brasil foi incumbido de financiar sua produção (decreto federal n° 50.489, de 1 No momento em que o presente trabalho está sendo escrito, é esse o nome oficial do Ministério da Educação. Ele já se chamou simplesmente Ministério da Educação e, antes, Ministério da Educação e Cultura, do qual todas as denominações posteriores herdariam a sigla “MEC”.

47

25/4/1961). Para publicar e distribuir livros didáticos instituiu-se, em 1964, a Campanha Nacional de Material de Ensino (decreto-lei n° 53.887, de 14/4/1964), que, em 1967, pela lei n° 5.327, seria transformada em Fundação Nacional de Material Escolar (FENAME). Paralelamente, como observam Oliveira et alii (1984), criou-se, em 1966, a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED), com a finalidade de incentivar, orientar, coordenar e executar as atividades do Ministério da Educação e Cultura relacionadas com a produção, a edição, o aprimoramento e a distribuição de livros técnicos e de livros didáticos. [Decreto n° 59.355, de 4/19/1966, apud Oliveira et alii 1984, p. 53.]2

Além de orientar, como se viu, os professores primários a utilizar livros didáticos, a COLTED, pela sua Direção Executiva, ficou incumbida de realizar [...] todos os trabalhos relacionados com a produção e a aquisição do material didático. O diretor-executivo encaminharia aos órgãos próprios do MEC, responsáveis pela seleção, as listas de livros técnicos e didáticos já publicados ou em fase de produção, já preparadas por entidades especializadas. Deveria ainda receber dos órgãos próprios do MEC as solicitações para a publicação de livros novos e providenciar a seleção das editoras que deveriam lançá-los, ou, quando necessário, dos autores que deveriam escrevê-lo. Os títulos aprovados seriam adquiridos pela COLTED para distribuição às bibliotecas, de, no mínimo, um exemplar para cada unidade. [...] [...] Não é preciso muito esforço de imaginação para avaliar a importância para as editoras da participação neste convênio. Todo o trabalho de redefinir sua linha de produção para atender às exigências do programa seria irrelevante frente à compensação garantida com o sucesso da negociação. A COLTED compraria todo o estoque da produção [...]. [Oliveira et alii 1984, p. 54.]

Envolvido em acusações de irregularidades – o chamado “escândalo COLTED” (Oliveira et alii 1984, p. 56) –, o órgão foi extinto em 1971. Desde 1970, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) já havia definido que a participação do governo na produção do livro didático deveria se fazer mediante coedição com setor privado, ficando o Instituto Nacional do Livro (INL) e, a partir de 1976, a FENAME encarregados de sua execução (Franco 1980, p. 37). Assumindo na 2.

Segundo Oliveira et alii (1984 pp. 52 ss.), o decreto que cria a COLTED teve duas versões. A primeira, o decreto n° 58.653, de 16/6/1966, criava o Conselho (e não Comissão) do Livro Técnico e Didático, o qual deveria exercer suas atribuições “em colaboração com a Aliança para o Progresso”, não escondendo a ligação desse órgão com o acordo MEC-USAID.

48

prática as responsabilidades da COLTED, o INL passou a executar o Programa do Livro Didático, composto de Programa do Livro Didático-Ensino Fundamental (PLIDEF), Programa do Livro Didático-Ensino Médio (PLIDEM), Programa do Livro Didático-Ensino Superior (PLIDES), Programa do Livro Didático-Ensino Supletivo (PLIDESU) e Programa do Livro Didático-Ensino de Computação (PLIDECOM). Em 1985, durante a euforia do período inicial da chamada “Nova República”, o Ministério da Educação (MEC) instituiu as “Diretrizes Operacionais para o Programa do Livro Didático – 1º grau (1985/86)” (decreto nº 91.542, de 19/8/1985), transformando o antigo PLIDEF em Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), a ser executado pela Fundação de Assistência ao Escolar (FAE), criada em 1983.3 Os demais programas foram extintos. Os objetivos proclamados do PNDL eram, entre outros:  universalização do Programa para todos os alunos das oito séries do 1º grau das escolas públicas e das escolas comunitárias (escolas criadas pela própria população);  participação dos professores na escolha dos livros;  distribuição aos professores do manual e do caderno de atividades;  incentivo ao uso de livros não-descartáveis.

O modo como os professores participam da escolha dos livros pode ser exemplificada pelo cronograma da FAE para 1996:  maio: Escolas receberam a lista de livros aprovados pela FAE e o manual com a indicação das melhores obras. [...]  julho: Os professores devem enviar ao ministério os nomes dos livros escolhidos até o dia 12. Por enquanto, menos de 1.000 escolas fizeram a seleção. O MEC espera receber 200.000 fichas (uma de cada estabelecimento)  agosto: Começa a negociação com as editoras para a compra dos livros. As escolas devem receber o material até o início de março. [...] O prazo para escolha dos livros terminou no último dia 5 [de junho]. O levantamento dos pedidos será concluído no final de julho. [...] [O Estado de S.Paulo, 25/6/1976.]

3 . Sobre a FAE, ver Höfling (1993). Salvo indicações em contrário, as informações a seguir sobre o PNLD baseiam-se nos relatórios de pesquisa do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): Unicamp-NEPP (1988, pp. 268 ss.) e Unicamp-NEPP (1989, pp. 383 ss.).

49

Medidas para facilitar a escolha dos livros pelo professor também foram tomadas. Por exemplo, em 1986, a FAE [...] adotou uma série de medidas, entre as quais termo de cooperação mútua com as Secretarias Estaduais de Educação – SEEs em torno das seguintes atribuições da coordenação do PNLD:  assegurar a escolha efetiva dos livros pelos professores por escola; receber e encaminha, com a participação dos municípios, os formulários de indicação a todas as escolas envolvidas, bem como revisá-los e devolvê-los à FAE nos prazos estabelecidos;  elaboração pela FAE de um novo formulário mais simplificado para o professor, vem como de um “Manual para Indicação do Livro Didático”, constando de 1.283 títulos de 50 Editoras, ambos encaminhados aos estados para serem distribuídos até 31/7/81 pelas. SEEs. [Unicamp-NEPP 1988, p. 276.]4 A Tabela 2.6 mostra o desempenho do PNLD e seu antecessor, o PLIDEF:

4

Não raramente suspeitas foram levantadas sobre a lisura desse processo de escolha. Em 1996, no município de Morrinhos (Goiás), constatou-se que todas as escolas haviam escolhido um mesmo livro e todas as fichas que o indicavam estavam preenchidas com a mesma caligrafia. As investigações, no entanto, revelaram que por motivos didáticos todos os professores, com a anuência da Secretaria Municipal de Educação, haviam decidido adotar um mesmo livro e encarregado uma pessoa para preencher as fichas (O Estado de S.Paulo, 24/6/1996 e Folha de S.Paulo, 26/6/1996).

50 Tabela 2.6 Material distribuído pelo PLIDEF/PNLD 1971-1988 Ano

Títulos

1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1991 1992 1993 1994 1995

114 212 223 220 235 292 112 165 233 325 239 346 415

Total (em milhões)* 7,2 8,0 7,5 7,1 10,7 11,2 19,5 18,3 16,7 14,5 10,4 12,3 12,4 21,6 21,5 45,1 55,6 30,1 66,9 8,0 25,0 56,9 57,0

Fonte: Freitag et alii 1993; Unicamp-NEPP 1988, 1989; Höfling 1993; Folha de S.Paulo, 30/9/1995. * Inclui livro-texto, manual do professor e caderno de atividades.

Os dados são extremamente lacunares e muitas vezes inexatos, embora a fonte original sempre seja a própria FAE.5 Por exemplo, em abril 1994, a Folha de S.Paulo, em meio à denúncia, já cíclica, da má qualidade dos livros didáticos, informou: São distribuídos por ano 67 milhões de livros didáticos no país. A FAE (Fundação de Assistência ao Estudante) gastou este ano mais de US$ 110 milhões na compra de material para os 28 milhões de alunos da rede pública. [Folha de S.Paulo, 21/4/1994. Artigo assinado por Gilberto Dimenstein e Daniela Pinheiro.]

5

Contato telefônico com a FAE revelou o quão difícil é obter diretamente da fonte dados relativos aos exemplares distribuídos pelo PNLD: peregrinando de ramal em ramal – sim, pois, como se sabe, a FAE não se dedica somente a livros didáticos! –, chegou-se finalmente a uma pessoa que pôde informar que conseguir os números dos livros adquiridos e distribuídos ano a ano só seria possível vasculhando os arquivos para encontrar os processos correspondentes. À pergunta de se não haveria algum relatório periódico das atividades da FAE (pois existe e seu título varia de ano para ano: Relatório FAE, Relatório da FAE etc.), essa pessoa transferiu a ligação para um outro ramal. Neste, a mesma pergunta recebeu como resposta um gentil convite para visitar o órgão. Como os dados da FAE não estão exatamente entre as prioridades da presente pesquisa, tal visita, infelizmente, não pôde se realizar.

51

É bem provável que os dados se refiram somente a 1993 (ou a 1994), embora não coincidam com os da Tabela 2.6. Os dados para 1995 e 1996 estão contidas na promessa do presidente Fernando Henrique Cardoso, que, em julho de 1995, em seu programa de rádio “Palavra do Presidente”, anunciou: No ano que vem, o Ministério da Educação vai distribuir 110 milhões de livros para as escolas públicas de primeiro grau. É isso mesmo que você ouviu: 110 milhões de livros para 30 milhões de alunos. Este é um recorde mundial. É quase o dobro do que estamos distribuindo neste ano. [...] [Folha de S.Paulo, 19/7/1995.]

Se a compra de todo esse volume foi efetivada – e não há motivos para duvidar das palavras do presidente –, então pode-se dizer que o desempenho do PNLD, que havia decrescido abruptamente em 1992/1993 retomou seu crescimento, chegando a 57 milhões ou 67 milhões (dependendo da fonte da própria FAE), para, finalmente, atingir o ápice de 110 milhões. 6 Por fim, o em 1996, o Ministro da Educação declarou que, para 1997, o governo iria comprar 110 milhões de livros didáticos, no valor de US$ 226 milhões (Folha de S.Paulo, 22/5/1966), o que indica uma certa estagnação do programa. A comparação desses dados com a evolução do número de alunos matriculados no 1o grau permite avaliar melhor a dimensão do PNLD (Tabela 2.7):

6 Também não há que duvidar do cálculo presidencial, segundo o qual 110 milhões é o “dobro do que estamos distribuindo neste ano”, em 1995. Embora a pesquisa da CBL/Fundação João Pinheiro aponte para a cifra superior a 130 milhões de exemplares vendidos em 1995 para a FAE, isso não necessariamente coincide com a quantidade efetivamente distribuída no ano, que poderia ter sido mesmo a metade de 110 milhões, isto é, 55 milhões – ou 57 milhões, de acordo com os dados da Tabela 6 ou, ainda, 60 milhões, como anunciaria o presidente em 1996 (cf. nota abaixo).

52 Tabela 2.7 Unidades de ensino e matrículas iniciais Primeiro grau Brasil 1984-1995 Ano

1984

Unidades de ensino (total) *191.014

1985



Matrículas inicias (total) 24.821.301

Matrículas (escolas públicas) 21.771.675

24.769.736

23.534.971 24.816.246

1988

201.541

26.821.134

1991

206.526

28.742.471 **27.580.696

1992

*206.817

1993



1994

29.953.722 ***28.398.424 ***29.562.358

1a-4a séries (total)

5a-8a séries (total)





17.308.854 –

7.422.195 –

**18.028.033

**9.465.708

***17.863.264

***10.237.925

***18.292.646

***10.971.509

***18.353.494

***12.129.943

26.474.741

31.220.110

1995



***30.791.111

Fonte: Unicamp-NEPP 1986, Abril 1987, 1990, 1992, 1994, 1995, 1997, IBGE. * Valores estimados. ** IBGE, Censo demográfico. *** IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).

Os dados não são muito homogêneos nem tampouco precisos (a soma dos valores dos campos 1a-4a séries e 5a-8a séries nunca coincidem com o total das matrículas), mas permitem avaliar a ordem de grandeza desses dados. O que salta aos olhos é que o crescimento das matrículas (em torno de 24%) praticamente acompanha o crescimento da população brasileira (23,5% entre 1980 e 1991). O que mais surpreende é a grande disparidade entre o crescimento das matrículas de 1a a 4a séries (6%) e o das 5a a 8a séries (63%). Para comparar esses dados com os do PNLD é preciso levar em conta não o total das matrículas, mas apenas as efetuadas em escolas públicas, pois as particulares não são atendidas pelo Programa. Além disso, entre as matrículas das escolas públicas deve-se levar em conta apenas as de 1a a 4a séries, pois, apesar das intenções proclamadas na sua criação, a FAE só passaria a distribuir livros aos alunos de 5a a 8a séries em 1996 – o que talvez explique grande salto de 110 milhões para 1996. A inclusão de 5a a 8a série no PNLD também foi anunciado pelo presidente da República:

53 Outra notícia boa é que, em 1996, no ano que vem, a Fundação de Assistência ao Estudante, a FAE, também vai distribuir livros para os alunos da 5ª à 8ª série do primeiro grau, e também de graça. Assim, vamos atender os estudantes da 1ª até a 8ª série. Mais de 95% das escolas públicas de primeiro grau já receberam os livros didáticos deste ano. [Folha de S.Paulo, 19/7/1995.]

Ao cotejar todos esses dados, a conclusão impõe-se óbvia: o crescimento do PNLD, desde a sua criação e apesar de recuos, foi superior ao aumento do seu público-alvo. Em outras palavras, aumentou a quantidade de livros recebidos por cada aluno matriculado na escola pública de 1o grau – pelo menos em tese. 7 Para as editoras, esse público – cujo consumo de livros é maior do que o consumo médio no

7

“Em tese”, pois são freqüentes as denúncias pela imprensa das irregularidades e atrasos na distribuição dos livros (e também dos materiais escolares, merendas etc.). Dessas denúncias, talvez a mais grave tivesse sido a notícia, veiculada no Jornal Nacional (da Rede Globo) de 13/7/1995, segundo a qual um empresário contratado para distribuir sete milhões livros didáticos comprados pela FAE, em São Paulo, teria reciclado parte desse estoque sob sua responsabilidade para fazer papel higiênico. Em 1995, o Tribunal de Contas da União considerou irregulares as contas de 1991 da FAE, multando três diretores do órgão. Segundo a Folha de S.Paulo, de 9/2/1995, as “irregularidades envolvem transporte de livros escolares”. Em relação ao atraso, é sintomático que os sucessivos governos promovam sistematicamente campanhas publicitárias em que se afirma que naquele ano os livros didáticos chegaram (ou chegarão) no prazo, antes do período letivo. Em setembro de 1994, por exemplo, uma propaganda oficial do MEC, veiculada pela televisão, afirmava que naquele ano 50 milhões de exemplares haviam chegado às escolas antes do início das aulas. Em 1995, no já mencionado programa de rádio, o Presidente da República também afirmou: “E mais, os livros de 96 chegarão às escolas até o dia 28 de fevereiro e serão melhores” (Folha de S.Paulo, 19/7/1995). No ano seguinte, de fato, o presidente anunciaria: “No livro didático [...] nós multiplicamos de 60 milhões para 110 milhões o número de livros distribuídos. [...] E nós fizemos com que isso fosse atendido até março a 98% dos municípios” (Folha de S.Paulo, 7/5/1996). Mas, como alertaria a Folha de S.Paulo (2/4/1996), o compromisso do governo, de entregar os livros em 90% dos municípios até o começo de março, “só foi atingida nos Estados onde a operação foi centralizada. Onde a escolha, compra e transporte do livro ficou por conta dos governos estaduais, a operação atrasou, como em SP e RJ, Estados que, até o início de março, só haviam distribuído 26% dos 21,6 milhões de livros – segundo a FAE”. O mesmo jornal denunciou em 2/4/1996: “O governo do Estado de São Paulo ainda não distribuiu 8,4 milhões de livros didáticos, dos 12,5 milhões que deveriam ter chegado até março às 6.800 escolas de sua rede”. Um relato pormenorizado dos sucessos e dos fracassos do esquema de distribuição dos livros didáticos montado para 1996 encontra-se em O Estado de S.Paulo, 5/4/1996. Uma outra irregularidade que parece ser freqüente é a venda dos livros comprados pela FAE. O Estado de S.Paulo (20/5/1996), noticiou denúncias “de que escolas vêm cobrando dos alunos os livros didáticos distribuídos gratuitamente pelo governo. As reclamações, geralmente de pais de alunos, partiram de São Paulo, Goiás, Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e Mato Grosso”. Em fevereiro de 1997, a própria FAE fez publicar nos jornais anúncio de um quarto de página, alertando:

Livro Didático do MEC. Não compre. Não venda. [...] Os livros distribuídos pelo Governo Federal levam o selo MEC/FAE e não podem ser vendidos. A Fundação de Assistência ao Estudante – FAE – tem recebido denúncias de que livros do Programa Nacional do Livro Didático, que devem ser distribuídos gratuitamente, estariam sendo comercializados. O MEC pede a colaboração de toda a comunidade – alunos, pais, professores, diretores de escolas, autoridades estaduais e municipais – para que fique atenta e denuncie esse tipo de fraude. [...] [Folha de S.Paulo, 20/2/1997.]

54

Brasil –,8 representava, certamente, uma fatia do mercado não desprezível e o Estado, comprador, um cliente preferencial.

“Verdadeira ebulição” Mais do que isso, um mercado sem riscos, apontam Freitag et alii (1993): Ao receberem da FAE as listas de encomenda de livros por parte dos professores, as editoras já conhecem as tiragens para cada título que será comprado pelo governo, podendo fazer tranqüilamente a sua programação, sem maiores riscos. [p. 58.]

Quase toda a produção, portanto, está previamente vendida antes mesmo da execução da impressão e do acabamento. E não apenas vendida, como já paga, ao menos parcialmente: em 1985/1986, as editoras receberam da FAE, no ato da encomenda, 70% do valor total; e em 1986/1987, 50%. Não por acaso, afirmou o Relatório do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp (Unicamp-NEPP) relativo a 1987: O PNLD vem provocando uma verdadeira ebulição na indústria editorial e gráfica do país, uma vez que consome cerca de 70% da produção de livros didáticos. [Unicamp-NEPP 1989, p. 420.]

Na edição de fevereiro de 1987, Leia noticiou o aquecimento do setor : [...] Nos dois últimos anos, a FAE comprou e distribuiu [...] 45 milhões de exemplares [...] e neste início do ano letivo mais 56 milhões de volumes deverão chegar às escolas. [...] [Leia, ano IX, n° 100, fev. 1987, p. 53.]

De acordo com a notícia, dos 160 milhões de exemplares/ano de livros escolares (préescola até o 2o grau), cerca de 70 milhões eram destinados aos alunos da 1a a 8a série – e desses 70 milhões, 80% teria como cliente a FAE. O artigo também indicou os principais fornecedores do governo – “As dez maiores editoras, que controlam 92% do mercado”: A empresa líder na área, constituída pela coligação das editoras IBEP e Nacional, em 1986 teve 13 milhões de seus livros distribuídos pela

8 Em 1993, cada habitante do Brasil consumiu, em média, 1,85 livro, segundo Folha de S.Paulo, 17/8/1994 (Caderno especial sobre a Bienal do Livro).

55 FAE – o equivalente a 35% do PNLD – e outros sete milhões de volumes colocados nas livrarias. [Leia, ano IX, n° 100, fev. 1987, p. 53.]

A editora Ática havia produzido, em 1986, nove milhões de livros de literatura e 16 milhões de didáticos; destes a FAE havia adquirido 11 milhões, correspondentes a 37,5% de toda a produção da empresa. A Editora do Brasil havia vendido cerca de 66% de sua produção para a FAE e a Saraiva, aproximadamente 60%. Ainda segundo Leia, os dez livros mais solicitados/vendidos (para a FAE) para o ano letivo de 1987 foram: Tabela 2.8 Dez livros mais solicitados para a FAE 1987 Titulo/série

Autor

Ciências. Ar, água e solo, ecologia, programa de saúde (5a série) Descobrindo o mundo de estudos sociais e ciências (2a série) Ainda brincando (2a série) a

Mundo mágico (1 série) É hora de aprender (2a série) a

A criança e a natureza. Ciências e saúde (2 série) a

Os seres vivos (6 série) a

Editora

Exemplares vendidos 455.289

Carlos Barros

Ática

Elian Alabi Lucci e outros Joanita de Souza

Saraiva

391.352

Brasil

380.092

Lidia Maria de Moraes e outra Luiz Cavalcante e outra

Ática

365.596

Scipione

363.588

R. O Steifel e outro

FTD

341.872

Carlos Barros

Atica

336.324

Brincando com os números (1 série)

Joanita de Souza

Brasil

312.409

A criança e sua comunidade (2a série)

Yolanda Marques

Nacional

297.966

Mundo Mágico (2a série)

Edna Perugine e outra

Ática

292.325

Fonte: Os dez mais. Leia, ano IX n° 100, fev. 1987, p. 53.

O Estado não compra apenas livros propriamente didáticos. Em maio de 1994, uma polêmica entre editoras, sobre critérios de seleção de títulos da “Biblioteca do Professor”, revelou a criação, por uma portaria da FAE/MEC, de 3/5/1993, do Programa Nacional de Biblioteca do Professor, visando a formação de cerca de cinco mil bibliotecas em municípios brasileiros com mais de 40 mil habitantes, contendo, inicialmente, 300 títulos adquiridos pela FAE e outros tantos, pelos municípios (Folha de S.Paulo, 18/5/1994, p. 3-1).9 A cifra é modestíssima se comparada à dos livros

9. A polêmica foi suscitada pelo fato de um dos editores dos livros selecionados ser membro da própria comissão de seleção dos títulos a serem adquiridos pela FAE.

56

didáticos, mas, no Brasil, cinco mil exemplares por título (ou 10 mil, caso a municipalidade decida comprar os mesmos livros indicados pela FAE) representa um mercado que também não pode ser desprezado. Além disso, em 11/1/1994, a Folha de S.Paulo anunciou na seção “Boa Notícia”, da primeira página, a entrega, pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, de 234.176 livros às 1.358 escolas-padrão. Segundo o artigo propriamente dito, referente a essa notícia, essa distribuição [...] faz parte de uma segunda fase de implantação dos CICs (Centros de Informação e Criação) – os substitutos das bibliotecas nas escolas ditas padrão. Foram gastos CR$ 264 milhões (cerca de US$ 750 mil), segundo Cesar Callegari, 40, diretor executivo da FDE (Fundação para o Desenvolvimento da Educação). Cada escola receberá um conjunto de 84 livros. [...] Na primeira fase do projeto dos CICs, [...] as 306 escolas padrão criadas em 1992 receberam 1.090 cada; as 1.052 criadas em 1993 tiveram um acervo menor, de 701 livros, por causa da falta de recursos para a secretaria [...]. A idéia da segunda fase é a cada ano enviar materiais novos – como livros que estão em evidência –, para estimular tanto os alunos quanto os professores a fazerem uso das bibliotecas, diz Pedro Braz, 37, diretor de Projetos Especiais da FDE. [Folha de S.Paulo, 11/1/1994, p. 3-4.]

Se os números estiverem corretos,10 a distribuição de livros pelo governo de São Paulo teria atingido, nas duas fases do projeto, cerca de 1,3 milhão de exemplares.

Adequação à demanda Mas as editoras, ao que parece, não estavam muito preparadas para atender à tamanha demanda. Por exemplo, para a produção dos livros a serem adotados em 1987, a FAE determinou que as negociações com as editoras fossem concluídas até 15/10/1986 e os materiais, entregues até 31/12/1986, após o que seria cobrada uma multa de 0,5% do valor contratado por cada dia de atraso. As editoras estavam, pois, desafiadas a produzir 55,5 milhões de materiais, entre livros, manuais e cadernos de

10. Há pelo menos um aspecto duvidoso: se cada uma das 1.358 escolas-padrão recebeu um lote de 84 livros, o

total dos exemplares deveria ter sido 1.358 x 84 = 114.072, e não 234.176.

57

atividades, em apenas 105 dias. Diz, a respeito, um diretor da editora Atual, uma das que foram multadas: Muitas editoras assinaram este contrato sabendo que não podiam cumpri-lo. Mas se não o assinássemos estaríamos fora do Programa. Os prazos eram irreais, mas não tínhamos outra saída. [Folha de S.Paulo, 15/4/1987, apud Unicamp-NEPP 1989, p. 420.]

Naquele ano, apenas oito editoras cumpriram o prazo. Isso gerou uma grande movimentação do setor, representado pela Câmara Brasileira do Livro. O prazo foi prorrogado para 31/1/1987. O problema do prazo era agravado pela grande concentração dos contratos em poucas editoras. Em 1985/1986, a Editora do Brasil e a IBEP – que não cumpriram o prazo estipulado – eram responsáveis por, respectivamente, 25% e 17% das edições do PNLD. Em 1986/1987, cinco editoras acumularam 85% da demanda do Programa, ficando 15% restantes distribuídos entre 40 editoras. 11 Em outras palavras, cinco editoras ficaram encarregadas de produzir cerca de 47 milhões de materiais (quase 10 milhões por editora) em 2,5 meses e, depois da prorrogação do prazo, em 3,5 meses. Atender a tal demanda exigiria recursos tecnológicos de que poucas editoras dispunham à época. Por sinal, a relação entre defasagem tecnológica e atraso na entrega dos livros encomendados pela FAE fez parte das discussões do 7º Congresso Brasileiro de Indústria Gráfica, realizada em 1987. Concluiu-se então que o governo era o principal responsável pelo não-cumprimento dos prazos, pois a proibição de importação de equipamentos induzia o setor gráfico ao atraso tecnológico.12 Atribuição de culpas à parte, não é improvável que as editoras tivessem buscado adequar-se à demanda, incorporando recursos tecnológicos que estavam disponíveis. Convém lembrar que ocorreu justamente nesses anos 80 a introdução, no Brasil, da informática para executar várias fases da produção de livro – a chamada editoração eletrônica ou, em inglês, desktop publishing. Uma pequena nota em uma revista especializada em editoração eletrônica permite visualizar o grau de aprimoramento pelo que passou o setor de livros didáticos:

11.

Segundo Höfling (1993), é “muito significativo o fato de que as editoras envolvidas no Programa Nacional do Livro Didático nunca tenham sido citadas nominalmente nos Relatórios anuais da FAE, exceção feita ao de 1987 [...], que aponta as Editoras Brasil, Ática, IBEP, FTD e Scipione como aquelas que mais venderam para a FAE” (p. 118). 12 Cf. Jornal do Brasil, 12/5/1986, apud Unicamp-NEPP 1989, p. 420.

58 A Editora Ática, maior editora de didáticos da América Latina, montou um sistema de produção digital para suportar as 1.800 páginas que a empresa edita mensalmente. Ele está dividido em cinco partes: editoração, arte, revisão, finalização P&B [preto e branco] e finalização cor. [...] Na Ática, podem-se ter dezenas de pessoas trabalhando no mesmo livro ao mesmo tempo, por isso, um dos pontos que mais recebeu atenção na elaboração do projeto foi a construção da rede de computadores. [Editora Ática monta sistema digital, Publish, ano III, nº 8, set./out. 1993, p. 8.]

Outro exemplo de desenvolvimento tecnológico que já estava à disposição das editoras para produção rápida em grande quantidade era o sistema denominado Cameron, que a editora Record (que não produz livros didáticos) implantaria em 1989 – um equipamento “capaz de produzir cem livros por minuto, 6 mil por hora, quase 50 mil em um turno de oito horas”, incluindo acabamento (Folha de S.Paulo, 1/4/1989, caderno Letras).

Mercadoria sob encomenda É possível, pois, que a pressão da demanda do Estado tivesse sido um dos fatores que induziram as indústrias editorial e gráfica a modernizarem sua produção. Num outro aspecto, porém, a intervenção do Estado é direta e sem disfarces. Num documento intitulado Requisitos obrigatórios para os livros didáticos no Nordeste, sem data e sem nenhuma identificação de autoria, mas indubitavelmente do MEC,13 descrevem-se uma série de exigências que os livros devem cumprir. As pontuações dos livros vão de um a cinco, e recobrem vários quesitos, como “lay-out e apresentação”, “ilustrações”, “abordagem pedagógica”, “significação regional e meio ambiente”, além de requisitos específicos de cada disciplina. Por exemplo, no tópico “lay-out e apresentação”, o livro receberá a nota mínima (um) se apresentar as seguintes características:  As instruções para professores e alunos são difíceis de serem identificadas e diferenciadas  Não existem cabeçalhos ou não são claros

13

O documento a que esta pesquisa teve acesso é uma fotocópia do texto original que provavelmente faz parte do edital de concorrência pública para licitação da compra de livros didáticos do Projeto Nordeste – parte do PNLD destinada especificamente a Estados do Nordeste, em que livros são adquiridos mediante licitação.

59  Professores e alunos não podem distinguir o centro de uma lição, dos exercícios, atividades etc.  Os tipos de letras são muito pequenos para a idade das crianças [...].

A nota máxima (cinco) obtém-se com uma apresentação quase simetricamente oposta:  As instruções são positivas, tem significado e ajudam  Os cabeçalhos ajudam alunos e professores a usar o texto  Existem claras diferenças entre os diferentes tipos de texto que ajudam ao aluno e professor a usar o livro  Capítulos / lições têm cabeçalhos fáceis de compreender e são pedagogicamente significativos [...].

Em âmbito estadual, a Secretaria de Estado da Educação (SEED), do Paraná, também apresentou exigências semelhantes na licitação que realizou em 1994 para aquisição de livros didáticos de 5a a 8a séries. O edital é minucioso nas exigências: O produto ofertado deverá atender no mínimo às seguintes especificações, sob pena de desclassificação da proposta em desacordo: 1. MIOLO Papel branco não revestido gramatura: 70-75 g/m2 com variação de + ou - 5% espessura: 0,095 mm com variação de + ou - 5% para 75 g/m2 2. CAPA Papel cartão branco, revestido de um só lado e plastificado gramatura: mínima de 250 g/m2 com variação de + ou - 5% espessura: 0,225 mm com variação de + ou - 5% para 250 g/m2 [...]. [Concorrência UCP/SEED n° 001/94. Anexo II.]

Numa entrevista a Leia, de fevereiro de 1988, Carlos Pereira, então presidente da FAE, justificou as exigências do Estado: No final das contas, nós nos constituímos no maior cliente das editoras de livros didáticos do país. É bom lembrar que se Jorge Amado é o best-seller da literatura brasileira, tem autor de livro didático que vende de uma vez o equivalente a cinco vezes o que o escritor baiano vende em um ano. [...] Temos [...] exercido uma pressão junto às editoras, legítima, e os editores têm reagido bem. Todas as modificações, neste ano, por nós propostas, foram em sua maioria atendidas, e as que não foram atendidas tiveram os livros rejeitados. É fundamental o Governo saber que está comprando um bom produto. E estamos continuando o trabalho de avaliações com a participação do Inep (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos) e outros órgãos do MEC. [PNLD: um programa consolidado. Entrevista com Carlos Pereira.

60 Leia, ano X no. 112, fev. 1988.]

É bem possível que o papel do Estado como principal cliente do setor de livros didáticos aumente ainda mais. Em dezembro de 1996, o MEC anunciou para janeiro de 1997 a fusão da FAE com o Fundo para o Desenvolvimento da Educação (FNDE), o que daria origem a um “superórgão”, como classificou a Folha de S.Paulo (21/12/1996). De fato, segundo José Antônio Carletti, presidente desse “superórgão” já criado, o MEC pretende comprar mais e mais livros não-didáticos, isto é, de literatura e obras de referência (Folha de S.Paulo, 26/2/1997). Todo esse papel que o Estado assume não justificaria, afinal de contas, a afirmação de que o livro didático – e agora também os não-didáticos – não tem uma “história própria”, mas apenas uma história de “seqüência de decretos, leis e medidas governamentais”? Para Freitag et alii (1993) a resposta é, obviamente, afirmativa: Desta forma, o Estado interfere no processo de produção do livro didático na entrada, ou seja na fase de planejamento da mercadoria livro, determinando o seu conteúdo, e na saída, isto é, no final do processo produtivo, transformando-se em comprador. Mas a atuação do Estado não termina aí. Ele ainda participa em várias etapas intermediárias do processo de produção, circulação e consumo da mercadoria livro. Como comprador de matéria-prima (papel, tinta, máquinas etc.) ele assegura os estoques do mercado; como organizador dos transportes do livro pronto, ele promove sua entrega nas escolas, fretando caminhões, barcos, lombos de burro [...]; e como divulgador do livro, funciona como seu intermediário e comercializador, fornecendo listas dos livros produzidos aos professores de escolas, para que estes possam fazer a sua escolha. Em certas ocasiões, o Estado ainda assumiu as funções de avaliador da qualidade do livro ou de censor. [p.52.]

Censura?

Capítulo 3 Estado e mercado

Censura! – foi o que quase gostariam de ter dito editores e autores de livros didáticos quando, em maio de 1996, o Ministério da Educação e do Desporto (MEC) anunciou que vários livros distribuídos pela FAE continham erros graves (Folha de S.Paulo, 18/5/1996). Iniciava-se a talvez mais grave crise no relacionamento entre a indústria editorial e o Estado. Mas não foi a primeira. Nessas ocasiões, a mídia tem desempenhado um papel de atiçador da crise, muitas vezes fomentando tensões e conflitos.

Denúncias na mídia Em abril de 1994, o jornal Folha de S.Paulo desencadeou uma de suas várias séries de denúncias sobre a qualidade do livro didático. Segundo os artigos, o MEC, por intermédio de uma “comissão de 23 professores universitários de todo o país”, havia concluído que “os livros destinados a alunos de 1º grau apresentam ‘distorções e erros crassos’ de informação” (Folha de S.Paulo, 21/4/1994, p. 3-1) e anunciou que as editoras deveriam até julho “consertar os erros e distorções dos livros didáticos adquiridos pelo Governo Federal”, sob pena de descredenciamento (Folha de S.Paulo, 22/4/1994, p. 3-1). Tais “distorções e erros crassos” eram de várias ordens. Em primeiro lugar, havia erros conceituais: por exemplo, livros de matemática para 1º grau que não fazem “distinção entre número (entidade abstrata) e numeral (símbolo)”, ou de ciências que, após caracterizar os insetos como seres de seis patas, mencionam

62 “outros insetos” com oito patas (Folha de S.Paulo, 21/4/1994, p. 3-1). “Idiotização da criança”; “exercícios mecânicos de repetição e cópia”, sem “atividades lúdicas, desafios”; inadequação dos títulos (por exemplo, uma obra denominada Meio Ambiente, Vida e Saúde induziria a idéia de “ambiente independente dos seres vivos”); e privilégio conferido à ficção, “o que pode transformar a leitura e o aprendizado em uma tarefa descolada da realidade da criança” – essas são, segundo o jornal, outras tantas críticas apresentadas pela comissão (Folha de S.Paulo, 21/4/1994, p. 3-1). As “críticas mais duras” eram endereçadas aos livros de Estudos Sociais, que “não levam os alunos à compreensão da realidade e ainda impedem que eles ‘se situem no espaço e no tempo da realidade social brasileira, indispensáveis para a formação da cidadania’” (Folha de S.Paulo, 23/4/1994, p. 3-4). Assim, os livros de estudos sociais (história e geografia) são, em sua maioria, atemporais. Nunca usam fotografias que poderiam contextualizar as atividades propostas em um determinado local e época. [Folha de S.Paulo, 21/4/1994, p. 3-1.]

Pior que tudo, como denuncia o título de um artigo, “livros didáticos estimulam o preconceito”: A família branca é passada ao aluno como padrão e o negro, freqüentemente, aparece em posições socialmente inferiores. As fotos e gravuras enfatizam, na maioria das vezes, o branco. Em alguns livros, repetem-se antigos preconceitos, já superados há muito tempo por pesquisas históricas. Fala-se, por exemplo, que o índio, por ser indolente e acostumado à liberdade, não se adaptou à escravidão. Daí a preferência do colonizador pelo negro. [Folha de S.Paulo, 23/4/1994, p. 3-4.]

A denúncia de estímulo ao racismo também seria objeto de comentário na página dois da Folha de S.Paulo, reservada aos editoriais: Está certíssimo o Ministério da Educação em impedir a distribuição de livros incompatíveis com os direitos humanos. É um absurdo que o contribuinte pague por livros escolares que, em vez de promoverem a liberdade e o respeito aos grupos vulneráveis, estimulam preconceitos. O que, na prática, tem-se revertido em violência cotidiana. [Como ensinar preconceitos, Folha de S.Paulo, 23/4/1994, p. 1-2.]

63 O interessante nessa participação da mídia no debate é que ela endossa sem reservas a opinião de certo tipo de “autoridade” – no caso

“comissão de 23

professores universitários de todo o país” – não levando em conta nem o teor das críticas nem tampouco a existência de outros tipos de autoridade envolvidos, por exemplo, o autor. As críticas, que o jornal nivela em seus furor de denúncia, são de várias ordens. Há, de um lado, constatação de erros realmente graves, como os do livro que fala em insetos com oito patas. Há, no entanto, críticas que derivam muito mais de um preciosismo cientificista que faz abstração da situação de ensino, como a que exige para o primeiro grau a diferenciação entre número e numeral. Outras críticas, por fim, são semelhantes às já examinadas na Introdução deste trabalho: “erros” descobertos porque era preciso descobri-los. (Quem já participou de avaliações desse tipo sabe que é muito mais fácil fazer parecer sobre livros com erros – e criticá-los – do que sobre aqueles irrepreensíveis.) Lugares-comuns, como “tarefa descolada da realidade da criança”, impedir que os alunos “se situem no espaço e no tempo da realidade social brasileira”, aplicam-se a quase tudo, e é preciso muita má vontade para enxergar no título Meio Ambiente, Vida e Saúde a ação deletéria de uma ideologia que concebe o “ambiente independente dos seres vivos”... A imprensa, porém, não se preocupa com essas questões de bom senso. “Livros que os nossos filhos lêem têm erro!” é muito mais eficaz do ponto de vista jornalístico do que “Comissão de professores universitários avalia segundo critérios questionáveis”. À pergunta “o que ganha o jornal com essa denúncia?” pode-se responder simplesmente: “uma boa matéria”.1 Mas também não é impossível que outros interesses estejam mesclados nesse tipo de notícia. Gilberto Dimenstein e Daniela Pinheiro assinaram a série sobre erros nos livros didáticos. O autor do editorial denunciando que os livros didáticos induzem preconceitos é também Gilberto Dimenstein. Ele é autor de livros (não-didáticos) sobre cidadania e direitos humanos, que a Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), ligada à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, comprou para compor os Centros de Informação e Criação, mencionados no capítulo anterior.

1

De modo geral, como mostra Darnton em “Jornalismo: toda notícia que couber, a gente publica” (1990, pp. 70-97), as decisões sobre a “pauta” ou o estilo do texto passam por razões muito mais prosaicas do que as imaginadas por teóricos-críticos da indústria cultural, que deduzem o caráter de uma reportagem, um artigo, de um editorial etc. com base na análise da configuração geral do

64 Em 10/7/1994, a Folha de S.Paulo publicou um artigo que, à primeira vista, parecia ser um prolongamento da série sobre erros em livros didáticos. Novamente, apontavam-se os erros e dados desatualizados, dessa vez em relação a livros de Geografia, mais particularmente os atlas. Pouco mais de um mês depois, o mesmo jornal, mediante uma intensa campanha publicitária, passaria a encartar, em suas edições dominicais, fascículos que compõem a versão brasileira do Atlas de The New York Times – elevando a vendagem do jornal a níveis inéditos.2

A lista negra A “crise de 1996” foi mais conturbada e prolongada. Na imprensa, ela se iniciou em meados de maio de 1996 com a notícia de que uma comissão de 50 especialistas formada pelo MEC para examinar os livros didáticos enviados pelas editoras havia concluído seus trabalhos, iniciados em janeiro.3 Por essa avaliação, seriam eliminados do catálogo a ser enviado aos professores os livros que expressassem “preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” ou que contivessem “erros graves relativos ao conteúdo da área” ou que induzissem a eles (MEC/SEF/CENPEC 1996, p. 12). Além disso seriam levados em conta “aspectos gráficos-editoriais” e o “livro do professor ou orientação do professor” acompanhando o livro-texto (pp. 12-13). Segundo apurou a imprensa, vários dos livros examinados conteriam erros graves e, por isso, seriam excluídos da lista de compras da FAE. Para o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, essa era uma questão bastante simples: “Afinal, o governo tem o direito de comprar o livro que quiser” (Folha de S.Paulo, 21/5/1996). Mas a reação foi imediata. José Bantim Duarte, diretor da editora Ática e também da Câmara Brasileira do Livro (CBL), declarou:

capitalismo. Em todo caso, é bem possível que esses motivos prosaicos sejam já sintomas dessa configuração geral – hipótese que tem a grande vantagem de não ser passível de comprovação. 2.

O primeiro fascículo do Atlas Geográfico Mundial foi lançado em 14/8/1994, quando a edição da Folha de S.Paulo, segundo o jornal, alcançou a tiragem inédita (no Brasil) de 1,1 milhões de exemplares. Com o sucesso do empreendimento, o jornal relançaria o primeiro fascículo em 19/8/1994. Cf. Folha de S.Paulo, 15/8/1994, pp. 1-1, 1-3 (coluna Painel do Leitor), 1-5 e 1-6. 3 Salvo indicações em contrário, o relato desse episódio baseia-se na série de artigos (quase diários) da Folha de S.Paulo e de O Estado de S.Paulo de maio/junho de 1996. A revista Veja, na sua edição de 3/7/1996, noticiou tardiamente o episódio.

65 Fomos convocados às pressas para uma reunião na sexta passada [17/5/1996] em que a FAE divulgaria quais livros tinham problemas. Só que o comunicado foi feito de forma oral e não pudemos nem tomar nota. [Folha de S.Paulo, 21/5/1996.]

A Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale) reclamou que o diálogo que vinha mantendo com a FAE fora abruptamente interrompida.4 A tensão agravou-se na medida em que o MEC passou a divulgar apenas informações parciais. Sabia-se que dos 1.159 livros inscritos, 75 foram imediatamente descartados por não se caracterizarem como didáticos. Dos 1.084 restantes, 183 títulos foram excluídos depois de avaliados com base em critérios relativos ao produto (atualização de conteúdo em sistema monetário ou mapas; abrangência curricular) e 81 (de 1ª a 4ª séries) foram suprimidos depois de uma avaliação de conteúdo. No caso dos títulos de 1ª e 4ª séries, a avaliação de conteúdo permitiu ao MEC introduzir um novo elemento de apoio ao professor no momento da escolha das publicações: a referência por meio de estrelas, de zero a três, sendo a maior graduação a mais recomendada. [O Estado de S.Paulo, 21/5/1996.]

Quais livros? O MEC só fornecia alguns exemplos de livros vetados, o que irritou os editores desses livros, expostos à execração pública, enquanto outros podiam continuar no anonimato. Segundo a imprensa, editoras tentavam manobras para retirar suas obras do processo de avaliação, evitando assim a eventual inclusão desses livros na “lista negra”. O MEC, que alimentava a imprensa com informações a conta-gotas, anunciou, em 23/5/1996, que não iria mais divulgar a lista dos livros condenados, alegando que o objetivo da avaliação não era de expor os erros. Isso convinha às editoras, menos àquelas cujos livros tinham sido divulgados para servir de exemplo dos erros encontrados. Esse foi o caso do IBEP (Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas), tradicional fornecedor da FAE. Seu presidente, Jorge Yunes, que também é proprietário da editora Nacional, afirmou: Isso para mim virou uma questão moral. Eles não me enviaram laudo algum com os problemas dos livros. Trataram-me como se eu fosse um aventureiro no mercado. Nosso trabalho é sério. O que queremos é que eles divulguem toda a lista.

4

A respeito, ver Capítulo 7.

66 [Folha de S.Paulo, 24/5/1996.]

Quem também passou a exigir a divulgação da lista foi a Associação Intermunicipal de Pais e Alunos de São Paulo (Aipa), que lembrou que em São Paulo (e também em Minas Gerais) as compras dos livros didáticos são feitas diretamente pela Secretaria da Educação e que por isso haveria risco de serem adquiridas obras condenadas. O mesmo argumento foi apresentado pela Secretaria do Estado da Educação de São Paulo, cujo titular, Rose Neubauer, chegou a caracterizar a atitude do MEC como “irresponsabilidade”. Representantes das escolas particulares também defenderam o direito de conhecer a lista dos livros considerados errados para evitar que estes fossem adotados em seus cursos. Havia também clima de apreensão em colégios particulares que mantém no seu corpo docente autores de livros didáticos, fazendo disso seu cartão de visita. Para agravar a situação, uma das coordenadoras da equipe de avaliação dos livros didáticos foi acusada de favorecer a editora Formato, que havia publicado uma obra de sua autoria. Jorge Yunes (IBEP/Nacional) chegou a contratar dois professores universitários para avaliar uma obra da Formato, para concluir ela continha mais de 30 erros. Oficialmente, porém, todos começaram a exigir divulgação da lista. Wander Soares, da editora Saraiva e diretor a Associação Brasileira dos Editores de Livros (Abrelivros), que reúne 22 editoras de livros didáticos, afirmou à imprensa: A lista é uma coisa pública e tem de ser divulgada. [...] Nem nós, que somos editores, tivemos acesso à lista. Para corrigir os erros que o MEC alega ter encontrado, precisamos saber o nome dos livros reprovados e ter em mãos o laudo com as falhas. [Folha de S.Paulo, 30/5/1996.]

Lília Alves, do Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL), argumentou na mesma linha: O mal já está feito. Os livros reprovados ficaram fora da lista do MEC sem que tivéssemos direito de corrigir nada. É melhor divulgar logo o nome das obras não-selecionadas. [Folha de S.Paulo, 30/5/1996.]

E da mesma forma, Altair Brasil, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL):

67 Não basta excluir os livros do catálogo da FAE. Se o MEC acha que os erros são assim tão graves, deveria divulgar o nome dos livros reprovados para impedir que fossem usados pelas escolas particulares. [Folha de S.Paulo, 30/5/1996.]

As principais entidades representantes dos empresários do livro haviam assim uniformizado seus discursos. Por parte dos autores, a situação era mais delicada, pois a responsabilidade final sobre os erros recaía sobre eles. Reunidos em assembléia convocada pela sua entidade, a Abrale, os autores aprovaram uma carta ao Ministro da Educação, em que critica o modo como foi comunicado o resultado da avaliação dos livros didáticos: Foram momentos razoavelmente constrangedores para todos os presentes, com um clima que evocou as pressões que regimes autoritários exercem sobre as pessoas de opinião livre ou as ficções em que um personagem sofre um processo, ignorando quem o processa e quais os motivos. [...] Foi negada a autores e editores uma cópia dos pareceres e – incrível! – até mesmo que estes fizessem cópias manuscritas das críticas, o que certamente avaliza a lembrança dos processos no estilo de Kafka, em que a acusação é secreta. [Abrale. Melhoria da qualidade do livro didático. Considerações sobre o estágio atual do processo de avaliação. Documento da Abrale encaminhado à FAE/SEF/MEC em 29 de maio de 1966.]

Luiz Imenes, autor de livros de Matemática e então presidente da Abrale, esclareceu que o problema não era a divulgação da lista, mas todo o processo: Por princípio, somos favoráveis à divulgação da lista. Mas essa avaliação foi feita às pressas, e pode haver erros. O MEC deve divulgar a lista, mas antes precisa discutir com autores e editoras. [Folha de S.Paulo, 30/5/1996.]

A Aipa e a Associação de Pais e Alunos do Estado de São Paulo (Apaesp) entraram com recurso judicial para que a lista fosse divulgada. Em 15/6/1996, a Aipa conseguiu liminar, o que obrigaria o MEC a divulgar a lista em cinco dias. O MEC, que já havia antes anunciado que iria divulgar a lista e depois adiou a data, marcou para 21/6/1997 a divulgação – que acabaria acontecendo em 24/6. A lista divide os 263 livros rejeitados em várias categorias: “títulos excluídos de 1a a 4a série [...] por conterem erros conceituais ou informações que induzam a erros graves, relativos ao conteúdo da área e/ou preconceitos”; “livro consumível”,

68 “conversão inadequada para livro não-consumível” (livros originalmente consumíveis nos quais a editora apenas preencheu as lacunas, em vez de executar nova diagramação); “livro com diagramação inadequada”; “não se trata de livro didático”; “livro regional” (atendendo a um público ou a um currículo sem abrangência nacional); “mais de um exemplar por título” (livros que são obrigatoriamente complementados por caderno de atividades, o que inviabiliza a compra de unidades); “livro com mapas e/ou informações desatualizados”; “livro multidisciplinar” (várias disciplinas em um volume); “livro multisseriado” (várias séries em um volume); “obra destinada ao 2o grau”; “obra inacabada” (livros apresentados em “boneca” ou projeto de edição); “livro com especificidade religiosa” (professando expressamente um credo religioso específico); “livro destinado a alfabetização de adultos”; “não apresentação do livro-texto” (mas apenas o manual do professor); “apresentação do xerox do livro original”; “livro paradidático” (e não didático); e “livro sem abrangência curricular”, isto é, sem contemplar o conteúdo mínimo exigido para a respectiva série (Folha de S.Paulo, 25/6/1996). Como se observa, nem todos os livros contêm propriamente “erros”. Estes somam 80 livros aos quais se podem acrescentar os 18 com “mapas e/ou informações desatualizados”, totalizando 98 livros “errados” (37% do total dos rejeitados). Os demais foram recusados por inadequações em relação aos critérios do PNLD, muitas delas óbvias, o que revela certa dose de má-fé das editoras, que tentaram ludibriar a FAE com expedientes até mesmo simplórios, como a entrega de livros em fotocópia ou obras sem acabamento. José Bantin Duarte, da Ática e CBL, contra-atacou questionando a qualidade da própria avaliação: A princípio, observamos não haver um padrão na análise; uns apresentam profundidade e outros são superficiais. [...] Não acredito que a comissão seja infalível. [O Estado de S.Paulo, 24/6/1996.]

Nesse aspecto, o diretor da Ática retomava a crítica que Luiz Imenes, da Abrale, já havia formulado em relação à comissão de avaliação: Os professores universitários são maioria. O número de professores, secundaristas e de 1o grau, deveria ser bem maior. [Folha de S.Paulo, 30/5/1996.]

69 Mas de acordo com Ernesta Zamboni, da Faculdade de Educação da Unicamp, ao menos na área de Geografia e de História, que ela coordenou, a equipe era formada de professores da área tanto da rede estadual como das universidades. E acrescentou: “Em caso de divergência entre os membros, as obras foram submetidas a novo processo de avaliação” (O Estado de S.Paulo, 25/6/1996). No decorrer de todo esse episódio, à imprensa não faltou sensação. A demora do MEC na divulgação da lista foi tachada de “corajosa covardia” – “a forma mais abjeta de coragem” – por Josias de Souza, articulista da Folha de S.Paulo (28/5/1996). Dos livros condenados, garimparam-se os “erros” mais bizarros: ilustração num livro de Ciências sugere que a urina saia pelo ânus; livro de Matemática calcula que 2/2 seja igual a oito, 3/3 = 12 e 4/4 = 12; outro, de Estudos Sociais explica que a Lua é fonte de “luz artificial”, o que significa que é a luz “criada pelo homem”; há afirmações como o “estômago e os pulmões são exemplos de músculos do corpo humano”. Holofotes recaíram sobre a coleção “Caminho Suave”, também condenada. A Veja chegou a informar que 20% das escolas particulares (de onde? – a revista não diz...) utilizam a “tradicional cartilha Caminho Suave, vetada pelo MEC por má formação dos exercícios”. Branca Alves de Lima, autora da coleção vetada, explicaria, no entanto, que a tradicionalíssima cartilha não foi sequer objeto de avaliação. O que foram vetadas foram os livros de 1a a 4a séries que formam a coleção cujo nome é idêntico ao da cartilha, todos publicados pela editora também denominada Caminho Suave (Folha de S.Paulo, 25/6/1996).

Fenômeno de mercado Segundo certos diagnósticos, todo esse processo de avaliação dos livros didáticos pelo MEC acabou por provocar alterações no perfil do mercado editorial brasileiro: Editoras pequenas, que em 95 venderam à FAE menos de 25 mil livros, aumentaram em até 40 vezes o volume de negócios com o governo. Em 95, a Formato vendeu à FAE 24,5 mil livros. Para este ano, a estimativa é de 1,8 milhão. A Módulo, que em 95 ocupava o 26o lugar na lista das editoras que mais venderam livros à FAE, pulou para o 12o.

70 [Folha de S.Paulo, 24/9/1996.]5

Essa avaliação, no entanto, é controvertida. No próprio artigo em que ela é exposta, há uma declaração de José Antônio Carletti, então presidente da FAE, que apresenta outros aspectos da questão: “Para ele, o motivo das mudanças no ranking é que em 95 foram comprados livros de matemática e português e, neste ano, de ciências e estudos sociais” (Folha de S.Paulo, 24/9/1996). Em todo caso, a fatia do mercado representada pelas compras da FAE não é tão importante, de acordo com os dados da Abrelivros, publicados pela Folha de S.Paulo: Dos 180 milhões de exemplares que as editoras de livros didáticos imprimem anualmente, 110 milhões são comprados pelo MEC para ser distribuídos nas escolas públicas. Os outros 70 milhões são divididos entre vendas em livrarias (20 milhões) e distribuição a professores (50 milhões), para que eles escolham as obras que adotarão. Segundo Wander Soares, vice presidente da Abrelivros [...], um livro de primário é vendido para o MEC por um preço médio de R$ 3. A mesma obra, em uma livraria, custa R$ 15. “A vantagem de vender para o governo é que, como a compra é grande, o livro fica popular. E o pagamento é imediato”, afirmou Soares. [Folha de S.Paulo, 24/5/1996.]

Por sinal, a maioria dos entrevistados também relativizaram a importância comercial das compras da FAE. Para eles, o boom do setor dos livros didáticos é antes um fenômeno do mercado. O gerente editorial João Guizzo, que ingressou na Ática em 1975, assim rememora o crescimento da editora de que ele foi um dos artífices: As mudanças se deram no sentido de crescimento visando atender mais amplamente o mercado. Ou seja, a Ática entrou no mercado com certos produtos e foi aí que ela nasceu, se desenvolveu graças ao acerto de uns lançamentos básicos, lançamentos inovadores, lançamentos que caíram assim em cheio no mercado, porque eles atenderam às aspirações, necessidades dos professores na época. Isso na década de 60, década de 70. Esses lançamentos continuaram, lançamentos de grande sucesso, com os quais a empresa acumulou um capital inicial para aplicar em outros projetos. E a editora sempre reinvestiu basicamente toda receita na área, na área do livro, área editorial, na própria Ática ou em gráfica. Mas realmente cresceu muito porque em cima desses produtos iniciais ela aproveitou para investir e atender de maneira sempre mais abrangente, mais completa, todas as áreas. Então, se inicialmente ela 5

Lecionare nº 4 (out. 96) e Informativo Abrale, de jan. 1997 (ano 1, nº 2) também contêm artigos com teor semelhante.

71 tinha uma coleção para atender a área de Geografia, por exemplo, hoje ela tem três coleções; isso também na área de História, na área de Ciências, na área de Matemática, todas as áreas. Em todas as áreas ela ampliou os lançamentos para atender ao mercado de maneira mais completa e diversificada – hoje a Ática tem livro didático da pré-escola à universidade. Isso ela fez também na literatura infantil, se desenvolveu muito também na área de paradidático – uma área que praticamente foi ela que inovou, porque ela se impôs com algumas coleções muito diferentes, muito inovadoras. E o paradidático, hoje a empresa atende também a todas as áreas, com diversas linhas muito diversificadas, muito variadas.

A editora Isabel Simões, também da Ática, guarda a mesma memória do processo: Isso foi acontecendo aos poucos; de dez anos para cá com muito mais intensidade. Eu acho que há um grande trabalho das editoras de colocarem muitos livros no mercado, mercado editorial se tornou muito competitivo, muito cheio de títulos. Então, há uma própria dinâmica do mercado. Há um número de títulos cada vez maior, uma concorrência cada vez mais acirrada.

O papel do Estado como o principal comprador só é lembrado se a pergunta a respeito se fizer explícita, algo como “os programas do governo de aquisição de livros didáticos não tem nada a ver com o crescimento do setor?”. Mesmo assim, o Estado aparece apenas como mais um componente do mercado: Eu acho que sim, o mercado cresceu com isso [com os programas de governo], quer dizer, o número de livros que o mercado pode absorver me parece que aumentou. E a competitividade também, eu acho. Outro dia a editora de Português falou: “Olha, gente, uma coisa que a gente precisa ter na cabeça: o livro didático para boa parte das pessoas é o único livro que a pessoa tem, que ela lê na vida”. O livro didático é o único livro a que os pobres têm acesso, via programas de governo. Quer dizer, o fato de o livro didático ter essa participação monstruosa é também porque os outros livros não têm participação nenhuma. Lê-se muito pouco, tem-se muito pouco dinheiro para comprar livros. Há uma enorme massa, uma população inteira alienada do mercado de livros, afastada porque não tem grana para mercado de livros. Agora, ela tem acesso precário, insuficiente, mas pelo menos a um livro, o livro didático de Português, a cartilha, o livro de Matemática.

“O livro didático é um elemento de mercado” – diz com todas as letras Gilberto Cotrim, autor de livros didáticos de História e presidente da Abrale (gestão 1996/1998). Ele vai além e explica que esse mercado expandiu-se exatamente na ausência do Estado:

72 Há evidentemente uma expansão da demanda pelo ensino. Houve um certo abandono flagrante das autoridades educacionais em investimentos na área do ensino, na qualidade do ensino. E este abandono como que foi suprido pelas editoras, que percebendo esse desnível, trataram de preencher isso, cuidando mais da qualidade para evitar a crítica, atendendo ao aluno, atendendo ao professor. Livro didático dá dinheiro? Eu não sei qual é a importância do livro didático em termos de lucratividade, comparado com outros setores da atividade editorial. O que eu sei é que há uma concorrência, não é? Não existe um único livro de História, que é minha área. Existem vários livros de História, inclusive de tendências ideológicas bem diversas, permitindo ao professor justamente a possibilidade de escolher aquilo que é mais compatível com a autoria do curso que ele quer dar. Todos procuram caprichar, cada um fazer a sua parte melhor para conquistar o maior número de leitores, de professores.

Francisco Moura, autor de livros didáticos de Português, também aponta para a ausência do Estado, pelo menos em relação aos professores: Eu acho que há n fatores. Ao mesmo tempo que há o boom do livro didático, há muita crítica ao livro didático, há gente que é contra, mas o fato é que ele está aí. Eu acho que são vários fatores. O primeiro, que a gente não pode negar, é que o professor brasileiro precisa do livro didático. A grande maioria dos professores não tem condição de preparar o material por uma questão de baixa remuneração, excesso de aula..., aquelas histórias famosas. Então, o professor precisa desse material – e é óbvio que as editoras perceberam que esse era um grande filão; então investiram, investiram maciçamente. E muitos materiais de qualidade duvidosa, simplesmente preenchendo essa lacuna. Mas o que se alega muitas vezes é que o livro didático é... – isso é o que me incomoda –, que o livro didático é a causa do baixo nível educacional. E o livro didático eu colocaria como conseqüência, não como causa. Isso é conseqüência de um sistema educacional com uma série de falhas: não se investe na formação do professor, no salário do professor e uma série de coisas. Então, isso tudo fez com que o livro didático fosse o grande..., o único material usado. Então, ele não pode ser o bode expiatório de jeito nenhum, como ele já foi.6

O boom do livro didático também é relacionado com a massificação do ensino, na opinião de Lizânias de Souza Lima, editor da FTD:

6

Também perguntado se a compra dos livros didáticos pelo governo não teria contribuído para o boom do setor, Francisco Moura, aí sim, reconheceu: Sem dúvida que é fundamental, porque eu acho que a guinada do livro [didático] se deu na década de 70, quando o governo começou a comprar. Mas, por outro lado, muita gente que não tinha acesso ao livro didático passou a ter. Então, eu acho que não dá para ver só o lado negativo da questão. Eu acho que, sem dúvida, a compra pelo Estado alterou radicalmente a questão numérica, porque só com as escolas particulares ou com a compra pelo aluno não se chegaria a esses números de jeito nenhum.

73 Eu acho que o boom foi exatamente com a massificação do ensino. Eu vou dar um exemplo: na minha cidade havia um grupo escolar. Hoje deve haver uns vinte. Eu conto muito essa história: quando eu tinha mais ou menos 13, 14 anos, uma moça que estudava fora voltou para cidade. Era um espanto geral. Era comentário para todo lado, porque ela tinha feito científico. Isso era uma coisa estrondosa. O ensino era realmente uma coisa de poucas pessoas. Então, o mercado de livro didático cresceu assustadoramente. E como não houve, vamos dizer, uma política do livro didático, a coisa ficou anárquica, quer dizer, ficou por conta do mercado. As editoras foram lançando livro, por isso essa quantidade de livro didático. Por quê? Porque as regras são todas ditadas pelo mercado, não tem nenhuma norma, não foi criada, ninguém criou. Não existe essa proliferação em outros países, porque a origem, talvez, tenha sido outra. Então, basicamente é isso: foi um crescimento da demanda por livros, porque o número de alunos... é só pegar no IBGE e ver a estatística. Por isso que o grande problema hoje não é mais de vagas nas escolas de nível de 1o grau. É problema da qualidade, da evasão, salários baixos para o professor, faltam recursos. Porque quando a escola pública atendia da classe média para cima, as escolas eram bem..., eram bonitas. Quando ela atingiu o povão, as escolas ficaram parecendo barraco, os professores parecendo mendigo, os salários ficam desse tamanho. Mas o mercado de livro didático continua, porque mesmo aqueles que não podem comprar, o governo faz grandes compras de didático. É muito grande, o governo compra muito livro!

Aqui, a ausência do Estado assume um caráter de classe: na medida em que o ensino atinge o “povão”, todo o sistema de ensino é abandonado ou sucateado pelo Estado, que, para remediar a situação, acaba sendo obrigado a comprar grandes quantidades de livros didáticos.

Bom ou mau negócio? Afinal, vale a pena vender para o Estado? Jaime Pinsky, editor da Contexto, é bastante categórico: O Estado é um comprador extremamente importante hoje em dia, um comprador fundamental em qualquer editora. É conversa fiada isso que eles dizem que não têm interesse em vender para o governo.7

7

A mesma posição foi assumida quando Pinsky era professor universitário e diretor da Editora da Unicamp: As editoras comerciais têm um interesse muito grande na venda de livros para esses programas [como o PLIDEF] e se empenham de todas as formas para serem agraciados com as verbas públicas que não são nada desprezíveis. É fora de dúvida que várias delas cresceram muito não apesar do poder público, mas exatamente por causa dele.

74 Lizânias de Souza Lima (FTD) apresenta uma contabilidade mais complexa: Se você for editar só para vender para o governo, é capaz de dar prejuízo, porque é assim: o governo paga no mínimo, no mínimo, dez vezes menos! Um livro que custa 15, ele vai pagar 1,50. Claro que ele compra tudo de uma vez..., mas basicamente é isso. Então, [um livro] só voltado para o governo seria impossível. Agora, se você já tem o livro, já fez, já editou, o que ele tinha de dar despesa... Então, para o governo vai ser basicamente o papel. Em grande quantidade então vale a pena; do contrário, não valeria. E se editar um livro só... Você nunca sabe quando o governo vai comprar ou não. Então é uma coisa incerta e mal sabida. Agora, o mercado direto, não! Às vezes, você até torce para não haver compra do governo, porque há muita escola que, se não receber do governo, compra. E recebendo do governo, você não vende. Você vai vender só nas [escolas] particulares. No interior há muita escola em que o Estado tenta manter o nível, porque atende à classe média. Então, o aluno é mais qualificado, mais bem-nutrido, o pai cobra mais. Essas escolas compram livros, consomem. Mas o Estado distribui: você vende para o Estado, perde a venda direta.

José Ruy Giovanni, autor de livros de Matemática e primeiro presidente da Abrale (gestão 1992/1994), propõe um outro cálculo, quando perguntado se as compras pela FAE não contribuiu para o boom dos livros didáticos: Não há dúvida nenhuma! Não há dúvida nenhuma! O problema todo é o seguinte: é que dentro de um ponto de vista comercial, há a impressão de que dá prejuízo. Mas você não pode ver apenas a parte comercial, você tem que ver também a parte social. Então, hoje, a FAE paga, na realidade, talvez um décimo, não chega a um décimo, um quinto do preço de mercado. Então, a princípio, você vendendo um livro a dez é melhor do que você vender um livro a dois. Isso em um livro, mas a partir do instante em que você vende cinco, seis, dez, quinze, vinte milhões de livros, isso se torna comercialmente também bom. Além do que você está contribuindo para a melhoria do nível do ensino. Quer dizer, o aluno carente, aquele aluno que jamais teria um livro na mão... talvez sejam os únicos livros que vão passar pela mão dele, não é? Então, hoje, esse boom editorial que houve..., porque a FAE não compra só livro didático. Ela está fazendo as bibliotecas das escolas; compra também livros de literatura etc. Então, eu acho que a FAE, hoje, representa na realidade dentro do mercado editorial, ela representa, talvez, 60%, 70%, da venda de uma editora. Muitas vezes, a turma diz: “Ah, o livro para a FAE é besteira porque dá prejuízo...”, porque o raciocínio é: “eu vou vender muito barato para a FAE”. Oh, meu Deus do céu, eu acho que a gente tem que contribuir para

Desta forma não será impertinência alguma afirmar que o estado subsidiou editoras comerciais, comprando grande número de seus livros. É claro que aí está o segredo de parte das editoras. [Pinsky 1985, p. 25.]

75 melhorar! Às vezes, é preferível você cobrar um preço menor, ter um lucro menor, desde que a parte social seja atingida.

Do ponto de vista do autor, o cálculo a ser feito é de outra ordem: é o que afirmam Gilberto Cotrim, presidente da Abrale, e Luiz Imenes, também presidente dessa entidade na gestão imediatamente anterior. Cotrim não se arrisca a fazer cálculos de lucratividade, pois não dispõe de plano de custos – “eu sou um autor”, diz. “Mas”, complementa: eu sei que vendi, os meus livros venderam nesse último PNLD-96. E o preço de cada livro foi de 2,45 [reais] por livro. Não me parece isso um preço muito alto em se tratando de um material de 180 páginas, que tem todo um trabalho lá atrás: 2,45! No livro didático, a porcentagem média do direito autoral cai um pouco mais em relação a escritor de literatura. Quando você vende para a FAE, cai mais ainda, mesmo porque a lucratividade da editora cai brutalmente. Então, os editores negociam com os autores também uma redução significativa, proporcional, para ele poder vender. Os editores, às vezes, dizem: “Olha, estamos ganhando pela escala”. De repente, vendem dois milhões de livros. Então, ainda que a margem seja 0,5, já tendo um número fechado para compra, ele multiplica o valor..., vai ganhar um pouco, vai ganhar 200 mil..., 200 mil reais em dois milhões de livros; então, dá para vender. Eles multiplicam e vendem. Talvez tenha um outro interesse também. Como um professor da escola pública muitas vezes dá aula na escola particular, é uma forma de tornar o livro conhecido desse professor. Aí, esse professor, se gostar do livro, adota na escola particular, e o pai do aluno, que reclama tanto do preço da mensalidade escolar, também paga um pouco mais pelo livro. É mais ou menos..., talvez seja essa a lógica que justifica essas vendas ao governo.

Autor de livros de Matemática, Imenes calcula quase instantaneamente: Vamos responder isso fazendo uma conta, está bom? Essa coleção de 1a a 4a série, que é a única que nós temos no programa da FAE. Neste ano aqui, ela vendeu, aproximadamente... Foi algo em torno de 600 mil livros, 600 mil livros vezes o preço de cada livro..., vamos jogar para três reais. Então, 1 milhão e 800. Agora, isso a gente multiplica por 2%: nós estamos naquele caso que cai para metade. Vezes 2%, 36.000,00 reais, divido por três [autores]. Então, a minha receita foi de 12.000,00 reais, vendendo 600 mil livros, certo? Bom, isso é bom ou é ruim? Se isso é comparado com sala de professor, é uma fortuna. Agora, se é comparado com o salário de um especialista, porque para fazer isso que eu estou fazendo... Se isso é comparado com o que ganha um especialista, digamos, com uma capacitação e uma formação equivalente à minha, mestrado e tal, em outras áreas como Engenharia etc., e considerando que isso aqui é trabalho de anos... Isso é irrisório!

76 Aquém do Estado e do mercado Não há, nesta tese, nenhuma preocupação em percorrer as variáveis desse cálculo para determinar se os livros didáticos são lucrativos ou não. Se as editoras continuam fornecendo obras para a FAE é porque, para além das considerações sociais de Giovanni, elas devem auferir alguma vantagem, direta ou indireta, com isso. Também não deixam de ser verdade as afirmações de que as editoras não dependem das compras efetuadas pela FAE. Como se viu no capítulo anterior, os dados da CBL/Fundação João Pinheiro para 1995 distingue o item “Didáticos” do “FAE”. A Tabela 3.1 compara o desempenho do livro didático (exemplares vendidos e faturamento) nesses dois itens: Tabela 3.1 Produção editorial no Brasil Exemplares vendidos e faturamento (“Didáticos”, “FAE” e “Obras gerais”) 1995 Faturamento (US$) Didáticos* FAE Obras Gerais

597.773.130 461.664.524 301.367.879

Exemplares vendidos (unidades) 101.595.208 130.406.470 61.358.728

Fonte: Câmara Brasileira do Livro/Fundação João Pinheiro. * Didáticos: inclui pré-escolar, 1o e 2o graus e paradidáticos.

Se esses números forem factíveis, a venda nas livrarias representou, ao menos em 1995, receita ligeiramente superior à que as editoras obtiveram via FAE, embora o número dos exemplares do item “FAE” seja cerca de 30% superior ao do “Didáticos”. É possível afirmar, então, que o setor editorial de didáticos independe das compras efetuadas pelo Estado? Os dados não permitem afirmá-lo de modo tão categórico. É preciso levar em conta que o item “Didáticos” incluem livros de 2o grau e paradidáticos, que não foram objeto de compra pela FAE até 1995/1996. Também seria especular em vão se o setor editorial dos livros didáticos teria chegado a esse patamar sem a colaboração do Estado. Wilma Silveira Rosa de Moura, que coordena na Ática a editoria de livros de 1a a 4a séries do 1o grau, revela toda a complexidade dessas questões: Olha, a minha área é onde o Estado está mais presente: a FAE compra para 1a a 4a [séries]; se sobra ela atinge de 5a a 8a. A minha produção menos significativa é a produção que é feita para a FAE, porque a FAE

77 tem algumas exigências, por exemplo, ela só compra livros reutilizáveis, os livros não-consumíveis. Então, eu faço os livros, a grande maioria deles, pensando na escola particular, que é o cliente. E faço versões não-consumíveis, que são filhotes desses livros consumíveis, para o Estado. Já foi diferente. Mas o governo passou a..., houve uma época que comprou pouco. E as editoras, então, ficaram todas com o poder de fogo sobre as escolas particulares – elas segurando o mercado. Quando se faz avaliação de venda, se faz avaliação de vendas na escola particular. Quando o Estado compra, ele compra muito. Na minha área compra aos muitos milhões, mas com o preço tão vil... Claro, é evidente que as editoras ganham. A gente chora um pouco: “Não dá para vender, mas se não vender você fica fora do mercado; é importante vender só para ficar no mercado...”. Mas, claro, não é bem assim. Mas nós não fazemos livros pensando na escola estadual. Nós fazemos livros pensando nos dois mercados. Então, é assim: alguns livros que eu já tenho, pelo perfil deles, eles têm uma destinação possível para escola pública – então eu faço as duas versões: faço a versão nãoconsumível e a versão consumível.

Em suma, as editoras não podem depender do Estado; para sobreviver devem tomar iniciativas, consolidar nichos de mercado próprios. O que se pode afirmar, então, é que o Estado não é tão soberano na história do livro didático. Além disso, o pouco que se permite vislumbrar dos obscuros bastidores da negociação entre o MEC e as editoras faz entrever uma possível pressão destas sobre aquele, que acabaria por atender à exigência de divulgar a “lista negra”. Nesse sentido, não se poderia inverter a fórmula da Lei Geral da História do livro didático no Brasil e imaginar a possibilidade de as ações do Estado, em relação a esse setor, serem resultado das pressões das empresas editoriais? Mas o que mais importa aqui é examinar uma outra historicidade, constituída por fazeres das pessoas que efetivamente produzem livros didáticos e pelo modo como essas pessoas organizam o significado desses fazeres. Então torna-se possível verificar que é somente no plano das abstrações que se permite uma afirmação como essa, de Freitag et alii (1993): A primeira constatação implica o fato de que não houve até recentemente, fora do Estado, outras instituições no Brasil capazes de influenciar, formular e redirecionar o processo decisório sobre o livro didático. [...] Nem mesmo as editoras, que à luz de seu poderio econômico teriam condições de influenciar o conteúdo e a distribuição dos livros didáticos, têm usado a sua força para participar com propostas próprias das decisões políticas sobre o livro didático. [pp. 2122.]

78 Propõe-se, pois, abandonar esse jogo metafísico de “quem-determina-quem” e examinar como se produzem efetivamente os livros didáticos (e paradidáticos).

Capítulo 4 Como se faz livro, inclusive didático e paradidático

Aqui não cabe retomar a história de livro nem tampouco participar de querelas internas à disciplina. Vale a pena, porém, pontuar alguns de seus momentos que vão constituindo, historicamente, os procedimentos da produção do livro e seus significados.

Descontinuidades Livro impresso não é mero prolongamento, uma evolução, do manuscrito. Ou, inversamente, manuscrito não é simplesmente a forma do livro na época da sua nãoreprodutividade técnica. Ele é, antes, um objeto que pertence à esfera das ciências ocultas. Explica Martins(2) (1996): O livro, a palavra escrita, eram o mistério, o elemento carregado de poderes maléficos para os não-iniciados; cumpria manuseá-los com os conhecimentos exorcismatórios indispensáveis. [...] A biblioteca foi assim, desde os seus primeiros dias até aos fins da Idade Média, o que o seu nome indica etimologicamente, isto é, um depósito de livros, e mais o lugar onde se esconde o livro do que o lugar de onde se procura fazê-lo circular ou perpetuá-lo. [p. 71.]

O leitor de O nome da rosa, de Umberto Eco, certamente sabe o que significa livro que deve ser escondido.

80 O livro impresso, ao contrário, é para vir a público e, eventualmente, até mesmo ser lido. Ele é, sobretudo, para ser comprado: é mercadoria. Afirmam Febvre e Martin (1992): Desde a origem, a imprensa apareceu como uma indústria regida pelas mesma leis que as outras indústrias e o livro como uma mercadoria que os homens fabricavam antes de tudo para ganhar a vida – mesmo quando, com os Aldo ou os Estienne, eram humanistas e eruditos ao mesmo tempo. Era-lhes necessário, pois, primeiramente achar capitais para poderem trabalhar e imprimir livros suscetíveis de satisfazer sua clientela, e isso a preços capazes de sustentar a concorrência. Pois o mercado do livro sempre foi semelhante a todos os outros mercados. Problemas de preço e de financiamento colocavam-se aos industriais que fabricavam o livro, isto é, os tipógrafos, e aos comerciantes que o vendiam, ou seja, os livreiros e os editores. [p. 174.]

Livro não é apenas um objeto da cultura, do mesmo modo que, como lembra Darnton (1996), o Iluminismo é também negócio.1 Em relação aos manuscritos, há unanimidade na literatura quanto à instabilidade do texto, que variava de uma cópia para outra. Isso decorria tanto da ignorância do copista a respeito do assunto sobre o qual trabalhava – por exemplo, trechos em grego deixados em branco –, quanto da sua tentativa de interpretar passagens que lhe parecessem obscuras ou incompletas (Martins[2] 1996, pp. 98-99; McMurtrie 1982, pp. 97-98). É somente com o advento do impresso que o texto do livro iria adquirir fixidez, mesmo porque a produção de vários exemplares de uma mesma matriz tornaria praticamente inviável (mas não impossível) versões diferentes. Mais do que isso: por mais que os detratores da indústria cultural tentem demonstrar que é próprio dela, dessa mercenária da cultura, o menosprezo para com a sagrada escritura do autor, o inverso é mais próxima da verdade. Nunca se buscou tão obstinadamente o Texto Definitivo como nesses tempos de indústria cultural plenamente consolidado. Algumas vezes, a obsessão pela exata fixação do texto é implacável até mesmo com o próprio autor: como mostra Nestrovski (1994), descobriu-se que na belíssima passagem “soiled fish of the sea” (peixe sujo do mar), em White Jacket, Melville apenas havia escrito um prosaico “coiled fish of the sea” 1.

A bem da exatidão, convém lembrar que a partir do século XIII desenvolveu-se uma outra modalidade de manuscritos, em estreita associação com a expansão das universidades e de sua clientela. Para atender ao novo público leitor que assim emergia, surgiram artesãos copistas que produziam manuscritos para ser vendidos aos universitários. Aqui, o livro, embora manuscrito, é já

81 (peixe espiralado do mar). Produzem-se as chamadas “edições críticas”, tentando dissecar tudo o que o autor quis dizer – ou que não quis dizer, pois se arrependeu do que chegou a dizer: a tão citada frase de Marx “Conhecemos apenas uma ciência, a ciência da História”, nos manuscritos originais de A ideologia alemã, encontra-se riscada... O ideal do restabelecimento pleno do Texto chega ao paroxismo com a edição genética, que se propõe a [...] reconstituir a escritura, procurando sempre o reconhecimento dos modos de proceder do autor. Segundo Almuth Grésillon, “entende-se pelo termo ‘edição genética’ uma edição que apresenta exaustivamente e na ordem cronológica de sua aparição os testemunhos de uma gênese”. Assim, o objetivo de uma edição genética não reside em mostrar um texto propriamente dito, mas em demonstrar um processo, ou, como prefere Almuth Grésillon, em elucidar uma gênese. [Lima 1994, pp. 195-196.]2

O livro impresso, no entanto, é herdeiro do manuscrito em um aspecto: o material. Como indica Martins(2) (1996), a “Idade Média consagra a substituição do rolo pelo codex, da mesma forma por que substitui o papiro pelo pergaminho e, já na transição para a Renascença, o pergaminho pelo papel” (p. 100). O codex (ou códice), esclarece McMurtrie (1982), foi uma invenção Igreja para que os textos cristãos se distinguissem dos de cultura pagã, então associadas ao volumen, isto é, ao rolo. No códice (codex), [...] as folhas de pergaminho, em vez de serem coladas pelas extremidades e depois enroladas, dobravam-se para formar duas, e as coleções ou grupos destas folhas dobradas ligavam-se pelos vincos. [p. 95.]

O códice define, portanto, o espaço que se denominaria página, e o papel será seu suporte predominante. A introdução do papel foi crucial: De que teria servido ter de imprimir pranchas, mesmo composições constituídas por caracteres móveis, se apenas existissem, para receber a impressão, peles que com dificuldades recebiam a tinta e das quais algumas somente – as mais raras e as mais caras, as peles de velino, mercadoria. (Febvre e Martin 1992, pp. 26 ss.; Araújo 1986, pp. 43-44). Torna-se então legítimo falar em transição do manuscrito para o livro, contanto que se caracterize bem a natureza desse manuscrito. 2. A obra citada é Almuth Grésillon. Eléments de critique génetique: lire les manuscrits moderns. Paris, PUF, 1994. Segundo Lima, edição crítica não se confunde com edição genética: aquela [...] tem como perspectiva a obra; a outra, o processo. O editor crítico apresenta um texto considerado “definitivo” em sua inteireza; o crítico genético organiza fragmentos, transcreve hesitações e incompletudes. [1994, p. 196.]

82 isto é, de bezerro natimorto – são suficientemente lisas e suficientemente macias para poder passar com facilidade sob uma prensa? A invenção da imprensa teria sido inoperante se um novo suporte do pensamento, o papel, vindo da China através da Arábia, não tivesse aparecido na Europa havia dois séculos para tornar-se de emprego geral e corrente no final do século XIV. [Febvre e Martin 1992, p. 44.]3

A tipografia, essa técnica de imprimir livros (em papel), não é prolongamento aperfeiçoado da xilografia. Febvre e Martin (1992) insistem na radical diferença entre o procedimento de xilografia, em que uma “página” inteira é gravada (em madeira) para receber tinta e imprimir papel, e o de tipografia, em que a página vai sendo composta pela justaposição de pedaços de metal, em que se gravam letras. Uma não sucede a outra, mas coexistem paralelamente no século XV; além disso, gravar em madeira e em metal constituem técnicas bem distintas: Aliás, os documentos provam bem que os primeiros livros impressos não saíram das oficinas xilográficas adaptadas à nova tarefa: eles foram feitos por especialistas do metal. Gutenberg, em quem se vê tradicionalmente e talvez com toda razão o inventor da imprensa, havia sido ourives; ourives, também, esse Prokop Waldvogel de Praga que prosseguia ao mesmo tempo pesquisas análogas às do moguncês. Ourives ainda, muitos mestres impressores da primeira geração, da Basiléia sobretudo, freqüentemente inscritos na corporação dos ourives. Assim, o livro impresso não poderia ser considerado como um aperfeiçoamento do xilógrafo. Fatos característicos: o emprego da tinta espessa, da tinta de imprensa preta e nítida, parece não ter substituído nos xilógrafos a antiga tinta feita à base de negro de fumo e geralmente escura e demasiadamente fluida, senão após o aparecimento do livro impresso. Da mesma forma a prensa só substitui, na indústria xilográfica, o antigo processo de brunidor que não permitia imprimir a folha senão de um lado, após a invenção da imprensa. [pp. 74-75.]

O processo de composição, pela qual a página vai sendo montada por partes, perduraria por séculos, mesmo com a alternância das técnicas: tipos móveis, em que cada palavra, cada frase, cada parágrafo e cada página são montados letra por letra, manualmente; o monotipo e o linotipo, em que, respectivamente, letras ou linhas são fundidas à medida que vão sendo digitadas num teclado; e a fotocomposição, pela qual letras, linhas e colunas de texto são fotografadas e depois coladas (paste-up) numa base de papel (diagrama) para montar a página, que então é novamente

3.

A respeito da introdução do papel na Europa, o processo de produção de papel e a expansão desse setor, paralelamente ao crescimento da indústria de livro, cf. Febvre e Martin (1992), pp 45 ss. e Martins(2) (1996), pp. 111 ss.

83 fotografada para produzir um filme (fotolito) do qual se tira a chapa gravada. É nessa fase de fotocomposição, em que por meios fotomecânicos se produz a chapa gravada da página (ou do conjunto de páginas), que a técnica de impressão acaba se assemelhando à da gravura. É o que acontece também nos procedimentos de editoração eletrônica, em que a página inteira, muitas vezes já com inserção de ilustrações, é montada no computador e visualizada no monitor para, depois, gerar saída (output) em papel (do qual se obtém fotolito), em laserfilme (que substitui o fotolito) ou, diretamente, em fotolito (Martins[2] 1996, pp. 255 ss.; Araújo 1986, pp. 350 ss.; Burns et alii 1990, p. 10 ss.). Vale, por fim, mencionar uma invenção importante, por Aldo Manúcio (ou Aldus Manutius), que tornaria mais fácil a circulação do livro: o formato “portátil” do livro, “isto é, que se pode levar de um lado a outro, livros como são feitos até hoje, e não no formato antigo, de mesa” (Nestrovski 1995).4 Paralelamente, desenvolveramse outros elementos e partes do livro, tal qual se conhece hoje: página de rosto, numeração de páginas, disposição do texto em linha corrida etc. (Febvre e Martin 1992, pp. 117 ss.).

Tinta sobre papel O leitor atento terá percebido que até agora não se propôs nenhuma definição de livro – muito menos de livro didático e paradidático. Talvez tenha também reparado que isso não lhe acarretou nenhuma dificuldade na representação do objeto que está sendo visado. Por sinal, nenhum dos estudos consultados sobre a história do livro preocupa-se em defini-lo de antemão. Livro é um desses raros objetos em que o conceito e a representação imediata parecem coincidir. Mas talvez seja necessário agora precisar alguns tópicos, reiterando algumas questões já formuladas. Toma-se aqui por livro um objeto material, geralmente confeccionado em papel, sobre o qual aderem letras e outras figuras desenhadas a tinta, segundo uma técnica denominada impressão, cuja invenção data do século XV; esse objeto produzse segundo um processo de trabalho bem definido e aparece primordialmente como mercadoria, mesmo que as intenções de seus artífices sejam de outra ordem que não a

84 mercantil.5 Esse rude materialismo é necessário para dissipar de vez as ilusões platônicas, que, acima, já foram objeto de crítica. Livro não são meramente idéias, sentimentos, imagens, sensações, significações que o texto possa representar. Nem tampouco é o texto em abstrato. Pois esse texto, de que as pessoas normalmente vêem apenas idéias, sentimentos, imagens etc. é constituído de letras (confeccionadas com tinta sobre papel) segundo uma família de tipo (ou face de tipo ou fonte), que lhes dá homogeneidade. Uma família de tipo compreende todas as letras do alfabeto em caixa alta (maiúscula) e caixa baixa (minúscula),6 todos os numerais e todos os sinais como vírgula, ponto, aspas, hífen, travessão etc. – e isso em vários tamanhos (corpos) e estilos (redondo ou normal, itálico, negrito, sublinhado, VERSAL-VERSALETE etc.). Basicamente, há duas grandes famílias de tipo: as serifadas (isto é, com serifa, que são pequenos traços horizontais que se colocam nas extremidades das letras) e as sem-serifa.7 Quadro 4.1 Letras serifadas e sem-serifa Letras com serifa

Letras sem-serifa

(ex: Times New Roman)

(ex: Ariel)

AaBbCcDdEeFfGgHhIiJjKkLlMmNnOoPpQq

AaBbCcDdEeFfGgHhIiJjKkLlMmNnOoPpQqRr

RrSsTtUuVvWwXxYyZz 1234567890

SsTtUuVvWwXxYyZz 1234567890

Normalmente, os tipos serifados são usados para textos mais longos por causarem menos fadiga aos olhos do que os sem-serifa. Por isso, é comum o corpo do texto ser composto em letras serifadas e os títulos e as legendas, mais curtas, em letras semserifa – embora tal solução, por demais convencional, repugne aos artistas gráficos. Pesquisas sobre legibilidade, como as apontadas no Capítulo 2, procuraram consolidar cientificamente um padrão tipográfico na confecção de livro. A esse respeito, afirma um artigo transcrito em Tecnologia Educacional:

4.

A respeito da invenção de Aldo Manúcio, ver também: McMurtrie (1982), pp. 226 ss.; Martins(2) (1996), pp. 202 ss.; e Febvre e Martin (1992), p. 137. 5. O fato de nos países do chamado “socialismo real” os livros serem (ou terem sido) distribuídos gratuitamente ou a preços exíguos não abole esse caráter de mercadoria: constituem apenas casos de mercadoria com preço subsidiado. 6. Caixa alta e caixa baixa têm esses nomes porque, na tipografia propriamente dita, os tipos correspondentes a letras maiúsculas eram dispostos em caixas situadas acima das que continham as letras minúsculas.

85 Graças as [sic] pesquisas realizadas neste setor [tipográfico], hoje em dia sabe-se que os tipos entre 8 e 12 pontos de altura possibilitam uma legibilidade quase equivalente, e que, com tipos menores, a rapidez da leitura cai de 5 a 10%.8 Por outro lado, o uso de tipos muito grandes, [sic] gera uma maior lentidão e um maior cansaço. O segundo elemento a considerar é a forma do tipo. [...] [...] Estudos rigorosos permitem hoje estabelecer uma hierarquia de tipos. Assim, os “enfeitados” não são rapidamente legíveis e, por isso, seu uso deve ser muito limitado (título, sub-título ou no máximo parágrafos curtos). Os tipos gordos produzem uma impressão desagradável ao olho do leitor que, inicialmente, distingue apenas uma massa uniforme e precisa fazer um esforço maior para ler. Também deve ter seu uso racionado. Durante muitos anos o tipo itálico foi o preferido dos editores, mas pesquisas recentes demostraram que é um tipo lido menos rapidamente do que o romano (-5 palavras por minuto) e, sobretudo, dá ao leitor a impressão de uma leitura difícil. Finalmente, os textos compostos em maiúsculas são unanimemente condenados. Sua leitura é 15 a 20 % mais lenta do que a dos textos em minúsculos romanos. [Valorização do livro didático, Tecnologia Educacional, n° 28, mai./jun. 1979, p. 20].9

Numa vertente mais semiológica, Otoni (1985), comparando livros didáticos da França e do Brasil sobre o mesmo assunto (no caso, as estações do ano), afirma a importância do uso do negrito segundo um padrão bem definido. No livro brasileiro, a utilização do negrito não parece obedecer a nenhum critério racional; no francês, ao contrário, o negrito serve para realçar o conceito, quando uma palavra assume exatamente a importância de um conceito: Aqui se faz referência ao inverno e ao verão, que não estão em negrito, para explicar a desigualdade do dia e da noite. Essa desigualdade por sua vez vai explicar o inverno e o verão na outra parte e então vão aparecer em negrito. [p. 102; grifos do autor, em vez de negrito.]

A tinta sobre o papel não forma apenas as letras que compõem o texto. Otoni (1985), expondo a concepção de “texto como imagem”, distingue três elementos que constituem, no livro, a relação entre o lingüístico e o icônico:

7.

Araújo (1986), idiossincraticamente, grafa “cerifa”. Ponto é a menor unidade tipográfica, e a altura de um tipo em pontos denomina-se corpo. Assim, corpo 8, por exemplo, equivale a 8 pontos de altura. 9. A revista não indica o nome do autor, afirmando laconicamente em nota de rodapé: “Texto extraído do periódico Direct, da Agence de Cooperation Culturelle et Technique, de fevereiro de 1975” (p. 18). 8.

86   

o texto, contínuo, que constitui o elemento propriamente lingüístico; o paratexto, que sendo também elemento lingüístico não faz parte do texto (título, notas, referências bibliográficas etc.); o cotexto, formado de elementos não-lingüísticos (quadros, esquemas, figuras, fotos etc.) [p. 99.]

Medeiros et alii (1995), por sua vez, afirmam que um livro [...] é constituído de elementos externos e internos. Os elementos externos compreendem: capa, verso da capa (segunda capa), terceira capa, quarta capa, lombada e orelha; os internos são constituídos de elementos pré-textuais, textuais e pós-textuais. Os elementos internos são também conhecidos como miolo ou corpo. [...] Os elementos pré-textuais são constituídos de olho (falsa folha de rosto), verso do olho, frontispício (folha de rosto) e verso do frontispício (verso da folha de rosto), dedicatória, epígrafe, sumário (enumeração das principais divisões do livro, como partes, capítulos, itens, subitens), apresentação (optativa), prefácio, listas de ilustrações, de siglas e de abreviaturas. [...] Os elementos pós-textuais compreendem: notas, referências bibliográficas, notas explicativas, bibliografia (lista de obras recomendadas pelo autor), apêndices. São, ainda, elementos póstextuais o glossário (relação de palavras pouco conhecidas, usadas na obra; devem vir acompanhadas de definição) e os índices onomástico (de nomes) e remissivo. Finalmente, não são destituídos de interesse o colofão (indicação do impressor, endereço, local e data), o encarte (impresso fora de paginação, que às vezes é colocado solto num livro) e a errata. [pp. 17, 19 e 28-29.]

Os elementos textuais constituem propriamente o texto do livro (ou “corpo do texto”), parte de que o autor é o principal responsável. É preciso lembrar que a parte gráfica também compreende, além das ilustrações, gráficos etc., elementos como número da página, cabeçalho (texto colocado no alto página contendo, geralmente, o título do livro, o do capítulo ou o nome do autor), fios (linhas finas), tarjas (linhas grossas) etc. Quadro 4.2 Exemplo de fio e tarja

Fio: Tarja:

Pode haver texto dentro

87 Trabalhos Segundo Oliveira et alii (1984, pp. 77 ss.), a produção de um livro compreende as etapas de preparação, composição, preparação das matrizes,10 e a impressão. As duas primeiras constituem as atividades editoriais, que também monitoram as demais. De acordo com Medeiros et alii (1995), o departamento editorial de uma editora têm como atribuições:         

Selecionar novos autores. Selecionar originais. Avaliar projetos de livros e originais. Editorar. Contatar o departamento de desenhos, projetos e produção. Determinar formato do livro. Estabelecer prazos para princípio e término do livro. Negociar direitos autorais, assinar contrato de uma obra. Contatar departamento de marketing e promoção para estabelecimento de políticas a serem incrementadas. [p. 31.]

Para desenvolver tais atividades, o departamento editorial divide-se em: diretor editorial, coordenador editorial, editorador ou editor de texto (pp. 31 ss.). Medeiros et alii situam fora dessa estrutura o departamento de desenhos, projetos e produção, que executa a “arte” do produto, a revisão do texto e o encaminhamento do material para fotolito e impressão (pp. 35-36). Na realidade, há várias maneiras de descrever e denominar mesmas funções. Afirmam, por exemplo, Burns et alii (1990): Mesmo que haja apenas uma pessoa produzindo o documento, as responsabilidades envolvidas podem ser divididas conceitualmente entre os seguintes papéis:  O Editor  O Redator-Chefe  Os Autores  O Projetista  O Ilustrador e Fotógrafo  O Leitor Especialista  O Editor de Texto  O Gerente de Produção  O Revisor de Provas  O Editor de Especificações  O Compositor

10.

Aqui, Oliveira et alii (1984) mencionam o uso de celofane para preparação de matrizes (p. 78), o que é altamente improvável: como se sabe, celofane é bastante sensível à umidade, que a deixa enrugada; ora, impressão, mesmo em tecnologias eletrostáticas, implica sempre umidade da tinta. Talvez tenha havido confusão com acetato ou laserfilme.

88     

O Artista de Layout O Fotógrafo O Impressor O Encadernador O Distribuidor. [p. 24.]

As denominações e o organograma podem sofrer muitas variações, mas as atividades editoriais seguem um padrão mais ou menos constante, cujo núcleo é a editoração. Nessa fase, o texto original, uma vez aprovado, passa por uma série de tratamentos. O primeiro deles é o copidesque11 ou edição de texto, que pode consistir simplesmente na revisão ortográfica e gramatical do texto e na sua adequação às convenções editoriais da editora até uma intervenção mais drástica tanto no estilo quanto no próprio conteúdo. Esclarecem Medeiros et alii (1995): Copidescar é dar nova redação a um texto com o objetivo de publicálo. O trabalho de copidescagem implica adequação do texto às convenções e normas editoriais. Envolve uma formalização textual, correção gramatical e reescritura do texto. [p. 34, nota.]

Segundo Araújo (1986), o grau dessa intervenção a que o texto original é submetido é maior quando se tratar de “ensaio ou congêneres”: Neste caso, avulta a função do editor-de-texto, mormente ao tratar-se de obra colegiada (vários autores em uma mesma obra) ou de coleções (vários títulos sob um mesmo tema ou fio condutor), quando se torna indispensável dar unidade ao trabalho. [p. 59.]

Uma das “artes” do copidesque é saber apreender o estilo do autor e imitá-lo: O trabalho sobre o original não pode alterar muito esse componente básico do autor a que se chama ‘estilo’. Desde logo, por conseguinte, convém reconhecer os elementos intrínsecos da forma com que se apresenta o texto, vale dizer, a própria estrutura das orações, sua concatenação, seu ritmo, sua fluência, seu efeito, sua correção, seu estilo enfim. Nessa medida, a liberdade do editor, seu limite de ação, é exíguo, mas essa liberdade existe e deve ser usada. [Araújo 1986, p. 61.]

Cabe também ao copidesque negociar com o autor a extirpação do texto de certos vícios de linguagem que se arraigaram no vernáculo. Algumas editoras chegam a produzir um manual com o index dessas expressões condenadas, a começar pelo

11.

Do inglês copydesk. Copidesque designa tanto a tarefa como o seu executor.

89 indefectível “a(o) nível de” (Unesp 1994, p. 11; O Estado de S.Paulo 1990, p. 56; Folha de S.Paulo 1992, p. 53). Um requisito fundamental em copidesque é a capacidade de perceber que algo está errado no texto e saber buscar soluções: pressentir falha numa série de dados, imaginar se não haveria termo em português para certo topônimo (por exemplo, Anvers = Antuérpia) etc. Muitas vezes, copidesque também inclui corte ou acréscimo de palavras, frases ou trechos inteiros para adequar o texto às normas editoriais – e às vezes à “simples” questão de paginação: eliminar, por exemplo, duas linhas que ocupam uma página inteira. Não à toa, essa é a fase em que se geram os principais atritos e mal-entendidos entre o autor e a editora – como ficou patente no “caso Jobson-Piletti”. Em outras palavras, é no e pelo copidesque que inúmeras obras são a(du)lteradas. Não se pode, porém, menosprezar os casos em que o copidesque participa da “melhoria” do original, tornando-o aceitável aos padrões estilísticos (e até mesmo lingüísticos) vigentes. Um pequeno exemplo é ilustrativo. A coleção História: assim caminha a humanidade, da Editora do Brasil em Minas Gerais,12 com volumes para 5a, 6a, 7a e 8a séries, é uma obra coletiva: seus autores são Virgínia Trindade Valadares, Vanise Ribeiro, Sebastião Martins. Em seu “Livro do Professor” há “Considerações Gerais”, assinado por “Os autores”, em cujo texto se lê: “tenho certeza [...]”. A um copidesque não teria escapado esse caso ímpar de “singular majestático”. Do mesmo modo, ele provavelmente teria percebido o absurdo de uma legenda como esta, a respeito de pinturas rupestres: “A arte foi a primeira forma de comunicação do homem” – como se, os homens, antes de pintar, não tivessem tentado a comunicação mediante gestos e grunhidos ou, talvez, até mesmo a fala! O que se denomina normalização do texto pode ser realizado pelo copidesque, mas há editoras que contratam profissional especializado nessa tarefa, que é a de prestar atenção em aspectos do texto que quase ninguém leva em consideração: grafia de valores numéricos, por extenso ou com numerais; utilização de letras maíusculas e minúsculas; referências bibliográficas e citações; uso e grafia de siglas; confecção de tabelas e sua identificação; uso de travessão (há dois tamanhos: — e –) e hífen (-); etc.

12. Embora não se disponha de dados sobre esta editora, parece tratar-se de uma espécie de filial da Editora do Brasil, sediada em São Paulo.

90 Esse é, pois, um trabalho que não interfere em absoluto no conteúdo, mas tão somente na sua apresentação gráfica. A revisão muitas vezes é confundida com copidesque – é comum autores inexperientes contratar serviços de “revisão” imaginando estar requisitando copidesque. Ambas as modalidades de preparação do texto podem até mesmo colaborar mutuamente, mas formalmente constituem atividades bem distintas. A revisão deve prestar mais atenção à ortografia e não ao sentido do texto. Pode-se dizer que o copidesque cuida da redação, ao passo que a revisão lida com a datilografia (ou, modernamente, digitação) e a composição. O que se entende hoje por “revisão”, numa editora, é a pura e simples revisão tipográfica ou revisão de provas (a revisão do original, sua normalização ortográfica e tipográfica correm por conta do editor-detexto), tarefa aliás deveras importante, apesar de mal paga [...]. [...] Por sua própria função, constitui rematada tolice subestimar o revisor. Dele se exige algo mais que simples alfabetização [...]; na realidade, requer-se um bom conhecimento normativo da língua, extrema capacidade de concentração, perícia suficiente para distinguir as principais famílias e fontes de tipos, perfeito domínio da maior quantidade possível dos signos com os quais assinala, nas provas, aquilo que discrepa do original, além de razoável cultura geral para não cometer, ele mesmo, determinados erros (por exemplo, mandar substituir “mercedários” por “mercenários”, “românico” por “romântico” e assim por diante). Dadas as subcondições de trabalho destinadas no Brasil ao revisor, sejamos justos: ele convive com seu eterno fantasma, o erro, faz o que pode e quase sempre fá-lo bem. [Araújo 1986, p. 390.]

Não basta, portanto, ser exímio conhecedor do vernáculo; é preciso ter olhar treinado para descobrir erros. Assim, uma professora do Departamento de Literatura da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), responsável pela “revisão dos textos” dos cadernos do “Programa de Qualificação do Ensino de História no 1o Grau”, não conseguiu identificar um erro tão primário como a vírgula separando o sujeito do predicado, por exemplo, na seguinte frase: “Para os escravos, que durante muitos séculos foram forçados e acostumados a trabalhar e a obedecer, esses novos valores difundidos pelo homem branco, [sic] não serviam”.13

13.

A frase encontra-se no Caderno 6, do referido Programa, à página 22, e não é um caso isolado. A respeito do Programa de Qualificação do Ensino de História no 1o Grau, desenvolvido por uma equipe de professores da Unesp em convênio com a Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, ver Martins(1) (1996), pp. 91 ss.

91 Por causa da natureza desse ofício, há editoras que distribuem páginas soltas entre os revisores exatamente para forçá-los a não se envolverem com o sentido do texto, mas tão somente com as letras. Pela mesma razão, é conveniente que o copidesque e a revisão de um texto sejam executados por pessoas diferentes, mesmo que um determinado profissional tenha habilidade para realizar ambas as tarefas. O autor é a pessoa menos indicada para fazer tanto o copidesque como a revisão: sua leitura quase sempre consiste em rememorar o que sabe que havia escrito e quase nunca em enxergar as letras, as palavras e as frases distribuídas sobre o papel. No Brasil, é comum realizarem-se duas revisões por obra, mas Araújo (1986) considera que “três ou quatro seriam o mínimo aceitável” e que “há trabalhos que [...] exigiriam até oito ou dez revisões” (p. 390). Dependendo da complexidade gráfica de um livro, o responsável pela editoração (editor, editor assistente, editorador, redator-chefe etc.) deve trabalhar em maior ou menor sintonia com o responsável pelo projeto gráfico (chefe de arte, projetista etc.). Se o livro não possuir ilustrações e for constituído de texto corrido, esse contato pode ser quase nulo, bastando que a área responsável pelo texto indique onde começa e onde termina cada capítulo e cada seção. Se, ao contrário, o livro contiver ilustrações, gráficos, suas respectivas legendas e boxes (quadros com texto destacando um aspecto do texto principal), a editoria de texto e a de arte devem trabalhar praticamente na mesma prancheta (ou computador) confeccionando uma a uma as páginas. A diagramação e a paginação devem obedecer a padrões estabelecidos pelo projetista (ou chefe de arte, editor de arte etc.) em dois níveis: o padrão da editora (que, se bem sucedido, faz com que a apresentação do livro em si já identifique a editora), e, subordinado a esse, o da coleção ou do próprio livro. Segundo Burns et alii (1990), o [...] projetista determina como serão as páginas acabadas: tamanho do papel e orientação, margens e estrutura básica da grade.14 O projetista também especifica as faces de tipo, tamanhos e estilos a ser usados no documento, e também pode especificar tratamentos para todas as ilustrações. [p. 27.]

14.

Grade é a estrutura básica da página de uma publicação.

92 A “arte” (como são chamados tanto essa área como quem nela trabalha) deve distribuir o texto composto e as ilustrações pelas páginas de acordo com tais padrões, levando também em conta que o número de páginas não pode ser muito (ou, conforme o caso, nenhum pouco) diferente do planejado. Até meados dos anos 80, aproximadamente, esse processo era feito à mão, colando-se o texto composto (em papel fotográfico) e as ilustrações em um papel cartão (diagrama); mas com a introdução das técnicas de editoração eletrônica a composição e a paginação condensaram-se em um único processo. A inserção de elementos como fios, tarjas e numeração das páginas também pode ser feita pelo computador. Além disso, dependendo do recurso utilizado e da qualidade de arte-final desejada, é possível obter o fotolito (ou equivalente) diretamente de equipamentos conectados ao computador. O material assim produzido é enviado à fotomecânica (caso seja necessário o fotolito) e à gráfica e passa por processos de impressão, refilamento (corte) e acabamento. Empacotados, os livros são encaminhados à distribuição e à divulgação. Todas essas fases, desde a entrega dos originais pelo autor até a impressão, constituem um processo demorado. Segundo os cálculos de Medeiros et alii (1995), a [...] produção de um livro geralmente compreende: 30 a 60 dias nas mãos de consultores (avaliadores), 30 a 60 dias para editoração (processo que compreende revisão gramatical, do estilo, marcações tipológicas, divisões capitulares, digitação, confecção de sumário, índices, uniformização de legendas de quadros, tabelas, figuras, ilustrações, gráficos, normalização bibliográfica e de notas de rodapé); e 75 a 120 dias nas mãos do supervisor de produção, juntamente com sua equipe (seu trabalho compreende marcações tipológicas, escolha de corpo tipográfico, digitação, produção de provas e revisão delas). Geralmente, um livro de 320 páginas (texto corrido, composição simples) leva pelo menos 120 dias para ser composto e impresso. [...] Portanto, entre a data do recebimento do original e a publicação, trabalhando-se sem interrupção, despende-se entre 135 e 240 dias. A publicação de um livro traduzido implica maiores custos e maior dispêndio de tempo. [pp. 142-143.]

Evidentemente, há casos em que o livro é produzido em cerca de 10 dias, mas isso só ocorre com best-sellers com previsão de lançamento mundial simultâneo. Como se verá adiante, o tempo de produção de livro didático é bem maior.

93 Didáticos: peculiaridades A produção dos livros didáticos e paradidáticos não foge a esse esquema. Isso é confirmado por um texto intitulado “Você sabe como se faz um livro?”, impresso no verso de um material promocional da editora Ática – um calendário de mesa –, enviado a seus clientes no final de 1993: As pessoas em geral imaginam que uma editora simplesmente providencia a impressão de um original enviado por um autor, transformando-o em livro. Na verdade, o texto, antes da impressão, percorre um longo trajeto, que se inicia quando do recebimento de um original. [...] Aprovado o original, segue-se o processo de negociação dos direitos do autor, e a assinatura do contrato. Inicia-se aqui o trabalho de edição propriamente dito, em que o editor e sua equipe discutem com o autor (ou autores) sugerindo mudanças, acréscimos, supressões, correções. [...] Encerrada essa fase, inicia-se o processo de preparação dos originais. Eles são submetidos a um tratamento que os aperfeiçoa no que se refere à forma e ao conteúdo. Quanto à forma, procura-se padronizar o texto de acordo com as normas da editora, além de limpá-lo de incorreções gramaticais. [...] Quanto ao conteúdo, trata-se de eliminar erros conceituais e de informação, evitar incoerências e até absurdos que qualquer autor, por melhor que seja, comete. Quando se conclui o trabalho de preparação dos originais, ele é enviado ao Departamento de Arte, que se encarrega da programação visual do livro. Aí se decide, por exemplo, como será a capa, que cores terá, que tipos e tamanhos de letras, come se distribuirá o texto e as ilustrações na página, qual o formato mais adequado etc. Depois de sair do Departamento de Arte, os originais são encaminhados para a Composição. Os textos são compostos e os originais, juntamente com o material composto, enviados para o Departamento de revisão, onde se faz o cotejamento da versão original com o texto composto, para eliminar possíveis discrepâncias entre um e outro. Cabe à Revisão detectar também possíveis falhas que passaram despercebidas ao profissional que fez a preparação. O cotejamento dos originais costuma ser feito em duas ou mais instâncias, as correções pedidas voltam para a Composição, e finalmente o material composto é encaminhado ao Departamento de Arte, que monta cuidadosamente página a página, distribuindo os textos e ilustrações de acordo com o projeto gráfico – trabalho chamado de arte-final. A arte-final é encaminhada para o fotolito, que providenciará provas e filmes limpos da capa e do livro propriamente dito. Essas provas são novamente revistas e o material montado vai para a gráfica. Dos filmes, preparam-se as matrizes em chapas metálicas trabalhadas quimicamente, a partir das quais o livro é finalmente impresso.

94 Esse processo [...] não se dá sempre da forma como descrevemos aqui. [...] Muitas vezes, por exemplo, encomenda-se um original e o autor recebe um adiantamento sobre os direitos autorais que receberá quando o livro já estiver publicado. Muitíssimas obras costumam ser traduzidas de línguas estrangeiras, e nesse caso é necessário comprar os direitos de publicação das editoras estrangeiras, contratar tradutores e eventualmente revisores técnicos. [...] Essa complexidade da indústria cultural trouxe várias especializações: Editor, Consultor técnico (ou didático), Tradutor, Coordenador de edição, Assistente editorial, Editor de texto, Redator, Preparador de texto, Pesquisador iconográfico, Revisor, Editor de arte, Coordenador gráfico, Diagramador, Arte-finalista, Ilustrador, Fotógrafo, Digitador, Capista etc. [...] Esperamos que cada um, após essas informações, encare o livro com um olhar diferente.15

A editora Atual, num texto intitulado “Como se faz um livro”, de Vitória Rodrigues da Silva (editora de Ciências Humanas), incluído em uma publicação promocional, também descreve o mesmo processo, enfatizando, porém, a produção de livro didático e, no caso, uma obra em particular – História: Cotidiano e Mentalidades, em quatro volumes, de Ricardo Dreguer e Eliete Toledo: Textos didáticos são geralmente escritos em regime de co-autoria. A empreitada é pesada, longa, e por isso a troca de idéias entre os parceiros de redação ajuda na realização da tarefa. Nunca são feitas menos de duas versões de cada capítulo, mesmo quando se está elaborando apenas o projeto a ser apresentado a um editor, o que exige um esforço intelectual e até mesmo físico, além da disciplina profissional. [...] [...] A partir da entrega dos originais, tem início uma longa linha de produção, com cronograma definido e rigoroso. O editor, principal responsável pelo processo de produção do livro, faz a primeira das muitas leituras. Ele também encaminha o texto para leituras críticas, realizadas sempre por professores da área de que trata o livro, que atuam em sala de aula, vivenciando os problemas cotidianos da prática pedagógica, tanto em escolas públicas como privadas. [...] Terminadas essas leituras, discutidas as opiniões, nova reformulação dos originais é feita. O texto poderá ser modificado ainda várias vezes, incorporando os apontamentos de outros leitores e do editor. Faz-se, então a preparação de texto, realizando o trabalho de aplicação de normas lingüísticas e editoriais ao original para que ele comece a ganhar fisionomias de livro. Para a realização dessa tarefa é necessário que antes uma equipe tenha desenvolvido o projeto gráfico, no qual são definidos desde o formato do livro e tamanho das margens até os tipos

15. Trechos deste texto é idêntico à “Apresentação”, por José Bantim Duarte (diretor editorial da Ática), para a obra de Pinto (1993).

95 e tamanho de letras, vinhetas, aberturas de capítulo e a forma de apresentação das ilustrações. No caso de História: Cotidiano e Mentalidades, o projeto gráfico – que envolveu três profissionais em sua idealização e execução – previa uma mobilidade de composição bastante grande, pois as imagens poderiam ser inseridas em qualquer lugar, posto que deveriam acompanhar o texto, permitindo a leitura simultânea de ambas. Por isso, paralelamente à redação, foi feita a pesquisa iconográfica recorrendo-se a várias fontes, [...] de tal forma que a proposta dos autores pudesse se concretizar. [...] De posse do guia de imagens e do texto preparado, começa a fase de diagramação. Freqüentemente, pode-se compor todo o texto escrito, inserindo-se as imagens depois. Nessa coleção isso não ocorreu, porque as imagens tinham uma relação tão estreita com o texto, que foi preciso fazer a composição simultaneamente [...]. Terminada essa etapa, o chefe de arte faz uma avaliação da diagramação, aprovando-a ou solicitando alterações. A capa é produzida paralelamente. [...] Tem-se o esboço do livro. Agora é a hora da revisão, que faz uma checagem extremamente minuciosa para identificar todos os eventuais erros. O texto é conferido ponto a ponto em diversas etapas de produção. Os autores participam desse trabalho, pois sempre há riscos de escapar algum erro. A diagramação incorpora as anotações, chamadas de emendas, realizadas por revisores, assistentes e autores. O trabalho é repetido várias vezes, até que se tenha a aprovação final. Terminado esse processo, o trabalho é então enviado para confecção de fotolitos, que sofrerão outra prova de revisão, conferindo legendas, texto, imagens, etc. Toda essa produção, desde a redação dos originais, pode levar dois, três, quatro anos. Em alguns casos dura ainda mais tempo. E, por sua complexidade, nunca envolve menos do que vinte profissionais, diretamente ligados à confecção do livro, como se pode conferir na ficha técnica da obra. Chega a fase de impressão [...]. [...] O livro está pronto. A etapa que se inicia é a da divulgação e distribuição. Outro batalhão de profissionais, agora do Brasil inteiro, é acionado para fazer com que os professores tomem conhecimento dos lançamentos e demais publicações da editora.

Esses dois textos publicitários, produzidos pela principal editora de livros didáticos e paradidáticos no Brasil e sua concorrente, servem para confirmar o que foi descrito a respeito do processo de produção do livro em sua fase propriamente editorial, isto é, antes de “descer para a gráfica”. Além disso, o segundo texto indica que há, na produção de livros didáticos, certa peculiaridade: ao exaltar o “esforço intelectual e até mesmo físico” dos autores de livros didáticos, geralmente escritos em co-autoria e reformulados várias vezes, a Atual também insinua que esses autores nem sempre têm experiência no ramo – e que isso não é importante. Numa entrevista, Jiro

96 Takahashi, então da editora Ática, revela alguns dos critérios para recrutamento de autores: Por exemplo, um professor que é líder no seu bairro. O divulgador da editora chega e pergunta se ele não quer escrever um livro. Ele estimula o “cara” a escrever. O divulgador procura também localizar edições regionais mimeografados. Tem professor, por exemplo, que está descontente com os livros em geral e resolve fazer seu próprio material e mimeografar para seus alunos. O divulgador então bate papo com o professor e pergunta se pode levar aquele material para a editora. Cada editora, das grandes, tem de 50 a 80 divulgadores correndo o Brasil inteiro, permanentemente. O divulgador tem dois tipos de prêmio, um pela quantidade de originais, mesmo que nem todos sejam aproveitadas e outro por original aprovado... então eles correm atrás para não cair nas mãos de outras editoras. [Apud Oliveira et alii 1984, p. 75.]

Em outras palavras, o que se exige do autor do livro didático não é exatamente a qualidade de ter boa redação; há toda uma linha de montagem editorial que elimina (ou ao menos reduz) as eventuais deficiências. É o que também Medeiros et alii (1995), deixa entrever: Para tranqüilidade dos autores de livros didáticos, as grandes editoras dispõem de um departamento de editoração (copidescagem) que presta auxílio aos que são iniciantes, ou aos que pedem colaboração. [p. 43.]

À medida que reduz a margem de autonomia do autor em relação a seu texto, aumenta, inversamente, a do editor. Após mencionar as dificuldades do editor diante de “textos ditos literários, em que a liberdade do autor em fraturar o bom comportamento da gramática é praticamente ilimitada”, Araújo (1986) conclui: Tais problemas não devem ocorrer com textos didático-científicos, onde a informação constitui o elemento preponderante. Neste caso, o escrito pode e deve sofrer as alterações necessárias a fim de evitar-lhe asperezas, dubiedades, erros ou simplesmente imperfeições estilísticas menores. Semelhante revisão, portanto, tem de efetivar-se sob o velho enunciado de Boileau: “o que se concebe bem se enuncia claramente, / e as palavras para dizê-lo chegam facilmente” (L’art poétique, I). Nessas circunstâncias, a faixa torna-se ampla, e vai desde a recusa de um original, por sua total obscuridade (o que, infelizmente, não é tão raro como se desejaria), à sua padronização literária, caso este em que o enunciado de Boileu será a única bússola do editor-de-texto. [pp. 6161.]

Ao autor cabe seguir outras recomendações:

97 Um livro-texto tem exigências específicas. Deve ser elaborado com o objetivo de servir de material didático, procurando facilitar a aprendizagem e subsidiar o magistério. Exige, portanto, que o programa estabelecido pela Secretaria da Educação ou algum órgão do Ministério da Educação e Cultura seja cumprido à risca, ou que o programa de uma faculdade relevante seja levado em conta. Um livro incompleto tem sérios problemas de adoção e acaba como encalhe. Refletir sobre a realidade da educação no país é tarefa da qual não podem eximir-se autor e editor. A exigência do mercado nos últimos tempos tem sido pela verificação da aprendizagem logo após cada capítulo. Os exercícios escolares variam desde a revisão vocabular, questões sobre o capítulo, estudo de casos, até uma pesquisa extraclasse. Essa atividade deve ser elaborada ao término de cada capítulo, desaconselhando-se fazê-la ao fim da redação do texto. Isto evitará esquecimento de uma questão importante que se deveria fazer para a aprendizagem de pontos relevantes. A parte dos exercícios é tão importante quanto a da teoria ou texto propriamente dito. Muitos professores avaliam um material escolar pela quantidade e qualidade dos exercícios que o autor apresenta. Se possível, os exercícios devem ser testados antes de se mandar imprimilos, e devem ser de real valor para o ensino. Daí a necessidade de prepará-los com todo o cuidado, apoiando-se sempre no texto e tendo presente a capacidade do educando. [...] Em caso de livro didático, o editor poderá requisitar um manual do professor. Esse trabalho é desenvolvido paralelamente à redação do original. Fazê-lo depois é correr o risco de elaborar um texto distante daquilo que se escreveu. Enquanto se redigem os exercícios ou atividades estudantis, faz-se o quadro de respostas, o gabarito propriamente dito. Se o tipo de questões propostas exige redação de algumas linhas, elas devem ser escritas enquanto o autor está às voltas com a teoria. [...] Há outros esclarecimentos que são oportunos: um título pode ser constituído por: (a) um volume de texto com exercícios (recomendável) e um manual do professor (total: dois volumes); (b) um livro de texto, um de exercícios (desaconselhável) e um manual do professor (total: três volumes). Alguns autores sugerem a colocação do gabarito de respostas no final do livro, mas esse é um procedimento antididático. No caso de um livro de matemática ou de áreas afins, pode-se colocar uma chave de respostas, mas jamais a solução do problema. [pp. 43, 44-45 e 51.]

Pesquisas psicopedagógicas também identificaram alguns aspectos para os quais a edição de livros didáticos devem prestar atenção, a começar pela legibilidade. De acordo com Pfromm Netto et alii (1974), a legibilidade refere-se, em primeiro lugar, à qualidade da visão obtida pela relação adequada entre letra e papel (p. 37). A legibilidade também deve supor a “inteligibilidade do texto”, sobre o que “algumas generalizações podem ser feitas”:

98 a)

b)

c)

d)

apenas quatro elementos estilísticos podem ser relacionados à dificuldade para a leitura e são distintos entre si: quantidade de palavras diferentes, estrutura do período, densidade das idéias e interesse humano; o critério que mais tem sido usado é da quantidade de palavras, que implica na [sic] diversidade de palavras empregadas e na dificuldade de cada uma; há uma relação significativa entre a estrutura do período e a dificuldade para a compreensão – períodos longos, com orações subordinadas e muitas conjunções, são menos inteligíveis; o interesse humano do texto pode ser medido pelo número de pronomes pessoais e nomes de pessoas. Orações escritas em forma pessoal ou em forma de diálogo com o leitor ajudam a aumentar o interesse humano. [p. 40.]

Legibilidade também se refere à organização do texto, para o que se deve levar em conta um “fenômeno estudado pela Psicologia” – “os efeitos da posição serial na aprendizagem”: Esse fenômeno consiste na dificuldade de aprendizagem e de retenção dos trechos centrais de um capítulo ou de uma lição quando comparados com a facilidade com que se aprende e se retém os trechos iniciais e finais desse mesmo capítulo ou trecho – ainda que a complexidade do conteúdo se mantenha constante, ao longo do texto. Essa dificuldade depende apenas da posição central. [...] Para atenuar esse fator negativo intrínseco à organização de um texto, os autores dos livros podem apresentar os pontos mais difíceis no início ou final dos parágrafos, lições ou capítulos, reduzindo, assim os efeitos da posição serial. [p. 41.]

Por isso, muitos livros apresentam “sínteses, conclusões e sumários [...] ao fim ou no início de cada capítulo ou unidade” (p. 38). Muitas pesquisas também indicam que [...] a incorporação de perguntas de vários tipos dentro (e não apenas no final) das lições e capítulos aumentam significativamente a compreensão e a aprendizagem. [p. 41.]

Do mesmo modo, as ilustrações – “fotografias, desenhos, gráficos, diagramas” – devem ser examinadas não apenas na sua função informativa, mas também como “um dos recursos mais poderosos para aumentar o interesse, a compreensão, a aprendizagem e a retenção por parte dos alunos” (p. 42). Não se deve, porém, deixarse iludir com a profusão de cores em um livro didático: as pesquisas mostram que o elemento que mais desperta interesse numa representação colorida não é exatamente a cor, mas o realismo, o sentido de profundidade e perspectiva presente nos seres e objetos ilustrados, assim como a funcionalidade das mesmas. (p. 42) Todas essas

99 considerações resumem-se em tópicos que constituem a “sabedoria gráfica” para confecção do livro didático: 1. 2. 3. 4.

5. 6. 7. 8. 9.

O planejamento e o formato são determinados pelo assunto tratado. O livro deve ser programado, em termos gráficos, de forma a facilitar a leitura e compreensão. A melhor política a seguir no planejamento gráfico é a simplicidade. Não há vantagem em se programar graficamente cada página do livro. Deve haver uma certa continuidade e ritmo natural no uso dos caracteres e espaços tipográficos. A forma deve obedecer a sua função. Por isso, quem planeja o livro deve procurar compreender o assunto tratado. Os tipos ornamentais não devem ser usados genericamente, mas apenas em lugares certos. Um livro muito bem planejado e executado não deve esconder um texto medíocre. Apenas a legibilidade não garante o livro bem planejado e executado. O planejamento de um livro deve ser sinônimo de arranjo harmonioso de papel, encadernação, ilustração, caracteres e espaços tipográficos e... preço. [p. 36.]

Também Molina (1987) sistematiza uma série de pesquisas sobre a relação entre texto e aprendizagem. Assim, nos Capítulos 2 e 3, examina a eficácia de atividades sugeridas pelo texto (em particular, em livros que adotam o procedimento da instrução programada); a diferença entre identificação (ou discriminação) e compreensão; a estrutura do conteúdo de livro didático (que segundo o “modelo de Meyer”, estaria subdividida em estrutura de nível superior, as macroproposições e as microproposições); a relação entre organização (semântica e sintática) do texto e retenção e compreensão do conteúdo; a relação entre estilo do texto (narrativo, expositivo ou descritivo) e a retenção; e a adequação dos textos (tanto em seu aspecto de legibilidade quanto no de inteligibilidade) a seu público-alvo, estudante e professor (pp. 31 ss.). Da exposição dessas pesquisas resulta uma série de recomendações: Com base no que foi visto [...], parece razoável concluir que é possível elaborar textos didáticos mais adequados, desde que sejam levados em consideração os resultados até agora realizados a respeito. [...] Melhorar um texto, aumentando as possibilidades de aprendizagem a partir de sua leitura, deveria ser, portanto, preocupação dos redatores e editores de textos didáticos, de tal forma que se aumentasse a confiança do professor na escolha de livros ou textos avulsos a serem utilizados em aula. [p. 91.]

100 Além disso, Molina propõe uma série de “estratégias auxiliares do texto” – pré-testes, sumários (ou resumos do conteúdo), organizadores prévios e questões adjuntas (pp. 92 ss.) – sobre as quais há várias pesquisas, cujos resultados poderiam ser levados em conta quando da confecção de livros didáticos.

Definições Pode-se enfim sugerir uma tentativa de definição de livro didático, complementando as já existentes. Oliveira et alii (1984), por exemplo, propõem: Para facilitar a discussão, assumimos a definição de Richaudeau [...], ligeiramente modificada, segundo o qual “o livro didático será entendido como um material impresso, estruturado, destinado ou adequado a ser utilizado num processo de aprendizagem ou formação.” [p. 11.]

Segundo Moreira Leite (1980), o [...] livro didático é a tentativa de condensar e simplificar num espaço mínimo e portátil o que se teria necessidade de conhecer e utilizar na atividade escolar. [p. 9.]

Takahashi (1980), após ressaltar o duplo aspecto do livro didático como agente cultural e mercadoria (p. 21), observa: [...] o livro didático é um instrumento auxiliar do professor e do aluno no processo de aprendizagem, veiculando o conteúdo da disciplina, de acordo com uma determinada metodologia. [p. 23.]

Em suma, o livro didático deve ser produzido em adequação a parâmetros que se imagina constitutivos de um instrumento auxiliar do processo de ensino e aprendizagem. Isso implica uma série de critérios já apontadas: conteúdo adequado ao currículo, legibilidade e inteligibilidade apropriados ao público-alvo; subdivisão da obra em partes, como texto propriamente dito, boxes, resumos, glossário, bibliografia, atividades e exercícios etc., segundo uma estrutura de organização adequada à aprendizagem; e, sobretudo, subordinação do estilo do texto e da arte gráfica a esse objetivo de servir de instrumento auxiliar de ensino/aprendizagem. O grande problema, ao menos no Brasil, refere-se à definição daquele elemento de que tudo o mais depende: o público-alvo. Diz Takahashi (1980):

101 Dentro de toda essa variabilidade de fatores, constatamos, como uma característica peculiar e constante do livro didático no Brasil, o fato de ele ser dirigido ao aluno e escolhido pelo professor. A consciência dessa dupla destinação está sendo tão importante que vem determinando as principais mudanças do livro didático nesses últimos anos. Em outras palavras, do ponto de vista do mercado, o conhecimento das exigências e das expectativas dos professores passa a ser vital. São as exigências e as expectativas dos professores que vão determinar aos Autores e às Editoras a valorização deste ou daquele fator, durante todo o processo de editoração, desde a seleção dos originais até o tipo de comercialização a ser utilizado. [p. 22.]

Como se verá, essa dualidade do público-alvo acarreta incertezas e indefinições em autores e editores: como fazer livro adequado ao aluno, mas que seduza também o professor? Costuma-se, ao menos no Brasil, produzir um volume para cada série de uma disciplina e incluir, nos exemplares distribuídos aos professores, em anexo ou em separata, o chamado “Livro do Professor”. Estes podem ser uma mera coleção de respostas às questões propostas no livro-texto correspondente – uma verdadeira “cola” do professor –, mas podem também conter textos em que se explicitam a metodologia adotada, sugestões de atividades, modos de utilização da obra etc. No Brasil há também livros acompanhados de “Caderno de Atividades”, mas como a FAE não adquire essa publicação em separado, a tendência é a de incorporá-lo no próprio livrotexto. Por sinal, os livros que a FAE compra são edições adaptadas: geralmente, o papel da capa é de qualidade inferior ao utilizado na edição vendida nas livrarias e livros consumíveis têm de ser convertidos em não-consumíveis. Talvez já seja o momento de também procurar definir os chamados livros “paradidáticos”. Segundo Yasuda e Teixeira (1995), “são consideradas paradidáticas as obras produzidas para o mercado escolar sem as características funcionais e de composição do manual didático” (p. 145). Por sinal, esses livros não precisam obedecer a todos os requisitos exigidos para os didáticos porque, do ponto de vista do sistema de ensino e de órgãos que o regulamenta, essa categoria de livro inexiste. Além disso, essa é uma invenção tipicamente brasileira: não que em outros países não existam livros que possam ser considerados “paradididáticos”, mas falta-lhes o nome. Um mito de origem explica o nascimento dessa modalidade editorial: Reza a lenda que o termo paradidático foi cunhado pelo saudoso Professor Anderson Fernandes Dias, diretor-presidente da Editora Ática, no início da década de 70. Afinal, foi a Ática que criou a

102 primeira coleção de alcance nacional destinada a apoiar, aprofundar, fazer digerir a disciplina muitas vezes aridamente exposta no livro didático. [Lecionare, ano 1, n° 1, set./1993, p. 9.]

Essa coleção foi “Para Gostar de Ler”, então dirigida pelo editor Jiro Takahashi, que, segundo Zamboni (1991) teria sido o próprio responsável pela denominação “paradidático”, “lançada numa política de ‘marketing’ com finalidade comercial” (p. 11). Jaime Pinsky, diretor da Contexto, com extenso catálogo de paradidáticos, confirma esse aspecto mercadológico: Do ponto de vista das editoras, paradidático é uma concepção comercial e não intelectual. Então, não interessa se é Machado de Assis, se é dicionário, se é não-sei-o-quê, o que interessa é o sistema de circulação. Os editores leram Marx, se não leram entenderam mesmo sem ler, quer dizer, eles sabem o que define realmente o produto é a possibilidade de circulação desse produto. Então, se esse produto circula como paradidático – ou como diriam vocês, acadêmicos, “enquanto” paradidático –, ele é um paradidático. Ele pode ser um romance, pode ser um ensaio, pode ser qualquer coisa; então, essa é a definição de paradidático nos meios editoriais. Então é muito fácil, não tem absolutamente nenhuma dificuldade nessa definição. Ora, há certos temas que o livro didático não dá conta, e você precisa, às vezes, verticalizar alguns temas. Então, esse foi o objetivo.

Mas se é na circulação que o paradidático define-se como tal, essa circulação tem de ser estimulada. Mais prosaicamente, é preciso constituir mercado para esse produto – já que o Estado não assegura sua compra –, tornando-os necessários, imprescindíveis. É preciso mostrar que os livros didáticos não bastam; é preciso fomentar a necessidade de “verticalização do tema”. Analisando o boom dos paradidáticos a partir dos meados da década de 80, afirmam Schapochnik e Hansen (1993): Atualmente parece haver um consenso sobre os limites e desventuras do uso exclusivo do livro didático como instrumento pedagógico. Todavia este quadro é bastante recente. Na sua grande maioria, os livros didáticos se apresentam com [sic] uma reiteração dos programas e sugestões curriculares dos órgãos oficiais [...]. Seu caráter conservador não é dado apenas por reproduzir a perspectiva oficial, mas sobretudo por apresentar o saber como algo pronto, acabado e definido previamente. Nesse caso, conhecimento e autoridade aparecem como pares indissociáveis que anulam qualquer possibilidade de conflito entre leituras divergentes inerentes à construção do saber, induzindo os alunos a uma postura passiva. Ancorando-se em uma cronologia estéril, reforçando nomes e temas canônicos e criando uma falsa idéia de totalidade, os livros didáticos

103 firmaram alguns pressupostos explicativos (como por exemplo causalidade, objetividade etc.) que atualmente parecem ter perdido seu vigor. [...] A crítica dos livros didáticos e a renovação do processo de ensino e aprendizagem parecem ter contribuído para a proliferação das coleções de livros paradidáticos, constituindo-se em uma nova alternativa para aqueles profissionais interessados em reavaliar seu cotidiano nas salas de aula. [p. 8]

Livros paradidáticos talvez sejam isso: livros que, sem apresentar características próprias dos didáticos (seriação, conteúdo segundo um currículo oficial ou não etc.), são adotados no processo de ensino e aprendizagem nas escolas, seja como material de consulta do professor, seja como material de pesquisa e de apoio às atividades do educando, por causa da carência existente em relação a esses materiais. Essa carência pode também ser produzida e fomentada pela crítica sistemática, justa ou não, dos livros didáticos. Quem participou de programas de qualificação de professores de 1o e 2o graus sabe da angústia que estes experimentam a cada reiteração da crítica do livro didático. Ao verem reduzidos a nada os livros que haviam adotado, eles se sentem cada vez mais ignorantes, incompetentes e inseguros. Falta de tempo e de dinheiro (e, em certos casos, do próprio hábito de leitura) tornamse a única barreira para que esses professores se transformem em consumidores contumazes de livros paradidáticos. Em suma, o que define os livros paradidáticos é o seu uso como material que complementa (ou mesmo substitui) os livros didáticos. Tal complementação (ou substituição) passa a ser considerada como desejável, na medida em que se imagina que os livros didáticos por si sejam insuficientes ou até mesmo nocivos. A carência de paradidáticos e desqualificação dos didáticos são faces da mesma moeda. A área de História e assemelhados, que lida com temas da atualidade, é particularmente propícia para fomentar essas carências. Mas os paradidáticos podem proliferar em qualquer área: como todo assunto é, em tese, verticalizável, o seu temário é inesgotável. A crítica, também freqüente, de que o livro didático traz verdades “prontas e acabadas” abre brechas para lançamento, por uma mesma editora, de paradidáticos sobre o mesmo tema, a título de “confronto de idéias”. Segundo Zamboni (1991), os paradidáticos servem também para preencher a capacidade ociosa das editoras provocada pela sazonalidade do livro didático. De

104 resto, o custo de sua produção é baixo se comparado com o dos didáticos (p. 12).16 A produção de um paradidático é relativamente simples e muitas vezes o seu texto assume caráter jornalístico. Não à toa, muitos jornalistas, acostumados a redigir laudas e laudas por dia e num estilo acordado previamente, são convocados para escrever esses livros. O custo também se reduz na medida em que os paradidáticos são concebidos como coleção, com um mesmo projeto gráfico para todos os títulos. Muitas dessas coleções constituem-se de “enlatados”, isto é, obras de origem estrangeira que são compradas com o fotolito, dispensando assim todos os trabalhos referentes à pesquisa iconográfica, diagramação e arte final, bastando substituir no espaço correspondente o texto original pelo texto traduzido. Com os enlatados, a editora economiza o tempo de produção, os direitos de utilização da iconografia (já embutidos no “pacote” adquirido à editora cedente) e grande parte da edição de arte.

16.

Zamboni (1991) explica a redução dos custos pela “mudança da concepção da mancha gráfica, na qualidade de papel e no tamanho das letras” (p.12). Convém observar que essas mudanças não podem ser generalizadas; há coleções de paradidáticos muito sofisticadas, a ponto de seus críticos reclamarem, como se viu, do uso de artifícios gráficos para seduzir o consumidor.

Capítulo 5 Livros e editoras

Para efeitos da presente pesquisa, cadastraram-se 2.117 livros didáticos e paradidáticos em circulação em 1995. Evidentemente, tal quantia é irrisória se comparada com os 13.104 títulos que a pesquisa da CBL/Fundação João Pinheiro aponta como produção daquele ano (Capítulo 2), mas esse universo permite algumas avaliações não inteiramente desprovidas de interesse. Por categoria, como mostra a Tabela 5.1, são 1.269 livros didáticos e 677 livros paradidáticos, além de 171 livros classificados como “Alfabetização” e “Preparação para alfabetização”. 1 Como era de se esperar, o maior número dos livros didáticos assim como dos paradidáticos destina-se ao público do 1° grau: são 1.091 didáticos e 420 paradidáticos, totalizando 1.155 livros, aos quais se somam 27 livros (10 didáticos e 17 paradidáticos) que podem ser utilizados tanto na pré-escola como nos primeiras séries do 1o grau.

1

Como já se afirmou na Introdução, muitos livros de literatura infantil são classificados nessas categorias e, efetivamente, são utilizados com finalidades de alfabetização. Desse grupo heterogêneo de livros, é muito difícil distinguir os didáticos dos paradidáticos.

* Pré/1: livros destinados à pré-escola e às primeiras séries do 1o grau. ** 1/2: livros destinados às últimas séries do 1o grau e às primeiras séries do 2o grau. *** Multidisciplinar: livros cujo conteúdo abrange áreas e disciplinas diferentes.

Pré Pré Pré/1* Pré/1* 1° g. 1° g. 1/2** 1/2** 2° g. 2° g. Total Total Total (did.) (par.) (did.) (par.) (did.) (par.) (did.) (par.) (did.) (par.) (did.) (par.) Biologia 0 0 0 0 0 0 0 0 18 12 18 12 30 Ciências 0 0 0 0 116 54 0 3 0 12 116 69 185 Desenho geométrico 0 0 0 0 9 0 0 0 0 0 9 0 9 Educação artística 0 3 0 13 20 26 0 0 1 1 21 43 64 Educação moral e cívica 0 0 0 0 2 0 0 0 0 0 2 0 2 Ensino religioso 2 0 0 0 2 36 5 5 0 19 9 60 69 Estudos sociais 1 0 0 0 102 37 0 1 0 0 97 38 141 Filosofia 0 0 0 0 0 0 0 0 3 0 3 0 3 Física 0 0 0 0 0 0 0 0 10 0 10 0 10 Física/Química 0 0 0 0 0 0 0 0 4 0 4 0 4 Geografia 0 0 0 0 54 5 2 12 10 10 66 26 93 História 0 0 0 0 64 134 3 44 12 60 79 238 317 Inglês 1 0 0 0 9 15 0 0 5 10 15 25 40 Matemática 8 0 7 3 216 35 0 0 20 0 251 38 289 Multidisciplinar*** 1 8 0 0 79 58 0 1 0 2 80 69 149 Orientação educacional 0 0 0 0 0 0 0 0 0 10 0 10 10 OSPB 0 0 0 0 2 0 1 0 1 0 4 0 4 Português 0 0 3 1 416 20 2 0 40 3 461 24 485 Química 0 0 0 0 0 0 0 0 17 0 17 0 17 Sociologia 0 0 0 0 0 0 0 0 1 24 1 24 25 Total 12 11 10 17 1.091 420 13 66 142 163 1262 676 1946 Preparação para alfabetização e Alfabetização 171 TOTAL 2.117

Área/disciplina

Tabela 5.1 Livros didáticos e paradidáticos por grau Brasil 1995

107 Por áreas/disciplinas, o maior número concentra-se na de Português (485 livros); vêm em seguida os livros de História (317) e de Matemática (289). História, no entanto, se somada a áreas afins (Estudos Sociais, Sociologia, Geografia, OSPB e Educação Moral e Cívica), torna-se majoritária, com 582 livros. Considerando-se apenas os didáticos, o perfil da concentração por áreas/disciplinas sofre uma alteração: Português em primeiro lugar com 461 livros e, depois, Matemática com 251; História, com apenas 79 livros, cede lugar a Ciências (116) e a Estudos Sociais (97). Em compensação, História encontra-se em primeiro lugar absoluto entre os paradidáticos

(238

livros),

bem

distante

do

segundo

lugar

(Ciências

e

Multidisciplinar, ambos com 69 livros cada). De acordo com os dados do Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL), citados por Oliveira et alii (1984), havia em 1982, “cerca de 30 editoras especializadas na área de literatura didática e paradidática, num total de 400 editoras existentes no país” (p. 83). Segundo Freitag et alii (1993), “somente dez dessas editoras controlam mais de 92% da produção consumida pelo Estado” (p. 58). Embora não haja informações precisas sobre as editoras que são fornecedoras do Estado – o Relatório da FAE relaciona-as uma única vez, em 1987 (Höfling 1993, p. 118) –, a situação de concentração da produção de livros didáticos e paradidáticos é bastante evidente e já se esboçava nas pesquisas realizadas por Leia, resumidas na Tabela 2.3. Os dados de 1995 confirmam a persistência dessa tendência, como se pode observar na Tabela 5.2. Tabela 5.2 Dez primeiras editoras em número de livros didáticos e paradidáticos Brasil – 1995 Editora

Local

Ática Moderna Scipione Editora do Brasil FTD IBEP Atual Melhoramentos Lê Arco-Íris

São Paulo São Paulo São Paulo São Paulo São Paulo São Paulo São Paulo São Paulo B. Horizonte Curitiba TOTAL

Alfabetização e Preparação para alfabetização 7 12 13 18 24 8 1 13 0 0

Didáticos

Paradidáticos

Total

206 126 171 222 70 93 21 10 16 42

90 118 89 6 84 0 75 63 38 0

303 256 273 246 182 101 97 86 54 42 1.640

108 É bem provável que na realidade outras editoras ocupem os últimos lugares da tabela acima, que, como já se alertou, foi construída com base num universo bastante limitado. Em todo caso, os primeiros colocados certamente são mesmo essas editoras, talvez com ligeiras variações de lugar. E, por outros dados já apresentados, não é improvável que a tabela espelhe o alto grau de concentração do setor editorial: de um total de cerca de três mil editoras em todo o país, segundo as estimativas da Fundação Biblioteca Nacional (1994), apenas dez editoras, a grande maioria sediada em São Paulo, responsabilizam-se por quase 80% de toda a produção de livros didáticos e paradidáticos aqui considerada.1 A verificar, portanto, o já anunciado deslocamento no mercado editorial dos livros didáticos e paradidáticos, conforme indicado no capítulo anterior.

Definição de um padrão Dessas dez editoras, a editora Ática sozinha é responsável por quase 15% do total de livros analisados.2 Criada em 1965, a Ática originou-se da Sociedade Editora do Santa Inês Ltda., setor do Curso de Madureza Santa Inês criado para imprimir as apostilas e que se tornara empresa independente (Editora Ática 1996, p. 159). Hoje a Ática está sediada num prédio próprio de cinco andares, com um auditório no térreo para cursos destinados aos professores e conta, em 1996, com cerca de 450 funcionários, dos quais uns 80 trabalham diretamente na área editorial (texto e arte). João Guizzo, já como gerente editorial da Ática, explica que a editora ampliou seu mercado, introduzindo novidades: Olha, essa inovação no livro didático foi muito na forma de apresentar os conteúdos – tanto o texto, a linguagem, quanto a visualização gráfica. Então, a Ática quebrou aquela forma tradicional do livro

1

Aqui não está em questão a tiragem de cada livro, um dos segredos que o editor brasileiro costuma guardar a sete chaves. A respeito, diz Jaime Pinsky, da Contexto: Nessa área, eu acho que tem um ranço antigo, um ranço pré-capitalista ainda. E as pessoas não dizem números, como se fosse uma coisa meio mágica: se eu digo número eu dou azar ou se eu digo número meu adversário vai saber. 2. No levantamento de dados aqui apresentado, o número de livros da Ática obviamente está subestimado. De acordo com Zamboni (1991), a Ática “lidera o mercado de publicações com seiscentos e nove títulos, a partir de 1988. Segundo José Bantin, seu diretor editorial, a empresa está atingindo a marca dos mil e oitocentos títulos em catálogo, espera chegar a dois mil e cem em 1991 e manter a atual liderança em publicações, através do investimento nos livros didáticos para jovens e em textos de leitura extra classe” (pp. 14-15). Convém lembrar, porém, que os números mencionados por Zamboni incluem também os livros que não são didáticos ou paradidáticos.

109 didático, que era um livro formal, um livro pesado, muitas vezes com capa dura, com poucas ilustrações, ilustrações assim muito na base de fotografias ou esquemas muito sérios. Aliás, poucos livros eram assim coloridos; basicamente só os livros de Geografia eram coloridos. A Ática inovou lançando livros com uma linguagem muito mais informal, mais leve, mais rápida, uma linguagem mais comunicativa, uma comunicação direta com o aluno; livros com conteúdo também mais leve, menos pesado, conteúdo mais simples, mais acessível ao aluno e, por outro lado, uma visualização gráfica muito mais alegre, mais variada, mais atraente, introduzindo até a história em quadrinhos, essa comunicação direta com o garoto, fazendo livros coloridos, livro com quatro cores praticamente em todas as áreas, em História, Geografia, Ciências, Matemática. Então isso modificou muito o perfil do livro. E o professor que ingressava no magistério na época, década de 60..., já grandes levas de professores vinham de classes menos privilegiadas, aquele professor diferente do professor antigo – que era visto assim como um elemento privilegiado socialmente, economicamente –; esse professor novo que entrava era oriundo de uma classe média média, classe média baixa; esse professor não tinha qualificação profissional formal do professor antigo. Esse professor então se adaptou muito bem a esse tipo de livro que inovou tanto. A Ática, nesse sentido, foi uma pioneira. Por outro lado, ela inovou também lançando o livro chamado consumível, o livro em que o aluno tem espaço para escrever, ele estuda e faz os exercícios no próprio livro, escreve tudo no próprio livro. E outra grande inovação foi – isso tirado muito do modelo americano de livro didático – de oferecer ao professor o exemplar dele com todas as respostas preparadas. Então, o professor passou a ter um elemento extremamente prático: o professor de Matemática não precisa perder horas em casa preparando aulas, resolvendo todas as contas, os problemas: todos os exercícios que ele vai passar, ele tem já tudo prontinho no livro. Professor adorou esse tipo de livro e adotou em massa. Foi assim um estouro, os livros, alguns livros chegavam a ter assim edições de 400, 500 mil exemplares. Isso naquela época, década de 60, 70. Espantava até os gerentes de gráfica, que ficavam na dúvida se a ordem de serviço estava certa ou não.

O pioneiro, “que daria uma virada decisiva no panorama do livro didático brasileiro”, foi Estudo dirigido de português, de Reinaldo Mathias Ferreira: Utilizando jogos, quadrinhos, ilustrações coloridas e textos elaborados especialmente para atrair o interesse do aluno, a série tornou mais dinâmico o aprendizado da língua. Essas novidades mais o “livro do professor” [...] fizeram com que a iniciativa derrubasse os títulos tradicionais do mercado e estabelecesse um novo padrão para os livros escolares. [Editora Ática 1996, p. 160.]

A justificativa para inauguração da “disneylância pedagógica” – como seria condenado esse padrão – passa, portanto, pela constatação do surgimento de um amplo mercado formado por professores considerados “despreparados”, o que não

110 deixa de implicar um certo perfil do aluno, imaginário ou real. Os paradidáticos também supõem esse público. Indagado sobre a “invenção” do paradidático pela Ática, responde João Guizzo: Existe um tipo de paradidático que foi a Ática realmente que inventou, que é o chamado paradidático de cunho ficcional, na área de História. A coleção “Cotidiano na História” foi criada na Ática..., a coleção foi trazida para a empresa por um grupo de professores de História, que sugeriu essa forma de enfoque, uma história calcada no momento histórico, mas uma história ficcional, simulando personagens da época, caracterizados de acordo com a época e a ação se passando em torno de fatos da época, fatos concretos. O primeiro título publicado nesse sentido foi O engenho colonial. Essa fórmula obteve muito sucesso e nós a utilizamos em outras áreas também, na área de Geografia, Ciências e Matemática, com muito sucesso. Esse tipo de paradidático a Ática realmente lançou, inventou, mas antes disso, a Ática já tinha lançado com grande sucesso os paradidáticos para reforçar, para apoiar a área de Português. Então a Ática lançou a linha de literatura brasileira clássica, de autores de domínio público, em edições muito simples, muito baratas: Inocência, Iracema, O Guarani, Machado de Assis e todos esses livros. E lançou o texto integral, rigorosamente cotejado com as edições originais da Biblioteca Nacional. Também o grande segredo foi que esses livros, esses textos integrais foram acompanhados de um caderno com suplementos de atividades para o aluno fazer, com uma orientação metodológica didática para o professor, além do que o professor passou a receber também esse suplemento de atividades com todas as respostas prontas. Esse fato, aliado ao preço bem acessível, tornou essa linha paradidática um grande sucesso.

O engenho colonial, também analisado por Glezer (1984) e Zamboni (1991), é assinado por Luiz Alexandre Teixeira Jr., pseudônimo sob o qual se reúnem Antonio Augusto da Costa Faria, Antonio Mendes Jr., Edgard Luiz de Barros e Ricardo Maranhão. Segundo Zamboni (1991), o livro, antes de ser lançado comercialmente, “foi usado como teste em escolas particulares e públicas de São Paulo” (p. 26). À época do lançamento, o livro – e as demais obras da coleção – destacou-se pelo formato então pouco usual (20,3 cm x 27,5 cm), grande demais para uma publicação “séria”. De certo modo, ele se assemelhava a livro infantil, impressão que era confirmada pela farta distribuição de ilustração – não há nenhuma página que não seja ilustrada, nem mesmo a do expediente –, pelo uso de corpo grande de letra (algo entre corpo 12 e 14) e pelo reduzido número de páginas (32 páginas de miolo), que é constante em toda a coleção.

111 Em tal projeto constrói-se uma imagem do público-alvo: nem criança, mas ainda longe de ser adulto, uma fase peculiar da vida, que na década de 90 iria receber o nome de “teen”. Prossegue João Guizzo: E na esteira disso, a editora passou a lançar autores novos, para atender à faixa de 5ª a 8ª série – essa é uma faixa que não tem muita condição de ler os clássicos de literatura brasileira. Esses clássicos são mais lidos no 2o grau. Para as séries finais do 1o grau, a editora criou a série “Vaga-lume”, que foi também uma série de grande sucesso e continua até hoje, porque foram contratados escritores – escritores brasileiros, alguns escritores novos – que passaram a escrever histórias simples, com enredo assim muito atraente, mas muito simples, muito acessível para o aluno dessa faixa etária, assim, aluno de 10, 11 anos.

Esse público-alvo existe efetivamente ou é pura invenção mercadológica? Os críticos da “disneylândia pedagógica” certamente acreditam na tese da invenção, mas o fato é que não há pesquisas consistentes a respeito disponíveis (a não ser as encomendadas pelas agências publicitárias), muito menos sobre efeitos dessa “disneylândia” no processo de ensino/aprendizagem.

Fórmula alternativa Uma das principais críticas em relação à coleção “O Cotidiano da História” e similares, referia-se exatamente ao recurso da narrativa ficcional. Não seria à toa que um material promocional de uma editora concorrente (Atual), divulgando uma coleção de didáticos de História (História – cotidiano e mentalidades, de Ricardo Dreguer e Eliete Toledo), anunciasse: “O cotidiano sem falsos romances e caricaturas”.3 Por sinal, o catálogo da Atual conta com coleções de paradidáticos, que seguem um padrão diferente do da Ática, mesmo porque destinado a um público diferente: estudantes de 2o grau. Como convém ao que se imagina ser um público do 2o grau, esse padrão é sóbrio. O formato é convencional, de um livro comum (em torno de 13,7 cm x 20,7 cm), o que já limita as possibilidades de diagramação e de arte. Salvo engano (e exceção) não há uso de cores nas páginas internas e a tipologia também obedece ao tradicional corpo 10 (ou 11). O caráter paradidático desses livros

3.

Em forma de revista, esse material promocional contém vários artigos, entre os quais o mencionado, assinado por Elvira de Oliveira. Professores universitários – Laura de Mello e Souza e Circe M. F. Bittencourt – também assinam artigos, como que dando chancela acadêmica à coleção, embora não façam nenhuma menção explícita a ela.

112 é conferido por exercícios ou temas de reflexão no final da obra, além de cronologia, sugestões de leitura e, em certas coleções, entrevista com o autor e suplemento de atividades. Ao que parece, esse padrão, adotado por várias editoras, foi disseminado por Jaime Pinsky (da editora Contexto), que coordenou na editora Global a coleção “História Popular”; depois, na Atual, a “Discutindo a História” em co-edição com a Editora da Unicamp; e, na Contexto, a “Repensando a História”. Ele mesmo relata (um tanto irritado com a insinuação de que essas entrevistas com o autor eram forjados pela editora): Quando eu bolei a minha coleção na Global, que foi anterior a “Repensando a História”, que foi evidentemente bem anterior ao Engenho colonial [da Ática], a idéia do paradidático era simples. Eu pensei do ponto de vista intelectual: ora, há certos temas que o livro didático não dá conta e você precisa, às vezes, verticalizar alguns temas. Então, esse foi o objetivo. Agora, a entrevista [com o autor] tinha uma função sim. A função era desmitificar – é desmitificar, não desmistificar – o autor. O autor sempre aparecia como o Autor. Nós estamos falando de quase 20 anos atrás. Então, a idéia era de que o autor era o Autor. E, às vezes, nem era Autor, era o Livro: porque ele foi escrito por um ente e se estava impresso era Verdade Absoluta. Nós estamos falando de um tempo em que imprimir não era uma coisa que qualquer pessoa podia no seu computadorzinho pessoal. Era uma coisa muito mais complicada. O nome aparecer em letra de forma era um acontecimento. Esse imaginário também é muito interessante de se perceber. Então, qual é a idéia da gente? É mostrar que o autor é um ser humano e, conseqüentemente, é um ser humano que tem cotidiano. Nós insistíamos muito nas perguntas; em todas as questões havia uma pergunta: o que você faz?, qual o seu hobby? O negócio era sério, nós fazíamos, sim, as perguntas. E o indivíduo tinha que se virar para responder. E, às vezes, perguntas provocativas. É claro que em alguns casos, a gente dava liberdade para o autor: “Olha, se você acha que tem alguma pergunta especial importante, você faz e responde”. Mas nós nos reservávamos sempre o direito de publicar ou não as respostas deles e até de editar as respostas deles, até de alterar a pergunta feita. E havia uma pessoa que fazia as perguntas, até para tentar tirar alguma coisa de humano do indivíduo. E o tal do questionário no final a gente acabou achando que não era uma coisa boa, não. Tanto que aqui na Contexto a gente faz sugestões de trabalho, uma coisa mais aberta. Aquilo lá a gente achou que ficou algo muito fechado.

Padrões de livro didático Nos livros propriamente didáticos é mais difícil estabelecer um padrão, mesmo porque cada grupo de livros correspondentes às séries dos graus de ensino tem seu

113 conceito próprio, que define desde o conteúdo até o projeto gráfico. Em todo caso, um livro didático deve obedecer a todos os requisitos já apontados no capítulo anterior. Mais ainda, a existência do livro do professor é quase obrigatória, uma vez que ela faz parte dos critérios de avaliação da FAE, como foi visto no Capítulo 3. A FAE, como se viu, também faz exigências em relação a “aspectos gráfico-editoriais”, indicando como devem ser a “capa, a folha de rosto e seu verso”, que devem conter título, autoria, série, editora, local, data, edição, dados sobre os autores e ficha catalográfica. O sumário deve permitir a rápida localização da informação. [MEC/SEF/CENPEC 1996, p. 12.]

Os critérios de avaliação chegam ao requinte de definir a cor do texto: O texto principal deve ser impresso em preto. Títulos e subtítulos devem ser apresentados numa estrutura hierarquizada evidenciada por recursos gráficos. [...] [...] É desejável que textos mais longos sejam apresentados de forma a não desencorajar a leitura, lançando-se mão de recursos de descanso visual. As ilustrações são elementos de maior importância, devendo auxiliar a compreensão e enriquecer a leitura do texto. [...] É importante que o livro recorra a diferentes linguagens visuais. Ilustração de caráter científico devem indicar a proporção dos objetos ou seres representados. Mapas devem trazer legenda dentro das convenções cartográficas, indicar orientação e escala e apresentar limites definidos. Gráficos e tabelas devem ser acompanhados de títulos, fonte e data. Todas as ilustrações devem ser acompanhadas dos respectivos créditos. [pp. 12-13.]

Antes que os profetas da heteronomia da história do livro didático retomem sua pregação, convém lembrar, em primeiro lugar, que essas exigências constituem apenas critérios de avaliação dos livros pela FAE e não imposições obrigatórias e, em segundo lugar, que esses aspectos da apresentação do livro são antes padrões já consolidados nas editoras, pelo menos nas que mantém grau desejável de profissionalismo. A exigência de créditos das ilustrações, por exemplo, é um item que só não é cumprido pelas editoras com baixo grau de profissionalismo e que têm o hábito de “piratear” a iconografia. Assim, é muito mais factível que a própria FAE tenha aprendido das editoras como formular critérios de avaliação de uma edição. Em todo caso, não deixa de ser interessante constatar que o Estado acabara por ratificar

114 um certo padrão de qualidade gráfica e editorial, a despeito daqueles que parecem preferir livros feios e cheios de erros de edição. Como esses critérios materializam-se numa edição efetiva? Os quatro livros da série ALP. Análise, linguagem e pensamento, de Maria Fernandes Cócco e Marco Antonio Hailler, editados pela FTD, e todos eles na lista de recomendação da FAE (MEC/SEF/CENPEC 1996), podem servir de exemplo.4 Em todos os quatro livros, o corpo do texto é composto com tipos grandes (corpo 14 ou maior), quase todos nãoserifados, o que lhe confere certa leveza, mas em trechos onde não haja muita concentração de letras. O restante do espaço das páginas são grafismos – tarjas que imitam papel rasgado indicando seções dos capítulos, letras de diversas fontes e tamanhos variados espalhadas na ilustração, inclusive para compor títulos – e ilustrações em traços ágeis como cartoon, quando não fotos ou reproduções. São livros bonitos, com projeto gráfico extremamente arrojado. Resta, porém, verificar como os usuários desses livros, alunos das primeiras quatro séries do 1o grau, lêem todas essas letras, espalhadas no corpo do texto e nas ilustrações, numa profusão de fontes e tamanhos. A questão não deixa de ter seu interesse numa obra como essa, que tem como subtítulo “Um trabalho de Linguagem numa proposta socioconstrutivista”. A editora de arte da coleção, Rosiane Oliveira Silva, tem a convicção de que o estilo adotado não dificulta a comunicação: “Você precisa trabalhar um pouco com grafismo, porque a criança absorve, muitas vezes, muito melhor do que a gente, que é adulto”. O caso de Matemática ao vivo (1a série do 1o grau), de Imenes, Jakubo e Lellis,5 editado pela Scipione, e recomendada pela FAE (MEC/SEF/CENPEC 1996), é bem diferente, embora também ostente como epíteto: “Para uma aprendizagem construtivista”. Não é uma obra que possa ser considerada bonita – embora esse adjetivo seja por demais subjetiva. A diagramação é bem convencional, e cada página demarca o espaço limítrofe: o assunto, ao contrário da série anterior, não transborda para a página oposta, e o olhar é dirigido de modo a deslocar-se da direita para a esquerda; a esse movimento sobrepõe a direção mais abrangente de cima para baixo.

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Os livros da série aqui analisados apresentam uma estrutura característica de livro consumível. Provavelmente os que a FAE recomenda não são esses, mas uma versão adaptada, que geralmente resume-se na supressão de espaços a serem preenchidos pelo aluno, sem alteração da paginação. Nesse caso, porém, é difícil imaginar como se fez a supressão de espaços e linhas pontilhadas que chegam quase a ocupar páginas inteiras.

115 Por sinal, o movimento desse olhar é conduzido por tarjas que dividem o espaço da página, induzindo os movimentos horizontal e vertical. O desenvolvimento dos temas se faz basicamente com o recurso de imagens – caricaturas que se poderiam classificar como “popular”. Nesse caso também se trata de indagar se tal projeto é funcional no processo de ensino/aprendizagem.

Estratégia da transparência Ao que parece, as editoras estão cada vez mais preocupadas com essas questões – ou com o interesse que o público possa ter dessas questões. Elas explicam, como se viu, o processo de produção do livro em seus materiais promocionais; também mostram, com flechas e outros recursos gráficos, as partes de que se compõe uma página do livro que publicam. O efeito dessa publicidade talvez seja a idéia de que cada página é cuidadosamente planejada e executada, de modo “profissional” e não “empírica” (ou “amadorística”). A Ática, por exemplo, procura dirigir o olhar do seu cliente, mostrando como se organizam as páginas dos livros de História e de Geografia da editora, identificando-lhes as partes que, mediante recursos de diagramação, constituem unidades de “conteúdo”. Para isso, a editora produziu um material publicitário em que mostra as páginas dos livros de suas coleções, indicando as seções que as compõem:, acompanhadas de pequenas explicações, Todos os livros desta coleção [“O Cotidiano da História”] apresentam: Conteúdo histórico transmitido por meio de texto ficcional. Ilustrações intimamente ligadas ao assunto desenvolvido. Cronologia da época. Textos de apoio nos volumes de História do Brasil e o ensaio Uma Visão da História nos volumes de História Geral, aprofundando as informações sobre o tema. Bibliografia fundamental relativa ao assunto e acessível ao leitor. Suplemento de Atividades contendo exercícios especialmente criados para desenvolver a visão crítica do aluno.

No caso da coleção “Viagem pela Geografia” (também da Ática), as partes são: Conteúdo geográfico apresentado por meio de texto ficcional, com ilustrações que destacam momentos importantes do enredo.

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Respectivamente, Luiz Márcio Imenes, José Jakubovic (Jakubo) e Marcelo Lellis.

116 Síntese geográfica que sistematiza e aprofunda o tema tratado, com fotos coloridas, atuais e informativas. Textos de apoio que complementam o assunto abordado. Suplemento de Atividades contendo exercícios que permitam a análise crítica do aluno. Sugestões didáticas para o professor.

O procedimento da Atual é idêntica: em seu material publicitário, apresenta uma dupla de páginas aberta de História –cotidiano e mentalidades; setas apontamlhe as partes e textos explicitam: Presença de mapas em todos os capítulos garantindo o aprofundamento do trabalho cartográfico com os alunos. Aberturas destacam as partes internas de cada capítulo que facilitam a compreensão do texto. Projeto gráfico inovador torna o livro visualmente agradável e interessante. Páginas cuidadosamente diagramadas, [sic] garantem equilíbrio entre texto e imagens. Subtítulos que buscam despertar o interesse pela leitura e sintetizar o conteúdo. Trabalho integrado entre imagem e texto escrito, superando a idéia de ilustração e permitindo uma maior motivação para a leitura. Em média, cada volume possui cerca de 150 imagens, ocupando sempre posições destacadas. Exercícios propostos ao final do capítulo. Boxes aproximando o aluno das principais polêmicas dos historiadores em torno da construção do conhecimento histórico.

Essas indicações não deveriam ser necessárias. O ideal de boa diagramação é o de não ser perceptível: ela existe para que o texto vá fluindo, como se o leitor estivesse diante da pureza mesma das idéias, sem o constrangimento da materialidade da página. Das duas uma (ou ambas): ou a diagramação é tão rebuscada que se requer elucidação ou, então, mercadologicamente é vantajoso tratar o público como um par, um companheiro do trabalho editorial com quem se compartilha uma solução feliz de lay-out. Seja como for, as razões comerciais da opção por essa estratégia publicitária são praticamente insondáveis. Pode ser uma simples questão de modismo, uma tendência entre os publicitários de conferir “transparência” (e, “portanto”, credibilidade) ao produto, revelando-lhe especificações técnicas, fases de sua produção e outras informações que, por sinal, não têm muita (ou nenhuma) utilidade para o consumidor. As “Casas do Professor”, que as grandes editoras de livros didáticos mantêm nas principais cidades do país, também servem para tratar o cliente como um parceiro.

117 Nessas “casas”– a nomenclatura varia conforme a editora – o professor, que busca amostras grátis dos livros que possam vir a adotar em suas aulas, recebe atendimento personalizado. Há diferenças de tratamento (e da quantidade de livros oferecidos a título de “cortesia”) entre professores da rede pública e da particular. Se o professor ocupar algum cargo hierarquicamente superior – por exemplo, o de coordenador – poderá receber, além dos livros da disciplina, alguns de áreas afins ou mesmo paradidáticos. As “casas” mantêm até mesmo cadastros indicando em qual linha didático–pedagógica cada cliente trabalha. Além disso, as “casas” têm propiciado ocasião – muitas vezes única – para reciclagem e atualização do professor. Diz um material promocional da editora Scipione: [...] vale destacar as Casas do Professor, que atuam também como filiais e têm no Auditório H, em São Paulo, criado para oferecer aos educadores um atendimento diferenciado, sua função mais apreciada e que melhor corresponde às necessidades e expectativas de quem as procura. Nesse espaço, onde são discutidos temas educacionais que promovem a reciclagem profissional e o levantamento de críticas e sugestões de toda a sua produção editorial, os encontros são sempre produtivos e possibilitam a interação e troca de informações entre os participantes. A realização de 75 encontros (entre março e novembro de 92), com a participação de 3.300 professores, comprova o sucesso dessa iniciativa [...]. Este ano [1993], já foram realizados 17 encontros (entre março e maio) com a presença de 264 professores. O projeto Autor na Casa, uma variante do Auditório H [...], é o espaço aberto nas filiais da Scipione. Na Casa do Professor, em Campinas, essa experiência já realizou 13 encontros entre março e maio, com participação de 130 professores.

Da mesma maneira, a Moderna promove os Encontros de Professores e Autores da Editora Moderna (Epaem), em que autores ministram palestras sobre assuntos de sua especialidade. Em 1993, a Atual enviou aos professores cadastrados em Campinas (Estado de São Paulo) convite para cursos gratuitos sobre temas ligados ao ensino de História, Física, Português, Geografia, Matemática e Inglês, ministrados por especialistas ou autores da própria editora. Outras editoras, como a Ática e a FTD, também investem nesse contato com os professores. Wilma Silveira Rosa de Moura, da Ática, explica como funcionam os cursos da Ática: Em geral, os cursos são montados em função de lançar os produtos. Então, a gente faz uma coleção nova, então o departamento de eventos faz mala direta, anuncia nas escolas que vai haver um curso sobre..., em

118 geral, os cursos não são sobre os livros. Os cursos são de reciclagem mesmo; são sobre assuntos escolares. Daí as pessoas se inscrevem. Sempre existe uma taxa de inscrição; as vagas são limitadas. Nesses cursos, o professor faz uma avaliação, daí vem uma parte de sugestão para outros cursos. Dependendo da recorrência dessas sugestões, montam-se outros cursos com autores nossos ou de fora. A Ática tem equipe de monitores que não são autores, mas que dão esses cursos pelo Brasil afora. Eles montaram realmente uma equipe que está funcionando. E começou bem assim mesmo, para implementar os lançamentos e acabou assim, uma prestação de serviço. E o professor conta com isso, cobra da editora isso. As editoras estão muito mais empenhadas na formação dos professores do que os órgãos..., as Secretarias. Estão fazendo muito mais. Eu não sou capaz de dizer números para você, mas no ano passado a Ática deu uma quantidade de cursos absurda. Absurda! Fizemos uma pesquisa junto com os professores no ano passado para saber..., ver a imagem da editora e o que eles esperavam; eles acham que a obrigação da editora é isso aí. E a editora assumiu como um papel dela. Agora mesmo eu estava vendo o programa do mês inteiro: 150 [eventos]... Agora, o auditório é novo..., começou a funcionar, acho que no fim do ano passado. Então, até o ano passado, eles alugavam esse hotel aí do lado. No hotel, com coffeebreak legal, professor que foi sempre maltratado, né? Gente, você perguntava para ele “o que mais gostou do curso?”. “O café. Café com bolachinha e suco, que maravilha!” – porque ele se sentia bem tratado, bem respeitado. Foi bem interessante. E, veja, na medida em que você faz esses cursos, você está..., claro que está divulgando seu material, mas você está contribuindo para que as pessoas fiquem mais bem informadas. Eu quero que fiquem mais críticas. Então, é uma coisa de dupla-mão. Você está realmente prestando um serviço e você está recebendo em casa, gente que vai valorizar o seu trabalho. Vai ver, você trabalha sério e vão olhar o seu produto com mais carinho, com mais cuidado.

Não se deve também esquecer a infinidade de materiais publicitários com que as editoras inundam as caixas de correio de tempos em tempos – muitos deles verdadeiras revistas, agendas e calendários – por sinal, bastante úteis.

Capítulo 6 Profissionais de edição

O Sindicato dos Empregados em Empresas Editoras de Livros e Publicações Culturais de São Paulo (SEEL) é um pequeno sindicato, como é pequena a categoria que representa. Em 1995, no Brasil inteiro havia 20.630 empregados no setor editorial, além de 11.145 contratados em caráter temporário, segundo os dados da Câmara Brasileira do Livro. Na base do SEEL, que é a cidade de São Paulo (Estado de São Paulo), há aproximadamente 300 editoras em que trabalham cerca de 4,5 mil empregados, dos quais mais ou menos 20% são sindicalizados. Em 1996, o piso salarial, antes da negociação com o sindicato patronal, em setembro, era de R$ 220,00 (O Original. Órgão de divulgação do Sindicato dos Empregados em Empresas Editoras de Livros e Publicações Culturais de São Paulo. Agosto de 1996).

Reorganização do trabalho Além da sempiterna questão salarial, o sindicato enfrenta o processo crescente da chamada “terceirização” dos serviços editoriais, que também provoca redução salarial. José Olavio Dutra, diretor do SEEL, afirma: Houve crescimento [da categoria], sim, apesar de mudanças violentas nas grandes editoras, principalmente em termos do perfil das editoras. Elas, muitas, desativaram departamentos específicos, tipo departamento de editorial, departamento de revisão, departamento de artes. A grande maioria terceirizou, mas em termos numéricos a categoria acabou se mantendo e até crescendo, porque surgiram muitas pequenas editoras. Esse próprio processo de terceirização deu origem a um grande número de pequenas empresas, que num primeiro momento eram prestadoras de serviço, mas num segundo momento se transformaram em pequenas

120 empresas, em pequenas editoras mesmo, começaram a produzir o seu próprio produto e colocar na praça. Então, em termos numéricos a categoria até cresceu. Agora – é importante levantar esta questão –, talvez não tenha crescido em termos de profissionais específicos da área, mas em termos numéricos no geral. Por exemplo, no setor promocional, setor de vendas, setor administrativo, principalmente, cresceu muito o número de funcionários.

Esse processo de terceirização foi propiciada pela informatização. Ricardo Yorio, presidente do SEEL, explica: Com a entrada da informatização nas empresas, aumentou o número de terceirização, porque algumas pessoas se informatizaram, criaram seus próprios escritórios dentro de casa e estão hoje prestando serviços para as editoras. Então o impacto que teve a informatização dentro das editoras foi mais nesse nível. Quem se informatizou acabou terceirizando o trabalho, se desligando das empresas para prestar serviços depois para a mesma empresa da qual ele era empregado.

Além disso, a informatização também acarretou certa desestabilização na estrutura do emprego, como esclarece Rosi Meire Ortega, também da diretoria do SEEL: Os que já entendiam de computador, mas não entendiam da área, acabaram pegando o lugar dos que trabalhavam na área. Eram pessoas que não tinham formação na arte, mas conheciam bem o computador. Então o que aconteceu? Eles queriam pessoas que conheciam, que sabiam lidar com a máquina, e dispensaram aqueles que estavam antes para pegar pessoas novas fora da área. Nós éramos diagramadores; no máximo existiam diagramadores e assistentes de arte. Agora não, agora são operadores, digitadores e fazem tudo a mesma coisa; são todos diagramadores. Aí uns te chamam de diagramador, outros de operador de editoração, digitador... paginador... Então cada empresa dá um nome e aí confunde e dificulta; [isso serve para estabelecer diferentes] faixas salariais e diminuição salarial, principalmente.

Além dessa desestruturação das carreiras e funções, a categoria e o sindicato têm de concorrer com os trabalhadores temporários – os freelancers ou “frilas” –, mas numa situação bastante ambígua, pois esses concorrentes são, em geral, companheiros da própria categoria. José Olavio Dutra, no entanto, esclarece que os “frilas” já não são muitos: Hoje tem muito pouco. Hoje, existe o freelancer, mas é como se fosse..., tem uma nova cara que é essa cara da terceirização. O freelancer teve duas fases. Você sabe que havia feelancer que inclusive cumpria carga horária dentro da própria empresa. Hoje, esse tipo de

121 freelancer [o chamado “frila fixo”], que tem que cumprir carga horária, praticamente acabou. Como todos os processos relacionados com freelancer, ele ganhava – o Sindicato ganhou todos até hoje, todos –, isto é, as empresas tiveram que pagar todos os encargos sociais desses cidadãos, então as próprias empresas hoje não querem mais esse tipo de freelancer. Então, como é o freelancer hoje? O freelancer hoje ou é um cara terceirizado, que tem uma empresinha, que presta serviços para empresa, ou é o cara que leva o serviço para fazer em casa... e recebe com nome de outra pessoa. É difícil o sindicato assumir uma posição de ser contra o freelancer. É claro que no íntimo a gente é contra, porque a gente quer que todo funcionário tenha algum vínculo, porque a gente acha importante o trabalhador ter vínculo. Agora se você sair por aí falando contra o freelancer, você vai jogar o corpo contra você. Isso aí é uma realidade que é antiga, a gente encontra uma dificuldade muito grande para organizar os freelancers. Se já existe dificuldade em organizar a categoria que tem vínculo, os que trabalham na categoria, os que não têm vínculo é muito, muito mais difícil ainda. E ele quer ser livre, isso é que é problema.

O SEEL não tem estimativas sobre o número de trabalhadores no setor de livros didáticos e paradidáticos, mas José Olavio Dutra acredita que constituam a maioria da categoria: Hoje se você pegar a nossa categoria..., as oito maiores empresas – Saraiva, Moderna, Atual, Ática, Scipione, FTD... –, a linha editorial delas, o básico, é de didáticos. Então, se você pegar em termos do número de funcionários dessas oito maiores empresas que trabalham com didáticos, isso representa 70% da categoria. Isso aponta também para uma coisa chamada controle do próprio mercado. Por exemplo, quando você vai discutir salário, reajuste salarial, antecipação salarial, você tem o grupo de didáticos que tem o controle total do mercado até nesse campo, do campo da negociação. Antes de uma empresa dar uma reposição salarial, um aumento qualquer, eles discutem entre eles nesse grupo de didáticos, isto é, eles trabalham em comum acordo entre eles. Então eles têm uma força violenta, eles têm o controle do mercado. Por outro lado, o profissional que trabalha numa empresa pequena, ele tem grande interesse em ir trabalhar numa empresa de didáticos, porque ali ele tem muito mais potencial até de aprendizado. O profissional é mais valorizado e tem muito mais chance de aprendizado.

Trajetórias Esses profissionais da área editorial, ao menos os entrevistados, fizeram faculdade, mas nunca ou quase nunca exerceram a profissão para a qual foram formados. Por caminhos diversos chegaram ao editorial, quase sempre iniciando a

122 carreira em funções subalternas. Aqui, um rápido relato de trajetórias, das quais a mais destoante é a de Jaime Pinsky, que é professor universitário aposentado, autor de livros paradidáticos, editor e dono da editora Contexto, especializada em livros didáticos e paradidáticos.  João Guizzo, da Ática: Bom, aqui na Ática eu comecei como redator em 75. Entrei via anúncio de jornal, que pedia um copy [copidesque], copy de didáticos, e como eu tinha experiência de trabalho em texto, eu era redator, então eu me candidatei e fui admitido, como redator, em 1975. Eu sou formado em Letras e em Ciências Sociais. Me formei nesses dois cursos, Ciências Sociais na USP, de modo que esses cursos me deram uma base boa para esse trabalho que eu faço: o curso de Letras me habilitando no trabalho com texto e o curso de Ciências Sociais porque ele dá uma base cultural ampla muito boa, ao mesmo tempo uma base teórica e uma base informativa muito ampla, muito boa, para esse tipo de trabalho. Comecei dessa forma e, dentro da Ática, logo depois de um ano de trabalho, mais ou menos, passei a coordenar uma pequena equipe de profissionais de texto – também redatores que passaram a trabalhar em texto, fazer o copy de textos didáticos. Hoje a equipe é um pouco maior, são 25 pessoas comigo. Então, eu acompanhei bastante esse crescimento da empresa – se bem que um pouco, assim, como crescimento de um filho, porque quando o filho vai crescendo, quem nota que o filho cresceu são os outros. Assim também na Ática: ela foi crescendo, crescendo, aumentando e eu aqui dentro. Lógico, de vez em quando, se eu páro para fazer um balanço, eu me dou conta desse crescimento, mas no dia-a-dia a gente não observa. Então, ela foi crescendo nesse sentido, foi crescendo. Eu, pessoalmente, de redator passei a assistente editorial, depois a assessor e, finalmente, a gerente, que é o cargo que tenho hoje.

 Isabel Simões, da Ática: Eu comecei a trabalhar muito cedo, com 16 anos, como secretária, datilógrafa, enfim um trabalho administrativo. Entrei na Editora Abril1 como secretária do diretor comercial dos fascículos. E eu fazia Ciências Sociais, nessa época, 69, então eu fiquei interessadíssima pelo trabalho de redação – que, aliás era o que sempre quis fazer. Sou daquelas que desde o ginásio fazia boas redações. Então, eu fazia Ciências Sociais, porque gostava, porque era o que me interessava, mas não tinha nenhum interesse em trabalhar com Ciências Sociais. Fui fazer Ciências Sociais como muita gente foi fazer na década de 60, para entender o mundo. Mas aí, trabalhando na Abril, logo que surgiu a oportunidade, eu conversei com o Pedro Paulo [Poppovic, então diretor 1 Trata-se, na verdade, de Abril Cultural, que editava livros em forma de fascículos. A Editora Abril é uma empresa jornalística, que concentra sua produção basicamente na área de revistas.

123 da Abril] e pedi uma oportunidade na redação. Aí eu passei a pesquisadora, um tempão, fiz um monte de fascículos. Depois eu passei a redigir, a ser redatora. Daí eu saí da Abril em 76 e vim para a Ática como redatora. Saí da Abril de medo de ser mandada embora, tinha esses “passaralhos” horrorosos; eu não podia ficar sem emprego de jeito nenhum, morria de medo de perder emprego. Então, quando anunciaram que haveria uma outra demissão, fiquei com muito medo. E o João Guizzo, que era meu colega de faculdade, me ligou dizendo que havia uma vaga de redator. Daí eu vim fazer o teste e entrei como redatora aqui. Nesse começo de 76, o editorial da Ática eram duas pessoas ou três, era o João e eu, depois entrou a Wilma [Silveira Rosa de Moura], depois, o Zeca. Durante dez anos o editorial de didáticos – com exceção da parte de Português, que sempre foi meio à parte – era João, que era editorchefe. A Wilma, o Zeca e eu fazíamos todo o resto do trabalho editorial. A gente fazia não só a redação como coordenava as coleções – desde que o original chegava na Ática, desde que era assinado o contrato, até a revisão de heliográfica, até o fim. A gente trabalhava com free-lancer também; eventualmente, passava o trabalho de redação.

 Wilma Silveira Rosa de Moura, da Ática: A minha formação acadêmica é Filosofia. Filosofia e Pedagogia. Eu venho do interior, de Sorocaba. E comecei a minha vida editorial na Editora Abril, na revisão – Editora Abril, lá na [Avenida] Marginal. Na Abril eu fiquei quatro anos. Trabalhei inicialmente na revisão. Depois passei a preparadora de textos. Depois eu fiz um trabalho que acho que nem existe mais, chamava “acerto de textos”: eu fazia caber os textos no espaço que existia para eles. Então, a minha especialidade era aumentar e diminuir os textos para caber na diagramação. Fiquei lá quatro anos e saí de lá quando me ofereceram um cargo que não me interessava absolutamente: era para chefiar o departamento em que eu trabalhava. Eu queria me descansar do texto. Daí, surgiu uma chance aqui na Ática para redação. Fiz o teste e acabei vindo para cá. Isso faz vinte anos. Em outubro eu completo esses vinte anos. Daí, eu fiquei aqui como redatora, trabalhando com 5a a 8a série – eu não mexia nada com 1a a 4a – e com colegial. Em todas a áreas, né? A gente trabalhava, não tínhamos uma área de atuação específica. Éramos poucos, era o João Guizzo, a Isabel e eu, e havia um rapaz que fazia mais caderno de atividade, trabalhava com muito livro, era estagiário. Depois entrou mais uma pessoa, e durante muito tempo a redação da Ática foi isso. Foram três pessoas e o João Guizzo. E fiquei nessa trabalhando com essa faixa de idade, como redatora, por dez anos. Depois disso, passei para edição de texto com a área de 1a a 4a, mas sem que a área fosse da minha responsabilidade independente. Eu era ligada ao João Guizzo, mas era eu que tocava essa parte de 1a a 4a. E há seis anos por aí, fiquei com o meu departamento, independente. A Ática, no começo do editorial, era muito..., era uma situação assim de boa vontade, mas ninguém tinha experiência com livro didático – todos nós tínhamos vindo da Abril. E o tipo de material que a gente trabalhava era fascículo, era outra coisa. E a gente pegou um começo

124 do livro didático que estava saindo daquela fase primeira, em que havia Autores, os medalhões, havia praticamente o livro único... Nós pegamos o livro didático quando estava passando para aquela fase mais variada, mais diversificada, mas ainda um livro de qualidade muito baixa, um livro com uma atenção muito voltada para estudo dirigido, uma coisa muito... pouco, digamos, que mexia pouco com o aluno, que mexia pouco com o professor e que tinha uma qualidade gráfica ruim. Mas o negócio foi expandindo, as vendas foram aumentando, muitas editoras trabalhando com... Havia uma concorrência muito grande. A concorrência obriga a melhorar. Você tem que ser melhor para manter a condição conquistada. E a Ática foi se postando em primeiro lugar e éramos nós que fazíamos os livros da Ática! Então, não tínhamos mais condições de só aquele grupo pequeno fazer tudo. Aí começamos a pedir que contratassem outras pessoas, não tínhamos mais condição de a gente pegar de cabo a rabo. Começou a entrar gente para fazer pesquisa, para nos fornecer material, e é com isso que os departamentos foram, de uma certa forma, se diferenciando, formando departamentos específicos.

 Sandra Almeida, da Ática Sou editora de línguas, na verdade eu lido com didáticos e paradidáticos. Eu fiz a USP [Universidade de São Paulo], de 1974 a 77, área de Letras, Português, e na seqüência fiz pós-graduação na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], em Teoria Literária. Depois também vim a fazer Filosofia na USP, porque eu achei que serviria para preencher..., digamos assim, para ter mais informações a respeito da arte, cultura, essas coisas todas. Logo depois que terminei a universidade, Letras, eu comecei a dar aulas, aulas na periferia, numa escola pública de 1o grau. Dei aula de Português, fui coordenadora da área de Português. Então comecei a fazer leituras críticas, apreciações para Leia Livros, para jornais desse tipo, para jornal, revista. [Falha na gravação ou na fita não permite escutar o trecho sobre seu ingresso na Ática, mas basicamente ela disse que sua trajetória foi atípica, pois entrou já em cargo de chefia.]

 Lizânias de Souza Lima, da FTD: Eu sou editor responsável pela área de Geografia e História do 2o grau, de livros didáticos e paradidáticos. Como eu cheguei aqui? Bom, eu estudei História e... fiz pós-graduação de História e dei muito tempo de aula. Fui indicado para esse emprego, já havia feito alguns freelances para editoras – freelancer como analista de originais, basicamente. E através desses trabalhos é que tive o primeiro contato com editoras. Eu fiz o contato, recomendado pelo meu próprio orientador, que disse que estavam contratando aqui na FTD. Vim, fui aceito, comecei a trabalhar e estou trabalhando até hoje. Isso está fazendo dez anos. Entrei como redator. Depois fui para editor-assistente e depois para editor-sênior. Sempre na área de História e Geografia. Só que antes eu

125 trabalhei, também, com o 1o grau. Eu pegava desde o pré-primário, vamos dizer assim, até o 2o grau. Depois a área foi desdobrada em três níveis: de 1a a 4a série, de 5a a 8a série e 2o grau. Nesse desdobramento eu fiquei com o 2o grau.

 Helena de Brito, da FTD: Eu sou editora-assistente, encarregada de edição de livros de 1a a 4a série, de Língua Portuguesa. Eu fiz Letras na USP e era professora de Língua Portuguesa. Fui trabalhar na Editora Abril [na verdade, Abril Cultural] como assessora pedagógica do Programa Alfa. Entrei no Projeto Alfa através de uma amiga que estava trabalhando com a Lia. Eu trabalhava na rede particular e professor da rede particular tem uma rotatividade no trabalho fantástico. É muito difícil você ter professor que trabalhe cinco, seis, sete anos no mesmo colégio. São raros os colégios que mantêm os seus professores. Eles estão sempre reciclando, reciclando. Aí, eu perdi o emprego, fui mandada embora junto com todo o corpo docente da escola em que eu trabalhava. Isso, a situação estava..., a crise estava começando, né? Foi em 83, 84, por aí. Começou a ficar difícil porque eu comecei a trabalhar já não era jovem e eles estavam dando preferência para professor jovem. Aí, essa amiga que já trabalhava lá na Casa Alfa, que era assessora da Lia, me chamou para trabalhar com eles. Eu tive todo um treinamento para conhecer o Programa, o trabalho que era feito pela Casa Alfa, para poder dar treinamento e assessoria para as professoras – professora primária, de 1a a 4a série, do Programa. Em Pedagogia..., era mais autodidata, porque a gente lia muito, a gente discutia muito a respeito de Educação nessa época. Quer dizer, a discussão sobre Educação era uma coisa que estava em pauta para todos os professores sérios e comprometidos com o seu trabalho. Então a gente lia muito, tinha grupos de estudo, tinha propostas, fazia parte do Sindicato dos Professores – ou melhor, não era nem do sindicato, era da ala anti-situação do sindicato, era um movimento de oposição. Havia muito essa discussão no meio dos professores. Os professores estavam muito preocupados com os rumos da Educação; enfim, com o que estava sendo feito na Educação. Quando eu entrei na Casa Alfa o meu treinamento foi mais específico em relação ao Alfa do que em relação à Pedagogia, porque em relação à Pedagogia a gente tinha toda uma formação – de leitura e de discussão – não formal, mas tinha. Nesse trabalho na Abril, a gente dava treinamento para os professores, para eles usarem esse material, que era o Programa Alfa, e depois fazia o acompanhamento com os professores, discutindo com eles problemas que surgissem nesse meio tempo na aplicação do material e outras dúvidas que aparecessem pelo caminho. Nesse trabalho eu tive oportunidade de conhecer muitas professoras por esse Brasil afora. A gente atendia a quase todos os Estados que compravam o Programa. E esse era um Programa caro, e era comprado pelos livreiros. Então, a gente teve contato com muitas professoras. Aí, a Abril meio que fechou a Casa Alfa. Sobraram eu, a Maristela e mais algumas pessoas. O governo deixou de comprar – não sei muito bem o que aconteceu. Aí acabei sobrando lá na redação, fecharam o resto da Casa Alfa, e eu acabei “caindo” lá na redação, meio por acaso.

126 Antes disso, para aproveitar o pessoal que estava ali na Casa Alfa, o Barros, que era um dos diretores naquela época, resolveu reeditar o Vestibular – o Novo Vestibular – e me encarregou de tomar conta disso. E foi um banho, porque eu não sabia nada na área editorial. Eu tinha experiência pedagógica, eu não sabia como que era a edição, eu não sabia quais eram os processos. O pessoal se divertia muito às minhas custas, né? Porque falavam: “forca” – que forca o quê?! Essas coisas que eu não tinha a menor idéia do que fosse. “Couchê” eu achava que era “touché”.2 Foi um pega para capar mesmo. E o pessoal que trabalhava nessa área, nessa época, me ensinou muito. E depois do Novo Vestibular, veio a reedição do Literatura Comentada, que eu também coordenei. Isto também foi..., reedição foi feita toda pelo Pedro Paulo, pela PPP,3 mas coordenação e aprovação, essas coisas, eu que fazia. Aí, o pessoal da Abril foi despedido, aquele mundaréu de gente para fora. E eu liguei para a Cecília, que é a nossa editora-chefe, para marcar uma entrevista, e ela ficou bastante interessada no meu perfil, nesse conhecimento dos professores, nesse treinamento que havia dado e nessa experiência, pequena que fosse, na área editorial. Aí, comecei a trabalhar aqui.

 Rosiane Oliveira Silva, da FTD: Bom, eu tenho formação em 3o grau, eu fiz Belas-Artes com especialização em desenho. E durante a época em que eu estudava, sempre prestei serviço para agências, na área de arte gráfica. Porque como eu fiz Artes Plásticas, desenho em Artes Plásticas, então a maneira de sobreviver, mesmo como estudante ainda na época, era trabalhar com arte gráfica. A partir daí acabei me profissionalizando mais nas artes gráficas do que nas artes plásticas, pela situação econômica do país, e do mundo até, em relação à arte. Eu mudei para São Paulo há oito anos – sou de Belo Horizonte –, e tinha trabalho já fazendo ilustrações para livros didáticos. Eu cheguei e trabalhei um tempo como ilustradora, até ir trabalhar em editora. Trabalhei antes na editora Saraiva e depois vim aqui para FTD e continuo trabalhando aqui. Então, é basicamente isso.

 Jaime Pinsky, da Contexto Quando eu estava em Assis, na Faculdade de Assis, que faz parte da atual Unesp [Universidade Estadual Paulista] (não era ainda Unesp, era um instituto isolado), a Comissão Editorial que havia na faculdade elegeu um trabalho meu, uma pesquisa minha para ser publicada. Não havia uma editora, mas havia publicações da Faculdade, e esse livro ia ser publicado pela editora, na gráfica Revista dos Tribunais. Só que alguns problemas surgiram na elaboração, na produção do livro: especificamente um problema que o revisor corrigia toda vez e eu 2 3

Forca é o final de um parágrafo que fica “sobrando” no alto de uma página. Couchê é tipo de papel. Empresa de serviços editoriais, fundada por Pedro Paulo Poppovic, antigo diretor da Abril Cultural.

127 consertava a correção dele, foi muito curioso. Ele não aceitava a idéia do nomarca do Egito, que é o dirigente do nomos; para ele quem dirigia é monarca. Então, depois de cinco revisões, ele corrigindo o nomarca e eu corrigindo o monarca, então pediram para eu vir a São Paulo para ver as coisas. Eu cheguei a São Paulo e mostrei muito interesse por aquela coisa editorial, achei muito bonito aquilo tudo, muito interessante, muito fascinante, e a pessoa que cuidava da gráfica disse que ele estava abrindo uma pequena editora e se eu não queira ajudá-lo a montar, se eu tinha algum livro. No ínterim, eu estava terminando de produzir, intelectualmente, um trabalho chamado Cem textos de História Antiga, que se transformou num clássico. Eu, então, disse que sim, que embora a Difel tivesse interesse em publicar aquele livro, eu daria a ele. Aí, ele pegou o livro e depois perguntou se eu não queria ajudá-lo também a montar. E, de repente, me vi como uma espécie de editor da editora Hucitec. Só que a Hucitec era muito interessante do ponto de vista intelectual, mas o dono dela e outra pessoa não eram corretas. Não pagavam direitos autorais, não pagavam duplicatas, criavam mil problemas, e eu acabei me afastando. Mas ficou uma profunda vontade de mexer na área editorial, porque eu sentia uma profunda insatisfação no meu trabalho intelectual da universidade, achando que havia uma defasagem excessiva entre aquilo que nós chamaríamos de “produção do saber” na universidade e, de outro lado, a própria circulação do saber. Então, parecia que nós estávamos de fato fechado numa torre de marfim, distantes de todo mundo, produzindo um saber inteligente, e nós olhávamos aqueles produtos que eram utilizados no 1o e no 2o graus com profundo desprezo. Eu achava que a gente tinha que fazer uma aproximação, que sem chegar nas bases a nossa produção intelectual perdia um pouco seu sentido e que, por outro lado, sem o auxílio da universidade as escolas médias teriam muita dificuldade de sobreviver – como de fato acabou acontecendo. Então, eu comecei a me aproximar, eu comecei a tentar escrever algumas coisas para um público mais amplo. Deixei de escrever coisas mais acadêmicas, digamos assim, e fiz uma mudança muito grande quando publiquei o meu Escravidão no Brasil, que foi um livro que hoje em dia é chamado de paradidático. Com isso, algumas editoras me convidaram para ajudá-los a montar projetos. Aí, eu passei a sugerir projetos também. Então, eu criei a coleção “História Popular”, da Global. Posteriormente, criei a coleção “Discutindo a História” na Atual. Ajudei o Caio Graco [Prado] a montar os projetos dele na Brasiliense. Aí, com experiências nessas editoras a mosca editorial me pegou de vez. Eu já era professor universitário, acadêmico típico, mas, ao mesmo tempo, eu passei a me dedicar bastante a meus textos e a textos de terceiros e a bolar projetos. Em 1984, acredito, ou 1983, não me lembro exatamente, o reitor da Unicamp, José de Aristodemo Pinotti, resolveu criar uma editora da universidade e pediu para um professor para que ele tentasse montar alguma coisa. E aí me pediram para fazer parte do Conselho Editorial para montar a editora, e na dinâmica do grupo eu acabei sendo indicado como primeiro diretor-executivo da editora. E na Editora da Unicamp uma das linhas que eu procurei manter, contra todos os projetos de outras editoras acadêmicas até então, era dar atenção a um livro didático, porque com aquele potencial fantástico da Unicamp era impossível que a gente não pudesse produzir coisas

128 interessantes. E propus, e conseguimos algumas coisas interessantes até em termos de material didático para o ensino superior. Que dizer, estimulamos os professores de Medicina para produção de livros e textos de boa qualidade, não simples apostilas. Estimulamos gente da área de Tecnologia de Alimentos, e começamos a ter livros voltados para o ensino. Nessa altura do campeonato, no decorrer da segunda metade dos anos 80, eu comecei a ficar assim muito desapontado com o meu trabalho na universidade. Quer dizer, eu achava muito simpático o meu trabalho, alguma aceitação, uma respeitabilidade, uma auréola de respeitabilidade, mas achei que o meu trabalho estava muito distante daquilo que eu queria tocar, que era mexer mesmo no processo educativo. Que dizer, eu queria fazer o saber circular. Então, quando houve uma mudança política na Unicamp, houve um novo reitor e eu saí da editora, então com um grupo de amigos nós resolvemos abrir a editora Contexto. E a editora Contexto saiu realmente com este objetivo: de promover a circulação do saber, que é exatamente o nosso lema. É mais ou menos essa a minha trajetória.

Dos originais ao livro A rotina desses trabalhadores consiste em seguir, quase sem variação, as fases de produção do livro descritas no capítulo anterior. Segundo Isabel Simões os procedimentos são os seguintes: Então, os originais chegam. Eles são avaliados em primeiro lugar pela gerência editorial, que diz se o original tem possibilidade ou não. Então, digamos, o original de História para o 1° grau chegou e o João [Guizzo] diz assim: “Mas um não serve, precisamos de quatro [volumes, um por série]”. Entra em contato com o autor, ele está disposto a fazer, ele já tem o material. Muito bem, vale a pena investir. O autor faz, os originais chegam. São passados para o editor-assistente, que vai cuidar dessa coleção, ela entra no cronograma. Uma conversa com o João e editor-assistente, eles decidem, estabelecem a cara do livro, o projeto. Daí, o editor-assistente e o João, eles vêem que trabalho é necessário naquele original. Agora é feita a leitura crítica daquele livro. Depois, vamos ter que completar esse original. Esse original está longo demais, está mal escrito, precisa de um redator, vários redatores, o autor não fez o mapa, não fez o esquema. Entramos em contato com quem faz isso. E o trabalho editorial se desenvolve daí por diante no bate-bola com o livro. Então, o livro é submetido a todas as tarefas, que são necessárias dentro da redação, preparação – copy e preparação até o texto ficar redondinho. Copy e preparação são separados. Porque o copy é muito profundo, é a redação. A preparação é a padronização, mesmo aquele copyzinho de leve na última leitura. Pesquisa de textos adicionais, boxes, complementos. Sugestões de leitura. Trabalhos em classe. Livro do professor. Exercícios. Essas pesquisas de textos adicionais, dependendo do autor, do tipo de autor, e do tempo que ele tiver disponível – e quando for fácil conseguir isso dele, a gente pede que ele

129 faça. Ele faz e daí volta novamente para nós copidescar, ou isso pode ser dado para freelancer, mas muito freqüentemente é feito pelo próprio pessoal daqui. Daí se faz a pesquisa iconográfica, a pesquisa cartográfica, se houver. O autor manda, se não manda a gente faz ou então pede para alguém fazer. Tendo esse original prontinho com tudo – isso demora: coleções com quatro volumes com quatro cadernos demoram dois ou três anos. Porque é muito longo mesmo. Aí vai para a produção de arte, faz-se o projeto gráfico; em geral o projeto gráfico é feito a partir do texto e não ao contrário, a não ser os livros paradidáticos, que já têm um projeto que foi feito no início. Na arte é mais ou menos a mesma coisa que se faz na redação. Quer dizer, há os editores de arte, os auxiliares, faz-se o trabalho de projeto, de diagramação – agora é tudo eletrônico. Depois fotolito, depois gráfica: em geral, um ano de trabalho nessa etapa.

Na FTD, o processo descrito por Helena de Brito é, na prática, idêntico: Eu recebo os originais que nos chegam. Analiso esses originais. Se a gente percebe que eles têm um brilho, coerência, consistência, então a gente faz uma análise mais profunda, sugerindo modificações, sugerindo linhas que não foram abordadas. Manda de volta para o autor, o autor refaz esse original, envia para gente de novo. Se for o caso, a gente repete o processo, volta para o autor de novo, ele envia para gente. Em alguns casos, a gente percebe que nem sempre os autores conseguem passar daquilo que eles deram. Então, a gente faz as modificações necessárias, faz os acertos necessários, e manda para o autor para ver se ele concorda ou não com aquilo. Nesses casos em que a gente percebe que o autor não tem condições de ir além daquilo que ele já deu, no geral eles aceitam, porque eles percebem que melhora, mas não são capazes de fazer por eles mesmos. A partir daí a gente faz a edição. Então, linguagem, melhora um exercício ou outro, manda para o pessoal de preparação, que faz normalização, a padronização do texto. A gente determina, por exemplo, subordinação de títulos e divisão, essas coisas todas. Aí, vai para nossa arte, aqui. E o pessoal da arte, então, faz um projeto, traz, a gente discute o projeto, se está de acordo, se não está de acordo, se cabe ou se não cabe, e daí eles tocam para frente. No caso de 1a a 4a série, a gente faz análise das ilustrações, também. Bom, aí o livro fica pronto, a gente dá uma espiada na diagramação. Aí, volta para revisão para ver se não passou pastel [erro], se não passou coisas incompreensíveis que, nesse meio tempo, a gente tenha deixado passar. Aí, filme, ciano4 e vai para frente.

O ciclo completo de maturação, como esclareceu Isabel Simões, é extremamente demorado. Fala a respeito Lizânias de Souza Lima: O espaço médio entre a chegada de um original e o momento em que ele vai para gráfica imprimir, a gente podia calcular em um ano e meio.

4 Ciano = prova cianográfica, isto é, uma prova do livro feita em cor azul (cian) para a última revisão, antes da impressão.

130 A coleção de 5a a 8a série, nunca menos de dois anos. O trabalho editorial, então, é o trabalho que mais demanda tempo para editora. E o tempo que menos ocupa uma editora é o momento da impressão e montagem do livro. Então, o período maior da elaboração e produção de um livro – além, logicamente, da parte do autor em escrever – ele vai bem uns dois anos.

Na área de Wilma Silveira Rosa de Moura não é diferente: No meu caso, eu tenho, em geral, planejamento para dois anos. Então, assim, este ano [1996], eu já estou pensando nas coisas que eu vou fazer para 99 e para 98. Atualmente, a gente faz o planejamento junto com o departamento comercial. A gente faz uma avaliação anual das vendas. Vê o que aconteceu. Vê a nossa posição no mercado perto dos concorrentes. Tenta descobrir o que no concorrente deu certo que ocupou nosso espaço, ou que abriu um espaço novo, tenta criar os nossos espaços, mas também ocupar o espaço deles.

Na Contexto não há espaço físico em que caiba tantas atividades. Mas essa foi a opção tomada, explica Jaime Pinsky: Nós temos uma estrutura mínima, nós terceirizamos tudo nessa editora, não temos nem revisores aqui dentro da editora, ninguém. Então, temos normas de revisão, normas de copidesque; enfim, temos normas escritas que são orientações para as pessoas que trabalham com a gente. Essa é a primeira diferença substancial [em relação às grandes editoras]. Com isso, nós eliminamos custos fixos e deixamos de ter a necessidade que as grandes editoras têm de produzir x novidades por ano. O ano passado [1995], por exemplo, não produzimos quase nada. E acertamos. Diminuímos os nossos estoques etc. Quer dizer, nós temos o controle sobre o conjunto de coisas muito maior, desde a produção intelectual até a circulação final, a gente tem um controle muito grande, os contatos são muito próximos. Embora a editora seja um pouco maior do que ela aparenta, ela é pequena ainda, é uma editora pequena. E isso me permite uma vantagem comparativa: pessoalmente eu leio todos os originais, sem exceção. Quer dizer, aquilo que aconteceu lá na Ática, no livro do Jobson, não tem absolutamente nenhum perigo de acontecer aqui. Pessoalmente eu faço questão, eu leio tudo. Eu gosto de fazer isso. Eu leio todos os originais do que a gente publica. Eu não leio todos os originais que chegam. A gente recebe os originais, manda fazer leitura; enfim, aquela coisa toda. O resto, o sistema de produção é idêntico.

O editor diante do autor Ao que parece, não há regra para recrutar autor. Os originais chegam à mesa do editor de várias maneiras. Como João Guizzo explica:

131 Ao se falar em livro didático há o problema de autoria, problema de encontrar autores capacitados, autores em condições de produzir material bom, material sério, material de qualidade. Esse é um problema..., um dos maiores problemas que nós enfrentamos. Os autores são recrutados, vamos dizer assim, de maneira até certo ponto aleatória, como aparece, através do conhecimento que a gente tem, via consultoria que se faz com ele – um bom consultor, um bom leitor crítico, ele acaba se tornando autor, acaba normalmente sendo convidado para escrever. E alguns aparecem na editora oferecendo material que rascunharam, que elaboraram, perguntam se poderiam publicar, e a gente orienta e assim acabam se tornando autores.

Muitos originais chegam por correspondência, afirma Helena de Brito: As pessoas ligam e querem mostrar o material. Ou então enviam pelo correio. Ou no caso de não morarem aqui em São Paulo e serem de outros Estados, elas entram em contado com as filiais, com os divulgadores, e entregam para eles. E é bastante material. Há épocas em que a gente fica com quantidade de originais para análise tão grande que tem que dar uma parada e analisar tudo para botar em dia. Mas às vezes a gente encomenda também. Quando a gente quer uma obra com tais e tais características que o mercado está precisando, a gente já tem os autores.

Segundo Lizânias Souza de Lima, alguns desses autores por encomenda podem até ser remunerados previamente: Outra origem do original – origem do original é bom, né? – é quando a editora elabora internamente um projeto editorial, e com base nesse projeto ela tenta encontrar os autores que seriam capazes de executar o projeto. Sendo assim, a editora, às vezes, é obrigada até a contratar temporariamente o autor. Contratar entre aspas, quer dizer, adiantar dinheiro, para que o autor execute esse trabalho. Isso é quando o projeto é feito pela editora e se vai atrás do autor com o projeto pronto.

A quantidade de originais recusados é bastante elevado, diz João Guizzo: Olha, de cada dez originais, didáticos, tipicamente didáticos, se um é publicado é muito. Porque nós recebemos muito material para ser publicado, mas que não interessa para gente. Mas se a gente percebe que num desses materiais existe por trás um talento, uma grande cabeça, alguém realmente capaz de produzir uma coisa boa, a gente redireciona esse talento para o objetivo que a gente quer, para produção de um texto didático.

Por que “não interessa”? Segundo Helena de Brito – que trabalha com livros de Português, sempre contendo textos para leitura – muitos originais são inadequados:

132 A gente não aceita adaptação de textos, porque eu nunca encontrei uma adaptação bem feita – a não ser pelo próprio autor do texto que adapta ou outro escritor de literatura que tenha feito a adaptação, mas no geral são... E outra coisa que a gente não aceita são os cortes de textos, quer dizer, vai recortando o texto até ele ficar pequenininho, tirando um monte de partes. Chega a acontecer de mudar o ponto de vista do texto. Isso a gente tem muito cuidado, com adequação de linguagem, adequação de temas e essas preocupações de, claro, não haver preconceito. Não conter informações erradas, também, é uma preocupação que a gente tem – informações erradas não só da área de Línguas, mas de outras áreas. Uma coisa que acontece com bastante freqüência – pelo menos nos originais que eu analiso – são informações erradas de Ecologia, de Biologia, de História. Por exemplo, as crianças estão sempre mandando cartas para o prefeito, para o governador, para resolver um problema de lei. Então, tem que chamar a atenção de que não é bem o Executivo que vai cuidar disso, é o Legislativo. Aqueles textos horrorosos em que o passarinho cai do ninho, a criança vai lá bota no ninho: isso é mentira! Se a criança, se qualquer ser humano, puser a mão num passarinho ou no ovo, e botar no ninho de novo, acaba, acabou, não tem mais passarinho, nem mais mãe de passarinho, nem coisa nenhuma! Isso é besteira, é bobagem! Então, essas coisas que aparece, a gente está sempre ligado, para não ter informação errada. Não pode! Não pode, mesmo! Uma outra preocupação que eu tenho, que é bastante grande: de repente apareceu uma onda ecológica, né? Então, fala-se do desmatamento da Amazônia, da queimada da Amazônia. Criança de 1a a 4a série não tem a menor interferência nisso. É você trazer para ela uma angústia com a qual ela não pode lidar. Você tem que tratar a ecologia no nível da criança. Tá certo que tem queimada, sim. Mas não vá perguntar para ela o que ela vai fazer a respeito da queimada. Nada, coitada! Não vai fazer nada! O que ela pode fazer é não desperdiçar papel, não desperdiçar lápis. Enfim, qual é a atitude efetiva que uma criança de 1a a 4a série pode ter em relação ao meio ambiente? Não adianta só jogar o problema ecológico sem dar um encaminhamento possível – ou enviar uma carta ou visitar o SOS Mata Atlântica, conhecer o trabalho, fazer uma pesquisa. Enfim, uma coisa mais consistente, que não fique só no “falamos disso”. Falar não resolve nada, especialmente porque é muito grande para criança de 1a a 4a série. E só traz angústia. E se traz angústia, ela afasta direitinho.

Evidentemente, a relação entre o autor e o editor é marcada por muitas tensões. É ainda Helena de Brito que narra: Se é autor de primeiro livro é difícil, sim. É difícil porque é muito difícil receber crítica ao seu texto, ao seu trabalho escrito, e o professor de Língua Portuguesa acha que sabe escrever. Então, quando ele recebe uma crítica à sua linguagem, ele fica muito doído, e dói mesmo. E dói mesmo! Até a gente se acostumar e criar calo, dói muito. Então, esse primeiro contato tem que ser muito cuidadoso, porque se a crítica passar do ponto, a gente consegue é bloquear e ele não escreve mais. Não vai nem para frente nem para trás. Então, tem que ser muito

133 delicado, muito cuidadoso, porque a gente pode frustar um autor que, se for devagarzinho dá um excelente autor. Quem está escrevendo se envolve muito, e aí falta o distanciamento para perceber problema de seqüência, problema de estrutura. Então, essa é análise que a gente faz, nesse primeiro momento, para chamar atenção para essas coisas. E se é um autor antigo, que já tem dois ou três livros publicados com a gente, a coisa é mais rápida, porque a gente pode ser mais objetivo, mais brusco, mais seco. E o trabalho flui melhor. Mas se é autor de primeira viagem, tem que ser muito devagarzinho, e aí a coisa é mais lenta.

A respeito da relação com os autores, Lizânias de Souza Lima chega a propor uma curiosa equação: A minha experiência ensinou o seguinte: geralmente o autor bom, ele dá mais problema de você mexer no texto dele do que o mau autor. Vamos entender, aqui, o que a gente chama de bom autor e mau autor. Bom autor significa o seguinte: o autor que tem muita personalidade; o texto é muito pessoal. Quer dizer, ele produziu... Porque no livro didático há muita imitação. Se um livro fizer sucesso no mercado, o outro tenta fazer na mesma linha. Então, às vezes, você tem um texto, não saiu das entranhas do autor, ele saiu mais como a tentativa de você colocar um livro no mercado que fizesse sucesso. Então, você mexe no livro desse tipo de autor e, como o livro não é um filho dele, que ele ama, estima, você mexe e ele não acha ruim. Porque você está, inclusive, dizendo: “Olha, isso aqui o professor vai achar ruim”. E o autor, quando o texto surgiu das entranhas dele, ele fala: “O professor vai achar ruim, dane-se o professor. Eu acho isso, eu quero que... Não admito que seja diferente disso”. Então, geralmente o autor, quando tem muita originalidade, geralmente é mais cioso da forma original do seu texto, Então, às vezes, ele briga por uma palavra. Os outros, não. Os outros já deixam você reescreve o livro e acham que está bom – e assume a paternidade do livro sem muito problema.

Apesar de tudo, o que os editores constatam é o surgimento, gradativo, de uma consciência profissional por parte dos autores. Afirma Isabel Simões: Cada vez mais – agora que já se foram 20 anos dessa política [editorial] – já há uma série de autores que estão acostumados, que já estão melhor entrosados com essa forma de trabalhar. Há maior profissionalização do autor.

João Guizzo concorda: Eu acho que há uma evolução sim. Há autores que a gente nota que vão evoluindo, vão se aperfeiçoando e, depois de alguns anos, se dedicam praticamente a essa tarefa de produzir, de reformular, reciclar material, readaptar e manter o material sempre vivo, sempre atualizado.

134 Bem entendido: maior profissionalização do autor não significa que haja cada vez mais textos intocáveis. O copidesque continua sendo uma exigência se se pretende que os livros de uma coleção sigam um padrão homogêneo. Profissionalização do autor então significa maior conhecimento e aceitação, por parte do autor, dos procedimentos editoriais, que, por sinal, estão especificados no contrato. Explica Isabel Simões: Em geral, os autores sabem, isso é condição para assinar um contrato: que o original deles vai ser trabalhado pelo editorial e que o editorial vai mexer na linguagem, isso sim, e que eles vão ser exigidos para trabalhos adicionais. Isso está em contrato e nos contatos preliminares. Então, eles vêm para cá sabendo disso. Agora, como isso é feito é batebola diário, e nós temos desde autores que não criam problema nenhum, que são extremamente disponíveis, que entendem bem o processo, que conversa mesmo..., que é uma decisão de duas mãos, um diálogo; até aqueles que criam caso e que aí a gente toma as medidas..., toma as decisões que vão aparecendo.

Profissionalização do editorial Profissionalização é um processo pelo qual passaram também os trabalhadores em editoras. Sandra Almeida analisa: A situação mudou. Entra o fator tecnológico... Acho que de modo geral mudou. Você tem uma preocupação maior com prazos, uma preocupação maior de chegar ao mercado em tempo, porque chegar com produto maravilhoso fora do tempo você não vai ter condição de venda. Eu diria assim profissionalizou-se mais. Hoje se pensa de um modo bastante conseqüente: antes a gente muitas vezes tomava um posicionamento muito nefelibata, muito fora do..., nas nuvens completamente; agora se tem realmente uma preocupação mais com mercado, uma preocupação maior com prazos, com tudo isso.

Wilma Silveira Rosa de Moura relembra a época em que começou a trabalhar com os didáticos: Os autores eram ainda muito inexperientes. E a gente começou, então, a mexer com esses materiais. O nosso trabalho era um trabalho de refazer. O que fazíamos aqui era pegar um original e transformar num outro livro e mostrar para o autor uma outra coisa que não era aquilo que ele tinha feito. Isso nos trouxe experiências fantásticas e problemas homéricos também. Porque nós começamos num grupo em que texto realmente não era problema. A gente era capaz de escrever qualquer coisa – e isso foi a Abril que nos treinou. A gente trabalhava assim: a

135 gente fazia aquele copy, reescrevia o material, propunha uma nova estrutura, propunha material para complementar o trabalho e pesquisa.

De acordo com João Guizzo, a Ática foi pioneira em introduzir copidesque na produção de livros didáticos: Eu acho que a Ática teve também o mérito de inovar no sentido de introduzir o chamado copidesque, a figura do copidesque, a figura do profissional do texto, que retrabalha o texto do autor, que procura fazer com que o texto do autor, a linguagem seja adequada do ponto de vista não só de correção gramatical, mas do estilo de comunicação, que ela seja adequada ao aluno, ao público-alvo. E a Ática é que introduziu esse elemento na linha de produção do livro. E desses tempos pioneiros para cá houve apenas um aperfeiçoamento desse processo, porque o copy continua, ele continua existindo, tendo um papel preponderante.

Guizzo também constata a profissionalização no cuidado com as ilustrações: Houve uma complexificação, porque passou a ter peso importante o profissional, por exemplo, de pesquisa iconográfica. Hoje temos aqui o profissional que faz só pesquisa iconográfica, que se encarrega de buscar, de pesquisar, buscar e comprar materiais iconográficos – basicamente fotos, ilustrações – para serem utilizados nos livros didáticos. O trabalho de preparação do original também, lógico, evoluiu muito; ele evoluiu porque passou-se a fazer uma edição de texto muito bem cuidado, paralelamente uma edição de imagem, em paralelo uma edição de mapas, uma edição cartográfica.

Um possível índice para verificar o grau de profissionalização pela qual passou a produção editorial é a leitura do expediente – parte do livro geralmente situada no início, antes mesmo do sumário, na página par (lado esquerdo), em que são relacionados os nomes de todas as pessoas que participaram da produção daquele livro e suas respectivas funções; muitos denominam erroneamente de “crédito”. Podese constatar então a extrema diversificação de cargos e funções e a variedade do pessoal neles envolvido. Eis alguns exemplos de expediente, tomados ao acaso, apenas transcrevendo os cargos e as funções mencionados: Português: leitura e expressão (6ª série), de Cristina M. Bassi e Márcia Leite (Atual): Editora; editora de campo; coordenadora editorial; chefe de preparação de texto e revisão; preparação de texto; revisão; chefe de arte; coordenadora de arte; assistente de arte; diagramação; gerente de produção; produção gráfica; projeto gráfico; ilustração; capa; composição; e fotolito Atlas. História do Brasil, de Flavio de Campos e Miriam Dolhnikoff (Scipione): Diretores; gerência editorial; responsabilidade edito-

136 rial; assistência editorial; gerência de produção; revisão (chefia; assistência; preparação; e revisão); arte (chefia; coordenação, assistência; capa; miolo; ilustração; cartografia; e pesquisa iconográfica); coordenação de produção; composição e arte-final (coordenação geral; coordenação de arte-final; composição; e arte-final); e impressão e acabamento. Sartre: é proibido proibir (col. Prazer em Conhecer), de Fernando José de Almeida (FDT): Coordenação editorial; setor de Filosofia; coordenação de revisão; edição de arte e projeto gráfico; produção e diagramação; capa; ilustração; coordenação de artefinal; arte-final; e assistente de produção. Matemática. Volume 1 - Versão Beta, de Edwaldo Bianchini e Herval Paccola (Moderna): coordenação editorial; preparação do texto; revisão; edição de arte; capa (inclui crédito da foto); pesquisa iconográfica; ilustrações; editoração eletrônica e fotolitos; coordenação do PCP [?]. Os incas (col. Povos do Passado), de C. A. Burland: Tradução; adaptação para a edição brasileira; editor; diagramação; ilustradores; consultora; consultoria para a edição brasileira; e fotografia.

Este último livro é um “enlatado” e, vê-se na capa, foi selecionado “para o Programa Sala de Leitura/Bibliotecas Escolares. FAE/INL”. No caso, o profissionalismo da editora – mas não necessariamente a competência – mede-se pela presença (ao menos no expediente) de uma pessoa encarregada de “adaptação para a edição brasileira”, o que inclui a verificação da existência ou não de “similares nacionais” para topônimos, obras citadas etc., além da alteração de trechos do texto que façam referência a situações e hábitos do cotidiano do país em que o livro foi originalmente produzido e que possam ser incompreensíveis para o “leitor médio” brasileiro. Expedientes de dois livros da mesma coleção, publicados em tempos diferentes, fornecem um exemplo da evolução da profissionalização. O Renascimento, de Nicolau Sevcenko, faz parte da coleção “Discutindo a História”, da Atual, e foi publicado em 1985 (na época, em co-edição com a Editora da Unicamp). Em seu expediente aparecem apenas os nomes dos responsáveis pela capa, fotos e mapas. A obra O Apartheid, de Marta Maria Lopes, da mesma coleção, já é de 1990, e o expediente é bem mais volumoso: editor; assistentes editoriais; preparação de texto; revisão; diagramação; arte; produção gráfica; projeto gráfico; fotos; mapas; composição; fotolito. Não que não tivesse havido na edição de 1985 preparação de texto, revisão, diagramação etc., mesmo porque essas atividades são intrínsecas à

137 produção de qualquer impresso. A diferença de uma edição para outra é a conscientização, por parte da editora, de que essas funções e o nome dos responsáveis por elas deveriam constar do expediente – o que é também um sintoma da profissionalização. Por fim, é sinal de profissionalismo a inclusão, no expediente ou em seções apropriadas, de referências às obras alheias citadas, do crédito das fotos e ilustrações e do nome de seus autores etc., ou seja, a menção a todos, literalmente todos, que direta ou indiretamente tiveram participação na execução de um livro.

Uma cultura profissional Outro indício da profissionalização do editorial de livros didáticos e paradidáticos é a edição de arte – o que faz desses livros a “disneylândia pedagógica”. Wilma Silveira Rosa de Moura faz relato sobre a integração que foi se construindo entre a editoria de texto e a de arte: A arte era separada. Nós tínhamos dois departamentos de arte isolados. Era uma maneira muito horrorosa, horrorosa mesmo! A gente fazia um original. Você imaginava quem era o seu público, imaginava para quem era o seu livro, pensava numa cara para ele, fazia todo o texto pensando naquilo e mandava para o departamento de arte. Daí, você ia ver esse livro pronto, na hora de liberar a arte-final, com todas as ilustrações prontas, com o projeto gráfico... Imagina que discutir um projeto gráfico..., mas nunca que passava pela cabeça! Os artistas eram Os Artistas, eram os iluminados e nós não entendíamos nada dessa área e só criticávamos, também. Quer dizer, não havia..., mas eram meio cultivadas essas coisas... E a gente tinha surpresas, de vez em quando você tinha surpresas, às vezes, agradáveis, às vezes, desagradáveis. Faz muito pouco tempo que a gente trabalha de uma maneira mais orgânica, que vê o livro de uma maneira mais inteira. Há alguns anos, ainda existia o departamento de arte separado, mas a gente já discutia projeto gráfico, pelo menos, a gente soltava alguns palpites quanto ao tipo de ilustração, traços, caminhos da cara que a gente queria ter. A gente trabalhando de uma maneira realmente participativa, e que o editor passou a ser responsável pelo material que ele editou, está fazendo dois anos. É a segunda programação que nós estamos fechando, em que a gente realmente é responsável pelo material editado na Ática. Antigamente, a gente ainda podia se arriscar. Hoje em dia, claro, às vezes, as coisas acabam não dando certo. Mas muito menos espaço para essas tentativas e erros. Você tem que acertar, a gente é cobrado para aquilo. Muito cobrado.

A edição de arte nos livros didáticos, deixou de ser mera “arte”, enfeite só para embelezar o produto – ao menos para alguns profissionais do setor. Rosiane Oliveira Silva, editora de arte da FTD, explica:

138 Eu tenho sempre um encontro com o autor, para saber qual é a expectativa dele com essa obra. Essa reunião é sempre junto com o editor-assistente, que trabalhou o texto, a edição do livro. Então, eles já me passam uma boa parte do que trata a obra. E aí eu vou folheando, sabendo quais são as seções do livro, qual é o nível de ritmo, de repetição, como elas acontecem. O texto, a questão do peso de cada texto, quando é um texto de leitura oral, de leitura escrita, entendeu? Então, a gente toma conhecimento da estrutura e, conforme a necessidade, eu vou lendo para saber do que se trata. Da pré-escola à 4a série é uma linguagem mais infantil mesmo, porque eles ainda têm entre três e dez anos. Então, você tem que adequar o visual à expectativa deles. É tentar mesmo, porque é impossível você chegar na expectativa do outro, principalmente criança, porque eu acho que o mundo deles é ainda muito mais livre do que o da gente. Da 5a a 8a, que é com adolescente, então é essa coisa de tentar mesmo adequar a isso, à expectativa, ao modo adolescente. Então, é uma expectativa mais do comportamento, que é uma coisa que você observa na rua, na escola, no convívio que você tem com essa faixa etária. E o 2o grau que é aquele que já está quase se tornando um adulto, então não dá para você ter a mesma linguagem de uma 5a, 6a, 7a série. A 8a já fica mais ou menos nessa passagem entre 1o e 2o grau. O de nível secundário eu nunca trabalhei. Por exemplo, a tipologia. Ela diferencia muito, porque da 1a a 4a você tem que usar um pouco maior. Uma letra mais limpa. Geralmente ela não tem serifa, porque eles ainda tem dificuldade de leitura, principalmente na 1a e 2a série. Então, a letra, quanto mais redonda, o acesso à leitura é mais rápido, é mais ágil. De 5a a 8a, você pode já sofisticar mais um pouco, em termos de tipologia, o corpo vai ser menor porque eles já têm uma leitura mais corrente, não têm tanta dificuldade da assimilação do ler, como da 1a a 4a. As ilustrações também, assim..., da 1a a 4a elas são mais infantis mesmo, embora não precisa ser uma leitura do bonequinho, como é muito habitual. E os ilustradores, quando a gente senta para discutir, são esses os valores colocados: “Olha, a criança aqui tem sete anos...”. Como, então, fazer um desenho para esse tipo de livro? E aí também tem que levar em conta se é um livro mais conservador, se é um outro método mais ousado, diferenciado, ou não. O texto também implica muito. Na cor, de 1a a 4a a noção deles de cor ainda é muito primária, ainda está muito centrada dentro do amarelo, azul e vermelho, sabe? E já de 5a a 8a você já enxerga um pouquinho mais. Não que não use, entendeu? De 1a a 4a usa, sim, várias complementares, mas pode usar a primária e vários outros recursos. Há o preto e o branco também, isso chega a acontecer muito e eles visualizam muita cor na escala de cinza. E aí, também, torna uma coisa gradativa. Geralmente, o segundo grau é assim: ou você trabalha com a cor, sem parâmetro, ou um preto e branco também, mas aí já é uma forma um pouco mais sofisticada, no sentido do adulto. A tarja, até que ponto ela facilita ou dificulta a leitura? Então, de 1a a 4a você usa muito menos. De 5a a 8a você já usa mais. E no segundo grau você já usa não só a tarja, mas você usa muito mais boxes, porque eles são capazes já, quer dizer, já que são adultos; então, você vai lendo e assimilando. De 1a a 4a o box é uma coisa muito rara, geralmente é uma página que vai ao longo da mancha da página, para ter uma leitura mais

139 eficiente, mais ágil, que elas entendam melhor. Porque se você coloca tudo muito partidinho vai tornar muito difícil.

Tais noções, no entanto, não se aplicam indiscriminadamente para cada faixa etária. Dependendo da disciplina a que se refere o livro, toda a arte tem de ser repensada. Explica Rosiane Oliveira Silva: Por exemplo, você fala de uma barata. Quando você ilustra um texto que conta da barata, essa barata pode ter a fama que você imagina que ela tem. Agora em Ciências, não. Ela só pode ser uma barata: ela tem que ter as perninhas tal qual a barata, ela tem que ter a cor da barata. Matemática, por exemplo: difícil para mim, eu acho difícil trabalhar, colocar o visual. Como a gente ainda está muito viciado, de que em Matemática é dois e dois e pronto, então, qualquer coisa que você faça a mais já não pode. Mas eu acho que isso é uma questão pessoal, profissional, porque têm outras pessoas que já adoram fazer Matemática, Física, Química, que trabalham com mil fórmulas.

A subordinação da arte aos objetivos de ensino e aprendizagem não é uma tarefa exclusiva da editoria de arte, mas faz parte da preocupação do próprio editor, como havia afirmado Wilma Silveira Rosa de Moura. Helena de Brito também sabe que tipo de ilustração é apropriada para cada faixa etária: No caso de 1a a 4a série, a gente faz análise das ilustrações, também. É aquela história de figuras partidas: criança de 1a série nem sempre entende metade da figura, pedaço de gente como eu chamo: bota um joelho lá, uma unha, criança não sabe o que é isso, não. Uma bota para dizer que é a perna, que é uma pessoa – não, criança não entende isso. A gente acompanha muito de perto para ver também se não há preconceitos nestas ilustrações, porque já no texto a gente tira tudo isso. Então, preconceito contra mulher... – e eu estou numa batalha particular e isolada, me parece, em relação a preconceito contra as pessoas de idade. São sempre caquéticas, são sempre esquecidas, são sempre meio idiotas, né? Então, essa é uma batalha..., mulher, negro, enfim, esses preconceitos, que, de repente, aparecem na ilustração e que você tem que estar muito atento..., mulher de avental, chinelinho, avó com aquela cara de caquética, o avô mesmo com cara de caricatura, sabe? Aí, a gente tem que tomar muito cuidado mesmo. Essa diferença entre menino e menina, predeterminar quais são as preferências de um e de outro, ou seja, a menina de boneca, e o menino de bola; a menina na cozinha, e o menino fora. Por quê? Essas coisas mudaram faz muito tempo, né? Não refletem a realidade. Uma outra preocupação que a gente tem é em relação a..., é uma coisa engraçada: aparecem as famílias estabelecidas, pai, mãe, avô, avó e os filhos. Tudo muito direitinho, o que também não reflete a realidade. Muito pelo contrário. E acaba criando problema em sala de aula, porque a criança que não tem aquela família-padrão que é apresentada, ela fica muito mal. Ela sente porque, afinal de contas, família é assim. Não, não é. Não é, não! Família é qualquer grupo que conviva e que

140 cuide um do outro e da criança! Enfim, essa preocupação a gente tem muito, para retirar esse tipo de coisa. Outra batalha particular minha, também, é fazer com que a criança tenha espaço para escrever. A minha letra é enorme e eu não consigo escrever em formulário nenhum e em nada dessas coisas prontas, sabe? Não cabe, não cabe! Então essa preocupação de deixar espaço para criança, essa é uma preocupação que eu tenho também.

Também Lizânias de Souza Lima: A ilustração..., por exemplo, se você coloca daqui para cima [da cintura para cima], criança pequena não entende isso. Ela pensa que ele é aleijado. Então, você tem que colocar as pessoas inteiras. Então, a caricatura, por exemplo, é um humor muito refinado. Não adianta você colocar para criança. Ela não entende. Então, os livros têm que ser cuidados nesse nível. A ilustração tem que estar muito clara. Ela não pode estar..., por exemplo, sugerir para criança: “você fala isso, ela continua”. Para criança pequena não adianta. Ou então exercício em que o enunciado começa numa página e vai na outra. Não pode! O exercício começa na página e tem que terminar aqui, para criança pequena. O tamanho da linha de escrever: tem que deixar uma paginona assim. Inclusive, para pré-primário, tem que usar [papel de] 90 gramas. Não adianta, tem que usar 90 gramas: não tem essa de ele escrever só levezinho, se ele quiser, mete o lapisão mesmo. Então, existe toda essa coisa que precisa ver, que as editoras foram adquirindo aos poucos.

Todos esses conhecimentos, ao que parece, fazem parte de uma certa cultura profissional. Em outras palavras, eles não foram adquiridos de um modo “acadêmico”, pela leitura, por exemplo, de obras de psicopedagogia sobre legibilidade e inteligibilidade. Não constituem ciência, mas um savoir-faire. Rosiane Oliveira Silva afirma que esse saber foi se formando mediante “tentativa-e-erro”. E acrescenta: E trabalhando. Muitas vezes essas estatísticas que eles dão: “Olha, o livro está sendo muito aceito assim, assim...”. Ou análise de profissionais, que trabalham direto com as crianças, que dão um retorno: “Olha, foi bem aceito por isso, por isso...” ou “não foi bem aceito, por isso, por isso..., questionaram o livro”. Geralmente, de 1a a 4a o retorno é de muito mais dados visuais do que de texto. E de 5a a 8a já é..., eles falam da imagem, mas falam muito do texto, também. Se gostam ou não. Agora, a criança tem o texto, mas o visual é uma coisa que conta muito.

Sandra Almeida também confirma a hipótese de uma cultura profissional própria, embora não descarte a possibilidade de que na origem tenha havido leituras e estudos de natureza mais científica:

141 Quase todos nossos artistas gráficos se preocupam, por exemplo, em colocar os materiais, na página direita acima ou abaixo, quer dizer, a página da esquerda você reserva para outras coisas. Você coloca ilustração na da esquerda... Isso já esta meio absorvido por uma cultura editorial, hoje isso já é meio regra, um editor já está meio que sabendo disso, isso é meio bê-a-bá. Quer dizer, a leitura [de obras científicas] ficou por tabela incorporada.

Lizânias de Souza Lima, ao contrário, diz que fez estudos específicos, mas não fornece muitos detalhes e logo muda de assunto: Há uma pessoa chamada Paulo Bernardo, que é da Universidade Federal de Belo Horizonte, que trabalhou para gente muito tempo. E a gente leu as obras dele, em que ele fala tudo isso: porque que tem que ser o corpo tal, uso de cores etc. A gente, na medida do possível, a gente tenta manter uma consultoria – porque, antes, a nossa consultoria era mais professor, era quase mais uma pesquisa de mercado. Vamos supor: três professores, os três gostaram; e a gente percebeu que não adianta só gostou ou não gostou. Quer dizer, você precisa também ter a análise de um especialista.

Isabel Simões reforça a idéia de uma cultura consolidada, que pode até mesmo ter tido origem em livros, mas que ninguém mais lê: Tamanho do corpo para leitura, cor de papel, tipo – isso é uma tradição antiga. Quer dizer, mesmo quando não havia grupos editoriais, só havia o editor, o seu autor e a revisão, já havia um certo consenso. E há uma literatura internacional sobre isso: textos corridos para você ler tem que ser corpo serifado, pequenos textos podem ser sem serifa. Existem estudos, sim..., mas são tão antigos e tão consensuais que ninguém mais cita. Livro de curso primário tem que ter letra grande, as crianças não conseguem ler letras pequenas – isso há estudos, mas são velhos. Ou seja, há um consenso, há um conhecimento que já existe no meio; há uma cultura que já indica essas coisas.

Paixão e orgulho Outro aspecto dessa cultura é a paixão e o orgulho pela profissão. Rosiane Oliveira Silva faz de todos os momentos de sua vida o prolongamento de seu ofício: É uma coisa da criação mesmo, em que você vai pensando. Ela não tem um limite, por exemplo, eu sento aqui e vou pensar só aqui. Não, sabe? Eu vou embora, eu posso estar fazendo outra coisa, eu saio na rua, qualquer imagem que eu vejo vai ser um estalo. Então, é um acréscimo ou não. É uma coisa que vai acontecendo. E aí, como você vai pensando sobre, você também tem o lado seletivo, você vai

142 selecionando o que é interessante, que é o lado prático acontecendo, ou você vai jogando fora.

Sandra Almeida diz que a sua relação com o autor não é profissional – entendera “profissional” no sentido de “formal”, “burocrático”. Por isso, exclama: Fazer livros é uma coisa muito apaixonante. O Jacó Guinsburg colocou no livro Editando o Editor uma coisa muito bonita, que é: o editor, ele faz aquilo com paixão. Eu acredito nisso, que ainda mexer com livro é fruto de muito carinho, de muito, muito..., mas não é nem carinho: carinho é uma coisa que não tem... Espera, eu vou achar um termo mais correto... Existe uma postura em relação ao livro de quem tem fé e que vai..., quase todo mundo da equipe editorial tem fé e aposta no livro. Então, são pessoas profundamente envolvidas com aquilo lá. Isso é uma garantia em relação às pessoas que eu conheço, que são editores de texto ou mesmo pessoas que fazem projeto gráfico do livro, ilustradores, e todo mundo naquela ânsia de fazer o melhor. Isso é muito bonito, quer dizer, você sempre está procurando fazer o melhor. Então, sai tudo isso [briga], mas eu acho que é uma briga com amor. Os autores também, eles têm consciência disso! Eu até brinco: a gente faz um percurso inteiro, e volta para o ponto inicial: “E aí, vamos fazer um outro livro?”. Daí começa tudo de novo, essa fase de, metaforicamente, flerte, namoro, noivado, casamento, desquite; e daí começa tudo de novo: flerte, namoro... e aí volta tudo de novo.

Wilma Silveira Rosa de Moura conta a sua experiência de ter assumido a área a

de 1 a 4a séries do 1o grau: É, eu me esforcei muito quando me chamaram para mexer com 1a a 4a, não era uma área com que eu tinha intimidade, era... Porque minha cabeça estava muito mais para lidar com material de colégio. Eu gostava para caramba. Era sempre muito motivo de trabalho. Gosto muito. Sou uma pessoa realmente envolvida. A minha experiência com material de criança era aquilo, mais nada. E o fato de ter tido Pedagogia, né? Porque a minha ligação com a Educação foi sempre muito grande, trabalhava na escola, eu ia à aula. Daí, foi até por isso que eu acabei mudando de caminho. Eu acho que se repete em qualquer lugar, aqui dentro, fora, o que se faz com o professor de 1a a 4a. Existe uma desvalorização tão grande de 1a a 4a série, parece que é uma coisa meio morta. O professor é desvalorizado, o curso é. Na editora, a editoria é uma editoria considerada menor, com material mais fácil. Então, eu hesitei muito: gente do céu! O que que eu vou fazer? O que eu vou fazer aqui com esse tipo de material? Vou emburrecer, não vou ter nem o que ler de interessante! Mas também era um desafio legal porque eu ia mudar de editor de texto para ser editor de área. E desafio é uma coisa gostosa para quem tem 50 anos, né? Aí, eu vou, vou tentar, vou ver o que que dá. Foi então que eu descobri o que é a importância do livro de 1a a 4a, o quanto é difícil fazer um didático de 1a a 4a, o quanto era muito mais

143 fácil mexer com material, mesmo escolher material, para pessoa que tem tipo de formação semelhante à minha. Quando eu caí no mundo do livro da criança foi uma outra realidade. Uma realidade muito interessante. Gosto para caramba. Sou uma pessoa que tem um envolvimento com o trabalho; até um certo ponto eu gostaria que fosse um pouco mais equilibrado. Acabo fazendo disso assim, meio que a minha vida, né?

O didático no livro Em relação ao texto ou “conteúdo” e os anexos que compõem o livro didático (caderno de atividades e livro do professor), há algum acompanhamento de especialistas em Educação? Como a preocupação didática é introduzida? Segundo Sandra Almeida, de n modos. Primeiro ponto: nós temos colaboradores que dão aula – e aí entra particular, Estado, prefeitura. Quer dizer, não é uma coisa que a gente tira do espaço. Segundo ponto – e isso é uma coisa que eu gostaria muito que você colocasse na entrevista: antigamente, havia cursos que eram dados pelas universidades para aperfeiçoamento de professores; hoje, quem está fazendo muito isso são as editoras. Existem cursos com lotação cheia, porque as editoras estão dando cursos muito bons, com professores da USP, da Unicamp, da Unesp, e com autores, muitos deles autores da casa. Então, tanto estamos preocupados com esse aspecto pedagógico que a gente está em contato o tempo inteiro com o professor, quer dizer, não é uma abstração para a editora Ática. E a editora procura estar sempre sabendo o que está acontecendo nos órgãos [de governo].

Para João Guizzo, quem determina o aspecto didático dos livros é o próprio autor, porque o autor é que normalmente está em sala de aula; ele tem mais contato, ele sabe mais. Então nessa parte da adequação do conteúdo à faixa etária, a série em que o aluno está, a gente se baseia muito na experiência do professor, nas pessoas que a gente consulta e no trabalho do autor mesmo. Já o profissional do texto não pode interferir muito, ele interefere mais na formulação, no tipo de linguagem usado.

Lizânias de Souza Lima fala em consultores e analistas que dão a chancela pedagógica, mas também fala em pessoas da própria editora que “formação pedagógica e experiência”: Nós temos consultores, pedimos para analistas analisarem. Sempre procuramos fazer uma análise assim: pegamos um indivíduo que tem um conhecimento teórico grande e pedimos para professores. O professor, embora não saiba dizer porque não gosta daquilo, mas ele

144 diz “gosto” ou “não gosto”, “ah, eu acho que isso não dá certo”, e é esse professor que vai escolher o livro. O analista conhece Pedagogia e vai dizer: “Olha, esse livro, tem um problema aqui de seqüência, ele pula daqui para cá, depois ele volta. Na verdade, tinha que ser o contrário”. Ou: “criança dessa idade não consegue fazer esse raciocínio”. E internamente nós temos pessoas que também têm formação pedagógica, que têm uma certa experiência. Então elas falam: “Olha, esse texto aqui, para 1a série, só o fato de ter três páginas – 1a série, o aluno está aprendendo a ler, ele soletra ainda –, eu não posso dar um texto de três páginas”. Não posso dar um texto em que está cheio de aposto. Ou que tenha um período com cinco frases. Por exemplo, textos para 1a série, textos de leitura complementar para 1a série: procura-se nunca usar com “l”, porque o aluno está aprendendo isso ainda. Para quem é alfabetizado pelo método silábico, o pla, ple, pli, plo, plu, ou o pra, pre... ele vai ver lá depois. Então, você cria uns textinhos em que não aparece esse tipo de sílaba. Depois, você vai criar outro textinho lá na frente que já aparece..., quer dizer, isso para quem adota esse método. Agora, o construtivista diz que não, que você tem que enfiar qualquer palavra, que o problema é o sentido geral. No meu caso, é bem mais cômodo. Eu estou no 2o grau, os problemas são mais de conteúdo, de clareza, de coerência. Não há mais esse problema de idade. Supõe-se que o aluno já está no lógico-abstrato. Outro problema é de sacrificar o conteúdo em função da clareza. Vou te dar um exemplo simples: estamos há muito tempo a falar da divisão, que as pessoas não são iguais na sociedade, explicar o que é sociedade e classe social. Classe é um conceito muito difícil e nós colocamos “pobre” e “rico”, porque pobre e rico é uma coisa que, intuitivamente, a criança sabe. Depois, tentamos concretizar um pouquinho mais esse “pobre” e “rico”. Geralmente os “pobres” são empregados. Os “ricos” geralmente são industriais, fazendeiros e tal – para aproximar mais um pouquinho de classe. Quer dizer, entre a precisão do conceito e o didático... Ou você vai explicar o que é um município. Se você quiser dar uma definição muito política, de acordo com a Ciência Política, você não consegue explicar. No entanto, é o que consta no programa de 3a série, às vezes, até de 2a série. Então, a explicação que você vai dar do que é um município, ela tem que ser distorcida em função do didático, porque a criança não vai entender a concepção política de município. Se eu fizesse o currículo talvez tirasse isso da 2a série. Mas se está na 2a série e tem que colocar porque está no currículo, então você vai fazer um esforço muito grande: vai usar muita imagem, a imagem que ele vai ter de município vai ser mais espacial, você vai mostrar no mapa, vai ser mais situacional do que propriamente a noção de hierarquia de poderes. Então, é uma loucura isso. Aí os caras vêm e falam: “Está errado!”. É, sim, mas você diria isso de que jeito? Então, a crítica do livro didático, muitas são fundadas, porque são coisas mal feitas. E outras são só uma questão de não saber diferenciar o que é um conceito elaborado cientificamente e o que é um livro didático.

Isabel Simões também aponta para a figura de colaboradores que dão suporte pedagógico. De 5ª a 8ª e o 2o grau, isso está um pouco menos formalizado, mas há sempre. Quer dizer, há leituras críticas feitas por professores, há o

145 acompanhamento..., nesse material, nesse trabalho de copy, de material adicional, recorre-se muito a professor para fazer isso.

Mediação do mercado Mas Isabel Simões prossegue: Agora, na minha visão, isso é permeado pelo mercado mesmo. Quer dizer, a preocupação mesma com o ensino ou com a pedagogia, ela é intermediada pelo mercado: o que tem possibilidade de ser aceita, o que poderá entrar sendo novo e o que não poderá. Todas as outras preocupações que existem, elas são permeadas pelo mercado. Agora, o que se tem é aquela coisa que a gente já sabia: os profissionais que trabalham diretamente com o material, eles são mais preocupados com a qualidade desse material, com o que esse material vai proporcionar ao aluno ou ao ensino, do que os profissionais que estão mais afastados da própria feitura: gerentes ou comercial. Então, uma preocupação da qualidade do livro mesmo e que vai além da expectativa de mercado – ela está na cabeça de cada profissional que trabalha com esse material, e isso posso dar testemunho pessoal e testemunho de observação. Há na Ática uma grande preocupação com a qualidade do material. A qualidade de informação, a acessibilidade do aluno, o fato de ser um material que o aluno vai ler com proveito e prazer – isso é uma profunda preocupação dos profissionais. É uma preocupação da empresa intermediada pelo mercado.

Todos esses profissionais, que têm muito orgulho do que fazem, a ponto de muitas vezes se identificar completamente com a empresa, ser-lhe porta-voz, não são, porém, visionários românticos. Têm a plena consciência de que também prestam tributo ao deus-mercado, ao qual o seu trabalho está subordinado. A empresa não se filia a nenhuma ideologia ou corrente pedagógica; ou melhor, o mercado é sua ideologia. Se lançam vários livros didáticos de uma mesma disciplina para as mesmas séries é porque há nichos de mercado para cada coleção. É indústria cultural, sim. Mas esses trabalhadores também acham que essa caracterização não pode desqualificar automaticamente o seu trabalho e o fruto do seu trabalho. Perguntado se a Ática tem uma concepção educacional própria, João Guizzo responde de imediato: Não, isso não. Realmente, o pensamento educacional, a ideologia, a metodologia – isso tudo tem que atender à necessidade do mercado. A gente procura ter diversas coleções em cada área, diversas coleções. Assim, por exemplo, um livro com uma visão um pouco mais tradicional, um livro com uma visão mais avançada, mais crítica, assim por diante. Então, se você tem três, quatro, cinco coleções, a área está

146 praticamente atendida, desde que se tenha uma venda boa, porque se eu tenho três coleções, mas nenhuma vende, então tem espaço para outras.

Para Helena de Brito, a resposta também não é diferente: Há aqueles [livros] que são mais tradicionais, há os menos tradicionais e agora, recentemente, há os que estão trabalhando na linha construtivista. O que a gente tenta fazer é atender ao mercado, né? Então, há os livros mais “fortes” – como se dizia na nossa época, “esse livro é forte, essa escola é forte” –, uma exigência mais séria, mais exigente em relação ao conhecimento gramatical, mesmo; outro mais solto, mais brincadeiras, mais desafios para criança. E a gente está agora com um livro publicado, que, no começo a gente sabia que não ia ter um público muito grande, mas que está aumentando o público dele, que é o ALP, que é linha construtivista, que está atendendo a uma demanda do mercado agora. Pelo menos uma grande parte do mercado está muito preocupado com isso e não existe material nem livro didático, e os professores são..., não estão formados para isso, mesmo. É uma questão de formação do professor, mesmo. Nesses livros é..., meio que suprem muito pouquinho essa carência do professor. Quer dizer, o livro didático está cumprindo uma função que não é do livro didático, vamos e venhamos, né? Mas que, enfim..., a gente está atendendo o mercado mesmo.

Lizânias de Souza Lima chega a apontar para a necessidade, do ponto de vista do ensino mesmo, de vários tipos de livro: Há alguns livros, por exemplo, que em algumas escolas a gente nem divulga. Porque a gente sabe que é um livro muito simples, muito bitolado, que lá a coordenadora vai dizer: “Não. Isso aqui é muito bitolado, muito decoreba”. Mas, ao mesmo tempo, você vai lá no interior do Nordeste, a professora quer exatamente aquele, que ela só sabe trabalhar assim: ela quer respostinha, ela quer tudo certinho, ela não quer problema, né? Então, é uma coisa bem bitolada. Mas é isso que elas sabem fazer. Então, você sabe que esse livro vai vender mais no Nordeste. Pegue Minas Gerais, cheio de teoria e tudo, esse livro não adianta, né? Não vai vender. Então, existe coisa que você sabe que pedagogicamente é ruim, mas o professor só sabe trabalhar com aquele livro. E não adianta você querer, como agora, o governo está fazendo avaliação de qualidade: não adianta você impor um método para o professor que ele não sabe usar. Vai ficar pior a emenda que o soneto. É melhor um livro que ele consiga se mover com ele do que um livro que ele não entende. Ele não entende o método, não entende a proposta.

Wilma Silveira Rosa de Moura vai além e afirma que o fato de certos livros atenderem a um mercado mais convencional, mas bem amplo, possibilita realizar edições de obras mais arrojadas:

147 Na verdade, o que eu tento é ter dentro da minha linha de produtos, livros que contemplem as necessidades das linhas pedagógicas que estão em voga. Então, por exemplo, eu tenho materiais de linha bastante tradicional, apresentação de conteúdo pronto para ser memorizado, que é o que sempre se fez. São os livros que realmente encontram boa vendagem no mercado. Paralelamente, nesses mesmos livros, a gente tem agregado a esses materiais complementos pedagógicos que tentam dar para o professor..., dar um espaço para pessoa que sabe trabalhar de uma maneira mais aberta, que sabe trabalhar de uma maneira mais pessoal. Então, estamos com uma coleção grandona do ano passado, para todas as áreas. Ela tem 40 volumes, com quatro áreas, com a versão consumível e não-consumível para 3a e 4a série, com caderno de atividades, com materiais complementares. Então, a gente colocou, por exemplo, maquetes para o aluno montar nos Estudos Sociais; umas fichas de pesquisa em que aparecia o mapa do Brasil, uma região em destaque, naquela região um Estado e no verso da fichinha, então, os dados específicos sobre aquele Estado: população, área, atividades econômicas, rios, relevos. É um kitzinho para o aluno fazer... Fizemos um jogo de palavras em Português para criança ir montando, montando frases, montando textos. Ou seja, o professor que quisesse, ele podia sair do livro. E ele sai fazendo coisas paralelas. Isso é uma postura nossa, veja, o autor acabou não trazendo isso, nós fizemos e nossos autores concordaram, assumiram e a gente agregou, então, à coleção. Ao mesmo tempo eu tenho, por exemplo, material de Português..., eu tenho certeza que é o material de Língua Portuguesa mais avançado dos livros publicados hoje. Nós fizemos um lançamento, o ano passado, de um material chamado Buscando a escrita, que é de uma autora que trabalha no Laboratório de Pesquisa de Línguas lá da USP, e é orientadora no [Colégio] Galileu Galilei. Ela conseguiu aquilo que eu achava que era impossível, que é fazer um livro com essa orientação: o livro não tem uma única resposta. O livro não tem um nada, um único dado contra. Ele trabalha com ortografia na base da estatística. A criança, ela trabalha assim..., cada criança traz dez palavras com uma determinada característica. Os professores na classe acabam ficando com um rol de 400 palavras com a mesma característica e podem analisar a ocorrência de um determinado fenômeno na língua, quantas vezes aquilo, para ver a regularidade, procurar a regra. Então, é um material assim... É uma coisa louca! Mas é belíssimo o trabalho. Eu sei que é um trabalho para meia dúzia. Um trabalho que assim..., muita gente vai adorar. A crítica vai só tecer elogios, mas na hora de vender, eu sei que vai vender para um número muito reduzido de escola. Mas vale a pena, nós temos que bancar esse tipo de coisa. Tem que existir esse tipo de material. Isso em Língua Portuguesa a gente já conseguiu fazer. Nós temos um material numa linha – não é tão radical –, assim, semelhante, na área de Matemática, que tem pouco exercício. Ele não é reconhecido como tal pelo professor, porque ele não consegue trabalhar. Nós temos livros de diversos destinos. O que eu quero fazer? O que eu tenho que fazer? Como a Ática é uma editora que vende muito, ela pode. As coleções que vendem bem podem bancar as coleções que a gente sabe que vai ter prejuízo. Então, a gente faz. Quer dizer, o que a gente está querendo fazer? É oferecer material para todo o tipo de professores, contribuir para que cada vez mais professores conheçam

148 materiais diferenciados e possam até passar a trabalhar de uma outra forma. Agora, a gente sabe que isso ainda é para um número muito reduzido. E um agravante: todos esses livros, nós temos que fazer consumível. Porque o nosso comprador pontencial, mais seguro, mais direto é a escola particular. A escola particular não pensa em livro nãoconsumível. E esses livros se eu for fazer não-consumível, ele morre. Por exemplo, um livro de Ciências: ele é todo montado em cima de jogos. Como é que eu vou fazer jogos que sejam para fazer no caderno? Não dá. Não tem nem como fazer. Então, é uma contradição dos órgãos do governo, que exigem livros não-consumíveis para poder um aluno reaproveitar no começo do ano. Que eu acho também uma coisa horrorosa: o aluno não tem nem direito de ter o objeto dele, né? Pôxa, um negocinho tão barato, o Estado paga um real, um real e meio, não pode dar para criança, tem que passar para o menino que vem o ano que vem. Aquele livro todo cheio de orelha, um livro feio, rasurado. É um absurdo essa exigência de recuperação, de reutilização do livro. E na hora que eles vão fazer avaliação, dizem: “Ah, os exercícios são muito repetitivos...” A gente não tem saída. Não tem saída. O material não-consumível é aquilo mesmo. É pergunta e resposta. É pesquisa. Quando você manda fazer pesquisa, você tem que supor que o professor tem de onde pesquisar. Não adianta você mandar fazer pesquisa do nada. Não existe material de referência ao alcance do livro de 1a a 4a. Não existe enciclopédia, revista, publicação que a criança vá lá e entenda, que ela leia e ela traga a resposta. É difícil, é raríssimo. É muito difícil obter esse material. Você tem que tomar cuidado na hora de pedir pesquisa. Você fica se debatendo com essas duas coisas.

Crítica da crítica O desabafo de Wilma Silveira Rosa de Moura é uma queixa de todos:5 sentemse profundamente injustiçados por críticas que consideram levianas. Jaime Pinsky, ele mesmo autor de obra sobre livro didático, é bem taxativo. Bem, eu conheço alguns livros muito interessantes escritos a respeito de livro didático. Há uns trabalhos bem tecnicistas a respeito de livro didático e que são, a meu ver, bastante superados hoje em dia. Mas eu acho que falta muita coisa a respeito do livro didático. Acho que escrever sobre livro didático exigiria, em primeiro lugar, um certo conhecimento do sistema de produção do livro didático, e as pessoas tem um profundo desconhecimento a respeito disso. Em segundo lugar, um conhecimento da realidade de sala de aula também. Freqüentemente, eu vejo as pessoas escrevendo sobre o livro didático e discutindo qual é o livro didático certo, bom, ideal. E são reflexões tão ridículas, eu gostaria de usar esta palavra mesmo, são ridículas! Porque são totalmente descoladas da realidade e quando outras pessoas fazem críticas – “Escuta, suas observações são deslocadas da realidade” –,

5

Todos, isto é, todos aqueles a quem foi perguntado sobre as críticas ao livro didático.

149 eles dizem: “Não, eu tenho que analisar o que seria bom, eu não tenho que dizer que Silvio Santos é bom só porque é o que o pessoal assiste”. Eu já vi argumentos deste tipo de intelectuais relativamente prestigiados.

Isabel Simões também acha que muitas das críticas nada tem a ver com a realidade. Bom, em geral, a gente tende a livrar o nosso trabalho; diz assim: “Olha, eu fiz um trabalho extremamente honesto, o melhor que era possível nas circunstâncias que eu tinha” – e isso nos tranqüiliza. A gente tem mesmo uma visão muito boa de nós mesmos, do nosso trabalho. A gente acha que..., tudo bem, era o que dava para fazer nas circunstâncias que tínhamos, o mercado exigia isso, a editora queria este livro, o melhor que nós pudemos fazer com certeza nós fizemos. Eu acho que profissionais como nós, da Ática, que somos de fato profissionais, que temos alta conta sobre si, a gente encara bem do ponto de vista pessoal. Agora, em geral, críticas acadêmicas são menos bem-vistas. Tendemos a achar que os acadêmicos estão longe e falam de alunos ideais e de um país ideal e que não tem nada a ver com a realidade, com exceções.

Sandra Almeida procura ser mais tolerante e avisa: Eu acho muito bom o fato de a gente estar conversando sobre isso, porque não se tem idéia de que as editoras têm uma equipe de gente pensante, muitos deles, eu diria uma boa parcela, a maioria até, saídos da USP, Unicamp, Unesp, quer dizer, com nível. Porque muitas vezes a gente percebe a Universidade com olhar..., como se a gente tivesse só um enfoque muito ruim, ou dentro de uma orientação muito aquém do esperado. Eu creio que não. Eu acho que, cada vez mais, a gente está mais próxima da Universidade, procurando estar mais junto para poder fazer um material melhor, em conjunto com a Universidade, em conjunto com os professores, com tudo isso.

Mas num outro momento, não se contém: Agora, outra coisa que eu acho importante salientar é o seguinte: muitas vezes, se fala muito mal a respeito de obras didáticas, e o que é visto se contrapondo a isso? “Ah, o meu material é um material que eu mesma faço”. Mas geralmente é xerox deslavado: eu pego e xeroco um pouquinho daqui, um pouquinho de lá... Isso quer dizer que na verdade é um roubo, um roubo em relação ao autor. Então, eu quis falar especificamente isso, porque existe essa coisa de ser contra o livro didático e às vezes não se colocando nada no lugar, se fazendo uma coisa absolutamente destrutiva. Acho que existem livros e livros, editoras e editoras, e acho que isso cabe ao professor, enquanto responsável pelo que ele está adotando, esse papel de saber escolher, saber se informar.

150 A crítica do livro didático não sabe o que é livro didático, opina Lizânias de Souza Lima: A discussão do livro didático no Brasil é muito desfocada, porque o indivíduo critica o livro didático pelo conteúdo. E criticar o livro didático pelo conteúdo é criticar aquilo que ele tem de mais frágil. Então, vou dar um exemplo aqui na área de História. Nós podemos pegar qualquer assunto. Vamos pegar, por exemplo, Roma Antiga. A bibliografia sobre Roma Antiga é uma coisa assustadora, são milhões de páginas. Você tem uma quantidade de documentos, de textos historiográficos e de visões, de interpretações e de discussões entre os historiadores. E essa complexidade você não consegue trazer para o livro didático de maneira nenhuma. Então, escrever um livro didático é fazer uma escolha. Tudo isso que eu conheço de Roma e todo esse problema, vou simplificar. Eu vou reduzir às coisas muito consensuais. Além disso, vou ainda ter que “didatizar” a linguagem. Então, logicamente, se eu pegar pelo critério da produção historiográfica, a cada linha eu posso dizer que não é aquilo. Claro, é óbvio! Agora, eu acho que o livro didático teria que ser julgado pela sua característica essencial, que é o seu caráter didático. Se ele consegue colocar as coisas com clareza, se tem um encadeamento, se respeita a maturidade do aluno. Um aluno de oito anos é incapaz de fazer abstrações, ele é incapaz de fazer múltiplas relações, se você chama a atenção dele para o espaço ele esquece o tempo, se chama para o tempo ele esquece o espaço. Então, às vezes, o indivíduo que não tem essa vivência pedagógica, didática, pensa: “Eu sei História, então para dar aula eu preciso saber mais nada”. No entanto, não é assim. É mais importante, talvez, um professor que não tenha um conhecimento tão profundo – sempre é bom que ele tenha, talvez é até essencial que tenha –, mas, às vezes, um professor que não tenha nem tanto conhecimento assim, mas ele tem uma boa didática, uma boa maneira de expor, ele tem um conhecimento principalmente da psicologia da criança, as etapas de desenvolvimento mental dela, ele acaba tendo mais sucesso do que um que tenha, talvez, títulos etc. e tal. No entanto, as críticas ao livro didático no Brasil pega pelo conteúdo, que é o lugar mais fácil. Pelo conteúdo, qualquer livro aqui eu posso dizer que está certo ou errado: “Ora, imagina, isso aqui não é assim”. Lógico que não é assim, nós estamos sabendo, também! Só que você tem oito páginas e você vai falar para uma criança de 5a série. E, às vezes, escrevo o livro me dirigindo quase que ao professor. E o professor também embarca nessa. Ele gosta do livro, ele adota. Depois, o livro cai na mão do aluno e o aluno que tem que ler aquilo não entende. Quer dizer, como é que o livro vai para sala? Então, esse livro aqui para o aluno é inútil.

Um desabafo Este capítulo se encerra com um desabafo de Wilma Silveira Rosa de Moura:

151 Na verdade, os livros para o Estado, a gente não pode fazer um material muito elaborado, muito sofisticado pedagogicamente falando. E você tem que pensar que o nosso cliente é professor. Na verdade, quem vai usar o livro é aluno, mas quem escolhe o livro é o professor. Então, a gente tenta fazer um livro que o professor reconheça como recurso de aula para ele. Professor de Estado é um professor mais mal preparado. É um professor muitas vezes leigo. Numa escola particular você jamais vai encontrar um professor leigo. Na escola pública você encontra aos quilos. Por quê? Com o salário que pagam, graças a Deus se encontrar alguém que queira dar aula. Então, não podemos fazer para escola pública um material que dê trabalho para o professor, que implique preparação de aula, pesquisa além do livro. Porque ele não tem onde, não tem recursos, não tem formação para isso. A gente tem que fazer livros mais mastigadinhos, com a aula prontinha do começo ao fim, que tenha a estratégia já indicada para o professor saber o que fazer. Porque se o professor não tiver outro lugar para aprender, ele aprende no livro. Com um professor de escola particular – salvo exceções –, você não precisa fazer isso, porque a própria escola seleciona esse professor pelo próprio salário que paga. Então, infelizmente, é isso que acontece mesmo. Mas o que a gente faz? Nós respondemos ao mercado que temos aí. A editora é comercial, o papel dela não é realmente sair preocupada com a formação de professores e manter o nível do ensino. Eu tenho essa preocupação com o ensino. A editora quer vender o produto. Então, qual é o meu desafio principal? Fazer livro bom e prudente. Mas foi um desafio meu, da minha turma. Quer dizer, é um objetivo que a gente tem, não fazer livro porcaria. Não tem que fazer livro barato, no sentido de vagabundo. Agora, o que está acontecendo é que existe uma dicotomia imensa entre os avaliadores de livros do Estado, as comissões..., entre o que esse pessoal quer e a escola que está aí. Eles estão fazendo um catálogo, onde vão todos os livros recomendados. As pessoas que fazem parte dessas comissões são pessoas da academia, em geral; então, são pessoas que têm um conhecimento da matéria, um conhecimento importante, respeitável e necessário. Mas, na minha opinião, não são pessoas com qualificação suficiente, porque elas não têm a prática, não sentam em sala de aula, como sendo professor. Então, ela tem uma visão idealizada da escola, a escola que deveria ser. Mas nós não estamos trabalhando com escola que deveria, estamos com a escola que existe. Então, eu estava conversando com uma pessoa que fez parte da comissão de Estudos Sociais, e estava contando das grandes discussões sobre o conceito de tempo em Kant, analisando o livro de Estudos Sociais de 1a e 2a série. Gente! Pelo amor de Deus! Tudo perda de tempo. Vamos conversar coisas mais... Está sendo paga pelo Estado aquela conversa lá, sabe? Vamos conversar coisas... É uma falta de noção do que é a escola. Quer dizer, não adianta. Você tem que ter um livro para o professor que está ali. O professor tem que reconhecer no livro que cai na mão dele coisas com que ele possa trabalhar. Agora, eu acho assim: o que o governo está fazendo com o livro, ele está achando um bode expiatório para o trabalho que ele não fez. Porque é muito fácil você dizer que o livro é que não tem. Os livros vão melhorar à medida que os professores forem melhorando. Vou contar uma historinha interessante. Nós participamos de uma licitação do Projeto Nordeste, que houve no ano passado, para material

152 que foi vendido em nove Estados. Foram comprados livro de Português, de Matemática e de Estudo Sociais, de 1a a 4a série; foi o Banco Mundial que financiou. Então, o Banco Mundial colocou algumas regras. Agora, veja: quando o Banco Mundial entra, as regras são diferentes de quando entra só a FAE. Então, o Banco Mundial permite que você apresente um material consumível para 1a e 2a série; para 3a e a 4a tem que ser não-consumível. Quando entra a FAE, de 2a série também tem que ser não-consumível. Então, quando você faz um material que serve para o Banco Mundial, não serve para a FAE. Então, já começam aí os problemas. Aí, você escreve os materiais, vai lá para as equipes de análise. Então, voltam os seus livros rejeitados. E daí você pega a ficha de avaliação e vai ver esses critérios com que o seu material foi reprovado. Então, você percebe que o mesmo livro, por uma equipe de avaliadores, passa em todos os quesitos e por uma outra equipe, repete em todos. Qual é a objetividade desses critérios de avaliação? Por exemplo, a Língua Portuguesa: para Língua Portuguesa você examina o número de textos, quantidade de textos. É um número de textos que define o livro ou como esses textos são trabalhados? Ou quando você pega, por exemplo, tamanho dos textos, adequados e inadequados para faixa etária. Qual é o tamanho adequado? O texto pode ser desse tamaninho e absolutamente hermético. E eu pego um texto grandão, um conto de fada que a criança já conhece, já faz parte da historinha dela, alguém ajuda a ler, ela lê aquilo numa boa, superinteressada. Quer dizer, o tamanho do texto não quer dizer nada. Mas o livro é reprovado porque eles dizem lá: quantidade de textos insuficiente, textos grandes demais para faixa etária, não-sei-mais-oquê! Se o livro tem quatro pontos negativos, você nem passa para os positivos. Então, o pessoal nem vai ver o que o livro tinha de bom. Porque ele já é eliminado em alguns critérios. Então, os critérios não são bem definidos. Eu gostaria que viessem critérios muito bem definidos em que você pudesse realmente encontrar ali parâmetros para se basear. E que essas análises não fossem de proibição – que é uma coisa absolutamente antidemocrática. Quem não está na sala de aula, não sabe a dificuldade que o professor tem para se basear. Não sabe que tipo de criança ele encontra. Não sabe que tipo de dificuldade ele tem com o tipo de material que está na mão dele. E dizem para ele: “Ó, você pode usar este livro e mais quatro, o resto dos livros não presta” – gente, é ele que tem que ver isso! É ele que tem que saber o que ele vai usar. Agora, você pode ampará-lo, dando para ele: “Olha, quando você for analisar, pense nisso, veja isso, veja aquilo, veja aquilo outro”. Faça..., dê a esse professor a possibilidade de ele fazer o livro e ter um bom conteúdo. E deixa ele escolher o material que ele quiser. Por que isso? Que tutela é essa? Eu acho o fim, sabe? Um absurdo! Eu acho que é um..., ninguém respeita o professor nesse país. Ninguém. O Estado, inclusive. Não estou querendo professor bobo, que não sabe escolher e que pega qualquer porcaria. Não quero professor bobo. Quero professor bom. Acho que a única pessoa que pode julgar se o livro é bom ou se é ruim é quem vai usar. Quem está na academia, está a milênios de distância do livro. E, olha, tem mais Estou cansada de convidar gente da academia para fazer livro didático. Cansada. Ninguém topa. Vai dizer que “livro didático não é importante nesse país”, “não faço porque não acredito em livro didático”. Gente, há lugar nesse país, em que o único livro que chega é o didático. Então, o alcance é muito mais..., em termos de

153 status é muito mais legal você publicar uma tese. Mas em termos de trabalho, em termos de alcance social, você fazer um livro didático é outra história. Você está participando da formação dessa moçada, dessa criançada. Agora, é duro você se expor, porque é fácil você criticar o livro; quero ver escrever. Então, isso eu fico muito irritada. A gente está aqui, a gente está exposta. A gente está aqui levando bordoada de tudo quanto é lado. E querendo arranjar gente boa para fazer o texto. Agora, se não me aparecem autores à altura, eu tenho que trabalhar com os autores que eu tenho. Eu tenho que trabalhar com aquilo que chega, melhorando naquilo que eu posso, interferindo. O que a gente tenta fazer? A gente tenta fazer os livros, os mais honestos possíveis, dentro da proposta que chega. Às vezes, a gente percebe que o livro tem um potencial, que o autor..., e que se você conversar um pouquinho, ele vai por um caminho mais interessante. A gente tenta isso e já tivemos coisas muito interessantes. Muito interessantes. Não é fácil. Realmente não é fácil. Eu tenho uma consciência muito clara de qual é a nossa função aqui: fazer livros que vendam e que sejam bons. Eu quero..., realmente tento fazer livros serem bons. Mas eu tenho a impressão de que o pessoal que faz as análises não é sério. Um pessoal que só quer saber de ganhar dinheiro, que não está nem aí, que não acha qualquer coisa. Um pessoal que nunca acompanhou um trabalho editorial, que não tem a menor idéia de que para fazer um livro didático como esse, que eles rejeitam em cinco minutos, a gente demora uns dois anos para fazer, trabalhando duro.

Capítulo 7 Autor: professor no texto

Jiro Takahashi, ex-Ática e fundador da editora Estação Liberdade comenta: livro didático não dá prestígio para o autor, mas dá dinheiro. Um autor razoavelmente bem-sucedido já está muito bem economicamente. Ele não tem investimentos a fazer. Só o seu tempo. Depois disso, tudo é lucro. [Apud Oliveira et alii 1984, p. 74.]

Por isso, segundo Oliveira et alii (1984), o “autor é uma peça na engrenagem e acaba por ganhar muito dinheiro quando faz a máquina editorial funcionar bem” (p. 74). Talvez rico, mas desprestigiado, o autor aparece para muitos críticos do livro didático como traidor, que vendeu a alma e a Educação no Brasil para a indústria cultural, para o capitalismo, para o projeto de dominação burguesa etc. Mesmo que não seja assim, há, segundo Oliveira et alii (1984), uma distância que separa a prática da confecção dos livros dos ideais pedagógicos do que seria um livro enquanto material de instrução planejado segundo alguns princípios que fizeram sucesso ou que foram cientificamente comprovados como importantes componentes do processo de aprendizagem. Ora predomina a obra de autor individual, com seu “Ibope” garantido e sua experiência inegável, mas sem os conhecimentos pedagógicos considerados adequados; ora domina a máquina editorial, com seu conhecimento profundo do mercado e suas características, mas pouco ou nada ligados aos problemas básicos da efetividade pedagógica. [p. 75.]

Mas quem são esses autores, de quem se faz uma condenação tão genérica quanto moralista? Embora sem pretender quebrar o sigilo bancário de ninguém, talvez fosse interessante averiguar melhor o perfil dessas pessoas, levando em conta também que essas condenações foram levantadas em outras épocas.

155 Autoras, autores O universo aqui considerado de livros didáticos e paradidáticos compreende 2.117 livros (Capítulo 5). Para que esse volume de livros viesse a público, 860 pessoas, identificadas por seus nomes ou pseudônimos, desenvolveram o esforço de escrever: são os autores. É bem possível que o número de autores seja ligeiramente diferente: não se levaram em consideração autores não-identificados ou indicados apenas com um vago “vários autores”, “outros”, “outra” e “outro” (nestes últimos casos ao menos fica-se sabendo o gênero). Além disso, não se pode descartar a possibilidade de dois nomes diferentes (por exemplo, com uma inicial a mais) referirem-se à mesma pessoa. Desses 860 autores, 383 são do sexo masculino; 397, do sexo feminino; e 80, sem identificação – grupo que se compõe de nomes comuns a dois gêneros, prenomes identificados apenas com as iniciais ou identificação apenas pelo sobrenome, nomes estrangeiros (e também brasileiros) cujo gênero não é imediatamente óbvio, além de autores coletivos ou institucionais. O equilíbrio entre o número de autoras (mulheres) e o de autores (homens) dissipa-se quando se verifica o número de ocorrências de cada grupo nesses 2.117 livros. Enquanto as mulheres são responsáveis por 1.545 ocorrências, os homens o são por 1.132 e os sem-identificação, por 377. Observe-se que, aqui, “ocorrência” não se refere ao livro, pois muitos livros têm mais de um autor; nem tampouco refere-se ao autor, já que várias pessoas são autoras de mais de um livro. O número de livros com apenas um autor é de 1.371; 517 livros têm dois autores; 175 livros, três autores; 13 livros, quatro autores; e um livro, cinco autores; além de 40 livros dos quais não se conhece o número de autores. Alguns autores são extremamente polivalentes e prolíferos, com muitos títulos em catálogo. O Quadro 7.1 apresenta a relação dos autores com dez livros ou mais e as áreas/disciplinas a que correspondem seus livros.

156 Quadro 4-1 Autores com mais de dez livros didáticos e paradidáticos publicados Brasil 1995 N° livros

Autor

Área

37

Passos, Lucina

Ciências, Multidisciplinar

32

Carvalho, André

História, Ciências, Estudos Sociais, Português

32

Souza, Joanita

27

Nahum, Erdna Perugine

24

Marote, D’Olim

24

Sargentim, Hermínio

Português, Matemática, Ciências, Estudos Sociais, Multidisciplinar Alfabetização, Português, Matemática, Estudos Sociais, Geografia, Multidisciplinar Português, Matemática, Estudos Sociais, Multidisciplinar Alfabetização, Português

23

Giovanni, José Ruy

Matemática

22

Editorial Ática*

História, OSPB, Geografia.

22

Rocha, Ruth

21

Passos, Célia

21

Teixeira, Mara Suplicy Vieira

Alfabetização, Matemática, Educação Artística, Ciências, Multidisciplinar Alfabetização, Português, Matemática, Ciências, Estudos Sociais, Multidisciplinar Alfabetização, Matemática

20

Claudius

Alfabetização

20

Machado, Ana Maria

Alfabetização

18

Amos, Eduardo

Inglês

18

Martins, Elisabeth Prescher

Inglês

17

Braido, Eunice

Alfabetização, Educação Artística

17

Silva, Zeneida

17

Vargas, Rosilda

Alfabetização, Português, Matemática, Estudos Sociais, Multidisciplinar Português, Matemática, Ciências, Estudos Sociais

16

Jakubo (Jakubovic), José

Matemática

16

Lellis, Marcelo Cestari

Matemática

16

Moraes, Lídia Maria de

Português, Matemática, Multidisciplinar

16

Persuhn, Janice J.

Português, Multidisciplinar

15

Maranhão, Miriam

Português

15

Martins, Gerusa

Português

14

Soares, José Luis

Ciências, Física/Química, Biologia, Multidisciplinar

14

Branco, Samuel Murgel

Ciências, Geografia, Multidisciplinar

14

Chiquillo, Ana Maria C.

Matemática

14

Prado, Ignez B. de Almeida

português, matemática

13

Giannini, Eloisa B.

Português

13

Vissoto

Matemática

157 12

Araújo, Rosi Olga de

Ciências

12

Correia, Maria Emilia

Português, Matemática, Multidisciplinar

12

Chaves, Marta

Português, Matemática, Ciências

12

Fonseca, Albani

Português, Matemática, Ciências

12

Galhardi, Mauro

Português, Matemática, Multidisciplinar

12

Imenes, Luiz Márcio

Matemática

12

Martos, Cloder Rivas

Português, Multidisciplinar

12

Oliveira, Maria do Carmo

Português, Matemática

12

Pereira, Terezinha de Melo

Português, Matemática, Multidisciplinar

12

Rocha, Ana Paula

Português, Matemática, Ciências

12

Sarli, Eny Garcia

Alfabetização, Português, Ensino Religioso, Matemática

12

Sarli, Esther

Alfabetização, Português, Ensino Religioso, Matemática

11

Adas, Melhem

Geografia e OSPB

11

Brassolotto, Mercedes

Geografia, História, Estudos Sociais

11

Portela, Fernando

Geografia

10

Moura, Francisco

Português

10

Porto, Cristina

Alfabetização

10

Silva, Francisco de Assis

História

* Obras feitas pela equipe do editorial da Ática.

O que ressalta de imediato é a fecundidade dos autores polivalentes de 1a a 4a série do 1o grau, produzindo vários livros nas mais diversas áreas e disciplinas. Muitos livros de alfabetização são de autores de livros infantis, com os quais não raramente se confundem. Esse é o caso, por exemplo, das obras de Ruth Rocha, ela mesma uma experiente editora de livros e fascículos. Desses autores polivalentes multidisciplinares, André Carvalho é talvez o mais prolixo. Ele sozinho preenche boa parte do catálogo dos paradidáticos da editora Lê, de Belo Horizonte (MG), e sua produção abrange temas históricos com ênfase nas questões sociais (Reforma Agrária, Racismo, Subdesenvolvimento, Direitos da Mulher e Poder são alguns de seus títulos), mas também faz incursões no terreno da arte (Arte e Cinema) ou das Ciências (Astronomia, Drogas e Doenças Venéreas). Enquanto uns são polivalentes, outros são altamente especializados, escrevendo sempre sobre e para a mesma área/disciplina e para as mesmas séries. Francisco de Assis Silva, por exemplo, é autor de uma coleção de dois livros intitulados História do Brasil, para 1ª série, e uma outra de dois livros intitulados História do Brasil – Colônia e História do Brasil – Império e República, todos para o 1° grau. Da mesma forma, ele

158 escreveu duas coleções de História Geral para o 1° grau: a que é formado por dois livros intitulados História geral e a que se compõe dos livros História geral – Antiga e Medieval e História geral – Moderna e Contemporânea. Também escreveu, para o 2° grau, dois livros denominados História do Brasil. José Ruy Giovanni é autor de várias coleções de livros intitulados A conquista da matemática, algumas das quais em parceria com seu filho José Ruy Giovanni Jr. Biologia merece exposições variadas por José Luis Soares, em duas coleções, da Scipione, para o 2° grau. A primeira é formada por:  Biologia básica. Volume 1. Células/tecidos/embriologia;  Biologia básica. Volume 2. Seres vivos/estruturas/funções; e  Biologia básica. Volume 3. Genética/evolução/ecologia. A segunda compõe-se de:  Biologia. Volume 1. Biologia molecular/citologia/histologia;  Biologia. Volume 2. Funções vitais/embriologia/genética; e  Biologia. Volume 3. Seres vivos/evolução/ecologia. Por fim, como que a resumir tudo isso, o autor também publicou pela Scipione o livro Biologia. Volume único, para o 2° grau.

Os prestigiados Setores intelectuais universitários costumam torcer o nariz para essa capacidade de escrever sobre temas diversos ou, inversamente, de escrever várias vezes sobre um mesmo tema. Eis a prova do comercialismo inescrupuloso desses autores, que vendem alma à indústria cultural! Há, porém, outro grupo de autores de livros didáticos e paradidáticos a quem se dedica um tratamento todo especial. Esses autores têm lugar assegurado na coluna social acadêmica e o lançamento de seus livros torna-se ocasião para talk-shows na TV e resenhas em jornais e revistas. Não são exatamente profissionais da área: raramente cumprem os prazos ou o tamanho do texto acordado com o editor. O filósofo francês Gérard Lebrun entregou à editora Brasiliense os originais de uma biografia de Pascal tão grande que não restou outra alternativa senão diminuir o corpo do texto de 11 para 9 pontos – e isso numa coleção (“Encanto Radical”) em que se exigia estrito cumprimento do tamanho do texto, cerca de 90 laudas e, em todo caso, nunca acima de 100.1 O grande

1.

A obra em questão é Gérard Lebrun, Blaise Pascal. Voltas, desvios e reviravoltas, São Paulo, Brasiliense (col. Encanto Radical n° 26), 1983. Mesmo composto em corpo 9, o livro tem 132 páginas (mais quatro de publicidade), cerca de 20 páginas a mais do que o padrão da coleção.

159 sucesso de Marilena Chaui, O que é ideologia – da coleção “Primeiros Passos”, que pode ser considerada um dos ancestrais dos paradidáticos –, também da Brasiliense, não ficou tão grande como o de Lebrun, mas a obra ali anunciada, da mesma autora, O que é repressão sexual, teve de ser publicada como um livro “comum”, tamanho normal (14 cm x 20,5 cm), com 235 páginas, sob o título de Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida, em 1984, quatro anos após o anúncio. A menção a esses autores não vem por acaso. Em julho de 1982, a revista IstoÉ, anunciando o lançamento “nos próximos meses” (sic!) do “livrinho sobre repressão sexual”, comentou a respeito da participação desses intelectuais nesse mercado então considerado muito “comercial”, ou seja, sujo: [...] os primeiros a protestar contra o livrinho pioneiro [O que é ideologia] foram os próprios alunos de Marilena [Chaui]. Achavam o fim da picada uma filósofa se misturar com literatura de divulgação. “Eles me diziam”, conta Chaui, “que eu tinha que escrever livros como os de Lebrun”. [...] Semanas depois, os inflamados aspirantes a filósofos se acalmaram. Aterrissava mais um título da coleção Primeiros Passos, O Que É Poder. Assinado por Gérard Lebrun. [IstoÉ, 21/7/1982, p. 57.]2

As comportas estavam abertas. Desde então, altas personalidades do mundo acadêmico têm cada vez mais freqüentado os catálogos de livros didáticos e paradidáticos. O historiador Carlos Guilherme Mota tem em seu currículo vários paradidáticos de História (A descoberta da América, Revolução Francesa, Tiradentes e a Inconfidência Mineira etc., pela Ática) e didáticos (História moderna e contemporânea e História & Civilização, este em co-autoria com Adriana Lopes, ambos pela editora Moderna). Maria de Lourdes Janotti (A Primeira Grande Guerra, da Atual), Emir Sader (A transição do Brasil e Cuba, Chile, Nicarágua, da Atual), Maurício Tragtenberg (A Revolução Russa, da Atual, e Reflexões sobre o socialismo, da Moderna), Nicolau Sevcenko (O Renascimento, da Atual), José Goldenberg (Energia nuclear: vale a pena?, da Scipione), Evaldo Vieira (A República brasileira – 1964-1984, da Moderna), Paul Singer (A formação da classe operária, da Atual, e O capitalismo, da Moderna), Helieth Saffioti (O poder do macho, da Moderna) e Antonio Joaquim Severino (Filosofia, da Cortez Editora) são alguns dos autores do meio universitário que também se aventuraram nesse mercado.

2. A respeito do impacto de O que é ideologia, que teria vendido em pouco mais de um ano cerca de 120 mil exemplares, ver Hallewell (1985 p. 556).

160 Nele estão também presentes personalidades de outros meios, notadamente jornalistas e escritores: Jacob Gorender (O fim da URSS, da Atual), Marcos Rey (Proclamação da República, da Ática), Clóvis Rossi (Contra-revolução na América Latina, da Atual), Moacyr Sciliar (Sonhos Tropicais, da Companhia das Letras), José Arbex Jr. (A outra América, da Moderna) e Flávio Gikovate (Drogas, da Moderna). A maioria desses livros são paradidáticos e seus temas, como se pode observar pelos títulos, procuram valer-se das especialidades de cada autor. Vale a pena observar que a grande maioria dos temas refere-se a questões históricas e políticas, principalmente sobre a atualidade. Esse é um grande filão dos paradidáticos que, por suas características editoriais, podem abordar temas que levariam anos para serem abordados num livro didático. Não à toa, jornalistas são freqüentemente convocados para escrever sobre esses temas de atualidade. Esses autores ilustres acabaram se acomodando ao processo de produção dos livros didáticos e paradidáticos. Os dois livros da coleção História & Civilização (O mundo antigo e medieval e O mundo moderno e contemporâneo), de Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopes, embora tivesse valido aos autores uma entrevista no prestigiado talk-show de TV, o Jô Onze e Meia, seguem o padrão consagrado de livro didático, com suas seções, divisão de capítulos em hierarquias de intertítulos, fartas ilustrações, vinhetas, tarjas, boxes. Maria Lúcia de Arruda Aranha, autora de livro didático de Filosofia e coordenadora da coleção “Logos”, da Moderna, orgulhava-se em sua entrevista de que conseguira de Marilena Chaui um texto sobre Espinosa que, impresso, resultaria num livro de tamanho padrão, com apenas 112 páginas! Mas a própria Marilena Chaui é também autora de um Convite à filosofia, da Ática, uma portentosa obra de 440 páginas (formato 17 cm x 24 cm), que, por mais que tenha aparência de livro didático, com ilustrações, vinhetas, atividades etc., dificilmente chegará às salas de aula, ao menos nas salas freqüentadas pelo seu suposto público-alvo: estudante de 2o grau. Quando pós-graduandos em Ciências Humanas apressam-se a adquirir tal livro, deve estar havendo algum mal-entendido... Esse é também o caso de História do Brasil, da Edusp, que recebeu o Prêmio Jabuti 1995 de Melhor Livro Didático de 1° e 2° graus. Seu autor é Bóris Fausto, renomado historiador da Universidade de São Paulo, autor de importantes livros da história do Brasil contemporâneo. A obra é sóbria e em suas mais de 500 páginas não há seções habituais de atividades, muito menos o livro do professor. Nem tampouco há, certamente, nenhuma “disneylândia pedagógica”, mas talvez caiba perguntar se há algo ali realmente “pedagógico”. Sabe-se, no entanto, que a obra, embora não conste da

161 bibliografia dos cursos, é recomendado na pós-graduação em Educação da PUC-SP, para alunos que tenham pouca noção de história do Brasil. Luiz Roncari, em Literatura brasileira (1995), também da Edusp, diz no início de suas 640 páginas: Para a realização deste livro recebemos uma única solicitação: a de que, tendo em vista o material de ensino existente, tentássemos mudar o paradigma do livro didático. [...] Para a sua concepção partimos de uma pergunta bem simples que fizemos a nós mesmos: em que livro gostaríamos de ter estudado a literatura brasileira? Foi esse livro que tentamos escrever. [...] [...] Pensávamos esse livro no Brasil, onde a educação vive uma situação crítica [...]. [...] Portanto não poderíamos ater-nos a ela, trabalhar num livro para o presente e participar de uma situação que devíamos combater e fazer todos os esforços para superar. A nossa saída foi pensar num livro para o futuro, em que talvez seu melhor de tempo de vigência fosse o futuro. [pp. 13-14.]

Após esta citação, o livro já retornou à estante onde aguardará o leitor do futuro.3 Os autores profissionais, no entanto, não podem aguardar pela revolução que tirará sua poesia não do passado, mas do futuro. Porque vivem uma situação de mercado – sua atividade não é diletante, mas é ganha-pão! – não podem se dar ao luxo de pensar num livro em que gostariam de ter estudado. Seu público é real e presente. Afirma Gilberto Cotrim, presidente da Abrale (gestão 1996/1988), ao narrar sua trajetória como autor de livros didáticos de História: Um problema que eu diria que é básico é produzir um material que não agrade apenas a você mesmo, que eu acho que isso depende de um certo profissionalismo. Você não pode adivinhar simplesmente o que contenta uma pessoa, o outro. Quem seria esse outro? No meu caso, esse outro é o aluno em sala de aula e o professor. O livro, quando você produz..., você não produz para um gueto. Você produz tentando atingir um aluno médio, um aluno médio brasileiro.

3.

O mesmo autor, que nos anos 70 participara com Antonio Mendes Jr. e Ricardo Maranhão, da elaboração de Brasil História. Texto e consulta, um “quase-didático” da Brasiliense, apresentou um balanço dessa experiência em 1979, durante a 31a Reunião Anual da SBPC, realizada em Fortaleza (Roncari 1980). Ali ele reconheceu que a obra, ao pretender apresentar uma abordagem que fosse alternativa à história “oficial”, “patrioteira e hagiográfica” (p. 46), acabou por “se fechar numa compreensão um tanto quanto acabada da história” (p. 48). Mas essas limitações eram “limites [...] em boa parte dados por uma conjuntura à qual ele [o livro] se prendeu muito estreitamente. Fizemos um livro de oposição, o que não é um mal em si mesmo, mas de uma oposição que procurava apenas os pontos em comum, que na maior parte se definiam pela negativa, pelo contra, mas que ainda não discutia suas diferenças internas e nem suas divergências” (pp. 47-48). Roncari talvez quisesse dizer que aquela coleção ainda não constituía o livro para futuro. Mas certamente era um livro do presente, com todas os vícios que isso pudesse acarretar.

162 Percursos Todos os autores entrevistados são, de certa forma, profissionais. Têm estrutura adequada para desenvolver seu trabalho, o que inclui, muitas vezes, escritório próprio fora de sua residência, com telefone, fax, computador, biblioteca e até funcionário. Todos já foram professores de 1o ou de 2o grau, em escolas particulares ou em redes públicas. A maioria deles tem a firme convicção de que sem essa experiência jamais poderiam elaborar um material didático. Mas, alerta Gilberto Cotrim, não basta ter sido bom professor: Eu conheci muitos professores que são excelentes transmissores de conhecimentos pela via oral, a partir da exposição oral, mas que não conseguem materializar aquilo num texto escrito. Sistematizar num texto escrito, com ordenação lógica, mantendo um lado coloquial da linguagem e sem abusar desse coloquial não tem nada a ver com a transmissão oral. O livro é texto. Conversando com um colega autor, quando dava algum problema de texto, ele dizia: “Aí, eu quis dizer tal coisa”. E aí a gente falava para ele: “Mas você não vai poder estar junto com o livro para complementar a informação”. O livro tem que dizer por si próprio. O autor é professor no texto.

 Francisco Marto Moura, área de Português Eu fiz Letras na USP, terminei em 1972. Comecei a dar aula no primeiro ano na periferia de Osasco [Estado de São Paulo]. Trabalhei muito tempo com colégios estaduais. Depois, eu fui trabalhar no supletivo. Gostei muito dessa experiência no curso supletivo do Santa Cruz, que era uma escola experimental, que exigiu muito em termos de elaboração de material. Trabalhei em escolas particulares e em cursinho pré-vestibular, no AngloLatino, no curso Politécnico. Trabalhei, também, no 3o grau na IberoAmericana. E voltei depois para o 2o grau e me encontro afastado de escola secundária há cinco anos. É interessante a minha trajetória. Eu fui trabalhar no Santa Cruz com o Jiro Takahashi, que era editor de livros didáticos. Nós discutimos muito a questão do livro, a produção do material. Nessa época ele me convidou para fazer leitura crítica. Durante dois anos e meio eu fiz leitura crítica de livro de Português. Depois de um determinado tempo ele me propôs: “Chegou a hora de você escrever o material. Já que você criticou durante muito tempo, então que tal você produzir o material?”. E eu estava meio descontente com o material que havia. E estava também já acostumado a preparar material para o cursinho, o Anglo-Latino. E foi aí que eu convidei o Carlos [Emílio] Faraco, que tinha feito..., era colega de faculdade, a gente tinha uma série de idéias, discutia muito produção de material. Foi aí que a gente começou escrever, em 1977, 78; o nosso primeiro material foi publicado em fevereiro de 1979. Levei dois anos para escrever e o material foi publicado em 79, que foi Comunicação e Língua Portuguesa, material de 5a a 8a série, pela editora Ática.

163  Gilberto Cotrim, área de História Eu sou professor de História, formado pela USP. Anteriormente, fiz curso de Direito, pela FMU [Faculdades Metropolitanas Unidas], depois encontrei o meu campo de trabalho na História. E já trabalhava dentro de editora, como copidesque, que é uma espécie de redator. E gostei desse tipo de trabalho, de lidar com a divulgação de conhecimentos, dessa possibilidade de você levar conhecimentos a um público maior do que aquele do especialista. E aí comecei a escrever: fui convidado pelo editor a produzir uma tentativa de primeiro texto didático na área de História. E a coisa foi indo. De uma maneira geral, eu tenho um percurso muito diferente da maioria dos colegas autores. Por quê? Porque eles começam, em geral, como professor em sala de aula. E um professor relativamente bem-sucedido na sala de aula, produzem o seu material de ensino, uma apostila, alguma coisa. Levam essa apostila para o editor. Eu tive um percurso diferente: eu já trabalhava em editora, eu já era um redator. E aí eu comecei a produzir meu primeiro material. Depois eu fui dar aula. Terminando o curso, dei cinco anos de aula, lecionei 1o e 2o grau. Mas eu não vim da sala de aula para a editora; eu já estava na editora. Nessa época em que fui dar aula, o livro estava em elaboração. Para mim foi ótimo dar aula, foi no início da minha produção, ainda em originais, e eu dentro da sala de aula. Quando eu ainda dava aula é que o meu primeiro livro veio ser publicado. Ainda tive a oportunidade de lecionar com o livro impresso na mesma escola. Na editora eu adquiri um conhecimento técnico do que a editora quer. Eu estava do outro lado do balcão. Então, eu tinha uma certa noção das exigências editoriais, da dificuldade..., da própria forma de apresentação de um trabalho. Eu acho que consegui vencer devido a esse trabalho de ser redator, de ter trabalhado com outros livros, conversando com autor.

 Elian Alabi Lucci, área de Geografia e Estudos Sociais Eu sou formado em Geografia pela PUC [Pontifícia Universidade Católica], de São Paulo, e sou autodidata em História. Saí da PUC e fui lecionar no Colégio São Luiz. Em seguida, voltei para PUC como professor da Faculdade de Economia. E como professor da PUC, eu preparei um curso apostilado de Geografia Econômica que, em 1972, se transformou num livro, Geografia econômica para o 3o grau, que chegou até a oitava edição, e que não caminhou porque não tive mais tempo de atualizá-lo. No Colégio São Luiz, onde lecionei, um aluno levou um caderno que eu exigia dos alunos, muito bem-feito de Geografia, para a editora Saraiva. Isso em 1971. O editor gostou, disse-me que dali sairia um livro e se eu tinha idéia de trabalhar no campo editorial. Aí eu preparei do caderno o primeiro livro. O caderno – que eu exigia dos alunos com desenhos, com diagramas, com mapas muito bem-feitos, com textos – basicamente foi o esqueleto da obra. Aí do caderno, eu acrescentei mais uma boa parte de material novo, e o livro saiu junto com esse livro de 3o grau de Geografia Econômica. E, assim, em 72 eu lancei dois livros. Um Geografia para 5a série e o Geografia Econômica para o 3o grau. Os dois livros obtiveram sucesso e eu fui convidado para fazer o segundo volume da coleção de Geografia, que seria o Geografia Regional. Eu fiz o segundo volume e em 73 eu já tinha dois volumes de Geografia, um para 5a e um para 6a, e já estava na segunda ou terceira edição do Geografia Econômica, que passou a ser adotado em inúmeras faculdades do Brasil inteiro. Foi muito bem recebido no Brasil todo. E depois, em 73, eu lancei

164 mais dois livros completando a coleção Geografia da Saraiva, 5a, 6a, 7a e 8 a. A partir daí, eu lancei uma coleção de História. Eu já lecionava História. Aliás, comecei lecionando primeiro História, em 1964, para depois vir a lecionar Geografia. Como autodidata em História, e tido uma boa carga de História no curso de Geografia da PUC, eu tinha habilitação para lecionar História. Então, escrevi. E saí em 74 com quatro volumes de História, que também tiveram uma ótima receptividade. E pronto: aí, vieram convite para que escrevêssemos Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil e uma coleção Estudos Sociais de 1a a 4a. Isso, ao longo de dois, três anos. Chegamos em 77, 78, eu já tinha publicadas as coleções Geografia, História e uma de Estudos Sociais de 1a a 4a, mais o Geografia Econômica do 3o grau, mais um livro de OSPB e um de Educação Moral e Cívica. Então, a editora passou a me pedir cada vez mais originais, eu fui diminuindo o número das minhas aulas, mas permanecendo no magistério. Leciono até hoje, continuo no magistério, trinta e tantos anos no magistério. Mas, diminuí a carga de aulas para me dedicar ao livro, porque a partir daí foram surgindo os convites para viagens, palestras, cursos.

 José Ruy Giovanni, área de Matemática Nasci em Rio Claro, cidade do interior de São Paulo, cursei lá 1o grau; 2o grau aqui [em São Paulo] no [Colégio] Mackenzie. E sou licenciado em Matemática pela PUC de São Paulo. Durante um bom período da minha vida – praticamente 22 anos, 23 até – eu trabalhei tanto na escola oficial como na escola particular. Trabalhei em três colégios estaduais – na época valia a pena trabalhar – e fui professor do Colégio Arquidiocesano de São Paulo e do Colégio Cristo Rei. São escolas particulares, escolas católicas. Em 1975, nós recebemos um convite da editora FTD para fazer um livro sobre Matemática – o Arquidiocesano é um colégio marista e a FTD é ligado aos maristas. Atendendo a esse convite, procuramos colocar a nossa experiência dentro do livro, ou seja, procurar transformar o livro numa aula. O primeiro trabalho realmente foi difícil, porque numa aula você diz, você usa alguns termos que depois você não pode usar no livro. Mas, de uma forma geral, nós conseguimos fazer uma linguagem que atendesse principalmente o aluno. Ou seja, o livro, dentro da nossa concepção, ele não pode atender só o professor. Ele tem que atender principalmente o aluno. Então, se você usa uma linguagem simples, sem que seja errada – uma linguagem, portanto, cientificamente correta –, você tem o grande objetivo do livro que é justamente esse. Então, minha trajetória começou dessa forma, ou seja, colocando nos livros a experiência de sala de aula, e, graças a Deus, obtive relativo sucesso. O primeiro livro foi simplesmente Matemática – de 5a a 8a série do 1o grau. Esse foi o primeiro livro. Dentro do ponto de vista da época, era um livro até relativamente avançado. Hoje, sabemos que é um livro tradicional – claro, dentro do novo ponto de vista do ensino da Matemática. A partir daí, fomos criando novas coleções, 1a a 4a, pré-escola, 2o grau, e hoje temos uma gama muito grande de coleções, claro que procurando sempre dar um passo de forma a dar ao professor, que hoje tem muita dificuldade em reciclagem, essas coisas todas, dar ao professor as novas tendências do ensino da Matemática, mas com o cuidado bastante grande de não quebrar a perna. Então, a gente procura aos poucos ir colocando o professor dentro das tendências do ensino da Matemática, e sempre com uma visão: atender à leitura do aluno, ou seja, fazer com que o aluno seja capaz, se ele faltar numa aula, ou duas ou três, de Matemática, se ele ler aquilo que está no livro, ele consegue entender aquela parte da Matemática que está faltando.

165  Luiz Márcio Pereira Imenes, área de Matemática Eu fiz o curso de Engenharia Civil na Escola Politécnica da USP e ainda estudante comecei a lecionar, fui me envolvendo com a Educação e fui percebendo que o meu negócio não era Engenharia. Na época eu fazia também o curso de Matemática na USP, mas tive que optar e optei pela Engenharia. No fim, eu nunca exerci a Engenharia. Eu fiquei lecionando. Lecionei 1o, 2o e 3o grau, em curso pré-vestibular durante muito tempo e, posteriormente, fiz o mestrado em Educação Matemática na Unesp, em Rio Claro. Então, minha formação acadêmica é essa. Agora, quanto à trajetória que me levou a autoria de livros, é mais ou menos a seguinte: todo professor prepara suas aulas, faz as notas de aula, isso vira uma apostila. No cursinho a gente sempre trabalhou com apostilas. E o primeiro convite para publicar foi em 1972, 73, por aí. Veio da Editora Abril4 para fazer o Abril Vestibular. Depois desse trabalho, nós [Imenes, José Jakubovic (Jakubo) e Marcelo Lellis] fomos convidados pela editora Moderna para fazer uma obra para 2o grau, e foi nessa época, por volta de 72, 73, 74, por aí, que nós três vivemos um processo muito interessante de reflexão sobre a formação que nós tínhamos recebido. Foi aí que a gente se deu conta de que a Matemática tinha história. Isso foi modificando a nossa prática na sala de aula. Foi modificando as nossas apostilas, e a culminância desse processo foi uma obra que nós publicamos em 78, 79, pela editora Moderna, chamada Matemática aplicada, em três volumes e mais os três livros do professor. Essa obra foi um grande sucesso de crítica, mas foi também um grande fracasso comercial. Teve uma única edição e depois de 10 anos a editora se desinteressou em publicar novamente a obra. Mas ela foi uma contribuição que nós demos para..., nessa época o ensino de Matemática aqui no Brasil estava muito marcado pela Matemática Moderna. E, no entanto, a visão que a gente dava era muito diferente, com muitas aplicações da Matemática, com muita história da Matemática, mostrando a Matemática em construção, inovando no currículo, inclusive, no currículo de 2o grau. Bom, depois disso o trabalho seguinte, em 1981, foi o Telecurso primeiro grau. E o Telecurso já foi um desdobramento do Matemática Aplicada. Fizemos, os três também, o livro e trabalhamos nos programas de televisão. O trabalho seguinte foi na continuação desse, Telecurso segundo grau. Depois disso, eu já estava fazendo a pós-graduação. Eu estava trabalhando com Nilson José Machado, num colégio, e trocando idéias, – o Nilson já era autor também – falei de uma coleção de livros na época editada pela União Soviética, edições populares de Matemática, são os paradidáticos de Matemática. E a gente dizia: “Não temos nada parecido aqui no Brasil para 1o grau”. Começamos a trocar idéias sobre isso, o Nilson levou essa proposta para editora Scipione, que gostou da idéia, nos deu espaço, e em 1986, dois ou três anos depois disso começado, lançamos aquela coleção “Vivendo a Matemática”, coleção paradidática que hoje tem 15 volumes, com vários autores. Foi um trabalho também gostoso de fazer. E aí uma coisa vai puxando a outra. Quer dizer, desse trabalho fui me dando conta de como o ensino tradicional de Matemática está rigidamente preso a um modelo de apresentação da Matemática – esse foi o tema da minha tese –, um modelo formal, euclidiano, de apresentação da Matemática, que determina o currículo, o livro didático, a apostila do professor, a visão que ele tem de Matemática. E aí eu me dei conta de que no Matemática Aplicada, feito anos antes, a gente tinha rompido com essas coisas meio no peito e na raça, quer dizer, sem fundamentação teórica, sem... foi uma 4.

Na verdade, Abril Cultural.

166 coisa meio de impulso. E aí passou a ser um desafio fazer um trabalho semelhante para 1o o grau. Jakubo, Lellis e eu fizemos esse trabalho para 1a a 4a série. O livro foi publicado em 1992 e, em seguida, Lellis e eu – Jakubo não quis participar desse trabalho (e veio a falecer) – completamos esse trabalho para 5a a 8a série. No meio disso, fizemos uma outra série paradidática, na editora Atual, chamada “Pra que Serve Matemática?”, sempre movidos pelo desejo de modificar o ensino de Matemática.

 Maria Lúcia de Arruda Aranha, área de Filosofia Eu fiz Filosofia na PUC, São Bento, aqui em São Paulo, de 60 a 63, e comecei a dar aula inicialmente na escola pública e depois na escola particular. Não comecei dando Filosofia, não. Comecei dando aulas de História, até que consegui aula de Filosofia. Então, comecei na escola pública. Mas, como era antes da reforma de 1971, era assim: a professora titular dava aula de Filosofia no clássico e eu dava aula no científico. É nesse momento que, eu acho, comecei a realmente preparar um curso de Filosofia – e com a orientação da professora titular, sabe? Eu acho que foi assim importantíssimo esse contato com uma professora já experiente e que teve a generosidade de me fornecer até fichamentos que ela usava em sala de aula. Depois veio a famigerada lei 5.692 em 71, e a Filosofia saiu do mapa. Então, nesse meio tempo, eu dei aula de Psicologia naqueles cursos profissionalizantes. E depois fiquei encostada mesmo, na biblioteca, porque eu era estável no serviço público. E aí eu desisti da escola pública e fui para escola particular e dei aula em boas escolas de São Paulo, que mantiveram o curso de Filosofia, apesar estar extinto, no Colégio Palmares e depois no Galileu Galilei. E era bem essa idéia de que a gente estava desobedecendo a lei, fazíamos questão mesmo de manter o curso de Filosofia. Eu dei aula no Palmares de 75 a 79. Depois de 80 a 86, eu dei aula no Galileu, onde tínhamos Filosofia nos três anos do colegial. Era uma maravilha, porque eu começava no primeiro ano, quase que com um trabalho de leitura de texto, quer dizer, era aprender a ler – compreensão, interpretação, problematização –, e só no segundo semestre do primeiro ano e depois no segundo é que realmente eu entrava em Filosofia. Então, o que aconteceu? Nesse período que eu dei aula, eu preparei, sem saber que estava preparando, o meu livro. Porque não só eu entrava em contato com professores de outras áreas, mas já via quais eram as necessidades para trabalhar com os pressupostos desses professores, acho que fazia o papel mesmo que a Filosofia deve fazer, que é essa busca da interdisciplinaridade e da fundamentação teórica dos pressupostos de cada ciência, de cada fazer. Até que, em 84, eu fui convidada para apresentar um projeto para uma editora de São Paulo. Vou até contar qual, não era a Moderna, não. Foi a Atual. Aí, eu convidei uma amiga minha, a Maria Helena [Pires Martins], que tinha trabalhado também no Galileu dando aula de Estética. Ela também é formada em Filosofia e nós fizemos um pequeno projeto que não foi aceito. A argumentação foi de que o nosso projeto era pessoal demais e não atenderia o público que se visava atender com o livro didático. Em 82, Filosofia passou a ser optativa. Então, começou a surgir o interesse das editoras para publicar. O que é que a gente tinha em livro didático de Filosofia? Quase nada. Bom, aí ficamos com o nosso projetinho, quer dizer, enfiamos a viola no saco e ficamos bem quieto. Até que avisaram que a Moderna estava procurando um autor para Filosofia. Aí,

167 apresentamos o nosso projeto, eles confiaram na idéia e fomos desenvolver esse trabalho. O que foi preciso fazer nesse momento? Na verdade, foi desenterrar tudo que eu tinha de texto, que tinha sido resultado do trabalho daqueles longos anos. E um pouco mais, porque eu tive que montar uma estrutura e rechear onde havia vácuos e fazer esse livro. O que aconteceu? Nós fizemos um livro absolutamente novo, que era uma idéia de não começar pela História da Filosofia. Quer dizer, desenvolver temas e aí, sim, nesses temas fazer a abordagem da História da Filosofia. E como o tempo todo eu trabalhei em escola particular, em que tinha que ter uma preocupação muito grande de atrair a atenção dos alunos, no final o livro apresenta um interesse muito grande. As pessoas gostam de ler. Isso eu digo assim, sem falsa modéstia, porque eu acho que a gente abriu realmente um caminho, para fazer um livro que fosse minimamente interessante. Até porque a gente tinha que convencer o aluno de que Filosofia é uma coisa boa, interessante e importante. Então, a primeira versão do Filosofando saiu em 86, como resultado de um trabalho longo em sala de aula. Acho que foi mais de um ano que a gente levou escrevendo.

 Marcelo Lellis, área de Matemática A minha formação é de bacharel em Matemática, pela USP. Comecei a dar aulas e fazer pós-graduação, mas aí acabei ficando só com as aulas e muito interessado em ver como é que se podia aprender Matemática de uma maneira razoavelmente simples, vendo que os alunos normalmente tinham os mais sérios problemas. E aí, nessas tentativas de ensinar Matemática, eu acabei escrevendo apostilas e outras coisas assim, e no fim acabei sendo convidado por um outro colega para escrever um livro didático, porque a gente acreditava que poderia expor Matemática de uma maneira que todo mundo aprendesse. Isso não é uma ilusão, claro. Daí começamos a escrever livros, e eu acabei, nos últimos cinco anos, ficando só em função de livros, quer dizer, ganhando a vida a partir do que eu escrevo, só. No momento é assim. Ah, isso foi nos anos 70, começo dos anos 70. Eu dava aula no 1o grau, no 2o grau e no 3o grau também. Eu também trabalhava como coordenador de Matemática de um colégio, que tinha de 1a a 8a série. Então, deu para ter um conhecimento dos alunos e do aprendizado deles numa faixa bastante ampla, um espectro bastante amplo, uma faixa etária bastante ampla. E no outro colégio eu trabalhava com o 2o grau e trabalhava numa faculdade particular, então dava para ter uma visão global do aprendizado de Matemática das pessoas. Inclusive da rede pública: quando era estudante, fui professor na rede estadual. Também era professor no noturno, a maioria dos meus alunos eram operários que trabalhavam durante o dia. Olha, é fantástico quando você é um novato, eu tinha 20 anos naquela época, e eu dava a mesma aula de Matemática para o pessoal que estava no noturno da rede pública e para o pessoal da rede particular, que eram estudantes de 13 anos, e eu não percebia que eram diferentes! Quer dizer, no começo eu não sabia que eram diferentes as apreensões, a maneira de encarar, a utilizar o sentido que a Matemática tinha. Agora eu sei, mas eu não percebia. Incrível, isso me assombra. Então a gente começou a escrever já tendo um acordo com a editora e até com algum adiantamento, porque o Jakubo [José Jaukobovic] era uma pessoa conhecida no meio, foi professor de cursinho muito tempo etc. Então, o que facilitou foi ter esse adiantamento da editora, que permitiu escrever. Se bem que na mesma época ainda trabalhava no colégio e na

168 [Fundação] Roberto Marinho, fazia os roteiros de Matemática [para Telecurso 1o grau]. Tinha bastante trabalho. Agora, quando a gente começou a escrever o livro, nós planejamos – mas a editora também forçou – que a gente fizesse alguma coisa próxima do tradicional, e não... A gente não teve total liberdade para colocar as nossas idéias, porque eles tinham medo de não vender. Mesmo assim, a gente fez uma coisa tão distante do tradicional que no fim o livro não foi editado por aquela editora. A gente teve que sair de lá com o livro, e uma outra editora comprou os direitos e editou o livro. A experiência foi assim: havia prazos, a gente desrespeitou todos, porque não conseguia escrever nos prazos. A gente escrevia que nem um louco, horas e horas. Sei lá, levou quatro anos para fazer. Havia coisa que a gente escrevia, refazia, refazia, refazia. E havia momentos em que..., coisas da Matemática elementar, que a gente conhecia bem e dava aula bem, na hora de escrever... O escrever possibilitou uma reflexão sobre aquilo e a gente viu que nada daquilo estava claro. Nem para nós, nem para os alunos, nem para os professores, nem para ninguém! Ninguém sabia direito o que era aquilo, o que significava, para que servia etc. Então, houve momentos em que a gente tinha que refletir, discutir, dias e dias, para ver que partido tomar, o que fazer. No fim, a gente pode dizer que pessoalmente, do ponto de vista psicológico, foi um pequeno inferno escrever esse livro. Foi muito doloroso e o resultado foi igualmente doloroso, porque quando ele foi editado, ele era um objeto feíssimo, o que dificultava a leitura... Então, a gente jogou quatro anos de trabalho numa coisa que não satisfez, não pelas idéias, até as idéias eram até boas, não é um livro ruim, mas é... Do ponto de vista do editor, ele tem medo de perder dinheiro. Ele faz um grande investimento num livro e não quer que esse livro seja..., vire estoque e depois seja picado. Então, esse tipo de conflito é normal e o editor não é vilão por causa disso. Além do mais, no nosso caso o editor dava um adiantamento, e esses autores recebiam esse adiantamento e desrespeitavam todos os prazos, porque não conseguiam entregar nos prazos. O editor ficava alarmado com isso também. Eu não acho que o editor estivesse errado em reclamar, em haver esse conflito. Esse conflito é inevitável. Então, faz parte das coisas. Nenhum dos lados é vilão por causa disso, não. Quando a gente tirou o livro de lá, o adiantamento foi devolvido. A outra editora devolveu. E depois nós devolvemos para outra editora com os direitos autorais, e houve correção. Mas se a outra editora não tivesse tido lucros, ela teria perdido esse dinheiro.

Autor diante do editor Editora não é gráfica que imprime o texto que o autor entrega. Mexerá no texto, exigirá reformulações, fará adaptações e estabelecerá cláusulas e obrigações. O autor será autor porque nunca mais deixará de reescrever o seu texto. Relembra Francisco Moura: No início foi muito difícil, porque eu achava que ia apresentar o material e esse material seria aceito totalmente, não haveria necessidade de mexer, em poucos meses esse material estaria pronto. Eu não tinha a mínima idéia do que era fazer um livro. Eu achava que era simples, como eu acho que a grande maioria dos professores pensa. Mesmo professores universitários não têm noção do trabalho que isso representa. Por exemplo, quando eu entreguei o livro, achei que o meu trabalho tinha acabado. Qual não foi a

169 minha surpresa, o trabalho que eu tive depois, com discussão com editor, trocar unidades inteiras. Muitas vezes é aí que começa o verdadeiro trabalho, é no pingue-pongue, vai e volta, de uma leitura crítica para perceber inadequação de linguagem; a gente tem que reescrever; cortes em função do número de páginas; pequenas alterações – isso demora. O primeiro livro de 5a série foi escrito três vezes. Nós fizemos um primeiro material extremamente difícil, inadequado, segundo o editor e alguns professores. O segundo material ficou, digamos, extremamente facilitado; nós chegamos num material mais adequado numa terceira vez. É, então, um trabalho muito demorado, que a maioria do pessoal ignora. E eu percebi a importância, por exemplo, de um assessor editorial, de um editor, do revisor. A gente tinha a pretensão de que não deixava escapar nada, que isso era tudo muito tranqüilo – e não é. Então, foi um longo, um longo aprendizado.

Para Maria Lúcia de Arruda Aranha esse aprendizado significou tornar-se mais consciente dos problemas e dos vícios de linguagem: A gente não tem idéia disso, né? A gente não sabe, por exemplo, o que é um trabalho do preparador, que é um trabalho que eu respeito muitíssimo – é lógico, quando a gente pega um bom preparador. Porque o bom preparador tem que ser suficientemente generoso para saber que tem que contribuir para o texto ficar mais claro, mas que não pode estar querendo ocupar o lugar do autor. Eu já encontrei gente desse tipo, de querer reescrever o meu texto. As alterações [no primeiro livro] foram só de linguagem, por exemplo, em trechos poucos claros ou quando havia vícios de linguagem oral. Isso é muito típico de quem..., de professores escrevendo o seu primeiro livro. Então, eram ajustes que foram, assim, bastante benéficos e que me ajudaram, inclusive, a aprender um pouco mais a escrever. Uma coisa que ficou muito clara desde o início é que a gente não podia fazer parágrafos longos demais; então, se você olhar os parágrafos sempre são curtos. Uma preocupação para ver se o sujeito não estava oculto..., uma preocupação em não fazer frases arrevesadas, que comecem pelo complemento... E uma preocupação na exposição do mais concreto para o abstrato. Nunca começar de chofre com conceitos que possam assustar os alunos, mas sempre ir chegando neles até para eles verem que precisam usar os conceitos e que existe um rigor no uso desses conceitos. Mas partindo, de certa forma, do universo deles. Então, esse cuidado com a linguagem a gente colocou realmente como imprescindível para o trabalho.

Já Luiz Imenes passou por editora que praticamente era quase uma gráfica. E ressalta o amadurecimento do setor editorial e o aprendizado mútuo, do autor e da editora, cuja relação é muitas vezes conflituosa: Como eu disse, as primeiras coisas que eu publiquei foram as minhas apostilas. E apostila sai da mão do autor para a gráfica, ela não passa por uma edição. A primeira vez que eu vivi o processo de edição, ou melhor, que eu tomei conhecimento do processo, da existência desse processo, foi com o Telecurso. Porque o Matemática Aplicada que nós fizemos pela Moderna, ele não teve edição. A editora Moderna na época era uma casinha, uma coisa pequena, estava nascendo, e ninguém acho que sabia muito bem como se fazia livro. De modo que o que nós escrevemos foi

170 publicado, houve uma revisão de português e nada mais. Isso não é edição. No Telecurso houve uma edição, só que quem participou da edição não fui eu, foi o Jakubo. Então, eu não vivi esse processo. Eu fui viver esse processo de edição de uma obra em 86, 87, com a coleção Vivendo a Matemática. Lá é que eu comecei a despertar para isso. Alguns dos volumes da edição fora reescritos sete, oito vezes. É claro que a gente como autor, reage sempre com um pé atrás quando alguém quer mexer no texto da gente. Só que com o tempo você vai aprendendo que essa intervenção, desde que seja séria, competente, de uma outra pessoa na sua obra, e desde que você não saia do lado, desde que você esteja participando disso o tempo inteiro, essa intervenção, ela enriquece a obra, ela é necessária, e eu acredito que é a verdadeira fórmula para se produzir um texto. Hoje, eu..., esse processo se inverteu, quer dizer, se há anos atrás eu reagia quando alguém queria meter a colher no meu mingau, hoje é ao contrário, eu tenho perfeita consciência de que não devo publicar absolutamente mais coisa alguma sem passar por esse processo de edição. Agora, isso não dá para generalizar. A gente nota que quem não tem essa prática reage como eu reagia também. Em suma, tem muita briga entre autor e editor. Então, esse é um processo de amadurecimento, que eu acho que é um processo de amadurecimento do setor. Você vê que a coisa é recíproca, os técnicos de edição tem que conhecer qual é a sua participação no processo. Eles não são autores, eles não podem ser autores e eu não posso ser editor. É aprender a trabalhar em equipe, aprender a trabalhar em conjunto, entender as razões do outro. Por que ele sugere que eu modifique esse texto? Por que essa ilustração aqui não cabe? Por que esse tipo de linguagem – seja ela a linguagem da ilustração, a linguagem do texto – por que ela não está adequada? Essas questões todas a gente vai aprendendo. Agora, as editoras estão aprendendo aos poucos que o mercado vai se tornando mais exigente. Elas vão formando suas equipes também. Eu vejo como as coisas mudaram, hoje você tem pessoas nas editoras que sabem fazer esse trabalho. Quando eu comecei não se investia. Naquela época, editora era gráfica. Editora não editava, editora imprimia, rodava. Em tudo que eu fiz até hoje, eu consigo me reconhecer. Em tudo. Não tive nenhuma experiência negativa nesse ponto. Agora, é preciso ponderar o seguinte: às vezes, o autor briga para estar presente no processo e não consegue. Ele é alijado do processo. Isso eu estou falando de casos que eu conheço. Mas nem sempre ele faz questão de participar do processo também. Às vezes, ele entrega o original e depois quer ver a obra pronta e não quer saber, não participa de revisão e tal. Eu acho que uma condição para a gente se reconhecer na obra é você entender o que é edição. Respeitar esse trabalho, apoiar esse trabalho e estar junto dele o tempo inteiro. Isso dá um trabalho. Ontem, saí da editora às 10 horas da noite, porque eu estava revendo um capítulo do livro da 5a série. Primeira prova. E aí você tem que ter uma atenção, fazer as contas de novo, conferir gabarito, ler palavra por palavra, porque apesar de ter passado pela revisão, escapa, sempre escapa alguma coisa. É terrível. Então, acho que para conseguir isso não é de graça. Dá muito trabalho para você se reconhecer na obra, e outra: acho que para o autor se reconhecer na obra é preciso de fato que seja uma obra, está certo? É preciso que ela tenha algo de novo, que tenha uma proposta, que tenha uma continuação. Se é mais uma, se é para fazer mais uma.... bom, então, eu não vou me reconhecer nunca, porque é igual àquelas que já existem. São erros também que se cometem com freqüência.

171 A dificuldade de traduzir em linguagem escrita – e impressa – o que se costuma dizer em linguagem oral é o que ressalta José Ruy Giovanni, que também descreve os passos da edição depois que um original é entregue: No princípio era difícil. Numa aula você usa uma determinada linguagem para atender aquele instante, uma pergunta do aluno. No livro, essa linguagem às vezes você não pode usar. Você usa na aula uma imagem que para o aluno naquele instante tem um certo valor..., de aprendizagem. Só que essa imagem você não pode colocar no livro, porque às vezes ela não é cientificamente correta. A imagem só serve para aquele instante. Aqui na FTD temos mais ou menos um procedimento assim: nós fazemos a nossa parte que seria a parte inicial, que é fazer os originais. Feitos os originais, eles são levados para o editorial; no caso o editorial de Matemática, onde temos um grupo de especialistas que vão examinar. Além disso, o editorial de Matemática costuma passar esse livro para professores que estejam na ativa, justamente para que eles sintam, para fazer uma crítica, uma análise, se o livro não está muito distante da realidade. Então é preciso colocar o pé no chão. Além disso, nós temos uma equipe que monta, faz a montagem do livro, um projeto. Esse projeto é discutido com o autor, o autor dá suas sugestões. Às vezes, há conflito entre o artista que faz o projeto e o autor que queria uma outra coisa, mas sempre procura-se chegar a um denominador comum. E depois as próprias ilustrações, que são muito importantes – eu considero que o livro tem que ter uma ilustração séria. Embora possa haver ilustrações que sejam infantis, mesmo essas ilustrações devem mostrar um caráter de seriedade, porque a Matemática é uma matéria séria. Além disso, as ilustrações não podem ser colocadas, jogadas à toa no livro, sem que elas digam nada com aquilo que está no conteúdo. Então, aqui da FTD, nós examinamos todas as ilustrações, o autor faz as indicações de fotografias, inclusive. Às vezes, o próprio autor, quando ele tem assim uma fotografia mais específica, o próprio autor tira as fotos. E depois, então, cada colocação no livro é analisado não só pelo autor, mas também pelo departamento de arte para que a gente veja se aquela ilustração, aquela fotografia, diz respeito, está boa e assim por diante. Então, é todo um trabalho em equipe, na realidade. Hoje não é só escrever, colocar no papel, entregar e esquecer. Não, é todo um trabalho de acompanhamento para mostrar justamente a seriedade desse trabalho.

Para além das palavras Também Luiz Imenes ressalta a necessidade de acompanhar todo o trabalho de arte, embora confesse dificuldades em lidar com ilustração, em utilizar a imagem como texto e não apenas decoração: Há um ponto aí que acho que é crítico nessa história: como diz a Sílvia Magaldi [que dirigiu o Telecurso], “nós todos somos da geração Gutenberg, fomos formados na palavra impressa”. E as coisas hoje não são assim, quer dizer, a imagem tem uma força fantástica. E aí, como é que eu faço – no meu caso, um texto de Matemática – como é que eu uso a imagem como texto? Eu não aprendi a fazer isso, eu estou aprendendo e

172 estou aprendendo graças aos meus colegas que entendem disso, que entendem de programação visual, de linguagem gráfica, que sabem fazer história em quadrinhos. Eu vou falar de duas experiências, uma nesse trabalho que a gente está produzindo agora. Essa relação do autor com arte, ela está, nesse caso, sendo intermediada pela editora. Nós fizemos um guia para cada ilustração da obra. Nesse guia a gente coloca todas as características da ilustração, o que ela deve contemplar, como é que a figura dever ser. Bom, no caso de uma obra de Matemática, boa parte das ilustrações é técnica; então, aí não tem nem muito o que inventar, são figuras geométricas. Agora, há uma outra parte de figuras, digamos, técnicas em que há espaço para criação, a gente pede a criação deles, do ilustrador. Você dá as determinadas características que ele tem que contemplar e, contempladas as características, então ele deve ser criativo, bolar uma coisa interessante. Por exemplo, para reproduzir a solução de um aluno com um problema qualquer, a gente, às vezes, usa história em quadrinhos, humor inteligente, educativo. Aí é fundamental a criação do artista. Aí é o espaço de ele criar. Então, isso está sendo... nesse trabalho está sendo conduzido dessa forma. Agora, a outra experiência que a gente teve na relação com a arte, foi na coleção “Pra que Serve Matemática?”. Ela tem uma equipe de ilustradores: Paulo Tenente – é relativamente conhecido, trabalhou na Abril –, o Cláudio Atílio e a Cecília [Iwashita]. Bom, cada uma dessas ilustrações foi discutida com a equipe, os três autores, mais os três ilustradores, discutindo cada uma dessas ilustrações. Quer dizer, no original da gente havia uma indicação do que a gente queria, e sentávamos, conversávamos sobre o que a gente desejava. Então, esse foi um trabalho em que não houve intermediação.

Marcelo Lellis completa as informações de Luiz Imenes, seu parceiro, a respeito da arte do livro que tinham acabado de concluir: Na diagramação, foi feita uma coisa para modificar mesmo a leitura. A proposta de leitura do livro é diferente. Como é um livro para adolescentes, ele funciona assim, a coisa mais parecida em termos de leitura, é a de antigo “Príncipe Valente”, que é um gibi. Na versão antiga, o “Príncipe Valente” não tinha balões, tinha texto e figura, texto e figura. E o livro funciona assim, é para ser lido texto e figura. Figura também é para ser lida. Então, primeiro foi feita uma estrutura de texto e imagem que torna a aparência gráfica do livro diferente, porque é obrigatório que a imagem esteja naquele local. A imagem não ilustra, a imagem é texto. Então, ela tem que estar numa seqüência absolutamente precisa, de modo que você tem que diagramar página por página. E o autor teve que colaborar na diagramação. Todas as páginas tiveram que ser revisadas. É um inferno.

Parcerias Não é rara a co-autoria em livros didáticos. Seja qual for o tipo de divisão de trabalho estabelecido entre parceiros, um aspecto da co-autoria é valorizado por todos: a crítica mútua e constante. Maria Lúcia de Arruda Aranha descreve o sistema que adota:

173 Com a Maria Helena, a gente realmente fez uma divisão de tarefa, porque a Maria Helena dá aula aqui, dá aula na ECA [Escola de Comunicação e Artes, da USP], mas ela mora em Campinas [interior de São Paulo]. E a gente tem contato, mas não é um contato muito freqüente. Então, dividimos tarefas: ela tinha as unidades que ela tinha que trabalhar, eu tinha outras. Aí, a gente trocava idéias em função dessa estrutura inicial do livro, de como ele haveria de ser montado em cada capítulo, quais os critérios que norteariam o nosso trabalho. E depois a gente fazia individualmente e trocava os capítulos feitos. Então, eu lia o que ela fazia, ela lia o que eu fazia e, em função das nossas críticas, a gente ia retrabalhando. Eu acho que a gente tinha muita afinidade anterior, pelo fato de já ter trabalhado junto na escola, né? Em duas escolas, porque ela trabalhou também no Palmares e depois no Galileu. E aí o livro era feito assim, não era tão a quatro mãos. Quer dizer, ela tocava uma partitura e eu, outra.

No caso da parceria entre Luiz Imenes, Marcelo Lellis e José Jakubo, a co-autoria é um procedimento mais meticuloso e complexo, cheio de regras implícitas. A palavra de ordem é reescrever, reescrever, reescrever. É Lellis quem explica: No nosso caso, trata-se de um escrever e os outros dois criticarem. E aí um dos outros reescrevia. Nós nunca fizemos assim: cada um escreve um pedaço e seja o que Deus quiser. Era sempre uma escrita a seis mãos mesmo. Às vezes, um tinha o direito de passar a limpo o final, mas sempre o outro já tinha escrito, já tinha lido a crítica. Por exemplo, agora eu estou escrevendo para o Imenes, né? É um trabalho calmo, tranqüilo, a gente se suporta, as críticas são bem aceitas. Ele aceita as minhas e vice-versa. Vai tudo bem. Com Jakubo, não Aconteciam brigas que eram um inferno. Era terrível. Nós não deixamos de ser amigos, apesar das brigas. É muito difícil escrever um livro solitariamente, porque é necessária a crítica. A crítica é fundamental para você melhorar o livro. Então, eu não me sinto capaz de escrever um livro de Matemática sozinho, porque para eu criticar, preciso de seis meses de distanciamento. Então, eu tenho que escrever, depois deixar seis meses, depois criticar, e aí eu levaria dez anos para fazer um livro. Eu acho melhor escrever com um parceiro que critique e vice-versa. E eu fico muito alarmado quando o parceiro começa a não criticar. Aí, a gente pára, tem uma conversa e fala: “Não é possível, tem que haver crítica. Não é possível que eu esteja escrevendo bem desde a primeira vez”. É fundamental isso. Para fazer um novo livro, a gente faz uma reunião. Cada um vai dando idéias, vai sendo anotadas as idéias. O Imenes é organizado nisso. Então, a gente senta e fala qualquer coisa, na base do brain storm, tudo vai sendo anotado. Depois a gente tem uma segunda reunião com essas idéias já mais pensadas e a gente tenta estabelecer um roteiro do livro. Depois, a gente ainda tem reuniões – quando dá tempo, quando os prazos não apertam – para cada capítulo. Porque aí a gente estabelece o roteiro do capítulo, aí sai uma coisa minuciosa, precisa. O capítulo escrito com o roteiro fica muito mais fácil. Só que, às vezes, na hora de escrever, você se toca que o roteiro não funciona logicamente. Então você escreve de outra maneira. Mas, às vezes, o roteiro funciona e é só o trabalho mecânico de escrever. E a gente escreve bem, diga-se de passagem. Aí é só o outro criticar. Agora, eu digo que a gente tem facilidade para redigir, mas isso não quer dizer que o texto saia bom da primeira vez. O texto só sai bom se depois ele for reescrito, reescrito, criticado etc. Então, eu acho que textos bons são aqueles que são reescritos, reescritos e criticados.

174 Comprovando a fama de organizado, Luiz Imenes chega a mostrar um caderno em que todas as discussões estão anotadas – uma espécie de diário de bordo: Eu vou me referir a esse último trabalho que a gente fez e que vai estar publicado agora em agosto [de 1996]. Essa obra, eu comecei a pensar em 1988. Eu tenho um caderno aqui..., início desse trabalho..., me enganei [folheia o caderno]: “11 de agosto de 87 A Matemática de 5a a 8a série”, e tinha um título que eu tinha posto Matemática e Vida, que acabou virando nome de uma coleção da editora Ática. Nessa época eu estava sozinho; posteriormente, eu retomei isso com o Marcelo [Lellis]. Aí, sim, em 88. Aqui estão... idéias para o título..., características da obra – são anotações assim completamente desordenadas. Tempestade mental mesmo..., você vai botando coisas no papel, as idéias importantes, o currículo básico da nova proposta curricular da Cenp [Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas, da Secretaria do Estado da Educação de São Paulo], que na época era nova. Temas por série, “importante valorizar Matemática e Arte”, “Matemática e Física”, “o livro precisa trabalhar para facilitar o trabalho do professor e do aluno”... Aqui tem um monte de anotações..., eu nem sei mais a ordem dessas páginas, porque eu ia para trás, voltava. Aí, entrou o Jakubo, depois deu uma série de erros. Aí, já é 93. Bom, esse é um registro desse trabalho.

José Ruy Giovanni já teve vários parceiros, mas agora trabalha com seu filho, José Ruy Giovanni Jr. Para ele a identidade de pensamento é fundamental para o sucesso da parceria: Antes de mais nada, é preciso que os dois tenham o mesmo pensamento, a mesma filosofia de trabalho. Hoje, nada se faz sozinho, é preciso que haja realmente um trabalho em conjunto. Quando você quer fazer a coisa sozinho, às vezes você cai do cavalo. Então, é preciso, antes de mais nada, que você tenha alguém que diga para você que esta idéia ultrapassa alguma coisa, ou falta alguma coisa, assim como você pode dizer para ele. Com o meu filho, nós..., talvez seja eu que dê a parte mais científica e o meu filho, a parte pedagógica, embora tenhamos a mesma idéia. Mas para mim ele foi realmente um alento novo, porque ele traz idéias novas. Você sabe, à medida que a idade vai passando, a sua criatividade vai diminuindo queira ou não queira, você vai diminuindo o ritmo de criatividade. E o meu filho trouxe isso. E como ele é professor de Matemática – e, inclusive, acho que ele é novo, – então, acho que ele deve se manter ainda na sala de aula porque a sala de aula é o maior laboratório que você pode fazer, para que você possa fazer uma boa aula. Então, a co-autoria hoje eu acho importante. É uma questão de você ganhar tempo, é uma questão de você ter uma boa visão. Só que você precisa respeitar muito a idéia do outro. Você precisa respeitar as sugestões. Não precisa acatar, mas respeitar, assim como ele deve respeitar. Eu já tive uma co-autoria com um professor da universidade, da Unesp, e eu dizia para ele: “Isso eu acho que está muito além do aluno de nível médio”. Porque eu não posso escrever um livro para dois geniozinhos da sala. Eu tenho que escrever para aquele aluno médio. Mas ele me dizia: “Não, eu preciso fazer isso porque é importante”. Bom, é importante, mas não é a hora, né? E ele não respeitou muito as minhas idéias e a minha experiência vivenciada no ensino de grau médio. Ele procurou colocar muito mais uma idéia da universidade. Resultado: realmente foi o único

175 livro meu que não deu certo. Foi realmente uma decepção. É um livro excelente em termos de idéias, de conteúdo, é um livro excelente. Então, esse livro é chamado de “livro muleta”, ou seja, o professor usa sempre que ele precisa, para tirar dúvidas. Mas ele usa embaixo do braço. Ele não adota para o aluno, porque o aluno não vai saber, está muito além da capacidade do nosso aluno médio. Talvez há 20 anos ele tivesse sido uma beleza. Mas, hoje, dentro da realidade nossa em que você vê, por exemplo, Norte e Nordeste com quase 70% de professores leigos... Então, dentro dessa realidade foi um livro que realmente é muito bom para prateleira, para consulta, mas não é bom para aula.

Francisco Moura forma co-autoria com Carlos Faraco. O princípio da parceria é o mesmo, isto é, crítica mútua para aprimorar o livro: Eu acho que é muito bom trabalhar em dupla. Gosto bastante, apesar de ser bastante difícil. Há uma série de discussões, de conflitos, mas o trabalho é sempre rico, porque planejamos em conjunto. Então, discutimos o tipo de livro, o tipo de texto, nós traçamos um planejamento bem rigoroso do trabalho. A partir daí, há divisão. No caso do 1o grau, nós dividimos exatamente assim: um faz da primeira unidade até a oitava, e o outro faz da nona até a décima sexta. É evidente que cada unidade passa pelo crivo do outro, e nessa hora há muita discussão. Às vezes, cria-se até um impasse. Mas sempre é muito interessante, porque um tem grandes idéias e tem mais dificuldades em colocar estas idéias em prática; o outro já tem uma visão bastante pragmática, né?! E isso a gente percebe que oscila: muitas vezes eu tenho uma visão bastante acadêmica, teórica, e o Carlos [Faraco], não; em outros momentos, ele está passando essa visão. Não que um seja necessariamente assim, ou o outro, assado. Na época que eu estava fazendo pós-graduação, me chamou muita atenção porque eu tinha muita dificuldade, meu texto era muito pouco acessível. Então, a gente tem que reescrever... Então, é muito interessante você sempre ter a visão do outro, o olhar do outro, embora seja bastante difícil. O primeiro material, a gente escreveu junto na editora. A gente dava pouquíssimas aulas e ficava o dia todo na editora escrevendo. Fizemos isto durante dois anos. A gente fazia a divisão de trabalho..., então, toda hora, um terminava um texto, o outro já lia. E isso foi ficando difícil. Cada um tem um ritmo, cada um trabalha na sua casa, no seu escritório, e a gente tem um momento para discussão do material, que é feito em geral depois de cada unidade, ou de duas, três unidades. Jamais a gente faz metade de um livro e passa para o outro ler. As discussões são feitas durante o processo de trabalho. É interessante notar que as pessoas não percebem se quem fez a primeira unidade sou eu, ou a quinta unidade é o Carlos e assim por diante. No 2o grau, o Carlos se responsabiliza mais pela parte de literatura e eu pela parte de língua, redação e gramática – no 1o grau não há divisão desse tipo. Só que os textos são escolhidos em conjunto. Nós escolhemos todos os textos, cada texto é submetido à aprovação do outro. Sempre! Sempre! E é a parte mais difícil: é essa a parte inicial, a escolha de textos. A gente faz sempre... esse é o primeiro trabalho: começa pela seleção, que leva mais tempo.

176 Quem é o leitor? Para quem o autor escreve? Como ele imagina que o seu livro será utilizado? Da definição dessas questões depende a elaboração de propostas propriamente didáticas do livro. Gilberto Cotrim imagina um perfil do “público médio”, em que a figura do professor – ou professora, como faz questão de ressaltar – adquire contornos mais precisos: A experiência da sala de aula, no processo de fazer o livro, é muito importante. É muito importante porque você tem o aluno na sua frente. Sempre tomando cuidado em não querer generalizar aquele aluno que você tem para o seu público do livro. Por exemplo, eu lecionei durante cinco anos: fiz três anos em escola noturna e depois peguei o aluno diurno. Mas é totalmente diferente! Os meus livros, eles não são voltados propriamente para escola noturna. Então, eu não poderia nivelar meu livro pelo tipo de dificuldade que meus alunos apresentaram. O que é esse público médio, o aluno médio? É complicado. Como eu não tenho pesquisa, eu construo dentro de mim, pela minha vivência, como ser humano, o leitor imaginário. E é um leitor duplo: um leitor-professor, que é o primeiro, que vai me ler, que vai..., e o leitor-aluno. Eu escrevo para essa professora – começa por aí, é uma professora, não é um professor... Esta professora tem alguns gostos, tem uma classe social, tem um tipo de saber, tem um tipo de expectativa de vida, tem um tipo de indignação. Eu escrevo para essa pessoa. Ela envelhece, enquanto eu vou envelhecendo também. Ela era mais nova, quando eu era mais novo. Agora ela está um pouco mais velha. Pois, a professora de História para quem eu escrevo, luta pela emancipação cultural. Ela é uma pessoa que acredita na possibilidade de uma emancipação cultural, mas ela não é uma professora militante, de nenhuma facção política. Ela acredita na cidadania, mas é uma pessoa meio calada. Ela é meio, é meio..., ela faz parte dessa maioria meio silenciosa da população, que revela sua cidadania no seu exercício profissional. Ela não está ligada, por exemplo, a um partido – isso é muito importante para mim. Então, no meu livro todo, estou muito preocupado com a opressão do povo brasileiro, com a crítica das elites, mas eu não tinjo meu livro de sangue, no sentido de externar de uma forma, assim, mais ácida a minha indignação com as coisas. Como diz Hobsbawm, o historiador deve estar mais preocupado em compreender o passado do que em julgá-lo. Eu acho que quando você procura compreender, você esclarece um pouco, sobrando espaço para o posicionamento do professor em sala de aula. Esse professor não é de elite, é uma pessoa que trabalha, que vive com alguma dificuldade, mas faz parte de uma classe média brasileira. Ele é um bom professor. Esse bom professor, às vezes dá aula na boa escola particular e também na estadual, na escola municipal. Há muito professor que ora dá numa escola, ora dá na outra. Recentemente, dei uma palestra para professores lá de Tatuí e eram professores que vêm dessas chamadas escolas-padrão, do Estado. São pessoas altamente competentes, gabaritadas, conhecem a História, compram livros. Ih! Não tem dinheiro para comprar muito, mas tem pelo menos os livros básicos, fora livro didático. Eu caracterizo esse professor como leitor de uma Veja, que lê um jornal matutino. Enfim, é um professor que, eu diria, faz parte da chamada opinião pública nacional; tem essa opinião. E é para ele que eu escrevo.

177 O aluno-leitor é o jovem de hoje, né? É um jovem de classe média, também – não a média alta, mas a média média. Isso tem implicações práticas, por exemplo, o acesso às tecnologias. É um jovem que sabe, por exemplo, o que é computador. Esse jovem tem essas características da rebeldia do adolescente, mas ele está preocupado em estudar. Ele tem o mito, entre aspas, de que a escola é importante na ascensão social. Ele cultiva isso dentro de si. Eu escrevo para um jovem que quer aprender. Eu não escrevo para um jovem que está totalmente desestimulado, ou seja, aquele que precisaria da motivação prévia para aprender. Eu não sei fazer esse trabalho. O meu livro não faz esse trabalho. Não sei como seria motivar o aluno da classe popular que não..., falta família, falta estrutura básica..., e convencê-lo de que é importante aprender a ler, escrever e contar. O meu jovem já sabe que isso é mais ou menos importante. Então, o meu livro não faz esse trabalho prévio. Isso já me poupa, por exemplo, um trabalho meio árduo na linguagem. Eu uso uma linguagem já mais elaborada, posso me soltar um pouquinho mais em termos de vocabulário. Então, é mais ou menos esse jovem, que é o jovem da minha experiência.

Para José Ruy Giovanni, ele faz livro “para o Brasil”. Mas ele tem a plena consciência de que esse “todo” é bastante segmentado e, por isso, diversifica a sua produção, pensando principalmente nos professores que vão adotar seus livros: Bom, hoje, em Matemática, existe uma corrente chamada corrente progressista. Existe uma outra corrente, que é uma..., são os professores mais antigos, são os mais tradicionais dentro daquela apresentação do ensino da Matemática. Não há diferença nos conceitos, nas definições. Apenas na apresentação. A primeira diz assim: “A história da Matemática é algo motivador para o aluno”. Então, você fala alguma coisa sobre história da Matemática; usa material pedagógico; usa a geometria como elemento de criatividade. A outra, diz assim: “Não. Não ensinamos isso. Isso é bobagem. Material pedagógico não tem nada a ver..., eu posso usar, mas não tem nada a ver com Matemática”. Então, existe um público, hoje, que são os professores, que estabelecem os objetivos. Então, justamente a gente procura cobrir estas duas partes fazendo algumas edições diferentes, sempre dentro daquela visão: seriedade no trabalho. Como a gente escreve livro para o Brasil todo e não para um segmento, só para uma determinada escola ou só para um determinado pensamento, a gente precisa pôr essa seriedade e fazer com que o professor tenha a oportunidade de escolher. Isso é uma questão não só necessária para que o professor tenha obras boas nas duas linhas, mas é também uma coisa comercial, porque a editora não pode jogar fora um público que é grande. Outra coisa: há muita discriminação com relação às escolas oficiais. Outro dia mesmo, uma professora de um colégio particular me disse assim: “O senhor faz livro para escola particular ou para escola do Estado?”. Eu digo: “Eu faço livro para o Brasil. A aula que a senhora dá na escola particular é diferente da aula que a senhora dá no Estado? Se a senhora me disser que sim, a senhora está fazendo uma discriminação que é odiosa”. Então, a gente procura inclusive fazer um livro que, para o aluno, seja mais barato. Ou seja: nós temos uma coleção de três volumes para o 2o grau; temos uma outra chamada De olho no vestibular, com toda a matéria dos vestibulares, em seis livros; e procuramos fazer um livro com todo o conteúdo de 2o grau, de forma que o aluno compre o livro na 1a série vá com ele até a 3a. Não é um livro mais “fraco”, não, mas é um livro, de seiscentas e tantas páginas, direcionado mais para a escola pública. Então,

178 um dos objetivos nossos é esse: não é baratear o livro, é baratear o custo para o aluno.

Propostas didáticas Como os autores fazem adequação, agora não editorial, mas didática de seus textos visando esse público? Ao que parece, do mesmo modo que entre os editores, há na maioria autores entrevistados um savoir-faire implícito, não formalizado, que decorre da experiência pessoal de sala de aula e de feedback fornecido pelos professores e alunos que utilizam seus livros. Por exemplo, Maria Lúcia de Arruda Aranha: Quando a gente se propôs a escrever o livro, eu parti desses diversos programas que trabalhei em sala de aula. E eu ficava muito preocupada quando ia escrever um capítulo, pensando em como isso ia ser lido. Então, eu sempre estava pensando na minha classe virtual, quer dizer, como é que eu estava diante de uma classe lendo um determinado texto. Acho que essa preocupação já fazia parte dessa experiência didática mesmo. Quando eu, por exemplo, pegava um livro para procurar um texto para levar para os meus alunos, eu lia esse texto imaginando se eles iam entender ou não. E, às vezes, descartava textos que eram bastante interessantes, mas que sabia que iam ser difíceis demais. Foi em função dessa experiência é que pensei o meu escrever. Podia ser que eu não conseguisse atingir esse objetivo. Eu acho que consegui. É bem verdade que o Filosofando não é um livro que atinja todo tipo de classe. A gente sabe que os alunos das escolas públicas geralmente têm muita dificuldade com o Filosofando e que ele é usado em escolas particulares boas e também muito usado nos cursos básicos de 3o grau. Quando a gente foi fazer a revisão, para fazer uma segunda edição do Filosofando, é lógico que havia toda a nossa experiência do uso do próprio livro em sala de aula. Mas fizemos também um questionário..., a editora distribuiu um questionário para professores que tinham usado o Filosofando e fizemos diversas perguntas para poder avaliar o uso. E entre as questões que nos auxiliaram a refazer o Filosofando, vieram outras que nos fizeram pensar na elaboração de outro livro, que foi o Temas de Filosofia. Por quê? Porque a gente sabia que nas classes que tinham maior dificuldade, eles não conseguiam ler o Filosofando. E que também havia o problema de preço; então um livro menor seria mais barato. E também a questão da... quer dizer, essa questão psicológica de o aluno comprar um livro muito grande e usar só alguns capítulos. Se o livro é menor ele usa mais: ele fica com a sensação de que não jogou dinheiro fora. Então, a gente fez o Temas justamente pensando no livro mais fácil que o Filosofando.

José Ruy Giovanni também apóia-se muito no feedback dos professores. Além disso, realiza pesquisas sobre a utilização de seus livros in loco: Nós procuramos sempre conversar com os professores e aplicamos as nossas idéias nas escolas nos diversos níveis. Então, por exemplo, o meu filho trabalha numa escola de nível “A”, que é o Lourenço Castanho. Lá ele aplica as idéias, temos os resultados, avaliamos. Eu tenho amigos que

179 trabalham em escola, vamos supor, de nível “B”; outros, de nível “C”, escola de periferia. Veja bem, não é que a gente faz diferença no tipo de escola. É preciso que a gente faça a adequação do conteúdo do livro ao nível médio. Então, temos amigos, graças a Deus, que permitem que nós apliquemos as nossas idéias, que nós assistamos às aulas, que nós possamos recolher elementos de forma que esses dados sejam importantes na elaboração do nosso trabalho pedagógico. Então, veja bem, se você perguntar: “É um trabalho cientificamente estatístico?”. Eu digo não. É um trabalho de intuição, certo? A gente faz por intuição, por assistir aula a gente sente o grau de dificuldade. Então, agora nós vamos pensar numa outra maneira. Vamos tentar jogar isso de uma outra forma, vamos apresentar de uma outra forma, justamente para que o aluno tenha a oportunidade de crescer. Então, isso eu acho fundamental hoje na elaboração pedagógica de um livro. Fazer levantamento de coisas que prejudique o aluno, que fazem com que ele tenha uma certa aversão pela Matemática. Não é isso que a gente quer. A gente quer que o aluno goste da Matemática. Então, é preciso que o livro dê para ele todos os meios, em uma linguagem simples, para ele poder chegar à situação mais difícil e resolver. Então, uma graduação de dificuldade, isso é muito importante.

Elian Alabi Lucci baseia-se no feeling do professor e em obras teóricas: Há um pouco de feeling, porque eu leciono. Não deixei o magistério. Falo com professores de todo o país. Mas também há o embasamento teórico. Eu me lembro que quando comecei, eu tive por embasamento teórico um livro da Fundação Getúlio Vargas, chamado O ensino pela competência. Então há um embasamento teórico. E de certa forma, um pouco do feeling do professor, também, né? Conversando com seus colegas, ainda permanecendo em sala de aula, você vai sentindo, percebendo quais são os níveis de mudanças que o mercado vai exigindo para você direcionar seu trabalho.

Francisco Moura também diz que a experiência de sala de aula é fundamental, ainda que o aspecto teórico não deva ser ignorado: O primeiro fator é a vivência mesmo em sala de aula. Tanto o Carlos como eu trabalhamos há muito tempo: como eu falei, tive experiência de 1o grau em escola estadual, 1o grau em escola particular, 2o grau em escola particular, cursinho pré-vestibular e 3o grau. Então, é incorreta a afirmação de muita gente que fala: “Os autores nem entraram em sala de aula e vão escrevendo material”. Não é verdade! No nosso caso, trabalhamos em todos os níveis. E o que motivou a escrita foi, inclusive, um descontentamento com o material existente. Então, nós tomamos o cuidado de fazer adequação para o aluno e para o professor. Sabemos muito bem que o livro serve de material, não é apenas material de apoio, o livro ensina muitos professores; professores que não têm acesso cultural. Então, nós temos que ter esse cuidado. É uma linguagem adequada para o professor, mas também adequada para o aluno. Nós elaboramos, nós redigimos de tal forma que o aluno possa entender o material por ele mesmo. Isso acontece muito. Eu me lembro muito bem do primeiro material: nós distribuímos para vários colegas que aplicaram esse material em escola da prefeitura, escola do Estado, escola particular. Nós fizemos enquetes com vários alunos, com vários professores, antes de ser impresso, de ser entregue à editora. Nós sempre tomamos esse cuidado. Quer dizer, é

180 uma pesquisa, que é feita junto com alunos e professores. Isso nós continuamos fazendo, além da nossa experiência em sala de aula, que eu acho fundamental. É evidente que há um embasamento teórico, também. Mas isso não ocupa o primeiro lugar, quer dizer, em nenhum momento nós procuramos adequar o nosso material a uma teoria construtivista, por exemplo, ou a uma outra teoria x ou y. Quer dizer, o que importa é uma análise de mercado do que o professor está precisando, do que o aluno realmente gosta, mas que tenha também um certo desafio. A gente sempre procura inovar, o que aconteceu, por exemplo, com o nosso primeiro material, de 5a a 8a série. Eu acho que nós exageramos um pouco no desafio. Foi um material que foi bem aceito pela academia, pelos professores também, mas não vendeu muito. Por quê? Porque nós resolvemos inovar e inovamos demais para a época, por exemplo, abolindo análise sintática na 5a e na 6a série. Daí a gente percebeu que tem de haver uma dose de inovação, mas tem que tomar muito cuidado. E isso é muito difícil de fazer. Quer dizer, a gente procura sempre fazer material que seja adequado, mas com conteúdo.

Luiz Imenes e Marcelo Lellis distinguem-se dos demais entrevistados por participarem de um movimento que faz reflexão exatamente sobre ensino de Matemática. Quase militante, Imenes explica, não deixando do lado a diferença de postura entre autor e editora sobre a questão didática nos livros: Um livro, salvo exceções, nasce da cabeça de um autor, que é um professor. O livro é o retrato da aula que ele dá – não estamos falando de livros feitos sob encomenda, que numericamente não é maioria. O que está no papel é o que está na cabeça do autor. Então, a maneira como ele..., a postura..., a visão que ele tem de aprendizagem, a sua linha pedagógica, a sua relação com o conhecimento, a maneira como ele enxerga Matemática, se ele vê a Matemática como um conhecimento pronto e acabado que cai do céu, a obra dele reflete isso. Se ele vê a Matemática como um conhecimento historicamente construído que se reconstrói agora em cada criança, a obra dele reflete isso. Em geral, eu diria que a obra é fiel ao autor, quer dizer, o que está lá é o que ele pensa. Os meus professores de Matemática freqüentemente me perguntam: “Mas por que os livros de Matemática trazem tanta álgebra na 7a série?”. Porque os autores são professores, está certo? Convém lembrar que quando a Cenp lançou a proposta curricular, em 85, ela ficou em discussão na rede durante dois ou três anos. A proposta da equipe da Cenp era tirar as equações irracionais e biquadradas da 7a e 8a série; os professores não deixaram.. Por quê? Porque, pô!, a gente foi formado com esse modelo, esse troço está enraizado na gente, e a gente pode ser professor, pode ser autor, pode ser diretor da escola ou técnico que está na Secretaria da Educação, o modelo é o mesmo. Então, a linha, a linha pedagógica..., acho que sai da cabeça do autor. Agora, as editoras, elas não! Vou te dar um exemplo: a palavra da moda é construtivismo. Aí, o que a editora faz? Se o que vende é construtivismo, então, vamos começar a fazer coisa construtivista. Bom, algumas editoras vão atrás de pessoas que de fato tenham uma proposta de aprendizagem que, se não é construtivista, atenta para construção do conhecimento que faz a criança. Então, a editora vai atrás. Outras vezes, a obra é maquiada, quer dizer, pega-se uma obra tradicional, dá uma maquiadazinha nela, coloca umas pitadinhas lá e diz que ela é construtivista. Agora, isso as

181 editoras fazem e as escolas também fazem. E os professores, às vezes, fazem. Ele lê uma orelha de livro, entendeu que ser construtivista é não adotar livro, é trabalhar com material concreto, então, ele pega, enche a classe de sucata e virou construtivista. Esses equívocos estão presentes no livro, na aula, em currículo. E no livro não é diferente. O livro reflete bem o que se passa com a nossa Educação.

Imenes também explica sobre o movimento de que faz parte: Eu preciso fazer um esclarecimento: o trabalho que a gente está fazendo, sem fugir da responsabilidade que nos cabe como autores, se tem algum mérito, é o de estar sintonizado com um movimento muito grande de mudanças do ensino da Matemática, que é um movimento internacional. Então, esse trabalho todo que a gente vem fazendo como autor é muito sintonizado com esse movimento e a motivação é a seguinte: há um fosso muito grande, uma distância muito grande entre todas as conquistas desse movimento e a prática da sala de aula. O ensino tradicional continua massacrando as crianças na 3a, 4a e 5a série, por exemplo, com o ensino de frações. E o professor massacra não porque ele queira, mas porque ele já aprendeu assim, está acostumado a ensinar assim, não percebe que está massacrando muitas vezes. E, no entanto, hoje já se tem muita clareza a respeito de quais são as dificuldades na aprendizagem de frações e quais são as alternativas para isso. Isso tudo está solucionado. Só que o professor não conhece, né? E uma das formas de fazer isso chegar até a sala de aula é através do livro didático. Ele tem uma importância muito grande. Freqüentemente é o único instrumento de trabalho do professor. Eu não acredito que a gente possa fazer a revolução da educação através do livro didático, mas acredito que essa contribuição possa ser significativa para evolução.

Marcelo Lellis fornece mais elementos sobre esse movimento, que é internacional e multidisciplinar, e mostra como isso está presente em seu trabalho: Há um embasamento teórico [no nosso trabalho]. Primeiro, no caso da Matemática, existe uma pesquisa, que nos últimos 25 anos ampliou-se muito, ela se intensificou muito. Essa pesquisa ocorre em todos os departamentos de Pedagogia, de Psicologia Cognitiva e, especificamente, de Ensino de Matemática em diversas universidades, mundo afora. Então, estamos em contato com isso, porque a gente recebe publicações de vários locais, lê, acompanha. Quer dizer, nos últimos tempos a produção em termos de ensino de Matemática tem sido muito vasta, e a gente está a par da maior parte dessa produção. Então, isso já é uma base. Uma segunda base é uma reflexão pessoal sobre cada conceito de Matemática e aí a gente tem percebido coisas e elaborado idéias que são muito originais. E o terceiro elemento é o seguinte: toda a vez que a gente tem uma idéia original, que a gente não vê confirmada por pesquisa que já tenha sido feita, então a gente vai atrás de algumas crianças para discutir com elas, para ver como elas aprenderiam. Então, há momentos assim no livro – pena que você não seja de Matemática, da área... Mas, por exemplo, existe em Matemática uma forma de resolver problemas – não sei se a gente pode qualificar assim – chamada “regra de três composta”, um método de resolver um certo tipo de problema. Quando a gente estava escrevendo o manual, a gente falou que existe um método tradicional de resolver, existe

182 um outro que a gente propõe, baseado na nossa reflexão, e a gente falou que uma criança..., um aluno de 8a série pode chegar a uma proposta dela. E aí o meu parceiro perguntou: “Mas pode como? Qual seria o caminho que o adolescente ia escolher?”. Eu efetivamente não sabia, não tinha esses dados, nunca vi uma pesquisa assim. Aí, a gente foi pegar alguns problemas e dar para adolescentes que nunca tinham aprendido o assunto, para ver como eles resolveriam. Então a gente percebeu que muitos problemas têm uma mecânica..., os adolescentes têm um caminho próprio, os que nunca viram o assunto, têm um caminho que estatisticamente é o mais freqüente. Então, foi aquele que a gente mostrou para o professor: “Seus alunos podem escolher possivelmente esse caminho, mas faça a experiência para ver”. Então, sempre tem uma pesquisa em torno.

Como toda essa preocupação com o ensino de Matemática transforma-se em livro? Marcelo Lellis procura esclarecer: Nesse último livro, a gente escreveu um livro que possa ser usado – e, na verdade, só possa ser usado por um professor que esteja de acordo com essas idéias, também. O livro determina o tipo de atividade e o tipo de aula. É claro que ele dá liberdade para o professor criar, mas o professor tem que estar em comunhão com essas idéias; senão, o livro não vai ser um livro útil para ele. Agora, como isso foi operacionalizado no livro é complicado explicar, porque foram uma série de detalhes técnicos. Por exemplo, é um livro de Matemática que contém interpretação de texto, o que é uma raridade. Para falar a verdade, o texto do livro de Matemática nunca é usado pelo aluno. Mas nesse, se o professor resolver fazer interpretação de texto, então, o aluno vai ter que ler o texto. Também é um livro que propõe jogos, ações e coisas assim. Então, o livro, realmente, é para quem é da turma, para quem acredita nesse tipo de ensino. Ele não é uma lista de conteúdos. Também foi estabelecido uma clara distinção entre texto e exercícios, porque é fundamental que o texto seja lido; então, o texto tem que ser grande, amplo. O exercício tem que ter outro corpo, para ficar bem claro a separação. Tradicionalmente, no livro de Matemática somente os exercícios eram usados. No nosso tem que ser usado o texto, porque os exercícios se referem ao texto, tem uma parte que o ensino está no texto e na interpretação de texto. Então, a diagramação do livro dependeu inteiramente dessa proposta pedagógica, quer dizer, a proposta pedagógica está implementada pelo livro mesmo, o livro é o tal instrumento que a gente quer. Ele não contém apenas os exercícios, não contém apenas idéias; ele é um objeto cuja organização, cuja construção está de acordo com as idéias que a gente pretendia. Essa concepção a gente adotou para garantir que o livro fosse utilizado totalmente. Para que ele fosse mesmo instrumento de trabalho. É claro que ele não precisa ser o único, mas você não pode usar o livro como se usava antigamente: “Façam os exercícios” e acabou. Esse livro é um objeto obrigatório para ser usado.

Profissionalização do setor A maior editora do setor didático e paradidático, a Ática, começou como gráfica de “rodar” apostilas. Muitos autores iniciaram sua carreira produzindo apostilas.

183 Achavam que fazer livro era imprimir um texto na gráfica – e era isso mesmo, como lembram Luiz Imenes ou Jaime Pinsky (Capítulo 6). Desse tempo para cá, o que mudou, na percepção dos autores? Gilberto Cotrim dá o seu depoimento: Eu tenho sentido uma preocupação constante dos autores, dos profissionais envolvidos no processo de produção, com este objeto que a gente está falando aqui, que é o livro didático. Essa preocupação nasce de várias vertentes: uma delas acho que foi a crítica ao livro didático, a crítica universitária ao livro didático e a crítica da imprensa ao livro didático. Na década de 70, 80, isso foi intenso. Permanece ainda de forma esparsa nos dia de hoje. Essa crítica produziu um resultado dentro das editoras, dos departamentos editoriais das editoras. Isso se revela num maior cuidado, um cuidado realmente grande com o produto, pelo menos nas editoras que eu conheço – cuidados que se refletem em aspectos como a tipografia, a cartografia, a revisão. O zelo que o autor e a editora observam nas leituras críticas, que consistem nesse processo de parecer que os professores dão sobre o livro. Eu diria que..., eu compro muito livro didático espanhol, argentino, francês. E eu digo com conhecimento de causa que o nosso livro didático, hoje, é tão bom quanto o livro espanhol, tão bom quanto o melhor livro argentino, o melhor livro francês. Nós não atingimos ainda de uma forma generalizada uma qualidade tão grande no papel. Nós não fazemos impressão no papel couchê. Talvez não tenhamos ainda uma qualidade de produção gráfica tão boa quanto a do livro francês ou do livro espanhol. Mas do ponto de vista de metodologia, de linguagem, de adequação curricular, de variedade de produção, nós temos um livro didático tão bom quanto o livro de primeiro mundo. Além disso, eu tenho sentido um grau de profissionalização muito grande da equipe que lida com livro didático. Eu diria que hoje nós estamos constituindo um setor profissional de pessoas especializadas com a produção do material didático. Pessoas tarimbadas, que estão voltadas para as formas de aprendizado, que lêem, que acompanham a produção pedagógica das diversas áreas. Por exemplo, o que se fez aí no campo da alfabetização é uma verdadeira revolução. E eu sinto que o pessoal que trabalha com alfabetização nas editoras são pessoas extremamente especializadas, que lêem tudo que está rolando, fazem cursos de treinamentos sobre Emília Ferreiro, sobre Piaget. Da mesma maneira, no campo da História: por exemplo, a minha subeditora faz mestrado na USP, em campos relacionados com a produção historiográfica. Então, as editoras procuraram se cercar de profissionais com competência técnica acadêmica para trazer subsídios ao autor e tudo mais. Por exemplo, a iconografia dos meus livros: é feita por um profissional altamente qualificado. Está terminando o doutorado na Unicamp, justamente na área da fotografia. Ele pesquisa a fotografia histórica. No passado, quem fazia a pesquisa iconográfica? O de História era o mesmo que pesquisava para o livro de Ciência, às vezes, para o livro de Desenho. Os livros da década de 70, se você tinha que colocar Napoleão, colocava sempre aquele mesmo Napoleão com a mão aqui sob o casaco, aquele Napoleão típico, ou Napoleão de caricatura. Hoje, você, por exemplo, pega os meus livros, tem uma pesquisa séria, diferente, procurando..., de acordo com a linha do livro. Quer dizer, não há incompatibilidade entre a imagem e o texto. E por quê? Por que houve essa evolução? Eu acho que em grande parte produto de uma consciência de que Educação é uma coisa séria. Que o livro didático tem uma penetração muito intensa nas escolas. É um dos instrumentos do ensino, mas ele se tornou um instrumento muito

184 importante, porque o professor deixou muitas vezes de ser reciclado. Então, o livro é um recurso que é apresentado também ao professor.

Rotina de trabalho Parte dessa estrutura altamente profissionalizada, ao autor não resta muita alternativa a não ser estabelecer uma rotina de trabalho. Mesmo que não “batam ponto”, sua atividade não é mais um “bico”. Marcelo Lellis considera-se desorganizado, o que não impede de consolidar uma rotina de trabalho: Eu sou uma pessoa muito desorganizada e com alguns problemas de saúde. Então, é uma coisa completamente... Por exemplo, quando você chegou eu estava trabalhando numa coisa lá no computador, mas estava trabalhando de uma maneira totalmente desorganizada. Uma hora levantava, saía, dei uma volta com a cachorra, voltava para o computador. Então, a manhã toda vai se passar numa desordem desse tipo. Depois, à tarde, aí eu trabalho mais rigorosamente. Mas, quando chega uma certa hora eu vou ficar muito cansado. Bom, à tarde, hoje, eu vou trabalhar com o Imenes. Não vou trabalhar sozinho. A gente faz sempre isso, vai discutir o que está sendo feito, aí é mais fácil, eu não me disperso. Mas quando chega de noite e olho a produção do dia e vejo que foi muito pouca, aí eu trabalho à noite também. Eu trabalho no fim de semana por causa disso. Então, a minha mulher... Bom, então..., a rotina talvez seja trabalhar todos os dias.

Maria Lúcia de Arruda Aranha tem um verdadeiro cronograma de trabalho: Eu levanto, mais ou menos, umas 7h00, 7h30, e até tomar café, ler jornal etc..., eu começo, sento no computador umas 9h00, 9h15 da manhã. Aí, eu trabalho o dia inteiro. Quer dizer, eu páro um pouquinho para almoçar e retorno. No fim do dia, 17h30, 18h00, eu dou uma paradinha para banho, um lanche, uma distração qualquer. Às vezes, ainda compulsivamente eu retorno ao serviço e fico até umas nove [21h]. E aí é a hora que começa o movimento em casa, que chega marido, filho, e aí a gente vai jantar. Todo dia! Isso é interrompido por algumas atividades domésticas, por exemplo, sair para ir ao supermercado, fazer uma ou outra compra de emergência. Ir à editora. Geralmente eu vou à editora por causa da coleção [“Logos”], eu vou a cada dez dias, mais ou menos. Também faço outros serviços para editora, eu faço muita leitura crítica para paradidáticos de outras coleções da Moderna. Eles têm uma coleção chamada “Polêmica”, eu faço muita leitura crítica. E eles estão lançando uma nova coleção, e eu não só coordenei dois desses livrinhos, como fiz todos os encartes dos dez livros dessa coleção que estão lançando. Aula, faz dois anos que eu parei, já me aposentei. Então é só escrever. Mas não sobra tempo para nada, para nada, porque eu estou com cinco livros escritos, cinco livros didáticos para Moderna: Filosofando, Temas de filosofia, Filosofia da educação, História da educação e Maquiavel. O Maquiavel é paradidático. Esse eu não vou precisar mexer tão cedo, espero. Mas os outros, eu já refiz o Filosofando, terminei esse ano a revisão do Filosofia da Educação e do História da Educação, e agora vou

185 recomeçar a revisão do Temas. Então, é assim: eu acabo a revisão de um e já chegou a hora de fazer a revisão do outro, porque a revisão eles pedem num espaço de pelo menos seis anos. E como demora..., por exemplo, agora eu estou começando a revisão do Temas, já foi feita a leitura crítica, já mandamos os tais dos questionários para quatro Estados para ver dos professores que usaram o livro que observações eles podem nos fazer. E eu devo entregar até julho, agosto [de 1997], mais ou menos, para ficar um ano na preparação e na revisão e sair em agosto de 98, para ser usado em 99, no ano letivo de 99. Aí, na hora que eu estiver entregando esse, certamente alguém vai falar: “Olha, precisa fazer a revisão de sei-lá-oquê”. Daí eu reluto um pouco. Às vezes, eu espero mais um ano, porque em Filosofia o livro não fica tão velho, assim, tão rapidamente. Mas eles acham que o livro começa a vender menos porque o professor se cansa dos textos, da abordagem; então, a gente tem que mexer. Fazer texto é de uma..., eu não queria usar essa palavra – tirania – porque a palavra tirania é tão horrível, mas a hora que começa realmente a escrever a gente é possuído de tal forma pelo texto, que não sobra muito espaço para atividades normais da vida. Essa fase de escrever o Filosofando foi assim muito, muito pesada, porque, além de eu estar ocupada com as aulas, o tempo que eu dispunha para escrever sempre tinha que ser um tempo grande. Por exemplo, quando eu tinha um dia inteiro para escrever, começava de manhã, mas o “carro” começava a andar lá pelo meio-dia, e aí eu não podia parar às duas horas da tarde. Eu tinha que continuar sob pena de perder tudo que eu já tinha pensado desde o início da manhã. E aí quando chegava sete horas, oito horas da noite, também eu não podia parar, porque eu estava no fechamento de um capítulo. Havia dias, assim, de eu trabalhar 14 horas por dia, e terminar o dia absolutamente zonza. Então, essa atividade exige muito da gente. Tanto é que quando eu tenho que entrar num novo livro, ou então numa revisão, que essa daí também é outra cruz de quem escreve livro didático, eu reluto um pouco. Porque eu sei que a hora em que eu começo eu vou sacrificar um monte de outras coisas na minha vida, inclusive o lazer e o contato com as pessoas da família, os amigos.

Diretor e professor de um curso de redação, Francisco Moura também tem uma agenda semanal definida com bastante rigor: Eu não leciono mais em escola regular. Eu tenho um curso, aqui, de redação. Trabalho com alunos de 2o grau, com adultos e eu dou muitos cursos para professores do Brasil inteiro. Então, eu continuo tendo uma noção até melhor do que se eu tivesse só numa escola. Eu reservo normalmente três dias por semana para escrever e dois dias para aula. Então, por exemplo, eu dou aula aqui quarta, quinta. O dia todo eu concentro as minhas aulas aqui. E escrevo na terça e na sexta, leio e pesquiso. Normalmente eu estou reformulando, lendo material – porque eu tenho que ter esse tempo todo para leitura de material teórico. Então, no momento, eu estou reformulando e lendo algumas teorias que têm saído a respeito do ensino, teses. Então, é isso que eu tenho feito. No momento não estou escrevendo nenhum material novo. Mas a reformulação é feita de cinco anos em cinco anos. O material fica no mercado cinco anos. Em geral, o pedido de reformulação vem da editora. O critério básico que eles alegam é que o material didático envelhece com muita facilidade. Principalmente o de Português, em que a gente utiliza textos – textos informativos, textos de jornais, de revistas. Mesmo os textos literários parece que os professores se cansam de trabalhar com o

186 mesmo texto. E há, segundo os editores, há uma queda de vendas a partir do quarto ano. Então, esse é o critério básico: há uma queda na venda e os professores já se cansam de trabalhar com o mesmo material; então, a gente começa a perceber a necessidade de trocar textos. O que a gente faz? Conversa com a editora, conversa com professores que estão utilizando material..., a gente pede leitura crítica para professores da rede pública, da rede particular e professores do 3o grau, e a partir dessas leituras, dessas pesquisas a gente reformula. O que acontece normalmente? A gente troca 40% dos textos (essa é a média), a gente mexe com exercícios, acrescenta exercícios, altera também a questão teórica. E, muitas vezes, a gente tem muita dificuldade em reformular porque o livro..., às vezes, é um novo livro, né? É essa dificuldade que a gente tem porque a editora normalmente não quer um novo livro. Ela quer exatamente o mesmo livro, reformulado apenas. No nosso caso, nós temos muita dificuldade para fazer uma reformulação que não altere muito o livro. Tanto é que acaba fazendo livros que são novos em muitos aspectos. Temos a sexta-feira para reuniões na editora, ou para reunião com o Carlos [Faraco] que é o meu co-autor. E viagens eu tenho feito, em geral, na segunda-feira. Eu tenho evitado excessos de viagens como aconteceu no ano passado [1995], que dificultou bastante o meu próprio trabalho como autor. Esse ano eu limitei bastante, e conversando com o pessoal da editora a gente conseguiu estabelecer um cronograma de atividades menos rígido, para eu poder viajar, escrever e dar as minhas aulas. Mas é evidente que o trabalho de autoria ainda fica muito para fim de semana, férias, feriado. Então, a gente dificilmente tem férias. Você acaba tendo que escrever nesses períodos.

A rotina de Gilberto Cotrim já prevê espera em filas de bancos. Mas também não é muito diferente de seus colegas: Eu reservo para escrever meio período da minha atividade. Todo dia. Então, tirando..., porque eu tenho outras atividades, alguma coisa da minha vida privada, ir num banco. Agora eu reservo ao livro pelo menos quatro, cinco horas por dia. E eu divido, então, em períodos de estudo e períodos de escrita. Para escrever, você tem que estudar. E isso é uma coisa importante de ser dita. Exige uma profissionalização, essa coisa de você escrever constantemente o livro. Você tem que estar estudando. Você tem que estar lendo o que está saindo aí. Eu preciso ler esses livros. Eu preciso sentar e ler. Eu trabalho muito com jornais, artigo de jornais, artigo de revistas. Então, eu preciso ir de vez em quando à Biblioteca da Câmara Municipal de São Paulo e ficar lá uma tarde inteira, lendo o que me interessa, tirando xerox. Eu sou um caçador de textos vinculados à minha atividade. Então, eu preciso estudar, eu preciso caçar coisas novas e preciso escrever. Então, eu divido o meu tempo sempre fazendo isso. E escrever livro é reescrever. Então, eu vivo reescrevendo os meus livros constantemente. Eu não tenho muitos livros em quantidade; de vez em quando eu solto uma nova edição de alguma coisa. Então, eu estou sempre reescrevendo as minhas coisas. E é impressionante como esse processo é brutal, é de uma..., porque você reescreve e percebe que ali o texto precisava ser mais enxuto. Você percebe também, por exemplo, eu escrevi a..., sei lá, um texto em 1980. Agora estou constatando isso. Eu estou revendo esse texto. Então, eu sinto uma alteração do vocabulário em 13 anos. Palavras que não se usa mais e que se usava. Então, eu começo a achar meu livro antigo em linguagem. Eu estou fazendo um trabalho todo

187 de reescrita, porque eu passei a usar uma linguagem diferente, que é reflexo do que eu ouço e vejo. Como também na História você vai percebendo as novidades temáticas: existem temas que estavam esquecidos, aí começam a ser revisitados, não é? Faz parte desse processo, quando digo que fico procurando textos e outras coisas. Eu procuro ler o que as autoridades educacionais estão pensando sobre o ensino. Isso implica você ler currículos escolares, o que o MEC está produzindo em termos de parâmetros curriculares. Você precisa se abastecer dessas coisas todas. Leio muito também, demais, o que a universidade está apontando em termos de algumas pesquisas, algumas tendências. O vestibular também nos dá certas... É um trabalho de realimentação. Eu sei que o vestibular usa muito livro didático para elaborar questões. E, por outro lado, o autor lê muito o que o vestibular coloca para ver se está dentro das coisas. É um trabalho de alimentação e retroalimentação das coisas, né? Então, se de repente eu percebo que a Fuvest ou a Unicamp está muito interessada em questões relacionadas a..., sei lá, movimento messiânico no Brasil, eu tenho que ver como é que está o meu livro, se ele está dando conta dessas questões.

Cursos Gilberto Cotrim prossegue na descrição de sua rotina para lançar um novo tema: Ah! Outra coisa: acho que toma muito tempo, isso é uma novidade da rotina de trabalho do autor: são os cursos que o autor dá. Isso começou a se tornar muito intenso de quatro anos para cá: faz parte do trabalho do autor, treinar professores. Não basta ele escrever um livro. Isso não está no contrato. Então, é uma coisa curiosa. O direito autoral, hoje, remunera também os cursos que o autor dá. São cursos – antigamente a gente dizia que eram palestras –, mas não são palestras, são cursos. Cursos de dois, três dias com um grupo de professores. E eu tenho sentido, cada vez mais, que esses cursos não têm um caráter assim, de propaganda do livro. Alguns autores fazem propaganda do livro, mas há um bom segmento que não faz propaganda. Eles dão cursos sobre aspectos da matéria que eles julgam conhecer mais, ou se interessam mais. Então, há um caráter de treinamento de conteúdos e também, muitos autores, dependendo da sua experiência, fazem treinamentos também na área de prática do ensino. Trazem técnicas pedagógicas para o professor associadas à sua matéria, que eles acabam desenvolvendo, aprendendo, propondo em suas atividades. Isso tem sido muito intenso. É muito comum ao autor no segundo semestre, que é um período mais dedicado a esses cursos, ficar semanas fora de casa, viajando pelo Brasil, ou dentro de São Paulo mesmo. Interrompe a sua atividade de escrita. E ele não recebe. Não recebe! Uma coisa hiper-excepcional, às vezes, é uma entidade que te convidou pagar uma coisa meio simbólica para você. Mas, não, isso não é regra. Isso já ficou uma prática sedimentada, as delegacias de ensino, as escolas falam: “Adotamos o livro do autor tal, mas gostaríamos que o autor viesse aqui para falar um pouco do seu trabalho para o corpo de professores que vão trabalhar com o livro”. E ele vai lá, fica dois, três dias, explicando um pouco do que ele pensa sobre Educação; às vezes os temas são propostos pelos próprios convidados.

188 Francisco Moura conta como os autores transformaram-se em colaboradores da rede de ensino público: A maioria dos cursos é agendada pela editora. Mas há casos de convocação de algumas Secretarias de Educação e de universidades. Houve um ano – acho que foi em 94 – que eu percorri praticamente todos os núcleos de ensino da capital dando cursos. Eles tinham um dia por semana para reciclagem; então, eu dava esse curso quase que semanalmente. E aí não foi programado pela editora. A própria Secretaria de Educação que me chamava. Eu já fui ao Paraná, por exemplo, também a convite de Secretaria. Londrina, Curitiba..., até Santarém, Pará. E a pedido da Secretaria. Mas eu acho que o que predomina mesmo é a atividade agendada pela editora.

Para Elian Alabi Lucci, os cursos são a ocasião para ouvir a opinião dos professores sobre os livros que produz: Eu corro o Brasil dando cursos e palestras e ouço o professor, que diz: “Olha, professor, a última edição do seu livro, senhor fez em duas colunas. Nós não gostamos, o aluno tem dificuldade, fica uma maçaroca na página”. Então, nós trazemos isso em consideração, quando a gente vai produzir o livro. E essas viagens fazem parte da atividade do autor, porque há uma curiosidade muito grande em saber quem é o autor, como ele pensa, até se ele existe de verdade, se já faleceu ou não. E, depois, há uma carência, do ponto de vista didático-metodológico dos professores, que o Estado em si, a Secretaria não consegue suprir. Então, a gente com a nossa bagagem didático-pedagógica, com trinta e tantos anos de magistério, acaba sendo solicitado para dar cursos de atualização metodológica, didática, de enriquecimento de conhecimento. Eu dou um curso de oito horas, de Metodologia do Ensino. Então, realmente tenho sempre o auditório cheio, porque é ministrado gratuitamente, não é? A gente se dispõe a fazer isso, uma parte, às vezes, custeada pela Secretaria, ou por um órgão ou por uma delegacia, uma parte até pela própria editora, que tem o nosso livro. Mas é um trabalho cansativo, é um trabalho que exige de nós uma preparação muito grande, um texto para acompanhar o curso. E isso exige da gente bastante, mas a gente faz com carinho, porque no fim eu sou professor também, sei das deficiências, das dificuldades que o professor tem para trabalhar hoje em sala de aula. Nós fazemos isso graciosamente! Há autores que estão pleiteando receber por hora-aula alguma ajuda, alguma coisa, porque isso tem um custo para nós. Mas é gracioso o nosso trabalho, a nossa participação. É assim quase como uma obrigação porque a gente sempre tem de ser grato ao professor que nos adota – e mesmo ao que não nos adota, que é colega apenas de trabalho, vamos lá para auxiliá-lo nesse aspecto. Você pega uma escola técnica federal, por exemplo, de Maceió, que nos convida para dar cursos. Ela arca com a estadia,. A editora arca com a passagem e mais nada. Nós, na verdade, temos que preparar o curso, preparar as apostilas. São dois dias de curso, oito ou dezesseis horas-aulas, ou, às vezes, até trinta e duas horas-aulas. Sem nenhuma remuneração. Nada. Nada. Apenas para divulgar o nosso trabalho, nossa experiência e contribuir com o colega professor, que nós somos professores na verdade.

189 Luiz Imenes viaja constantemente e gosta de manter contato com seu público. Mas se queixa da incompreensão de que é vítima por parte dos intelectuais universitários: Há um aspecto da divulgação em que os autores estão sendo gradativamente mais envolvidos. Uma escola, Divino Salvador, eu estou indo amanhã, ela me ligou agora pouco. Eles estão trabalhando com a coleção e estão com dificuldades. Então, pediram para eu ir lá, estou lindo lá. Aí não é apenas uma divulgação, na medida em que a obra já está adotada. É, digamos, um trabalho de orientação mesmo, orientação pedagógica. Às vezes, eu vou a uma delegacia de ensino, a uma escola, a um congresso, levado pela editora. Por exemplo, esse congresso que me ligaram agora da Bahia que vai ter em Ilhéus, na Bahia, eles estão procurando patrocínio da editora. Então, a editora banca a ida do autor e, claro, eu estou lá para divulgar o meu trabalho. A editora está me levando lá e isso é explícito. É curioso, porque isso freqüentemente é mal visto, sobretudo pela academia, pela universidade. Eu acho um absurdo, está certo? Ao contrário, você devia cobrar pelo autor que não se expõe, porque o cara que publicou e não dá a cara, esse tem que ser cobrado, né? Então, o autor participa, sim, da divulgação e participa muito. Eu gosto muito de conversar com os divulgadores, porque eles estão nas escolas, eles ouvem os professores: “Não, esse livro eu não adoto porque tem muita geometria. Esse livro eu não adoto porque tem pouco exercício”. Isso é uma informação, é um feedback importante para gente. Então, eu faço questão absoluta de estar em contato com os divulgadores, de saber o que está rolando, o que os professores estão achando, de estar indo junto com o divulgador, junto com ele resolver o problema.

Maria Lúcia de Arruda Aranha decidiu que não vai mais participar dos cursos:: De início, eu viajei muito. Fui para o Pará, fui para Mato Grosso, para o interior de São Paulo, para Brasília, para Vitória. Mas, de repente, eu comecei a me recusar a ir, primeiro, porque era muito penoso para mim. Eu, apesar de ter sido professora anos e anos e anos, eu não gosto de platéia. Eu gosto do meu trabalhinho aqui no escritório e sem muitas movimentações. E depois eu fiquei me questionando se valia a pena mesmo fazer esse tipo de trabalho, parece-me que o professor de Filosofia não precisa tanto dessa tutela. Então, o que acontecia? Eu ia para essas palestras sem saber muito bem qual era o público que eu ia encontrar. Às vezes, acontecia de ser aluno de faculdade. Às vezes, era aluno de 2o grau. Às vezes, era professor de faculdade. Então, é uma situação muito difícil, porque se você vai preparar alguma coisa, você tem que saber qual é o seu público. E eu fui um pouco a esse tipo de trabalho e fui ficando mais quietinha no meu canto. Eu não gosto... A editora não obriga. Os professores que vão, sentem-se na obrigação. Mas sabe o que eu acho que é o problema? Há uma disputa muito grande de vendas, né? Há uma competição muito grande. Pode ser que em Filosofia venha haver, mas ela não é o filé mingon das editoras. Um livro de Filosofia vende muitíssimo menos do que um de Português, de Matemática. Então, eles não me obrigam a isso.

A história de José Ruy Giovanni é bem diferente. Ele é um desses raros autores que a editora contrata como se fosse funcionário. Também por isso, ele está disponível para viajar e participa de muitos cursos:

190 Nós começamos a fazer o livro em 1974, 75, e em 76 o livro foi para as ruas, ou seja, foi para as escolas. Então, nós tivemos uma venda bastante razoável, na época, o primeiro livro. No segundo ano, nós quase triplicamos a venda. Então, a editora começou um processo que hoje se utiliza muito, mas que fomos os primeiros praticamente a introduzir isso: o acompanhamento ao professor. Ou seja, as escolas nos convidavam e nós íamos lá para falar sobre a nossa filosofia de trabalho, sobre a parte pedagógica nossa, como é que nós tínhamos feito isso no livro, como é que o livro podia ser usado, quais eram os recursos que o professor tinha para usar o livro. Então, esse trabalho começou a exigir de nós um tempo maior. Então, um dia, em 1979, eu sou convidado pelo Ministério da Educação para dar um curso em Roraima. Um curso de 120 horas para os professores de Roraima. Eu fui e passei vinte e tantos dias. Eu não podia dispensar esse convite. Era um convite muito honroso. Para a própria editora, era um marketing muito grande. Com isso, naturalmente, as minhas aulas no Arquidiocesano ficaram prejudicadas. Eu dava aula, ainda. Posteriormente, o segundo semestre foi muito atingido justamente por isso: o Nordeste passou a nos convidar para falar. Então, fizemos uma visita ao Nordeste. Isso também exigiu um tempo maior, e as minhas aulas, cada dia mais, ficavam prejudicadas lá no Arquidiocesano. Então, eu entrei em entendimento com a direção da FTD: “Olha, ou eu fico dando aula, sem poder viajar, ou então vocês me pagam o salário que eu tenho lá no colégio e eu fico na FTD, fazendo os meus livros”. É mais rápido, mais ágil e, ao mesmo tempo, tenho o espaço necessário para viajar, né? E assim começou a minha vida na FTD. Foi em 1979. Eu era contratado pelo Arquidiocesano, ganhava pelo número de aulas no Arquidiocesano, mas para prestar serviço na FTD – até o instante em que vi que não era possível, que eu não voltaria mais para o Arquidiocesano. Eu fiquei três anos nessa condição. Aí, na realidade, começou a minha profissionalização. A editora observou que isso trazia para ela um benefício. Então, ela começou a buscar alguns autores, que já tinham livros pela FTD, para trabalharem aqui. São os chamados “autores internos”. Hoje, é muito comum as outras editoras profissionalizarem seus autores, mas não exatamente como a FTD faz: eles fazem um pagamento adiantado para alguns autores escreverem livros, para que o autor deixe de lecionar. Não é o meu caso. Eu tenho salário como funcionário da editora FTD e tenho os direitos autorais que são à parte. Então, a FTD achou que, com isso, ela ganharia. Eu ganharia também, não perderia, era uma profissionalização do autor, ou seja, o autor seria um elemento que está dentro da editora para viagens etc. E essas viagens são pagas pela editora. A não ser quando o convite parte, por exemplo, de uma Secretaria do Estado. Quando eu fui a Roraima, o próprio MEC pagou tudo. Mas a maior parte realmente é paga pela editora, porque muitas vezes é o atendimento a uma determinada escola.

Profissão: autor A tendência é, portanto, os autores se profissionalizarem: a rotina de trabalho associada a esses cursos impelem o autor a abandonar outros afazeres. Mas é possível viver condignamente apenas sendo autor? Comenta a respeito Francisco Moura:

191 Hoje em dia, no nosso caso, depois de 15 anos com um livro bem colocado no mercado, dá para viver como autor, sim. Eu acho que eu poderia dizer que hoje posso viver só como autor. Mas depois de quase 15, 16 anos de trabalho.

Elian Alabi Lucci considera-se “semiprofissional”. Mantém uma boa estrutura de trabalho para dedicar-se a seus afazeres, mas queixa-se da sua remuneração: Eu sou quase um autor profissionalizado. Quer dizer, hoje grande parte do meu trabalho eu dedico ao livro. Tenho minhas aulas, de 1o e 2o grau, mas bem poucas. Então, quase que eu sou um semiprofissional do livro, praticamente. A vida de autor profissional é de muita leitura, de muita pesquisa sobre vários aspectos e muitas entrevistas. No meu caso, Geografia, eu tenho que sair a campo para pesquisar, para entrevistar pessoas. Então, o nosso tempo é todo empregado hoje nisso. Hoje, no meu trabalho eu viajo, fotografo, entrevisto, pesquiso. Vou buscar um conhecimento mais concreto da realidade. Talvez por isso que a gente tenha mais receptividade com as nossas coleções. Então, isso exige um autor quase profissional. Este escritório, eu aluguei para essa atividade, para ter um pouco de sossego. Chego aqui, tenho uma biblioteca aqui em cima, pego o livro e fico aqui tranqüilo, depois que eu volto das viagens. E vou trabalhando o original aqui. Do ponto de vista da remuneração, olha, não é tão compensatório, não, viu? Já foi melhor. Hoje, as editoras tentam pagar o menor direito autoral, cobram do autor que ele pague uma parcela, sei lá, de um revisor, de alguém mais como um auxiliar técnico. Há editoras que pedem para o autor pagar o desenhista, o ilustrador. Então, hoje há coisas que acabam sendo solicitadas a nós. É o caso de venda para o governo, que diminui o nosso direito autoral, o direito autoral é reduzido em função do preço que o governo paga no livro. Isso tudo, hoje, afeta bastante o trabalho do autor. Por isso que a gente tem que dar aula, continuar dando aula. Ter alguma outra fonte de renda, também, porque no fundo as nossas receitas são anuais. Você acaba recebendo o direito autoral uma vez por ano. Então, se você não tiver, no dia-a-dia, umas aulas que você dê, que é uma fonte de receita, só com direito autoral fica um pouco complicado para você administrar o teu fluxo mensal de despesas.

Maria Lúcia de Arruda Aranha confessa que como autora conquistou independência: Eu não diria, assim, que é como esses meus colegas de Português, Matemática etc., mas dá perfeitamente viver como autora. Se eu for pensar no que era a minha situação quando eu ganhava só como professora, e que daí eu tinha uma dependência absoluta do meu marido, e aí a gente pode até lembrar do nosso prefeito Maluf – não foi ele quem falou: “As professoras não ganham mal, elas são malcasadas”? E aí com o trabalho dos livros e com a editoria dá para se pensar numa independência.

Luiz Imenes explica que na verdade vive de antecipação dos direitos autorais:

192 O meu rendimento básico vem desse trabalho com livro didático. Eu não estou vivendo de direitos autorais, estou vivendo da antecipação de direitos autorais. Isso funciona assim: as obras que estão publicadas me rendem um tanto que é insuficiente para eu viver bem. A editora me antecipa o direito autoral, que é maior do que essa receita, de tal modo que todo mês eu tenho um saldo negativo que vem se acumulando, que eu espero pagar com a próxima obra que eu organizar. O esquema está sendo assim. Eu não me orgulho disso não. Eu gostaria de estar vivendo de direitos autorais. O dia que eu conseguir isso eu vou ficar feliz. Além desse trabalho com a autoria de livro, eu faço um monte de outros trabalhos que tem alguma relação com livro. O autor quando dá a sua obra a público, ele passa a ter um compromisso com esse público. Então, a gente é muito solicitado para ir às escolas. E esse trabalho a gente faz sem remuneração, quase sempre. Além disso, eu estou trabalhando também com educação à distância. Continuo nessa área, e estava até recentemente com o Projeto TV-Escola. Além disso, na PUC de Campinas eu tenho participado regularmente de um curso de especialização em Educação em Matemática e dado aula nesse curso há cinco anos. Esse vai ser o quinto ano. Então, isso eu tenho feito muito. Agora, sem o vínculo empregatício, eu sou autônomo. Bom, do ponto de vista pessoal, eu custei muito, relutei muito a assumir esse trabalho com o profissionalismo que eu dedico a ele hoje. Porque é inseguro, porque você conhece meia dúzia de pessoas que vivem de direitos autorais nesse país, porque a gente sabe que existe uma disputa de mercado muito grande, que você vai estar no meio disso. Por outro lado, eu vinha publicando, e publicando como? Você escreve de madrugada, sábado, não tira férias, quer dizer, num esquema nada profissional. Sacrificando um monte de outras coisas. E a coisa chegou a um ponto que eu tive que tomar uma decisão: ou desisto de fazer isso ou se eu quiser continuar, para fazer direito as condições têm que ser outras. E como eu gosto desse trabalho e acho que ele é uma contribuição significativa, eu arrisquei. Agora, confesso que pessoalmente é uma coisa bastante incômoda, porque tenho uma dívida com a editora. Não perco o sono porque não é uma dívida bancária, mas isso incomoda. Estou com 51 anos e não dá para brincar. Por outro lado, trabalhar em casa foi um aprendizado também. A autonomia é muito boa, mas..., se você não tomar cuidado, você dança. É preciso aprender a trabalhar em casa, a família se educar para isso. Eu estou aqui, mas eu não estou de férias, eu não posso ir à feira, eu estou trabalhando. É uma coisa difícil. O que fazer? Eu melhorei muito, mas ainda não está legal, tenho que trabalhar sábado e domingo, tenho que educar a família com isso. Então, digamos que esse é o lado pessoal da coisa. Ainda outro lado pessoal: esse é um trabalho que tem uma dimensão angustiante, são quatro anos para você produzir uma coisa e vê-la publicada. Tem sido assim. O paradidático você vê o filho nascer mais depressa, dois anos, três anos no máximo. A coleção [de didáticos], não. Ela tem que nascer..., os quadrigêmeos nascem juntos, né? Então, é angustiante, é um processo muito longo. Agora que eu estou chegando na reta final desse de 5a a 8a, vai dando uma ansiedade, você quer ver o livro pronto. É um parto. Isso gera bastante ansiedade.

Para Marcelo Lellis, a profissionalização como autor melhorou em parte o seu padrão de vida. Mas reclama que se sente muito isolado:

193 Nos últimos cinco anos, deu para viver como autor profissional. Em parte, porque a editora me adiantou. Durante bastante tempo ela me pagava salário – não salário, ela me pagava um adiantamento de direitos autorais. Ela já recuperou tudo. Esse ano, por exemplo, foi o primeiro ano que eu fiquei quite com a editora, quase o ano inteiro. E, agora, no fim do ano, acabou meu dinheiro, eles outra vez me deram adiantamento. Então, deu para viver e deu para viver um pouco melhor do que como professor. Porque como professor eu não só tinha horários rígidos, mas estava no fim de semana corrigindo prova. Agora, eu estou no fim de semana escrevendo, mas tudo bem, há fim de semana em que eu não escrevo. Lá, se eu não corrigisse a prova seria uma tragédia. Eu também ganho mais, ganho um terço a mais do que como professor. Porque eu era um professor que ganhava acima da média, trabalhando em colégio particular etc. Mas eu ganho um pouco mais ainda como autor. Problemas que enfrento como autor..., olha, especificamente, no meu caso, porque eu tenho uma pesquisa que é muito sofisticada em relação à massa dos professores, então, o problema que eu tenho é um certo tipo de isolamento, uma dificuldade de dialogar. E esse isolamento me atinge do ponto de vista emocional, porque há poucos autores e poucos professores com os quais eu posso dialogar no mesmo plano. A não ser nos congressos de Educação Matemática. Mas, aí, também eu sou uma pessoa isolada, porque eu sou o autor e não... um acadêmico. Porque os acadêmicos estão lá no grupo e eles têm uma pesquisa. Eu tenho o mesmo nível de conhecimento deles e posso dialogar com eles. Mas, infelizmente, eu sou um autor e isso cria alguns problemas. Agora, junto a outros autores e junto ao professorado de uma maneira geral, eu me sinto pouco fora do mundo, pouco isolado. Quando uma professora me pede como ensinar divisão, eu sei perfeitamente como responder, mas é que eu não posso passar para essa professora em dez minutos, porque envolve..., não é só problema técnico, é toda uma atitude dela que tem que estar de acordo, e é muito difícil responder, então, essas perguntas num nível honesto, sem fazer supersimplificação da coisa. É bem difícil isso. Às vezes, eu me sinto muito isolado, eu me sinto chateado de enfrentar essas coisas e não poder dar as respostas de uma maneira completa, também. Porque se eu simplifico muito eu estou sendo desonesto, mas se eu não simplifico eu me torno incompreensível. Complicado isso.

Triangulação autor, editora e governo Congregando essas inquietações, essas ansiedades, esses problemas comuns, fundou-se em setembro de 1992, a Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale). O primeiro presidente foi José Ruy Giovanni, em 1992/1994. A gestão de 1994/1996 foi presidida por Luiz Imenes, a quem sucederia Gilberto Cotrim (1996/1998). Segundo um folheto da entidade, publicado durante a segunda gestão, a Abrale tornou-se reconhecida como o canal de participação dos autores junto a entidades como a ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos), FAE (Fundação de Assistência ao Estudante), MEC (Ministério da Educação),

194 Poder Legislativo, Abrelivos (Associação Brasileira dos Editores de Livros), CBL (Câmara Brasileira do Livro) etc. [Bem-vindo à Abrale! s.d.]

De fato, segundo Gilberto Cotrim, uma das principais tarefas da Abrale é efetivar a “triangulação autor, editora e governo”. Em 1995, a Abrale desencadeou uma ofensiva em relação à FAE, reivindicando participação na definição da política de aquisição dos livros didáticos. Em 17 de março daquele ano, o presidente da FAE reuniu-se com a diretoria da Abrale e assegurou que a comunicação entre os autores e o governo estava oficialmente aberta. Em assembléia, a Abrale então aprovou um documento intitulado Propostas da Abrale para a melhoria da qualidade do livro didático, que seria encaminhado à FAE em 14/6/1995. A Abrale começou a freqüentar reuniões em Brasília, como a mesa-redonda “Como melhorar a escolha do livro didático”, realizada em 20/6/1995, quando a entidade colocou-se à disposição para colaborar na confecção do Guia do professor, que orientaria os docentes na escolha dos livros a serem adquiridos pela FAE. A interlocução e até mesmo a parceria com o governo pareciam estar asseguradas. Em 4/3/1996, em nova reunião, a FAE reafirmou que a Abrale seria informada sobre cada etapa do processo da aquisição dos livros pelo PNLD. Com a palavra, o então presidente da Abrale, Luiz Imenes para comentar essa questão e as demais lutas da entidade e da categoria: Em 92, um grupo de autores conseguiu dar o pontapé inicial e a Abrale foi criada em setembro de 92, com 25 autores, um grupo pequeno. Depois de dois anos éramos quase 100, e agora com quatro anos de existência está com cerca de 200 associados. Bem, a primeira tarefa da Abrale, foi criar um clima de confiança, de cooperação entre os autores para que os nossos problemas fossem trazidos à tona. Por exemplo, eu não sabia como é que eram as formas de pagamento das demais editoras. A gente não sabia quais são as porcentagens de direitos autorais que elas pagam. Se elas pagavam correção monetária nos direitos autorais. Então, conversando sobre isso, a gente foi percebendo que os problemas são mais ou menos os mesmos. Fizemos alguns progressos nesse sentido. As porcentagens variam, mas não é muito. Elas estão mais ou menos na seguinte faixa: as editoras quando falam do custo do livro, elas creditam 10% para pagamento dos autores. Mas 10% é exceção. Eu tenho 10% nessa coleção do paradidático e na outra também. E só. Essa daqui os três autores recebem 4%, um terço de 4% para cada um. Na coleção de quinta a oitava é 6% e no segundo grau 8%, no nosso caso. Bom, dando a público essas informações, a gente conseguiu que algumas editoras, aquelas que eram as piores, dessem uma melhorada nesses acertos. Bem, a Abrale nasceu dessa forma e as suas bandeiras de luta eram inicialmente essas: a valorização do autor, o reconhecimento dos direitos autorais. Mas a gente encontrou muita dificuldade nos três primeiros anos em travar diálogo com os editores e com o MEC. Por que o MEC? Porque

195 o MEC é um grande comprador de livros didáticos. Hoje, ele é o maior comprador de livros do mundo. Não há instituição que compre 110 milhões de livros. Não se tem notícia disso. A gente encontrou muita dificuldade em travar esse diálogo. Até que, em fevereiro de 95, quando o MEC anunciou os cinco pontos que ele considerava prioritário para Educação, e um desses cinco pontos era a melhoria da qualidade do livro didático, a Abrale soube tirar proveito desse fato, da seguinte maneira: nós imediatamente comunicamos ao MEC que, como autores, nós concordávamos, sim, em melhorar a qualidade do livro, e como somos responsáveis pelo que escrevemos assumíamos a parcela de responsabilidade que nos compete nisso. Quinze dias depois, eu não tinha recebido nenhum retorno desse fax, comecei caçar o fax em Brasília. Para encurtar a história, um mês depois, eu estava muito irritado porque não tinha tido retorno nenhum e aí tive uma atitude meio drástica: comuniquei-me com o contato máximo que eu tinha lá, que sabia onde esse fax tinha parado e perguntei se a coisa era de brincadeira ou era para valer. Porque a gente tinha acreditado, pensando no diálogo. Agora, se era de mentirinha, que avisasse, que eu parava de telefonar. Cinco minutos depois, o presidente da FAE ligou, dizendo: “Você tem toda razão de estar bravo porque não tiveram retorno, mas a correria não permitiu. Estou indo para São Paulo a semana que vem”. Tivemos uma reunião e nessa ele falou: “Agora eu quero as propostas de você para melhorar o livro”. E, daí, saiu esse documento, foram três meses de discussão com os autores, foi um documento tirado em assembléia, contendo as propostas da Abrale para melhorar a qualidade do livro didático. Aqui há vários pontos em que a gente focaliza o problema do livro por vários ângulos e dá várias sugestões, na visão da gente, que são essenciais para tentar melhorar o livro. A gente parte de alguns princípios, os “Princípios da Abrale”. Primeiro, é que “a observação dos preceitos democráticos exige que na avaliação do livro respeite-se o pluralismo de tendências e enfoques pedagógicos, bem como de posições ideológicas”. O outro é “o respeito à dignidade profissional exige que a livre escolha da obra seja atributo do professor”. E o terceiro princípio é que nós, autores, nos entendemos como educadores: somos educadores, não somos nenhuma outra categoria. Nos cobrem como tal! Esse documento foi muito bem recebido. E, a partir daí, a gente passou a fazer parte dessa discussão toda do processo de avaliação do livro didático. A partir daí, também conseguimos estabelecer diálogo com os editores. A partir do momento em que eles perceberam que não podiam avaliar o livro para valer, perceberam que não poderiam estar nisso sem a gente. Então, aí começamos travar diálogo com as entidades das editoras, a Abrelivros e a Câmara Brasileira de Livros. Claro que nem todos os interesses de autores e editores são antagônicos, nem todos são também comuns. Na questão dos direitos autorais é claro que a gente diverge deles. E, aí, estamos brigando para que isso melhore. Essa questão da prestação de contas, a gente conseguiu melhorar bastante. Agora, um ponto que é um grande nó, é grande caixa preta, é a questão do controle sobre as vendas. Esse é um ponto que a gente está se preparando para poder avançar. Há no Congresso Nacional um projeto lei que obriga a editora a numerar as obras, como, de fato, já valia antigamente. Só que a gente tem muita dúvida se esse processo é eficaz. O que é preciso é haver um controle sobre o número de exemplares vendidos. Agora, os problemas se fossem só esse, eu até estava satisfeito. Hoje, todo mundo que está nesse meio tem problemas muito maiores trazidos pela disseminação dos meios de reprodução. Isso vale para livro, xerox, software, para o CD, para tudo. Para vídeo. E sobre isso há uma outra entidade, eu participo dela, também, da diretoria da ABDR, Associação

196 Brasileira de Direitos Reprográficos, em que os autores também têm uma participação bastante significativa, em que a gente vem tentando encontrar os meios de atacar esse problema, um problema mundial. Outros países avançaram muito nisso. Não se trata de você impedir a reprografia, trata-se de disciplinar. É comum você chegar numa escola e o professor me dizer: “Olha, professor recebi esse livro, a editora me mandou, eu gostei demais, ele é tão bom que eu xeroquei e distribuí para os alunos”. É em tom de elogio que ele está falando isso, ele não tem a mínima noção do que ele está fazendo. A gente vive na cultura da pirataria e essas coisas passam a ser normais. Agora uma coisa que eu..., é que no momento essa questão da avaliação [dos livros didáticos] está sendo a mais urgente. E as coisas são..., eu acho que essa é uma semana decisiva... E na semana passada, a gente entrou em contato com o MEC porque sabia que a avaliação não estava andando, mas ficou garantido para essa semana que seríamos chamados pelo MEC para estar recebendo essas avaliações. Agora, tem algumas coisas que eu não vou poder dizer a você, porque não são dados oficiais, mas existem algumas notícias correndo que, se forem verdadeiras, elas são preocupantes.

Esta entrevista foi concedida em 7/5/1996. Na semana seguinte o MEC convocaria os representantes das editoras e dos autores para comunicar sumariamente que foram constatados livros com “erros”, tomando o cuidado, antes, de vazar algumas informações para a imprensa.

Epílogo

O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico. (...) Constitui uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (...): ... a verdade, cuja mãe é a história, êmulo do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro. Redigida no século XVII, redigida pelo “engenho leigo”, Cervantes, essa enumeração é um mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreve: ... a verdade, cuja mãe é a história, êmulo do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro. A história, mãe da verdade; a idéia é espantosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a história como uma indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas finais — exemplo e aviso do presente, advertência do futuro — são descaradamente pragmáticas. (Jorge Luis Borges)

Houve outrora um editor de livros que havia sido jornalista. O seu mote preferido era: “Paciência, Veja errou”. Ele não entendeu jamais que, ao contrário de jornal ou revista, que envelhecem tão logo sejam lidos, o livro tem a durabilidade da estante. Também não conseguiu nunca perceber que as pessoas não costumam adquirir edições sucessivas de um mesmo livro em que poderiam ver erratas – “Veja

200 errou” – referentes às edições anteriores. Mais do que isso, foi incapaz de compreender que a qualidade do livro está em sua consistência, que não necessariamente coincide com o sensacional, exótico, bizarro. Por isso, ao se deparar com um texto sobre Sócrates (o ateniense) em que a sua morte era descrita secamente, não titubeou e “balhornizou”: “Baseia-se, esta última acusação [corromper a juventude], no fato de Sócrates não esconder seus hábitos homossexuais (um comportamento não proibido e até comum na época)”. Quando o redator, indignado, foi reclamar da surpreendente “correção”, alertando que além de mentirosa a frase não fazia menor sentido – como condenar alguém por uma prática que não era proibido?! –, o editor limitou-se a esboçar um sorriso amarelo e murmurar: “Paciência, Veja errou”. A parábola talvez sirva para compreender melhor o “affaire Jobson-Piletti”, de que se falou na Introdução. Mylton Severiano da Silva, o bravo combatente Myltainho da imprensa alternativa, é um veterano jornalista e, como tal, está acostumado a produzir laudas e mais laudas em instantes, “costurando” com seu texto em estilo nervoso informações que copia de um press-release, dados que “chupa” de uma obscura publicação estrangeira, transcrição (sem aspas) de trechos de livros. A rápida perecibilidade da sua mídia assegura a impunidade dessas apropriações e, em todo caso, há sempre o recurso de “Veja errou”. Competentíssimo em seu ofício, o Myltainho, no entanto, como grande parte dos jornalistas, não entende muito bem o que é fazer livro: para ele é mesma coisa que fazer jornal. Recebeu um pacote com livros e apostilas do editor, que lhe disse: “Esse material é nosso, pode usar à vontade”. Esse “nosso” tem significado diferente para um editor de livro e para um jornalista. Para o editor de livro, o possessivo serve para indicar que aquele material pode ser usado à vontade, mas como referência. Para o jornalista é um sinal verde para cópia. E ele copiou – provavelmente o texto “plagiado” pareceu-lhe melhor, mais ágil, do que os trechos que descartou do livro original. Quem sabe se no final das contas o “plágio” não resultou em um bom livro? Convém também observar que esses “plágios” são bem mais freqüentes do que são denunciados. Quem já teve a paciência de cotejar verbetes sobre um mesmo assunto em enciclopédias diferentes sabe que é até possível traçar a árvore genealógica das sucessivas cópias. Até mesmo os erros se perpetuam saltando de uma publicação para outra. Também no respeitável mundo acadêmico são freqüentes

201 artigos de uma publicação serem reciclados para aproveitamento numa outra – basta comparar os artigos “El mundo como representación” e “Introdução. Por uma sociologia das práticas culturais”, ambos de Roger Chartier (1991 e 1990), mencionados na Bibliografia. Se se preferir um similar nacional, há, como mostra Martins(1) (1996, pp. 81 e 83), uma surpreendente coincidência de palavras entre trecho da tese de doutorado de Teresa Roserley Neubauer da Silva, de 1988, e de um artigo, de 1986, escrito por uma equipe da Cenp, que ela então dirigia. Também há um caso extravagante de um livro, originalmente uma tese de livre-docência, em que trechos inteiros (algo em torno de três páginas) foram copiadas para páginas adiante do mesmo livro! Por fim, resta lembrar que trabalhando como “frila” o interesse do jornalista Myltainho era produzir o máximo de laudas possível no mínimo de tempo. É por essas que Wilma Silveira Rosa de Moura, editora da Ática, prefere não trabalhar com freelancer: Eu trabalho bastante com freelancer, mas é bastante relativo. Tudo que eu puder fazer internamente eu faço, porque a qualidade é outra. Aconteceu muito, pessoas que eu conhecia o trabalho fora daqui. São pessoas realmente legais, que trabalham bem. Mas quando passam para condição de freelancer a coisa muda de figura. Porque a pessoa não está identificada com aquele trabalho. Ela tem que te dar uma resposta rápida. Ela tem que atender a vários lugares ao mesmo tempo. Então, ela fica assim de trabalho. A responsabilidade é muito menor, porque ela entrega e vai embora. Faz um trabalho meio alienado.

O que na verdade todo esse episódio revela é o profundo amadorismo dos procedimentos envolvidos – e esse é o ponto que realmente interessa aqui. Ao menos atento dos leitores não terá escapado a insistência com que se abordou, ao longo destas páginas, o tema da profissionalização dos trabalhadores em livros didáticos, editores e autores. Anos a fio, literalmente, eles se debruçam sobre um mesmo material. O autor escreve, reescreve, reescreve e reescreve. Tomado de uma perversa obstinação, só repousa quando flagrar aquele mínimo deslize, conceitual ou tipográfico, escondido no emaranhado das letras. O revisor faz dessa obstinação sua razão de ser. O copidesque persegue a perfeição do estilo, plenamente consciente, de antemão, de que O Texto não existe a não ser nas abstrações acadêmicas. E os artistas gráficos podem se entreter à exaustão falando de papel, letra, cor e mancha. Mal o livro chega da gráfica – ou mesmo antes – o autor invade a sala de aula de um amigo

202 ou reúne os adolescentes do condomínio para experimentar a eficácia da obra. E se põe a reescrever. Gilberto Cotrim, durante a entrevista, comparou duas edições de uma mesma obra sua para mostrar as alterações que foram introduzidas. A edição mais nova tinha acabado de ser lançada, mas o exemplar do autor estava bastante rabiscado e anotado – uma nova versão já estava sendo preparada. Os autores também lêem obras de colegas-concorrentes; dizem ler trabalhos universitários para se atualizarem. O mesmo Cotrim afirma que acompanha a evolução dos livros didáticos espanhóis, franceses e argentinos. Enquanto isso, o professor Jobson Arruda declara não ler jamais livros didáticos. Certamente ele não tem nenhuma culpa nesse incidente, mas ele não é profissional. Do mesmo modo, o jornalista Mylton Severiano da Silva, em matéria de livro didático não é profissional: não se faz numa tacada o copidesque de um livro didático, ainda mais uma fusão de duas obras: não é mesma coisa que fazer matéria para Veja. E João Guizzo, profissionalíssimo editor, um dos pilares da Ática e um dos artífices da rotina de produção profissional de livros didáticos, ao menos nesse episódio comportou-se de modo assustadoramente amadorístico: ele sabe que não é assim que se faz. No fundo, nada disso tem importância, a não ser por uma questão pontual: o episódio do “plágio” não serve de peça de acusação contra a indústria cultural, como os seus detratores gostariam que tivesse sido. O caso não revela a natureza essencialmente corrompida dessa indústria; apenas mostra o que acontece quando não se trabalha direito. O livro didático ruim, mal cuidado, cheio de erros e preconceitos, ocorre não por causa da indústria cultural, mas onde ela falha. A busca do lucro não tem como corolário necessário um produto ruim. Muito menos um sistema de ensino que faz minguar a dignidade do professor, como pretende Ezequiel Theodoro da Silva (1996): Costumo esclarecer que à perda crescente da dignidade do professor brasileiro contrapõe-se o lucro indiscutível e estrondoso das editoras de livros didáticos. [p. 11.]

Nesse artigo, em que apenas faz desfilar os velhos chavões – “manuais à Disney”, “mecanização da mente e a passividade diante de atividades de estudo” etc.–, o autor procura justificar a falta de análises mais palpáveis:

203 A natureza polêmica e espinhosa do assunto levou-me à adoção de um estilo não-acadêmico, sem citações ou referências de apoio para sustentar as minha afirmações. A argumentação por mim privilegiada seguiu a linha da experiência docente (27 anos de magistério em todos os níveis de ensino, da 1a série do 1o grau ao 4o ano da universidade) e das agruras vividas, sendo (ou tentando ser) professor “de verdade” dentro de escolas públicas marcadas por privações crescentes. [p. 14.]

Nesse comovente currículo, o autor apenas esqueceu-se de acrescentar que também fora (ao menos à época da publicação do artigo) secretário da Educação do município de Campinas (São Paulo), responsável (no plano local, é verdade) por uma política educacional que pode ou não contribuir para a “perda crescente da dignidade do professor brasileiro”. A crítica do livro didático deve-se situar numa outra ordem. Como diz Lizânias de Souza Lima, editor da FTD: Eu teria uma última coisa a dizer: que a grande distorção, que não vai se resolver agora e está há muito tempo se estendendo, é o produto cultural ser regido pelas leis de mercado.

As leis do mercado reinam soberanas exatamente porque ocuparam o espaço deixado pelo o vazio de política cultural e educacional. O professor perde a dignidade não porque as editoras têm lucro, mas porque faltam políticas que restituam dignidade ao professor. Se o professor torna-se prisioneiro do fetichismo da mercadoria do livro didático, sem condições de criticá-lo, é porque a qualificação desse professor deixou há muito de ser prioridade da política educacional, que chega a delegar às editoras e aos autores a realização de cursos de capacitação dos professores. Em suma, toda essa discussão sobre o lucro das editoras não passa de diversionismo. Uma discussão mais frutífera sobre o livro didático deve recolocá-lo onde sempre esteve, isto é, aquém das leituras que a fiscalização da ortodoxia exige. Como se queixavam editores e autores, não faz sentido ler um livro didático buscando nele a última contribuição da Ciência à humanidade. Não adianta tampouco reclamar que nele os conteúdos se petrificam, impossibilitando a reflexão crítica. Qualquer texto, por mais malabarismo dialético que possa executar, acaba se cristalizando em tinta e papel: afinal, livro é coisa. O que se faz com coisa é uma outra história. Talvez o mais atento dos leitores não tenha dessa vez percebido, mas ao longo destas páginas as palavras “ler” e “leitura” foram sendo gradativamente substituídas por “usar” e “uso”. Assim fizeram os entrevistados, assim também fez o

204 escrevinhador desta tese. Pois, a rigor, livro didático não é para ser lido como se lê um tratado científico – postura adotada por muitos críticos de conteúdo dos livros didáticos. Livro didático é para usar: ser carregado à escola; ser aberto; ser rabiscado (não, isso não pode, o livro não pode ser consumível!); ser dobrado; ser lido em voz alta em alguns trechos e em outros, em silêncio; ser copiado (não se pode consumilo!); ser transportado de volta à casa; ser aberto de novo; ser “estudado”. Raros livros didáticos, a não ser aqueles intrincados produzidos por Imenes e Lellis, são efetivamente lidos de cabo a rabo, do mesmo modo que ninguém lê um dicionário ou uma enciclopédia de A a Z – à exceção, é claro, daquela japonesa ninja que salvou James Bond. Define Lajolo (1996), num artigo significativamente intitulado “Livro didático: um (quase) manual de usuário”: Didático, então, é o livro que vai ser utilizado em aulas e cursos, que provavelmente foi escrito, editado, vendido e comprado, tendo em vista essa utilização escolar e sistemática. [...] [...] Assim, para ser considerado didático, um livro precisa ser usado, de forma sistemática, no ensino-aprendizagem de um determinado objeto do conhecimento humano, geralmente já consolidado como disciplina escolar. Além disso, o livro didático caracteriza-se ainda por ser passível de uso na situação específica da escola, isto é, do aprendizado coletivo e orientado por um professor. [pp. 4-5.]

Objeto para ser usado, livro didático implica não uma relação direta e imediata do aluno e do professor com o conteúdo, esse mundo platônico de formas inteligíveis, mas antes atividades, práticas e fazeres, numa situação efetiva de ensino e aprendizagem. Nunes (1992) e Cordeiro (1994) já alertavam para essas questões, como foi indicado na Introdução e no Capítulo 1, respectivamente. Também Bittencourt (1993) dedica todo um capítulo da sua tese a esse tema: [...] buscamos identificar os leitores na sala de aula, situando professores e alunos diante do livro, no ato de apreensão do texto, entendendo este espaço como um lugar de conflito. [p. 289.]

A tal abordagem repugna a abstração. “Ler” não é um ação unívoca e monossêmica, mas vários atos: O livro didático foi construído para que a leitura se realizasse de duas formas. O primeiro momento era mediado pelo professor, o agente organizador da leitura em grupo. Os alunos deveriam ler em voz alta,

205 na sala de aula, dividindo a leitura com seus companheiros de classe. [...] A seqüência de leitura do livro didático, ou a etapa seguinte da leitura, levava-o a partilhar uma prática erudita e individualizada. O aluno teria que “privatizar” sua leitura, lendo individualmente para decorar textos ou realizar os exercícios pedagógicos ou outras formas de fixação da leitura. “Escutar ler” foi outra prática freqüente na sala de aula. O professor lia para seus alunos. [...] [Bittencourt 1993, p. 319.]

Não se deve abstrair nem tampouco a mobília que serve de suporte material dessas leituras (p. 321). Seguindo essa sinalização, abre-se assim um terreno inteiro a ser explorado: o das práticas de uso dos livros didáticos. Esse é o tema que a presente tese, na sua conclusão e como sua pequena contribuição, coloca à disposição de quem queira nele se aventurar.

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16/12/1996

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16/121996

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Editor (FTD)

2/12/1996

Isabel Simões

Editor (Ática)

2/5/1996

Jaime Pinsky

Editor (Contexto)

João Guizzo

Editor (Ática)

José Olavio Dutra

SEEL

19/9/1996

José Ruy Giovanni

Autor (Matemática)

2/12/1996

Lizânias de Souza Lima

Editor (FTD)

Luiz Imenes

Autor (Matemática)

2/5/1996

Marcelo Lellis

Autor (Matemática)

16/12/1996

Maria Lúcia de Arruda Aranha

Autor (Filosofia)

16/12/1996

Neri E. Stein

SEEL

19/9/1996

Ricardo Yorio

SEEL

19/9/1996

Rosi Meire M. Ortega

SEEL

19/9/1996

Rosiane Oliveira Silva

Editor (FTD)

2/12/1996

Sandra Almeida

Editor (Ática)

6/5/1996

Wilma Silveira Rosa de Moura

Editor (Ática)

6/5/1996

1.2. Periódicos ALMANAQUE ABRIL. BOLETIM INFORMATIVO ABRALE / BOLETIM DA ABRALE / INFORMATIVO ABRALE. FOLHA DE S.PAULO. ISTOÉ.

24/9/1996 2/5/1996

20/11/1996

207

LEIA LIVROS / LEIA. LECIONARE. O ESTADO DE S.PAULO. O ORIGINAL – Órgão de divulgação do Sindicato dos Empregados em Empresas Editoras de Livros e Publicações Culturais de São Paulo. VEJA.

1.3. Catálogos, folhetos, material publicitário ATUAL EDITORA. CALLIS EDITORA. CASA PUBLICADORA BRASILEIRA. COMPANHIA MELHORAMENTOS DE SÃO PAULO. EDITORA AO LIVRO TÉCNICO. EDITORA ÁTICA. EDITORA AUGUSTUS. EDITORA BRAGA. EDITORA CONTEXTO. EDITORA DO BRASIL. EDITORA FTD. EDITORA HARBRA. EDITORA MODERNA. EDITORA RIDEEL. EDITORA SARAIVA. EDITORA SCIPIONE. FORMATO. GLOBAL EDITORA.

1.4. Documentos avulsos ABRALE s.d.

Bem-vindo à Abrale!

_________ 1995

Propostas da Abrale para a melhoria da qualidade do livro didático. Encaminhadas à FAE em 14 de junho de 1995.

208

_________ 1996

Melhoria da qualidade do livro didático. Considerações sobre o estágio atual do processo de avaliação. Documento da Abrale encaminhado à FAE/SEF/MEC em 29 de maio de 1996.

CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO s.d.

Tabelas.

_________ 1996

Bienal do Livro teve faturamento de 84,2 milhões de dólares.

MEC/FAE (?) s.d.

Requisitos obrigatórios para os livros didáticos do Nordeste.

PARANÁ (ESTADO)/SEED 1994

Concorrência UCP/SEED n° 001/94.

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BASSI, Cristina M.; e LEITE, Márcia 1992

Português: leitura e expressão. São Paulo, Atual. 4 vol. Ed. renovada.

BIANCHINI, Edwaldo; e PACCOLA, Herval 1995

Matemática. São Paulo, Moderna. 4. vol. 2a ed. rev. e ampl.

BURLAND, C. A. 1992

Os incas. São Paulo, Melhoramentos. 2a ed. rev. e ampl. (col. “Povos do Passado”).

CAMPOS, Flavio DE; e DOLHNIKOFF, Miriam 1993

Atlas. História do Brasil. São Paulo, Scipione.

CHAUI, Marilena 1995

Convite à filosofia. São Paulo, Ática.

CÓCCO, Maria Fernandes; e HAILER, Marco Antonio 1995

ALP. Análise, linguagem e pensamento. São Paulo, FTD. 4 vol. Ed. renovada.

DREGUER, Ricardo; e TOLEDO, Eliete 1995

História. Cotidiano e mentalidades. São Paulo, Atual. 4 vol.

FAUSTO, Bóris 1995

História do Brasil. São Paulo, Edusp.

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O que sabemos sobre livro didático. Catálogo analítico. Campinas, Unicamp.

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