LENIN, Vladimir. As Teses de Abril

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AS TESES DE ABRIL Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução[N13] V. I. LÉNINE 07 ABRIL DE 1917

SUMÁRIO As teses de abril................................................................................. 3 As “Teses de abril”, de Lenin - Por Slavoj Žižek ............................. 14 As Teses de Abril, farol da revolução proletária ............................ 19 De fevereiro a abril ...................................................................... 19 Confraternização na frente. ........................................................ 25 A Luta pelo rearmamento do partido......................................... 29 O "anarquismo" de Lênin ............................................................ 33 O papel do partido na revolução ................................................ 35 Não haveria Outubro sem Abril: centenário das Teses de Abril de Lênin - Por Altair Freitas .................................................................. 44

AS TESES DE ABRIL INTRODUÇÃO Tendo chegado a Petrogrado só no dia 3 de Abril à noite, é natural que apenas em meu nome e com as reservas devidas à minha insuficiente preparação tenha podido apresentar na assembleia de 4 de Abril um relatório sobre as tarefas do proletariado revolucionário. A única coisa que podia fazer para me facilitar o trabalho a mim próprio — e aos contraditores de boa-fé — era preparar teses escritas. Li-as e entreguei o texto ao camarada Tseretéli. Li-as muito devagar e por duas vezes: primeiro na assembleia dos bolcheviques e depois na de bolcheviques e menchevíques. Publico estas minhas teses pessoais acompanhadas unicamente de brevíssimas notas explicativas, que no relatório foram desenvolvidas com muito maior amplitude.

TESES 1. Na nossa atitude perante a guerra, que por parte da Rússia continua a ser indiscutivelmente uma guerra imperialista, de rapina, também sob o novo governo de Lvov e C.a, em virtude do carácter capitalista deste governo, é intolerável a menor concessão ao «defensismo revolucionário».

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O proletariado consciente só pode dar o seu assentimento a uma guerra revolucionária que justifique verdadeiramente o defensismo revolucionário nas seguintes condições: a) passagem do poder para as mãos do proletariado e dos sectores pobres do campesinato que a ele aderem; b) renúncia de facto, e não em palavras, a todas as anexações; c) ruptura completa de facto com todos os interesses do capital. Dada a indubitável boa-fé de grandes sectores de representantes de massas do defensismo revolucionário, que admitem a guerra só como uma necessidade e não para fins de conquista, e dado o seu engano pela burguesia, é preciso esclarecêlos sobre o seu erro de modo particularmente minucioso, perseverante, paciente, explicar-lhes a ligação indissolúvel do capital com a guerra imperialista e demonstrar-lhes que sem derrubar o capital é impossível pôr fim à guerra com uma paz verdadeiramente democrática e não imposta pela violência. Organização da mais ampla propaganda deste ponto de vista no exército em operações. Confraternização. 2. A peculiaridade do momento actual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para a sua segunda etapa, que deve 4 | VLADIMIR LENIN

colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato. Esta transição caracteriza-se, por um lado, pelo máximo de legalidade (a Rússia é agora o país mais livre do mundo entre todos os países beligerantes); por outro lado, pela ausência de violência contra as massas e, finalmente, pelas relações de confiança inconsciente destas com o governo dos capitalistas, os piores inimigos da paz e do socialismo. Esta peculiaridade exige de nós habilidade para nos adaptarmos às condições especiais do trabalho do partido entre as amplas massas do proletariado duma amplitude sem precedentes que acabam de despertar para a vida política. 3. Nenhum apoio ao Governo Provisório, explicar a completa falsidade de todas as suas promessas, sobretudo a da renúncia às anexações. Desmascaramento, em vez da «exigência» inadmissível e semeadora de ilusões de que este governo, governo de capitalistas, deixe de ser imperialista. 4. Reconhecer o facto de que, na maior parte dos Sovietes de deputados operários, o nosso partido está em minoria, e, de momento, numa minoria reduzida, diante do bloco de todos os elementos oportunistas pequeno-burgueses, sujeitos à influência da burguesia e que levam a sua influência para o seio do proletariado, desde os socialistas-populares[N14] e os socialistasrevolucionários[N15] até ao CO[N16] (Tchkheídze, Tseretéli, etc), Steklov, etc.

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Explicar às massas que os SDO(1*) são a única forma possível de governo revolucionário e que, por isso, enquanto este governo se deixar influenciar pela burguesia, a nossa tarefa só pode consistir em explicar os erros da sua táctica de modo paciente, sistemático, tenaz, e adaptado especialmente às necessidades práticas das massas. Enquanto estivermos em minoria, desenvolveremos um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros, defendendo ao mesmo tempo a necessidade de que todo o poder de Estado passe para os Sovietes de deputados operários, a fim de que, sobre a base da experiência, as massas se libertem dos seus erros. 5. Não uma república parlamentar — regressar dos SDO a ela seria um passo atrás, mas uma república dos Sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses em todo o país, desde baixo até acima. Supressão da polícia, do exército e do funcionalismo(2*). A remuneração de todos os funcionários, todos eles elegíveis e exoneráveis em qualquer momento, não deverá exceder o salário médio de um bom operário. 6. No programa agrário, transferir o centro de gravidade para os Sovietes de deputados assalariados agrícolas. Confiscação de todas as terras dos latifundiários. Nacionalização de todas as terras do país, dispondo da terra os Sovietes locais de deputados assalariados agrícolas e 6 | VLADIMIR LENIN

camponeses. Criação de Sovietes de deputados dos camponeses pobres. Fazer de cada grande herdade (com uma dimensão de umas 100 a 300 deciatinas, segundo as condições locais e outras e segundo a determinação das instituições locais) uma exploraçãomodelo sob o controlo dos deputados assalariados agrícolas e por conta da colectividade. 7. Fusão imediata de todos os bancos do país num banco nacional único e introdução do controlo por parte dos SDO. 8. Não «introdução» do socialismo como nossa tarefa imediata, mas apenas passar imediatamente ao controlo da produção social e da distribuição dos produtos por parte dos SDO. 9. Tarefas do partido: a) congresso imediato do partido; b) modificação do programa do partido, principalmente: 1. sobre o imperialismo e a guerra imperialista, 2. sobre a posição perante o Estado e a nossa reivindicação de um « Estado-Comuna »(3*), 3. emenda do programa mínimo, já antiquado; c) mudança de denominação do partido(4*). 10. Renovação da Internacional.

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Iniciativa de constituir uma Internacional revolucionária, uma Internacional contra os sociais-chauvinistas e contra o «centro»(5*). Para que o leitor compreenda por que tive de sublinhar de maneira especial, como rara excepção, o «caso» de contraditores de boa-fé, convido-o a comparar estas teses com a seguinte objecção do Sr. Goldenberg: Lénine «hasteou a bandeira da guerra civil no seio da democracia revolucionária» (citado no Edinstvo[N18] do Sr. Plekhánov, n.° 5). Uma pérola, não é verdade? Escrevo, leio e mastigo: «Dada a indubitável boa-fé de grandes sectores de representantes de massas do defensismo revolucionário ... dado o seu engano pela burguesia, é preciso esclarecê-los sobre o seu erro de modo particularmente minucioso, paciente e perseverante ... E esses senhores da burguesia, que se dizem sociaisdemocratas, que não pertencem nem aos grandes sectores nem aos representantes de massas do defensismo, apresentam de rosto sereno as minhas opiniões, expõem-nas assim: «hasteou (!) a bandeira (!) da guerra civil» (sobre a qual não há uma palavra nas teses, não há uma palavra no relatório!) «no seio (!!) da democracia revolucionária...». Que significa isto? Em que se distingue de uma agitação de pogromistas? da Rússkaia Vólia[19]? Escrevo, leio e mastigo: «Os Sovietes de DO são a única forma possível de governo revolucionário e, por isso, a nossa tarefa só 8 | VLADIMIR LENIN

pode consistir em explicar os erros da sua táctica de modo paciente, sistemático, tenaz, e adaptado especialmente às necessidades práticas das massas...» Mas contraditores de uma certa espécie expõem as minhas opiniões como um apelo à «guerra civil no seio da democracia revolucionária»!! Ataquei o Governo Provisório por não marcar um prazo próximo, nem nenhum prazo em geral, para a convocação da Assembleia Constituinte e se limitar a promessas. Demonstrei que sem os Sovietes de deputados operários e soldados não está garantida a convocação da Assembleia Constituinte, o seu êxito é impossível. E atribuem-me a opinião de que sou contrário à convocação imediata da Assembleia Constituinte!!! Qualificaria tudo isto de expressões «delirantes» se dezenas de anos de luta política não me tivessem ensinado a considerar a boa-fé dos contraditores como uma rara excepção. No seu jornal, o Sr. Plekhánov qualificou o meu discurso de «delirante». Muito bem, Sr. Plekhánov! Mas veja quão desajeitado, inábil e pouco perspicaz é você na sua polémica. Se durante duas horas pronunciei um discurso delirante, como é que centenas de ouvintes aguentaram esse «delírio»? Mais ainda. Para que dedica o seu jornal toda uma coluna a relatar um «delírio»? Isso não pega, não pega mesmo nada.

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É muito mais fácil, naturalmente, gritar, insultar e vociferar que tentar expor, explicar e recordar como raciocinaram Marx e Engels em 1871, 1872 e 1875 sobre a experiência da Comuna de Paris[N20] e sobre qual o Estado de que o proletariado necessita. Provavelmente o ex-marxista Sr. Plekhánov não deseja recordar o marxismo. Citei as palavras de Rosa Luxemburg, que em 4 de Agosto de 1914 chamou à social-democracia alemã «cadáver malcheiroso». E os Srs. Plekhánov, Goldenberg e C.a sentem-se «ofendidos»... por quem? Pelos chauvinistas alemães, qualificados de chauvinistas! Enredaram-se os pobres sociais-chauvinistas socialistas nas palavras e chauvinistas de facto.

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russos,

Notas de rodapé: (1*) Sovietes de deputados operários. (N. Ed.) (retornar ao texto) (2*) Isto é, substituição do exército permanente pelo armamento geral do povo. (retornar ao texto) (3*) Isto é, de um Estado cujo protótipo foi dado pela Comuna de Paris[N17]. (retornar ao texto) (4*) Em lugar de «social-democracia», cujos chefes oficiais traíram o socialismo no mundo inteiro, passando para o lado da burguesia (os «defensistas» e os vacilantes «kautskianos»), devemos denominar-nos Partido Comunista. (retornar ao texto) (5*) Na social-democracia internacional chama-se «centro» a tendência que vacila entre os chauvinistas (= «defensistas») e os internacionalistas, isto é, Kautsky e C.a na Alemanha. Longuet e C.a na França, Tchkheídze e C" na Rússia, Turati e C.a na Itália, MacDonald e C.a na Inglaterra, etc. (retornar ao texto) Notas de fim de tomo: [N13] O artigo Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução, publicado em 7 de Abril de 1917 no jornal Pravda, n.O26, com a assinatura de N. Lénine, contém as famosas Teses de Abril de V.I. Lénine, aparentemente escritas durante a viagem de comboio, nas vésperas da sua chegada a Petrogrado. Lénine leu as suas teses em duas reuniões do dia 14 (17) de Abril: na reunião de bolcheviques e na reunião conjunta de bolcheviques e mcnchcviqucs delegados à Assembleia de Toda a Rússia dos Sovietes de deputados operários e soldados, cfectuada no Palácio de Táurida. Lénine desenvolveu e concretizou pormenorizadamcnte as Teses de Abril no trabalho As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução (Projecto de Plataforma do Partido Proletário), escrito em 10 (23) de Abril de 1917. Ver o presente tomo, pp. 21-48.) (retornar ao texto) [N14] Socialistas-populares: membros do Partido Socialista Popular do Trabalho, pequeno-burguês, criado em 1906 com base na ala direita do Partido SocialistaRevolucionário. Os «socialistas-populares» eram partidários duma aliança com os democratas-constitucionalistas. À frente do partido encontravam-se A. V. Pechekhónov, N. F. Annénski, V. A.

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Miakotine e outros. Durante a Primeira Guerra Mundial os «socialistaspopulares» adoptaram posições sociais-chauvinistas. Depois da revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917, o partido dos «socialistaspopulares» fundiu-se com os trudoviques, apoiou a actividade do Governo Provisório burguês, no qual estava representado. Depois da Revolução Socialista de Outubro os «socialistas-populares» participaram em conspirações e levantamentos armados contra-revolucionários contra o Poder Soviético. (retornar ao texto) [N15] Socialistas-revolucionários: membros dum partido pequeno-burguês russo criado em fins de 1901, princípio de 1902. Durante a guerra imperialista mundial, a maior parte dos socialistas-revolucionários adoptaram posições sociaischauvinistas. Após a revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917, os socialistas-revolucionários, juntamente com os mencheviques, foram o apoio principal do Governo Provisório contra-revolucionário, e dirigentes deste partido (Kérenski, Avxéntiev, Tchernov) fizeram parte do Governo. O partido dos socialistas-revolucionários renunciou a apoiar a reivindicação camponesa da liquidação dos latifundiários. Os ministros do Governo Provisório membros do partido dos socialistas-revolucionários enviaram destacamentos punitivos contra os camponeses que tinham tomado as terras dos latifundiários. Depois da Revolução Socialista de Outubro, os socialistas-revolucionários, em aliança com a burguesia, com os latifundiários e com os intervencionistas estrangeiros, lutavam activamente contra o Poder Soviético. (retornar ao texto) [N16] CO: Comité de Organização. Foi criado em 1912 na conferência de Agosto dos liquidacionistas. Durante a guerra imperialista mundial o CO adoptou uma posição social-chauvinista. O CO funcionou até à eleição do CC do partido menchevique no congresso "de unificação" do POSDR (menchevique) em Agosto de 1917. (retornar ao texto) [N17] Comuna de Paris de 1871: a primeira experiência de ditadura do proletariado na história da humanidade; governo revolucionário da classe operária instituído pela revolução proletária em Paris. Existiu durante 72 dias, de 18 de Março a 28 de Maio de 1971. (retornar ao texto) [N18] Edinstvo (Unidade): jornal diário, órgão do grupo de extrema-direita dos mencheviques defensistas chefiado por G. V. Plekhánov. Publicou-se em Petrogrado de Março a Novembro de 1917; de Dezembro de 1917 a Janeiro de 1918 publicou-se com o nome de Nache Edinstvo (Nossa Unidade). Manifestando-se pelo apoio ao Governo Provisório, à coligação com a burguesia,

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por um «poder firme», o jornal exigia a continuação da guerra imperialista «até à vitória completa»; juntamente com a imprensa burguesa e centrista participou na campanha contra os bolcheviques. Teve uma atitude hostil em relação à Revolução de Outubro e à instauração do Poder Soviético. (retornar ao texto) [N19] Rússkaia Vólia (Liberdade Russa): diário burguês fundado pelo ministro tsarista do Interior A. D. Protopópov e financiado pelos grandes bancos. Publicou-se em Petrogrado de Dezembro de 1916 a Outubro de 1917. (retornar ao texto) [N20] Ver K. Marx e F. Engels, Prefácio à edição alemã do «Manifesto do Partido Comunista» de 1872; K. Marx, A Guerra Civil em França. Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, Critica do Programa de Gotha; F. Engels, Carta a A. Bebel de 18-28 de Março de 1875; K. Marx, Cartas a L. Kugelmann de 12 e de 17 de Abril de 1871. (ln Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 4, S. 573-574; Bd. 17, S. 335-350; (retornar ao texto)

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AS “TESES DE ABRIL”, DE LENIN POR SLAVOJ ŽIŽEK No centenário da publicação das “Teses de abril” de Lenin, o Blog da Boitempo recupera um trecho do livro Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917, uma antologia de textos históricos de Lenin selecionados, introduzidos e posfaciados por Slavoj Žižek, em que o filósofo esloveno comenta as lições que podemos tirar da ousadia do revolucionário russo naquele momento decisivo da história mundial. *** Quando, em suas “Teses de abril” (1917), Lenin identificou a Augenblick – a oportunidade única para uma revolução –, suas propostas foram inicialmente recebidas com estupor ou desdém pela grande maioria de seus colegas de partido. Nenhum líder proeminente dentro do Partido Bolchevique apoiou seu chamado à revolução, e o Pravda deu o extraordinário passo de dissociar o partido, assim como seu conselho editorial como um todo, das “Teses de abril”. Lenin estava longe de ser um oportunista que procurava lisonjear e explorar a atmosfera prevalecente entre o populacho; seus pontos de vista eram altamente idiossincráticos. Bogdanov caracterizou as “Teses de abril” como “o delírio de um louco”, e a própria Nadejda Krupskaia concluiu: “Temo que Lenin tenha enlouquecido”. Esse é o Lenin de quem ainda temos o que aprender. A grandeza de Lenin residiu em, nessa situação catastrófica, não ter 14 | VLADIMIR LENIN

medo de triunfar – em contraste com o páthos negativo discernível em Rosa Luxemburgo e Adorno, para quem o ato autêntico em última instância era a admissão do fracasso que traz à luz a verdade da situação. Em 1917, em vez de esperar até que as condições fossem propícias, Lenin organizou um ataque preventivo; em 1920, como líder do partido da classe operária sem classe operária (a maior parte havia sido dizimada na guerra civil), ele deu prosseguimento à organização de um Estado, aceitando plenamente o paradoxo de um partido que tinha de organizar – e até recriar – sua própria base, sua classe operária. Em nenhum lugar essa grandeza é mais evidente do que nos escritos de Lenin que cobrem o período de fevereiro de 1917 – quando a primeira revolução aboliu o tsarismo e instalou um regime democrático – até a segunda revolução, em outubro. O texto de abertura deste volume (“Cartas de longe”) revela a compreensão inicial que Lenin teve daquela possibilidade revolucionária única, e o último texto (as minutas da “Reunião do Soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado”) declara a tomada de poder pelos bolcheviques. Tudo está aqui, do Lenin “engenhoso estrategista militar” ao Lenin “da utopia decretada” (da imediata abolição do aparelho de Estado). Para nos referirmos novamente a Kierkegaard: o que podemos perceber nesses escritos é o Lenin em construção: não é ainda o Lenin “instituição soviética”, mas o Lenin jogado numa situação indefinida. Seremos ainda capazes, hoje em dia, de vivenciar o impacto devastador de um momento de “abertura” histórica de tal proporção, quando se “fecha” um ciclo no qual o capitalismo tardio decretou o “fim da história”? AS TESES DE ABRIL | 15

Em fevereiro de 1917, Lenin era um emigrante político quase anônimo, perdido em Zurique, sem contatos confiáveis na Rússia, informando-se sobre os eventos basicamente pela imprensa suíça; em outubro de 1917 ele liderava a primeira revolução socialista bem-sucedida no mundo. O que aconteceu entre esses dois momentos? Em fevereiro, Lenin percebeu imediatamente a possibilidade revolucionária, o resultado de singulares circunstâncias contingentes – se o momento não fosse aproveitado, a possibilidade da revolução seria postergada, talvez por décadas. Em sua insistência obstinada de que se deveria correr o risco e prosseguir para o próximo estágio – ou seja, repetir a revolução –, ele estava só, ridicularizado pela maioria dos membros do comitê central de seu próprio partido; esta seleção de seus textos procura mostrar um pouco do obstinado, paciente – e muitas vezes frustrante –, trabalho revolucionário com o qual Lenin impôs sua visão. Mesmo que a intervenção pessoal de Lenin tenha sido indispensável, contudo, não devemos transformar a história da Revolução de Outubro na história de um gênio solitário, confrontado com as massas desorientadas e gradualmente impondo suas ideias. Lenin triunfou porque seu apelo, ao mesmo tempo que passava por cima da nomenklatura do partido, encontrou eco naquilo que se poderia chamar de micropolítica revolucionária: a incrível explosão da democracia popular, de comitês locais surgindo em torno de todas as grandes cidades da Rússia e, ignorando a autoridade do governo “legítimo”, tomando a situação em suas próprias mãos. Essa é a história não contada da Revolução de Outubro, o oposto do mito de um pequeno grupo de revolucionários implacavelmente dedicados que deram um golpe de Estado. 16 | VLADIMIR LENIN

A primeira coisa que chama a atenção do leitor atual é como os textos de Lenin de 1917 são facilmente legíveis: não há necessidade de longas notas explicativas – mesmo que os nomes nos sejam desconhecidos, imediatamente compreendemos o que está em jogo. Da distância histórica que temos hoje, os textos apresentam uma clareza quase clássica ao traçar os contornos da luta da qual participaram. Lenin está completamente ciente do paradoxo desta situação: na primavera de 1917, depois da Revolução de Fevereiro, que derrubou o regime tsarista, a Rússia era o país mais democrático em toda a Europa, com um grau sem precedentes de mobilização de massas, liberdade de organização e liberdade de imprensa – ainda assim, essa liberdade tornou a situação não transparente, profundamente ambígua. Se há uma linha comum que perpassa todos os textos de Lenin escritos entre as duas revoluções (a de Fevereiro e a de Outubro), é sua insistência na distância que separa os contornos formais “explícitos” da luta política entre a multiplicidade de partidos e outros assuntos políticos das verdadeiras questões (paz imediata, distribuição da terra e, é claro, “todo o poder aos sovietes”, ou seja, o desmantelamento do aparelho de Estado existente e sua substituição por novas formas de administração social ao estilo das comunas). Essa distância é a distância entre a revolução qua explosão imaginária da liberdade em entusiasmo sublime, o momento mágico da solidariedade universal quando “tudo parece possível”, e o trabalho duro da reconstrução social que deve ser realizado se essa explosão entusiasmada deixar marcas na inércia do próprio edifício social.

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Essa distância – uma repetição da distância entre 1789 e 1793 na Revolução Francesa – é o próprio espaço da intervenção singular de Lenin: a lição fundamental do materialismo revolucionário é que a revolução deve atacar duas vezes, e por razões essenciais. A distância não é simplesmente a distância entre a forma e o conteúdo: o que a “primeira revolução” perde não é o conteúdo, mas a própria forma – ela permanece presa à velha forma, acreditando que a liberdade e a justiça podem ser conseguidas se simplesmente colocarmos o aparelho de Estado existente e os mecanismos democráticos para funcionar. E se o partido “bom” vencer as eleições livres e implementar “legalmente” a transformação socialista? (A mais clara expressão dessa ilusão, beirando o ridículo, é a tese de Karl Kautsky, formulada na década de 1920, de que a forma política lógica no primeiro estágio do socialismo, da passagem do capitalismo para o socialismo, é a coalizão parlamentar de partidos burgueses e proletários.) Aqui há um paralelo perfeito com o início da era da modernidade, quando a oposição à hegemonia ideológica da Igreja se articulou inicialmente na forma de outra ideologia religiosa, como uma heresia: seguindo a mesma linha, os partidários da “primeira revolução” queriam subverter a dominação capitalista em sua própria forma de democracia capitalista. Essa é a “negação da negação” hegeliana: primeiro a antiga ordem é negada dentro de sua própria forma político-ideológica; depois é a própria forma que deve ser negada. Aqueles que titubeiam, aqueles que têm medo de dar o segundo passo para superar a forma em si, são aqueles que (parafraseando Robespierre) querem uma “revolução sem revolução” – e Lenin mostra toda a força de sua “hermenêutica da suspeita” ao explicar as diferentes formas desse recuo. 18 | VLADIMIR LENIN

AS TESES DE ABRIL, FAROL DA REVOLUÇÃO PROLETÁRIA As Teses de Abril, breve e agudo documento, é um excelente ponto de partida para refutar todas as mentiras sobre o partido bolchevique, e para reafirmar algo essencial sobre este partido: que não foi o produto da barbárie russa, de um anarco-terrorismo distorcido, ou da avidez inesgotável de poder de seus dirigentes. O bolchevismo foi um produto, em primeiro lugar, do proletariado mundial. Inseparavelmente ligado a toda tradição marxista, não foi em nada a semente de uma nova forma de exploração e opressão, e sim a vanguarda de um movimento para acabar com toda exploração.

DE FEVEREIRO A ABRIL Aproximando o final de fevereiro de 1917, os operários de Petrogrado iniciaram greves massivas contra as intoleráveis condições de vida impostas pela guerra imperialista. As consignas do movimento se politizaram rapidamente. Os operários reclamavam o final da guerra e a derrubada da autocracia. Com poucos dias a greve havia se estendido a outras cidades, e os operários tomaram as armas e confraternizaram com os soldados; a greve de massas tomou o caráter de um levantamento. Repetindo a experiência de 1905, os operários centralizaram a luta por meio de Sovietes de deputados operários, eleitos pelas assembléias de fábrica e revogáveis a qualquer momento. AS TESES DE ABRIL | 19

Diferente de 1905, os soldados e camponeses começaram a seguir este exemplo em grande escala. A classe dirigente, reconhecendo que os dias da autocracia estavam contados, se descartou do tzar e chamou os partidos do liberalismo e da "esquerda", em particular os elementos anteriormente proletários que recentemente haviam se passado para o campo burguês ao apoiar a guerra, para formar um Governo provisório, com a intenção de conduzir a Rússia para um sistema de democracia parlamentar. Na realidade, se suscitou uma situação de duplo poder, posto que os operários e os soldados só confiavam realmente nos sovietes e o Governo provisório não estava, ainda em uma posição suficientemente forte capaz de ignorá-los, e, ainda menos para dissolvê-los. Porém esta profunda divisão de classes estava parcialmente obscurecida pela névoa da euforia democrática que caiu sobre o país após a revolta de fevereiro. Com o Tzar fora do jogo e a população desfrutando de uma inaudita liberdade, todos pareciam estar a favor da "revolução", incluindo os aliados democráticos da Rússia, que esperavam que isto permitisse à Rússia participar mais efetivamente no esforço da guerra. Assim, o Governo Provisório se apresentava a si mesmo como o guardião da revolução; os sovietes estavam dominados politicamente pelos mencheviques e os socialrevolucionários, que faziam tudo que podiam para torná-los impotentes diante do regime burguês recém instalado. Em resumo, todo o ímpeto da greve de massas e do levantamento - que na realidade era uma manifestação de um movimento revolucionário mais universal, que estava fermentando-se nos principais países

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capitalistas como resultado da guerra - estava sendo desviado para fins capitalistas. Onde estavam os bolcheviques nesta situação tão cheia de riscos e promessas? Estavam em uma confusão quase completa: "Para o bolchevismo, os primeiros meses da revolução foram um período de perplexidade e vacilação. No "manifesto" do Comitê Central bolchevique, redigido após a vitória da insurreição, lê-se que "os operários das oficinas e fábricas, assim como as tropas amotinadas, deviam eleger imediatamente seus representantes ao Governo Provisório Revolucionário."... Comportavam-se não como representantes de um partido proletário preparando uma luta independente pelo poder, mas como a ala esquerda da democracia que, tendo anunciado seus princípios, pretendia por um tempo indefinido desempenhar o papel de oposição leal" [1]. Quando Stalin e Kamenev tomaram a direção do partido em março de 1917, o levaram ainda mais à direita. Stalin desenvolveu uma teoria sobre as funções complementares do Governo provisório e os sovietes. Pior ainda, o órgão oficial do partido, O Pravda, adotou abertamente uma posição "defensivista" sobre a guerra: "Nossa palavra de ordem não é o inconsistente "abaixo a guerra". Nossa palavra de ordem é pressionar o Governo Provisório com o objetivo de compeli-lo... a fazer uma tentativa para induzir todos os países beligerantes a abrirem negociações imediatas... e até lá, cada homem fique em seu posto de combate" [2]. Trotsky conta que muitos elementos no partido se sentiram profundamente intranqüilos, e inclusive muito irritados com essa deriva oportunista do partido, porém não estavam armados AS TESES DE ABRIL | 21

programaticamente para responder a posição da direção, posto que parecia estar baseada em uma perspectiva que havia sido desenvolvida pelo próprio Lênin, e que havia sido a posição oficial do partido durante uma década: a perspectiva da "ditadura democrática dos operários e camponeses". A essência desta teoria havia sido que embora a revolução que se desenvolvia na Rússia fosse de natureza burguesa - economicamente falando - a burguesia russa era demasiado débil para levar a cabo sua própria revolução. E por isso a modernização capitalista da Rússia deveria ser assumida pelo proletariado e as frações mais pobres do campesinato. Esta posição estava a meio caminho entre a dos mencheviques - que diziam ser marxistas "ortodoxos" e argumentavam que a tarefa do proletariado era dar apoio crítico a burguesia contra o absolutismo, até que a Rússia estivesse pronta para o socialismo - e a de Trotsky, cuja teoria da "revolução permanente", que desenvolveu após os acontecimentos de 1905, insistia em que a classe operária se veria impulsionada ao poder na próxima revolução, forçada a empunhar mais adiante da etapa burguesa da revolução, em direção a etapa socialista, porém só poderia fazê-lo se a revolução russa coincidisse com, ou emanasse de, uma revolução socialista nos países industrializados. Na realidade, a teoria de Lênin havia sido quando muito um produto de um período ambíguo, em que cada vez era mais óbvio que a burguesia não era uma força revolucionária, porém em que todavia não estava claro que havia chegado o período da revolução socialista internacional. Apesar de tudo, a superioridade da tese de Trotsky se baseava precisamente no fato de que partia de um marco internacional, mais que do terreno puramente russo; e o 22 | VLADIMIR LENIN

próprio Lênin, apesar das suas múltiplas discrepâncias com Trotsky nessa época, havia se inclinado depois de 1905 em várias ocasiões em direção a noção da revolução permanente. Na prática, a idéia da "ditadura democrática dos operários e camponeses" se mostrou insubstancial; os "leninistas ortodoxos" que repetiam esta fórmula em 1917, a usavam como uma cobertura para deslizar-se para o menchevismo puro e duro. Kamenev argumentou, forçando a barra, que posto que a fase burguesa da revolução ainda não havia se completado, era necessário dar um apoio crítico ao Governo Provisório; isto a duras penas enquadrava com a posição original de Lênin, que insistia em que a burguesia se comprometeria inevitavelmente com a autocracia. Inclusive houve sérias tentativas de reunificação dos mencheviques e dos bolcheviques. Assim, o Partido bolchevique, desarmado programaticamente, se encaminhava para o compromisso e a traição. O futuro da revolução estava por um fio quando Lênin voltou do exílio. Na sua História da Revolução russa, Trotsky nos dá uma descrição detalhada da chegada de Lênin a estação da Finlândia em 3 de abril de 1917. O soviete de Petrogrado, que embora estivesse dominado pelos mencheviques e os social-revolucionários, organizou uma grande festa de boas vindas e recepcionou Lênin com flores. Em nome do Soviete, Chkeidze saudou a Lênin com estas palavras: "Camarada Lenin, em nome do Soviete de Petrogrado e de toda revolução, saudamos vossa chegada à Rússia... Mas consideramos que a principal tarefa da democracia AS TESES DE ABRIL | 23

revolucionária no presente é defender nossa revolução contra todo tipo de ataques, tanto internos como externos... Esperamos que você se uma a nós na perseguição a este objetivo" [3] A resposta de Lênin não se dirigiu aos líderes do Comitê de boas-vindas, mas a centenas de operários que se apinhavam na estação: "Queridos camaradas, soldados, marinheiros e operários, fico feliz de saudar em vocês a Revolução russa vitoriosa, saudar vocês como a guarda avançada do exército proletário mundial... Não está longe a hora em que, aos apelos de nosso camarada Karl Liebknecht, os povos voltarão suas armas contra seus exploradores capitalistas... A revolução russa realizada por vocês abriu uma nova época. Viva a revolução socialista mundial!" [4] Desde o mesmo momento da chegada, Lênin se comportou dessa maneira frente ao carnaval democrático. Nessa noite, Lênin elaborou sua posição em um discurso de duas horas, que mais tarde deixaria quase sem sentido a todos os bons democratas e sentimentais socialistas, que não queriam que a revolução fosse mais longe do que havia ido em fevereiro, que haviam aplaudido as greves de massas operárias quando derrotaram o Tzar e permitiram que o Governo provisório assumisse o poder, porém que temiam uma polarização de classes que fosse mais além. No dia seguinte, em uma reunião conjunta de bolcheviques e mencheviques, Lênin expôs o que ia ser conhecido como suas Teses de Abril, que são bastante curtas e que reproduzimos aqui: "1. Em nossa atitude diante da guerra, que em relação à Rússia continua sendo indiscutivelmente uma guerra imperialista, de rapina, mesmo sob o novo governo de Lvov e Cia., em virtude do 24 | VLADIMIR LENIN

caráter capitalista deste governo, é intolerável qualquer concessão ao "defensismo revolucionário". O proletariado consciente só deve dar seu consentimento a uma guerra revolucionária, que justificaria realmente o verdadeiro defensismo revolucionário, sob as seguintes condições: •

• •

a) passagem do poder às mãos do proletariado e dos setores mais pobres do campesinato, ligados ao proletariado; b) renúncia efetiva, e não verbal, a toda anexação; c) ruptura completa de fato com todos os interesses do Capital.

Diante da inegável boa fé de amplas camadas da massa de partidários do defensismo revolucionário que apenas admitem a guerra como uma necessidade e não visando conquista, diante do fato de serem elas enganadas pela burguesia, é necessário esclarecer-lhes seu erro de modo minucioso, perseverante e paciente, explicar-lhes a ligação indissolúvel do Capital com a guerra imperialista e demonstrar-lhes que sem derrubar o capital é impossível por fim à guerra com uma paz verdadeiramente democrática e não com uma paz imposta pela violência. Organização da propaganda, de forma a mais ampla, em torno desta maneira de ver, no seio do exército combatente.

CONFRATERNIZAÇÃO NA FRENTE.

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2. O que há de original na situação atual da Rússia, é a transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por causa do grau insuficiente de consciência e organização do proletariado, à sua segunda etapa, que deve dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato. Esta transição é caracterizada, por um lado, por um máximo de possibilidades legais (a Rússia é hoje em dia, de todos os países beligerantes, o mais livre do mundo); por outro, pela ausência de violência contra as massas, e enfim, pela confiança irracional das massas em relação ao governo dos capitalistas, estes piores inimigos da paz e do socialismo. Esta peculiaridade exige que nós saibamos nos adaptar às condições especiais do trabalho do Partido no seio da numerosa massa proletária que começa a despertar para a vida política. 3. Nenhum apoio ao governo provisório; demonstrar o caráter inteiramente mentiroso de todas suas promessas, notadamente daquelas que se referem à renúncia às anexações. Desmascarar este governo, que é um governo de capitalistas, em vez de defender a inadmissível e ilusória "exigência" de que deixe de ser imperialista. 4. Reconhecer que nosso partido está em minoria e não constitui no momento senão uma fraca minoria na maior parte dos Sovietes de deputados operários, face ao bloco de todos os elementos oportunistas pequeno-burgueses submetidos à influência da burguesia e que estendem esta influência ao seio do proletariado. Estes elementos vão dos socialista-populistas e dos

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socialista-revolucionários ao Comitê de Organização (Tchkhéidze, Tseretéli, etc.), a Stéklov, etc., etc. Explicar às massas que os Sovietes de deputados operários são a única forma possível de governo revolucionário e que, conseqüentemente, nossa tarefa, enquanto esse governo se deixa influenciar pela burguesia, só pode ser a de explicar pacientemente, sistematicamente, insistentemente, às massas os erros de sua tática, partindo essencialmente das necessidades práticas das massas. Enquanto estivermos em minoria, nos dedicaremos a criticar e a explicar os erros cometidos, sempre afirmando a necessidade da passagem de todo o poder aos Sovietes de deputados operários, a fim de que as massas se libertem de seus erros pela experiência. 5. Não uma república parlamentar - voltar a ela após os Sovietes de deputados operários seria um passo atrás - mas uma república de Sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses no país inteiro, de alto a baixo. Supressão da polícia, do exército e da burocracia. (Nota 1 de Lênin: quer dizer, substituição do exército permanente pelo povo armado) O ordenado dos funcionários, eleitos e revogáveis a qualquer momento, não deve exceder o salário médio de um operário qualificado.

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6. No programa agrário transferir o centro de gravidade para os Sovietes de deputados de assalariados agrícolas. Confisco de todas as terras dos grandes proprietários. Nacionalização de todas as terras no país e sua colocação à disposição dos Sovietes locais de deputados de assalariados agrícolas e camponeses. Formação de Sovietes especiais de deputados camponeses pobres. Transformação de todo grande domínio (de 100 a 300 hectares inclusive, levando em conta as condições locais e outras e de acordo com a decisão dos órgãos locais) em uma fazenda-modelo colocada sob o controle dos deputados de assalariados agrícolas e funcionando por conta da coletividade local. 7. Fusão imediata de todos os bancos do país em um Banco Nacional único, colocado sob o controle dos Sovietes de deputados operários. 8. Nossa tarefa imediata não é a "implantação" do socialismo, mas passar unicamente à instauração imediata do controle da produção social e da distribuição dos produtos pelos Sovietes de deputados operários. 9. Tarefas do partido • •

a) convocar sem demora o congresso do partido b) modificar principalmente o programa do partido: 1) sobre o imperialismo e a guerra imperialista, 2) sobre a atitude em relação ao Estado e nossa

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reivindicação de um "Estado-Comuna" (quer dizer, um Estado cujo protótipo nos deu a Comuna de Paris), 3) emendar o programa mínimo, que envelheceu. c) mudar a denominação do partido (Em lugar de "socialdemocracia", cujos líderes oficiais traíram o socialismo no mundo inteiro, passando-se para o lado da burguesia, devemos denominarmo-nos Partido Comunista).

10. Renovação da Internacional. Tomar a iniciativa da criação de uma Internacional revolucionária, de uma Internacional contra os social-chauvinistas e contra o "centro". [5]

A LUTA PELO REARMAMENTO DO PARTIDO Zalezhski, um membro do Comitê Central do partido bolchevique nessa época resumia a reação às Teses de Lênin dentro do partido e no movimento em geral: "As teses de Lênin produziram o efeito de uma bomba explodindo." [6] A reação inicial foi de incredulidade, e uma chuva de anátemas caiu sobre Lênin: que este havia estado demais tempo no exílio, que havia perdido o contato com a realidade russa. Suas perspectivas sobre a natureza da revolução haviam caído no "trotskismo". Pelo que respeita a sua idéia da tomada do poder pelos sovietes, havia passado ao blanquismo, ao aventurerismo, ao anarquismo. Um antigo membro do Comitê central bolchevique, fora do partido nesse momento, colocou assim o problema: "Por muitos anos, o lugar de Bakunin ficou vago na Revolução russa, agora ele é ocupado por Lenin" [7]. Para Kamenev, a posição de Lênin impediria que os bolcheviques atuassem como um partido de AS TESES DE ABRIL | 29

massas, reduzindo seu papel ao de "um grupo de comunistas propagandistas". Esta não era a primeira vez que os "velhos bolcheviques" se agarravam a fórmulas antiquadas em nome do leninismo. Em 1905, a reação inicial bolchevique quando do aparecimento dos sovietes se baseou em uma interpretação mecânica das críticas de Lênin ao espontaneismo em Que Fazer?; a direção chamou o soviete de Petrogrado a subordinar-se ao partido ou dissolver-se. O próprio Lênin rechaçou terminantemente esta atitude, sendo um dos primeiros a compreender o significado revolucionário dos sovietes como órgãos de poder político do proletariado, e insistiu em que a questão não era "soviete ou partido", mas ambos, posto que suas funções eram complementares. Agora uma vez mais, Lênin tinha que dar a esses "leninistas" uma lição sobre o método marxista, para demonstrar que o marxismo é totalmente ao contrário de um dogma morto; é uma teoria científica viva, que tem que verificar-se constantemente no laboratório dos movimentos sociais. As Teses de Abril foram o exemplo da capacidade do marxismo para descartar, adaptar, modificar ou enriquecer as posições anteriores à luz da experiência da luta de classes: "Por hora é necessário assimilar a verdade indiscutível de que um marxista deve tomar em conta a vida real, os fatos exatos da realidade, e não continuar aferrando-se à teoria de ontem, que como toda teoria, no melhor dos casos, só aponta o fundamental, o geral, só abarca de um modo aproximado a complexidade da vida."

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"A teoria, amigo meu, é cinza; porém a árvore da vida é eternamente verde" [8]. E na mesma carta, Lênin repreende a "aqueles "velhos bolcheviques", que já por mais de uma vez desempenharam um triste papel na história do nosso Partido, repetindo uma fórmula tontamente aprendida, em vez de dedicarse ao estudo das peculiaridades da nova e viva realidade". Para Lênin, a "ditadura democrática" já havia se realizado nos sovietes de deputados operários e camponeses, e como tal já tinha se convertido em uma fórmula antiquada. A tarefa essencial para os bolcheviques agora era impulsionar para frente a dinâmica proletária neste amplo movimento social, que estava orientada para a formação de uma Comuna-Estado na Rússia, que seria o primeiro marco indicativo da revolução socialista mundial. Poderse-ia fazer uma controvérsia sobre o esforço de Lênin para salvar a honra da velha fórmula, porém o elemento essencial na sua posição é que foi capaz de ver o futuro do movimento e, assim, a necessidade de romper o modelo das teorias defasadas. O método marxista não é só dialético e dinâmico, também é global, quer dizer, se coloca cada questão em particular em um marco histórico internacional. E isto é o que permitiu a Lênin, acima de tudo, compreender a verdadeira direção dos acontecimentos. De 1914 em diante, os bolcheviques, com Lênin à frente, haviam defendido a posição internacionalista mais consistente contra a guerra imperialista, vendo que era a prova da decadência do mundo capitalista, e assim, do início de uma época de revolução proletária mundial. Esta era a base sólida da consigna de "transformar a guerra imperialista em guerra civil", que Lênin havia

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defendido contra todas as variedades de chauvinismo e pacifismo. Fortemente convencido dessa análise, Lênin não se deixou levar nem por um momento pela idéia de que a chegada ao poder do Governo Provisório mudara a natureza da guerra imperialista, e não poupou adjetivos para com os bolcheviques que haviam caído neste erro: "O Pravda exige do governo que este renuncie à anexação. Exigir de um governo capitalista que renuncie à anexação é um absurdo, uma flagrante zombaria." [9] A reafirmação intransigente da posição internacionalista sobre a guerra era em primeiro lugar uma necessidade para deter a tendência oportunista do partido, porém era também o ponto de partida para liquidar teoricamente a fórmula da "ditadura democrática", e todas as apologias dos mencheviques para apoiar a burguesia. Frente o argumento segundo qual a atrasada Rússia não estava ainda madura para o socialismo, Lênin respondia como um verdadeiro internacionalista, reconhecendo na tese 8 que "não é nossa tarefa imediata introduzir o socialismo". A Rússia por si mesma não estava madura para o socialismo, porém a guerra imperialista havia demonstrado que o capitalismo mundial, globalmente estava mais do que maduro. Daí a saudação de Lênin aos operários na estação da Finlândia: os operários russos, ao tomar o poder, estariam atuando como a vanguarda do exército proletário internacional. Daí também o chamamento a uma nova Internacional no final das teses. E para Lênin, como para todos os autênticos internacionalistas do momento, a revolução mundial não era um desejo piedoso, mas uma perspectiva concreta nascida da revolta proletária internacional contra a guerra - greves na

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Inglaterra e Alemanha, manifestações políticas, rebeliões e confraternização nas forças armadas de vários países, e por conseqüência a maré revolucionária crescente na própria Rússia. Essa perspectiva, que nesse momento era embrionária, iria confirmar-se após a insurreição de Outubro pela extensão da onda revolucionária na Itália, Hungria, Áustria e, sobretudo Alemanha.

O "ANARQUISMO" DE LÊNIN Os defensores da "ortodoxia" marxista acusaram Lênin de blanquismo e bakuninismo pela questão da tomada do poder e da natureza do Estado pós-revolucionário. Blanquismo, porque supostamente estava a favor de um golpe de Estado por uma minoria - seja pelos bolcheviques sozinhos, ou inclusive pelo conjunto da classe operária industrial sem contar com a maioria camponesa. Bakuninismo, porque o rechaço pelas teses da república parlamentar era uma concessão aos prejulgamentos antipolíticos dos anarquistas e anarco-sindicalistas Nas suas Cartas sobre a tática, Lênin defendeu suas teses da primeira acusação desta maneira: "Nas minhas teses, me assegurei completamente de todo salto para cima do movimento camponês ou, em geral pequeno-burguês, ainda latente, de toda tentativa de jogo da "conquista do poder" por parte de um Governo operário, de qualquer aventura blanquista, posto que me referia diretamente a experiência da Comuna de Paris. Como se sabe, e como o indicaram detalhadamente Marx em 1871 e Engels em 1891, esta experiência excluía totalmente o blanquismo, assegurando completamente o AS TESES DE ABRIL | 33

domínio direto, imediato e incondicional da maioria e da atividade das massas, só na medida da acentuação consciente da maioria mesma. E nas teses resumi a questão, com plena claridade, na luta pela influência dentro dos sovietes de deputados operários, trabalhadores, camponeses e soldados. Para não deixar nenhuma possibilidade de dúvida a esse respeito, sublinhei duas vezes, nas teses, a necessidade de um trabalho paciente e continuo de "explicação", que se adapte às necessidades práticas das massas". Pelo que concerne a uma volta para trás a uma posição anarquista sobre o Estado, Lênin assinalou em abril, como fará com maior profundidade no Estado e a Revolução, que os marxistas "ortodoxos", representados nas figuras como Kautsky e Plekanov, haviam enterrado os ensinamentos de Marx e Engels sobre o Estado sob um monte de estrume de parlamentarismo. A Comuna de Paris havia mostrado que a tarefa do proletariado na revolução não era conquistar o velho Estado, mas destruí-lo de cima abaixo; que o novo instrumento de governo proletário, a Comuna-Estado, não estaria baseado no princípio da representação parlamentar, a qual, ao fim e ao cabo, só era uma fachada para ocultar a ditadura da burguesia, mas na delegação direta e a revogabilidade desde baixo das massas armadas e auto-organizadas. Na formação dos sovietes, a experiência de 1905 e a da revolução que emergia em 1917, não só confirmava esta perspectiva, como a levava mais adiante. Embora que na comuna, que se concebia como "popular", todas as classes oprimidas da sociedade estavam igualmente representadas, os sovietes eram uma forma superior de

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organização, porque tornavam possível que o proletariado se organizasse autonomamente dentro do movimento das massas em geral. Globalmente os sovietes constituíam um novo estado, qualitativamente diferente do velho Estado burguês, porém um estado apesar de tudo - e neste ponto Lênin distinguia cuidadosamente dos anarquistas: "... o anarquismo é a negação da necessidade do estado e do poder estatal na época de transição do domínio da burguesia para o domínio do proletariado.Eu defendo, com uma claridade que exclui toda possibilidade de confusão, a necessidade do Estado nesta época, porém de acordo com Marx e com a experiência da comuna de Paris, não de um Estado parlamentar burguês do tipo corrente, mas de um estado sem um exército permanente , sem uma polícia em oposição ao povo, sem uma burocracia situada por cima do povo. Se o Sr. Plekanov, no seu Edinstvo, grita com vigor "anarquismo!", com isso só demonstra, uma vez mais, que já rompeu com o marxismo" [10]

O PAPEL DO PARTIDO NA REVOLUÇÃO A acusação de que Lênin estava planejando um golpe blanquista, é inseparável da idéia de que se buscava o poder só para o seu partido. Isto passou a ser um tema central de toda propaganda burguesa subseqüente à revolução de outubro e que afirma que não teria acontecido nada mais que um golpe de Estado levado a cabo pelos bolcheviques. Não podemos começar a tratar aqui todas as variedades e matizes desta tese. Trotsky aporta uma AS TESES DE ABRIL | 35

das melhores respostas a isto na sua História da Revolução Russa, quando mostra que não foi o partido, mas os sovietes que tomaram o poder em Outubro. Porém um dos maiores traços dessa tese é a que coloca que a visão de Lênin sobre o partido como uma organização compacta e fortemente centralizada levava inexoravelmente a este golpe minoritário de 1917, e por extensão, ao terror vermelho e finalmente ao estalinismo. Toda essa história retroage a divisão original entre bolcheviques e mencheviques, e este texto não é o lugar para analisar em detalhes esta questão chave. Basta dizer que já desde então, a concepção de Lênin sobre a organização revolucionária foi caracterizada de jacobina, elitista, militarista, e inclusive terrorista. Têm sido citadas autoridades marxistas tão respeitadas como Luxemburgo e Trotsky para apoiar esta visão. Da nossa parte, não negamos que a visão de Lênin sobre a questão da organização, tanto naquele período como depois, contém erros (por exemplo, sua adoção em 1902 das teses de Kautsky de que a consciência vem "de fora" da classe operária, embora posteriormente Lênin repudiasse esta posição; também certas posições suas sobre o regime interno do partido, e sobre a relação entre o partido e o estado, etc.). Porém diferentemente dos mencheviques dessa época, e dos seus numerosos sucessores anarquistas, socialdemocratas e conselhistas, não tomamos esses erros como ponto de partida, da mesma forma que não abordamos uma análise da Comuna de Paris ou da revolução de Outubro partindo dos erros que foram cometidos - inclusive quando fatais. O verdadeiro ponto de partida é que a luta de Lênin ao largo de toda sua vida para construir uma organização revolucionária é uma aquisição histórica 36 | VLADIMIR LENIN

do movimento operário, e que foi deixado para os revolucionários de hoje as bases indispensáveis para compreender, tanto como funciona internamente uma organização revolucionária, como qual deve ser o seu papel na classe. Com respeito a este último ponto, e contrariamente a muitas análises superficiais, a concepção de uma organização de "minorias", que Lênin contrapunha a visão de uma organização "de massas" dos mencheviques, não era simplesmente o reflexo das condições impostas pela repressão tzarista. Da mesma forma que as greves de massas e os levantes revolucionários de 1905 não eram os últimos ecos das revoluções do século XIX, mas que refletiam o futuro imediato da luta de classes internacional e o amanhecer da época da decadência do capitalismo, assim a concepção bolchevique de um partido "de minorias", de revolucionários dedicados, com um programa absolutamente claro e que funcionasse centralizadamente, era uma antecipação da função e da estrutura do partido que impunha as condições da decadência capitalista, a época da revolução proletária. Pode ser, como reivindicam muitos anti-bolcheviques, que os mencheviques tenham olhado para o ocidente para estabelecer seu modelo de organização, porém também olhavam para trás, copiando o velho modelo da social-democracia do partido de massas que engloba e representa a classe, particularmente através do processo eleitoral. E frente à todas as afirmações segundo quais eram os bolcheviques os que estavam ancorados nas condições arcaicas da Rússia, copiando o modelo das sociedades conspirativas, há que dizer que na realidade os bolcheviques eram os únicos que olhavam para frente para um período de turbulências massivas revolucionárias AS TESES DE ABRIL | 37

que nenhum partido podia organizar, planificar nem encapsular, porém que ao mesmo tempo tornavam mais vital que nunca a necessidade do partido. "Com efeito, deixemos de lado a teoria pedante de uma greve demonstrativa montada artificialmente pelo partido e os sindicatos e executada por uma minoria organizada e consideremos o quadro vivo de um verdadeiro movimento popular surgido da exasperação dos conflitos de classe e da situação política (...) a tarefa da social-democracia consistirá então, não na preparação ou na direção técnica da greve, mas na direção política do conjunto do movimento." [11] Isto é o que escreveu Rosa Luxemburgo na sua análise magistral da greve de massas e as novas condições da luta de classes internacional. Assim, Luxemburgo, que havia sido uma das críticas mais ferrenhas de Lênin quando da divisão de 1903, convergia com os elementos fundamentais da concepção bolchevique do partido revolucionário. Esses elementos são expostos com grande claridade nas Teses de Abril, que como já tínhamos visto, rechaçam qualquer visão que tente impor a revolução "desde cima": "Enquanto estivermos em minoria realizaremos um trabalho de crítica, a fim de libertar as massas da impostura, continuaremos afirmando a necessidade de todo o poder para os sovietes de deputados operários, para que as massas se libertem através da experiência de seus próprios erros". Este trabalho de "explicação sistemática, paciente e persistente" é precisamente o que quer dizer a direção política em um período revolucionário. Não podia reivindicar-se passar à fase da insurreição até que as posições dos bolcheviques fossem vitoriosas

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nos sovietes. E em dizer a verdade, antes que isto pudesse acontecer, tinham que triunfar as posições de Lênin no próprio partido bolchevique, e isto exigiu uma luta áspera sem compromissos desde o primeiro momento que Lênin chegou a Rússia. " não somos charlatães (...) devemos nos basear apenas sobre a consciência das massas." [12] Na fase inicial da revolução, a classe operária havia entregado o poder à burguesia, o que não deveria surpreender a nenhum marxista "posto que sempre temos sabido e indicado reiteradamente que a burguesia se mantém não só por meio da violência, como também graças a falta de consciência, a rotina, a ignorância e a falta de organização das massas" [13]. Por isso, a tarefa principal dos bolcheviques era fazer avançar a consciência de classe e a organização das massas. Esta função não satisfazia aos "velhos bolcheviques", que tinham planos mais "práticos". Queriam tomar parte da revolução burguesa que estava se produzindo, e que o partido bolchevique tivesse uma influência massiva no movimento tal qual era. Nas palavras de Kamenev, estavam horrorizados de pensar que o partido pudesse ficar a margem, com suas posições "puras", reduzido a função de "um grupo de propagandistas comunistas". Lênin não teve nenhuma dificuldade para combater esta fala: acaso os chauvinistas não tinham arrotado os mesmos argumentos contra os internacionalistas no princípio da guerra mundial, dizendo que eles permaneciam vinculados a consciência das massas embora que os bolcheviques e os espartaquistas haviam se convertido em seitas marginais? Deve ter sido particularmente AS TESES DE ABRIL | 39

irritante ouvir os mesmos argumentos por parte de um camarada bolchevique. Porém isto não debilitou a agudeza da resposta de Lênin: "O camarada Kamenev contrapõe "o partido das massas" a "um grupo de propagandistas". Porém as "massas" têm se deixado levar precisamente agora pela embriaguez do defensismo "revolucionário". Não seria mais decoroso particularmente para os internacionalistas saber opor-se em um momento como este a embriaguez "massiva" em lugar de querer "ficar vinculado com as massas", quer dizer ceder diante do contagio geral? Não se deve saber ficar em minoria durante um tempo para combater uma embriaguez "massiva"? Não é precisamente o trabalho dos propagandistas no momento atual o ponto central para libertar a linha proletária da embriaguez defensiva e pequeno-burguesa "massiva"? Cabalmente a união das massas proletárias e não proletárias, sem importar as diferenças de classe no seio das massas, tem sido uma das premissas da epidemia defensivista. Acho bastante despropositado falar com desprezo de "um grupo de propagandistas" da linha proletária" [14]. Esta postura, esta vontade de ir contra a corrente e ficar em minoria defendendo incisiva e claramente os princípios de classe, não tem nada que ver com o purismo ou o sectarismo. Pelo contrário, se baseia na compreensão do movimento real da classe, e a partir daí, na capacidade em cada momento para permitir aos elementos mais radicais do proletariado tomar a palavra e oferecêlos uma orientação. Trotsky mostra como Lênin ganhou o partido para suas posições e depois defendeu a linha proletária; mostra também

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como procurou o apoio desses elementos: "Contra os velhos bolcheviques, Lênin encontrou apoio em outra camada do partido, já temperada, mas mais fresca e mais estreitamente unida com as massas. Na revolução de Fevereiro, como vimos, os operários bolcheviques desempenharam um papel decisivo. Eles pensavam ser óbvio que a classe que obteve a vitória devesse tomar o poder. Estes mesmos operários protestavam veementemente contra o curso de Kamenev e Stalin, e o bairro de Vyborg até ameaçou os "líderes" com a expulsão do partido. A mesma coisa seria observada nas províncias. Quase em todo lugar havia bolcheviques de esquerda acusados de maximalismo, até de anarquismo. Estes operários revolucionários apenas careciam de recursos teóricos para defender sua posição, mas estavam prontos para responder ao primeiro chamado claro" [15]. Isto também foi uma expressão da compreensão de Lênin do método marxista, que sabe ver mais além das aparências para discernir a verdadeira dinâmica do movimento social. E como exemplo contrário, em troca, quando em começo da década de 1920, Lênin se inclinou para o argumento de "permanecer com as massas" para justificar a "Frente Única" e a fusão organizativa com partidos centristas, foi um sinal de que o partido estava perdendo suas amarras com o método marxista, e escorregava para o oportunismo. Porém ao mesmo tempo isto foi conseqüência do isolamento da revolução e da fusão dos bolcheviques com o estado soviético. No momento de alta maré revolucionária na Rússia, o Lênin das Teses de Abril não foi um profeta isolado, nem um demiurgo que se elevava por cima das massas vulgares, mas a voz mais clara da tendência mais revolucionária no proletariado; uma AS TESES DE ABRIL | 41

voz que indicou com precisão o caminho que levava a insurreição de Outubro.

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NOTAS [1] Trotsky - A História da Revolução Russa; Edição Sundermann - Tomo II; Capítulo "Os Bolcheviques e Lênin". [2] Idem [3] Idem [4] Idem [5] http://www.moreira.pro.br/classcent.htm [6] Trotsky , op.cit. [7] Idem [8] Lênin, Carta sobre a tática. A Citação é de Mefistófeles no Fausto de Goethe. Tradução nossa. [9] Trotsky , op.cit. [10] Lênin, Carta sobre a tática. Tradução nossa. [11] Greve de massas, partido e sindicatos; Rosa Luxemburgo [12] Trotsky , op.cit. [13] Lênin, Carta sobre a tática. Traduzido por nós [14] Idem. [15] Trotsky, op.cit. Capítulo "Rearmando o Partido".

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NÃO HAVERIA OUTUBRO SEM ABRIL: CENTENÁRIO DAS TESES DE ABRIL DE LÊNIN POR ALTAIR FREITAS A Revolução Socialista na Rússia, desencadeada em Outubro de 1917, não foi obra do acaso, ou o resultado exclusivo da desestruturação da economia russa desencadeada pelas suas enormes perdas frente ao exército alemão durante a 1ª Guerra Mundial. A conjugação da destruição econômica e social causada pela guerra, por si só não conduziria a uma revolução socialista. Para nela chegar, era preciso a condução consciente de uma força política revolucionária organizada, decidida e ancorada em um programa de ação muito concreto, para chegar à revolução e para organizar a nova sociedade. Havia um partido, o Bolchevique, e havia um programa revolucionário. Esse programa está exposto nas “Teses de Abril” desenvolvido e apresentado por Lênin. A revolução socialista na Rússia chega ao seu centenário. A mais importante revolução da história mundial só tem paralelo com a revolução francesa de 1789. Ambas desencadearam acontecimentos, expectativas, realizações, vitórias e derrotas, cujos ecos durarão ainda por um prolongado período histórico. Se a Revolução Francesa assentou as bases jurídicas e políticas do poder da burguesia e destravou de vez a ascensão do capitalismo em sua forma mais ampla, a Revolução Russa abriu as portas para 44 | VLADIMIR LENIN

um imenso movimento internacional, consciente, de luta contra o capitalismo, a opressão colonial e o imperialismo e em defesa da construção de um mundo socialista. Entre a Revolução de Fevereiro, que derrubou o czarismo, estabeleceu a república, decretou anistia aos presos e exilados políticos – dentre os quais Lênin, que vivia no exterior – e a Revolução de Outubro, há um período que precisa ser muito bem compreendido, uma vez que foi exatamente nele que o partido Bolchevique (Partido Operário Social Democrata Russo) fincou fundo as estacas sobre as quais, progressivamente, àquela força política construiu a nova revolução, saltando de pouco mais de alguns milhares de militantes aguerridos para cerca de meio milhão de revolucionários – operários, soldados, camponeses e intelectuais – que assumiriam o controle do velho império russo com amplo apoio popular. Este período é o mês de Abril. E mais do que os dias do mês, foi em Abril que Lênin, retornando do exílio, lançou um dos mais impactantes documentos da história da Revolução, uma proclamação intitulada “Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução”, mais conhecida como “Teses de Abril”. ¹ Originalmente publicada no jornal Pravda (A Verdade) no dia 7 de abril de 1917, as “Teses de Abril” foi um documento surpreendente a absolutamente impactante, inclusive, inicialmente, para o próprio partido Bolchevique. Afinal, a Revolução de Fevereiro mal completara dois meses e a efervescência revolucionária que havia deposto o amaldiçoado e tirânico regime czarista ainda era comemorada em toda a Rússia quando Lênin, recém-chegado do exílio, simplesmente propõe a derrubada do Governo Provisório e uma nova revolução. Governo e revolução que contavam com apoio do seu partido até então. AS TESES DE ABRIL | 45

O aparente “raio em céu azul”, a proposta de uma nova revolução, já havia sido na verdade alinhavada em outro documento de grande importância divulgado por Lênin, que ficou conhecido como “Cartas de Longe”² escrito em 7 de março de 1917. Nele, Lênin – que ainda estava no exílio - apresentou uma fantástica síntese sobre a aliança política que se havia formado para derrubar o regime czarista: “Se a revolução venceu tão rapidamente e – aparentemente, ao primeiro olhar superficial – de um modo tão radical, é apenas porque, por força de uma situação histórica extremamente original, se fundiram e fundiram-se como uma notável “harmonia”, correntes absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogêneos, tendências políticas e sociais absolutamente opostas. A saber: a conspiração dos imperialistas anglo-franceses que impeliram Miliukov³, Gutchkov4 e companhia a tomarem o poder, no interesse do prosseguimento da guerra imperialista, no interesse da sua condução com ainda maior obstinação e violência, no interesse do extermínio de novos milhões de operários e camponeses da Rússia, para a obtenção de Constantinopla pelos Gutchkov, da Síria pelos capitalistas franceses da Mesopotâmia pelos capitalistas ingleses, etc. Isto por um lado. E, por outro lado, um profundo movimento proletário e popular de massas (de toda a população pobre da cidade e do campo), com caráter revolucionário, pelo pão, pela paz, pela verdadeira liberdade.” Portanto, já na origem do Governo Provisório instalado em fevereiro, Lênin identificava a predominância de forças políticas absolutamente ligadas aos interesses do imperialismo anglofrancês, países com os quais a Rússia compunha a Tríplice Entente no âmbito da Primeira Guerra Mundial que devastava a Europa e, 46 | VLADIMIR LENIN

principalmente, a própria Rússia, completamente desestruturada pelo poderio do exército alemão que havia ocupado vastas extensões do território russo. Um governo, que pela sua composição de classe, no qual predominavam os interesses de forças burguesas e latifundiárias, decidiu que a Rússia permaneceria em guerra contra os alemães, a despeito de todos os claros sinais de que tal empreitada não era mais possível e que havia um imenso clamor nacional pela decretação da paz, pela saída da guerra. O verdadeiro “raio x” sobre o caráter do Governo Provisório feito por Lênin, analisando de modo detido a correlação de forças no seio do novo poder de Estado, apontava com clareza a predominância dos interesses dos setores reacionários da sociedade russa que se uniram às lideranças mais vinculadas às camadas populares para derrubar um governo profundamente enfraquecido pelo desenrolar da guerra e que buscaria – como buscou – estabelecer alguns preceitos de democracia burguesa no campo jurídico (anistia, convocação de eleições para uma assembleia constituinte, liberdade de organização partidária, por exemplo) para buscar manter sob seu controle os fundamentos econômicos do capitalismo russo que buscava se desenvolver bem como para preservar o latifúndio de eventuais reformas mais profundas e manter a aliança belicista com França e Inglaterra. Ao identificar que as forças populares eram minoritárias na composição do novo governo, Lênin traça os rumos para a intensificação da revolução, que passaria necessariamente para uma nova fase de caráter proletário e socialista. As “Cartas de Longe” terminam com uma proclamação revolucionária “(...) o proletariado pode avançar e avançará, utilizando as particularidades do atual momento de transição, a AS TESES DE ABRIL | 47

conquista, primeiro da república democrática e da vitória completa dos camponeses sobre os latifundiários, em lugar da semimonarquia de Gutchkov e Miliukov, e depois para o socialismo, o único que dará aos povos exaustos pela guerra a paz, o pão e a liberdade”. Um mês após esse documento, Lênin lançaria as “Teses de Abril” imediatamente após o seu retorno à Rússia. Apresentando dez propostas muito objetivas, Lênin estabeleceu as linhas gerais de como deveria ser estabelecida uma segunda revolução e quais as tarefas fundamentais a serem cumpridas para nela chegar e imediatamente após a derrubada do governo provisório. Em síntese: 1 – Fazer ampla campanha de agitação entre soldados, operários e camponeses sobre o caráter imperialista da guerra e a conivência do governo provisório a ela e seus aliados de França e Inglaterra; 2 – Fazer compreender que aquele momento deflagrado pela Revolução de Fevereiro era uma transição para uma nova revolução e que o Partido deveria aproveitar com decisão a liberdade recém conquistada para ir às massas e proclamar a necessidade de avançar o processo revolucionário; 3 – Nenhum apoio ao Governo Provisório; 4 – Buscar com afinco ampliar a presença dos bolcheviques nos Soviets5 visando obter a hegemonia política naqueles conselhos populares autônomos; 5 – Estabelecer os Soviets como uma nova forma de poder popular superando assim a república parlamentar burguesa e reestruturar a máquina do Estado tendo como base a substituição do exército pelo povo armado e o fim do funcionalismo estatal, 48 | VLADIMIR LENIN

oriundo do czarismo por um corpo de trabalhadores eleitos e exoneráveis; 6 – Confisco de todas as terras dos latifundiários e sua nacionalização para controle dos Soviets; 7 – Fusão de todos os bancos do país num banco nacional único sob controle dos Soviets; 8 – O Socialismo não seria implantado de imediato, mas sim o controle da produção e distribuição dos produtos pelos Soviets; 9 – Realizar imediato congresso do Partido e modificar seu programa no que fosse necessário à luz da nova fase em ebulição, inclusive mudando seu nome 10 – Criar uma nova Internacional Revolucionária. Como se vê, Lênin apresenta ao partido e ao proletariado russo um verdadeiro programa para aplicação imediata e, armados com esse conjunto fenomenal de propostas, os bolcheviques desencadeariam uma das mais potentes e vitoriosas campanhas políticas da história, desenvolvendo uma profunda agitação entre as massas, especialmente entre os soldados, os operários e camponeses. Entre Abril e Outubro, um conjunto de importantes acontecimentos – a perseguição aos bolcheviques desencadeada após a primeira tentativa de tomada do poder em Julho e uma tentativa de golpe em Setembro contra o Governo Provisório liderado pelo general Kornilov , comandante do exército russo, que colocou os bolcheviques temporariamente ao lado do governo para evitar o estabelecimento de uma ditadura militar e o aprofundamento da crise social resultante da guerra – acentuaram

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a vaga revolucionária que culminaria com a tomada do poder no magnífico 25 de Outubro (06 de novembro pelo nosso calendário). O período entre a divulgação das “Teses de Abril” e a queda do Governo Provisório, seria preenchido por uma das mais significativas campanhas políticas da história no século XX, com os bolcheviques manejando magistralmente as palavras de ordem que calavam fundo nas massas proletárias: PAZ, PÃO, TERRA! Complementada por outra, que dizia respeito à própria conquista do poder de Estado: “Todo Poder aos Soviets”! A fase inicial da Revolução Socialista, comportou, em suas linhas gerais, as orientações traçadas por Lênin nas “Teses de Abril”. Esse poderoso documento de elevado valor histórico foi complementado por outro, escrito pouco tempo depois, ainda em Abril, intitulado “As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução” (Projeto de Plataforma do Partido Proletário), no qual Lênin aprofunda e argumenta minuciosamente sobre cada um dos pontos programáticos, analisando o caráter da revolução e do novo Estado a ser construído, sobre a reforma agrária, a questão da paz e da estruturação de uma nova economia sob comando do proletariado e dos soviets. É nesse documento também que aparece pela primeira vez a defesa da adoção da expressão “Partido Comunista” retomando o conceito expresso por Marx e Engels desde a publicação do “Manifesto do Partido Comunista” lançado em 1848. Ler as “Teses de Abril” e os demais documentos elaborados por Lênin naquele estupendo ano de 1917, é um mergulho ímpar nas ideias e realizações de um partido revolucionário, que soube conjugar de modo magistral o binômio “partido de massas e de quadros”, voltado para a transformação social.

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Fontes: 1 – V.I. Lenine – Obras Escolhidas, tomo 2 – Ed. Alfa Ômega 2 – V.I. Lenine – Obra citada 3 – Miliukov – Pável Nikoláievitch – Dirigente do Partido DemocrataConstitucionalista, foi ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro gabinete do Governo Provisório 4 – Gutchkov – Alexadr Ivánovitch – Grande capitalista russo, dirigente do Partido Outubrista, foi ministro do Exército e da Marinha durante o governo provisório e participou da tentativa de golpe contra aquele governo liderado pelo general Kornilov; 5 – Soviets – Conselhos populares, de soldados, operários e camponeses, surgidos na Rússia durante a revolução anti czarista de 1905, os Soviets tornaram-se progressivamente uma espécie de poder paralelo mesmo durante a vigência do governo imperial absolutista, até a sua queda em fevereiro de 1917. A intensa onda revolucionária que sacudiu a Rússia nos meses que antecederam fevereiro e ao longo de todo o ano de 1917, fizeram aumentar substancialmente o poder dos conselhos populares, que passaram a ser vistos pelos bolcheviques como o embrião de um novo poder popular.

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LENIN, Vladimir. As Teses de Abril

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