Francisco de Oliveira, Ruy Braga & Cibele Rizek - Hegemonia às avessas

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HEGEMONIA ÀS AVESSAS

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NOTA DA EDIÇÃO ELETRÔNICA Para aprimorar a experiência da leitura digital, optamos por extrair desta versão eletrônica as páginas em branco que intercalavam os capítulos, índices etc. na versão impressa do livro. Por este motivo, é possível que o leitor perceba saltos na numeração das páginas. O conteúdo original do livro se mantém integralmente reproduzido.

HEGEMONIA ÀS AVESSAS E C O N O M I A , P O L Í T I C A E C U LT U R A NA E R A DA S E RV I DÃO F I NA N C E I R A FRANCISCO DE OLIVEIRA, RUY BRAGA e CIBELE RIZEK (orgs.)

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Sobre HEGEMONIA ÀS AVESSAS De um ângulo crítico, os trabalhos enfeixados neste volume buscam dar conta de uma pluralidade de assuntos contemporâneos. Da experiência representada pelos mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva à frente do governo brasileiro ao significado da crise financeira de 2007-2008 para o futuro do capitalismo, o livro apresenta um conjunto de reflexões úteis para os que desejam não apenas compreender o mundo, como transformá-lo. As dificuldades postas para o entendimento da atualidade não são esquivadas pelos autores. A perplexidade diante de políticas adotadas por forças cuja vitória foi tão aguardada nos países aqui analisados, Brasil e África do Sul, assim como diante de um contexto internacional em intensa transformação, não é varrida para baixo do tapete. Ao contrário, ela impulsiona um movimento de procura dos melhores instrumentos para dar conta das contradições do real. Categorias sugeridas no pensamento de Karl Marx estão entre eles. Mostram, assim, que as hipóteses de Marx ainda ajudam a desembaraçar fios de alta tensão presentes no começo do século XXI. A obra de Antonio Gramsci, em particular, que se encontra referida no título deste livro, é um exemplo da altura capaz de alcançar um empreendimento intelectual inspirado em Marx. Em busca da totalidade, a questão da hegemonia, cuja elucidação abre as portas para uma percepção do sentido geral do período, é vista neste livro sob ângulos tão diversos quanto o das mudanças no campo do trabalho, da arquitetura e da “estrutura de sentimentos”, em uma ousadia temática digna da tarefa proposta. Se ao final muitas indagações persistem, resta a certeza de que o projeto crítico permite pesquisar as respostas. Sorte a do país que pode contar com ele. André Singer “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência.” Walter Benjamin

Copyright desta edição © Boitempo Editorial, 2010

Coordenação editorial

Ivana Jinkings

Editora-assistente

Bibiana Leme

Assistência editorial

Elisa Andrade Buzzo e Gustavo Assano

Preparação

Mariana Echalar

Revisão

Alessandro de Paula e Ana Lotufo

Capa

Acqua Estúdio Gráfico sobre foto de Lula e Nelson Mandela em Maputo, Moçambique, 16/10/2008. © Ricardo Stuckert/PR.

Diagramação

Acqua Estúdio Gráfico

Produção

Paula Pires CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

H363 Hegemonia às avessas : economia, política e cultura na era da servidão financeira / Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibele Rizek, (orgs.). - São Paulo : Boitempo, 2010. -(Estado de Sítio) Inclui bibliografia ISBN 978-85-7559-164-2 1. Brasil - Política e governo - 2003 -. 2. Brasil - Condições econômicas. 3. Brasil - Condições sociais. 4. Capitalismo. 5. Ciência política. I. Oliveira, Francisco de, 1932-. II. Braga, Ruy. III. Rizek, Cibele Saliba, 1950-. IV. Série. 10-4292. 27.08.10

CDD: 320.981 CDU: 32(81) 03.09.10

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É vedada, nos termos da lei, a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora. Esta edição, que contou com o auxílio financeiro da CAPES – Brasil, atende às normas do acordo ortográfico em vigor desde janeiro de 2009. 1a edição: setembro de 2010 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda. Rua Pereira Leite, 373 05442-000 São Paulo SP Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869 [email protected] www.boitempoeditorial.com.br

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SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................ Ruy Braga

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Homenagem ............................................................................................ Ruy Braga

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1. HEGEMONIA ÀS AVESSAS: DECIFRA-ME OU TE DEVORO! Hegemonia às avessas ...................................................................... 21 Francisco de Oliveira A hegemonia da pequena política .................................................... 29 Carlos Nelson Coutinho 2. TRABALHO E CAPITALISMO, ANTES E APÓS O DESMANCHE O trabalho precário nos Estados Unidos .......................................... 47 Arne L. Kalleberg Trabalho e regresso: entre desregulação e re-regulação ...................... 61 Leonardo Mello e Silva Política e arte na verdade e na ficção do trabalho: elementos para uma comparação história entre o Oriente socialista e o Ocidente capitalista ........................................ 93 Yves Cohen Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas no Brasil ...................................................... 109 Leda Maria Paulani 3. CULTURA, CIDADE E SERVIDÃO FINANCEIRA A cultura da servidão financeira: uma leitura às avessas .................... 137 Maria Elisa Cevasco

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Moedas e moedeiros (e um pintor na contramão) ............................ 149 Luiz Renato Martins A renda da forma na arquitetura da era financeira ........................... 161 Pedro Fiori Arantes Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização das cidades no Brasil e os riscos de um “urbanismo às avessas” ......... 185 João Sette Whitaker Ferreira Verde, amarelo, azul e branco: o fetiche de uma mercadoria ou seu segredo .................................................................................. 215 Cibele Rizek

4. AMÉRICA LATINA E ÁFRICA DO SUL NA ENCRUZILHADA A teoria da conjuntura e a crise contemporânea ............................... 237 Carlos Eduardo Martins Construindo a hegemonia na América Latina: democracia e livre mercado, associações empresariais e sistema financeiro .................... 255 Ary Cesar Minella Que tipo de liderança é Chávez? ...................................................... 287 Gilberto Maringoni A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul .... 299 Patrick Bond Do apartheid ao neoliberalismo ....................................................... 319 José Luís Cabaço

5. O SOCIALISMO APÓS O DESMANCHE Reencontrando o comunismo da emancipação ................................ 339 Álvaro Bianchi Política como práxis: Hegemonia às avessas, um exercício teórico .... 351 Wolfgang Leo Maar O avesso do avesso .......................................................................... 369 Francisco de Oliveira Bibliografia ............................................................................................. 377 Sobre os autores ........................................................................................ 395

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APRESENTAÇÃO

“Decifra-me ou te devoro!”, ameaçava a Esfinge os viajantes amedrontados, antes de recitar o mais famoso enigma da história. Na verdade, a hegemonia “lulista” representa nossa incontornável esfinge barbuda. Este livro origina-se de uma “provocação gramsciana” feita por Chico de Oliveira no artigo “Hegemonia às avessas”1 – que serviu de ponto de partida para o seminário homônimo organizado pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Universidade de São Paulo (Cenedic)2, do qual resultou este livro –, no intuito de esboçar uma possível solução para o enigma. Trata-se de empreendimento de grande monta: perscrutar os fundamentos econômicos, políticos e culturais dessa forma sui generis de dominação social que se enraizou no país, alcançando, em um mundo capitalista marcado pela crise econômica, pela guerra, pelo colapso ambiental e pela carência de exemplos políticos emuladores, inéditos prestígio e admiração internacionais. “É o homem”, respondeu Édipo. “Ele é o cara!”, exclamou Obama, admirado. E o que diria Chico? Em seu artigo, Chico nos alertava de início para os efeitos politicamente regressivos da hegemonia lulista: ao absorver “transformisticamente”3 as 1

Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

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Seminário internacional “Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira” (USP, 21 a 24 de outubro de 2008). Esse evento não teria acontecido sem o apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH da USP; do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); e de Néia Almeida, secretária do Cenedic.

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Sinteticamente, Gramsci chamou de “transformismo” o processo de absorção pelas classes dominantes de elementos ativos ou grupos inteiros, tanto dos grupos aliados como dos adversários.

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forças sociais antagônicas no aparato de Estado, desmobilizando as classes subalternas e os movimentos sociais, o governo Lula teria esvaziado todo o conteúdo crítico presente na longa “era da invenção” dos anos 1970-1980, tornando a política partidária praticamente irrelevante para a transformação social. A medida dessa desmobilização poderia ser apreendida pelo escasso interesse depositado pelos eleitores no pleito presidencial de 2006. O efeito social regressivo consistiria exatamente nisto: sob Lula, a política afastou-se dos embates hegemônicos travados pelas classes sociais antagônicas, refugiando-se na sonolenta e desinteressante rotina dos gabinetes, ainda que frequentados habitualmente por escândalos de corrupção. A partir daí, Chico adiantou sua conjectura: no momento em que a “direção intelectual e moral” da sociedade brasileira parecia deslocar-se no sentido das classes subalternas, tendo no comando do aparato de Estado a burocracia sindical oriunda do “novo sindicalismo”, a ordem burguesa mostrava-se mais robusta do que nunca. A esse curioso fenômeno em que parte “dos de baixo” dirige o Estado por intermédio do programa “dos de cima” Chico chamou “hegemonia às avessas”. Um paralelo interessante poderia ser encontrado na experiência histórica da superação do apartheid. Daí uma sessão do seminário ter sido dedicada à África do Sul. “Ok, nós temos o Estado, mas onde está o poder?”, costumava provocar o sociólogo Patrick Bond durante o período em que trabalhou como conselheiro no gabinete de Nelson Mandela, nos primeiros anos de governo do Congresso Nacional Africano (CNA). À procura de um poder fugidio, a vitória do CNA sobre o apartheid congelou o mito do poder popular apoiado pelo advento de novas classes médias negras, enquanto legitimava as relações de exploração características do capitalismo mais desavergonhado4. Os moçambicanos que o digam... Eis a tal “hegemonia às avessas”: vitórias políticas, intelectuais e morais “dos de baixo” fortalecem dialeticamente as relações sociais de exploração em benefício “dos de cima”. No Brasil, décadas de luta contra a desigualdade e por uma sociedade alternativa à capitalista desaguaram na incontestável vitória lulista de 2002. Quase que imediatamente, o governo Lula racionalizou, unificou e ampliou o programa de distribuição de renda conhecido como Bolsa Família, transformando a luta social contra a misé4

Ver Patrick Bond, Elite transition: from apartheid to neoliberalism in South Africa (Londres, Pluto Press, 2000).

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ria e a desigualdade em um problema de gestão das políticas públicas. Chico diz que Lula instrumentalizou a pobreza ao transformá-la em uma questão administrativa. O programa Bolsa Família garantiu a maciça adesão dos setores mais depauperados das classes subalternas brasileiras ao projeto do governo. Jogando no campo de seu adversário eleitoral, isto é, no campo da instrumentalização da pobreza e da gestão burocrática dos conflitos sociais, o governo Lula soube derrotar o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), mas ao preço da despolitização generalizada das lutas sociais. Já tendo refletido a respeito do “transformismo” da burocracia sindical lulista em seu influente ensaio “O ornitorrinco”5, não foi difícil para Chico perceber o “sequestro” dos movimentos sociais pelo “Estado integral” brasileiro – os fundos de pensão das estatais aí incluídos. Ao praticamente desaparecerem da pauta política reivindicativa nacional, com exceção dos valentes acampados do MST, os movimentos sociais, tendo o outrora poderoso movimento sindical “cutista” na vanguarda (do atraso), salgaram o terreno para uma oposição de esquerda autêntica ao governo, quase anulando o antagonista histórico e encurralando os conflitos sociais no plano cinzento da política dos gabinetes6. A “hegemonia às avessas” não estaria preparando igualmente uma nação sem qualquer sofisticação política, como diria Weber sobre Bismarck, totalmente subsumida à hegemonia da pequena política, como bem nos lembrou Carlos Nelson Coutinho? Afinal, se, como diz Chico, parece que atualmente os dominados dominam, os sindicalistas se transformaram em capitalistas, os petistas controlam o parlamento, a economia está definitivamente blindada contra a crise mundial, trata-se, antes de mais nada, de um conjunto de aparências “necessárias”, pois, para o marxismo crítico, a 5

Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003).

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Não nos esqueçamos do “legado de Bismarck”, analisado por Weber em um de seus dois “Colóquios de Lauenstein”, intitulado “Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída”. Segundo o grande sociólogo de Heidelberg, Bismarck teria deixado atrás de si uma nação sem qualquer vontade política própria, acostumada à ideia de que o grande estadista ao leme tomaria as decisões políticas necessárias. Ver Max Weber, “Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída: uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária” (São Paulo, Abril, 1980, Os Pensadores), p. 1-85.

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aparência não é simplesmente a face espúria da essência, seu “outro” fictício e enganoso – existe sempre uma íntima relação dialética entre aparência e essência. Os capítulos que formam este livro buscam, cada um a seu modo, contribuir para a compreensão dessa relação. De minha parte, confesso que continuo me sentindo bastante atraído pela hipótese da “revolução passiva à brasileira”, que, juntamente com Álvaro Bianchi, esboçamos quando da primeira eleição de Lula7. Naquela ocasião, avançamos duas conjecturas: 1) O governo Lula não seria simplesmente mais um exemplo “neoliberal”, à la Fernando Collor ou FHC, exatamente porque, no intuito de constituir certas margens de consentimento popular, ele deveria responder a determinadas demandas represadas dos movimentos sociais. Empregamos então a noção – um tanto quanto frouxa, admitamos – de “social-liberalismo” para tentar dar conta da ênfase nas políticas de distribuição de renda, ainda que plasmadas pela reprodução da ortodoxia rentista. 2) O vínculo orgânico “transformista” da alta burocracia sindical com os fundos de pensão poderia não ser suficiente para gerar uma “nova classe”, como disse Chico, mas seguramente pavimentaria o caminho sem volta do “novo sindicalismo” na direção do regime de acumulação financeiro globalizado. Apostávamos que essa via liquidaria completamente qualquer possibilidade de retomada da defesa dos interesses históricos das classes subalternas brasileiras8. Chamamos esse processo de “financeirização da burocracia sindical”.

Sei que Carlos Nelson Coutinho, nosso principal interlocutor ao longo dessa desafiadora odisseia gramsciana, é cético em relação à hipótese da “revolução passiva à brasileira” como critério interpretativo do atual momento hegemônico. Ele prefere falar em “hegemonia da pequena política” para destacar a natureza do lulismo: uma forma de hegemonia mais afinada com as características principais do neoliberalismo, pois apoiada naquilo que Gramsci chamou de “consentimento passivo”, isto é, a aceitação naturalizada de um existente tido e havido como inelutável. Não colocaria reparos nessa opinião de Carlos Nelson, pois me parece que, de fato, a hegemonia lulista apoia-se, sim, em boa parte, nesse tipo de consentimento passivo. 7

Para mais detalhes, ver Álvaro Bianchi e Ruy Braga, “Brazil: the Lula government and financial globalization”, Social Forces, Chapel Hill, v. 83, n. 4, 2005, p. 1745-62.

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Gramsci entendia que o “transformismo” destruía a força política das classes subalternas decapitando suas lideranças, desarticulando os grupos antagonistas e semeando desordem no terreno adversário.

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Aliás, as observações do afamado comunista sardo acerca de Giovanni Giolitti serviriam perfeitamente bem para descrever Lula9. Não compartilho, entretanto, do ceticismo de Carlos Nelson quanto à hipótese da “revolução passiva à brasileira”, pois intuo que a hegemonia lulista satisfaz, se não completamente, em grande medida, as premissas gramscianas a respeito tanto da “conservação”, isto é, a reação “dos de cima” ao subversivismo inorgânico das massas, quanto à “inovação”, ou seja, a incorporação de parte das exigências “dos de baixo”. Trata-se naturalmente de uma dialética multifacetada e tensa (“inovação/conservação”, “revolução/restauração”) que catalisa um reformismo “pelo alto”, conservador, é verdade, porém dinâmico o suficiente para não simplesmente reproduzir o existente, mas capaz de abrir caminhos para novas mudanças – progressistas (no caso do fordismo, analisado pelo genial sardo no Caderno 22) ou regressivas (no caso do fascismo). Na minha opinião, a “hegemonia às avessas” nada mais é do que essa via de modernização conservadora, plasmada pelos limites inerentes à semiperiferia capitalista, em que o avanço nutre-se permanentemente do atraso. No tocante ao processo de modernização conservadora do mundo do trabalho no Brasil, por exemplo, eu mesmo busquei mostrar por meio de uma pesquisa do setor que mais cresceu em termos ocupacionais durante o governo Lula, isto é, o do telemarketing, como a “avançada” acumulação financeira dos bancos atuantes no país nutre-se permanentemente da reprodução de modalidades “arcaicas” de discriminação social, como o racismo, o sexismo e a homofobia. Na realidade, uma das principais fontes de adaptação do teleoperador ao fluxo tensionado nas Centrais de Teleatividades (CTAs) é seguramente a natureza “invisível” desse tipo de trabalho. Co9

“Grande política (alta política) – pequena política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intriga). A grande política compreende as questões vinculadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, defesa e conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que surgem no interior de uma estrutura já estabelecida pelas lutas de preeminência entre as diversas facções de uma mesma classe política. É, por isso, grande política tratar de excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à pequena política (Giolitti, rebaixando o nível das lutas internas, fazia grande política; mas seus fanáticos eram objeto de grande política, contudo eles mesmos faziam pequena política)”. Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, (Turim, Einaudi, 1975), caderno 13, parágrafo 5. Tradução livre. [Ed. bras.: Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999-2003.]

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mo o teleoperador utiliza exclusivamente a voz na relação com o público, a aparência torna-se secundária e o setor de telemarketing emergiu como uma espécie de “refúgio” para mulheres, sobretudo negras, além de gays e portadores de necessidades especiais, justamente aqueles grupos que estão entre os mais fragilizados do mercado de trabalho brasileiro10. Carlos Nelson levanta muito corretamente a questão: se estivermos diante de uma revolução passiva, parte das exigências dos “de baixo” deverá ser acolhida pelo governo reformista e moderado. Mas não é exatamente isso que verificamos quando analisamos o Bolsa Família, a ampliação do sistema universitário federal com o patrocínio das cotas, o impulso na direção da “reformalização” do mercado de trabalho11, a política de reajuste do salário mínimo acima da inflação, a retomada dos investimentos em infraestrutura ou, mais recentemente, o incentivo ao consumo de massas por meio do crédito consignado? É pouquíssimo em se tratando da nossa imensa dívida social. Além disso, tais realizações são totalmente insuficientes para garantir Lula no panteão dos reformistas, ao lado de Willy Brandt, Olof Palme e tutti quanti. Contudo, e isso diz muito sobre o handicap das classes dominantes brasileiras, consegue ser suficiente para, num país onde o epíteto de “pai dos pobres” é predicado de um ditador oriundo da aristocracia fundiária, alçar Lula à condição de incontestável liderança popular. 10

Naturalmente, o fato de ser uma espécie de “refúgio” para esses grupos de trabalhadores não implica que a discriminação nas “modernas” CTAs inexista. Ao contrário, é muito comum verificarmos que as funções mais qualificadas, isto é, aquelas que exigem algum tipo de conhecimento tecnoprofissional, são, com muita frequência, ocupadas majoritariamente por homens, assim como a estratégia de promoção das empresas tende a privilegiar os teleoperadores brancos. Para mais detalhes, ver Ricardo Antunes e Ruy Braga (orgs.), Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (São Paulo, Boitempo, 2009).

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Somos perfeitamente conscientes de que a atual tendência à “reformalização” do mercado de trabalho originou-se no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, mais precisamente após a desvalorização do real motivada pela crise financeira do Sudeste asiático de 1997, associando-se intimamente, portanto, às necessidades da política fiscal do Estado brasileiro. Em resumo, “reformaliza-se”, basicamente, para arrecadar mais e continuar a pagar os elevadíssimos juros da dívida pública. Contudo, independentemente do impulso original ou do papel desempenhado pela atual “reformalização” do mercado de trabalho, os efeitos benéficos relativos à proteção social não se alteram. Para mais detalhes, ver Paulo Eduardo Baltar e José Dari Krein, “O emprego formal nos anos recentes”, Carta Social e do Trabalho, Campinas, v. 3, 2006, p. 3-10.

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Ainda que mantida a política profundamente regressiva dos juros estratosféricos – é surpreendente que nem mesmo a atual crise econômica mundial tenha sido capaz de alterar o comportamento visceralmente rentista do Banco Central –, sabemos que a relativa desconcentração de renda experimentada por aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho12 pode perfeitamente coexistir, num contexto marcado por certo crescimento econômico, com a reprodução da desigualdade entre as classes sociais, quando comparada aos incrementos de rendimentos dos que vivem da propriedade de ativos, como títulos, imóveis etc. Uma simples análise da distribuição funcional da renda nacional que confrontasse os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) relativos à remuneração dos empregados, o rendimento dos autônomos e o Excedente Operacional Bruto do Sistema de Contas Nacionais poderia ilustrar bem isso. Contudo, parece-me meridianamente claro que o governo Lula conseguiu coroar a incorporação de parte das reivindicações dos “de baixo” com a bem orquestrada reação ao subversivismo esporádico das massas, representado pelo “transformismo de grupos radicais inteiros”. Da miríade de cargos no aparato de Estado até a reforma sindical que robusteceu os cofres das centrais sindicais, passando pelos muitos assentos nos conselhos gestores dos fundos de pensão, pelas altas posições em empresas estatais, pelo repasse de verbas federais para financiamento de projetos cooperativos, pela recomposição da máquina estatal etc., o locus da hegemonia resultante de uma revolução passiva é exatamente o Estado13. O fato é que o subversivismo inorgânico transformou-se em consentimento ativo para muitos militantes sociais, que passaram a investir esforços desmedidos na conservação das posições adquiridas no aparato estatal. Se Chico tem toda razão ao afirmar que a “hegemonia às avessas” simplesmente não significou verdadeiros “avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participa12

Para mais detalhes, ver “Distribuição pessoal da renda do trabalho: Brasil 1995-2005 (Tabela 7)”, em Dieese, Anuário dos trabalhadores 2007, São Paulo, Dieese, 2007, p. 41.

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Álvaro Bianchi nos lembra, recorrendo a fartas citações dos Quaderni, que “revolução passiva” não significa hegemonia de uma classe em relação à totalidade social, mas sim de uma fração das classes dominantes sobre o conjunto delas por meio da mediação do Estado. Para mais detalhes, ver Álvaro Bianchi, “Revolução passiva: o pretérito do futuro”, Crítica Marxista, São Paulo, v. 23, n. 23, 2006, p. 34-57.

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ção nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo”14, também é verdade que Lula soube “excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”. Assim procedendo, fez grande política, isto é, “representou o maquiavelismo de Maquiavel contra o maquiavelismo de Stenterello”, ainda que “para conservar uma situação miserável”15. Quando Chico fala em “regressão política” para se referir ao governo Lula, é nisso que ele está pensando. Aos meus olhos, a “hegemonia às avessas” é o ponto comum entre duas formas sociais distintas de consentimento: a ativa e a passiva. “Vanguarda do atraso” ou “atraso da vanguarda”? O governo Lula apoia-se em uma forma de hegemonia produzida por uma revolução passiva empreendida na semiperiferia capitalista que conseguiu desmobilizar os movimentos sociais ao integrá-los à gestão burocrática do aparato de Estado, em nome da aparente realização das bandeiras históricas desses mesmos movimentos, que passaram a consentir ativamente com a mais desavergonhada exploração dirigida pelo regime de acumulação financeira globalizado. Por seu turno, emaranhada em uma rede de dependências das políticas públicas governamentais, e esgotada por uma década e meia de cruentas lutas sociais ofensivas somada a outra década e meia de obstinadas lutas sociais defensivas, parte considerável das classes subalternas brasileiras consente passivamente. Cansadas de inovar politicamente e de se defender economicamente, as classes subalternas brasileiras preferem, à primeira vista, retomar momentaneamente o fôlego e seguir hipotecando prestígio ao governo da esfinge barbuda. Eis aqui o cerne da questão: após sete anos de “regressão política”, 85% de aprovação no Ibope não pode ser obra da divina providência. Parece-me ser esse o enigma que a odisseia gramsciana contida neste livro ajuda a decifrar.

Ruy Braga Outubro de 2009

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Ver Francisco de Oliveira, “O avesso do avesso”, neste livro.

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Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, cit., caderno 13, parágrafo 5. Tradução livre.

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HOMENAGEM Eu sou o exílio Eu sou o exílio Sou o andarilho O trovador (digam o que disserem) gentil eu sou, e calmo e com passo distraído absorto em planejar, amável com a submissão mas gemidos invadem as alcovas de meu coração e em minha cabeça por detrás de meus olhos quietos eu ouço os gritos e as sirenes.* Dennis Brutus

O poeta sul-africano Dennis Vincent Brutus foi uma das presenças mais aguardadas de nosso seminário internacional “Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira”. Debateu com nossos colegas Omar Ribeiro Thomaz e José Luís Cabaço o tema em que, quer por sua inesgotável experiência de vida, quer por sua singular trajetória política, se tornara referência obrigatória: “Do apartheid ao neoliberalismo”. Todos aqueles que tiveram a oportunidade e o privilégio de assistir a sua concorrida palestra, em que examinou as múltiplas divergências e convergências das realidades brasileira e sul-africana, certamente não se esquecerão de seus ensinamentos e de seu sincero interesse em inaugurar um amplo diálogo, demonstrado por suas intervenções e questionamentos em praticamente todas as mesas de nosso seminário. Permaneceu de sua visita ao Cenedic a decisão de estreitar laços de colaboração com o Centre for Civil Society (CCS), ligado à Universidade de Kwazulu-Natal, em Durban, onde trabalhava e militava. *

Tradução de Anna Rüsche. (N. E.)

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Filho de pais sul-africanos, Dennis Brutus nasceu na capital do Zimbábue, Harare, em 1924, e, ainda muito jovem, mudou-se para a África do Sul, onde se graduou no início da década de 1940 em psicologia e literatura inglesa. A retomada dos estudos na faculdade de direito da Universidade de Witwatersrand, contudo, foi interrompida pela sua primeira prisão motivada pelo radical ativismo anti-apartheid. Sua militância política esteve, de início, associada ao trabalho de organização da nova associação esportiva sul-africana, que se apresentava como uma alternativa ao segregacionismo nos esportes, além, naturalmente, de atuar nas fileiras do Congresso Nacional Africano (CNA). Com a radicalização política e social ocasionada pelo Massacre de Sharpeville1, e após uma onda de forte repressão às organizações anti-apartheid promovida pelo governo sul-africano – cujo momento culminante talvez tenha sido a promulgação, em 1961, do Suppression of Communism Act –, Dennis Brutus decidiu escapar para Moçambique, onde foi capturado pela Pide, a polícia secreta portuguesa, e deportado para Johannesburgo. Nessa cidade, em 1963, ele foi alvejado três vezes pelas costas, enquanto tentava escapar da tutela policial. Quase morto, ficou alguns meses aprisionado na mesma cela em que, mais de meio século antes, Mahatma Gandhi também foi feito prisioneiro. Ainda não de todo recuperado dos ferimentos, Dennis Brutus foi transferido para a famosa ilha Robben, onde permaneceu cativo durante dois anos em uma cela próxima a de Nelson Mandela. Na prisão, escreveu duas de suas obras mais conhecidas: a coleção de poemas Sirens, knuckles, boots e Letters to Martha2. 1

Dennis Brutus dedicou um de seus mais conhecidos poemas ao Massacre de Sharpeville, bairro construído pelo regime racista sul-africano para acomodar os negros que trabalhavam nas cidades industriais de Vanderbijlpark e Vereeniging. Nesse bairro operário ocorreu, no dia 21 de março de 1960, um protesto contra a chamada Lei do Passe, que obrigava os negros a usar cadernetas em que estavam definidos os locais por onde podiam circular. A polícia sul-africana reprimiu o protesto atirando com metralhadoras contra a multidão e matando 69 pessoas. Sobre o massacre, Brutus escreveu: “Recordem Sharpeville/ no dia das balas nas costas/ pois encarnou a opressão/ e a natureza da sociedade / mais claramente que qualquer outra coisa;/ foi o evento clássico” (tradução livre).

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Ver Dennis Brutus, A simple lust (Portsmouth, Heinemann, 1986). Essa seleção de poemas inclui: “Sirens, knuckles, boots”, “Letters to Martha”, “Poems from Algiers” e “Thoughts abroad”.

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Homenagem • 17

Exilado pelo governo sul-africano, estabeleceu-se primeiramente em Londres, em 1965, e logo em seguida em Chicago, em 1971, para então fixar-se na cidade de Pittsburgh, em cuja universidade lecionou literatura e estudos africanos durante cerca de duas décadas, obtendo ampla notoriedade como poeta e crítico literário. Fora da prisão, Dennis Brutus destacou-se como uma das principais figuras da luta que culminou na exclusão da África do Sul dos jogos olímpicos da Cidade do México, em 1968, e no posterior banimento, em 1970, de qualquer participação sul-africana em atividades esportivas internacionais. Com o fim do apartheid, Dennis Brutus regressou à África do Sul, associando-se ao Centre for Civil Society. Ali, notabilizou-se por sua militância socialista contra o neoliberalismo dos novos governos sul-africanos e a globalização capitalista. Esteve presente em todas as edições do Fórum Social Mundial e foi figura central na crítica ao New Partnership for Africa’s Development (Nepad), uma espécie de “Consenso de Washington” para o continente africano, proposto e implementado pelo ex-presidente sul-africano Thabo Mvuyelwa Mbeki. Em 2007, homenageado com um lugar de honra no “hall da fama” dos esportes sul-africanos, recusou-se a receber o prêmio, alegando que os dirigentes esportivos da África do Sul ainda não haviam feito uma crítica consequente do racismo. Dennis Brutus nos prometeu o texto de sua exposição em nosso seminário para ser publicado neste livro. Por meio das trocas de e-mails que mantivemos com ele após o seminário para informá-lo dos prazos para o encaminhamento do capítulo anunciado, soubemos que o câncer que o acometera estava fugindo ao controle. Ao manifestar minha absoluta prostração com a notícia, Dennis Brutus mostrou-se bem-humorado e confiante, afirmando que “aquele que conhece a polícia sul-africana não se assusta com um simples câncer” e complementou dizendo se tratar de “apenas mais uma luta”. De comum acordo, então, tendo em vista seu delicado quadro de saúde, decidimos substituir o capítulo prometido pelo de Patrick Bond, coordenador do Centre for Civil Society e um de seus mais íntimos colaboradores. Dennis Brutus foi desses incorrigíveis lutadores sociais que deixam orgulhosos aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-los e de aprender com seu exemplo e sua inesgotável experiência. Infelizmente, a “voz cantante do movimento sul-africano de libertação”, como era conhecido, silenciou no dia 26 de dezembro de 2009. A notícia de sua morte, ocorrida na Cidade

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do Cabo, apesar de não ser de todo inesperada, nos encheu de profunda tristeza. Sua luta por uma sociedade igualitária, socialista e emancipada de todas as formas de discriminação, exploração e opressão não será esquecida. Hamba kahle, camarada Dennis Brutus! Este livro é dedicado a sua memória.

Ruy Braga Janeiro de 2010

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1 HEGEMONIA ÀS AVESSAS: DECIFRA-ME OU TE DEVORO!

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HEGEMONIA ÀS AVESSAS * Francisco de Oliveira

Depois de levar um susto no primeiro round, quando seu adversário imediato abocanhou 40% dos votos, Luiz Inácio Lula da Silva ganhou fácil o segundo turno das eleições. Há uma gama variada de interpretações para a retumbante vitória. A mais óbvia acentua a influência do Bolsa Família, que teria garantido uma maciça votação dos estratos mais pobres da sociedade. Tanto que no Nordeste, região que recebe o maior contingente assistencial do Bolsa Família, Lula ultrapassou os 70% em quase todos os municípios. É mais complicado explicar por que Geraldo Alckmin teve tantos votos no primeiro turno. E por que perdeu uns 2 milhões do primeiro para o segundo. A interpretação majoritária sustenta que o tucano foi o opositor ideal para Lula: pouco conhecido além de São Paulo, com cara de paulista, jeito de paulista e fama de paulista – um handicap fora de São Paulo. Para completar, Alckmin não tinha nenhuma mensagem e foi muito mal na campanha televisiva. Outra interpretação corrente, assumida pelo próprio Lula e por jornais do exterior, é que o Brasil eleitoral se dividiu entre ricos e pobres, e os pobres venceram. Seria ótimo, se fosse plausível, que os 40% de votos a favor de Alckmin fossem dos “ricos”, e que a votação de Lula fosse exclusivamente dos “pobres”. Um dos resultados formidáveis da eleição, incluindo os pleitos para os estados e a renovação do Congresso, foi a salada de coligações e coalizões. Siglas de suposta orientação ideológica oposta uniram-se indiscriminadamente com toda espécie de agrupamentos, incluindo os de salteadores. Traições abertas às próprias hostes foram a regra. Por exemplo, o governa*

Uma primeira versão deste artigo foi publicada em Piauí, Rio de Janeiro/ São Paulo, n. 4, jan. 2007. (N. E.)

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dor de Mato Grosso, Blairo Maggi, apesar de ser o maior sojicultor do mundo, apoiou Lula abertamente, enquanto o partido do qual é membro – o Partido Popular Socialista (PPS), sigla herdeira do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) – fez campanha por Geraldo Alckmin. Essa falta de consistência confirma a irrelevância da política partidária no capitalismo contemporâneo. Irrelevância que é mais grave na periferia do que no centro. Os partidos representam pouco, e a política está centrada sobretudo nas personalidades. Sempre foi assim na tradição brasileira, mas depois da criação dos partidos de massa – vale dizer, depois da criação do Partido dos Trabalhadores (PT) – houve um período de forte valorização dos partidos. O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), metamorfose do antigo partido de oposição à ditadura militar no período 1964-1984, fez a maior bancada na Câmara. O PMDB é, tipicamente, um partido de caciques regionais. Não tem sequer unidade programática. Dessa vez, o que é importante como símbolo, não teve candidato à Presidência, seja em coligação com o PT, seja com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). O Partido da Frente Liberal (PFL, atual DEM) foi derrotado fragorosamente na Bahia e no Maranhão, mas ainda assim formou a maior bancada no Senado. O PT manteve-se com a segunda maior bancada da Câmara Federal, mas pela primeira vez em sua história teve uma diminuição em seu número de deputados. Fez apenas quatro governadores, sendo a Bahia o único estado politicamente importante – até porque derrotou um coronel pefelista tido como imbatível, Antônio Carlos Magalhães. Lula distanciou-se ostensivamente do PT. Somente recorreu ao partido, e a setores de esquerda fora dele, no segundo turno, quando viu a reeleição ameaçada. Proclamados os resultados, logo fechou um acordo com o PMDB para dominarem juntos a Câmara dos Deputados e o Senado. O ceticismo é geral quanto ao segundo mandato. Ninguém, à direita e à esquerda, espera grandes alterações nas políticas governamentais. Lula parece uma barata tonta, clamando por soluções para, conforme diz, “destravar” o desenvolvimento. Afora a continuidade do Bolsa Família e a manutenção do conservadorismo na política econômica, o presidente parece ter perdido inteiramente o rumo. O desnorteio mostra uma das consequências de sua vitória, nas proporções em que ocorreu: Lula não tem objetivos, porque não tem inimigos de classe. Alguns poucos que vocalizaram a esperança de mudanças na política econômica foram imediatamente repreendi-

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dos pelo próprio presidente reeleito – caso de Tarso Genro, ministro das Relações Institucionais, tido como o ideólogo do governo, e Dilma Roussef, a poderosa chefe da Casa Civil, considerada o motor do Executivo. Eles estavam entre os “mudancistas” e foram logo calados. O governo terá maioria no Congresso, mas é quase certo que o balcão de negociações entre as várias siglas e o Executivo será mais amplo que no primeiro mandato. Dito de forma mais direta, o governo será mais fraco e a cobrança dos apoios será mais forte, na forma de nomeações para cargos de primeiro escalão e para grandes entidades federais. A agenda das denúncias de corrupção não está encerrada, embora se espere que o governo seja mais cuidadoso e as oposições, menos assanhadas. Aparentemente, o espaço da esquerda se ampliou. Até este escriba votou em Lula, no segundo turno, com essa perspectiva. A oposição da esquerda a Lula e ao tucanato chegou a uns 7% dos votos para presidente, materializada no voto a Heloísa Helena e à Frente de Esquerda PSOL-PSTU-PCB-Consulta Popular. A ilusão quanto ao peso da esquerda se desfez com as primeiras declarações do presidente reeleito, que reendossou a política econômica, manteve nos cargos algumas figuras emblemáticas (caso de Henrique Meirelles na presidência do Banco Central) e defendeu a “era Palocci”. No mesmo movimento, Lula aventou nomes para compor o novo Ministério que estão entre os mais reacionários do meio empresarial – a começar por Jorge Gerdau Johannpeter, proprietário do maior conjunto de siderúrgicas do Brasil (e de algumas no exterior), compradas na bacia das almas das privatizações do governo FHC. Os votos nulos alcançaram a marca dos 4%, mesma porcentagem para os votos em branco, e 23% dos cadastrados não compareceram às seções eleitorais, apesar da obrigatoriedade do voto. De fato, as eleições presidenciais não interessaram a 31% dos votantes. Ou então as candidaturas não motivaram esses 31% de eleitores. É a porcentagem mais alta de “indiferença” eleitoral da história moderna brasileira, aproximando-se dos números da abstenção dos norte-americanos nas eleições presidenciais. De novo, essa indiferença quer dizer que a política não passa pelo conflito de classes, evita e trapaceia com ele. Nas ruas, o fracasso da “mudança” não poderia ser mais evidente: nenhuma vibração, nenhuma bandeira do PT ou de qualquer outro partido, nenhuma mobilização. A grande maioria dos eleitores se desincumbia da obrigação com ar de enfado. Muitos deles logo tomaram o caminho das praias.

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O presidente reeleito não lamentou essa indiferença expressiva do eleitorado. Queixou-se amargamente, isso sim, de não ser o preferido dos “ricos”, cobrando-lhes o fato de que nunca os banqueiros ganharam tanto dinheiro como em seu governo, para logo depois dizer que os “pobres” haviam ganho a eleição. Essa interpretação logo foi encampada pela imprensa: o Brasil havia se dividido entre “pobres” e “ricos”. Esqueceram-se de explicar os 40% de votos em Geraldo Alckmin no primeiro turno: aí já seríamos um país do Primeiro Mundo! Qual será a cara do mandato que agora se inicia? Certamente, haverá uma nova ampliação do programa Bolsa Família, e é aí que mora o perigo. Nos outros setores, as mudanças serão superficiais. Talvez seja feita a grande transposição do rio São Francisco para os estados mais sujeitos à seca no Nordeste e algumas obras de infraestrutura. Por aí ficará. A perspectiva para o futuro requer uma reflexão gramsciana. Talvez estejamos assistindo à construção de uma “hegemonia às avessas” típica da era da globalização. A África do Sul provavelmente anunciou essa hegemonia às avessas: enquanto as classes dominadas tomam a “direção moral” da sociedade, a dominação burguesa se faz mais descarada. As classes dominadas no país, que se confundem com a população negra, derrotaram o apartheid, um dos regimes mais nefastos do século XX, mesmo levando em conta que o século passado conheceu o nazifascismo e o arquipélago gulag. E, no entanto, o governo sul-africano oriundo da queda do apartheid rendeu-se ao neoliberalismo. As favelas de Johannesburgo não deixam lugar a dúvidas1. Assim, a liquidação do apartheid mantém o mito da capacidade popular para vencer seu temível adversário, enquanto legitima a desenfreada exploração pelo capitalismo mais impiedoso. Algo assim pode estar em curso no Brasil. A longa “era da invenção”2 forneceu a direção moral da sociedade brasileira na resistência à ditadura e alçou a questão da pobreza e da desigualdade ao primeiro plano da política. Chegando ao poder, o PT e Lula criaram o Bolsa Família, que é uma espécie de derrota do apartheid. Mais ainda: ao elegermos Lula, parecia ter sido borrado para sempre o preconceito de classe e destruídas as barreiras da 1

Ver Mike Davis, Planeta favela (São Paulo, Boitempo, 2006).

2

Ver Francisco de Oliveira, “Política numa era de indeterminação” e “O momento Lenin”, em Francisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.), A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007).

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desigualdade. Ao elevar-se à condição de condottiere e de mito, como as recentes eleições parecem comprovar, Lula despolitiza a questão da pobreza e da desigualdade. Ele as transforma em problemas de administração, derrota o suposto representante das burguesias – o PSDB, o que é inteiramente falso – e funcionaliza a pobreza. Esta, assim, poderia ser trabalhada no capitalismo contemporâneo como uma questão administrativa. Já no primeiro mandato, Lula havia sequestrado os movimentos sociais e a organização da sociedade civil. O velho argumento leninista-stalinista de que os sindicatos não teriam função num sistema controlado pela classe operária ressurgiu no Brasil de forma matizada. Lula nomeou como ministros do Trabalho ex-sindicalistas influentes na CUT. Outros sindicalistas estão à frente dos poderosos fundos de pensão das estatais. Os movimentos sociais praticamente desapareceram da agenda política. Mesmo o MST vê-se manietado por sua forte dependência do governo, que financia o assentamento das famílias no programa de reforma agrária. Nas condições em que se deu, a vitória eleitoral anula as esquerdas no Brasil. Toda crítica é imediatamente identificada como sendo de “direita” – termo inadequado para defender um governo que tem na direita pilares fundamentais, do pequeno PP a setores do PMDB, como os de Jader Barbalho e José Sarney. Um rancor surdo torna difíceis as relações entre a esquerda independente e o PT e, em particular, o governo Lula. Por outro lado, a mídia, sobretudo os grandes jornais, segue atacando o governo com ferocidade, o que contribui para confundir a crítica da esquerda com a crítica da própria imprensa. O principal partido da oposição a Lula, o PSDB, esfrangalhou-se – e também confunde toda a crítica com suas posições. Caso o programa Bolsa Família experimente uma grande ampliação, o que será possível simplesmente com uma redução de 0,1% do superávit primário, os fundamentos da “hegemonia às avessas” estarão se consolidando. Trata-se de um fenômeno novo, que exige novas reflexões. Não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao longo da existência do Brasil. Suponho também que não se parece com o que o Ocidente conheceu como política e dominação. Não é patrimonialismo, pois o que os administradores dos fundos de pensão estatais gerem é capital-dinheiro. Não é o patriarcalismo brasileiro de Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre, porque não é nenhum patriarca que exerce o mando nem a economia é “doméstica” (no sentido do domus romano), embora na cultura brasileira o chefe político possa se confundir, às vezes, com o “pai” – Getú-

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lio Vargas foi apelidado de “pai dos pobres” e Lula pensa tomar-lhe o lugar, mas o que ele gere, com sua classe, é capital. Não é populismo, como sugere a crítica da direita, e mesmo de alguns setores da esquerda, porque o populismo foi uma forma autoritária de dominação na transição da economia agrária para a urbano-industrial. E o populismo foi – de forma autoritária, enfatize-se – a inclusão sui generis da novel classe operária, desbalanceando a velha estrutura de poder no Brasil e deslocando fortemente os latifundiários da base da dominação. Nada disso está presente na nova dominação. Muitos críticos e analistas consideram que o Bolsa Família é o grande programa de inclusão das classes dominadas na política. Isso é um grave equívoco, sobretudo por parte daqueles que cultivam a tradição marxista gramsciana. Entre eles estão Walquíria Domingues Leão Rego, o próprio ministro Tarso Genro e Luiz Jorge Werneck Vianna, sendo que este último considera o Bolsa Família, e o próprio governo Lula, a continuação da “via passiva” na longa e permanentemente inacabada revolução burguesa brasileira. A nova dominação (e arrisco a hipótese de que ela seja própria e funcional ao capitalismo mundializado) inverte os termos gramscianos. Vejamos. Parece que os dominados dominam, pois fornecem a “direção moral” e, fisicamente até, estão à testa de organizações do Estado, de modo direto ou indireto, e das grandes empresas estatais. Parece que eles são os próprios capitalistas, pois os grandes fundos de pensão das estatais são o coração do novo sistema financeiro brasileiro e financiam pesadamente a dívida interna pública. Parece que eles comandam a política, pois dispõem de poderosas bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Parece que a economia está finalmente estabilizada, que se dispõe de uma sólida moeda e que tal façanha se deveu à política governamental, principalmente no primeiro mandato de Lula. O conjunto de aparências esconde outra coisa, para a qual ainda não temos nome nem, talvez, conceito. Mas certamente será nas pistas do legado de Antonio Gramsci, o “pequeno grande sardo”, que poderemos encontrar o caminho de sua decifração. O consentimento sempre foi o produto de um conflito de classes em que os dominantes, ao elaborarem sua ideologia, que se converte na ideologia dominante, trabalham a construção das classes dominadas a sua imagem e semelhança. Esse é o núcleo da elaboração de Marx e Engels em A ideologia alemã *, que o pequeno grande sardo desdobrou ad*

São Paulo, Boitempo, 2007. (N. E.)

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miravelmente. Estamos em face de uma nova dominação: os dominados realizam a “revolução moral” – derrota do apartheid na África do Sul e eleição de Lula e Bolsa Família no Brasil – que se transforma, e se deforma, em capitulação ante a exploração desenfreada. Nos termos de Marx e Engels, da equação “força + consentimento” que forma a hegemonia desaparece o elemento “força”. E o consentimento se transforma em seu avesso: não são mais os dominados que consentem em sua própria exploração; são os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que a “direção moral” não questione a forma da exploração capitalista. É uma revolução epistemológica para a qual ainda não dispomos da ferramenta teórica adequada. Nossa herança marxista-gramsciana pode ser o ponto de partida, mas já não é o ponto de chegada.

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A HEGEMONIA DA PEQUENA POLÍTICA Carlos Nelson Coutinho

1. A expressão “hegemonia às avessas”, inventada por nosso querido Chico de Oliveira, é certamente provocativa. Trata-se de uma das muito instigantes e sempre oportunas provocações (no bom sentido da palavra!) postas por ele. Lembro aqui, por exemplo, suas formulações sobre o modo de produção social-democrata, o antivalor, o ornitorrinco e o surgimento de uma nova classe formada pelos gestores dos fundos públicos etc. Mesmo que discordemos de Chico em alguns casos, aprendemos sempre – e muito – com essas provocações, pois nos obrigam a pensar. É o caso também de “hegemonia às avessas”. De minha parte, porém, para caracterizar as relações de hegemonia hoje, prefiro falar de “hegemonia da pequena política”. Para entendermos essa caracterização, recordemos, antes de mais nada, o que Gramsci chama de “pequena política”. Cito o autor de Cadernos do cárcere: A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política.1

Ora, é precisamente assim – ou seja, através da exclusão da grande política – que se apresenta a hegemonia na época do neoliberalismo ou, 1

Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999-2003, v. 3), p. 21.

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para usarmos o subtítulo de nosso seminário e deste livro, na época da servidão financeira. Registremos o seguinte: seria equivocado pensar que só há batalha hegemônica quando grandes projetos de sociedade se enfrentam. É verdade que foi assim durante algum tempo na Europa, no tempo em que partidos com diferentes propostas de sociedade competiam entre si, como, por exemplo, conservadores e trabalhistas na Inglaterra ou comunistas e democrata-cristãos na Itália. Nos Estados Unidos, ao contrário, nunca foi assim: ali, a hegemonia dos valores do capitalismo nunca foi posta em discussão pelos dois grandes partidos nacionais, nem mesmo pelas principais organizações sindicais. E, infelizmente, está sendo assim, hoje, também na Europa e em muitos países da América Latina. Que diferença substantiva existe atualmente, por exemplo, entre conservadores e trabalhistas na Inglaterra? Ou entre o governo FHC e o governo Lula no Brasil?2 Hegemonia, portanto, nem sempre se baseia no que Gramsci chamou de “ideologias orgânicas”, aquelas que expressam de modo claro e sistemático a concepção do mundo das classes sociais fundamentais. Independentemente de basear-se ou não numa ideologia orgânica, uma relação de hegemonia é estabelecida quando um conjunto de crenças e valores se enraíza no senso comum, naquela concepção do mundo que Gramsci definiu como “bizarra e heteróclita”, com frequência contraditória, que orienta – muitas vezes sem plena consciência – o pensamento e a ação de grandes massas de mulheres e homens. Ora, podemos constatar que predominam, hoje, no senso comum, determinados valores que asseguram a reprodução do capitalismo, ainda que nem sempre o defendam diretamente. Refiro-me, em particular, ao individualismo (tão emblematicamente expresso na famosa “lei de Gerson”, ou seja, a que nos recomenda tirar vantagem em tudo), ao privatismo (à convicção de que o Estado é um mau gestor e tudo deve ser deixado ao livre jogo do mercado), à naturalização das relações sociais (o capitalismo pode até ter seus lados ruins, mas corresponde à natureza humana) etc. Cabe lembrar ainda que hegemonia é consenso, e não coerção. Existe hegemonia quando indivíduos e grupos sociais aderem consensualmente a certos valores. Mas, como Gramsci observa, existe consenso ativo e consenso 2

Voltarei a isso adiante, no item 3.

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passivo3. A hegemonia da pequena política baseia-se precisamente no consenso passivo. Esse tipo de consenso não se expressa pela auto-organização, pela participação ativa das massas por meio de partidos e outros organismos da sociedade civil, mas simplesmente pela aceitação resignada do existente como algo “natural”. Mais precisamente, da transformação das ideias e dos valores das classes dominantes em senso comum de grandes massas, inclusive das classes subalternas. Hegemonia da pequena política existe, portanto, quando se torna senso comum a ideia de que a política não passa da disputa pelo poder entre suas diferentes elites, que convergem na aceitação do existente como algo “natural”. Quantas vezes ouvimos a frase “os políticos são todos iguais”? Escolhem-se uns ou outros por motivos que, com frequência, nada têm a ver com o conteúdo de suas propostas (as quais, na maioria dos casos, não apresentam nenhuma divergência essencial ou simplesmente não têm conteúdo algum). Essa concepção da política como disputa de elites, e não como ação de maiorias, foi teorizada por alguns expoentes da teoria política do século XX, como Mosca, Schumpeter, Sartori e muitos outros4. Para eles, a política é sempre ação de minorias, de elites. Schumpeter, por exemplo, reduz a democracia ao processo de seleção das elites por meio de eleições periódicas; mas, ao mesmo tempo, também afirma que o povo não sabe combinar interesse e razão, de modo que tais eleições não teriam como fundamento a disputa entre diferentes propostas de sociedade, mas estariam baseadas em escolhas irracionais. Também contribuem para difundir essa hegemonia da pequena política todos os que dizem que vivemos o fim das ideologias, que a diferença entre esquerda e direita desapareceu. Como dizia o hoje esquecido Alain, filósofo francês, quem nega a diferença entre esquerda e direita é sempre de direita. Uma versão mais sofisticada dessa posição é aquela defendida hoje pelo chamado “pós-modernismo”: para os autores dessa corrente, a era das “grandes narrativas” morreu, e, no lugar de um ponto de vista totalizante e universal, devemos nos preocupar com as diferenças, com as identidades, com a defesa do multiculturalismo etc. Essa fragmentação das lutas setoriais – que, separadas de uma visão universal, não põem em 3

Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 3, p. 333.

4

Ver Carlos Nelson Coutinho, “Democracia: um conceito em disputa”, em Intervenções: o marxismo na batalha das ideias (São Paulo, Cortez, 2006), p. 13-27.

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questão o domínio do capital e podem, assim, ser por ele assimiladas – contribui também para o triunfo da pequena política. Repetindo: existe hegemonia da pequena política quando a política deixa de ser pensada como arena de luta por diferentes propostas de sociedade e passa, portanto, a ser vista como um terreno alheio à vida cotidiana dos indivíduos, como simples administração do existente. A apatia torna-se assim não só um fenômeno de massa, mas é também teorizada como um fator positivo para a conservação da “democracia” pelos teóricos que condenam o “excesso de demandas” como gerador de desequilíbrio fiscal e, consequentemente, de instabilidade social. Mas, como também vimos, é expressão de grande política reduzir tudo à pequena política. Em outras palavras, é por meio desse tipo de redução, que desvaloriza a política enquanto tal, que se afirma hoje a quase incontestada hegemonia das classes dominantes. Em situações “normais”, a direita já não precisa da coerção para dominar: impõe-se através desse consenso passivo, expresso entre outras coisas em eleições (com taxa de abstenção cada vez maior), nas quais nada de substantivo está posto em questão. 2. Para identificar melhor a situação atual da hegemonia no mundo, caberia tentar conceituar a chamada “época neoliberal” ou, se preferirmos, a época da servidão financeira. Uma análise sistemática da presente época do capitalismo “globalizado” é uma tarefa ainda não concluída por parte dos marxistas. Contudo, ao que me parece, pode contribuir para essa análise ainda in progress uma discussão sobre a possibilidade de compreender características essenciais da contemporaneidade à luz do conceito gramsciano de revolução passiva. Sou cético em face dessa possibilidade. Creio que, antes de falar em revolução passiva, seria útil tentar compreender muitos fenômenos da época neoliberal através do conceito de contrarreforma, que também faz parte, ainda que só marginalmente, do aparato categorial de Gramsci. Antes de mais nada, recordemos brevemente as principais características da revolução passiva, termo que Gramsci recolhe do historiador napolitano Vincenzo Cuoco, mas atribuindo-lhe um novo conteúdo. Trata-se de um instrumento-chave de que Gramsci se serve para analisar os eventos do Risorgimento, ou seja, da formação do Estado burguês moderno na Itália. Mas o conceito é também utilizado por ele como critério de interpretação de fatos sociais complexos e até mesmo de épocas históricas inteiras, bastante diversas entre si, como, por exemplo, a Restauração pós-napoleônica, o fascismo e o americanismo.

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Quais são, segundo Gramsci, os traços principais de uma revolução passiva? Ao contrário de uma revolução popular, “jacobina”, realizada a partir de baixo – e que, por isso, rompe radicalmente com a velha ordem política e social –, uma revolução passiva implica sempre a presença de dois momentos: o da “restauração” (trata-se sempre de uma reação conservadora à possibilidade de uma transformação efetiva e radical proveniente de baixo) e o da “renovação” (no qual algumas das demandas populares são satisfeitas “pelo alto”, através de concessões das camadas dominantes). Nesse sentido, falando da Itália, mas expressando características universais de toda revolução passiva, Gramsci afirma que uma revolução desse tipo manifesta: o fato histórico da ausência de uma iniciativa popular unitária no desenvolvimento da história italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares, através de “restaurações” que acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo; trata-se, portanto, de “restaurações progressistas”, ou “revoluções-restaurações”, ou ainda “revoluções passivas”.5

O aspecto restaurador, portanto, não anula o fato de que ocorrem também modificações efetivas. A revolução passiva, portanto, não é sinônimo de contrarrevolução e nem mesmo de contrarreforma; na verdade, numa revolução passiva, estamos diante de um reformismo “pelo alto”6. Em outra passagem, Gramsci diz: Pode-se aplicar ao conceito de revolução passiva (e pode-se documentar no Risorgimento italiano) o critério interpretativo das modificações moleculares, que, na realidade, modificam progressivamente a composição anterior das forças e, portanto, transformam-se em matriz de novas modificações.7

Podemos resumir do seguinte modo algumas das características principais de uma revolução passiva: 1) as classes dominantes reagem a pressões que provêm das classes subalternas, ao seu “subversivismo esporádico, ele5

Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 1, p. 393; grifo meu.

6

Christine Buci-Glucksmann e Göran Therborn, depois de caracterizar o Welfare State como revolução passiva, definem-no como “reformismo de Estado” (Le défi social-démocrate, Paris, Maspero, 1981).

7

Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 5, p. 317.

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mentar”, ou seja, ainda não suficientemente organizado para promover uma revolução “jacobina”, a partir de baixo, mas já capaz de impor um novo comportamento às classes dominantes; 2) essa reação, embora tenha como finalidade principal a conservação dos fundamentos da velha ordem, implica o acolhimento de “uma certa parte” das reivindicações provindas de baixo; 3) ao lado da conservação do domínio das velhas classes, introduzem-se modificações que abrem caminho para novas modificações. Portanto, estamos diante, nos casos de revoluções passivas, de uma complexa dialética de restauração e revolução, de conservação e modernização. Ao contrário de “revolução passiva”, que é certamente um dos conceitos centrais dos Cadernos do cárcere, Gramsci emprega muito pouco o termo “contrarreforma”. Além do mais, na esmagadora maioria dos casos, o termo se refere diretamente ao movimento pelo qual a Igreja Católica, no Concílio de Trento, reagiu contra a Reforma protestante e algumas de suas consequências políticas e culturais. Mas pode-se também registrar que Gramsci não apenas estende o termo a outros contextos históricos, como busca ainda extrair dele algumas características que nos permitem, ainda que só aproximativamente, falar da criação, por ele, de um conceito. Sobre a possibilidade de estender historicamente o termo, pode-se constatar que Gramsci, num parágrafo em que fala do humanismo, refere-se a uma “contrarreforma antecipada”8. É assim, claro, que, para ele, pode ocorrer uma contrarreforma também diante de fenômenos históricos que não a Reforma protestante. Em outro parágrafo, no qual caracteriza as utopias como reações “modernas” e “populares” à Contrarreforma, Gramsci apresenta um dos traços definidores desta última como sendo próprio de todas as restaurações: “A Contrarreforma, [...] de resto, como todas as restaurações, não foi um bloco homogêneo, mas uma combinação substancial, se não formal, entre o velho e o novo”9. Parece-me importante sublinhar que, nessa passagem, Gramsci caracteriza a contrarreforma como uma pura e simples “restauração”, diferentemente do que faz no caso da revolução passiva, quando fala em “revolução-restauração”. Apesar disso, porém, ele admite que há, até mesmo nesse caso, uma “combinação entre o velho e o novo”. Podemos supor, assim, que a diferen8

Ibidem, v. 2, p. 157.

9

Ibidem, v. 5, p. 143; grifo meu.

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ça essencial entre uma revolução passiva e uma contrarreforma reside no fato de que, enquanto na primeira certamente existem “restaurações” – mas que “acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo” –, na segunda é preponderante não o momento do novo, mas precisamente o do velho. Trata-se de uma diferença talvez sutil, mas que tem um significado histórico que não pode ser subestimado. Uma vez esboçadas as principais determinações que as duas noções assumem em Gramsci, podemos retornar à questão formulada acima: a época neoliberal, iniciada nas últimas décadas do século XX, aproxima-se mais de uma revolução passiva ou de uma contrarreforma? A pergunta, evidentemente, não tem nenhum sentido para a própria ideologia neoliberal. Os ideólogos do neoliberalismo gostam hoje de se apresentar como defensores de uma suposta “terceira via” entre o liberalismo puro e a social-democracia “estatista” e, assim, como representantes de uma posição essencialmente ligada às exigências da modernidade (ou, mais precisamente, da chamada pós-modernidade) e, portanto, ao progresso10. Assim, a versão atual da ideologia neoliberal faz da reforma (ou mesmo da revolução, já que alguns gostam de falar de uma “revolução liberal”) sua principal bandeira. A palavra “reforma” foi sempre organicamente ligada às lutas dos subalternos para transformar a sociedade e, por conseguinte, assumiu na linguagem política uma conotação claramente progressista e até mesmo de esquerda. O neoliberalismo busca utilizar a seu favor a aura de simpatia que envolve a ideia de “reforma”. É por isso que as medidas por ele propostas e implementadas são mistificadoramente apresentadas como “reformas”, isto é, como algo progressista em face do “estatismo”, que, tanto em sua versão comunista como naquela social-democrata, seria agora inevitavelmente condenado à lixeira da história. Desta maneira, estamos diante da tentativa de modificar o significado da palavra “reforma”: o que antes da onda neoliberal queria dizer ampliação dos direitos, proteção social, controle e limitação do mercado etc., significa agora cortes, restrições, supressão desses direitos e desse controle. Estamos diante de uma operação de mistificação ideológica que, infelizmente, tem sido em grande medida bem-sucedida. 10

Ver, entre muitos outros, Anthony Giddens, A terceira via (Rio de Janeiro, Record, 1999).

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Ao contrário, é com razão que a noção de revolução passiva pode ser ligada à ideia de reforma, ou mesmo de reformismo, embora se trate em última instância de um reformismo conservador e “pelo alto”. Como vimos, um verdadeiro processo de revolução passiva tem lugar quando as classes dominantes, pressionadas pelos de baixo, acolhem – para continuar dominando e até mesmo para obter o consenso passivo dos subalternos – “uma certa parte das exigências que vinham de baixo”, nas palavras já citadas de Gramsci. Foi precisamente o que aconteceu na época do Welfare State e dos governos da velha social-democracia11. Com efeito, o momento da restauração teve um papel decisivo no Welfare: por meio das políticas intervencionistas sugeridas por Keynes e do acolhimento de muitas das demandas das classes trabalhadoras, o capitalismo tentou e conseguiu superar, pelo menos por algum tempo, a profunda crise que o envolveu entre as duas guerras mundiais. Mas essa restauração se articulou com momentos de revolução ou, mais precisamente, de reformismo, no sentido forte da palavra, o que se manifestou não apenas na conquista de importantes direitos sociais por parte dos trabalhadores, mas também na adoção, pelos governos capitalistas, de elementos de economia programática, que até aquele momento era defendida apenas por socialistas e comunistas. É certo que as velhas classes dominantes continuaram a dominar, mas os subalternos foram capazes de conquistar significativas “vitórias da economia política do trabalho sobre a economia política do capital”12. Deve-se recordar que o Welfare surgiu num momento em que a classe trabalhadora, através de suas organizações (sindicais, políticas), obtivera uma forte incidência na composição da correlação de forças entre o trabalho e o capital. Não se deve esquecer também que a revolução passiva welfariana é também uma resposta ao grande desafio ao 11

Não posso aqui desenvolver o tema, mas me parece que algumas (ainda que não muitas) das conquistas do Welfare State foram asseguradas aos trabalhadores urbanos, na América Latina, durante o chamado período populista. Talvez isso explique o fato de que hoje, em nosso subcontinente, o termo “populismo” venha sendo utilizado pelos neoliberais para desqualificar qualquer tentativa de escapar dos constrangimentos impostos pelo fetichismo do mercado.

12

A expressão é de Marx (“Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores”, em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, v. 1, 1956, p. 354), referindo-se à limitação legal da duração da jornada de trabalho e ao movimento cooperativista.

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capital representado não só pela Revolução de Outubro, mas também pela presença da União Soviética, que emergia da Segunda Guerra Mundial com um enorme prestígio entre as massas trabalhadoras e os progressistas de todo o mundo. Não creio que se possa encontrar no que chamei (de modo um pouco simplista) de “época neoliberal” essa dialética de restauração-revolução que caracteriza as revoluções passivas. Na conjuntura em que estamos imersos, as classes trabalhadoras – por muitas razões, entre elas a chamada “reestruturação produtiva”, que pôs fim ao fordismo e, portanto, às formas correspondentes de organização dos operários – têm sido obrigadas a se pôr na defensiva; suas expressões sindicais e partidárias sofreram um evidente recuo na correlação de forças com o capital. Além disso, com o colapso do “socialismo real”, diminuiu em muito a força de atração das ideias socialistas, que uma habilidosa propaganda ideológica identificou com o modelo “estatolátrico” vigente nos países da Europa do Leste. A luta de classes, que certamente continua a existir, não se trava mais em nome da conquista de novos direitos, mas da defesa daqueles já conquistados no passado. Não temos assim, na época em que estamos vivendo, o acolhimento de “uma certa parte das exigências que vêm de baixo”, que Gramsci considerava, como vimos, uma característica essencial das revoluções passivas. Na época neoliberal, não há espaço para o aprofundamento dos direitos sociais, ainda que limitados, mas estamos diante da tentativa aberta – infelizmente em grande parte bem-sucedida – de eliminar tais direitos, de desconstruir e negar as reformas já conquistadas pelas classes subalternas durante a época de revolução passiva iniciada com o americanismo e levada a cabo no Welfare State. As chamadas “reformas” da previdência social, das leis de proteção ao trabalho, a privatização das empresas públicas etc. – “reformas” que estão atualmente presentes na agenda política tanto dos países capitalistas centrais quanto dos periféricos (hoje elegantemente rebatizados de “emergentes”) – têm por objetivo a pura e simples restauração das condições próprias de um capitalismo “selvagem”, no qual devem vigorar sem freios as leis do mercado. Estamos diante da tentativa de supressão radical daquilo que, como vimos, Marx chamou de “vitórias da economia política do trabalho” e, por conseguinte, de restauração plena da economia política do capital. É por isso que me parece mais adequado, para uma descrição dos traços essenciais da época contemporânea, utilizar não o conceito de revolução passiva, mas sim

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o de contrarreforma. (De resto, pelo menos nos países ocidentais, não se trata de uma contrarrevolução, porque neles o alvo da ofensiva neoliberal não são os resultados de uma revolução propriamente dita, mas o reformismo forte que caracterizou o Welfare State.) Decerto, a época neoliberal não destrói integralmente algumas conquistas do Welfare, fato que se deve sobretudo à resistência dos subalternos. Por outro lado, nos círculos neoliberais mais ligados à chamada “terceira via” (e até mesmo em organismos financeiros internacionais como o Banco Mundial) vem se manifestando nos últimos tempos uma “preocupação” em face das consequências mais desastrosas das políticas neoliberais (que continuam, malgrado isso, a ser aplicadas), entre as quais, por exemplo, o aumento exponencial da pobreza. Mas essa “preocupação” – que levou à adoção de políticas sociais compensatórias e paliativas, como é o caso do Fome Zero no Brasil – não anula o fato de que estamos diante de um indiscutível processo de contrarreforma. Lembremos que Gramsci nos adverte, como vimos antes, para o fato de que “as restaurações [não são] um bloco homogêneo, mas uma combinação substancial, se não formal, entre o velho e o novo”13. O que caracteriza um processo de contrarreforma não é a completa ausência do novo, mas a enorme preponderância da conservação (ou mesmo da restauração) em face das eventuais e tímidas novidades. Como se sabe, Gramsci chamou a atenção para uma importante consequência da revolução passiva: a prática do transformismo como modalidade de desenvolvimento histórico, um processo que, através da cooptação das lideranças políticas e culturais das classes subalternas, busca excluí-las de todo efetivo protagonismo nos processos de transformação social. Embora se apresente, nas palavras de Gramsci, como uma “ditadura sem hegemonia”14, o Estado protagonista de uma revolução passiva não pode prescindir de um mínimo de consenso. E Gramsci nos indica o modo pelo qual as classes dominantes obtêm esse consenso mínimo, “passivo”, no caso de processos de transição “pelo alto”, igualmente “passivos”. Ele se refere à Itália, mas avança observações válidas, quando devidamente concretizadas, também para outros países e outras épocas: 13

Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 5, p. 143; grifo meu.

14

Ibidem, v. 5, p. 330.

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O transformismo como uma das formas históricas daquilo que já foi observado sobre a “revolução-restauração” ou “revolução passiva” [...]. Dois períodos de transformismo: 1) de 1860 até 1900, transformismo “molecular”, isto é, as personalidades políticas elaboradas pelos partidos democráticos de oposição se incorporam individualmente à “classe política” conservadora e moderada (caracterizada pela hostilidade a toda intervenção das massas populares na vida estatal, a toda reforma orgânica que substituísse o rígido “domínio” ditatorial por uma “hegemonia”); 2) a partir de 1900, o transformismo de grupos radicais inteiros, que passam ao campo moderado.15

Uma das razões que parecem justificar o uso do conceito de revolução passiva para caracterizar a época do neoliberalismo é precisamente a generalização de fenômenos de transformismo, seja nos países centrais, seja nos periféricos. Embora não me proponha aqui a discutir mais diretamente a questão (que merece, porém, uma atenção especial), creio que o transformismo como fenômeno político não é exclusivo dos processos de revolução passiva, mas pode também estar ligado a processos de contrarreforma. Se não fosse assim, seria difícil compreender os mecanismos que, em nossa época, marcaram a ação de sociais-democratas e de ex-comunistas no apoio a muitos governos contrarreformistas em países europeus, mas também fenômenos como os governos Cardoso e Lula num país da periferia capitalista como o Brasil16. A definição de nossa época como caracterizada pela contrarreforma e não por uma nova revolução passiva tem implicações para nossa discussão sobre as características das atuais formas de hegemonia. Para Gramsci, como vimos, as revoluções passivas respondem a grandes desafios históricos. A época de revolução passiva iniciada com a Restauração, na Europa do século XIX, pode ser vista como uma resposta “pelo alto” às exigências postas pela Revolução Francesa: muitas das conquistas dessa Revolução são recolhidas, mas ao mesmo tempo emasculadas, gerando aquilo que poderíamos

15

Ibidem, v. 5, p. 286.

16

É também o transformismo que explica a conversão, no Brasil de Lula, de importantes lideranças sindicais em gestores dos fundos previdenciários públicos, ou seja, em uma nova fração das classes dominantes. Prefiro considerar que esse processo transformista gera uma fração de classe e não, como afirma Francisco de Oliveira, em Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 147, uma nova classe.

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chamar de passagem da democracia radical para o liberalismo moderado. Algo similar ocorre no americanismo (e em sua expansão no Welfare State): a “concessão” de direitos sociais, a adoção keynesiana de elementos de “economia programática” etc. são tentativas de responder ao desafio anticapitalista representado pela Revolução de Outubro e pela União Soviética. Em ambos os casos de revolução passiva, ou seja, tanto na Restauração oitocentista quanto no americanismo-welfarismo, estavam em jogo, em última instância, questões de “grande política”: no primeiro caso, a alternativa entre a democracia plebeia dos jacobinos (que já apontava para o socialismo, ainda que utópico) e o liberalismo burguês moderado; no segundo, a oposição entre socialismo e capitalismo. Ao contrário, a contrarreforma neoliberal não tem como pano de fundo nenhuma questão de “grande política”: na disputa entre republicanos e democratas nos Estados Unidos, entre trabalhistas e conservadores na Inglaterra, entre direita e “centro-esquerda” na Itália etc., não está em jogo nenhuma opção entre diferentes modelos de sociedade. Podemos assim dizer que, na era da contrarreforma neoliberal, predomina sem grandes contrastes a hegemonia da pequena política. 3. Vivemos também, no Brasil de hoje, a hegemonia da “pequena política”. Malgrado todos os seus limites, a transição que o país experimentou entre o fim dos anos 1970 e meados de 1980 revelou, em seu ponto de chegada, um dado novo e extremamente significativo: o fato de que o Brasil, após mais de vinte anos de ditadura, havia se tornado preponderantemente uma sociedade “ocidental” no sentido gramsciano do termo, ou seja, na qual existe uma “justa relação” entre Estado e sociedade civil17. Mas, se observarmos as sociedades “ocidentais”, veremos que elas apresentam dois “modelos” principais de articulação da disputa política e da representação de interesses. De um lado, há um modelo que poderíamos chamar de “norte-americano”, caracterizado (como ocorre em toda situação “ocidental”) pela presença de uma sociedade civil forte, bastante desenvolvida e articulada, mas na qual a organização política e a representação dos interesses se dá, respectivamente, por meio de partidos frouxos, não progra17

“No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação” (Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 3, p. 262).

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máticos, e de agrupamentos profissionais estritamente corporativos18. De outro lado, temos um modelo que poderíamos designar como “europeu”. Neste, havia uma estrutura partidária centrada em torno de partidos com base social razoavelmente homogênea, que defendiam projetos de sociedade definidos e diversos entre si; havia ainda um sindicalismo classista, politizado, que não se limitava a organizar pequenos grupos profissionais, mas buscava agregar e representar o conjunto da classe trabalhadora. Portanto, enquanto no “modelo norte-americano” temos partidos que defendem um mesmo projeto hegemônico de sociedade, no “modelo europeu” havia uma salutar disputa entre propostas hegemônicas alternativas. Se, nos Estados Unidos, o socialismo foi sempre uma “ideologia exótica”, na Europa ele esteve com frequência no centro da agenda política. Para voltarmos a nosso tema: no primeiro caso, estamos diante de um modelo político centrado na “pequena política”, enquanto no segundo são postas em movimento questões de “grande política” 19. Logo após o fim da ditadura, o Brasil se viu diante dessas duas possibilidades de organizar sua recém-criada sociedade “ocidental”, ou seja, segundo um modelo americano (neoliberal) ou um modelo europeu (democrático). Se observarmos a vida brasileira dos últimos anos, veremos que esses projetos estiveram presentes e marcaram a agenda e o cenário políticos de nosso país por quase duas décadas. Durante esse período, era marcada a distinção entre nossas duas maiores centrais sindicais: uma que se originou claramente inspirada num tipo de organização próximo do modelo europeu (CUT) e outra que de modo explícito queria imitar o modelo norte-americano (Força Sindical). Também não é casual que tenhamos tido partidos – em particular o PT, mas também outros partidos de esquerda – organizados segundo um padrão europeu, ao mesmo tempo que tínhamos (e temos) 18

Não posso aqui aprofundar a questão, mas parece tratar-se precisamente do modelo de sociedade defendido pelos liberais que se inspiram em Tocqueville.

19

Ao falar do modelo europeu, usei sempre os verbos no passado. É que, na própria Europa, em função da atual expansão da hegemonia neoliberal no mundo inteiro, esse modelo está sendo progressivamente substituído por um modelo de tipo norte-americano. Os partidos políticos europeus (inclusive os partidos social-democratas e ex-comunistas) assemelham-se cada vez mais aos norte-americanos, perdendo suas características programáticas tradicionais; ao mesmo tempo, o movimento sindical começa a assumir no Velho Continente alguns traços próprios de um sindicalismo de resultados.

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partidos muito próximos do tipo “norte-americano”, como, por exemplo, o PMDB, que hoje não passa de uma federação de diversificados interesses pessoais e regionais. A presença simultânea de aparelhos de hegemonia próprios desses dois diferentes modelos revelava, de certo modo, a persistência de uma indefinição quanto ao tipo de sociedade ocidental que iríamos construir. Infelizmente, a chegada do PT ao governo federal em 2003, longe de contribuir para minar a hegemonia neoliberal, como muitos esperavam, reforçou-a de modo significativo. A adoção pelo governo petista de uma política macroeconômica abertamente neoliberal – e a cooptação para essa política de importantes movimentos sociais ou, pelo menos, a neutralização da maioria deles – desarmou as resistências ao modelo liberal-corporativo e assim abriu caminho para uma maior e mais estável consolidação da hegemonia neoliberal entre nós. Estamos assistindo a uma clara manifestação daquilo que Gramsci chamou de “transformismo”, ou seja, a cooptação pelo bloco no poder das principais lideranças da oposição. E esse transformismo, que já se iniciava no governo Cardoso, consolidou definitivamente o predomínio entre nós da hegemonia da pequena política. Esse tipo de hegemonia se manifesta no fato de que a disputa política entre nós tem se reduzido a um bipartidarismo efetivo, ainda que não formal, centrado na alternância de poder entre um bloco liderado pelo PT e outro pelo PSDB, que não só aplicam a mesma política econômica e social, mas também praticam métodos de governo semelhantes, que não recuam diante de formas mais ou menos graves de corrupção sistêmica. Não é casual o comum compromisso desses dois blocos no sentido de “blindar” a economia, ou seja, de reduzir a uma questão “técnica”, e não política, a definição daquilo que verdadeiramente interessa ao conjunto da população brasileira. Mais uma vez, hegemonia da pequena política. 4. Todas essas reflexões – certamente apressadas – são postas em questão pela atual crise global do capitalismo, que veio à tona no último trimestre de 2008. Será que teremos de novo, para essa crise, uma solução à direita, como foi o caso da vitória do nazismo depois da crise de 1929 (temor expresso, em recente entrevista, pelo historiador Eric J. Hobsbawm)? Será que voltaremos à adoção de políticas keynesianas, ainda que sem muitas concessões aos trabalhadores, como parece resultar de algumas propostas hoje postas em prática pelos principais países capitalistas? Será que continuarão

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a vigorar, ainda que sob novas formas, as mesmas políticas neoliberais? Ou será que, em consequência da crise, voltará a predominar a “grande política”, com uma retomada do papel antagonista das forças da esquerda e do mundo do trabalho? É precisamente diante dessas questões que se coloca o angustiante desafio que atravessou nosso seminário: “decifra-me ou te devoro”. São bastante débeis hoje os recursos políticos, organizativos e teóricos de que dispõe a esquerda em todo o mundo. Por isso, ainda que viéssemos a decifrar teoricamente os enigmas de nosso tempo, o que está ainda longe de ser feito, talvez continuássemos a ser – como, de certo modo, já estamos sendo – praticamente devorados. De qualquer modo, o principal desafio da esquerda hoje é recolocar a grande política na ordem do dia, único modo de quebrar a hegemonia da pequena política e, portanto, do capitalismo em sua forma atual, a da servidão financeira. Não se trata de uma tarefa simples. Temos muitos motivos para ser pessimistas. Mas, precisamente por isso, cabe recordar sempre o mote de Gramsci: pessimismo da inteligência, sim, mas também otimismo da vontade. Ou seja, realismo sem ilusões na análise da conjuntura, mas, ao mesmo tempo, empenho na luta para transformar essa conjuntura, para fazer com que a esquerda volte a ter uma palavra a dizer – e um papel a desempenhar – no quadro que se está abrindo em consequência dessa devastadora crise.

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2 TRABALHO E CAPITALISMO, ANTES E APÓS O DESMANCHE

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O TRABALHO PRECÁRIO NOS ESTADOS UNIDOS * Arne L. Kalleberg

O crescimento do trabalho precário emerge como centro das preocupações contemporâneas nos Estados Unidos e em todo o mundo desde os anos 1970. Por “trabalho precário”, entendo a relação de emprego incerta, imprevisível, e na qual os riscos vinculados a ele pesam mais sobre os trabalhadores que sobre os empregadores ou o governo. São exemplos de trabalho precário atividades no setor informal e o trabalho temporário no setor formal. O trabalho precário não é algo novo: existe desde os primórdios do trabalho assalariado. Contudo, certas forças sociais, políticas e econômicas que operam há décadas têm tornado o trabalho cada vez mais precário – tanto nos Estados Unidos como no mundo1. Pierre Bourdieu via a précarité como a raiz da problemática social do século XXI2. Ulrich Beck descreveu o surgimento de uma “sociedade do risco” e uma “nova economia política da insegurança”3. Também se refere a esse fenômeno como um “abrasileiramento do Ocidente”. Argumenta que a sociedade do pleno-emprego chegou ao fim e vem ocorrendo uma acelerada expansão do emprego inseguro e temporário, com descontinuidade e informalidade difusa nas sociedades ocidentais que antes eram os bastiões *

Tradução de Fernando Rogério Jardim. (N. E.)

1

Arne L. Kalleberg, “Precarious work, insecure workers: employment relations in transition”, American Sociological Review, no prelo.

2

Pierre Bourdieu, “La précarité est aujourd’hui partout”, em Contre-feux (Paris, LiberRaison d’Agir, 1998), p. 95-101.

3

Ulrich Beck, The brave new world of work (Cambridge, Polity Press, 2000).

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do pleno-emprego. Outros autores4 chamam os eventos do último quarto de século de “a segunda grande transformação”5. O trabalho precário tem consequências de longo alcance que atravessam inúmeros campos de interesse para cientistas sociais, bem como para trabalhadores e suas famílias, governos e negócios. Tem gerado insegurança para muitas pessoas e consequências disseminadas e de longo alcance não apenas para a natureza do trabalho, o ambiente de trabalho e as experiências das pessoas no trabalho, mas também para diversos fatores não relacionados a ele – fatores individuais (por exemplo, estresse e educação) e sociais (por exemplo, família e comunidade) –, assim como para a instabilidade política. Por isso, é muito importante entender esses novos arranjos trabalhistas que produzem o trabalho precário e a insegurança. Tentarei, em primeiro lugar, resumir algumas das razões do crescimento do trabalho precário nos Estados Unidos. Por questão de clareza, tratarei neste capítulo somente do caso norte-americano, muito embora defenda que o trabalho precário constitui um desafio global. Em seguida, descreverei algumas das evidências do crescimento do trabalho precário e apresentarei algumas de suas consequências. Por fim, tecerei alguns comentários sobre os desafios que o crescimento da insegurança e do trabalho precário apresentam às políticas públicas.

As razões do crescimento do trabalho precário nos Estados Unidos O trabalho precário das últimas décadas resulta da disseminação da globalização (isto é, a interdependência econômica e seus correlatos, tais como o aumento do comércio internacional e a aceleração dos fluxos de capital, produção e trabalho) e da predominância do neoliberalismo (isto é, a ideologia que prega a desregulação, a privatização e o fim das garantias e dos direitos sociais). Tais mudanças são alimentadas pelas transformações tecnológicas, como a computação, a informatização e os recentes avanços nas tecnologias da informação, que, por sua vez, tornaram possíveis diversos 4

E. Webster, R. Lambert e A. Bezuidenhout, Grounding globalization: labour in the age of insecurity (Oxford, Blackwell, 2008).

5

Karl Polanyi, The great transformation (Nova York, Farrar & Rinehart, 1944). [Ed. bras.: A grande transformação, Rio de Janeiro, Elsevier Campus, 2000.]

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aspectos da globalização. Em vários países, também vem ocorrendo uma diminuição generalizada dos sindicatos e um crescimento pronunciado do individualismo. Todos esses fatores têm contribuído para o aumento do trabalho precário. Nos Estados Unidos, convencionou-se dizer que o período mais recente da precarização trabalhista começou na segunda metade dos anos 1970. Os anos 1974-1975 marcaram o início das transformações macroeconômicas (tais como a crise mundial do petróleo) que ajudaram a conduzir ao acirramento da concorrência internacional de preços. A indústria norte-americana foi desafiada de início por empresas japonesas e sul-coreanas dos setores automotivo e siderúrgico, respectivamente. O processo que ficou conhecido como globalização neoliberal intensificou a integração econômica, acirrou a competição entre as companhias, ofereceu mais oportunidades para que deslocassem suas atividades para países onde os salários são mais baixos, bem como encontrassem novas fontes de mão de obra na imigração. Os avanços tecnológicos, ao mesmo tempo que forçavam as empresas a ser mais competitivas globalmente, tornavam isso possível para elas. Padrões diferentes de trabalho (por exemplo, nos países asiáticos) encorajaram os empregadores a transferir a produção para além-mar. Mudanças em instituições legais e outras mediaram os impactos da globalização e da tecnologia no trabalho e nas relações de emprego. Os sindicatos continuaram a declinar, enfraquecendo uma fonte tradicional de garantias e de proteções aos trabalhadores e rompendo o contrato social entre capital e trabalho do pós-guerra. As regulamentações governamentais que estabeleciam os mínimos padrões aceitáveis no mercado de trabalho erodiram com as normas que governavam a competição no mercado de produtos. Os sindicatos declinaram, e a desregulação trabalhista e econômica reduziu o poder das forças de equilíbrio que permitiam aos trabalhadores compartilhar ganhos de produção. Com isso, a balança do poder pendeu dos trabalhadores para os empregadores. As inúmeras mudanças políticas associadas à eleição de Ronald Reagan em 1980 aceleraram a ascendência dos negócios e o declínio do trabalho e deram liberdade às empresas e aos capitalistas para perseguir seus interesses desenfreados. A desregulação e a reorganização das relações de emprego permitiram uma expressiva acumulação de capital. As políticas públicas nos Estados Unidos – como a substituição dos programas assistenciais [welfare] por frentes de trabalho [workfare] em meados dos anos 1990 – tornaram

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essencial para as pessoas ter um trabalho pago remunerado, forçando-as com frequência a empregos mal pagos. Mudanças ideológicas na direção do individualismo e da responsabilidade pessoal pelo trabalho e pelo sustento deram suporte àquelas mudanças estruturais. O lema “você está em suas mãos” [you’re in your own] substituiu o “nós estamos juntos nisso” [we’re all in this together]6. A revolução neoliberal se espalhou pelo mundo, enfatizando a centralidade dos mercados e as soluções de mercado: a privatização dos recursos públicos e o fim das proteções estatais em vários países. Essas mudanças no nível macro, iniciadas na metade dos anos 1970, levaram os empregadores a buscar mais flexibilidade em sua relação com os empregados. O ideário neoliberal no plano social espelhou o importante papel desempenhado pelas forças de mercado nos locais de trabalho, erodindo o modelo organizacional burocrático dos vínculos empregatícios padrões, pelos quais se admitia que os empregados trabalhassem a vida toda para determinado empregador em particular, frequentemente progredindo na carreira devido ao mercado interno de trabalho7. As tentativas em busca da flexibilidade conduziram os gerentes a vários tipos de reestruturação, os quais, por sua vez, levaram ao aumento do trabalho precário e a transformações na natureza da relação de emprego8. Tudo isso teve e continua a ter efeitos de longo alcance em toda a sociedade.

O duplo movimento O trabalho precário não é algo novo, mas pode ser visto historicamente como condição “normal” das economias capitalistas. Nos Estados Unidos, a maior parte do trabalho era precária e a maioria dos salários era instável até o final da Grande Depressão9. Até os anos 1930, pensões e planos de saúde eram coisas das quais nem se ouvia falar entre a classe operária; e os 6

Jared Bernstein, All together now: common sense for a new economy (São Francisco, Berrett-Koehler Publishers, 2006)

7

Peter Cappelli, The New Deal at work: managing the market-driven workforce (Boston, Harvard Business School Press, 1999).

8

Paul Osterman, Securing prosperity: how the American labor market has changed and what to do about it (Princeton, Princeton University Press, 1999).

9

Sanford M. Jacoby, Employing bureaucracy: managers, unions and the transformation of work in the 20th century (Nova York, Columbia University Press, 1985).

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demais benefícios – como aqueles associados às experiências do capitalismo de bem-estar social do fim do século XX – dependiam mais da docilidade dos trabalhadores que dos direitos adquiridos e manifestos10. A criação de uma economia de mercado no século XIX exacerbou a precariedade durante esse período. Em A grande transformação, Karl Polanyi descreveu os fundamentos organizacionais da sociedade industrial dos séculos XIX e XX em termos de uma luta de “movimento duplo”. O primeiro deles foi guiado pelos princípios do liberalismo econômico e do laissez-faire, os quais encorajaram o estabelecimento e a manutenção de mercados flexíveis e livres (eis a primeira “grande transformação”). O segundo foi dominado por mudanças na direção das proteções sociais, que foram, por sua vez, reações às disrupções psicológicas, ecológicas e sociais que os mercados desregulados impuseram à vida das pessoas (essa é a segunda “grande transformação”). A longa luta histórica em torno das garantias trabalhistas, que emergiram como reação às consequências negativas da precariedade, foi vencida nos anos 1930 pelas conquistas do New Deal e outros planos11.

Evidências do aumento do trabalho precário nos Estados Unidos Podemos coletar várias evidências de que o trabalho precário vem realmente crescendo nos Estados Unidos. Vejamos. 1. Declínio do vínculo empregatício Vem ocorrendo um declínio geral no tempo médio que o trabalhador permanece com um empregador. Isso varia conforme subgrupos específicos: a estabilidade no emprego tem crescido no caso das mulheres, ao passo que vem decaindo no caso dos homens (apesar de os níveis de estabilidade das mulheres continuarem substancialmente inferiores aos dos homens no setor privado). O declínio da estabilidade no emprego é especialmente pronunciado entre homens brancos mais velhos – o grupo que havia sido o mais protegido pelos mercados internos de trabalho12. 10

Richard Edwards, Contested terrain: the transformation of the workplace in the twentieth century (Nova York, Basic Books, 1979).

11

Sanford M. Jacoby, Employing bureaucracy, cit.

12

Peter Cappelli, Talent on demand: managing talent in an age of uncertainty (Boston, Harvard Business Press, 2008); Henry S. Farber, “Short(er) shrift: the decline in

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2. Crescimento do desemprego de longa duração Os trabalhadores desempregados há muito tempo (definidos como aqueles sem emprego por seis meses ou mais) são os mais propensos a sofrer danos psicológicos e econômicos. Em contraste com o que acontecia nos períodos anteriores, a porcentagem de desemprego de longa duração se manteve relativamente alta nos anos 2000. A considerável proporção de indivíduos desempregados que encontraram dificuldade para obter nova colocação no mercado de trabalho após a recessão de 2001 deve-se, provavelmente, tanto às baixas taxas de crescimento do emprego quanto aos desafios enfrentados pelos trabalhadores em indústrias como a da manufatura, cujos empregos foram perdidos13. 3. Aumento da percepção de insegurança no emprego A precariedade está intimamente relacionada à percepção de insegurança no trabalho. Embora existam diferenças individuais na percepção da insegurança e do risco, as pessoas têm, em geral, cada vez mais medo de perder seu emprego – em grande parte porque as consequências dessa perda se tornaram muito mais graves nos últimos anos – e estão menos seguras de conseguir postos comparáveis. A análise feita por Kalleberg e Marsden sobre os dados da General Social Survey para o período de 1977 a 2006 mostrou que a percepção de insegurança no emprego – tanto a probabilidade de perder o atual como a dificuldade de conseguir outro semelhante – aumentou durante o período estudado, após ajustes em variações cíclicas no desemprego intimamente relacionadas com a insegurança perceptível14. Esse aumento na percepção da insegurança no emprego é regularmente disseminado no interior das forças de trabalho, sustentando a visão de que o trabalho precário tem se worker-firm attachment in the United States”, em Katherine S. Newman (org.), Laid off, laid low: political and economic consequences of employment insecurity (Nova York, Columbia University Press, 2008). 13

Lawrence Mishel, Jared Bernstein e Heidi Shierholz, The state of working America 2008/2009 (Ithaca/ Nova York, ILR/ Cornell University Press, 2009).

14

Arne L. Kalleberg e Peter V. Marsden, “Labor force insecurity and U.S. work attitudes, 1970s-2006”, em Peter V. Marsden (org.), Social trends in the United States, 1972-2006: evidence from the General Social Survey (Princeton, Princeton University Press, 2009).

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tornado mais difundido. Além disso, podemos encontrar algumas evidências que mostram que a insegurança no emprego cresceu mais rapidamente entre aquelas ocupações que antes eram as mais estáveis e seguras (como os trabalhadores de colarinho branco). 4. Aumento do trabalho temporário e dos arranjos de trabalho não usuais e não formais Os empregadores conseguiram facilmente ajustar suas reservas de mão de obra às condições da demanda, criando cada vez mais arranjos de trabalho não usuais e não formais, como os trabalhos temporário e subcontratado. Em meados dos anos 1990, dados coletados de uma amostra representativa de empresas norte-americanas indicaram que mais da metade delas comprava produtos ou serviços de outras empresas15. Exemplos de terceirização em setores específicos ilustram a predominância e a disseminação desse fenômeno: indústrias de alimentos, serviços de zeladoria, contabilidade, atividades burocráticas e rotineiras, transporte hospitalar, atividades militares (como o emprego de soldados mercenários da Blackwater * no Iraque) e a terceirização das atividades de repressão à imigração, agora nas mãos de oficiais de justiça locais, refletindo a deliberação contida na seção 287(G) do programa de Segurança Nacional. Contudo, o ponto-chave com respeito à terceirização é a ameaça que oferece, porque virtualmente todos os empregos podem ser terceirizados (exceto, talvez, aqueles que requeiram contato pessoal, como assistência médica domiciliar e preparação de alimentos), inclusive os bem-remunerados colarinhos-brancos, vistos antes como protegidos. O setor ligado às agências de auxílio temporário cresceram numa taxa anual de mais de 11% entre 1972 e o fim dos anos 1990 (o crescimento do percentual da população empregada nos Estados Unidos foi de 0,3% para 15

Arne L. Kalleberg e Peter V. Marsden, “Externalizing organizational activities: where and how U.S. establishments use employment intermediaries”, Socio-Economic Review, n. 3, 2005, p. 389-416.

*

Fundada em 1996 pelo milionário republicano Erik Prince, a empresa Blackwater destacou-se após a invasão do Afeganistão, fornecendo mercenários subcontratados ao governo norte-americano. O Pentágono transformou então as empresas privadas de segurança em uma força integrante das operações contra o terror, colocando parte das baixas e dos crimes de guerra fora do escrutínio da opinião pública. (N. T.)

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2,5% em 1998)16. Os trabalhadores temporários continuam sendo uma porção relativamente pequena da mão de obra total, porém a institucionalização da indústria de assistência temporária faz aumentar a precariedade, dado que torna todos nós potencialmente substituíveis por trabalhadores temporários. Nem os salões da Academia estão imunes às transformações na América. Por exemplo, houve um declínio dos postos e dos cursos de tempo integral nas universidades entre 1973 e 2005, acompanhado do crescimento do regime de tempo integral para cargos não formais e cursos em período parcial durante o mesmo período. Com isso, a profissão que Aronowitz chamou de “o último bom emprego na América”17 está também se tornando precário, com prováveis consequências negativas no longo prazo, como a queda da qualidade dos professores. 5. Crescimento da transferência dos riscos dos empregadores para os empregados O último indicador do aumento do trabalho precário é a transferência para os empregados dos riscos dos empregadores18 – o que muitos autores encaram como a principal característica do trabalho precário19. Essa transferência de riscos é ilustrada pelo crescimento proporcional de planos de pensão e assistência hospitalar (em que os empregados pagam a maior parte dos prêmios e correm mais riscos do que seu patrão) e o declínio de planos de benefícios (em que os patrões absorvem mais riscos que os empregados, ao garantir certos níveis de benefícios)20. 16

Arne L. Kalleberg, “Nonstandard employment relations: part-time, temporary, and contract Work”, Annual Review of Sociology, n. 26, 2000, p. 341-65.

17

Stanley Aronowitz, The last good job in America: work and education in the new global technoculture (Lanham, Rowman & Littlefield, 2001).

18

Michael J. Mandel, The high-risk society: peril and promise in the new economy (Nova York, Random House, 1996); Richard Breen, “Risk, recommodification and stratification”, Sociology, v. 31, n. 3, 1997, p. 473-89; Jacob Hacker, The great risk shift (Nova York, Oxford University Press, 2006).

19

Ulrich Beck, The brave new world of work, cit., e Sanford M. Jacoby, “Risk and the labor market: societal past as economic prologue”, em Ivar Berg e Arne L. Kalleberg (orgs.), Sourcebook of labor markets: evolving structures and processes (Nova York, Kluwer Academic/ Plenum Publishers, 2001).

20

Ver Lawrence Mishel, Jared Bernstein e Sylvia Allegretto, The state of working America 2006/2007 (Ithaca/ Nova York, ILR/Cornell University Press, 2007).

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Consequências do trabalho precário É importante examinarmos o trabalho precário porque ele traz inúmeras consequências negativas para indivíduos, famílias e sociedades. O trabalho está relacionado a vários outros aspectos sociais, políticos e econômicos, e, por isso, o crescimento da precariedade e da insegurança traz efeitos de longo alcance, tanto para fenômenos ligados ao trabalho como para aqueles alheios à questão. O trabalho precário causa insegurança e volatilidade econômica para os indivíduos e seus familiares, contribui para o crescimento da desigualdade econômica e reforça os sistemas distributivos já desiguais e injustos dos Estados Unidos. O trabalho precário também traz uma vasta gama de consequências para indivíduos que estão fora do mercado de trabalho. Polanyi afirmava que o funcionamento desregulado do livre mercado deslocava as pessoas física, psicológica e moralmente21. Os impactos da incerteza e da insegurança sobre a saúde e o estresse dos indivíduos são fartamente documentados22. A experiência da precariedade também corrói a identidade individual e promove a anomia, como afirma Sennet23. Além disso, o trabalho precário tem tornado a vida das famílias mais difícil e insegura. A incerteza sobre o futuro pode afetar o processo de tomada de decisões dos casais sobre questões importantes, como a escolha do momento mais adequado para casar e ter filhos, ou o número de filhos que poderão ter. O trabalho precário afeta também as comunidades, podendo conduzir à perda do engajamento social, como indica o declínio da participação em associações de voluntários e organizações comunitárias, da confiança e do capital social em geral24. Isso pode provocar mudanças na estrutura das comunidades, porque as pessoas que perdem seus empregos por falência da 21

Karl Polanyi, The great transformation, cit., p. 73.

22

Hans De Witte, “Job insecurity and psychological well-being: review of the literature and exploration of some unresolved issues”, European Journal of Work and Organizational Psychology, v. 8, n. 2, 1999, p. 155-77.

23

Richard Sennett, The corrosion of character: the personal consequences of work in the new capitalism (Nova York, W. W. Norton, 1998).

24

Robert Putnam, Bowling alone: the collapse and revival of American community (Nova York, Simon & Schuster, 2000).

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empresa ou redução de custos podem não estar mais aptas a viver na comunidade (embora também não possam vender suas casas, se o período sem emprego for prolongado) e os recém-chegados podem não ser capazes de se fixar num trabalho sem garantias. A insegurança também aumenta as tensões sociais. A precariedade pode contribuir para atitudes negativas dos nativos contra os imigrantes, já que as comunidades experimentam uma usurpação por parte dos recém-chegados – tanto legais como ilegais – que se dispõem a trabalhar por salários mais baixos e a tolerar condições de trabalho piores do que aquelas aceitas pelos nativos. A insegurança e a perda de oportunidades de recontratação também podem agravar a criminalidade e o enfraquecimento da vida política.

O trabalho precário e as políticas públicas O crescimento do trabalho precário gera novos desafios e oportunidades para sociólogos que buscam explicar esse fenômeno e desejam contribuir para a criação de políticas públicas eficazes para enfrentar suas características e consequências emergentes. Atualmente, há um vácuo teórico em nossa compreensão dos mecanismos produtores de precariedade, bem como de suas soluções. Esse vácuo oferece um espaço intelectual para que cientistas sociais expliquem a natureza do trabalho precário e ofereçam possíveis soluções em políticas públicas. Os economistas atualmente dominam as discussões. Os especialistas em trabalho, por exemplo, saíram à frente ao elaborar estudos detalhados sobre o que vem acontecendo no universo do trabalho, oferecendo aos responsáveis pelas políticas públicas importantes descrições e dados que merecem ser discutidos. Visto que as questões acerca do trabalho precário e da insegurança no emprego têm raízes nas forças sociais e políticas – e visto que a economia, como Polanyi e tantos outros notaram, está incrustada nas relações sociais –, os sociólogos e demais cientistas têm hoje a extraordinária oportunidade de ajudar a formar políticas públicas, explicando como os fatores culturais e institucionais em sentido amplo produzem a insegurança e a desigualdade. Tais explicações são o primeiro passo essencial para o planejamento de políticas eficazes que visem atingir as causas e os efeitos da precariedade e, com isso, reescrever o contrato social.

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Todos os países industrializados enfrentam hoje o dilema básico de equilibrar segurança (devida à precariedade) e flexibilidade (devida à competição) – as duas dimensões do “movimento duplo” descrito por Polanyi. Os governos têm conseguido solucionar o dilema de diversas maneiras; contudo as soluções são sempre locais e específicas a contextos particulares. Em alguns países, o socialismo foi implantado justamente para lidar com as incertezas associadas à rápida mudança social. Mas, por volta do fim dos anos 1980, esse sistema caiu em desgraça e o capitalismo se tornou o sistema econômico predominante. A questão agora é saber que arranjos institucionais alternativos serão postos em prática para reduzir os riscos dos empregadores e a insegurança dos empregados. O grau com que os empregadores conseguem transferir seus riscos para os empregados depende do poder relativo dos operários diante dos patrões. Nesse aspecto, diferentes regimes de emprego têm produzido diferentes soluções.

Segurança no emprego versus segurança no mercado de trabalho A relação entre a precariedade e a insegurança econômica e outras tende a variar conforme o país, dependendo das garantias trabalhistas e sociais oferecidas além das condições do mercado de trabalho. Por isso, o emprego precário não varia de país para país da mesma forma que a insegurança. Isso corresponde à distinção entre insegurança no trabalho e insegurança do mercado de trabalho: os trabalhadores em países com melhor proteção social são menos propensos a experimentar a insegurança do mercado de trabalho, embora não necessariamente menos insegurança no emprego25. As políticas públicas devem buscar atingir dois objetivos centrais. Em primeiro lugar, é improvável que as forças que conduziram ao crescimento do trabalho precário venham a perder impacto tão logo e tão fácil, dado o atual modelo hegemônico do livre mercado global. Sendo assim, políticas públicas eficazes devem ajudar as pessoas a lidar com o caráter inseguro e incerto de seu trabalho ou emprego (e a consequente confusão, incerteza e caos em suas vidas) e ao mesmo tempo manter algo da flexibilidade que 25

Christopher J. Anderson e Jonas Pontusson, “Workers, worries and welfare states: social protection and job insecurity in 15 OECD Countries”, European Journal of Political Research, v. 46, n. 2, 2007, p. 211-35.

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os empregadores demandam para competir num mercado de âmbito mundial. Em segundo lugar, as políticas públicas também precisam estimular (sempre que possível) a geração de empregos não precários. A necessidade mais premente é a assistência médica a todos os cidadãos que não esteja ligada a nenhum empregador particular, quer dizer, um serviço médico pessoal e portável*. Isso reduziria muitas das consequências negativas associadas ao desemprego e à mudança de emprego. Outra necessidade é a cobertura de pensões transferíveis que complementem a previdência social e ajudem as pessoas a se aposentar com dignidade. Melhores serviços assistenciais são indispensáveis para contrabalançar os riscos do desemprego e da volatilidade do salário e da renda26. Essas formas de assistência e segurança devem estar disponíveis a todos. Também devemos gerar empregos menos inseguros. As políticas públicas devem encorajar os empresários a criar vagas mais estáveis e melhores, restabelecendo os padrões mínimos do mercado de trabalho (por exemplo, um salário mínimo) ou oferecendo isenções fiscais às empresas que investirem no treinamento de funcionários e outras estratégias “pró-ativas”. Contudo, depender da iniciativa privada para gerar empregos bons e estáveis é uma estratégia limitada, uma vez que as próprias empresas estão relativamente precarizadas. Abordagens tipicamente keynesianas de criação de cargos públicos podem gerar empregos mais seguros, bem como satisfazer muitas das necessidades nacionais prementes, como a reforma da infraestrutura e a melhoria da situação de empregos atualmente mal pagos e precários em setores ligados à saúde e aos cuidados com idosos e crianças. A atual crise financeira tem contribuído para criar oportunidades de implementação de medidas à la Keynes. A habilidade dos trabalhadores no exercício da representação coletiva – por meio de sindicatos e outros órgãos – é essencial para o sucesso de esforços sérios para lidar com o trabalho precário e criar contramovimentos democráticos que possam implementar modalidades de fomento e proteção social a fim de resolver os problemas gerados pelo trabalho precário ou produzir em*

Serviços “portáveis” são aqueles que continuam disponíveis a seus titulares mesmo após estes serem desligados da empresa que os oferecia. Por exemplo: caso seja portável e pessoal, o plano de saúde de um funcionário continuará sendo oferecido a ele mesmo após sua demissão. (N. T.)

26

Jacob Hacker, The great risk shift, cit.

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pregos mais seguros. Além disso, a natureza mundial dos problemas relacionados à precariedade evidencia a necessidade de as soluções nacionais estarem ligadas a organismos transnacionais, regulamentações trabalhistas internacionais e outros esforços globais27. Esse contramovimento democrático também deve estar engajado com as políticas públicas por meio de um sério debate sobre as formas da globalização. Devemos criar uma nova consciência internacional que veja a globalização como um conjunto particular de escolhas políticas, e não como uma característica inevitável e imutável do progresso econômico. Esse debate é cada vez mais crítico hoje, dado o agravamento e a amplitude mundial da atual crise financeira. O caso dinamarquês mostra que é possível ter um aumento de precariedade para o empregador e, mesmo assim, as políticas públicas locais conseguirem garantir uma segurança relativamente alta e boa no mercado de trabalho. Na Dinamarca, a segurança em qualquer emprego (individual) é relativamente baixa, porém a segurança no mercado de trabalho (como um todo) é razoavelmente alta, visto que é oferecida uma boa dose de proteção e auxílio aos trabalhadores desempregados para que encontrem uma nova colocação (como complemento de renda e treinamento profissional). Esse famoso sistema de “flexigurança” combina “regras flexíveis para empregadores contratarem e demitirem e mecanismos de segurança social para todos os trabalhadores”28. O exemplo da “flexigurança” sugere que temos boas razões para ser otimistas quanto à eficácia de intervenções adequadas nas políticas públicas dirigidas ao problema da precariedade.

Conclusões As mudanças estruturais que conduziram às relações de emprego instáveis e ao trabalho precário não são constantes – nem são irreversíveis e inevitáveis as consequências das forças econômicas. Os níveis de precariedade variam de organização para organização dentro dos Estados Unidos, 27

Beverly J. Silver, Forces of labor: workers’ movements and globalization since 1870 (Cambridge, Cambridge University Press, 2003) [ed. bras: Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870, São Paulo, Boitempo, 2005]; E. Webster, R. Lambert e A. Bezuidenhout, Grounding globalization, cit.

28

Niels Westergaard-Nielsen (org.), Low-wage work in Denmark (Nova York, Russell Sage Foundation, 2008), p. 44.

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dependendo do poder relativo de empregados e empregadores, assim como da natureza de seus contratos sociais e psicológicos. Além disso, a ampla variedade de soluções para o dilema da flexibilidade e da segurança, adotadas por diferentes regimes de emprego ao redor do globo, sublinham o potencial das forças políticas, ideológicas e culturais para moldar a organização do trabalho e a necessidade de soluções mundiais. Há muitos obstáculos à implementação de formas de proteção e promoção social como os que destaquei aqui. Não obstante, o claro entendimento da natureza do problema combinado com a identificação de alternativas possíveis e a vontade política para alcançá-las – apoiada pela força coletiva dos operários – oferecem a promessa de um contramovimento efetivo.

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TRABALHO E REGRESSO: ENTRE DESREGULAÇÃO E RE-REGULAÇÃO Leonardo Mello e Silva

Quando se trata de enfrentar a discussão sobre classes sociais é difícil, na abordagem sociológica convencional, fugir a certo esquematismo classificatório. A inclusão da temática dos movimentos sociais tornou, sem dúvida, mais complexo o debate sobre classes, mas é discutível que tenha avançado na direção de um patamar que se possa dizer que tenha colocado os termos do debate em um plano superior àquele em que os clássicos o deixaram. O recurso ao historiador Edward P. Thompson não é tão incomum, mas, afora a apropriação que dele fazem os historiadores do trabalho, a remissão à noção de que a classe é seu “fazer-se” e que, no fim, “esta é sua única definição”1 parece muito menos uma solução que um atalho para fugir do verdadeiro problema de seu tratamento sistemático. Na verdade, o que a “definição” thompsoniana de classe indica é que o trabalho analítico começa desse ponto, e não termina nele – como se não houvesse nada mais a fazer além dessa constatação. É preciso demonstrar o “fazer-se”. A ideia subjacente de que não existe uma classe trabalhadora, mas classes trabalhadoras é estimulante, porém esbarra numa objeção que também é provocativa: se as classes trabalhadoras são sempre definidas de forma alargada, baseada em experiências comunitárias, religiosas e consuetudinárias que vão muito além e aquém do trabalho fabril, então o que torna a classe trabalhadora historicamente específica? Será que a devastação neoliberal foi tão completa a ponto de ter apagado inteiramente os valores (igualdade, solidariedade, companheirismo) que a classe trabalhadora capitaneou por longos e heroicos tempos? 1

Edward P. Thompson, A formação da classe operária inglesa: A árvore da liberdade (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, v. 1), p. 12.

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Em texto anterior 2, foi apresentado o funcionamento de um tipo de inovação organizacional e produtiva – as células de produção – em sua conexão com as exigências de qualidade, flexibilidade e reestruturação das empresas. Ali, o mote era o “desmanche” da classe social. Este capítulo segue no mesmo caminho e pode ser visto como continuidade do anterior. São evidenciadas agora as precondições institucionais para as mudanças que ocorrem no nível dos processos de trabalho fabris. As medidas oriundas das chamadas “reformas trabalhistas” são aqui abordadas, sempre tendo em vista sua conexão com o trabalho concreto e a maneira como os agentes sociais afetados reagem a elas. Esses agentes são – mesmo que à custa da enorme heterogeneidade e diversidade das situações – participantes de uma classe social. A maneira que este texto escolheu para tratar do problema da classe social diante das mudanças contemporâneas do trabalho foi a de considerar círculos concêntricos de abrangência que partem de uma situação particular (micro) e caminham para uma órbita mais includente (macro). Assim, o caminho foi: 1) considerar a população das fábricas que foram objeto de estudo anterior, no setor de confecções, com carteira assinada e direitos, como classe trabalhadora (no singular); 2) analisar a relação salarial sob a qual ela está submetida; 3) perseguir as mudanças advindas em um dos sustentáculos mais importantes da forma institucional da regulação entre capital e trabalho: as leis trabalhistas (duas medidas em particular são elencadas e discutidas: a Participação nos Lucros e Resultados e o Banco de Horas); 4) colocar em perspectiva as expectativas políticas da parcela até então mais combativa do movimento sindical, a CUT, diante da disjuntiva recusa versus instrumentalização do aparato regulatório, e quanto tal disjuntiva esconde um dilema mais fundamental entre corporativismo e pluralismo.

1. A produção celular, o taylorismo e o fordismo: um olhar do presente para o passado No sistema dito “de linha”, que é o da produção em série, uma mesma operação é repetida de modo contínuo por várias operadoras num mesmo espaço físico, possibilitando uma escala razoavelmente conhecida em ter-

2

Leonardo Mello e Silva, “O desmanche da classe: apontamentos em torno de uma pesquisa”, em Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007).

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mos de quantidade, baseada num tempo médio associado àquela quantidade. A produtividade é média, uma razão entre quantidade de peças (ou produtos em processo) e tempo, em que a diferença de performance de cada uma das operárias é diluída no grupo. O balanceamento entre as peças ou produtos em processo é feito apenas a posteriori, quando se comparam os estoques de uma seção com outra (a fornecedora com a cliente), e pode-se então mensurar qual das seções complementares está “atrás” ou “à frente” da outra. Nesse caso, o ajuste, ou balanceamento, é um ajuste entre seções. O que ocorre no sistema “em linha” é o processo clássico e bem conhecido da linha de montagem, isto é, o reconhecimento de um conjunto de operações relativamente desqualificadas (especializadas), em que as operárias que realizam as mesmas tarefas não têm razão para cobrar produção umas das outras, uma vez que o sequenciamento é, por assim dizer, coletivo, e não individual. As chances de conflito interindividual em torno de quantidades, prazos e qualidade tornam-se, em tese, bem diminutas, porque isso é feito adiante, não por elas e nem sequer pelas operárias das próximas seções, mas pelos encarregados funcionais de zelar pelo equilíbrio de produção das seções. Alguns monitoram os parâmetros de preferência dos escritórios, como os engenheiros de produção; outros circulam pela fábrica, como os encarregados, os supervisores e outro tipo de pessoal intermediário que age como correia de transmissão entre o planejamento da produção e sua efetivação concreta. O sistema de células de produção funciona como exato reverso do modelo descrito acima. Agora são as operárias que devem realizar o ajuste que antes ficava a cargo das seções. A compatibilidade é verificada não mais a posteriori, ou seja, não é mais “lançada para a frente”, mas sancionada em tempo real, no momento em que as peças são manufaturadas, uma vez que a célula se encarrega de produzir a peça inteira – ou quase inteira. Nesse desenho, não há mais possibilidade de diluir as cobranças entre as operárias, pois a proximidade e a evidente checagem das quantidades e qualidades complementares das peças fazem com que a atenção esteja voltada não apenas para a própria operação, mas também para a operação da colega. Portanto, o sistema de produção celular é “coletivo” e “agregador” apenas na aparência; na verdade, ele é individualizante, e não “grupal”. O grupo encontra-se aqui inteiramente submetido a uma lógica socioeconômica mais ampla, mediada pela inserção da fábrica no circuito de valorização das mercadorias que ela produz. Lógica que, por sua vez, obedece às regras

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da competição interempresas no mercado (global) de produtos de seu ramo de atividade, e que rebate na forma como as operárias se comportam em seu labor diário: uma forma em que a flexibilidade é incorporada no julgamento de si e das colegas, isto é, do entorno próximo, bem como na constituição de sua própria subjetividade. Do ponto de vista da extração da produtividade, as coisas se passam de maneira não tão evidente, uma vez que estão envolvidos níveis desiguais de análise: um nível mais empírico e outro mais subterrâneo, cujas lógicas respectivas nem sempre se superpõem, conduzindo, por isso mesmo, a uma certa confusão terminológica – afinal, como um sistema baseado na produtividade individual (o taylorismo) pode ter se convertido num parâmetro coletivo de medida da produtividade (o fordismo) e como o atual modelo flexível se situa diante desses dois? A produção em linha evoca imediatamente o fordismo. Como se sabe, o fordismo parte do princípio de decantação de tarefas associadas a tempos e movimentos, típico do taylorismo3. No entanto, o fordismo não se presta a um tipo de remuneração “por produção”, como ocorre nas células. O tipo característico do salário fordista é uma remuneração que traduz uma organização coletiva da produção, inadequada para um tipo de remuneração baseada no rendimento individual dos operários, como no taylorismo. Este último pressupõe a mecanização dos ciclos de movimentos do trabalhador, sua simplificação e repetição sistemática, a fim de que possam ser inseridos no processo de trabalho. Sua unidade é o tempo necessário para efetuar completamente a operação. Uma tarefa é um conjunto de operações prescritas, porque previamente decantadas – estudadas, analisadas e reduzidas a unidade de tempo. A remuneração que advém da tarefa cobre a eficiência (número de peças por unidade de tempo) do ato individual de trabalho, não o conjunto das tarefas diferentes e complementares, que se encontram separadas sequencial e fisicamente na fábrica. O salário taylorista dá conta da variabilidade do trabalho individual (porque modula, enquadra seu modo operatório), mas não da variabilidade do conjunto. O problema do taylorismo é o problema da integração das seções que são responsáveis por tarefas específicas para a confecção do produto final. 3

Michel Aglietta, Regulación y crisis del capitalismo (Cidade do México, Siglo XXI, 1979); Benjamin Coriat, L’atelier et le chronomètre (Paris, Christian Bourgois, 1982).

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Quando as trabalhadoras do setor de confecção do caso estudado4 se queixam de que seu trabalho é muito intenso porque têm de “dar produção”, elas estão denunciando o caráter taylorista das células. Nesse sentido, a individualização é a experiência que traduz objetivamente o tipo de inserção produtiva da operária sob o sistema celular. Elas são, no fundo, cobradas por sua produtividade individual, não por uma suposta “produtividade coletiva”. No entanto, a existência de um “salário-base”, ao lado do “prêmio” ou “bônus” por produtividade, denuncia também a persistência de um rendimento médio para o trabalho naquele ramo. A diferenciação de remuneração que o prêmio possibilita dá-se, contudo, sob uma base reconhecida de remuneração média para o trabalho da costureira na indústria de confecção, uma remuneração que resulta de uma norma social. Por outro lado, a posição relativa entre o salário-base e o salário por produtividade na equação final da remuneração das operárias varia de acordo com a capacidade da categoria profissional das costureiras de forçar uma norma coletiva da remuneração social (média) do ramo ou setor: quanto mais o salário por produtividade se impõe, como resultado da percepção de que ele traduz com mais fidelidade a produtividade do posto de trabalho, mais o salário-base decresce em relação ao salário por produtividade. E é de fato isso que ocorre nos exemplos estudados, quando as informantes acusam o papel fundamental do prêmio para a composição do ganho salarial no fim do mês. O efeito líquido é a individualização dos salários e o incremento da competição entre trabalhadores5, além da percepção distorcida de que tal ganho é o correspondente fiel do esforço empreendido por cada uma em sua especificidade produtiva, entendido aquele como o conjunto agregado e indissociável, na pessoa, de vários componentes: dispêndio de energia, cuidado, treinamento, dedicação e investimento subjetivo na execução da tarefa. O salário, ao fim e ao cabo, remuneraria esse conjunto agregado para cada uma individualmente: O interesse de todos os capitalistas coincide com o de cada trabalhador individual, considerado isoladamente. O salário por empreitada apresenta, pois, para a classe capitalista a vantagem ideológica, nada desprezível, de fazer crer que o salário está ligado ao trabalho como categoria econômica, já que os salários individuais variam em função das diferenças na intensidade do trabalho.6

4

Leonardo Mello e Silva, “O desmanche da classe”, cit.

5

Michel Aglietta, Regulación y crisis del capitalismo, cit., p. 120.

6

Idem.

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Fazer desaparecer o nexo social de constituição da classe trabalhadora, sua qualificação coletiva, seus vínculos de aprendizado, de trocas recíprocas de ajuda material e de entendimento simbólico do mundo, na medida em que consolidam uma posição de “nós” por oposição ao “eles”7, eis a resultante da individualização dos salários, um processo social que corresponde ao que Bourdieu denomina propriamente de “amnésia de origem”. No entanto, a relação salarial que consagra a individualização do rendimento é a rigor pré-fordista, isto é, corresponde a uma fase da produção capitalista em que a coletivização dos meios de trabalho e das forças produtivas não atingiu um nível de maturidade a ponto de anular as diferenças de produtividade de postos de trabalho desbalanceadamente diferentes. Quanto mais se aproxima desse nível forçosamente coletivo, mais a contrapartida salarial se aproxima do salário-base, ao invés do salário por produtividade. Ao fim e ao cabo, o que o capitalista paga é sempre o valor médio de um determinado bem ou serviço, embora essa correspondência esteja escondida pela relação (aparente) de retribuição justa entre esforço e rendimento. Nas formas mais coletivas (mais fordistas) de processo de trabalho, o ajuste desses desbalanceamentos é feito via modificação da norma de produção: colocando a meta num patamar mais elevado ou difícil, mais tempo os operários terão de despender para alcançá-la. O trabalho se intensifica e se enrijece, enquanto a norma de rendimento pelo trabalho efetuado naquele intervalo dilui os ganhos para aqueles que eventualmente são capazes de ir além da norma. O perigo dessa estratégia de forçar a norma de produção é provocar a unificação do coletivo de trabalho, pois fica claro que ninguém é capaz de alcançar a meta. No sistema de células, a norma coletiva de produção é deliberadamente quebrada pelo arranjo flexível das máquinas e dos grupos responsáveis por elas (o layout em U), e os lotes não são mais contínuos, mas diversificados, de acordo com a demanda. A integração do processo produtivo não é mais buscada no fim (a posteriori), mas no início, no momento da manufatura, pelos próprios trabalhadores8. Isso muda a concepção de como o rendimen7

Stéphane Beaud e Michel Pialoux, Retour sur la condition ouvrière (Paris, Fayard, 1999) [ed. bras.: Retorno à condição operária. São Paulo, Boitempo, 2009]; Theo Nichols e Huw Beynon, Living with capitalism (Londres, Routledge/Kegan Paul, 1977).

8

No mesmo sentido em que se fala em uma “gestão pelos estoques” no modelo japonês (Benjamin Coriat, “Ohno e a Escola Japonesa de Gestão da Produção: um ponto de vista de conjunto”, em Helena Hirata, Sobre o modelo japonês: automatização,

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to coletivo do trabalho pode ser salarialmente recompensado. As formas já conhecidas de salário por produtividade têm de novo lugar. As células põem em funcionamento uma modalidade já experimentada de relação salarial, fazendo agora a parcela do salário por produtividade avançar sobre a parcela do salário-base. Quando se adiciona a observação histórica de que os convênios coletivos e a negociação salarial são elementos lacunares do arcabouço institucional das relações industriais no Brasil, torna-se mais nítido um quadro em que começa a fazer sentido a ideia de uma formação social na qual o taylorismo pode germinar sem necessariamente desembocar no fordismo, como aconteceu de modo paradigmático com as economias desenvolvidas do centro do capitalismo. Os limites da gestão pelo grupo e as formas deletérias que daí derivam para os participantes das células, como foi fartamente documentado pelo estudo das células de produção, são de dois tipos: econômicos e sociais. Econômicos porque dependem da capacidade do coletivo de trabalho de assegurar o avanço do componente do salário-base contra o componente do salário por produtividade. No fundo, é aquele que fornece o parâmetro para a norma de rendimento produtiva, e para a relação salarial então predominante. Sociais porque dependem do grau de tolerância e de aceitabilidade em relação ao tipo de competição interpares, ao contínuo autocontrole e à desconfiança mútua, enfim, um ambiente organizacional carregado e tenso, que parece duro de manter sem acarretar sérios danos ao bem-estar físico e mental dos que nele estão imersos todos os dias. Com relação aos primeiros, veremos a seguir as peripécias recentes, no Brasil, das formas institucionais que mais diretamente afetam as relações de trabalho: as mudanças na legislação trabalhista, a partir do governo FHC. Com relação aos segundos, os relatos de estudos de caso (aqui, das fábricas de confecção e vestuário), conquanto parciais e limitados a um único setor industrial, parecem falar por si mesmos.

2. As principais medidas da reforma trabalhista hoje Os argumentos empresariais direcionam suas críticas basicamente para dois aspectos das relações de trabalho vigentes no país: em primeiro lugar, novas formas de organização e de relações de trabalho, (São Paulo, Edusp/ Aliança Cultural Brasil-Japão, 1993), pode-se falar aqui em uma “gestão pelo grupo”.

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para o que consideram a excessiva carga de contribuições associadas ao trabalho assalariado formal (alguns cálculos chegam a 100% do salário-base); em segundo lugar, para a excessiva proteção legal, que dificulta a demissão. Isso teria estimulado o recurso à subcontratação e a formas de contrato atípicos, isto é, diferentes do padrão do trabalho assalariado formal no país atualmente (44 horas semanais, com carteira de trabalho). Tais formas de trabalho atípicas seriam: o contrato por tempo determinado, o trabalho por tempo parcial, o recurso aos estágios como forma disfarçada de trabalho, a perenização dos trabalhadores subcontratados etc. Na visão dos empresários, seria justamente o excesso de regulação estatal do mercado de trabalho que alimentaria a segmentação: como a legislação trabalhista é muito detalhista, estimularia o descarte dos trabalhadores oriundos do mercado formal (porque seriam muito “caros”) e sua substituição por trabalhadores do mercado informal. Um núcleo muito pequeno de trabalhadores e empregados essenciais seria mantido, enquanto a larga maioria seria buscada nas margens desse mercado. Caso a regulação do trabalho não fosse tão rígida, as diferenças entre os dois “mercados” talvez pudesse ser menor, aproximando os dois e minando as fontes da heterogeneidade. Para os empresários, o mercado informal aproxima-se mais do modelo de um verdadeiro mercado de trabalho liberal do que o mercado formal, que não seria propriamente um “mercado”, em razão da alta incidência de externalidades. Os argumentos críticos, sustentados pelos sindicatos e pelos assalariados em geral, vão exatamente no sentido oposto: reconhecem a clivagem entre o formal e o informal, porém afirmam que uma maior homogeneidade do mercado de trabalho deve ser buscada não pela aproximação das condições do primeiro (mais regulado) às do segundo (menos regulado), mas o contrário, isto é, pela inclusão da massa de trabalhadores atípicos no padrão do contrato de trabalho formal por tempo indeterminado, com todos os direitos e benefícios associados a ele. Portanto, ambas as posições admitem a realidade “partida” do mercado de trabalho brasileiro, no entanto o diagnóstico é divergente, dependendo de para que polo o conjunto deve se orientar – formal ou informal. Como se pode depreender, esse não é um quadro muito diferente da tendência mundial, exceto pelo fato de que, nos países emergentes em geral, com passado populista ou corporativista, o informal é excessivamente desregulado e o formal é excessivamente regulado, se tomarmos como parâmetro de comparação os países de industrialização mais antiga.

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O que se vai apresentar a seguir são as principais medidas flexibilizadoras do contrato de trabalho formal no Brasil, desde mais ou menos uma década e meia. São proposições do Executivo ou do Legislativo que introduzem, a partir dos anos 1990, emendas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou em artigos da Constituição que tratam das relações de trabalho ou da proteção social em sentido amplo (os direitos sociais). Os projetos de mudança legal significam uma importante tentativa de alteração dos marcos institucionais das relações industriais no país. Essas medidas são todas de caráter flexibilizante, como apontam os autores que estudam a matéria há mais tempo9. Tais medidas atravessaram dois governos, de orientações políticas diferentes: o governo de Fernando Henrique Cardoso, de orientação marcadamente neoliberal, e o governo Lula, de centro-esquerda. A postura de ambos tem se pautado, no tocante às reformas da legislação trabalhista, por um comportamento muito similar quanto ao procedimento. Esse comportamento pode ser definido da seguinte forma: delegar ao máximo para os “agentes” ou “atores coletivos” (capital e trabalho) o formato que a nova legislação trabalhista deve tomar, pois os dois lados admitem, em tese, que a velha ordem (a CLT) é antiquada e deve ser substituída. A palavra de ordem nos dois campos é o bipartismo, uma vez que a interferência estatal é considerada prejudicial pelos empresários. Já a principal central sindical (a CUT) persegue exatamente uma distância formal do governo, evitando com isso uma identificação direta com ele, pois essa era a imagem do antigo trabalhismo dos anos 1940-1960, corrente do “velho sindicalismo” da qual ela busca se distanciar. Não há uma articulação orgânica e explícita entre sindicatos e governo (conforme se pôde vivenciar nas experiências social-democratas ou neocorporativas), devendo os primeiros disputar seu espaço como qualquer outro ator coletivo no “‘mercado político”. O plu9

Márcio Pochmann e Amilton Moretto, “Reforma trabalhista: a experiência internacional e o caso brasileiro”, Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, ano 3, v. 2, 2002; Andréia Galvão, Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil (tese de doutorado em Ciências Sociais, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2003); José Dari Krein, “Balanço da reforma trabalhista no governo FHC”, em Marcelo Weishaupt Proni e Wilnes Henrique, Trabalho, mercado e sociedade: O Brasil nos anos 90 (São Paulo, Unesp, 2003); idem, Tendências recentes nas relações de emprego no Brasil (tese de doutorado em Economia Aplicada, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2007).

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ralismo passa a ser o tom dominante do governo no tratamento com as centrais sindicais. Com esse panorama do conjunto de medidas para a reforma das leis trabalhistas, a partir de meados dos anos 1990, chega-se à conclusão inequívoca de que o vetor originário dessas medidas de reforma é o Poder Executivo, porém o complicador é que elas pareciam fazer eco a uma longa e histórica demanda do “novo sindicalismo” (autonomia em relação ao Estado). Tais medidas reformistas vieram “de cima”, como que forçando à negociação. Neste texto, vai-se proceder à análise de duas dessas medidas: a Participação nos Lucros e Resultados (PLR) e o Banco de Horas. A primeira será vista com mais detalhe; a segunda, de forma mais rápida. Ambas afetam de modo direto a organização do trabalho, uma vez que passam a incorporar na norma legal o mesmo princípio por trás do just-in-time e da flexibilidade. 2.1. A Participação nos Lucros e Resultados (PLR) 2.1.1. Histórico

A Participação nos Lucros e Resultados (PLR) foi instituída inicialmente para substituir a política salarial do governo. Por causa da cultura inflacionária vigente até 1994, quando foi lançado o plano de estabilização da moeda (Plano Real), a política salarial era muito importante para proteger os salários, pois concedia reajustes automáticos. O governo buscava desvencilhar-se de qualquer forma de indexação e, por isso, passou a estimular a livre negociação. Não por razões democráticas, mas por razões econômicas. A política salarial funcionava como baliza para as categorias profissionais, ainda que não fosse capaz de repor as perdas acarretadas pela corrosão inflacionária. Mal ou bem, os trabalhadores tinham a certeza de que teriam uma compensação salarial – ao menos anualmente – e que esse direito poderia ser reivindicado legalmente, no caso de os patrões se recusarem a provê-la. A livre negociação, ao contrário, jogava a responsabilidade para as partes, isto é, empresários e sindicatos, sem a interferência do governo. Por essa razão, não se pode caracterizar essa medida como neocorporativa, uma vez não está presente uma concertação de interesses de base tripartite, com contrapartidas recíprocas entre Estado, empresários e sindicatos. A livre negociação concebida pelo governo de então assentava-se sobre uma base de justificação pluralista, cuja raiz doutrinária reside no direito individual de escolha.

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A livre negociação e a contratação coletiva como bandeiras históricas do movimento sindical representado pela CUT assentam-se, ao contrário, no direito coletivo de escolha, e é com base nessa compreensão que ela critica o sistema corporativista de relações de trabalho (1943-1988, porém não completamente extinta em alguns artigos)10, pois o trabalho não é nem livre nem autônomo: é compulsório, atrelado e tutelar. A justificativa dos formuladores desse sistema, os chamados pensadores autoritários do primeiro terço do século vinte, era a de que o povo brasileiro não estava ainda maduro para a democracia11. Já a principal central concorrente da CUT, a Força Sindical, seguindo nesse tópico o mesmo entendimento da CGT, da qual saiu, objetava que a livre negociação poderia beneficiar os sindicatos fortes e prejudicar os menores e sem recursos para fazer face ao poder do patronato. Por razões diversas (basicamente porque não estão preocupados com a solidariedade de classe, mas com os “cidadãos” atomizados vivendo em um mercado idealmente perfeito, em que todos podem escolher sem constrangimentos), os economistas liberais da escola da escolha pública chegam à conclusão análoga: políticas setoriais ou orientadas devem ser substituídas por políticas horizontais, dado que privilegiar uns em detrimento de outros poderia levar à injustiça; situações diversas no ponto e partida devem, portanto, ser evitadas por princípio. Os sindicalistas da Força Sindical também defendem as pequenas e médias empresas (PMEs) em nome da justiça. O mesmo raciocínio, deslocado para um nível mais abstrato, vale mutatis mutandis para o sindicalismo em sentido largo: como a parcela dos trabalhadores sindicalizados é sempre bem menor do que o universo dos trabalhadores potencialmente “sindicalizáveis”, entendidos estes últimos como a população ocupada, os sindicatos representam na verdade uma minoria dos trabalhadores como um todo – e menos ainda as centrais, uma vez que há muitos sindicatos que não estão ligados a nenhuma central. Desse modo, qualquer acordo firmado entre a parcela organizada dos assalariados e o empresariado se dará necessariamente a expensas dos setores menos organiza10

Atualmente está em discussão uma reforma sindical que pretende atacar a maior parte dos itens remanescentes do sistema corporativista de relações de trabalho, reunidos na Consolidação das Leis do Trabalho (editada em 1943) e ainda vigente.

11

Maria Célia Paoli, “Os direitos do trabalho e sua justiça: em busca das referências democráticas”, Revista da USP, São Paulo, n. 21, 1994, p. 101-15.

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dos e desprotegidos por instituições com poder de fogo. Eis a tese da “coalização de interesses” entre os sindicatos mais fortes e os setores empresariais igualmente mais fortes. Quando o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), eleito logo após o lançamento do Plano Real, propõe a livre negociação, ele o faz em nome de um antigo pleito de liberdade sindical e de negociação direta – um pleito que, doutrinariamente, estaria dentro do espírito da modernização das relações de trabalho e com o qual, como vimos, a CUT também concordava, mesmo antes de constituir-se como central (1983), ainda quando seus principais dirigentes eram apenas líderes sindicais combativos do “novo sindicalismo”. O sentido da modernização em FHC, no entanto, já fora contaminado pelo entendimento liberal do termo – sua expressão na racionalidade instrumental se tornaria saliente quando colocada em perspectiva com os demais elementos de seu projeto: privatizações, redução do papel social do Estado, competitividade como selecionador de talentos, extensão do contrato como relação social dominante, inserção da economia no mercado globalizado e demais medidas destinadas a tirar o país do “atraso”. No entanto, a livre negociação, tal como concebida pelo governo, tinha limites: os acordos tinham um teto, isto é, não poderiam caracterizar um aumento real de salário, a fim de evitar comportamentos de reajustes de preços. Em suma, a livre negociação foi imposta de cima (por Medidas Provisórias, um instrumento jurídico excepcional pelo qual o Presidente da República edita leis que passam a vigorar sem a apreciação do Parlamento, que só posteriormente pode derrubá-las ou acatá-las) e sob condições (estabelece patamares de tolerância para os acordos salariais), de maneira que se torna impreciso chamá-la verdadeiramente de “livre”. Os efeitos da medida no plano da organização do trabalho e, portanto, na relação entre empregados e gerentes nas firmas particulares fazem-se sentir de modo direto e indireto. Indiretamente porque impõem uma flexibilidade salarial que se desvencilha das antigas amarras da política salarial. Diretamente porque, ao conectar-se com as demais ferramentas da lean production (produção enxuta), permitem associar o rendimento do trabalho com a produtividade obtida pela aplicação de métodos racionalizadores na produção. Enquanto a política salarial resumia uma época de maior previsibilidade e estabilidade (a despeito do ritmo cumulativo de remarcação de preços), a livre negociação e, depois, a PLR vão caracterizar

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mais adequadamente o período subsequente, de flexibilidade e inconstância. Sai de cena um tipo de regulação do trabalho, ainda que autoritário, e entra a desregulação. O novo panorama, no entanto, muito mais pró-empresa porque dentro do espírito da reestruturação produtiva e da globalização, não foi alcançado por um desenvolvimento autônomo dos principais atores coletivos (capital e trabalho), mas induzido abertamente pelo Estado, com um novo conjunto regulatório das relações de trabalho que inclui, além da PLR, o Banco de Horas, a obrigatoriedade das Comissões de Conciliação Prévia, a possibilidade do trabalho por tempo determinado etc. Trata-se de um conjunto de medidas que visam adequar o mercado de trabalho ao ambiente de flexibilidade. A partir de 1995, os sindicatos embarcaram no experimento, realizando negociações em que esteve presente a PLR. A ideia era “‘usar” a oportunidade para fazer valer a livre negociação tal como pensado antes. Muitos advertiram que a conjuntura poderia ser desfavorável, dado que a iniciativa estava com “os patrões” e assumir a proposta poderia significar perda de direitos. Outros, mais realistas, lembravam que o quadro crescente de crise e desemprego, com a constante ameaça de fechamento de fábricas ou deslocamento para áreas com custos menores, não deixava muita alternativa além de negociar para tentar perder o mínimo. Outro fator que contribuiu para a adesão dos sindicatos foi que a PLR, nos termos da lei, exige a participação sindical na negociação, que é feita na forma de uma comissão de PLR. Na concepção original da CUT, era preciso forçar a entrada dos sindicatos na negociação de resultados e metas, pois isso levaria a aumentar sua importância no interior das fábricas, onde têm dificuldades para atuar por falta de espaços institucionais que prevejam sua atuação ali: as comissões de fábrica, embora previstas em lei, não são a regra, e menos ainda as comissões sindicais de fábrica. Também prevista na lei estava a possibilidade de acesso aos dados econômicos da empresa, para que se possa checar se os montantes distribuídos como acréscimo nos salários correspondem efetivamente a tudo o que a empresa pode ceder, se ela não está “escondendo o jogo” etc. Portanto, um apelo persuasivo de transparência e democratização da informação nas relações de trabalho também acabou desempenhando um papel não negligenciável na aceitação da proposta pelos sindicatos, afinal eles sempre bateram na tecla da importância de os trabalhadores não serem tratados como meros

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“braços”, mas também como “‘cidadãos”, o que significa ter acesso a informações para poder escolher e deliberar de modo consciente sobre todos os assuntos, inclusive aqueles da fábrica. O apelo da PLR no sentido da transparência e da participação parecia um eco longínquo da histórica bandeira de “intervenção no processo de trabalho”. Duas consequências podem ser indicadas com a medida. Em primeiro lugar, aproximar a PLR da “remuneração variável”, antiga proposta patronal. Em outros termos, a produtividade deixa de ser concebida como um prêmio coletivo e passa a ser concebida como uma questão individual, não sendo mais incorporada ao salário. Do ponto de vista das empresas, a produtividade coletiva, por ser uma média, falseia os custos; já a produtividade do pequeno grupo (célula ou time) – e, no limite, a produtividade de cada trabalhador – é mais fiel. Nas fábricas que adotam o sistema de prêmio ou bônus, estes passam a cobrir a diferença entre a percepção do salário “cheio” e o salário decomposto em parte fixa mais parte variável, sendo que esta última fica vinculada à produtividade. Assim, os operários ou operárias têm de trabalhar mais para obter o mesmo montante que antes, como remuneração pelo labor despendido. Não deixa de ser curioso que, de acordo com levantamento do Dieese, as cláusulas de reajustes ligados à produtividade, anteriormente negociadas no âmbito das convenções coletivas, ficaram de fora dos acordos de PLR. Em segundo lugar, a PLR permite ao patronato um poderoso instrumento para esterilizar a negociação coletiva, uma vez que esta não corresponde às realidades diferenciadas das empresas, em termos de tamanho, rentabilidade, origem de capital, tecnologia etc. Realidades diferenciadas deveriam levar, reza o argumento, a negociações diferenciadas, por empresa. De fato, a PLR afastou-se pouco a pouco da negociação coletiva de ramo ou setor e concentrou-se no âmbito das empresas. Hoje, ela é parte constitutiva da regulação interna da vida das fábricas e afeta as políticas de recursos humanos na medida em que estas últimas têm de levar em conta mais um reforço dos métodos de gestão baseados em resultados e metas. É como se a política de remuneração estivesse em harmonia com a política de gestão. Relatos de representantes e assessores de sindicatos fazem saber que a PLR ganhou espaço e legitimidade na base, deixando a negociação salarial em segundo plano; ademais, ela significa um acréscimo monetário na renda do trabalhador, o que atrai imediatamente o in-

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teresse12. Nesse último aspecto, é um poderoso componente que individualiza a classe. Há ainda dois aspectos que merecem ser mencionados. O primeiro é que os benefícios da PLR não são incorporados ao salário fixo e, por isso, não recai sobre ela a carga fiscal que incide, por sua vez, sobre aquele, o que é claramente vantajoso para os empregadores. O segundo é que, paradoxalmente, a PLR normatiza a flexibilidade, tornando-a uma regra geral: se antes esses abonos eram uma complementação cujo parâmetro era o salário fixo, agora o parâmetro são as metas, além dos resultados (lucros) da empresa13. O deslocamento é sutil (porque, do ponto de vista nominal, o rendimento percebido pelo trabalhador pode não ter sofrido grande variação), mas está em fase com a ideia geral de substituir a política salarial, que pressupõe uma massa homogênea, por uma remuneração variável, que pressupõe, ao contrário, diferenças específicas associadas à inconstância do ciclo econômico. Trata-se de uma estaca no coração do fordismo. E uma confusão para um sindicalismo que, historicamente, vem pleiteando a negociação direta com o patronato14. Com a proposta de um “sistema democrático de relações de trabalho”, um modelo influenciado pela arquitetura negocial macro-micro idealizada pela central CGIL italiana e veiculado pela CUT a partir de meados dos anos 1990, buscava-se escapar dessa armadilha, chamando a atenção para os perigos da derrogabilidade do macro pelo micro, fato que foi corrigido a tempo. 12

Ciente disso, a recomendação da CUT foi que, nas negociações da PLR, um teto de 15% da remuneração anual do trabalhador não poderia ser transposto, pois isso poderia comprometer a própria negociação salarial em si, isto é, os reajustes e aumentos válidos para toda a categoria. Atualmente, os acordos já estão desimpedidos do controle anterior quanto ao teto.

13

Na verdade, a resolução normativa sobre a PLR nada mais fez do que sancionar igualmente para todas as categorias, ramos e empresas a “regra” da flexibilidade da remuneração, uma vez que, antes da lei, muitas empresas na prática já adotavam procedimento semelhante, por meio de abonos, prêmios, décimo quarto salário ou dedicações acrescidas ao salário fixo, a título diverso, como riscos à saúde, acessibilidade ao local do trabalho e, finalmente, lucros auferidos no período.

14

Por causa das características do sistema de relações de trabalho corporativo, essa possibilidade sempre foi relegada. O grande salto representado pelo chamado “novo sindicalismo”, quando este surgiu em 1978-1979, foi exatamente a instituição da negociação direta entre metalúrgicos e representantes patronais, sem a mediação do Estado.

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2.1.2. Como a PLR é negociada

São três os âmbitos institucionais em que a PLR pode ser implementada: 1) na convenção coletiva de categoria; 2) no acordo coletivo de empresa; 3) unilateralmente, quando a empresa apresenta uma proposta fechada. A sequência obedece a um gradiente de maior para menor abrangência pública e geral. Nos dois primeiros casos, a implementação é feita por intermédio de comissão formada para esse fim, com participação sindical. No último caso, não há propriamente negociação e o sindicato fica de fora. Numa publicação de 1999, o Dieese acusa 1.659 acordos coletivos por empresa e apenas 59 convenções coletivas, quando se trata de cláusulas que incluem alguma forma de remuneração variável que possa caracterizar uma modalidade de PLR. O que ocorre é que as convenções coletivas acordam metas para serem atingidas pelo conjunto do setor, porém não estipulam valores – estes ficam na dependência do desempenho das empresas em particular. Portanto, como se pode notar, a PLR é talhada para a empresa. Como é um tipo de acordo que obedece às características desta (em termos de tamanho, origem do capital, histórico de rentabilidade etc.), é muito difícil estabelecer uma regulamentação generalizante. Ela pode associar o ganho complementar a algum resultado imediato do grupo ou de cada trabalhador individualmente, sem ter de remeter a um acordo guarda-chuva. “Cada realidade é uma realidade”, reza o mantra gerencial, e não é “justo” que uma seção (de fábrica) ganhe o mesmo que outra, se a primeira é mais produtiva que a segunda. Alguns observadores ponderam que as metas são ardilosamente montadas umas contra as outras para evitar justamente que sejam atingidas. Por exemplo: a meta de atendimento ao cliente versus a meta de redução de despesas indiretas (reduzir despesas indiretas implica deixar de atender ao cliente); ou ainda: as metas de redução de acidentes e maior segurança do trabalhador versus aumento do ritmo e intensificação do trabalho. O exemplo de uma fábrica de ferramentas de São Paulo mostra, pelo acompanhamento da série de metas desde a sua implantação, que elas parecem ter sido colocadas num patamar impossível de ser atingido na integralidade15. Relatos a respeito dessa empresa chamam a atenção, ademais, para a mecânica de funcionamento: o acompanhamento mensal das metas era efetuado em 15

A descrição da qual foi extraído o exemplo está em Debate & Reflexões, n. 12, maio 2004, p. 51-65.

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reuniões periódicas com os trabalhadores e isso gerava um sentimento disseminado de cobrança; um quadro de indicadores acompanhava o andamento comparativo entre o que fora estipulado e o que fora de fato realizado, o que foi interpretado pelo sindicato como uma forma de pressão e intensificação do trabalho. Essas reuniões eram ocasiões em que um trabalhador cobrava do outro o não atingimento de metas, pois isso significava, afinal, uma remuneração menor. Assim, de forma lenta, mas persistente, observou-se uma junção entre a remuneração de tipo variável em substituição da fixa e a intensificação do ritmo e da carga de trabalho. Exatamente como acontece nas células de produção das fábricas estudadas16. O processo de fazer passar a antiga compreensão da responsabilidade coletiva para a nova compreensão da responsabilidade pessoal e individual é mediada, precisamente, pelas mudanças na remuneração, naquele ponto, portanto, que afeta diretamente a sobrevivência e apela para a necessidade. Pode-se constatar, então, que o que acontece com as células tem um correspondente funcional na PLR e, como se verá mais à frente, no Banco de Horas. Quanto à modalidade da negociação da PLR, pode-se dizer que os acordos têm formato bipartite, por “autocomposição dos interesses”, ou seja, não há intervenção da Justiça do Trabalho nem casos de conciliação, mediação ou arbitragem, mesmo privada17. Quanto à justificação da negociação da PLR entre empregados e patrões, vale a pena explorar um argumento que circulou no meio sindical e que, por tabela, toca num tópico importante das relações de trabalho no país. Ele diz respeito ao poder das bases para impor um acordo favorável à coletividade do trabalho, seja no setor, seja na empresa. O argumento a favor da livre negociação, sustentado pelo sindicalismo cutista, opõe o sistema tutelar do corporativismo à organização por local de trabalho, vista como meio de assegurar uma representação de fato dos trabalhadores, aproximando o sindicato das bases. Esse argumento foi levantado muitas vezes em nome da “autonomia” da ação diante da instituição (sindicato). 16

Leonardo Mello e Silva, “O desmanche da classe”, cit.

17

No entanto, há registros de casos em que o auxílio de uma terceira parte é buscado. Ver artigo de José Dari Krein e Ana Tércia Sanches em Debates & Reflexões, n. 12, maio 2004, p. 161-75.

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Aos olhos dos cutistas, portanto, a livre negociação era o ácido que iria corroer o sistema corporativo, quebrando o círculo funcional de interesses de cúpula, presente mesmo depois que a Constituição de 1988 permitiu a organização de centrais sindicais. A PLR deveria aproveitar a “janela de oportunidade” oferecida pela reforma trabalhista e impor o projeto original da “democracia no local de trabalho”. A livre negociação ou livre contratação, formulada nos primórdios de constituição do novo sindicalismo, era contrária à presença estatal nos assuntos entre empregados e empregadores, fosse esse ou não um traço de postura “liberal pluralista” na negociação coletiva18, o que ensejou muita polêmica entre os analistas. De toda a forma, é lícito conjecturar que a prevalência do ideário sobre democracia, autonomia e participação que atingia o mundo do trabalho correspondia também, na época, à crítica à presença do Estado na vida social e à valorização do associativismo, da auto-organização da sociedade e da sociedade civil. Essa convergência é vista por alguns autores como a confirmação da dominância de temas liberal-democráticos no interior da intelligentsia brasileira, com ramificações nos debates sobre organização sindical e estrutura corporativa, o que forçosamente conduzia, em termos mais abstratos, à discussão sobre a relação entre Estado e sociedade – ou Estado e sociedade civil19. No entanto, entre os elementos do conjunto do ideário liberal-democrático estão incluídos, além dos temas da democracia, do pluralismo, da autonomia e da participação, a valorização dos direitos individuais. Ora, essa caracterização não é muito apropriada para o movimento sindical, pois ali se trata exatamente da representação de direitos coletivos. Como muitos autores têm enfatizado, os direitos individuais do trabalhador estão muito bem guardados na CLT (enquanto os direitos individuais qua cidadão possam estar reprimidos na esfera pública – como aconteceu no período ditatorial), diferentemente dos direitos coletivos, que são abafados em sua manifestação autônoma. A agenda e a bandeira da “contratação coletiva” visavam justamente clarificar essa ótica, separando-a de uma mera tradução liberal20 para as relações de trabalho. 18

Maria Hermínia Tavares de Almeida, Crise econômica e interesses organizados (São Paulo, Edusp, 1996), p. 153.

19

Ibidem, p. 154.

20

“Barganha coletiva entre agentes situados no mercado”, afirma Maria Hermínia Tavares de Almeida, em Crise econômica e interesses organizados, cit., p. 163.

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Já do outro lado do debate, o movimento sindical representado pelo “novo sindicalismo” significava a possibilidade de unir o movimento operário e sindical como um movimento social, agora não como parcela saída do Estado, isto é, não como um “membro” de seu corpo (imagem, de resto, muito própria ao corporativismo), mas como parte e parcela da sociedade civil. A breve digressão histórica sobre o significado da livre negociação ajuda a explicar certas escolhas programáticas do presente, entre elas a estratégia de ganhar influência. Na negociação da PLR com as empresas, o sindicato tenta influenciar no âmbito do acordo coletivo, e quando não há representantes do sindicato na comissão instituída para esse fim precípuo. As comissões têm de ser eleitas pelos trabalhadores da empresa, e muitas vezes o sindicato não está presente nelas. Como a legislação que instituiu a PLR prevê sempre a participação sindical, isso força que esse ator social não esteja ausente do processo21. A inclusão dessa exigência foi sem dúvida o resultado do peso social considerável que o movimento social adquiriu no processo de redemocratização, já com as centrais sindicais consolidadas, em meados dos 1990, quando o processo dito de “flexibilização das leis trabalhistas” começou pela via da remessa de Projetos de Lei e Medidas Provisórias. A ideia dos sindicatos era que a comissão de PLR poderia servir como uma modalidade de organização por local de trabalho. O aconselhável era comprometer os trabalhadores da própria empresa na negociação, em vez de simplesmente alocar para a comissão um diretor sindical que não conhecesse as realidades específicas, o histórico das relações de trabalho micro etc. Ao invés de de cima para baixo, de baixo para cima: essa era a máxima organizativa do sindicalismo. Há, porém, um problema sério relacionado às garantias dos membros que negociam o acordo. Não há previsão de estabilidade para os trabalhadores que fazem parte da comissão de PLR. Isso acarreta, na prática, a substituição por negociadores sindicais e o esvaziamento do propósito de aproximar a comissão de uma OLT (organização por local de trabalho), como deseja a CUT. 21

Embora o sindicato possa ser apenas comunicado da decisão tomada pela comissão, sem ter tido qualquer participação no acordo. Ele corre riscos se se colocar frontalmente contra o acordo, porque a empresa pode atribuir a culpa a ele pelo emperramento de negociações que, ao fim ao cabo, renderão um acréscimo salarial para os empregados. De qualquer forma, o sindicato deve chancelar o acordo. Ele se torna o “depositário” do acordo de PLR.

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Por outro lado, em setores ou empresas sem presença sindical, o argumento de que a comissão de PLR pode reforçar a OLT passa a ser mais pertinente: ao assegurar ganhos materiais via PLR, forçando às empresas a conceder mais do que propõem de início, os membros dos sindicatos que participam das negociações, na melhor das hipóteses, ganham legitimidade diante dos empregados da empresa, os quais passam a se mobilizar para defender a atividade deles ali e eventualmente para se tornar os próprios líderes. Na pior das hipóteses, começam a ter um conhecimento melhor do local de trabalho, até então impenetrável. Um dado, contudo, confirma a suspeita de que a PLR veio para quebrar um padrão coletivo de demandas da classe trabalhadora, padrão que reforça a homogeneidade ou igualdade de seus membros e que se consubstanciava na política salarial: ela passa a ser incorporada aos momentos de campanha salarial das categorias e, portanto, deixa de ser encarada como um “acessório”, sendo agora tomada como “parte” do salário. Nesse sentido, as empresas passaram a jogar com a possibilidade de propor um reajuste bem abaixo do esperado (tendo como baliza a inflação passada), a fim de sacar a PLR da manga para chegar ao índice proposto pelo lado sindical. Em suma, ela deixou de seguir seu propósito original e foi sendo utilizada como arma nas convenções coletivas, a favor do lado patronal: a PLR joga as negociações por salário para baixo, ao rebaixar o nível a partir do qual se inicia o processo de negociação. Ora, não por acaso, os setores mais organizados do sindicalismo são justamente aqueles em que a discussão da PLR é desvinculada da negociação salarial, como no caso dos petroleiros. Os químicos, por seu turno, vêm tentando utilizar uma estratégia de “avalanche”: primeiro asseguram os ganhos salariais na convenção coletiva, em seguida passam a discutir ganhos por empresa (onde entra a PLR), a partir das grandes corporações do setor, e só então passam para as médias e pequenas. Nesse último caso, trata-se de uma tentativa de elevar o nível dos acordos, partindo de um patamar mais “alto” (mais includente) para outro mais “baixo” (menos includente), de forma que os segundos se mirem nos primeiros. Já entre os bancários, por exemplo, os acordos coletivos com os bancos são uma coisa, a campanha salarial (que desemboca na convenção coletiva) é outra, ou seja, os acordos não derrogam os níveis mais includentes e asseguram um patamar mínimo e fixo, dos quais os acordos têm de partir.

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O setor patronal também é acossado pelo dilema do tipo “negociação por baixo ou por cima”, só que num sentido inverso ao dos sindicatos de trabalhadores. As firmas pequenas pressionam o sindicato patronal a recusar os acordos muito benéficos para o trabalho, pois caso fossem estipulados como norma geral poderiam “quebrar” muitas delas. Para elas, um patamar minimalista de direitos e benefícios deveria ser seguido de acordos que incorporassem ganhos proporcionais ao poderio econômico das empresas, do contrário os negócios seriam inviabilizados22. Exatamente o inverso da estratégia “em avalanche”. Outro aspecto – esse muito mais delicado – é a própria definição das metas para as quais está associada a participação nos resultados ou lucros. Esse aspecto conecta a PLR com as formas diversas de flexibilidade do trabalho. A PLR não é apenas uma distribuição de lucros; na verdade, ela condiciona a participação nesses lucros ou resultados a certo comportamento (mesmo disciplinar) racionalizado no processo de trabalho, por exemplo faltas, performance etc. Por essa razão, os resultados ou metas costumam ser mais adequados para o caso de acordos coletivos (empresas) do que para o caso de convenções coletivas (setor ou ramo). Nada impede, porém, que metas sejam acordadas para o setor inteiro, o que em geral é obtido graças à capacidade de pressão do sindicato, sendo, por isso mesmo, mais raro. Os casos bem-sucedidos de bancários, químicos e petroleiros só confirmam a regra, pois esses sindicatos são historicamente mais fortes. Os bancários conseguiram reduzir a dispersão de valores na distribuição dos ganhos com PLR entre os empregados, pois estabeleceram certas regras para parcelas mínima e máxima na forma de um teto para o maior valor recebido. As empresas preferem uma remuneração diferenciada e sem limites “artificiais” – até porque, seguindo a regra do valor distribuído proporcionalmente conforme a escala salarial na empresa, os cargos de supervisão e de chefia são os mais bem aquinhoados, e isso reforça a estrutura de comando interna. Mas, afinal, o que são, propriamente, os “resultados”? A que se referem? O que é mais vantajoso: participação nos resultados ou nos lucros? 22

Antônio Moreira de Carvalho Neto, “Reestruturação produtiva, jornada de trabalho e participação nos lucros e resultados: novos temas negociados entre empresários e trabalhadores brasileiros, de 1992 a 1998”, em Maria Regina Nabuco e Antônio Moreira de Carvalho Neto, Relações de trabalho contemporâneas (Belo Horizonte, PUC-Minas/ IR, 1999), p. 178-9.

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Os resultados são aquilo que foi acertado ou “contratado” de antemão com a empresa: os trabalhadores recebem um valor correspondente às metas acordadas no contrato. Essas metas referem-se a âmbitos bem diferenciados: produtividade, rentabilidade, quantidade de produção, vendas, redução de custos, assiduidade, acidentes de trabalho, funcionamento do sistema de qualidade, certificação pelo sistema ISO, limpeza, reclamações de clientes e introdução de técnicas de gestão, além de outros quesitos. A contratação das metas abre o caminho para a intensificação do trabalho. Os trabalhadores estão contratando seu desgaste e a própria corrosão daquilo que poderia protegê-los disso. A única coisa que poderia esconder as diferenças individuais e os “poros” devidos ao desbalanceamento entre um operador e outro (afinal, operadores não são máquinas iguais) no processo de trabalho era exatamente a regra geral do salário contratado coletivamente, isto é, o salário fordista. Já com relação aos lucros, o grande problema está relacionado a sua aferição. Como medir os lucros? Pelo balanço operacional publicado em jornais? É usual no meio sindical, e entre o pessoal de produção, que qualquer operário ou operária saiba muito bem se a empresa vai bem ou mal; isso é percebido empiricamente, sem necessidade de qualquer planilha ou balanço. Contudo, do ponto de vista formal, as coisas se passam de maneira diferente. A informação é chave aqui, mas, como se viu, ela é considerada um bem privado. A empresa não precisa “comunicar” sua situação para ninguém. Há casos em que a PLR não está vinculada nem a resultados nem a lucros: por acordo, a empresa simplesmente se compromete a oferecer um abono, sem entrar em detalhes de como tal abono será constituído ou qual será seu critério. Os empregados apenas aceitam o abono, sem se perguntar se poderia ter sido maior, por exemplo. Isso costuma funcionar quando a conjuntura está pró-empresa (por exemplo, após o Plano Real, quando os aumentos reais estavam proibidos porque poderiam causar inflação), mas fica um pouco desacreditado quando a situação se inverte. A PLR acaba substituindo a discussão sobre aumento real para toda a categoria. Como a quantia distribuída sob a PLR pode ser significativa – uma “bolada” paga de uma vez ou dividida em parcelas, mas que pode chegar a oito vezes23 o valor do salário base – ela atraiu mais a atenção dos as23

Debate & Reflexões, n. 12, maio 2004, p. 168.

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salariados e diluiu o interesse pelas campanhas gerais, pois os ganhos obtidos nestas últimas são menos generosos. No entanto, nunca é demais lembrar que a PLR depende do ciclo econômico e varia de acordo com o desempenho das empresas no mercado – até aqui, o movimento tem sido expansionista, mas, num cenário de contração da atividade, é possível que a negociação salarial volte ao proscênio na relação com os empregadores. Seja como for, a parcela fixa deixa de ser o “nó” da questão; este é deslocado para a parcela variável, num esquema muito similar ao que ocorre com os prêmios ou bônus das células de produção. A PLR pode acabar se tornando assim um mero complemento do reajuste salarial: quando a negociação coletiva não repõe as perdas com a inflação, ela entra quase a título de complemento a fim de cobrir o percentual que ficou faltando. Sua incidência, porém, exclui terceirizados, estagiários, inativos (aposentados ou afastados por acidentes) e prestadores de serviço, o que pode gerar conflitos. Além disso, a PLR deslocou o tema da produtividade de um problema coletivo para um problema particular à empresa. Como virou uma “meta” da PLR, a produtividade não consta mais da negociação salarial da categoria. A tendência de substituir o salário fixo pela remuneração variável tem ainda mais duas implicações, não mencionadas anteriormente. Em primeiro lugar, ela desorganiza não apenas o componente direto do salário – aquilo que poderíamos chamar de “salário-base” –, mas também o componente indireto, tais como certos benefícios e adicionais atrelados a ele (alguns previstos na CLT, outros em convenções coletivas): cesta básica como proporção do salário, vales de transporte, refeição, farmácia, convênios médicos e outros, além de escalas de classificações como Plano de Cargos e Salários24. Também é importante ressaltar que a PLR não esgota todas as formas possíveis de remuneração variável (algumas já vigentes antes da lei que a instituiu), mas pode desorganizá-las, seja incorporando-as, seja substituindo-as, seja mantendo-as à margem da comissão da PLR, o que vale dizer, à margem da influência sindical. Em segundo lugar, ela tem incidência indireta no financiamento dos programas sociais do governo, pois é da massa salarial arrecadada de manei24

Outros benefícios eram informais e faziam parte de certos arranjos entre trabalhadores e chefia imediata, por exemplo: os trabalhadores se revezam nos turnos da noite, a fim de ganhar os 50% do adicional noturno (relato de uma experiência de PLR em Debate & Reflexões, n. 12, maio 2004, p. 55).

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ra constante e previsível da população empregada (folha de pagamento) que sai a garantia de execução desses programas, entre os quais podemos citar a seguridade social, os programas de habitação e de educação, o seguro-desemprego e o principal fundo público, que é o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Por todas essas razões, não há sentido em falar de “disputa” em torno da PLR. Parece claro que o estratagema flexibilizante obedece a uma lógica de usurpação dos valores do público em nome dos interesses privados. Dito dessa forma, parece um chavão. No entanto, se “disputa” de fato há, no caso da PLR ela se situa não num nível abstrato, mas prático. Envolve certos hábitos e costumes, certo estilo de comportamento, palavras e gestos que denotam uma linhagem de classe, na qual os atores reconhecem (de modo consciente ou inconsciente) lugares de classe onde se sentem “à vontade” ou estranhamente incomodados por estar num espaço que “não é o seu”. Pois, afinal, é da mudança num certo mapeamento das posições de classe de que se trata. Enquanto o sindicato faz uma assembleia na porta de fábrica para explicar os motivos da PLR, a empresa faz uma reunião interna, numa sala climatizada e com grupos pequenos, sem o representante sindical, para apresentar sua proposta, numa tática de persuasão cujo propósito é individualizar e quebrar a força coletiva representada pelo sindicato e pela comissão da PLR. Depois, apresenta os resultados mensalmente, de maneira metódica, comparando as metas colocadas no mês anterior e os resultados alcançados no mês em curso. Irrepreensível – como a demonstração de um teorema. Os trabalhadores se veem assim participando de um “projeto”, encontram sentido naquele ritual de assepsia e de investimento organizativo: não é algo abstrato, mas, ao contrário, algo bem concreto. “Os números são x% menores do que havíamos estipulado etc.” 2.2 O Banco de Horas O Banco de Horas está relacionado à jornada de trabalho. Durante sua vigência, o trabalhador é dispensado quando não há necessidade de produção e chamado de volta quando a produção é retomada. Nesse período, ele não pode ter redução de salário nem ser demitido. É importante frisar que, pela legislação vigente, o contrato de trabalho é individual, passado entre empresa e trabalhador. As entidades coletivas (sindicatos) não podem, pela lei, se sobrepor a esse contrato, embora as negociações coletivas não estejam impedidas, e possam até fornecer as balizas

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para as contratações individuais. Os sindicatos têm um reduzido poder de contratação de fato. Portanto, desse ponto de vista, a criação do Banco de Horas restabelece o poder coletivo do sindicato na contratação. Além disso, o Banco de Horas pode ser visto também como uma “imposição à negociação” vinda de cima, tal como as outras inovações institucionais (a PLR, conforme vista acima, a Suspensão Temporária do Contrato ou o Contrato por Tempo Determinado). Antes de a medida ser promulgada, em 1998, já havia registro de negociações coletivas (acordos ou convenções) sobre a jornada de trabalho envolvendo contrapartidas entre tempo e salário: no setor de telecomunicações, entre 1994 e 1995, houve acordos de diminuição da jornada, sem diminuição do salário, para atendentes de reclamações de usuários e reparadores externos de linhas telefônicas; entre os químicos do ABC, nos acordos de 1996 e 1997, as negociações sobre a jornada tomaram a forma de discussão sobre turnos (as empresas desejavam o maior número possível de turnos ininterruptos, enquanto os trabalhadores forçavam turnos menores na semana, com redução das horas semanais trabalhadas e sem diminuição de salários)25. Os turnos são importantes porque envolvem a jornada de trabalho diária: se o turno é de seis horas, e não de oito ou doze horas, como anteriormente, isso significa que a redução do número de turnos na semana leva concomitantemente à redução do número de horas trabalhadas semanais. Quando os trabalhadores lutam por cinco turnos semanais (como os químicos), sem diminuição do salário, na verdade tentam inverter a razão tempo/ remuneração a seu favor – e justificam a medida como uma forma de combate ao desemprego, uma vez que, para preencher o mesmo número de horas, os empresários têm de contratar mais pessoal. A contrapartida para tal concessão foi a diminuição do percentual incidente sobre as horas extras e o adicional noturno. Os chamados “adicionais” (horas extras e trabalho noturno) incidem apenas sobre a jornada diária (ou “turno”): menos turnos na semana, menor a incidência de adicionais, o que ameniza o custo para as empresas. Em outros acordos, ao invés de redução do percentual dos adicionais, alguns deles (horas extras) foram simplesmente suprimidos, contrabalançando a manutenção de outros (noturno e riscos)26. Todas essas 25

Antônio Moreira de Carvalho Neto, “Reestruturação produtiva, jornada de trabalho e participação nos lucros e resultados”, cit.

26

Idem.

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medidas fazem parte de acordos e negociações sobre a flexibilização da jornada, e envolvem mais ou menos redução de salário. O Banco de Horas acabou com essa possibilidade, pois passou a normatizar as compensações de uso do tempo, não permitindo que a remuneração entrasse mais como moeda de troca. Os trabalhadores, contudo, estavam acostumados aos ganhos complementares com os “adicionais”, em especial as horas extras, e queixam-se da nova medida. Já os sindicatos, afeitos à denúncia moral de que os trabalhadores não devem “negociar sua saúde” (isto é, submeter-se a horas extras e riscos para obter um ganho adicional do salário), tentaram converter a nova medida em um impedimento para o excesso de trabalho nos períodos de “vacas gordas”, estabelecendo um teto de duração de trabalho por dia, quando o trabalhador estivesse compensando seu tempo acumulado no período de “vacas magras”. De fato, há limites na variação das horas que cada trabalhador pode compensar. Esses limites podem ser estabelecidos nos acordos coletivos com as empresas. Entre as montadoras de veículos, por exemplo, foi estabelecido um limite máximo de 44 a 48 horas por semana para o período em que as horas acumuladas são utilizadas ou “creditadas”; além desse limite, o tempo suplementar seria considerado “hora extra” e cada hora extraordinária teria um percentual crescente27. É importante ter em mente que, quando o Banco de Horas veio à luz, a economia brasileira enfrentava um período de forte desemprego e crise (1996-1999). Muitos acordos descentralizados, como, por exemplo, nas montadoras de veículos, foram feitos para tentar evitar demissões, com negociação de jornada de trabalho, salários e benefícios. Os Planos de Demissão Voluntária foram sacados pelas empresas para que pudessem se desfazer de parte de sua força de trabalho. No caso das grandes empresas, que já vinham tentando uma via negociada para o downsizing, o Banco de Horas não foi uma grande novidade28, mas para as médias e pequenas, em que a norma era simplesmente demitir sem mais explicações, ele trouxe um hábito novo para a prática das negociações. 27

Idem.

28

Na verdade, grandes montadoras como Ford e Volkswagen anteciparam a medida: em 1996, utilizaram um banco de horas informal nas negociações por redução da jornada sem redução de salário.

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Outro aspecto do Banco de Horas é que ele torna o tempo de trabalho mais de acordo com a sazonalidade da produção, que tanto pode ser uma característica inerente a certos ramos (como o de peças de vestuário para praia, cujo pico de vendas ocorre no verão) como pode obedecer a uma flutuação devida ao mercado, como uma crise no fornecimento de matérias-primas ou outros motivos variados. As implicações para a flexibilidade produtiva são evidentes, assim como para uma gestão meramente disciplinar do trabalho: as horas não trabalhadas podem ser debitadas, por exemplo, de ausências referentes a atrasos e saídas antecipadas, de “pontes” em feriados ou idas a médicos ou dentistas, todas sendo acumuladas na “conta corrente” do tempo de cada trabalhador. Podem surgir conflitos referentes à definição de um afastamento médico ser ou não uma ausência injustificada. Pausas até então toleradas, tais como ir ao banheiro e tomar um cafezinho, passam a ser computadas pela empresa como horas efetivamente não trabalhadas. O fluxo produtivo torna-se assim mais cerrado, mais tensionado, com a justificativa empresarial de compensar a redução do tempo efetivamente trabalhado. Tudo acordado, contratado, negociado. Uma gramática liberal do contrato vai tomando conta tanto dessa como das outras medidas da reforma, a ponto de consolidar, agora sim, um sindicalismo de barganha e de toma lá dá cá. A ideia inicial de uma “troca justa” por trás dessa concepção cede vez a um sentimento de espoliação, já que, ao fim e ao cabo, no acordo moderno passado entre patrões e empregados, os últimos acabam sempre perdendo. É o mesmo sentimento que aflora quando se percebe que, na confecção que utiliza o sistema celular, a trabalhadora que fica inicialmente como “volante” para cobrir a ausência de alguma costureira, ou a pausa de alguma colega, acaba se perenizando como quebra-galho permanente, na medida em que o enxugamento de pessoal de produção a força a fazer o serviço normal que antes era atribuição da força de trabalho que foi dispensada. Também estão previstas, como no caso da PLR, comissões de negociação com presença sindical. Os sindicalistas, como no caso da medida anterior, reivindicam que aos membros dessa comissão seja assegurada a estabilidade.

3. Ensaios de negociação e pactuação: antecedentes da Reforma Trabalhista Os sindicatos brasileiros ensaiaram uma governabilidade neocorporativa em meados dos anos 1990: queriam participar das políticas econômicas,

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se não como formuladores, ao menos como avalizadores. Além disso, queriam participar das políticas sociais e trabalhistas, porque entendiam que esses três tipos de políticas (econômicas, sociais e trabalhistas) estavam (como estão) inerentemente intrincados e articulados. Não era possível participar da formulação de políticas sociais ou do trabalho – o que é, aliás, um âmbito histórico da atribuição sindical – sem enfrentar os constrangimentos cuja origem se encontrava na definição de políticas econômicas: opção desenvolvimentista ou opção pela abertura dos mercados, eis um exemplo. Esse era o entendimento que animava os sindicatos cutistas quando do período das câmaras setoriais (1992-1994). As centrais, enquanto instituições responsáveis pela contenção dos conflitos laborais, são um traço comum aos corporativismos, sejam eles estatais ou societais. Mas a questão estava do outro lado, isto é, do lado do Estado e dos empresários. No cenário dos anos 1990, com a globalização e o neoliberalismo, o aval das centrais e dos sindicatos passou a ser prescindível. A política econômica poderia ser tocada sem eles. Foi o que o governo FHC fez. O âmbito democrático estreitou-se e a feição decisionista tomou o lugar da feição deliberativa no campo das políticas sociais em geral e das políticas do trabalho em particular29. Não havia mais necessidade dos sindicatos como asseguradores da “paz social”, pois o desemprego, a crise econômica e industrial, juntamente com a repressão (greve dos petroleiros de 1995)30 se encarregaram desse papel. O Estado tomou o proscênio no pacto, destruindo-o. Como paradigma de organização de interesses coletivos, o neocorporativismo perdeu força nas economias desenvolvidas, porque se tornou incompatível com a flexibilidade do mercado de trabalho e com a “excessiva” regulação do processo de trabalho (leis, normas, exigências dos sindicatos), bem como com o poder operário (greves, paralisações, influência em comitês ou conselhos de empresa). No Brasil, os sindicatos nunca tiveram assento em organismos tripartite; portanto, não se tratava de destruir o que havia de construção institucional, mas de evitar a consolidação de uma efetiva 29

Francisco de Oliveira, “Apocalipse now”, em Francisco de Oliveira e Alvaro Augusto Comin, Os Cavaleiros do Antiapocalipse: Trabalho e política na indústria automobilística (São Paulo, Entrelinhas/ Cebrap, 1999).

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Cibele Rizek, “A greve dos petroleiros”, Praga, São Paulo, n. 9, 1998; Edson Miagusko, Greve dos petroleiros de 1995: A construção democrática em questão (dissertação de mestrado em Sociologia, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2001).

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barreira neocorporativa ao ajuste produtivo das empresas em termos de racionalização e flexibilidade. Assim, as antigas leis trabalhistas do período varguista, reunidas na CLT, acabaram servindo, na transição, como o único porto seguro ao qual se agarrar para evitar o pior, isto é, a total dizimação de qualquer influência sindical na conformação das políticas sociais. Embora isso seguramente não estivesse entre os propósitos originais do corporativismo estatal, elas asseguravam, contudo, alguns patamares de publicização forçada, vestígios do período anterior, quando a produtividade média dos setores industriais compensava as diferenças de performance intra e inter-ramos produtivos, e distribuía os ganhos marginais (ainda que à custa de eventuais “expurgos”) para a contraparte assalariada, organizada ou não nos sindicatos. A transição do corporativismo estatal para o corporativismo societal (ou neocorporativismo) não se concretizou, como a CUT acalentava, por causa da avalanche neoliberal, que passou a definir toda organização coletiva de interesses como um complô contra o bem público, entendido este último como um agregado de indivíduos isolados em sua privacidade e idealmente dotados de vontade e capacidade de escolha, independentemente de qualquer interação e troca de informações. A abordagem institucionalista apenas buscou “consertar” esse vício de origem da escola da “escolha pública”, adicionando, no lugar de indivíduos atomizados, instituições que defendem interesses definidos, no entanto, de maneira muito próxima à abordagem anterior. Tudo somado, em termos práticos, a noção predominante entre os sindicatos, na transição, passou a ser a de que era melhor ficar com alguma coisa (a CLT) do que não ficar com nada. As negociações coletivas passam a se tornar alvo das investidas empresariais para “subtrair direitos”, e esse foi o mote da resistência dos sindicatos durante o período: opor a lei ao contrato – exatamente o inverso do período imediatamente anterior do ciclo das lutas operárias, que se caracterizava por opor o contrato à lei. A lei passava a ser vista como mais protetora do emprego, do salário e das condições de trabalho. A crise havia anulado os ganhos de “contratualidade”, numa virada em direção a um comportamento defensivo por parte dos sindicatos, o qual os empresários chamavam, por sua vez, de “vetusto” e “atrasado”. Outro pilar da crítica neoliberal referia-se ao nível de proteção da indústria, então impeditiva de competição nos mercados internacionais. Rezava

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o argumento que tal proteção, mantida de maneira artificial como resquício da era de substituição de importações, escondia níveis de produtividade muito baixos nos principais setores. Por essa visão, a dinâmica da acumulação deveria passar do Estado (por causa da crise fiscal) para o mercado, o que exigia novos padrões de qualidade dos produtos e consequente reorganização das empresas. O resto da história é bem conhecido.

4. Balanço: que classe trabalhadora para que tipo de hegemonia? Ao subtrair-se de uma regulação pública, por meio da convenção coletiva, a PLR e o Banco de Horas reafirmam uma tendência de descentralização da negociação – também outra bandeira do novo sindicalismo. Quando o último propugnava pela descentralização, no fim dos anos 1970, o alvo era o Estado corporativo e autoritário. A contrapartida era a liberdade sindical (por isso, muitos na época identificaram aquele sindicalismo como de matiz americana ou business union). Hoje, mais do que nunca, a descentralização impera e a “obrigação de negociar” impele à “liberdade de negociação”, sem a participação do Estado, que lava as mãos. O Estado escondido observa de longe a sociedade civil – essa é a imagem que rondava a cabeça dos administradores políticos. É também a imagem que informantes da área gerencial gostam de repetir, referindo-se a sua própria postura autorrepresentada como antipaternalista e moderna: “ao invés de dar o peixe, ensinar a pescar”. A relação salarial que se cristalizou com o ciclo das lutas operárias do ABC e se espraiou depois para os outros setores de atividade continha uma raiz fordista inegável, porque apontava para a unificação da classe como produto da industrialização intensiva vinda desde os anos 1950, os anos do desenvolvimentismo. As características de uma regulação monopolista, com o fechamento do ciclo de implantação de indústrias de insumos e infraestrutura do II PND (a “marcha forçada”), estavam presentes, permitindo mais um lance – importante – na endogenização das condições de reprodução do capital. Mas essa raiz foi como que ocultada pelo jargão democratizante e pelo elã libertário das lutas de classe do período, que apontava para descentralização (o que significava tanto o afastamento da ingerência do Estado quanto a possibilidade de negociação por local de trabalho), autonomia, liberdade de contratação e outras. Ocultava também, de certa maneira, um forte senso de solidarismo (“a classe trabalhadora”) e de “compa-

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nheirismo” (“a peãozada”), reconhecendo aí um certo grau de igualdade, de mínimo denominador comum entre o povo “trabalhador”, que quer ser cidadão, votar e lutar por melhores salários, o que afeta a todos. É exatamente esse sentido que, não tendo chegado a madurar a ponto de se tornar uma força social balizadora (uma “hegemonia”), vai sendo hoje, pouco a pouco, erodido. As novas formas de organização da produção e do trabalho são uma indicação desse processo de erosão, a ponta de um iceberg. O sistema de trabalho em células, por exemplo, além de desgastante e estressante (por que a produção “tem de sair, de uma maneira ou de outra”), impele a que a performance de cada trabalhador (a quantidade de peças que compõe a quota individual), dependa da produção do colega da célula. Isso torna um dependente do outro. A confecção de um produto inteiro passa pelas diversas operações de uma célula, e se determinadas partes estiverem em atraso, isso “breca” a operação seguinte. Dessa forma, a célula como um todo deixa de atingir o nível de produtividade necessário para a obtenção do prêmio ou bônus. Todos saem perdendo. Em poucas palavras, os conflitos presentes nas células giram basicamente em torno desta questão: da produtividade e do tipo de relação salarial que está associada a ela. O que já não é tão óbvio é o sentido da individualização que tal sistema de trabalho acaba acarretando na percepção dos próprios trabalhadores. A célula estimula a cobrança recíproca de resultados (que para a empresa são as “metas”), já que uma operação passa a ser “cliente” ou “fornecedora” da próxima, dentro da própria célula. No caso, se tem de haver um ajuste entre os tempos de entrega e de recebimento das peças, esse ajuste deve ser feito pelos próprios operadores. Uma sociologia da classe trabalhadora recente no Brasil deveria partir exatamente desse ponto.

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POLÍTICA E ARTE NA VERDADE E NA FICÇÃO DO TRABALHO: ELEMENTOS PARA UMA COMPARAÇÃO HISTÓRICA ENTRE O ORIENTE SOCIALISTA E O OCIDENTE CAPITALISTA * Yves Cohen Esta é uma contribuição inteiramente histórica. Busca corresponder à abertura intelectual mostrada por esta obra, em que se cruzam economia, política e cultura, em sociologia ou história. Trata-se de um estudo comparado das performances industriais do Oriente socialista e do Ocidente capitalista em meados do século XX. Sempre em perspectiva comparativa, destacarei dois pontos: de um lado, a incapacidade do sistema soviético de instaurar a organização do trabalho taylorista nas empresas e as consequências econômicas dessa incapacidade; de outro, a maneira de pensar a eficácia real dos desempenhos industriais no caso dos países socialistas e no sistema soviético1. Veremos os efeitos do governo da economia pela política e também a que ponto as imagens fixas ou animadas (fotografia, cartaz, cinema etc.) tiveram um papel extremamente importante na própria eficácia da economia. Será, portanto, uma maneira de reivindicar um entrelaçamento voluntário da história econômica e do trabalho, da história política e da história cultural. Mas não por mero gosto de interdisciplinaridade. A compreensão do que se passou no século XX depende certamente desse tipo de abordagem.

O taylorismo à soviética Os arquivos soviéticos se abriram progressivamente a partir do fim dos anos 1980. Sabíamos muito pouco até então sobre a realidade do trabalho desde a Revolução de Outubro de 1917. Em compensação, éramos fascinados pela fascinação dos bolcheviques, e em especial de Lenin, pelo tayloris*

Tradução de Carolina Pulici. (N. E.)

1

Não se leva em consideração aqui a história chinesa.

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mo. Durante muito tempo, um livro dominou as representações, ao menos na França e em alguns outros países em que era conhecido: o de Robert Linhart, Lénine, les paysans, Taylor, traduzido em 1983 no Rio de Janeiro sob o título de Lenin, os camponeses, Taylor (Marco Zero)2. O livro se baseava em textos de Lenin que evocavam Taylor e o bom uso que o socialismo poderia fazer dessa técnica nascida sob o capitalismo. Segundo Lenin, ela tinha a vantagem de ter características científicas e, portanto, de ser indiferente ao tipo de sociedade em que era aplicada. E, de fato, nos anos 1920 a União Soviética tornou-se certamente o país no mundo em que mais se tentou pôr em ação uma organização taylorista do trabalho. Era uma questão de Estado. Além do mais, a economia havia sido nacionalizada. Um ministério quase inteiro estava destinado à racionalização do Estado, mas um Estado que abrangia a administração e ao mesmo tempo a indústria, e ao qual é preciso acrescentar o próprio partido comunista, que era um imenso aparelho burocrático que não parava de crescer3. Muitas revistas se consagraram a esse esforço, assim como “institutos do trabalho” em várias cidades da URSS4. Desde então, a representação dominante da União Soviética, e depois dos países socialistas, asseverava que havia verdadeiramente introduzido o taylorismo no país. Mas a história real das experiências industriais era muito mal conhecida. Quando historiadores e sociólogos puderam pesquisar por arquivos ou trabalho de campo, o que os chocou foi justamente a ausência de taylorismo, o desrespeito sistemático dos tempos estabelecidos e, por fim, a impossibilidade de fixar normas eficazes de trabalho5. Aliás, os so2

Robert Linhart, Lénine, les paysans, Taylor (Paris, Seuil, 1976).

3

A “Rabkrin” ou Inspeção operária e camponesa. Ver E. A. Rees, State control in Soviet Russia: the rise and fall of the workers’ and peasants’ inspectorate, 1920-1934 (Londres, Macmillan, 1987).

4

Mark R. Beissinger, Scientific management, socialist discipline and Soviet power (Cambridge, Harvard University Press, 1988). Livro baseado sobretudo em fontes impressas, e não em arquivos industriais ou administrativos originais.

5

Entre os historiadores, por exemplo, Lewis H. Siegelbaum, “Soviet norm determination in theory and practice, 1917-1941”, Soviet Studies, v. 36, n. 1, 1984, p. 45-68; David R. Shearer, “The language and politics of socialist rationalization: productivity, industrial relations and the social origins of stalinism at the end of NEP”, Cahiers du Monde Russe et Soviétique, v. 32, n. 4, out.-dez. 1991, p. 581-608; Stephen Kotkin, Magnetic mountain: stalinism as a civilization (Berkeley, University of California Press, 1995).

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viéticos e os outros comunistas no poder procuraram incessantemente, através de reformas sempre relançadas, aumentar a produtividade do trabalho, mas sempre em vão (por exemplo, a reforma de Liberman na URSS dos anos 1960). Não que os operários não trabalhassem muito6. Meu argumento é que não se chegou a fazer o que se conseguia fazer no Ocidente capitalista, isto é, esquadrinhar o menor gesto de trabalho. Com efeito, a introdução do taylorismo numa empresa pela implantação de um setor de planejamento para preparar o trabalho de cada um significava uma ofensiva contra a autonomia dos operários e dos empregados em seus postos de trabalho. Cada movimento, cada deslocamento devia ser útil e eficaz, todos os que fossem inúteis eram suprimidos e cada operário e empregado devia seguir ao pé da letra uma “ficha de instrução” estabelecida pelo setor de planejamento. Hoje sabemos, graças aos estudos dos sociólogos do trabalho e também dos ergonomistas, que o trabalho prescrito, mesmo na fábrica mais estritamente taylorizada, não corresponde nunca ao trabalho real. Para realizar a norma do trabalho é sempre preciso sair dela, encontrar artimanhas que o setor de planejamento não havia previsto. Além do mais, a execução dos trabalhos é uma atividade de longa duração, em que cada um procura ganhar tempo, portanto acelerar em relação à norma prevista. Mas essa aceleração deve permanecer oculta aos olhos dos preparadores taylorianos do trabalho. Disso decorre um jogo permanente entre, de um lado, operários e empregados e, de outro, agentes do setor de planejamento. Mensurava-se nesse jogo a relação de forças entre a mão de obra e os organizadores do trabalho7. Malgrado essa distância entre norma e realidade, no conjunto, no Oeste capitalista, a disciplina dos gestos pelos tempos calculados pelos setores de planejamento avançou muito. Essa disciplina era pensada concomitantemente com os dispositivos técnicos. A busca era comum e coordenada pelas técnicas materiais (máquinas, oficinas, fábricas etc.) e pelas técnicas humanas de trabalho (disciplina, comando, controle dos gestos). Essa coordenação foi uma das forças principais da técnica de produção nos países capitalistas 6

Como mostra a experiência notável do sociólogo húngaro Miklós Haraszti, Salaire aux pièces: ouvrier dans un pays de l’Est (Paris, Seuil, 1975).

7

Pierre Rolle, “Norme et chronométrage dans le salaire au rendement”, Cahiers d’Études de l’Automation et des Sociétés Industrielles, n. 4, 1962, p. 9-38.

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e produziu efeitos muito importantes. Facilitou muito a mecanização, a automatização, a robotização e, portanto, a integração do trabalho físico com uma parte do trabalho mental em máquinas cada vez mais automáticas. A integração da gestão pela informática acelerou ainda mais o processo. Mas por que não foi possível fazer no Oriente socialista o que se fez no Ocidente capitalista? Para compreender isso, não podemos ficar apenas no nível do posto de trabalho ou da fábrica. É preciso considerar as coisas de forma mais ampla. Não podemos, do mesmo modo, permanecer nas questões técnicas da indústria. É preciso acrescentar a razão política à análise dos fenômenos econômicos e fazer uma espécie de economia geral das práticas que compare e avalie a liberdade real em diversas esferas da atividade humana. É importante identificar uma conjunção de acontecimentos na experiência dos países soviéticos. A partir de 1929 e do lançamento do primeiro plano quinquenal na URSS e, em seguida, nos países socialistas europeus, buscou-se desenvolver a indústria no mesmo momento em que as liberdades (liberdade de expressão, liberdade sindical etc.) eram completamente destruídas. Ocorre que a lógica do taylorismo, exposta pelo próprio Taylor, exige que o empregador tenha liberdade para demitir os operários e empregados que não conseguem cumprir a norma, mas, ao mesmo tempo, que esses últimos tenham a liberdade de deixar a empresa se não quiserem trabalhar sob o regime tayloriano8. Ora, se a liberdade de movimento da mão de obra não chega a ser suprimida sob o socialismo, ela é, contudo, muito limitada. E, sobretudo, a liberdade de deixar o país é completamente eliminada e permanece inteiramente sob controle político do governo. Desaparece, portanto, a primeira das liberdades, isto é, a de partir, de deixar o lugar da opressão e da exploração. Além do regime das liberdades, existe um segundo aspecto fundamental da diferença entre os países de regime soviético e os países capitalistas: os primeiros concebem sua economia contra o consumo das pessoas. A lógica de conjunto do desenvolvimento e as necessidades do Estado são sempre privilegiadas. A economia não é governada pelo desenvolvimento de um mercado de bens de consumo. E isso tem efeitos muito diretos sobre a população que trabalha, uma vez que seu consumo não faz parte dos motores da economia. 8

Frederick W. Taylor, The principles of scientific management (Nova York, Harper & Brothers, 1911).

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Se o que se busca é estabelecer uma economia geral das práticas, podemos então estudar conjuntamente os regimes de liberdade, de consumo e de trabalho. Aliás, poderíamos acrescentar outros domínios de atividade, como a proteção social, a educação etc., mas os limites desta contribuição não o permitem. Um estudo dessa monta supõe considerar e comparar todas as escalas, do micro (a disciplina do gesto e até mesmo do olhar) ao macro. Na história soviética a partir dos anos 1930, observamos: de um lado, ausência de liberdades políticas e culturais, falta de liberdade de deixar o país e consumo refreado; de outro, repetidos esforços para taylorizar, enquadrar, esquadrinhar o trabalho até o nível dos gestos e dos movimentos elementares. Ora, este último aspecto do controle dos gestos nunca obteve sucesso9. Houve numerosos conflitos nas fábricas nos quais os racionalizadores enfrentaram uma frente de operários de braços dados com a hierarquia da produção! Com efeito, o problema dos primeiros é o rendimento de cada pessoa no trabalho, mas contramestres e chefes de oficina têm outro problema: é muito difícil manter uma mão de obra mal paga e sempre prestes a partir. Eles não querem impor normas ainda mais estritas. A partir daí temos, de um lado, uma prática discursiva que consiste em dizer: nós organizamos, nós somos organizados como os norte-americanos, como nas fábricas da Ford, e, de outro, há as práticas efetivas de trabalho, em que estamos muito longe da Ford e a autonomia do gesto de trabalho é preservada justamente porque toda palavra livre é proibida e a incitação ao consumo é muito limitada. A economia geral das práticas estabelece que, numa certa duração, nem todas as atividades podem ser completamente controladas e disciplinadas. No final das contas, uma espécie de compromisso social implícito em larga escala instala-se numa certa estabilidade. O freio das liberdades e do consumo individual correspondia aos traços essenciais de um socialismo que buscava estabelecer-se no longo prazo. Esses entraves fizeram com que se mantivesse uma autonomia no nível do posto de trabalho, malgrado os discursos oficiais sobre o sucesso da organização do trabalho. Esse equilíbrio teve efeitos muito prejudiciais sobre o desenvolvimento econômico. 9

Yves Cohen, “The Soviet Fordson between the politics of Stalin and the philosophy of Ford, 1924-1932”, em Hubert Bonin, Yannick Lung e Steven Tolliday (orgs.), Ford, 1903-2003: the European history (Paris, Plage, 2003, v. 2). Baseado nos arquivos da fábrica Putilov, de Leningrado, Arquivos do Estado de São Petersburgo, fundo 1788.

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No Ocidente capitalista, em contrapartida, quando as empresas comportam um setor de planejamento, elas conseguem, pouco a pouco, ter realmente certo controle sobre os gestos do trabalho. Além do mais, tudo o que constitui o trabalho em si e seu ambiente é apreendido numa lógica integrada de otimização (máquinas, espaços das oficinas e das fábricas, modos de circulação dos objetos e das pessoas, fluidez organizada etc.) estreitamente ligada à disciplina dos gestos humanos. Isso é válido tanto para o trabalho do operário como para o dos funcionários de escritório10. Mas isso se situa em uma atmosfera política inteiramente diferente. Não que o protesto operário tenha tido toda liberdade para se exprimir. Mas, pouco a pouco, desde o fim do século XIX, os movimentos sociais obtiveram benefícios importantes. Na França, uma lei sobre as convenções coletivas foi votada em 1919, assim como sobre as formas de representação operária; depois, em 1936, a possibilidade de se organizar em sindicados dentro das empresas. O direito de greve era protegido, assim como o de deixar as empresas. Além do mais, uma das técnicas utilizadas pelos capitalistas para conservar a mão de obra de melhor qualidade é conceder aumentos de salário. Encontramos nos escritos dos organizadores reflexões sobre o fato de que aumentos salariais limitados e comedidos permitem obter ganhos de produtividade muito maiores. Os pensadores da organização dizem também que se uma greve estoura para reivindicar aumento de salários, os empregadores devem rapidamente entrar em negociação e fazer concessões, pois toda greve desse tipo termina por um compromisso. Em contrapartida, no caso de uma greve por causa da organização do trabalho, nenhuma concessão é admissível, porque o patrão deve conservar controle total sobre ela: é preciso aceitar, aqui, o risco de greve11. Ainda que o aumento do consumo seja limitado e as liberdades sejam reduzidas, ambos não são insignificantes e permitem aos especialistas em métodos de trabalho penetrar na lógica dos gestos do trabalho e reorganizá-los, instaurar uma disciplina dos movimentos que segue as instruções dadas pelos setores de planejamento (onde im10

Ver, para a França, Aimée Moutet, Les logiques de l’entreprise: la rationalisation dans l’industrie française de l’entre-deux-guerres (Paris, Éditions de l’EHESS, 1997); Delphine Gardey, La dactylographe et l’expéditionnaire: histoire des employés de bureau, 1890-1930 (Paris, Belin, 2001).

11

Ernest Mattern, Création, organisation et direction des usines (Paris, Dunod, 1925), p. 287-8.

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pera uma ciência do trabalho) e é continuamente controlada pelos agentes nas próprias oficinas. Temos aí verdadeiramente o “regime despótico da produção” de que fala o sociólogo norte-americano Michael Burawoy, e que se forma no interior das empresas e no nível dos postos de trabalho. Mas sua lógica deve ser apreendida num quadro mais amplo para permitir a comparação com o socialismo soviético tal como ele se desenvolveu e morreu no decorrer do século XX12. Os organizadores soviéticos não alcançaram essa disciplina do gesto por razões claramente políticas. A história econômica do século XX só pode ser política, portanto. E não podemos dizer, como Lewis Siegelbaum, que “o processo de trabalho tal como emergiu ao longo da industrialização soviética era essencialmente idêntico ao que se desenvolveu no mundo capitalista”13. O sistema de trabalho soviético é, do princípio ao fim, governado pela política, e não pela valorização dos produtos no mercado, o que tem consequências no processo de trabalho. Isso não significa que este seja melhor ou pior em si, mas sim que seu estudo deve recorrer a outras dimensões da vida social e política. Essa dificuldade intransponível encontrada pelo socialismo à soviética é reforçada pelos efeitos perversos e, no entanto, constantes da planificação econômica. Ao invés de organizar a economia, o plano quinquenal (ou setenial) torna-a muito caótica. Com efeito, ele não consegue prever todas as manifestações e todas as trocas. Os agentes econômicos devem adaptar-se incessantemente para conseguir realizar o plano. Mas, adaptando-se, eles saem obrigatoriamente das previsões do plano para compensar suas faltas e, por exemplo, obter tal ou tal material ou produto intermediário. Assim, essa impossibilidade de planejar todos os atos econômicos provoca numerosas rupturas dos fluxos de abastecimento. Tal ambiente de desordem, encontrado em todas as economias socialistas, é um fator suplementar que torna impossível a organização do trabalho segundo normas fiáveis e estáveis14. 12

Michael Burawoy, Manufacturing consent: changes in the labor process under monopoly capitalism (Chicago, Chicago University Press, 1979); “L’odyssée d’un ethnographe marxiste, 1975-1995”, em Anne-Marie Arborio et al. (orgs.), Observer le travail: histoire, ethnographie, approches combinées (Paris, La Découverte, 2008).

13

Lewis H. Siegelbaum, “Soviet norm determination”, cit., p. 63.

14

Coletivo Urgense, “Un taylorisme arythmique dans les économies planifiées du centre”, Critiques de l’économie politique, n. 19, mar.-jun. 1982, p. 99-146.

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O próprio stakhanovismo, que aparece em 1935, lança-se contra todo o conjunto das normas estabelecidas anteriormente (que já tinha tão pouco efeito) e o faz explodir15. Como se vê, a lógica da economia e do trabalho, até suas mais ínfimas manifestações, não é apreensível senão por uma abordagem que seja também política, pois tem relação estreita com o regime de liberdades, assim como com a política do consumo. Mas a história das economias à soviética que marcaram tão fortemente o século XX deve recorrer ainda a outra dimensão que não é familiar aos historiadores do trabalho, da economia e da política: a dimensão cultural. Com efeito, a utilização de imagens em larga escala (fotografias, cartazes, pinturas, filmes, tipografia e todas as outras formas gráficas) cumpriu um papel imenso e subestimado no modo de existência das economias socialistas.

A eficácia econômica por meio da imagem As práticas de imagem, no espaço contínuo de prescrição e ação em que se transforma progressivamente a U.R.S.S à medida que se afirma o poder stalinista, entrelaçam-se com outras práticas de governo e, em particular, com aquelas relativas à economia que já havíamos evocado. Ora, levar em consideração as imagens e seu papel permite certamente responder a uma questão dolorosa tanto para as populações submetidas ao socialismo quanto para os pesquisadores que estudam essas economias. De fato, todos se perguntam, ainda nos dias atuais, qual era a eficácia “real” da economia à soviética. A controvérsia incide sobre aquilo que é possível avaliar a posteriori. Como já se sabia há muito tempo, todos os dados são sistematicamente falsificados em todos os níveis do funcionamento econômico. Trata-se de uma necessidade que encontram os atores para se ajustar aos planos imperativos16. 15

Francesco Benvenuti, Fuoco sui sabotatori! Stachanovismo e organizzazione industriale in URSS: 1934-1938 (Roma, Valerio Levi, 1988); Lewis H. Siegelbaum, Stakhanovism and the politics of productivity in the USSR: 1935-1941 (Cambridge, Cambridge University Press, 1988).

16

Moshe Lewin, “The disappearance of planning in the plan”, Slavic Review, v. 32, jun. 1973, p. 271-87. Ver o debate entre os historiadores Steven Rosefielde, “Stalinism in post-communist perspective: new evidence on killings, forced labor and economic growth in the 1930s”, Europe-Asia Studies, v. 48, n. 6, set. 1996, p. 959-87; Mark Harrison, “Comment: Stalinism in post-communist perspective”, Europe-Asia Studies, v. 49, n. 3, maio 1997, p. 499-502.

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Algumas questões reaparecem constantemente: houve de fato crescimento industrial e, se sim, houve crescimento econômico de conjunto nos anos 1930? E se houve crescimento industrial, qual é o valor do que foi efetivamente produzido? Qual é a qualidade real dos produtos? As questões permanecem abertas, mesmo no que diz respeito à indústria militar17. Mark Harrison, um dos participantes desses debates e grande conhecedor da indústria militar reconhece, a propósito do enorme esforço de mobilização industrial na segunda metade dos anos 1930, que “o fato de saber se ela realmente teve sucesso ou se simplesmente criou a aparência de tê-lo tido não foi ainda suficientemente transformado em objeto de pesquisa”18. Ora, a aparência não poderia ser um componente ativo da eficácia e do sucesso nas condições particulares do stalinismo? No fim da Guerra Fria, viu-se que os soviéticos conseguiram enganar o mundo ocidental sobre a potência real de seu armamento, graças a um trabalho de aparências muito sofisticado em todos os planos, desde a propaganda oficial até a desinformação criada pelos serviços secretos19. A aparência não é, então, a maneira com que se apresenta e se valida uma economia que se desenvolve num mercado protegido e isolado e no qual a lógica é antes de tudo política? Sendo assim, a questão clássica sobre a eficácia “real” seria vã, a menos que esta fosse buscada na ordem política. Além do mais, os historiadores não têm nada que lhes permita “atravessar”, no contrapé, o imenso maciço de falsificações e imagens para chegar a uma hipotética representação “verdadeira”, autêntica, da eficácia econômica. E os testes de realidade foram feitos: vitória, é claro, na guerra “quente” (a guerra de 1941 a 1945), mas ao longo da qual a indústria funcionou segundo critérios inéditos, liberada das normas burocráticas do tempo de paz e com o apoio direto e maciço da indústria americana, e incontestável fracasso na Guerra Fria e em todas as outras guerras quentes, como a do Afeganistão. 17

Agradeço a Andrea Graziosi por ter partilhado comigo suas indagações sobre o assunto. Ver Andrea Graziosi, Storia dell’Unione Soviética: L’URSS de Lenin e Stalin (1914-1945); L’URSS dal trionfo al degrado (1945-1991) (Bolonha, Il Mulino, 2007 e 2008, v. 1 e 2).

18

Mark Harrison, “Soviet industry and the red army under Stalin: a military industrial complex?”, Cahiers du Monde Russe, v. 44, n. 2-3, 2003, p. 331.

19

Paul N. Edwards, The closed world: computers and the politics of discourse in cold war America (Cambridge, MIT Press, 1998).

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A economia soviética e, mais amplamente, socialista, tal como foi construída pelo stalinismo, coloca aí um grande problema. Afinal, ela não é uma economia de aparências? A avaliação da eficácia falsificada conscientemente lhe é consubstancial. Não quero dizer com isso que a trucagem reinava apenas no ambiente do comunismo no poder, mas, nesse espaço, nenhum mercado nem nenhuma guerra concorrencial impõem seu ponto de vista através de suas próprias instituições nem limitam a proliferação burocrática e a amplitude das dissimulações. Menos ainda que, em toda parte, a forma material da “aparência” não está nos produtos nem em suas qualidades validadas pela troca: está nas imagens que delas são dadas, imagens de todo tipo que são facilmente transportadas para longe. Ora, a época entre as duas guerras mundiais é marcada por uma relação muito estreita entre as artes em geral e a técnica. Importa, aos artistas da imagem, que o objeto técnico se torne o objeto privilegiado da arte. Os soviéticos estão entre os principais atores desse movimento. A fotografia, o cinema, o grafismo, mas também a pintura e até a arquitetura são os primeiros lugares em que as artes se confrontam explicitamente com as técnicas do mundo industrial. O embaraço da escolha está nas formulações: assim, Alexandre Rodtchenko, o mais inventivo dos artistas construtivistas, escreve em 1921 que “todas as novas abordagens artísticas provêm da tecnologia e da engenharia”. Ainda em 1931, outro construtivista, o arquiteto Iakov Tchernikhov, escreve: “Antigamente, a máquina era considerada profundamente estranha à arte e as formas mecânicas eram excluídas do domínio da beleza enquanto tal [...]. Pela primeira vez na história da humanidade, somos capazes de unir os princípios da produção mecânica e os estímulos da criação artística”20. A partir desses princípios, ele criou uma verdadeira disciplina gráfica. A circulação e as trocas com os países ocidentais da Europa e os Estados Unidos não deixam de ter seu papel nessa apoteose artística do objeto técnico. Em 1920, Lev Kulechov, cineasta e teórico do cinema, pensa o americanismo nos mesmos termos que numerosos artistas ocidentais: o americanismo na arte significa uma simplificação que deve se basear na representação de processos mecânicos e não da natureza. A natureza é muito complexa: é mais fácil mostrar uma ponte que uma paisagem de outono com uma caba20

Ambos citados por Alan M Ball, Imagining America: influence and images in twentieth-century Russia (Lanham, Rowman & Littlefield, 2003), p. 35.

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na em ruínas, algumas nuvens e um lago nos arredores. O material que seria próprio do cinema como arte, segundo Kulechov, é a técnica. O modelo desse material artístico seria um processo industrial que, além do mais, fosse filmado com operários autênticos e não com atores. Durante os anos 1920, no cinema soviético, as locomotivas, os tratores, as fábricas, as barragens, os aviões, o concreto, o telégrafo e, sobretudo, o telefone tornam-se verdadeiras estrelas, estrelas materiais. Esses “objetos-atores” constituem um tema da teorização cinematográfica que muito se beneficiou da circulação internacional dos filmes. Foi pensando nos objetos nos filmes de Chaplin e, ainda, numa cena de Intolerância* (em que um cigarro ocupa toda a tela) que Kulechov escreveu, em 1920, em La bannière du cinématographe [A bandeira do cinematógrafo], que os objetos “atuam... exatamente como um comediante”: “Graças a uma hábil montagem, um comediante ou um objeto podem ter um valor equivalente”21. A montagem é a principal técnica utilizada para dar toda sua força estética aos objetos técnicos, mas não menos importante é o grande plano que permite saturar a imagem. Se tivéssemos de pensar nos termos da “reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin, obteríamos uma acumulação de técnicas22. Existem obras reproduzidas, mas, nesse espaço estético, as obras em questão não são quadros renascentistas, barrocos ou impressionistas, são objetos técnicos. Além disso, pode-se dizer que a própria reprodutibilidade técnica realiza-se através de duas práticas técnicas: as imagens são apreendidas por um aparelho mecânico (máquina fotográfica ou câmera de cinema) e depois multiplicadas mecanicamente por procedimentos industriais, seja para fazer cópias de filmes, seja para imprimir fotografias ou cartazes em dezenas de milhares de *

D. W. Griffith, 1919, 178 min.

21

Lev Kulechov, Sobranie sočinenij v treh tomah. 1. Teoria, kritika, pedagogika (Moscou, Iskusstvo, 1987), p. 80. A tradução é de Valérie Pozner, a quem agradeço por ter me introduzido nessa literatura. Em L’art du cinéma et autres écrits (Lausanne, L’Âge d’homme, 1994), p. 53 e notas, o texto utiliza o termo “modelo” em vez de “comediante”; preferi utilizar diretamente o último termo. Ver também, sobre esse tema preciso, a muito estimulante comunicação inédita de François Albera, L’Ob-jeu (Udine, International Film Studies Conference, 2001).

22

Walter Benjamin, “L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée”, em Écrits français (Paris, Gallimard, 2003). [Ed. bras.: “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica – primeira versão”, em Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a cultura, São Paulo, Brasiliense, 1987.]

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exemplares. Temos assim três técnicas, o objeto, sua apreensão e sua multiplicação, às quais podemos acrescentar uma quarta: a técnica política. Essas imagens são, portanto, quadruplamente técnicas. Dito de outra forma, elas não se limitam a uma manifestação artística, a uma intensificação dos efeitos da arte pela técnica, posto que a utilização artística das imagens dos objetos técnicos se torna uma arma política. Walter Benjamin havia observado esse fenômeno em seu ensaio. De um lado, ele nota que “pouco a pouco, a necessidade de tomar posse imediata do objeto na imagem – e, mais ainda, em sua reprodução – afirma-se mais irresistível”23. A tese do autor é que a reprodução mecanizada enfraquece a original e abala sua autoridade. É a época em que a imagem mecânica testemunha a realidade. A autoridade se transfere para a imagem fotográfica reproduzida em grandes tiragens (“politécnica”, como ele diz) e deixa o original. Para a indústria soviética, isso significa que é inútil ir até lá para ver com os próprios olhos, porque a fotografia mostra, à distância, o sucesso industrial (e a felicidade operária). Por outro lado, tendo como consequência, segundo Benjamin, que a partir do instante em que o critério de autenticidade deixa de ser aplicável à produção artística, o conjunto da função social da arte se encontra invertido. Seu fundo ritual deve ser substituído por um fundo constituído por outra prática: a política.24

E justamente 1930, que é o início da economia planificada, vê o surgimento de uma revista verdadeiramente emblemática que se chama U.R.S.S. em construção25, criada por ninguém menos que Máximo Gorki. Destinada a mostrar os progressos do socialismo, a revista nasce do desejo perfeitamente explícito de tornar mais “visível” o que é “bom”. E, para isso, faz-se uso de fotografias. U.R.S.S. em construção é inteiramente composta de fotografias. Seus únicos textos são o editorial e as legendas. Os construtivistas investem na revista. El Lissitzki e Rodtchenko estão entre seus mais célebres editores, ocupando-se inteiramente de numerosos exemplares. A revista tem edições em russo e em línguas estrangeiras (inglês, francês, alemão e 23

Ibidem, p. 183.

24

Ibidem, p. 186.

25

O essencial das informações desse parágrafo vem do artigo de Erika Wolf, “When photographs speak, to whom do they talk? The origins and audience of ‘SSSR na stroike’ (USSR in construction)”, Left History, v. 6, n. 2, 2000, p. 53-82.

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espanhol). Só a edição russa atinge, no fim dos anos 1930, tiragens superiores a 70 mil exemplares. O público visado é o soviético (na verdade, cada vez mais, as elites soviéticas, às quais é destinada uma edição de luxo, a partir de 1934) e o público estrangeiro favorável à experiência soviética ou composto de parceiros de sua construção econômica e industrial. A imagem tem fins inteiramente políticos. Trata-se de utilizar a objetividade da fotografia para contradizer as “mentiras” dos inimigos da União Soviética sobre o sucesso de sua construção. Gorki escreve: A fotografia e o cinema são plenamente capazes de apresentar graficamente e de forma concisa a enorme extensão do trabalho de construção realizado pelo proletariado no país dos sovietes [...]. A fotografia deve também se dedicar ao serviço de construção não aleatoriamente, sem organização, mas, sistemática e constantemente.26

Ora, a fotografia é a pintura feita pelo sol (svetopis’), acrescenta Gorki, e “não se acusa o sol de distorções, o sol ilumina o que existe tal como existe”27. Estamos, aqui, inteiramente numa cultura da objetividade fotográfica. Essa cultura é universalmente partilhada nessa época. A política pela imagem se funda nesses valores comuns da época moderna. Tanto quanto o próprio original, senão até mais, a fotografia diz a verdade, não engana. Os editores da revista enviam números gratuitamente a um grande número de interlocutores da União Soviética nas relações internacionais. Pedem expressamente respostas e os destinatários as enviam. Eis apenas um de seus ecos, o de um deputado britânico, conselheiro do governo soviético, que escreve: “Eu vos felicito pelo primeiro número da U.R.S.S. em construção. Um de seus méritos é seu caráter absolutamente objetivo. Desnecessário dizer que farei tudo para que seja vista pelo maior número de pessoas”28. Essa política da imagem não deve ser compreendida apenas como boa propaganda. Há algo mais profundo: trata-se de governo. É ao mesmo tempo, e plenamente, um modo de gestão da esfera pública, numa concepção bem mais vasta que a propaganda e – eis o ponto em que quero tocar – sim26

Ibidem, p. 61.

27

Idem.

28

Ibidem, p. 66.

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plesmente um modo de gestão da própria economia29. Em primeiro lugar, estamos tratando do governo pela esfera pública, em escala mundial e de maneira direta: é justamente porque a revista não passa pelos partidos comunistas nem pela Internacional, mas por órgãos governamentais, que há gestão da esfera pública. O mesmo material é destinado a todos. Além do mais, a circularidade é organizada: a força da imagem reproduzida dos objetos técnicos, cujo princípio é tomado do Ocidente capitalista, reaparece neste em eco para provar a força de seu amigo-inimigo comunista; em seguida, o eco reaparece por sua vez na União Soviética para provar a todos e aos próprios dirigentes a força da construção industrial, graças às atestações recolhidas de longe. A imagem dá sua contribuição à eficácia da indústria, e trata-se exatamente de sua eficácia real: o líder soviético conta com a imagem para causar um efeito sobre o Ocidente, efeito que é usado no interior do país para formar a opinião dos soviéticos sobre o que eles próprios fazem e constroem! O todo fornece à elite soviética dos anos 1930 “uma imagem da sociedade soviética e da industrialização que sustenta seu sentimento de domínio e dominação [leadership]”30, como aponta com propriedade Erika Wolf. Para voltar a nossa proposição sobre os desempenhos econômicos, podemos dizer que não há outro regime de eficácia, outra prova dela que não sejam essas representações em larga escala (pela fotografia em U.R.S.S. em construção, mas também pelo cinema em numerosos filmes dos anos 1930)31 – ao menos enquanto a guerra não estiver lá para impor a competição em um outro campo que não o da política: o campo de batalha. 29

Gabor T. Rittersporn, Malte Rolf e Jan C. Behrends (orgs.), Sphären von Öffentlichkeit in Gesellschaften sowjetischen Typs: Zwischen partei-staatlicher Selbstinszenierung und Gegenwelten (Berna, Peter Lang, 2003).

30

Erika Wolf, “When photographs speak, to whom do they talk?, cit., p. 61.

31

Assim, em 1940, em A via luminosa – filme de Grigori Aleksandrov, discípulo de Eisenstein que foi enviado a Hollywood no fim dos anos 1920 para aprender a arte do filme de massa e em particular do musical –, a vedete Liubov’ Orlova, grande estrela dos tempos stalinianos, é mostrada em imagens-choque como uma stakhanovista que opera sozinha 8 teares, depois 16 e por fim 32: todos os procedimentos da imagem fordiana das máquinas alinhadas e repetidas são aí mobilizados. Ver Bernard Eisenschitz (org.), Gels et dégels: une autre histoire du cinéma soviétique, 1926-1968 (Paris/ Milão, Centre Georges Pompidou/ Mazzotta, 2002), p. 37 e 122; Annabelle Creissel e Kristian Feigelson, “Ford, fordisme et stalinisme (1935)”, Théorème, n. 8, 2005, p. 73-82.

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Nós não estamos na idade da técnica, mas da quádrupla técnica, da politécnica. O tipógrafo construtivista de uma revista impressa em dezenas de milhares de exemplares utiliza as fotografias construtivistas das fábricas de arquitetura construtivista. Ou, ainda, a técnica política se fortalece através da reprodução mecanizada das imagens fotográficas dos objetos técnicos e da produção. O quarto nível, aquele da técnica política, é especificamente soviético: é o que a União Soviética acrescenta no processo de circulação transnacional da estética do objeto técnico. A autoridade dos efeitos calculados das imagens fixas ou animadas foi extremamente durável em seu tempo, se é que não se prolonga até mesmo na Rússia putiniana. Esse efeito e essa autoridade foram não apenas duráveis como amplamente difundidos no mundo em que talvez não tenham ainda deixado de agir. Contribuíram fortemente para construir a ficção discursiva e estética por trás da qual se desenvolvia a realidade dos países socialistas. Essa ficção eficaz (que é de ordem ao mesmo tempo cultural, econômica e política) é talvez um dos fenômenos mais importantes do século XX.

Considerações finais Vimos que toda a economia dos países de sistema soviético se valida antes e prioritariamente na política. Em consequência, as imagens e as artes de forma mais geral têm um papel político direto, aquele de assegurar a vitória da política, inclusive sobre a economia. Se o estudo da economia é político, também é cultural e, reciprocamente, o estudo da cultura é político e também, é claro, econômico. As artes se ligaram aqui à economia e à política de forma indissolúvel. No século XX existiram no mundo zonas preservadas e separadas do mercado internacional cuja economia deveria emitir uma mensagem política. Mas essa mensagem estava de antemão enfraquecida, pois a incapacidade de dominar o trabalho humano, assim como outros fenômenos ligados aos regimes das técnicas, afetava cada vez mais a saúde da economia. O governo político da economia – acompanhado de uma fortíssima restrição das liberdades públicas e da dominação absoluta das necessidades do Estado sobre as dos indivíduos – impediu a instalação de uma economia viável no longo prazo. Hoje, todos os mercados estão interconectados. As zonas isoladas do mercado geral se tornaram muito limitadas. O trabalho é distribuído em

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escala mundial. As velhas metrópoles industriais afastam delas e relegam para o outro lado do mundo as formas de trabalho mais duras. Entre elas, o taylorismo é cada vez mais incorporado às máquinas e o trabalho se assenta bem menos no puro esforço físico. A forma dos vínculos entre economia, trabalho, política e cultura certamente mudaram, mas com certeza é trabalho dos sociólogos, mais que dos historiadores, compreender tais mudanças.

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CAPITALISMO FINANCEIRO, ESTADO DE EMERGÊNCIA ECONÔMICO E HEGEMONIA ÀS AVESSAS NO BRASIL Leda Maria Paulani Abraçando a interpretação segundo a qual o capitalismo de hoje é presidido pela lógica e pelos imperativos da valorização financeira1, procura-se no presente artigo mostrar: 1) a decretação no Brasil, desde o início dos anos 1990, de uma espécie de “estado de emergência econômico”, o qual tem possibilitado a adoção de todas as medidas prescritas pelo receituário ortodoxo; 2) a decretação definitiva desse estado de emergência pela ascensão de Lula ao poder em 2003, bem como sua combinação com aquilo que Oliveira2 denominou “hegemonia às avessas”; e 3) a relação entre essa combinação peculiar e a forma de operação do capitalismo financeirizado na periferia do sistema. Parte-se da ideia de que o capitalismo financeiro que hoje predomina em escala mundial é o avesso do mercado, da concorrência, do risco capitalista e da ausência do Estado. Sendo assim, a reprodução em escala ampliada do capital passa hoje, tal como nos momentos iniciais do capitalismo, por um estreitamento das relações entre poder e dinheiro, uma vez que o sistema é marcado pela discricionariedade, pelo compadrio e pelo privilégio3. Mas ao contrário dessa época em que predominava o discurso mercantilista, a doutrina hoje prevalecente é a neoliberal4 e são difundidas as virtudes

1

François Chesnais, A mundialização financeira (São Paulo, Xamã, 1998); idem A finança mundializada (São Paulo, Boitempo, 2005).

2

Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

3

David Harvey, O novo imperialismo (São Paulo, Loyola, 2004). Paulo E. Arantes, “Um retorno à acumulação primitiva: a viagem redonda do capitalismo de acesso”, Reportagem, jul. 2005.

4

Leda M. Paulani e Christy G. Pato, “Investimentos e servidão financeira: o Brasil do último quarto de século”, em João Antonio de Paula (org.), Adeus ao desenvolvimento (Belo Horizonte, Autêntica, 2005).

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da concorrência, da competitividade e da eficiência. Não é fácil compatibilizar, de um lado, o capitalismo rentista com seu conjunto de práticas discriminatórias e seu permanente e concreto açambarcamento da riqueza social por uma aristocracia capitalista privilegiada e bem postada no Estado e junto a ele e, de outro, esse discurso globalizante, que faz do mercado o demiurgo. Essa dificuldade é particularmente maior na periferia do sistema, em especial no caso do Brasil, despertado para o sonho do desenvolvimento nos anos 1950 e 1960. A decretação do estado de emergência5 no plano econômico e, principalmente, sua combinação com o processo de hegemonia às avessas que experimentamos desde 2003 parecem estar sendo aí a única forma de promover essa conciliação e de, num ambiente de estabilidade política formal, trocar a perspectiva do desenvolvimento soberano pelo papel subalterno de plataforma internacional de valorização financeira6.

Estado de sítio, estado de exceção permanente e estado de emergência econômico No dicionário organizado por Norberto Bobbio, consta o seguinte, no verbete estado de sítio, assinado por Carlo Baldi: Com a expressão “estado de sítio” se quer geralmente indicar um regime jurídico excepcional a que uma comunidade territorial é temporariamente sujeita, em razão de uma situação de perigo para a ordem pública, criado por determinação da autoridade estatal ao atribuir poderes extraordinários às autoridades públicas e ao estabelecer as adequadas restrições às liberdades dos cidadãos.7

O termo pertence, portanto, à esfera da política e tem a ver com a relação entre os cidadãos e seus direitos civis e o controle disso pela autoridade pública, ou seja, pelo Estado. Nessa forma simplória escolhida pelo autor do verbete para dar conta do termo, “estado de sítio” designa uma situação em que os direitos “normais” (aqueles do “estado de direito”) não podem ser garantidos aos cidadãos, porque a comunidade, ou seja, a sociedade, encontra-se sob a ameaça de algum risco iminente (invasão, guerra ou endemia). Nessa perspectiva, poder-se-ia construir uma taxonomia que 5

Giorgio Agamben, Estado de exceção (São Paulo, Boitempo, 2004).

6

Leda M. Paulani e Christy G. Pato, “Investimentos e servidão financeira: o Brasil do último quarto de século”, cit.

7

N. Bobbio, N. Matteucci e G. Pasquino, Dicionário de política (5. ed., Brasília/ São Paulo, UnB/ Imprensa Oficial de São Paulo, 2000).

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conteria duas modalidades de “tempo político”: “tempo de normalidade”, em que todos os direitos constitucionais estão garantidos, e “tempo de exceção”, em que essa garantia não existe, total ou parcialmente. Assim colocada a questão, parece uma conclusão óbvia que “tempo de exceção” é mesmo o que o nome diz, uma “exceção”, ou seja, uma situação “temporária”, um período breve, que deve terminar tão logo tenha se afastado sua “necessidade”, ou seja, a iminência do risco “social” que supostamente o produziu. Mas a coisa é mais complicada do que parece. Segundo Agamben8, a origem do instituto do “estado de sítio” encontra-se no decreto de 8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte Francesa, que distinguia entre état de paix, em que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria esfera, état de guerre, em que a autoridade civil tem de agir em consonância com a autoridade militar, e état de siège, em que a autoridade militar assume o comando de todas as funções de que a autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da polícia internas. O “estado de sítio” nasce, portanto, vinculado à questão da existência da guerra e das consequências dessa situação para a organização social. Não por acaso, esse decreto inicial referia-se somente às praças-fortes e aos portos militares. Ainda segundo Agamben, a partir daí o “estado de sítio” vai progressivamente se emancipando de sua relação com a situação de guerra para assumir a feição de medidas extraordinárias, passíveis de adoção pelas autoridades em casos de desordens e sedições internas9. É cerca de sessenta anos depois, no mesmo palco francês da história, que essa feição se consagra, ao mesmo tempo que se torna explícita a contradição que constitui o termo. Como lembra Arantes10, Marx retratou muito bem em O 18 de brumário* as condições sob as quais foram promulgadas as leis francesas de 1849 sobre o “estado de sítio”. As jornadas de fevereiro de 1848 e a república social que elas engendraram, sob o patrocínio do proletariado francês, depois da queda de Luís Felipe, produziram um reagrupamento das velhas forças da sociedade que culminaram naquilo que Marx chama de “período da Constituição da República” ou da “Assembleia Nacional Constituinte”. Come8

Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 16.

9

Idem.

10

Paulo E. Arantes, “Estado de sítio”, em Isabel Loureiro et al. (orgs.), O espírito de Porto Alegre (São Paulo, Paz e Terra, 2002).

*

São Paulo, Boitempo, no prelo. (N. E.)

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çando em 4 de maio de 1848 e terminando em 29 de maio de 1849, é esse o período de constituição e de fundação da república burguesa e é aí que não só se consolida a ideia de um “estado de sítio político” (por contraposição ao “estado de sítio militar” anterior), como se explicita seu caráter paradoxal. Na exposição de motivos da lei de 1849 que o institui, lê-se que as medidas excepcionais devem ser sempre determinadas por lei, “prestando-lhe assim homenagem no momento mesmo de suspendê-la”11. Ora, se a suspensão da lei é vista como uma homenagem a ela e, portanto, também como lei, embaralha-se logo de partida a cândida distinção entre tempo de normalidade e tempo de exceção. É inescapável, por isso, a constatação da natureza dialética do “estado de sítio” e do “tempo de exceção”, que ele inevitavelmente produz: trata-se de legalizar a suspensão da legalidade, tornar um direito a suspensão dos direitos, tornar regra a exceção12. Esse caráter não é estranho ao fato de o “estado de sítio” ter nascido nas condições históricas em que nasceu, muito ao contrário. Acompanhemos, mais uma vez, Arantes: A estreia burlesca do poder político burguês puro deu-se, portanto, à sombra desse prodigioso achado institucional, graças ao qual se codifica a exceção à norma legal. Reconstituindo a repetição farsesca do 18 Brumário original, Marx fez assim a crônica desse nascimento conjunto da exceção e da regra, dando a entender, à vista do roteiro que culmina num golpe providencial destinado a livrar de uma vez por todas a sociedade burguesa da preocupação de governar-se a si mesma, que o Estado de Direito dos sonhos de seus demiurgos estaria condenado a viver sob um regime de exceção permanente. Isto é, normal.13

Essa conclusão (a de uma exceção que adquire caráter permanente) é semelhante à de Agamben, que, trabalhando em chave distinta, alerta para a constituição, ao longo do século XX, do fenômeno paradoxal da “guerra civil legal”, do qual o Estado nazista foi exemplo paradigmático. Logo que tomou o poder, em 1933, Hitler promulgou, no dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Cons11

A informação está em Paulo E. Arantes, “Estado de sítio”, cit., p. 52.

12

Em linha com essa interpretação, Bercovici, estudando Carl Schmitt e lembrando Agamben, afirma que o estado de exceção é uma “força de lei sem lei” e que, sob ele, o Estado “suspende o direito em virtude de um direito de autoconservação” (Gilberto Bercovici, Constituição e estado de exceção permanente, Rio de Janeiro, Azougue, 2004, p. 67).

13

Paulo E. Arantes, “Estado de sítio”, cit., p. 52.

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tituição de Weimar relativos às liberdades individuais. Como o decreto nunca foi revogado, o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, um estado de exceção que durou doze anos. Para Agamben, o totalitarismo moderno pode então ser definido como a instauração, por meio do estado de exceção, “de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”14. Sua conclusão é que, “desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”15. A indistinção entre norma e exceção, que faz parte, como vimos, da história desse “achado institucional prodigioso”, é um traço que se repete nos outros termos que conformam sua constituição. O que vimos até aqui já é suficiente para mostrar, por exemplo, que assim como podemos falar de uma “exceção normal”, também podemos falar de um “caráter temporário permanente” ou, de forma ainda mais contraditória, de um “período de tempo permanente”. Mas é a forma de considerar a “necessidade”, implícita na ideia de que o “estado de exceção” é um recurso de última instância ao qual se recorre em caso de precisão extrema (porque afinal a “sociedade” corre risco), que possibilita vislumbrar a dimensão da contradição que temos pela frente, e é também a reflexão em torno dela que nos mostra de que forma um expediente que nasce na esfera da política e sob o signo da guerra vai parar na esfera stricto sensu econômica e tem vigência em tempos de “paz”. Agamben, que mais uma vez acompanhamos, lembra que o conhecido princípio segundo o qual “a necessidade não tem lei” (necessitas legem non habet), mais do que fazer da necessidade algo que torna lícito o ilícito, faz com que ela atue como justificativa para a transgressão. Assim, uma “teoria da exceção” passa inexoravelmente por uma “teoria da necessidade”. Mas enquanto nos antigos pensadores – Graciano, são Tomás de Aquino – a necessidade é algo que possibilita a tomada de decisão para além do determi14

Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 12.

15

Idem. Veremos mais adiante que, particularmente no caso do estado de emergência econômico, sua declaração “técnica”, ou seja, seu enquadramento como um estado em que está presente formalmente a abolição provisória da distinção entre os poderes, é de fato o que menos importa.

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nado pelas leis, nos modernos o estado de necessidade tende a ser incluído na ordem jurídica e a apresentar-se como o verdadeiro “estado” da lei. O princípio de que a necessidade define uma situação particular em que a lei perde sua vis obligandi transforma-se naquele em que a necessidade constitui, por assim dizer, o fundamento último e a própria fonte da lei16. Nessa linha, Agamben cita, por exemplo, o jurista Santi Romano, que, segundo ele, exerceu grande influência sobre o pensamento jurídico europeu no entre guerras. Para Romano, “se não há lei, a necessidade faz a lei [...] o que significa que ela mesma constitui uma verdadeira fonte de direito. Pode-se dizer que a necessidade é a fonte primária e originária do direito...”17. Assim, a necessidade, percebida em princípio como um locus sem lei, já que aí as regras não valem e a lei perde sua obrigatoriedade, transita para seu contrário, um locus que constitui a própria fonte da lei. É a ideia de que a necessidade faz a lei ou, de modo ainda mais radical, de que ela “é a fonte primária e originária do direito”, que está por trás do deslocamento do estado de exceção de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo. Seu laboratório, segundo Agamben, foi a Primeira Guerra Mundial, ocasião em que, em vários Estados europeus, foram sistematicamente ampliados os poderes governamentais e foram promulgadas leis de plenos poderes. De fato, lembra ele, “a progressiva erosão dos poderes legislativos do Parlamento que hoje se limita, com frequência, a ratificar disposições promulgadas pelo Executivo sob a forma de decretos com força de lei, tornou-se desde então uma prática comum”18. Mas se em seu nascedouro a transformação do estado de exceção em paradigma de governo ainda está sob a égide da guerra e vinculada, portanto, 16

Ibidem, p. 43.

17

Santi Romano, citado por Giorgio Agamben, idem, p. 44. O pensamento conservador de Carl Schmitt chega, não por acaso, a conclusões análogas às de Romano no que tange à relação entre exceção e ordem jurídica. Segundo Bercovici, para Schmitt, a exceção não pode se manifestar no limite do direito (Constituição e estado de exceção permanente, cit., p. 66). Ao contrário, é só ela, a exceção, que permite que se chegue à essência do direito, já que é ela que revela o fundamento da ordem jurídica, portanto, da normatividade. Isso se relaciona a sua concepção de que o Estado pressupõe o político e à indistinção que ele vê entre direito e política. Daí sua afirmação de que o político não se manifesta visivelmente em situações de normalidade, mas apenas nos momentos de exceção (ibidem, p. 71) e daí também sua célebre frase, segundo a qual “soberano é quem decide sobre o Estado de exceção”.

18

Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 19.

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de alguma forma, a uma situação específica, a crise dos anos 1930 vai terminar o serviço. Assumo sem hesitar o comando do grande exército de nosso povo para conduzir, com disciplina, o ataque a nossos problemas comuns [...]. Pedirei ao Congresso o único instrumento que me resta para enfrentar a crise: amplos poderes executivos para travar uma guerra contra a emergência, poderes tão amplos quanto os que me seriam atribuídos se fôssemos invadidos por um inimigo externo.19

Essas palavras, lembradas por Agamben, foram pronunciadas por Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, e culminaram no National Recovery Act, de 1933, que lhe delegou um poder ilimitado de regulamentação e controle sobre todos os aspectos da vida econômica do país. Segundo o mesmo Agamben, o paralelismo entre emergência militar e emergência econômica, patente no discurso de Roosevelt, é um traço que vai caracterizar a política durante todo o século XX. E, mais uma vez, dialeticamente, o estado de exceção, que deriva da necessidade de se declarar uma “guerra à emergência”, nesse caso, à emergência econômica, vai atuar, no mais das vezes, não para solucionar a emergência que supostamente o engendrou, mas para produzir uma situação em que a emergência se torne a regra e em que não se consiga mais distinguir um estado do outro. A história brasileira, desde a crise do início dos anos 1980, em particular depois da queda da ditadura militar e do estado de exceção jurídico que ela protagonizou, é um exemplo paradigmático de surgimento de um estado de emergência econômico e das diatribes dos governos democráticos que então assumiram o poder, em especial o de Lula e a hegemonia às avessas que ele patrocina, para transformar em regra a emergência, fazendo da exceção o paradigma de governo. Essa história não é estranha à trajetória que percorre, desde então, o capitalismo como sistema-mundo, nem à forma de sua operação na periferia do sistema. Muito ao contrário, elas estão diretamente correlacionadas. Investiguemos inicialmente a história brasileira para, em seguida, mostrarmos de que modo se dá essa vinculação.

Estado de emergência econômico no Brasil: de Collor a FHC De um ponto de vista puramente formal, pode-se colocar o início da história do estado de emergência econômico no Brasil nos planos de estabi19

Franklin Delano Roosevelt, citado por Giorgio Agamben, ibidem, p. 37; grifo meu.

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lização monetária, que se iniciaram com o Plano Cruzado, em 198620. E isso por duas razões fundamentais: porque desponta aí a necessidade de salvar o país da anomia econômica que uma hiperinflação inevitavelmente produziria, e porque esses planos, por sua própria natureza, não eram passíveis de serem aprovados publicamente pelo Congresso, sob pena de comprometer completamente os resultados pretendidos. Detenhamo-nos um pouco nessas duas razões. No início do primeiro governo civil pós-ditadura, o cenário era, a despeito da morte de Tancredo Neves, de otimismo para com o futuro, uma vez que a sociedade, depois de vinte anos, parecia voltar a conduzir seu destino com suas próprias mãos. Apesar de liberto da tutela militar, o país sofria os reveses da crise econômica iniciada ao fim dos anos 1970, com especial destaque para a exacerbação do processo inflacionário. Essa história é bem conhecida, mas cabe relembrar seus principais ingredientes. Como se sabe, diante da crise mundial gerada pelo choque do petróleo e dos insumos básicos que eclode no fim de 1973, o governo do general Ernesto Geisel opta pela continuidade do crescimento, com aumento do endividamento externo. Prestou com isso um grande serviço aos capitais líquidos, que já se acumulavam nas praças financeiras do mundo, em busca de tomadores. Mas não se pode reduzir a essa causa a referida opção (que se contrapunha à outra, de frear o crescimento), já que essa decisão foi tomada sob a égide do projeto de “Brasil potência”, que o Exército brasileiro empunhou desde o momento em que patrocinou o “salvamento” do país da “anarquia esquerdista” do início dos anos 1960. Concretamente, essa decisão se objetivou na elaboração do II PND, um plano de desenvolvimento industrial e de infraestrutura que visava, pelo aumento da produção de insumos básicos e de bens de capital, tornar o Brasil menos vulnerável a crises como a então experimentada. Apesar da megalomania característica dos programas militares, e visível em projetos malogrados como a ferrovia do aço e as usinas nucleares, o II PND foi, do ponto de vista estritamente econômico, relativamente bem-sucedido, pois completou a matriz interindustrial brasileira e mudou, de forma substantiva, os resultados da balança comercial e o perfil de nossa pauta 20

Mais à frente se explicará por que estamos afirmando que esse ponto de partida pode ser colocado aí apenas de um ponto de vista formal.

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de exportações e importações21. Contudo, a elevação dos juros americanos e o segundo choque do petróleo, ocorridos em 1979, combinados com o enorme aumento da dívida externa que estava possibilitando a realização dos projetos do II PND, inviabilizaram a capacidade de o país continuar a honrar seus compromissos em moeda forte, além de fazer a inflação saltar da esfera dos 40% anuais em 1978 para a esfera dos 100% em 1980. A crise econômica, materializada na queda do PIB e no aumento do desemprego, foi a consequência lógica desse processo, mas o salto da inflação para esfera dos 200% ao ano a partir de 1983 parecia, ao primeiro governo civil, o inimigo maior a ser inicialmente atacado, pois, antes de mais nada, era preciso salvar o país da ameaça da hiperinflação. Como o processo formal de indexação, que havia algum tempo já se alastrara da esfera dos ativos para a esfera das rendas, inviabilizava por completo a aplicação de qualquer tipo de receita ortodoxa para resolver o problema, os economistas foram instados a pensar em formas alternativas22. A primeira experiência heterodoxa baseada no congelamento de preços, redução dos salários à média, fim da indexação e reforma monetária foi o Plano Cruzado, promulgado em 28 de fevereiro de 1986 e adotado, como não podia deixar de ser, sob a forma de decreto-lei. Antecipar o congelamento dos preços, a nova paridade cambial e o fim da indexação provocaria inevitavelmente uma corrida de reajustes que faria o contrário do que se pretendia, pois produziria de instantâneo a hiperinflação, da qual se queria justamente fugir. Graças, em parte, a seu ineditismo, o Plano Cruzado teve relativo sucesso em seu início. No entanto, colapsou dez meses depois. A inadequabilidade do congelamento como instrumento de controle monetário em face do processo de indexação então existente, a explosão de crescimento que o Plano produziu e sobretudo a escassez de divisas com que se iniciou (as reservas brasileiras na época não passavam de 11 bilhões de dólares) determinaram seu fracasso. A partir de então, uma série de planos heterodoxos foram intentados, todos adotados por decreto-lei e entremeados por períodos de renitentes e igualmente malfadadas tentativas ortodoxas de esta21

Ver a esse respeito a clássica interpretação de Castro sobre o período, em Antônio B. Castro e Francisco E. P. Souza, A economia brasileira em marcha forçada (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985).

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Eis porque naquela época, apesar dos renitentes de sempre, a maior parte dos economistas acabou por se tornar “heterodoxa”.

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bilização. Foi só com o Plano Real, iniciado oito anos depois dessa primeira tentativa, que o problema da inflação encontrou uma solução. Afirmei acima que apenas formalmente o ponto de partida do estado de emergência econômico no Brasil pode ser colocado na edição do Plano Cruzado, em fevereiro de 1986. Cabe agora explicar o porquê dessa consideração. Ocorre que, apesar do equívoco quanto à ameaça de a variação de preços desandar em hiperinflação23, havia de fato, naquela época, um incômodo enorme com a dimensão alcançada pelas taxas de inflação, que vinham atingindo cifras inéditas na história do Brasil. Além do mais, é sabido que, mantido o nível de emprego, os maiores prejudicados com o descontrole inflacionário são as classes de renda mais baixa, já que são as que têm menos possibilidade de fugir de um “ativo obrigatório” que se desvaloriza dia a dia. Como parecia de fato haver uma ameaça real de desorganização das cadeias de produção e da vida material do país, além do prejuízo imposto às classes mais baixas, qualquer solução era admitida, mesmo que se infringisse as regras jurídicas e de ordenação dos poderes. Considerando que, a partir de um certo momento, ficou claro que só uma política heterodoxa poderia resolver o problema, o fato de ter de tomá-la sob a forma da edição de decretos-lei apareceu como uma questão menor. Além do mais, tirar da frente o monstro inflacionário parecia ser a condição sine qua non para que o novo poder civil se consolidasse. Veremos mais adiante que essas condições não se repetem a partir dos anos 1990. Mas retomemos o fio da história. O colapso do Plano Cruzado não apenas deixou pendente de resolução o problema inflacionário, como produziu um outro, de ampla magnitude. Dada a enorme queda das já reduzidas reservas do país, que se deveu ao sucesso do Cruzado como instrumento de recuperação do crescimento e a seu insucesso como plano de estabilização monetária, o presidente Sarney declara a moratória em 1987, a qual inviabiliza por um bom tempo o equilíbrio das contas externas brasileiras. O resultado só não foi pior graças aos excelentes resultados em termos de balança comercial e de conta corrente que os frutos do II PND ainda permitiam produzir. 23

O equívoco decorreu justamente da não percepção de que o sistema brasileiro de indexação, ao colocar um piso para as variações de preço, funcionava também como uma forma de refrear seu movimento descontrolado para cima. Mas é evidente que isso não tornava menos necessária a solução do problema.

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Tudo isso foi conformando um quadro em que a política desenvolvimentista, da qual os governos militares foram, a sua moda, uma continuação e a qual o primeiro governo civil também seguia24, começou a ser duramente atacada. Isso abriu as portas para a difusão dos princípios e valores que moldam o pensamento neoliberal, a começar pelo ataque ao Estado, visto como a raiz de todos os males, e às empresas estatais, vistas como monstros de ineficiência. Assim, o discurso neoliberal no Brasil começou a se afirmar e a fincar raízes nas eleições presidenciais de 1989. Atolado no problema inflacionário, mas ao mesmo tempo esperançado com as conquistas expressadas na nova Constituição, que fora elaborada um ano antes, o país ficou dividido entre o discurso “liberal-social” de Fernando Collor de Mello e o discurso popular e democrático de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT). Mas o sentimento de que o Brasil ingressara num período de emergência econômica que parecia infindável e as promessas de que as reformas liberalizantes recolocariam o país no eixo do crescimento acabaram por prevalecer. Ecoando o arrazoado da desestatização da economia, que nascera no governo Figueiredo por conta das pendengas do capital nacional relativas aos arranjos do II PND, advogando a necessidade da transparência e da austeridade nos gastos públicos e embrulhando tudo isso na pregação moralista da “caça aos marajás”, Collor venceu as eleições. Tornou-se assim o responsável pela introdução oficial no Brasil da agenda programática e reformadora do neoliberalismo. Desde a eleição de Collor, passou a ser voz corrente a inescapável necessidade de reduzir o tamanho do Estado, privatizar empresas estatais, controlar gastos públicos, abrir a economia etc. Os ganhos prometidos iam do lugar ao sol no mercado global ao desenvolvimento sustentado, da manutenção da estabilidade monetária à distribuição de renda, da evolução tecnológica à modernização do país. Collor não teve tempo para pôr em marcha esse projeto – a não ser muito timidamente o processo de privatização25 –, mas a referida pregação ganhou força inegável e passou a comandar todos os discursos. 24

A própria política de congelamento de preços, por exemplo, seria impensável com o Estado desenhado pela concepção neoliberal.

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Ver a respeito Leda M. Paulani, “A dança dos capitais”, Praga, São Paulo, n. 6, 1998.

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Assim, desde o início dos anos 1990, a agenda neoliberal foi colocada na ordem do dia como uma espécie de única saída para as emergências que nos afligiam, a saber, a irresolução do problema da dívida externa e a renitência do processo inflacionário. A securitização dessa dívida e a internacionalização do mercado brasileiro de títulos de dívida pública, além da liberalização do fluxo internacional de capitais através da alteração operada nas então chamadas contas CC5 (contas exclusivas para não residentes, que permitiam, graças a uma lei de 1962, a livre disposição de recursos em divisas), fizeram as divisas voltarem aos cofres brasileiros (elas estavam sobrando lá fora, sem ter para onde ir, mas não viriam para cá sem garantias mínimas de retorno e liberdade para voarem de volta, se farejassem qualquer perigo iminente). Graças a isso (um respeitável colchão de divisas), o Plano Real pôde fazer sua mágica de estabilização e resolver a outra emergência, isto é, a persistência de taxas de inflação de dois dígitos ao mês. Mas mesmo estabilizada a moeda e solucionado o problema da dívida externa, permanecia difusamente a sensação da emergência, e o regime de exceção não arrefeceu. Passados os tumultuados anos desse primeiro governo civil – sequestro de ativos, aproximação da hiperinflação, impeachment do presidente – o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, embalado no sucesso do Plano Real, venceu as eleições de 1994 (mais uma vez contra Lula) e assumiu o governo federal no início de 1995, com o declarado projeto de “modernizar” o país, mais particularmente suas instituições. Esse princípio básico de seu projeto tomou a forma concreta de um ousado e ambicioso plano de privatizações e de uma abertura substancial da economia. Juntamente com essas realizações, uma série de outras providências foram tomadas em paralelo para transformar o Brasil numa economia financeiramente emergente, a começar da própria estabilização monetária, obtida no ano anterior. O primeiro governo FHC caminhou em meio a uma combinação de reiteradas promessas de um futuro alvissareiro, se esse projeto fosse posto em marcha, e ameaças econômicas de todo tipo, caso as medidas programadas não fossem adotadas. Antes de detalharmos melhor esse período, cabe, no entanto, retornar a uma transformação, ocorrida ainda no governo Itamar, que foi de fundamental importância para a “modernização financeira” do país. Essa recuperação é necessária porque a forma como se operou tal transformação está diretamente ligada à tese aqui esboçada da construção de um estado de emergência econômico no Brasil e à relação dessa construção com as questões propriamente jurídicas envolvidas em sua definição.

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Em 1992, ainda no governo Itamar, a diretoria da área externa do Banco Central, em meio às negociações para internacionalizar o mercado brasileiro de títulos públicos e securitizar a dívida externa, encarregava-se também, na surdina, de promover a desregulamentação do mercado financeiro brasileiro e a abertura do fluxo internacional de capitais26. A partir de mudanças operadas nas contas CC5, o Banco Central abriu a possibilidade de qualquer agente, fosse ou não residente, enviar livremente recursos ao exterior, bastando, para tanto, depositar moeda doméstica na conta de uma instituição financeira não residente. Ocorre que essa transformação foi feita de modo completamente irregular, pois uma lei federal não pode ser regulamentada por um órgão de hierarquia constitucional inferior. Em outras palavras, o Congresso teria de ser ouvido e não foi. A mudança foi feita singelamente, mediante uma carta circular do Banco Central, um instrumento que não pode conter disposições sobre questões substantivas, mas apenas esclarecer, do ponto de vista operacional, determinações do Conselho Monetário Nacional27. A mudança que essa transformação produziu foi tamanha (a decretação da liberdade de enviar recursos ao exterior) que o mercado permaneceu incrédulo, até que, em novembro de 1993, na gestão de Gustavo Franco na área externa do Banco Central, foi publicada uma “cartilha” que escancarou para os agentes aquilo que eles estavam vendo sem acreditar. Não por acaso a tal cartilha ficou conhecida no mercado como “cartilha da sacanagem cambial”. Na época pouco comentada, porque, em função da oscilação contínua das taxas reais de câmbio e de juros, os altos índices de inflação praticamente inviabilizavam a especulação com divisas. A medida, absolutamente irregular do ponto de vista jurídico, “justificou-se” pela necessidade de modernizar o mercado financeiro brasileiro através de sua desregulamentação. Como queria o jurista Santi Romano, anteriormente mencionado, a “necessidade” aqui constituiu objetivamente a própria fonte da “lei”. 26

Retomo, desse ponto em diante, considerações já feitas em Leda M. Paulani, Brasil Delivery (São Paulo, Boitempo, 2008).

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Por esse motivo, as procuradoras da República Valquíria Nunes e Raquel Branquinho encaminharam à Justiça Federal, em dezembro de 2003, uma peça de acusação em que pedem a condenação, por crime de improbidade administrativa, de quinze executivos ligados ao Banco Central e ao Banco do Brasil. Ver, a esse respeito, a excelente matéria de Raimundo Rodrigues Pereira publicada na revista Reportagem de fevereiro de 2004.

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Esse episódio é interessante porque mostra que, mesmo sem a decretação técnica de um estado de exceção, faz-se tábula rasa da lei sempre que os interesses materiais, embrulhados no discurso da necessidade posta pela emergência, mostram-se mais poderosos que ela. Mas o sentimento de emergência econômica pode estar presente mesmo quando existe a benção do Parlamento. Retomemos então a história da construção do estado de emergência econômico no Brasil. Como adiantamos, o primeiro governo FHC caminhou em meio a uma combinação de promessas de sucesso e ameaças econômicas. Assim, uma série de medidas, injustificáveis sob qualquer outro ponto de vista, foram adotadas em nome do afastamento de toda sorte de fantasmas, por exemplo: • permitir a valorização injustificável da moeda brasileira até a verdadeira emergência trazida com a crise cambial de janeiro de 1999, que em apenas quatro meses varreu do país cerca de 40 bilhões de dólares (ameaça do retorno da inflação); • aprovar uma lei (a Lei da Responsabilidade Fiscal, que muitos chamam Lei da Irresponsabilidade Social) em que os direitos dos credores são colocados acima de quaisquer outros direitos (ameaça da perda de credibilidade); • abrir a economia de maneira estabanada, permitindo a quebra de várias empresas brasileiras e o aumento do desemprego (ameaça do atraso e da perda do bonde da história); • vender ao capital internacional (financiando os compradores com dinheiro público) empresas de setores essenciais e estratégicos, como as empresas de energia elétrica e de telecomunicação (ameaça do desequilíbrio fiscal e da perda do bonde da história); • elevar a taxa real de juros a níveis impensáveis (que chegou em algumas ocasiões a mais de 40%) em função das crises financeiras vindas de fora (ameaça da desvalorização da moeda e do retorno da inflação); • aprovar uma emenda constitucional que isentava da incidência da CPMF os recursos aplicados em bolsas de valores (ameaça do atraso e da perda do bonde da história); • isentar de imposto de renda a distribuição de lucros de empresas a seus sócios brasileiros ou estrangeiros e a remessa de lucros ao exterior (idem). Por essas e por outras é que se pode dizer que, a partir do Plano Real, há um sentimento difuso de “emergência econômica”, no sentido de exceção,

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que acompanha a emergência do país como promissor mercado financeiro. Tudo se passa como se aos poucos estivesse sendo decretado um estado de exceção econômico que justificasse qualquer barbaridade em nome da necessidade de salvar o país, ora do retorno da inflação, ora da perda de credibilidade, ora da perda do bonde da história. Mas será com o governo Lula e o neoliberalismo petista que virá a emergência definitiva do estado de emergência em combinação com a hegemonia às avessas28 que o país começa a experimentar.

O governo Lula, a decretação definitiva do estado de emergência econômico e a hegemonia às avessas Quando Lula assume e abraça com determinação inimaginável o receituário ortodoxo de política econômica, o discurso oficial justificou tudo isso com a tese de que estávamos à beira do abismo, a economia brasileira derretia como manteiga e desfazia-se como gelatina, ou seja, estávamos num típico estado de emergência que implicaria a admissão, mesmo por um governo “de esquerda”, mesmo por um governo do PT, de medidas o mais duras possível (e, até um mês antes, injustificáveis), a saber: • elevação do superávit primário, para além do exigido pelo FMI (de 3,75% para 4,25% do PIB); • enorme aumento da então já elevadíssima taxa básica de juros (de 22% para 26,5% ao ano); • brutal corte de liquidez (pelo aumento do compulsório dos bancos), que, da noite para o dia, tirou de circulação 10% dos meios de pagamento. Sem a decretação “branca”, porque não “técnica”, desse estado de emergência econômico (os fantasmas mobilizados foram o do descontrole monetário e o do default externo)29 teria sido praticamente impossível a um governo do PT, eleito precisamente para mudar essa política, adotar e justificar essas medidas. Mas de tanto insistir na tese da beira do precipício, gerou-se a expectativa de que tal estado de emergência era mesmo uma exceção, e que o regime então adotado tinha um caráter passageiro. Estava subentendido no 28

Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

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Para uma discussão a respeito do caráter falacioso desses fantasmas então mobilizados, ver Leda M. Paulani, Brasil Delivery, cit.

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discurso oficial que, tão logo fosse ultrapassada a emergência, as coisas voltariam “ao normal”, isto é, o governo do PT finalmente adotaria seu próprio programa de governo, um programa antineoliberal, de resgate do processo de desenvolvimento e de término da construção da Nação. Surge então a segunda tarefa do governo Lula, que é a de, com o inestimável auxílio da mídia, arregimentar os espíritos, os corações e as mentes para mostrar a necessidade de permanência do regime de emergência, com ou sem a existência da “necessidade” que supostamente o produziu. Fica aí muito claro que o governo Lula fez da criação voluntária desse estado de emergência permanente a prática essencial de seu governo. Foi esse regime de exceção que se tornou regra que justificou: • a manutenção das taxas reais de juros mais elevadas do mundo; • o pagamento de um serviço da dívida que ultrapassou, em alguns anos, 8% do PIB, ao mesmo tempo que se repetia, dia após dia, que não havia recursos para ações básicas como a recuperação do sistema público de saúde, a reforma agrária etc.; • a realização de um superávit primário sempre próximo dos 5% do PIB, ao mesmo tempo que se continuou com o discurso de que temos um enorme déficit e é preciso um esforço ainda maior; • a transformação do sistema previdenciário brasileiro, acabando com o solidarismo intergeracional e jogando na incerteza o futuro de milhões de trabalhadores dos setores privado e público30; • a aprovação de uma lei de falência que coloca, no gerenciamento das massas falidas, os interesses dos credores do sistema financeiro à frente dos interesses dos trabalhadores e do Estado; • a defesa despudorada da independência de direito do Banco Central (ela já existe de fato) para, nas palavras do então ministro do planejamento Guido Mantega, “livrar a sociedade brasileira de presidentes irresponsáveis e gastadores”. Não podendo mais usar o álibi da beira do precipício (a taxa de câmbio havia voltado a se valorizar, o risco-país havia caído e o preços dos papéis brasileiros nas bolsas internacionais haviam voltado a subir), o que se pôs no lugar? A necessidade de conquistar definitivamente a credibilidade dos 30

Idem.

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investidores externos, o que implicava a necessidade de afastar definitivamente o fantasma da inflação e a necessidade de afastar definitivamente a ameaça de um default externo. Passou-se a argumentar que, sem isso, as condições para a retomada de um crescimento sustentado não existiriam, pois a “credibilidade” do país ficaria em xeque. Era preciso fazer o sacrifício que fosse necessário para alcançar esses objetivos. Intensificou-se então a liturgia da paciência, da necessidade de pagar a pena, do sacrifício da “sociedade”, para que se pudesse salvá-la do mal maior. Nesse contexto, foi ficando cada vez mais difícil apontar as aberrações então produzidas, que qualquer análise simplória da política econômica percebia sem grande dificuldade. As críticas eram sempre envergonhadas e os economistas que se davam conta dos absurdos tinham medo de ser tachados de atrasados e desrespeitadores de contratos31. Qualquer manifestação nessa direção era tomada como heresia e pura utopia. Com tudo isso, foi se consolidando o estado de emergência em nome do qual tudo se justifica e legitima. Episódio revelador desse estado de coisas foi a designação, por Medida Provisória (MP), em agosto de 2004, do status de ministro ao presidente do Banco Central. As denúncias que lhe foram feitas pelo Ministério Público de falsidade ideológica e sonegação fiscal, assim como os processos na justiça comum que por consequência sofreria, obrigariam o presidente da República a demiti-lo. Mas a “necessidade” de mantê-lo no cargo, sob a pena de desestabilizar o mercado financeiro, foi, mais uma vez, a fonte da “lei” que permitiu sustentá-lo. A MP que salvou a pele do presidente do Banco Central foi um claro sinal de que o suposto estado de emergência é, na realidade, o estado permanente, em que o rompimento das regras não é a exceção, mas a norma. A crise política, por conta dos escândalos de corrupção que estouraram em meados de 2005, aprofundou ainda mais essa situação. Involuntariamente, contribuiu para reforçar o discurso oficial do estado de emergência econômico. Afinal, era preciso salvar a sociedade da ameaça de que a crise política contaminasse a economia. Daí que era necessário tomar cui31

Essa situação se alterou um pouco com o espaço que a segunda gestão de Lula propiciou aos desenvolvimentistas e sobretudo com o advento da crise internacional, deflagrada em setembro de 2008. Contudo, a dominância do discurso ortodoxo é ainda indiscutível, tanto no mundo acadêmico quanto fora dele.

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dado com a redução dos juros, com a “gastança” do Estado etc. Comprova-se com tudo isso que o estado e o regime de emergência que ele engendra não têm por finalidade resolver o problema, a “emergência”, para que se volte à normalidade. Sua verdadeira finalidade é manter a situação de emergência, não ultrapassá-la. Mas não é no terreno stricto sensu econômico que encontraremos a explicação para o sucesso obtido pelo governo Lula nessa prática de governo. Seguindo as pistas já oferecidas por Oliveira32, tentarei argumentar que tal explicação está na combinação desse estado de emergência econômico com aquilo que se poderia chamar, por falta de nome melhor, de “hegemonia às avessas”, sendo esse termo, claramente, uma alusão ao conceito de hegemonia que Gramsci tornou clássico. Na matriz gramisciana original, como se sabe, a hegemonia da classe dominante (a burguesia) é exercida principalmente por meio de uma liderança moral e intelectual, que opera no seio da sociedade civil e engendra o consentimento. O preço a pagar por esse tipo de liderança é a desvinculação da classe hegemônica de seus interesses materiais mais imediatos e a realização de concessões e reformas que atendem aos interesses de outras classes. Assim, confere-se a liderança a uma determinada classe, mas atribui-se também a ela a responsabilidade pelo avanço da sociedade como um todo. Considerado o binômio “força e consentimento” que, segundo essa matriz teórica, constitui a hegemonia e, nessa medida, o próprio Estado, é evidentemente no último dos elementos que está a força maior33. Isso posto, Oliveira suspeita que: Talvez estejamos assistindo à construção de uma “hegemonia às avessas” típica da era da globalização. A África do Sul provavelmente anunciou essa hegemonia às avessas: enquanto as classes dominadas tomam a “direção moral” da sociedade, a dominação burguesa se faz mais descarada. As classes dominadas no país [...] derrotaram o apartheid [...]. E, no entanto, o governo sul-africano oriundo da queda do apartheid rendeu-se ao neoliberalismo [...]. Assim, a liquidação do apartheid mantém o mito da capacidade popular para vencer seu temível adver-

32

Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

33

“O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria...” (Gramsci, Cadernos do cárcere, 1932-34/2000, Caderno 13, §37, p. 95).

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sário, enquanto legitima a desenfreada exploração pelo capitalismo mais impiedoso. Algo assim pode estar em curso no Brasil.34

Entendida dessa forma, a “hegemonia às avessas” pode ser interpretada como sendo o resultado de uma separação insólita entre os papéis atribuídos à classe hegemônica, tal como concebida por Gramsci: uma classe exerce a liderança moral e intelectual, enquanto sua oposta exerce a liderança material. Não é preciso muita argúcia para perceber quão mais confortável é, nesse caso, a posição das classes burguesas, que podem então, com tranquilidade, exercer sua liderança material (explorar), sem pagar o preço das concessões e reformas, desincumbidas que estão do papel de funcionar como liderança moral da sociedade. Mais que isso, o fato de a liderança moral ser exercida pela classe dominada é muito mais funcional para o exercício da liderança que importa (a material), do que no caso em que ambas as lideranças são exercidas pela classe dominante. A mesma situação de hegemonia às avessas pode ser observada pelo lado contrário: ao invés de considerar que a hegemonia é dos dominados (por conta de sua liderança moral), e exercida para fazer a política dos dominadores, pode-se considerar que a hegemonia continua a ser dos dominadores (continua a ser do capital), mas é operada pelos dominados (que detêm o comando do Estado). Contudo, do ponto de vista de sua funcionalidade para tocar o processo de acumulação obedecendo à frenética lógica da valorização financeira, tanto faz de que lado se olhe a figura, o resultado é sempre o mesmo: hegemonia às avessas e estado de emergência econômico funcionam de modo conjunto e sincrônico, e funcionam admiravelmente bem. O argumento de Oliveira para lançar a hipótese de que algo semelhante à hegemonia às avessas pode estar acontecendo no Brasil é, em poucas palavras, que o correlato brasileiro da derrota do apartheid sul-africano é a ascensão, ao primeiro plano da política, da questão da pobreza e da desigualdade e a consequente criação do Bolsa Família35 como forma de derrotá-las. Em contrapartida, além de praticar uma política econômica hiper34

Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, na página 26 deste livro.

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É fato sabido que o Programa Bolsa Família não nasceu no governo Lula, constituindo uma transformação de vários programas sociais de cunho assistencialista existentes no governo FHC, com destaque para o Bolsa Escola. Contudo, a elevação que Lula promoveu nos valores das rendas compensatórias distribuídas, bem como a expansão do programa que ele patrocinou, foi de tal ordem que, não sem razão, o programa é hoje associado diretamente a ele, como se não tivesse existido antes.

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ortodoxa, que penaliza com o desemprego a classe que, em princípio, está exercendo moral e intelectualmente a liderança, Lula teria também sequestrado os movimentos sociais e a organização da sociedade civil. Ao nomear ex-sindicalistas para ministérios e presidências de poderosos fundos de pensão, seu governo teria feito com que os movimentos sociais praticamente desaparecessem da agenda política36. Sendo assim, se a sociedade está completamente desmobilizada politicamente, de que maneira poderia ter existido qualquer reação que fosse às imposturas permanentemente justificadas pelo estado de emergência econômico que a dominância financeira exige? Com a liderança moral sob o comando das próprias classes dominadas, como se insurgir? Poder-se-ia eventualmente argumentar que, dados a dimensão e o volume de recursos envolvidos no Bolsa Família, seria injustificado asseverar que a liderança da classe dominada está sendo utilizada integralmente para operar uma política material (leia-se política econômica e seu entorno institucional) do agrado das classes capitalistas. De acordo com esse tipo de interpretação, a expansão do Bolsa Família estaria funcionando da mesma forma que funcionaram, décadas atrás, a criação dos direitos trabalhistas, os quais permitiram a integração da classe trabalhadora a uma sociedade comandada pelo capital. Sendo assim, estaria havendo agora, de fato, uma hegemonia da classe trabalhadora, a qual, fazendo jus a seu papel de classe hegemônica, estaria concedendo alguma coisa, em termos de política econômica, para atender às reivindicações das classes capitalistas. Mas essa interpretação das políticas de renda compensatória, tal como a do Bolsa Família, ignora que, ao invés de integrar os excluídos, elas consagram a fratura social: distribuem uns poucos recursos àqueles que jamais conseguirão se integrar, para que se possa dar andamento tranquilo à usual política concentradora e excludente (não por acaso, o criador desse tipo de instrumento é um indivíduo de cujo credo liberal ninguém duvida, o economista monetarista norte-americano Milton Friedman). No caso do Brasil de Lula, essa verdade é facilmente constatada pela simples comparação entre o que vem gastando o Estado com o Bolsa Família e o que vem gastando com o pagamento de juros aos detentores de títulos da dívida pública, ou seja, pelo menos dez vezes mais com o último. 36

Segundo a visão de Oliveira, mesmo o MST estaria sendo manietado pela forte dependência financeira que tem em relação ao governo, que financia o assentamento das famílias.

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Assim, essa hegemonia às avessas combina perfeitamente com a necessidade que tem hoje o sistema de referendar o chamado estado de emergência econômico. Mas essa suspensão permanente da normalidade está diretamente vinculada ao estado das artes do capitalismo contemporâneo, particularmente se considerarmos que todo o enredo até agora descrito se passa na periferia do sistema, numa economia “emergente”. É o estreitamento dos laços financeiros entre o centro e a periferia que explica boa parte das razões que levam os subservientes estados periféricos a condenar suas sociedades e a si mesmos a um permanente estado de emergência, em que tudo é permitido e a exceção é a norma. É o que veremos a seguir.

Capitalismo financeiro, estado de emergência e as relações centro-periferia Alguns analistas denominam a atual etapa do capitalismo de “regime de acumulação com dominância da valorização financeira”37. A dominância da valorização financeira não significa apenas que tal valorização seja hoje mais importante do que a produtiva. Significa, principalmente, que sua lógica se impõe ao processo total de acumulação e reprodução capitalistas. E quais são as características da acumulação financeira? Ela é rentista, quer dizer, apropria-se da renda gerada no setor produtivo; é curto-prazista, ou seja, arisca a projetos de longo prazo, porque preza antes de tudo a liquidez; é avessa ao risco, mas ao mesmo tempo é instável e arriscada, porque enseja e reproduz a especulação; é exterior à produção, porque não lhe importam as necessidades da atividade produtiva em si, mas tão somente a valorização dos ativos financeiros – originem-se eles ou não da esfera produtiva – e sua liquidez. A invasão dessa lógica por todos os escaninhos da reprodução do capital é responsável pela difusão das grandes transformações nos processos produtivos herdados da época fordista. As necessidades de costumeirizar a produção, flexibilizar o trabalho, encolher os estoques, reduzir o número dos níveis gerenciais e terceirizar serviços e etapas do processo produtivo obedecem aos imperativos da lógica financeira: dividir os riscos da produção capitalista com os trabalhadores e os consumidores, evitar que o capital fique empatado em ativos fixos e estoques de matérias-primas e produtos, 37

François Chesnais, A mundialização financeira, cit.; A finança mundializada, cit.

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preservar e buscar a liquidez onde quer que ela esteja. As novas tecnologias de informação e comunicação, ao contrário do que supõem certas teorias ingênuas, são os veículos que objetivam essa lógica e a tornam mais imperativa, não sua causa. Mas essa lógica tipicamente financeira se reproduz por meio de ativos próprios, muitos dos quais estão incluídos naquilo que Marx chamou de “capital fictício”. Quem ganha dinheiro com a valorização das ações que possui não participou diretamente da produção nem detém o capital material que efetivamente produz. No entanto, a duplicata de capital que ele tem lhe dá direito a uma parcela da renda real produzida na sociedade. Quem tem um título da dívida pública tem direito sobre a renda real futura da sociedade, mesmo sem vir a participar de sua geração. Esses são dois casos típicos de capital fictício. A mera propriedade desses ativos garante a participação de seus detentores na renda real produzida pela sociedade, sem que estejam diretamente envolvidos em sua produção. Os possuidores de seus ativos são, portanto, rentistas. De certa forma, o rentismo é o avesso daquilo que a ideologia liberal diz que o capitalismo é. Segundo esse discurso, o capitalismo é encarnado no espírito animal dos empresários, que, longe de qualquer auxílio e/ ou proteção do Estado, enfrentam a concorrência e arriscam seu capital na produção, buscando um retorno maior ao fim do movimento. É daí que vem também, atrelada ao liberalismo, a ideia de que o capitalismo é meritocrático e, portanto, quem se dá mal nessa sociedade não tem méritos e/ ou qualidades e/ ou virtudes suficientes. Mas o rentismo procura segurança máxima e não arrisca nada, a não ser que haja a perspectiva de um enorme ganho com isso (como ocorreu, por exemplo, nos movimentos especulativos contra moedas de países menos desenvolvidos na segunda metade dos anos 1990). Quer o máximo retorno, no menor prazo de tempo possível, com o menor risco. O “mérito” maior dessa sorte de aristocracia capitalista não é o animal spirit do sujeito virtuoso disposto a arriscar, mas a mera propriedade de ativos financeiros. Daí porque esse tipo de capitalismo ser denominado também capitalismo patrimonialista38. Mas como não é possível evitar completamente o risco é preciso transformar o jogo capitalista cada vez mais num jogo de cartas marcadas. Acesso 38

François Chesnais, A finança mundializada, cit.

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privilegiado a informações sobre papéis públicos, concorrências públicas, fundos públicos e vendas de ativos públicos tornam-se então fundamentais. O poder público maneja negócios e recursos sempre volumosos, de modo que atrelar o rentismo ao poder do Estado parece a forma mais segura de aliar retorno elevado e liquidez a segurança (poder e dinheiro cada vez mais juntos). O capitalismo rentista é, portanto, o avesso do mercado, da concorrência, do risco capitalista, da ausência do Estado. Paradoxalmente, é esse tipo de capitalismo que hoje predomina. Em alguns aspectos, ele lembra os inícios do capitalismo, a época da acumulação primitiva, quando os Estados nacionais se formavam como grandes negócios e a acumulação capitalista passava diretamente pelo poder desses Estados. Pensadores críticos contemporâneos, como Harvey39, têm afirmado a tese de que estaríamos hoje num momento da história capitalista em que os processos típicos da fase da acumulação primitiva de capital estariam presentes de modo muito mais intenso do que se imagina40. Segundo essa visão, esses processos, que marcaram os primórdios do capitalismo e envolvem fraude, roubo e todo tipo de violência, na realidade nunca saíram completamente de cena, mas exacerbam-se quando ocorrem crises de sobreacumulação como a que experimentamos. O resgate desses expedientes violentos minora as consequências da sobreacumulação, visto que desbrava “territórios” para a acumulação de capital antes fora do alcance. Em outras palavras, estaríamos agora numa época de “acumulação por espoliação”, em que se aliam o poder do dinheiro e o poder do Estado, que dela participa sempre – ou diretamente, ou por conivência, ou por omissão. Vários são os exemplos desse tipo de processo, os ataques especulativos a moedas de países fracos, o crescimento da importância dos títulos de dívida pública em todos os países e as privatizações, que se generalizaram, estão entre os mais importantes. Nesse sentido, para dar um exemplo concreto, o processo brasileiro de privatização, que começou em 1990 e teve seu pico no primeiro reinado de FHC, é paradigmático. Por meio dele, não só se abriram à acumulação privada suculentos espaços, como, em muitos casos, fez-se isso com dinheiro público (do BNDES), emprestado aos “compradores” (e às vezes 39

David Harvey, O novo imperialismo, cit.

40

A esse respeito, ver também Paulo E. Arantes, “Um retorno à acumulação primitiva”, cit.

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não pago, como no conhecido caso da Eletropaulo/ Enron) a juros subsidiados. Além disso, os preços desses ativos foram subavaliados pelo Estado e o ágio elevado que naturalmente apareceu, dada a concorrência por esses setores (os serviços industriais de utilidade pública), que são o filé mignon da acumulação produtiva no mundo, está sendo devolvido aos “compradores” por meio de isenção fiscal, que dura o tempo necessário para compensar o ágio. Outro exemplo concreto é a transformação pela qual vem passando o sistema previdenciário no Brasil. Com a imposição de tetos de valor reduzido para os benefícios, primeiro para os trabalhadores do setor privado (FHC), depois para os trabalhadores do setor público (Lula), o Estado abriu imediatamente à acumulação privada todo o imenso território da previdência, sendo que o governo Lula lhe ofertou o presente mais valioso, os servidores públicos, de salário médio mais elevado e praticamente sem risco de desemprego. A diferença entre os inícios do capitalismo e essa sorte de acumulação primitiva contemporânea é que o discurso econômico da época era o mercantilismo, que defendia abertamente as práticas protecionistas, a defesa dos mercados pelo Estado e a sociedade entre poder e dinheiro. No capitalismo de hoje, quando esses dois elementos voltam a andar muito próximos e o capitalismo é marcado pela discricionaridade, pelo compadrio e pelo privilégio, difunde-se a doutrina do mercado como demiurgo, das virtudes da concorrência, da competitividade e da eficiência. Não é à toa, portanto, que o estado de emergência se mostra como uma necessidade do capitalismo, e a exceção se torna a norma. O estado de emergência parece ser a única forma de compatibilizar, de um lado, o capitalismo rentista com seu conjunto de práticas discriminatórias e seu permanente e concreto açambarcamento da riqueza social por uma aristocracia capitalista privilegiada e bem postada junto ao Estado e nele e, de outro, o discurso globalizante, produzido pela doutrina neoliberal e reverberado pela mídia, como se o mercado fosse o grande maestro dessa orquestra. Como justificar a pessoalidade das relações mercantis, o acesso privilegiado a informações, concorrências e fundos públicos senão pelo fato de que nos encontramos, afinal, em uma situação de emergência em que as infrações à regra devem ser encaradas com “naturalidade”? Quando se trata de “salvar a sociedade” é preciso ter flexibilidade para que as normas não

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atrapalhem. Isso é mais verdadeiro quando o cenário que abriga esses movimentos é o do capitalismo periférico. No caso do Brasil, por exemplo, podemos apresentar em rounds periódicos a história de nossa dependência periférica. Primeiro round: no início fomos puro objeto de espoliação, território de extração de metais preciosos e matérias-primas, como o pau-brasil – ambos elementos de substantiva importância no Centro, em tempos de acumulação primitiva e capitalismo comercial. Segundo round: como parte da relação entre Metrópole e Colônia, e depois como país independente, fomos território produtor de bens agrícolas e matérias-primas baratas, que nos arrastaram de ciclo a ciclo e alavancaram a acumulação industrial no Centro do sistema. Terceiro round: já no século XX, fomos o mercado que começou a faltar, em tempos de superacumulação industrial, ao capital multinacional do Centro; reconstruídos Europa e Japão, o movimento começa a perder fôlego, mas encontra na América Latina, e em particular no Brasil, o território para um novo surto expansivo de produção e consumo, adiando a queima do capital excessivo. Quarto round: no início do capitalismo rentista, ainda sob a forma de contratos convencionais, o Brasil, e em particular o Estado brasileiro, foi o absorvedor de poupança em dólares que faltava a um capital financeiro robusto e ávido por aplicações rentáveis, num mundo em crise aberta depois do choque do petróleo. Quinto e último round (por enquanto...): a securitização da dívida externa, a internacionalização do mercado brasileiro de títulos públicos e a abertura dos fluxos internacionais de capital fizeram do Brasil, a partir dos anos iniciais da década de 1990, emergente plataforma de valorização financeira internacional, capaz de proporcionar aos rentistas nacionais e estrangeiros impensáveis ganhos em moeda forte41. A armação do estado de emergência econômico que presenciamos foi condição de possibilidade para que nossa relação com o Centro passasse da dependência tecnológica típica da acumulação industrial à subserviência

41

Um bom indicador dessa situação é a observação das despesas com rendas da balança de serviços. No caso do Brasil, as despesas com lucros, dividendos e juros de investimentos em carteira (os ativos típicos dessa fase rentista do capitalismo) passaram de uma média anual de 276 milhões de dólares nos anos 1980 para 3,76 bilhões de dólares nos anos 1990 e 12,10 bilhões de dólares nos anos 2000 (considerado o período 2000-2008). Para uma análise mais detalhada dos mecanismos que transformaram o Brasil em plataforma internacional de valorização financeira, ver Leda M. Paulani e Christy G. Pato, “Investimentos e servidão financeira”, cit.

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financeira típica do capitalismo rentista. No caso do terceiro round, seu momento final exigiu um estado de exceção jurídico; no caso do último, a normalidade jurídica exige o estado de emergência econômico, tornando tudo mais simples quando este é combinado com o processo que denominamos, juntamente com Oliveira, de “hegemonia às avessas”. Nesse contexto, a ascensão ao governo federal de um partido historicamente de esquerda e historicamente adversário do estado de emergência, que se especializara em denunciar suas arbitrariedades, gerou a expectativa de uma “volta à normalidade”. Tendo o governo adotado o caminho inverso ao esperado, só lhe restou, postado no papel de liderança moral da sociedade, agarrar-se de vez ao estado de emergência, decretando sua completa e total normalidade. O governo Lula configurou-se, portanto, como a derradeira e mais uma vez frustrada esperança de uma refundação da sociedade brasileira, depois da devastação produzida pelos governos militares. Antes dessa frustração, vieram a empolgação com as diretas, a primeira eleição para Presidente, o Plano Cruzado, a Constituinte e o Plano Real. Em todas essas oportunidades, prevaleceu a ideia de que retomaríamos a trilha do desenvolvimento e, sobretudo, de que seria resgatado o processo de construção da Nação, interrompido politicamente em 1964 e economicamente uma década depois. Nesse meio tempo, o capitalismo se transformou, assim como se alterou a relação do centro com a periferia. O alcance do estatuto de Nação desenvolvida ficou mais distante e, quanto mais profunda foi se configurando a submissão das elites dos países periféricos aos imperativos da acumulação financeira e aos acenos enganosos do discurso neoliberal, mais distante ficava. No caso do Brasil, essa submissão foi tão completa que mesmo um governo pilotado por um partido operário, nascido de baixo para cima, da árdua luta dos trabalhadores, foi incapaz de escapar dela e teve de decretar o caráter definitivo do estado de emergência econômico. A gravidade quase sem precedentes da crise internacional que ora experimentamos, típica, aliás, desses tempos de acumulação presidida pela lógica financeira, haverá de afirmar a funcionalidade do estado de emergência econômico, bem como a característica sui generis da hegemonia de direito, mas não de fato, com a qual ele está combinado.

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A CULTURA DA SERVIDÃO FINANCEIRA: UMA LEITURA ÀS AVESSAS Maria Elisa Cevasco

Todos estamos familiarizados com a caracterização do nosso tempo – que hoje alguns chamam de tempos da globalização e até ontem chamavam de pós-modernidade – como o tempo da derrota da esperança de termos um mundo qualitativamente distinto do que vivemos. Em 2009 foi o aniversário de trinta anos da frase famosa de Margaret Thatcher: “Não há alternativa”. Para qualquer uma das esferas da vida que se olhe, a palavra-chave parece ser irreversibilidade: não se pode conceber a sociedade sem mercadorias, a vida sem os gadgets da tecnologia contemporânea e não se pode imaginar um outro tipo de economia que não a predicada pelas pautas instituídas pela globalização capitalista, com os enormes custos humanos que esse modo de produção necessariamente acarreta. E o pior é que todos sabem desse custo, mas parecem incapacitados de imaginar outra forma de vida que não seja a da sociedade de consumo e das imagens padronizadas da indústria cultural. Como disse Fredric Jameson no prefácio de seu livro As sementes do tempo: “Em nossos dias, parece-nos mais fácil imaginar a deterioração total do planeta e da natureza do que o final do capitalismo tardio, talvez isso seja devido a uma certa debilidade da nossa imaginação”1. Compreensivelmente, essa conjuntura acachapante tem encurralado os críticos do sistema. Os do meu campo, da crítica cultural, têm seguido a prática que se pode chamar, seguindo o influente livro de Paul Ricouer2, de hermenêutica da suspeita e buscado usar as ferramentas poderosas do desmanche das ilusões, que é legado da melhor tradição de crítica cultural, 1

Fredric Jameson, As sementes do tempo (São Paulo, Ática, 1997), p. 10.

2

Paul Ricouer, Freud and philosophy: an essay on interpretation (New Haven, Yale University Press, 1970).

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para fazer um diagnóstico dos horrores das práticas culturais desses tempos sombrios. No campo da crítica cultural marxista, a perspectiva mais influente nessa tradição da demonstração dos horrores constitutivos da vida sob o capitalismo é a de György Lukács em seu livro História e consciência de classe*, de 1923. Como se sabe, é nesse livro que ele dá mais um passo, a partir da descrição poderosa do funcionamento do sistema em O capital ** de Marx, e mostra como as forças do modo de produção operam sobre os sujeitos, colonizando nossas próprias consciências. A noção-chave de Lukács, a da reificação, parte da descrição da forma mercadoria, em especial de seu poder de operar uma equivalência geral no sistema de trocas, mercantilizando todas as relações sociais e escondendo, sob a fantasmagoria do fetiche, as relações entre as pessoas que as produzem. Ele acrescenta a esse quadro a descrição de Max Weber a respeito do processo da racionalização dos processos produtivos, que conhecemos como taylorização, e mostra como esse processo se estende até nossas configurações mentais. Assim, o sistema deforma tanto o conhecimento e as artes que produzimos como nossos próprios sentidos. Lukács apresenta aí uma exposição do caráter sistêmico da lógica do capitalismo, um processo que separa, compartimentaliza, especializa e dispersa, uma força que opera sobre todas as coisas e torna a heterogeneidade homogênea e padronizada3. É claro que a cultura, enquanto organização dos significados e valores de um determinado grupo social, uma materialização da experiência do vivido, é marcada por esse processo de reificação que ela a um só tempo incorpora, reforça e, para alguns, supera. Com História e consciência de classe está aberta a rota para uma crítica da cultura que, além de fazer o usual, o comentário e a avaliação das grandes obras, expande-se para constituir uma fenomenologia da vida cotidiana sob o capitalismo. É a partir daí que passa a diagnosticar os problemas dessa forma de vida com o projeto claro de contribuir para mudá-la. Os grandes temas da Escola de Frankfurt, como a fetichização dos sentidos na crítica de Adorno, o empobrecimento da expe*

São Paulo, WMF Martins Fontes, 2003. (N. E.)

** 2. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008. (N. E.) 3

Ver, a esse respeito, o ensaio de Fredric Jameson, “History and class consciousness as an ‘unfinished project’”, em Marcos Soares e Maria Elisa Cevasco (orgs.), Crítica cultural materialista (São Paulo, Humanitas, 2008), p. 13-46.

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riência em Walter Benjamin e a alienação promovida pela colonização do lazer pela indústria cultural, são legados fundamentais para entender o funcionamento da cultura em nossos dias. Resta acrescentar aí noções como a de sociedade do espetáculo, na qual, como na formulação exata de Guy Debord, a imagem se revela como a forma final da reificação. E ainda podemos falar em Jean Baudrillard, cuja presença nesse elenco de marxistas pode ser mal vista, mas sua noção de simulacro, a cópia de uma imagem cujo original não existe, pode ser considerada o passo lógico seguinte no processo de desdiferenciação característico da vida danificada do capitalismo que agora abole as separações fundamentais que norteavam nossos modos de pensar. Não se distingue mais o real da imagem, e a imagem recobre tudo. Na formulação de Jameson, nossa modernidade singular se caracteriza pela penetração máxima da forma mercadoria em todas as esferas da vida, inclusive enclaves antes relativamente autônomos, como a natureza e nosso próprio inconsciente colonizado e mercantilizado pela cultura de massas e pela indústria cultural4. Uma das consequências para o plano das ideias desse estado de coisas pode ser resumida com a citação de um dos maiores pensadores dos horrores desse estágio do capitalismo, Theodor Adorno. Em Prismas, ele avisa: “Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas somente propaganda a favor do mundo, mediante a sua duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser acreditada, mas pede silêncio”5. No entanto, a grande tradição do pensamento marxista nos ensina, desde Marx no Manifesto Comunista*, a pensar o desenvolvimento histórico e as mudanças sociais de forma dialética, ou seja, pensar o capitalismo, a um só tempo, como o progresso e a catástrofe que representa. O próprio Fredric Jameson nos insta a pensar esse novo tempo do horror positiva e negativamente. Segundo ele, é necessário que à ontologia do presente acrescentemos uma arqueologia do futuro, um modo de pensar que ajude a evitar a colonização total do que virá pelo eterno presente da forma mercadoria6. 4

Fredric Jameson, Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005), p. 12.

5

Theodor Adorno, Prismas (São Paulo, Ática, 1998), p. 25.

*

São Paulo, Boitempo, 1998. (N. E.)

6

Fredric Jameson, Modernidade singular, cit., p. 250.

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Então, ao invés de mais uma vez apontar o que já sabemos, eu gostaria – mesmo sob o risco de ser acusada de indevidamente otimista, para não dizer “bocó” – de escovar um pouco a história do presente a contrapelo e buscar formas do emergente no horror geral da cultura do desmanche. A inspiração teórica vem de Raymond Williams. Para pensar as formas de se opor à cultura que azeita o esquema de trituração da vida e das possibilidades de mudança em nossa era de disseminação total dos meios de comunicação de massa sempre a serviço da classe dominante, Raymond Williams retoma a noção gramsciana de hegemonia, ao seus olhos mais produtiva para o nosso momento do que a de ideologia: Nos anos 1960, ficou claro que estávamos diante de uma nova forma do estado corporativo, e a ênfase na cultura, que com frequência era considerada nossa posição, sempre foi uma ênfase, pelo menos em meu caso pessoal, no processo de incorporação social e cultural através do qual é mais do que simplesmente a propriedade ou o poder que mantêm as estruturas da sociedade capitalista. Na verdade, a tentativa de definir essa situação nos possibilitou rever partes importantes da tradição marxista, em especial o trabalho de Gramsci, com sua ênfase na hegemonia. Pudemos então afirmar que a dominação essencial de uma determinada classe na sociedade mantêm-se não somente – ainda que certamente, se for necessário – através do poder e não apenas – ainda que sempre – através da propriedade. Ela se mantém também, inevitavelmente, pela cultura do vivido: aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, que é continuamente renovada em todos as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e no interior de significados definidos, de tal forma que o que as pessoas vêm a pensar e a sentir é, em larga medida, uma reprodução de uma ordem social profundamente arraigada sobre as quais as pessoas podem até pensar que de algum modo se opõem a elas e às quais muitos vezes se opõem de fato.7

Quer em seus usos mais corriqueiros, como o conjunto de ideias de uma classe dominante que doutrina e manipula as classes dominadas, quer na formulação althusseriana da ideologia, como as relações imaginárias com a nossa situação real ou como um inconsciente imposto pela estrutura social, a acepção de ideologia como falsa consciência depende de um modelo de subjetividade que pressupõe um ser humano passivo, estático e apenas receptivo. Nesse sentido, as noções de ideologia descrevem o “sujeito ideal” da sociedade da indústria cultural, o que é funcional para manter o sistema. Já nesse nível bem primário aparece uma boa razão para repensá-la. 7

Raymond Williams, “You’re a Marxist, aren’t you?” (1975), Resources of hope (Londres, Verso, 1989), p. 74.

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Williams não ignora a força acachapante do capitalismo, turbinado pela “propaganda a favor do mundo”, o conteúdo da cultura veiculada para as massas. Para ele, a hegemonia é a determinação em funcionamento, e satura a vida social a tal ponto que “se constitui como a substância e os limites do senso comum e corresponde à realidade da experiência social”8. Mas é também um processo ativo, heterogêneo, em movimento, uma economia da experiência governada pela coexistência de forças sociais em conflito. Pensar os processos culturais nesses termos afasta a tentação desmobilizadora, muito forte e convincente em dias como os nossos de hegemonia de um só sistema, de não fazer nada por que não há saída. Apesar de sua força avassaladora como porta-voz dos valores vigentes, a cultura dominante tem de conviver com elementos residuais, que vêm de outros tempos, e emergentes, que traduzem as forças da mudança. Essa convivência é a expressão cultural do fato de que nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma ordem ou sociedade dominante é capaz, na realidade, de abarcar toda a abrangência da prática social humana, da energia humana e das intenções humanas (não se trata aqui do inventário de uma “natureza humana”original, mas, ao contrário, da enorme amplitude e variação, tanto na prática quanto na imaginação, de que os seres humanos são e demonstraram ser capazes) [...]. É fato que as modalidades de dominação operam seletivamente e, portanto, acabam sempre deixando de fora algo da abrangência total das práticas humanas reais e possíveis.9

É essa constatação que abre espaço para teorizar o emergente, o residual e o dominante. As práticas emergentes são muitas vezes cooptadas e neutralizadas, mas também questionam as usuais e apontam novos caminhos. É papel da crítica empenhada, além de diagnosticar os problemas da reificação triunfante, procurar desentranhar das práticas vigentes uma alternativa ao que existe. Penso que é justamente aqui, na tentativa e na necessidade de descrever o emergente, de coordenar novas formas de prática e hábito sociais e mentais com novas práticas de produção e de organização econômicas que Williams cunha a expressão “estrutura de sentimento”. O termo aparece inicialmente em um dos seus primeiros livros, de 1954, como uma resposta a uma constatação analítica: 8

Idem, “Base and superstructure in Marxist cultural theory”, Problems in materialism and culture (Londres, Verso, 1980), p. 37.

9

Ibidem, p. 43.

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Relacionar uma obra de arte com qualquer aspecto da totalidade observada pode ser, em diferentes graus, bastante produtivo; mas muitas vezes percebemos na análise que, quando se compara a obra com esses aspectos distintos, sempre sobra algo para o qual não há uma contraparte externa. Esse elemento é o que denominei de estrutura de sentimentos, e só pode ser percebido através da experiência da própria obra de arte.10

Em The Long Revolution*, de 1961, o próprio Williams justifica a justaposição esdrúxula dos dois termos: estrutura, diz ele, para dar conta de que se trata de algo “firme e definido”, mas que opera nas áreas menos tangíveis de nossas atividades. Em Marxismo e literatura, de 1977, ele esclarece que a noção de “estrutura de sentimento” procura se opor a um modo de análise bastante arraigado, que considera tanto a sociedade como a produção cultural como algo já formado, parte do passado. Isso faz com que seja preciso encontrar outro termo para o que é ativo, presente. Nesse tipo de análise, reforça-se uma das pedras de toque da hegemonia burguesa, a cisão entre o pessoal e o social: [...] se o social é o fixo e o explícito – as relações, instituições, formações e posições que já conhecemos – tudo que for presente e mobilizador, tudo que parece escapar do fixo, do explícito e do conhecido é percebido e definido como o pessoal: isso, aqui, agora, vivo, ativo, “subjetivo”.11

O termo procura dar conta de uma área da experiência que é social e material, mas ainda não completamente articulada. Contudo, essa experiência, mesmo que não esteja ainda definida, classificada ou racionalizada, exerce pressões e impõe limites efetivos ao que pensamos, ao que vivemos ou ao nosso modo de agir. Trata-se, como diz Cora Kaplan em um ensaio sobre Williams, do “sentimento vivido de um tempo, suas histórias dinâmicas e efêmeras que contêm e revisam as contradições entre as ideologias rivais e entre essas e suas oposições ou alternativas radicais”12. O central nessa 10

Raymond Williams e Michael Orrom, Preface to film (Londres, Film Drama Limited, 1954), p. 21-2.

*

Nova York, Columbia University Press, 1961. (N. E.)

11

Raymond Williams, Marxism and literature (Londres, Oxford University Press, 1977), p. 128. [Ed. bras.: Marxismo e literatura, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.]

12

Cora Kaplan, “What we have again to say: Williams, Feminism, and the 1840s”, em C. Prendergast (org.), Cultural materialism: on Raymond Williams (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1995), p. 231.

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noção é o esforço de incorporar à análise da cultura noções que fazem parte da nossa experiência de obras de arte, mas que ficam normalmente relegadas para a área difusa, mal-explicada e pouco rigorosa das impressões, sensações e... sentimentos. Isso tudo em prejuízo do fato de que todos eles, impressões, sensações e sentimentos, fazem parte da experiência do vivido e são motores da fruição da arte. Claro que essa noção de Williams atraiu muita crítica. Uma das mais bem articuladas é do grupo da nova esquerda britânica, que o entrevistou sobre toda sua obra e editou as entrevistas no livro Politics and letters. Vale a pena reproduzir a troca de objeções, pois esclarecem o significado do termo como pensou Williams e mostram a que ele se opõe: Pergunta: Sua discussão mais recente de estrutura de sentimentos a descreve como um campo de contradições entre uma ideologia consciente e uma experiência emergente. A ideia de uma experiência emergente, para além da ideologia, parece pressupor uma espécie de contato direto entre o sujeito e a realidade na qual esse sujeito está imerso. Será que isso não deixa a porta aberta para que voltem a entrar noções de “vida” ou de “experiência” como [as que marcam certa estética conservadora]? Resposta: Não. Isso tem de ficar muito claro. Porque, no fim das contas, o argumento central do primeiro capítulo de The Long Revolution é exatamente que não existe uma forma natural de ver e, portanto, não pode haver um contato direto e imediato com a realidade. Por outro lado, grande parte das teorias linguísticas e algumas da semiótica correm o risco de chegar ao extremo oposto, no qual o epistemológico absorve totalmente o ontológico: é apenas em nossas formas de saber que chegamos a existir. Para meus amigos formalistas, que são muitos e gostam de duvidar até mesmo da possibilidade de um referente externo, é preciso recordar uma pressuposição fundadora do materialismo, a saber, que o mundo natural existe, mesmo que não lhe confiramos significados [...]. Dito isso, penso que a relação entre significação e referente em nossa própria situação é diferente do que em qualquer outra. É difícil formular isso. Mas, no caso de outras situações, aprende-se apenas através de articulações registradas, tudo que se têm é necessariamente textos e documentos. Certamente, em nossa própria época, obtemos muito mais do que muitos pensam justamente dessas versões de documentação sem fim. Em contraste, no processo da formação da consciência [...] vários tipos de ocorrência interferem nas relações estabelecidas disponíveis entre significação e referência. Essa posição formalista de que não há significado sem um significante implica dizer que vivemos apenas quando articulamos. Ora, talvez isso seja uma generalização a partir da minha própria história, mas penso que as áreas a que chamaria de estruturas de sentimentos formam-se inicialmente quase sempre como um certo distúrbio ou desconforto, um tipo específico de tensão, para a qual, quando nos afastamos ou nos lem-

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bramos dela, podemos encontrar um referente. Dizendo de outro modo, o lugar específico de uma estrutura de sentimentos é a comparação incessante que deve se dar no processo da formação da consciência entre o articulado e o vivido. “Vivido”, se vocês quiserem, é apenas uma outra palavra para experiência, mas temos de encontrar uma palavra para esse nível. Porque tudo isso que não é completamente articulado, tudo que aparece como um distúrbio, uma tensão, um bloqueio, um problema emocional, parece-me ser precisamente uma fonte para as grandes mudanças nas relações entre significante e significado, seja na linguagem literária, seja nas convenções.13

Gostaria de tentar demonstrar a produtividade dessa noção para os nossos tempos de desmanche por meio de um modesto exercício de junção de teoria e prática, esboçando uma análise de um fenômeno cultural recente, instigante e bem próximo de minha experiência como cidadã da cidade de São Paulo. Em nossa cena cultural, o teatro de grupo destaca-se como uma das modalidades que, de maneira mais duradoura, tem buscado, muitas vezes de forma consistente e bem-sucedida, escapar dos limites estreitos da produção segundo os parâmetros da indústria cultural. Seu sucesso é em parte consequência da falta de interesse do mercado: afora os grandes musicais importados dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, ou as peças com atores de televisão bem conhecidos do público, teatro não dá lucro. Por outro lado, é um resultado histórico, uma continuação, ainda que em circunstâncias muito diferentes, do ativismo e da proeminência do teatro antes e imediatamente após o golpe de 1964, que se traduziu, como se sabe, não somente no mais conhecido Teatro do Oprimido de Augusto Boal e na ambiguidade política do teatro Oficina de José Celso Martinez Correa14, mas nos centros populares de cultura (CPCs) que usavam técnicas do agit-prop e montavam peças em universidades, favelas e portas de fábrica com conteúdo político explícito. O teatro efetivamente existente, segundo seu manifesto de 1961, reduz o teatro a mero entretenimento e a um ornamento das classes dominantes. Já estava evidente aí que, em uma sociedade desigual como a brasileira, uma sociedade democrática não pode ser construída sem a formação política. 13

Raymond Williams, Politics and letters (Londres, Verso, 1979), p. 167-8.

14

Ver, a esse respeito, a análise esclarecedora de Roberto Schwarz em “Cultura e política: 1964-1969”, em O pai de família e outros estudos (São Paulo, Paz e Terra, 1978), p. 61-92; Iná Camargo Costa, A hora do teatro épico (São Paulo, Graal, 1996).

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Alguns dos grupos ativos hoje estão na estrada há muitos e muitos anos, mas adquiriram maior visibilidade quando se reuniram em um movimento coletivo denominado, com acerto, “Arte Contra a Barbárie”. O primeiro documento do movimento é de 1998, ano em que o Brasil completava seu embarque no modelo nocivo de modernização neoliberal. Lembrando que a relação da cultura com a sociedade é bidirecional, ou seja, a cultura reflete a sociedade, mas também deve dar à sociedade a possibilidade de refletir, o manifesto avisa que teatro não deve ser mercantilizado e demanda incentivos públicos para manter esse bem público. A resposta governamental foi pequena e tímida, como sempre. Penso que há muita gente na própria área cultural do governo que comprou por inteiro a ideologia vigente que dá ao mercado a primazia sobre o pensamento: boa arte é a que vende bem e tem sucesso de público – como se o público não tivesse ele mesmo de ser formado e apresentado a maneiras outras de ver e pensar que não as da colonização mental da indústria cultural. Se considerada a resposta de incentivo oficial, é um verdadeiro milagre que essas companhias existam e tenham condições de manter um projeto de formação intelectual, uma construção em meio ao desmanche geral. Eu poderia falar da Companhia do Latão, do Feijão, do Bartolomeu, da Ocamorana, do Folias D’Arte, do União e Olho Vivo ou da Companhia São Jorge, mas vou falar do Engenho Teatral, porque seu projeto concentra muito do diferencial que estou tentando marcar aqui. Para começar, o grupo tem seu próprio teatro, uma bela estrutura de lona especialmente desenvolvida para o projeto, com lugares confortáveis para duzentas pessoas. A sala de espetáculo tem a peculiaridade de poder ser transportada para diferentes lugares. A ideia é montá-la justamente onde não há casas de espetáculos, como na maioria dos lugares da periferia de São Paulo. O grupo não cobra ingresso e tem meios para levar alunos de escola pública e membros de movimentos sociais e religiosos para seus espetáculos. Como se vê, trata-se de uma materialização de um projeto que se coloca a contrapelo de rigorosamente tudo que estrutura e, portanto, molda o teatro convencional. O grupo existe desde 1975 e decidiu abandonar o circuito comercial já em 1993. Na última contagem, publicada no jornal que é distribuído nas encenações, mais de 175 mil pessoas haviam assistido a suas peças. Confesso que na primeira vez em que fui assistir a um espetáculo do grupo, no início do ano 2000, imaginei que veria uma ótima ideia ser des-

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manchada pelas limitações dos que se encontram fora do circuito asfixiante, mas muitas vezes profissionalizante, da cultura oficial. Pensei: “Vou ver amadores, com o coração no lugar certo, mas sem grande valor estético para falar como a minha corporação”. Ledo engano: os atores são competentíssimos e lançam-se com gosto na aventura de encenar um texto que é criação coletiva, sem a segurança fácil e enganosa de apresentar nomes consagrados pelo mercado das artes. O último espetáculo da companhia, Outro$ 500, que encerrou sua primeira temporada no bairro do Tatuapé no dia 28 de setembro de 2008, é um ponto de chegada importante do grupo. O projeto consumiu mais de dois anos de pesquisa e elaboração. A ideia é ambiciosa e coaduna-se com o espírito da hermenêutica da suspeita que marca a melhor tradição crítica: tentaram entender onde estamos a partir de um exame da história do Brasil desde o Descobrimento. Coerentes com a tradição, buscam, para falar como Benjamim, escovar a história a contrapelo e, ao cortejo dos vencedores, opor o dos vencidos: a história é narrada do ponto de vista dos de baixo, dos que movem os grandes ciclos da produção brasileira como descritos por Caio Prado Júnior no clássico A formação do Brasil contemporâneo*. Vemos encenados os ciclos da cana, do ouro, do café e da industrialização, cada qual moendo os homens e as mulheres que os sustentaram de forma específica. Como sabem que a identificação com as personagens e a estrutura do drama são instrumentos poderosos para deter a reflexão, o grupo utiliza várias das técnicas de estranhamento que marcam o teatro político: vários atores fazem o mesmo papel; não há linearidade de tempo; vemos primeiro o Rio de Janeiro da abolição e depois os ciclos da cana e do ouro; os gêneros teatrais se alternam: há momentos de drama, de narrativa épica, de metateatro, de reality show, de dança e de canto. O espectador nunca está seguro de que fio seguir. Trata-se de uma montagem de choques em que cena ilustra cena e muitas vezes uma cena só adquire sentido na seguinte, por exemplo, quando um atônito Zé Fênix, nome da personagem representante da gente humilde do Brasil, que é feita a cada momento por um ator ou atriz diferente, e perpassa toda a peça, entra em um caminhão – desses que hoje levam trabalhadores rurais e que aprendemos chamar de “caminhão do gato” – que o transporta da abolição da escravatura ao ciclo da cana no Nordeste. O caminhão anacrônico só faz sentido em uma fala *

23. ed., São Paulo, Brasiliense, 2006.

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posterior do Zé: “Vim da frente, já estava atrás, quando eu pensei que eu ia, eu fui... mais para trás”. A desdiferenciação da exploração ao longo do tempo torna-se clara então e configura um tema forte da peça, que não é tratado nunca do ponto de vista moralizante: não se trata de gente má que explora pobres bonzinhos, mas da lógica do sistema, que vige desde o Descobrimento, empreitada, como nos ensinam os historiadores, da expansão necessária do capitalismo europeu. O estágio presente do capitalismo é o que abre e fecha a peça. A primeira cena se dá antes mesmo de entrarmos no teatro: na fila, os atores aparecem e vendem produtos e quinquilharias característicos das necessidades inventadas, mas nem por isso menos reveladoras, do capitalismo tardio: um oferece uma “superconsciência mega blaster”, que é totalmente blindada e permite vender a mãe, trair os amigos, tudo sem remorso. Ou então a “marmelada high-tech”, que arranja até aposentadoria para criança. A animação das vendas é interrompida por sirenes e uma gravação: “A baderna está nas ruas. Entrem todos que a baderna voltou”. Os atores entram e induzem o público a entrar também. A entrada no teatro produz o primeiro choque: toda a plateia, inclusive a porta de entrada que é fechada quando nos acomodamos, está cercada de grades. No centro, outra grande cela. No chão, ossadas e cabeças decepadas convivem com instrumentos de percussão. No meio dessa cela há um barco com a proa quebrada, encalhado em um monte de ossos. Ao lado, uma enorme Pietá sombreada por um esqueleto que traz um cifrão no peito. O mastro do barco é uma grande cruz. Aí serão contados, cantados e dançados os esplendores do Cruzeiro do Sul, interrompidos vez por outra pelos ruídos da baderna lá fora – cada tiro que se ouve nos assusta e nos prepara para sermos acalmados pelo mestre de cerimônias, que anuncia que ali estamos todos seguros, que a baderna não tem nada a ver com a gente e o show deve continuar. E trata-se mesmo de um show, em que os horrores contados contrastam com a beleza das músicas cantadas, com a pulsação da música africana batucada ao vivo e enfrentando, em uma cena memorável, a música sacra da Igreja Católica, com as danças, em especial a da linda atriz loira que no papel de escrava faz a dança comemorativa da festa da botada. Outra beleza vai se impondo: vez por outra a luz se detém na cena e os figurinos e a encenação formam um quadro de beleza plástica notável, que complementa as fotos históricas e os quadros projetados no fundo da cena. No fim, quando os atores já estão de novo vendendo “marmelada high-tech”, vê-se um anúncio de televisão de

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que foi decretado um toque de recolher e vai começar uma higienização social. Os atores, como fizeram ao ouvir conosco os tiros, param para discutir se continuam ou não. A posição conformista parece que vai vencer a discussão: afinal, a higienização, diz um deles, não tem nada a ver com gente e precisamos, lembra o outro, tomar conta da propriedade, o teatro do Demo, que faltou na encenação. As duas mulheres se revoltam e se dirigem para a saída, ao encontro da baderna. Na tela ao fundo, uma foto reproduz os atores no palco, ilustrando a imobilização que marca nossa falta de opções. Mas elas saem e batem a porta. É claro que essa saída mais levanta perguntas do que as responde. Sair para onde? Por que só as mulheres? Sair em nome de quê? Mas penso que essa saída pode ser lida como um gesto necessário de ruptura com o que é, e que foi preparado pela montagem da peça. Em meu resumo sumaríssimo, procurei mostrar como vai se estabelecendo o que podemos chamar, seguindo a linguagem da crítica cultural, de contradição entre forma e conteúdo, entre a beleza que se constrói na encenação e os horrores que são contados. Não se trata de estetizar a opressão estrutural, mas sim de fazer com que a demonstração dessa estrutura colida com uma outra linguagem, que insinua novas possibilidades. A peça não nega que esses horrores existam; ao contrário, mostra o custo humano absurdo que esse sistema demanda. Mas seu modo de contar essa história nega que esse seja o único sistema possível. A plasticidade das cenas funciona como uma sombra, que emite a mensagem oposta à do conteúdo. Trata-se, nos termos de Williams, exatamente de uma perturbação, de um questionamento ainda não totalmente articulado de nosso sentimento de que não há saída. Penso que o teor mais propriamente político da peça está justamente aí, nesse conteúdo latente de beleza que nega o conteúdo manifesto da história e dá seu outro lado. É à procura desse outro lado, cuja existência a ideologia vigente das inevitabilidades e da falta de alternativas nega, que saem as mulheres da peça. É claro que os mais afoitos entre nós podem dizer: “Ah, mais aí é pouco. Cadê o programa, as diretrizes, o comando?”. A isso, só posso responder: no momento como o nosso, em que a cultura do desmanche ao mesmo tempo replica, reforça e intensifica a lógica do sistema, essa ruptura é um primeiro passo para mudar nossa imaginação política. O que virá depois depende de articulação e de movimentos. Resta ter esperança de que para isso não tenhamos que esperar mais quinhentos anos.

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MOEDAS E MOEDEIROS (E UM PINTOR NA CONTRAMÃO) Luiz Renato Martins

Vamos examinar aqui o modo como a obra artística de Antonio Dias (1944), em torno de 1980, reage e se dispõe ante a emergência do neoliberalismo e da financeirização. Na área das artes plásticas, sua resposta é, a meu ver, uma das raras que despontou na época na contramão do coro que saudava o fim da luta de classes e o triunfo definitivo do capitalismo liberal. Convém recordar que Nota sobre a morte imprevista (1965), de Antonio Dias, surge na cena artística brasileira no ano seguinte ao golpe militar1. O trabalho do jovem paraibano, de 21 anos, sugeria, num lance antecipatório, um ato de sequestro irônico de elementos da linguagem da pop art norte-americana2; irrompia contra a perplexidade da cena cultural ante o golpe. O trabalho já desvelava o teor de violência contido no movimento militar3. Essa obra, como reconheceria Hélio Oiticica (1937-1980) em balanço feito em 1967, no catálogo da mostra Nova objetividade brasileira*, provo1

Ver Antonio Dias, Nota sobre a morte imprevista, 1965, óleo acrílico, vinil, plexiglas sobre tecido e madeira, 195 x 176 x 63 cm, col. do artista, em Antonio Dias (ed.), Antonio Dias (text. Paulo Herkenhoff e Jorge Molder, Lisboa/ São Paulo, Fundação Calouste Gulbenkian/ Cosac & Naify, 1999), p. 26.

2

Ver, por exemplo, Antonio Dias, The American death, 1967, tinta acrílica sobre tela e duratex, 91,8 x 195,5 cm, col. particular, em Paulo Sérgio Duarte, Anos 60: transformações da arte no Brasil (Rio de Janeiro, Campos Gerais, 1998), p. 93.

3

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Vencedor?, 1964, cabide de pé com construção de madeira pintada, tecido acolchoado e capacete militar, 181 x 70 cm, Museu de Arte Contemporânea, Niterói, em Paulo Sérgio Duarte, Anos 60, cit., p. 89.

*

Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, de 6 a 30 de abril de 1967.

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cou uma guinada decisiva na arte brasileira4. No mesmo ano, Mário Pedrosa (1900-1981) observou sobre o aparecimento do “sertanejo Dias”: “Esse rapaz só conhece um purismo – o da nua violência”5. Em 1968, Faça você mesmo: território liberdade/ Do it yourself: freedom territory (1968)6, estabeleceria com ainda mais profundidade e alcance os princípios do trabalho de Dias. Nessa obra, o solo da prática artística e da experiência do ver – ambas entremeadas conceitualmente, ou seja, sem distinção entre produção e circulação/ recepção – aparece como o próprio trabalho, na forma de uma porção de piso demarcada com fita adesiva e acompanhada da palavra de ordem que serve também de título: Faça você mesmo: território liberdade. Incluídas no território da arte, indicado na legenda-título como território livre, vinham algumas pedras, com a dimensão de armas de mão. Traziam uma plaqueta de metal pendurada que lembrava as peças de identificação que os soldados trazem no pescoço7. Nas plaquetas vinha escrito o sinal de origem que aqui virou indicação de finalidade to the police. A inversão e a ironia – coisas arrebatadas aos outros – dispunham-se como armas do artista. O que ficava como máxima, para além dos materiais e das circunstâncias, que sempre variam, era que os pontos de vista da liberdade e do combate, ao partilhar uma mesma situação, determinavam-se reciprocamente – tal como a disposição das pedras e a demarcação do chão, na obra, tornavam evidente. Depois, Dias foi para o exílio europeu, como outros. Nesse período, entretanto, permaneceram vivas a ironia aguda e mordente e a consciência dos fetichismos autorais e do circuito de trocas da arte, seus sinais passaram a se dar por meio de novas estruturas poéticas, sequestradas da arte minimalista 4

Ver Hélio Oiticica, “Esquema geral da nova objetividade”, em Nova objetividade Brasileira (pref. Mário Barata, Rio de Janeiro, A Cruz, 1967, catálogo de exposição), p. 4-18; Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/ Projeto Hélio Oiticica, 1996, catálogo de exposição), p. 110-20.

5

Ver Mário Pedrosa, “Do pop americano ao sertanejo Dias”, em Aracy Amaral (org.), Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília (São Paulo, Perspectiva, 1981), p. 220; Otília Arantes (org.), Acadêmicos e modernos: textos escolhidos IV (São Paulo, Edusp, 2004), p. 370.

6

Ver Antonio Dias, Do it yourself: freedom territory, 1968, fita adesiva e tipografia sobre piso, 400 x 600 cm, col. particular, em Antonio Dias (ed.), Antonio Dias, cit., p. 25.

7

Ver Antonio Dias, To the police, 1968, bronze, 14 cm de diâmetro, col. particular, em Antonio Dias (ed.), Antonio Dias, cit., p. 23.

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e da arte conceitual – correntes de algum modo congêneres à filosofia analítica da linguagem e que, então, preponderavam no mundo anglo-saxão8. Eram estruturas mais frias ou distanciadas, ou menos explicitamente sentimentais, que pareceriam a alguns uma reviravolta ante a linguagem anterior de Dias, à primeira vista mais expressiva9. Não era bem assim, porque as constantes que de fato preponderavam na linguagem de Dias mantiveram-se marcantes: a ironia, a apropriação da linguagem do outro10, o senso agudo das contradições centro-periferia e o senso do combate combinado contra as posições hegemônicas no circuito internacional da arte e contra as posições hegemônicas na ordem geopolítica11. Não obstante – e aqui o problema que me proponho a enfrentar –, na hora da ascensão de Thatcher (1925) e de Reagan (1911-2004), um punhado de signos expressivos e algo do repertório da linguagem pictórica expressionista voltaram a entrar em pauta na obra de Dias12. Que sentido terá no trabalho do artista a reapropriação do Expressionismo na era da chamada globalização13? É isso o que vamos discutir. 8

Ver, por exemplo, Antonio Dias, A ilustração da arte/ Um e três/ Chassis, 1971-74, madeira envernizada, 110 x 550 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, Arbeiten, works 1967-1994 (text. Paulo Sérgio Duarte e Klaus Wolbert, entrev. Nadja von Tilinsky, Darmstadt/ São Paulo/ Alemanha, Institut Mathildenhöhe/ Paço das Artes/ Cantz Verlag, 1994), p. 19.

9

Ver, por exemplo, Antonio Dias, The occupied country, 1970, acrílico sobre tela, 130 x 16 cm, col. particular. Disponível em: . Acesso em: 5 nov. 2008.

10

Ver, por exemplo, Antonio Dias, The day as a prisoner, 1971, acrílico sobre tela, 130 x 195 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 19.

11

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Empire, 1976, óxido de ferro e pigmentos metálicos sobre tela, 195 x 55 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p 37. Ver também, do mesmo autor, The illustration of Art/ Dazibao/ The shape of power, 1972, serigrafia e acrílico sobre tela, 121 x 317 cm, col. particular, e O país inventado, 1976, cetim, bronze patinado, comprimento 500 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 77 e 21.

12

Ver Antonio Dias, Re-arranging, 1981, papel feito à mão com grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos, 145 x 122 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 89.

13

Ver Antonio Dias, Campo de luta, 1983, papel feito à mão com acrílico, grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos, 60 x 280 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 91.

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Que tipo de antítese se institui, nesta altura, entre os termos do capitalismo tardio e a reutilização dos materiais expressionistas pelo artista já amadurecido, com uma década e meia de trabalhos realizados, boa parte deles no exílio?

Em tempos de Neoexpressionismo Como em outras vezes, Dias partirá de uma apropriação crítica ou da negação do discurso hegemônico no mundo da arte. Dessa vez, o objeto a ser negado e capturado ou parodiado é o Neoexpressionismo14. Assim como ocorrera antes com a arte pop, a arte minimalista e a arte conceitual, os clichês característicos da pintura neoexpressionista sofrerão uma torção, um processo de estranhamento ou distanciamento irônico que os esvaziará de seu conteúdo originário ou corrente. A intervenção de Dias reage criticamente a um complexo de fatores correlatos. Entre o circuito internacional da arte e o circuito financeiro internacional existem não apenas paralelismos ou similitudes metafóricas – sem falar de afinidades intelectuais, como aquelas entre o formalismo nas artes e o monetarismo nas ciências econômicas –, mas muitos canais concretos em comum – que os fluxos recentes promovidos pela desregulamentação financeira neoliberal vieram a intensificar e alargar, acentuando parentescos, ligações e afinidades eletivas. No circuito internacional de artes – depois de anos de predomínio de uma arte ascética e despojada que ou pregava o culto da “boa forma” e da funcionalidade ou o contestava, mas com espírito militante – dá-se um revival da pintura e, em particular, do Neoexpressionismo, regado a cotações de valor astronômicas15. Vale a pena insistir e detalhar: no mundo, maior é o tempo da ascensão do thatcherismo e do 14

Ver, por exemplo, Georg Baselitz, Frau Amstrand: Nacht in Tunesien (Woman on the beach: night in Tunisia), 1980, óleo e betume sobre tela, 250 x 200 cm, Stedelijk Museum, Amsterdã, em Georg Baselitz, Georg Baselitz (text. e curad. Diane Waldman, Germany, Cantz, 1995, catálogo de exposição), p. 121. Para um caso nacional, ilustrativo da voga “neoexpressionista”, ver Iberê Camargo, Hora V, 1983, óleo sobre tela, 95,5 x 214 cm, col. particular, em Paulo Venâncio Filho, Iberê Camargo (Rio de Janeiro, Fundação Iberê Camargo, 2003, catálogo de exposição), p. 59.

15

Ver, por exemplo, Georg Baselitz, Tulips, 1981, óleo e têmpera sobre tela, 130 X 97 cm, col. particular, em Georg Baselitz, Georg Baselitz, cit., p. 129.

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reaganomics, do monetarismo extremado em dura ofensiva contra os movimentos sociais e as estruturas sindicais, bem como contra a instituição do Welfare State16 – instituição, até o momento precedente, considerada funcional econômica e politicamente para o capitalismo (em concorrência planetária com a panóplia burocrática de Moscou). Paralelamente, nas esferas da vivência e da subjetividade do Ocidente anglo-americanizado, a financeirização toma conta de amplos extratos da sociabilidade e processa-se uma colonização do eu. É o tempo dos yuppies e dos programas que visam, primeiro na Inglaterra de Thatcher e depois em muitas partes do mundo, fazer do trabalhador um similar ou duplo do investidor. Desligava-se aquele, o trabalhador, da Previdência, para fazê-lo acorrer na pele deste, o investidor, aos fundos de pensão17. Em síntese, a situação põe lado a lado Neoexpressionismo e ascensão do capital fictício. O que um tem a ver com o outro? Fato é que em resposta a esse estado de coisas, Antonio Dias irá se apropriar de clichês do Neoexpressionismo e os combinará a alguns outros materiais: elementos da pintura bizantina, resíduos de matérias variadas, pigmentos industriais, solventes, óxidos e alguns signos emblemáticos, como: cifrões, ossos, ferramentas, bandeiras, planta da galeria etc.18. Como tudo isso se arranja e para quê? Passemos em revista procedimentos e elementos recorrentes e algumas características gerais das obras dos decênios de 1980 e 1990. 16

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Two factories-crossed arms, 1984, 162 x 240 cm, grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 97.

17

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Fábricas de destruição, 1986, 159 x 118 cm, papel feito à mão com grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 96. Ver também The electrician, 1986, 203 x 320 cm, grafite, madeira, borracha e fio de arame sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 99.

18

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Corpo & anima/ The edge of night, 1986, 200 x 300 cm, grafite e gesso acrílico sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 102. Ver também Antonio Dias, Between the factory and the axe, 1987, 95 x 215 cm, acrílico, grafite, borracha e pratos de cobre sobre tela, col. particular; Antonio Dias, Pistol, 1986, 55 x 120 cm, grafite, borracha, arame e pigmentos metálicos sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 104-5.

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Antonio Dias utiliza resíduos de matérias e não cores, de modo a realçar a opacidade dos suportes19. Assim, as superfícies das obras começam por sofrer a aplicação de soluções químicas, pigmentos e diversos resíduos. As telas são preparadas ainda mediante a lavagem de superfícies entintadas ou a subtração, por raspagem ou outro processo, de elementos antes adicionados. Restam resíduos e impregnações20. Trata-se de um expressionismo de laboratório, de textura aparentemente orgânica, mas ordenado e meticuloso na produção de uma “pele” pictórica. Grandes superfícies, nas quais os acidentes e as irregularidades de textura se configuram como partículas de um sistema, surgem frequentemente impregnadas do pó cinzento-prateado do grafite, uma das “cores” recorrentes nos trabalhos de Dias no período21. Tais partículas parecem evocar um processo de unificação da sensibilidade, em larga escala. Como essa é a cor geral das armas (punhais, fuzis, aviões) e também a dominante dos automóveis fabricados na época, já se vê bem de onde vem e para onde vai essa reforma da sensibilidade. Pode-se com ela falar de “exércitos de consumidores” e de certa militarização do consumo, na medida em que o uso ostensivo de griffes e símbolos identificatórios de grupos se dissemina e cria novos uniformes22. Assim, se na obra de Dias que respondia ao golpe militar de 64, com os trabalhos da Nova Figuração e da Nova Objetividade, os sinais e efígies de partes do corpo remetiam ao Expressionismo e à dor maior da hora, nas obras feitas na era da hegemonia artística neoexpressionista, são vultos de ferramentas, ossos e cifrões, enfim, símbolos descarnados do trabalho vivo e do trabalho morto, do valor e da morte, que nos recordam o que resta da vida. Desse modo, é delimitado um teatro de operações23. 19

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Ossuary, 1987, 130 x 272 cm, grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 107.

20

Ver, por exemplo, Antonio Dias, People’s wings, 1988, 120 x 240 cm, acrílico e grafite sobre tela, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 113.

21

Ver, por exemplo, Antonio Dias, R Evolution, 1988, 130 x 370 cm, acrílico e grafite sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 115.

22

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Economy, 1988, 190 x 270 cm, acrílico, grafite e ouro composto sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 116.

23

Ver, por exemplo, das obras antigas, Antonio Dias, Os restos do herói, 1966, acrílico, óleo e vinil sobre madeira e tecido estofado, 185 x 178 x 35 cm, col. particular. Dis-

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Além dos signos referidos e das grandes superfícies – cuja extensão sugere ilimitação –, as pinturas trazem também outros elementos que funcionam como chamarizes24. São os constructos em ouro, cobre ou metais brilhantes, em formas ovais, circulares ou sugerindo circuitos dourados. São ícones – se os entendermos como circuitos do valor – cuja aplicação na superfície dos trabalhos evoca a arte bizantina25, conforme lembra Mário Pedrosa a respeito da pintura de Dias no pós-6426. Além dessa família de ícones, constituída de duplos da auréola e da moeda, há outra: a dos frascos e recipientes de perfumes (que são referidos nos títulos das obras). Perfumes seduzem e despertam divagações. A referência a essências aromáticas, que em vista da famigerada planaridade ou bidimensionalidade da pintura é certamente irônica, não é supérflua nem destituída de estratégia27. Frascos de perfumes servem, aqui, de símbolos ou signos portantes do fetiche ou da aura da mercadoria. Alusões a recipientes de venenos e à morte completam tal panóplia de época. Uns e outros, formas brilhantes e vultos de frascos, evocações da sedução e da morte, todos, enfim, constituem tópos da mitologia própria ao desfecho da Guerra Fria ou à afirmação da supremacia global das forças da ponível em: . Acesso em: 5 nov. 2008. Ver também América, o herói nu, 1966, tinta acrílica sobre madeira, tecido acolchoado e duratex, 83 x 61 x 10 cm, col. particular. Das obras mais recentes, ver Campo de luta, 1983, papel feito à mão com acrílico, grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos, 60 x 280 cm, col. particular, e Young Swiss artist, 1986, 130 x 195 cm, grafite, óxido de ferro, gesso acrílico, papel e encáustica sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 91 e 103. 24

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Generator, 1988, 195 x 130 cm, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 119.

25

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Diapason, 1988, 130 x 195 cm, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 121. Ver também, de Antonio Dias, Sun photo as self-portrait, 1991, 200 x 200 cm, grafite e ouro composto sobre tela, col. particular, e Independent heart, 1989, 169 x 199 cm, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 123 e 131.

26

Ver Mário Pedrosa, “Do pop americano ao sertanejo Dias”, cit., p. 221; Otília Arantes (org.), Acadêmicos e modernos, cit., p. 371.

27

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Parfum & poison, 1989, 100 x 160 cm, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 143.

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economia de mercado28. Com sua volta à pintura e mediante a reabilitação de procedimentos pictóricos que evocam a arte bizantina, Antonio Dias discorre sobre a nova religião universal, a dos valores voláteis, como o perfume e os derivativos, que são perfumes de valores, sem esquecer do brilho dos cifrões29. Na nova Constantinopla imaginária, que o artista explora e perscruta com o raio X de suas telas, caiu um muro, ergueu-se outro: o de Wall Street30. Nos campos ou nas áreas de cor, onde tais ícones e figuras de valor se instalam, eles reinam isolados como logotipos ou marcas comerciais. À sua volta, dissemina-se, em geral sobre um único substrato cromático, uma miríade de microfenômenos: pontos diferenciados da textura (empastes, granulados etc.), rastros de pinceladas, vestígios de vultos que lá estiveram e deixaram de estar, em suma, muitos sinais de ausências, posto que, é desnecessário insistir, o tempo da acumulação concentrada e vertiginosa, o tempo da grana concentrada, é também o tempo da promoção e da invenção de carências, do dispêndio de luxo31. Trata-se de uma economia pictórica orgânica e rica de singularidades, que por meio dessas diversas “moedas pictóricas” – pinceladas, empastes ou coisa símile – evoca o modo de ser das subjetividades32. Tudo isso se refere,

28

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Beaten Ausländer, 1993, 24 x 18 cm cada, acrílico, malaquita e óxido de ferro sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 136-7. Ver também Tijolinhos, 1990, 40 x 65 cm, acrílico, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 144.

29

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Bricks, 1991, 40 x 120 cm, acrílico, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 145.

30

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Marca, 1993, 90 x 140 cm, acrílico e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 151.

31

Ver, por exemplo, Antonio Dias, All the colors of man, 1993-94, 100 x 240 cm, acrílico, grafite, malaquita, óxido de ferro e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 117. Ver também Container for poison, 1993, 90 x 120 cm, malaquita, óxido de ferro e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 154.

32

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Duas coisas, unidas pelo olhar, 1993, 90 x 120 cm, malaquita, óxido de ferro e ouro composto sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 155.

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com ironia, ao Neoexpressionismo e à sua suposta matéria de eleição, a subjetividade contemporânea33. Que subjetividade é essa? Um olhar atento às questões e à história acumulada da obra de Dias terá elementos eloquentes para concluir: o eu que se expressa, nessa pauta de símbolos dispostos pelo autor, é o eu que calcula 34. O que a estratégia pictórica de Antonio Dias nos diz é, em suma: o Neoexpressionismo é o Expressionismo do Investidor. Desse modo, e segundo a torção que Dias lhe aplica, o Neoexpressionismo fala de economia, investimentos e trocas simbólicas35. Seu discurso se assemelha aos dos novos gerentes, dos especialistas corporativos, dos jornalistas especializados em finanças e investimentos36. Na operação do pintor que simula e parodia o Neoexpressionismo – operação severa como um congelamento –, os elementos desse estilo perdem, portanto, todo sentido subjetivo real, para aparecerem como mera fantasmagoria, imagens ilusórias de um regime de subjetividade perdido37. São sinais glaciais de subjetividades vazias, que só voltam a circular como trabalho morto e maquinal. Figuram uma expressão da subjetividade automática do capital, referida exclusivamente a si; subjetividade narcísica que calcula os lances, simula riscos, contabiliza benefícios e custos, sem se projetar num todo maior38. Desse modo, os elementos do Neoexpressionismo, relidos e reencenados pela 33

Ver, por exemplo, Georg Baselitz, Flaschentrinker: Bottle Drinker, 1981, óleo sobre tela, 162 x 130 cm, col. particular, em Georg Baselitz, Georg Baselitz, cit., p. 133.

34

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Two similar containers, 1989, 90 x 120 cm, malaquita e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 155.

35

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Caramuru, 1992, 195 x 325 cm, acrílico, grafite, malaquita e ouro composto sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 156.

36

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Man flying, 1991, acrílico, grafite, óxido de ferro, ouro composto e folha de cobre sobre tela, 95 x 340 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 142.

37

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Ich, 1989, grafite e folha de cobre sobre tela, 300 x 200 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 140.

38

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Room for sorrow, 1989, 160 x 130 cm, acrílico, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 141.

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ironia de Dias, não vão além de si e, reflexos da irreflexão, admitem provar de seu próprio vazio39. Se é fato que no Neoexpressionismo, conforme sugerem as montagens de Dias, o sofrimento real, o pathos do sujeito histórico do Expressionismo, deu lugar ao prisma narcísico do eu do investidor, o estilo em questão terá algo da histeria40. Será tal um gozo deslocado, e representado, a reencenação de uma manifestação da subjetividade que não se deu porque em seu lugar a substância era a do capital41. Para bem apreciarmos a medida e o alcance, a ciência da mira de Dias, é preciso ter presente que a criação de tais “cenários”, ou contextos de significação, não supõe uma teologia do signo, um ato semântico piedoso e acrítico. A consciência do terreno em que se trava o combate, aquele do território da arte, e a economia própria da arte constituem sempre o objeto primeiro e prioritário das ações de Dias. Os conflitos endógenos da prática da arte precedem todos nessa obra e funcionam como caminho incontornável até os demais conflitos que ela evoca. Consoante a isso, não há peça da obra que apresente superfície ou técnica homogênea. Em consequência, a recepção é instada a se dar aos saltos, a conquistar dialeticamente pontos de vista diferentes ou distintos graus de reflexão42. Radicados na dimensão histórica – entendida ora como história geral, ora como história da arte –, os trabalhos de Antonio Dias inter-relacionam, 39

Para o contraste entre a pintura de Dias da década de 1990 e a “pintura contemporânea” (leia-se neoexpressionista), que “funde a imagem num simulacro de cena” do ato pictórico, ver texto de Paulo Sérgio Duarte em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 28.

40

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Corpo, 1990, grafite e ouro composto sobre tela, 195 x 130 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 134.

41

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Dots/ Skin, 1994, 80 x 150 cm, acrílico, grafite, óxido de ferro, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 158.

42

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Brazilian painting/ Bosnia’s jungle, 1994, 60 x 160 cm, acrílico, malaquita, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 159a. Ver também Brazilian painting/ Bosnia’s jungle, 1994, 80 x 120 cm, acrílico, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 159b, e Brazilian painting/ Bosnia’s jungle, 1994, 90 x 150 cm, acrílico, malaquita e óxido de ferro sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 160.

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desse modo, domínios que a divisão social do trabalho e a reificação geral dos processos cognitivos levou a serem considerados estranhos e apartados entre si43. Na combinação da experiência imanente do olhar com a da reflexão, o observador é levado a reconstruir as partes de um processo histórico maior, muito mais amplo que os trabalhos de arte com que depara44. Tais trabalhos levam o observador a refletir sobre “uma totalidade”, para usar palavras de Dias, “que existe fora do quadro, e que de lá o invade”45. Na ação crítica do artista em questão, é esse todo que se exprime de modo estrutural e rítmico46.

43

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Brazilian painting/ Bosnia’s jungle, 1994, 80 x 140 cm, acrílico, malaquita, óxido de ferro e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 161.

44

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Brazilian painting/ Coluna vertebral, 1994, 180 x 240 cm, acrílico, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 163.

45

Ver Antonio Dias, “Em conversação”, entrevista com Nadja von Tilinsky, em Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 54.

46

Ver, por exemplo, Antonio Dias, Corpo, 1990, 195 x 130 cm, grafite, óxido de ferro, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 133. Ver também Invader, 1992, 179 x 249 cm, acrílico, grafite, malaquita sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 146; Antonio Dias, Raiva organizada, 1993, acrílico, grafite sobre tela, 200 x 260 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 147; Antonio Dias, Autonomia/ Pessoa nefasta, 2000, acrílico, folha de ouro e cobre sobre tela, 150 x 150 cm, col. particular.

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A RENDA DA FORMA NA ARQUITETURA DA ERA FINANCEIRA Pedro Fiori Arantes

Já faz algum tempo que a arquitetura embarcou no universo midiático das marcas, a ponto de as obras serem concebidas para gerar renda de um novo tipo, que não apenas a velha renda fundiária. Os novos edifícios são desenhados para circular como se fossem “logotectures” – na expressão de Frank Gehry1, uma das estrelas de maior brilho do atual establishment da arquitetura, autor do celebrado Guggenheim de Bilbao. É o que reconhece também, sem meias palavras, outro arquiteto de grife, Jacques Herzog, um dos responsáveis pelo projeto da New Tate: “Se a arte e a arquitetura são agora mais do que nunca instrumentos políticos, é porque estão cada vez mais próximas do universo das marcas”2. A sofisticação técnica ostensiva, a diferenciação das superfícies e a exuberância formal passaram a ser requisitos para constituir imagens arquitetônicas exclusivas, capazes de valorizar os investimentos e, consequentemente, as cidades que os disputam. Com a passagem da hegemonia do capital industrial para a das finanças globalizadas – o reino do capital fictício, segundo Marx –, surgem, nas novas paisagens urbanas, figurações surpreendentes produzidas por uma arquitetura de ponta – aquela que explora os limites da técnica e dos materiais, quase sem restrições, inclusive orçamentárias. O que se vê por toda parte são formas que aparecem como o exato contrário da sobriedade tectônica e espacial, que via de regra se submetia ao rigor da geometria euclidiana e dominava a arquitetura moderna. Em sua “liberdade” inventiva, alimen1

O termo é empregado no documentário de Sydney Pollack, Esboços de Frank Gehry (2005, 84 min.)

2

Jacques Herzog, citado por Luis Fernández Galiano, “Diálogo y logo: Jacques Herzog piensa en voz alta”, Arquitectura Viva, n. 91, ago. 2003, p. 26.

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tam-se, nessa nova fase do capitalismo, de um paradoxo técnico-formal: quanto mais informe, retorcido, “desconstruído” ou “liquefeito” o objeto arquitetônico, maior seu sucesso de público e, portanto, seu valor como imagem publicitária. Este é o grau zero da arquitetura, agora reduzida a um jogo de formas aparentemente sem regras e limitações de qualquer espécie, em busca do grau máximo da renda – fenômeno de que nos ocuparemos aqui. Do ponto de vista da acumulação capitalista, essas obras são exceções e não a regra na produção social do espaço. Exceções em diversos sentidos. Embora respondam por menos de 0,1% da produção arquitetônica mundial, ocupam a quase totalidade das revistas especializadas, das exposições e prêmios, além de se tornarem parâmetros para o sucesso profissional. O tipo de valorização que promovem é de outra natureza que a do mercado imobiliário stricto sensu. Essas obras, em geral, não estão diretamente à venda, apesar de muitas vezes fazerem parte de estratégias de “cidades à venda” ou de valorização das marcas. Seu valor de uso é o de representação e distinção. Elas não compõem o tecido urbano corriqueiro e, em geral, não precisam obedecer às legislações de uso do solo. São exceções que pretendem constituir-se em “fatos primários” da cidade, reconhecidos como monumentos, mesmo quando a encomenda é privada. A renda que geram é similar à renda fundiária, porém diferente: é uma renda monopolística intrínseca à sua forma arquitetônica única e espetacular. Por isso, essa arquitetura obtém mais dividendos na circulação do que com sua produção, ou melhor, sua produção é comandada pelos ganhos advindos da sua divulgação midiática e da capacidade de atrair riquezas (por meio de investidores, turistas, captação de fundos públicos etc). Trata-se de uma arquitetura que circula como imagem e, por isso, já nasce como figuração de si mesma, num círculo tautológico de redução da experiência arquitetônica à pura visualidade, resultado da busca incessante pelo ineditismo e pelo que denominamos renda da forma. Nesses projetos, os softwares mais avançados podem ser empregados, além de máquinas programáveis e até robôs, mas o velho artesão e a exploração sem peias do trabalho precarizado e migrante continuam na base. Essas obras mobilizam forças produtivas, também nesse sentido alternando recorrências e excepcionalidades, como a aplicação pioneira de novos materiais e técnicas (ou a retomada de habilidades artesanais e de outros campos produtivos) que não estão à disposição da produção imobiliária corriqueira.

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São, desse modo, agentes de uma inovação restrita, que não quer se democratizar, pois o segredo de sua rentabilidade é a manutenção do monopólio, isto é, da exceção. As mudanças que analisaremos nas técnicas de representação e de produção, e no padrão das formas arquitetônicas indicam uma ruptura maior do que a crítica ao pós-modernismo deu comumente a entender. Podemos estar entrando numa nova fase de percepção, produção e consumo do fato arquitetônico que parece modificar alguns dos principais fundamentos das fases anteriores.

Afinidades eletivas Não será demais lembrar que o Movimento Moderno na arquitetura, desde seus primeiros manifestos na década de 1920, definiu um programa que elegia como principal aliado e exemplo a ser seguido o capital industrial – mais adiante, o próprio Estado e, na periferia, as “burguesias nacionais” e seus governos desenvolvimentistas. Da engenharia à estética industrial, a inspiração maquinista e racionalista norteou experiências construtivas e urbanísticas. Mesmo em caráter experimental, eram quase sempre projetos para serem multiplicados em escala de massa. Daí a afinidade com a seriação industrial, mesmo que pouco realizada na prática. Concreto, aço e vidro eram os novos materiais empregados nas formas prismáticas, em geral ortogonais e abstratas, despidas de ornamentos. Tornaram-se objeto de pesquisa e projeto os edifícios industriais, de escritórios, grandes infraestruturas e casas operárias (“máquinas de habitar”) – componentes do capital fixo e do fundo de reprodução da força de trabalho que integram o processo produtivo inerente à acumulação capitalista. A cidade, de seu lado, era pensada como um tecido urbano relativamente uniforme, separado apenas por suas funções, um modelo no qual a renda diferencial intraurbana tenderia a zero. O capital industrial e o trabalho assalariado representavam o polo moderno, enquanto o proprietário fundiário e sua renda da terra (heranças do Antigo Regime e promotores da irracionalidade urbana), o arcaico. Na disputa pela partição da mais-valia, a arquitetura moderna fez aliança com os setores produtivos, com o capital enquanto função, mais do que como propriedade. Tal simbiose, contudo, foi a rigor mais estilizada do que efetiva com os ramos industriais mais avançados, sobretudo o setor automobilísti-

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co, porém ocorreu de fato com as grandes construtoras e governos modernizadores, em cujos canteiros de obra o que vigorava era mesmo a mais retrógrada exploração. Na arquitetura contemporânea, se a aliança é mais uma vez com os setores dominantes, ou seja, com o polo mais dinâmico e próspero da economia, ela se verifica com o próprio capital em sua forma financeira, e em particular com a indústria do entretenimento e a nova “economia do acesso”, baseada na renda. Na verdade, a associação histórica da arquitetura sempre foi com os donos do poder e do dinheiro, sobretudo com a propriedade privada, da terra e do capital. Existe uma tendência da arquitetura em se apegar às rendas e não aos lucros, dada sua fixidez e seu custo elevado3. É quase uma “fatalidade” de sua natureza: ela reitera o fundiário e o financeiro, mesmo que não o faça de modo voluntário. Por ser um bem único, sempre detém alguma renda de monopólio. Na arquitetura moderna, havia uma contratendência que procurava minimizar o poder da renda e das finanças, associando-se aos setores produtivos e governos nacionais modernizadores, mas na era da mundialização financeira não há mais nenhuma força que contrarie esse poder. Como veremos, as implicações no plano das dimensões construtivas e sociais da arquitetura serão profundas: a arquitetura rentista abdica de certos conteúdos em benefício de usos “improdutivos”4, próprios à esfera da circulação e do consumo (terminais de transporte, shopping centers, hotéis, estádios, museus, salas de concerto, parques temáticos etc.). Seu desejo não é mais de seriação e massificação, mas de diferenciação e exclusividade. Produz objetos únicos e marcantes que “pousam” nas cidades, potencializando a renda diferencial e o capital simbólico, o que estamos denominando de renda da forma.

3

Segundo David Harvey, não apenas a arquitetura, mas todo o campo cultural privilegia as rendas monopolistas. As mercadorias culturais possuiriam uma dinâmica diferenciada em relação às convencionais, pois sua linguagem de excepcionalidade, originalidade e autenticidade é decisiva para o estabelecimento das rendas (Ver “El arte de la renta: la globalización y la mercantilización de la cultura”, em Capital financiero, propriedad inmobiliaria y cultura, Barcelona, Universidad Autónoma de Barcelona, 2005).

4

Adoto o termo em referência à noção de “trabalho improdutivo” para Marx, isto é, aquele que não gera diretamente mais-valia e que se apoia justamente em sua distribuição e partição.

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Arquitetura de marca Na virada do século XXI, os arquitetos do star system passaram a desenvolver imagens cada vez mais elaboradas do poder e do dinheiro. Com a palavra novamente Herzog: “[...] trabalhamos com a materialidade física da arquitetura porque só assim podemos transcendê-la, ir mais longe e chegar inclusive ao imaterial”5. Alcançar o “imaterial” por meio da mais tectônica das artes, a arquitetura, num aparente contrassenso, é produzir um valor intangível socialmente mensurável, como o valor de representação de um poder corporativo (de um governo, de uma empresa, de uma Igreja ou de um país). A diferença é que, agora, essa força espetacular da arquitetura não é mais requisito único de regimes absolutistas, autocráticos ou fascistas, mas de grandes estratégias de negócio associadas ao turismo, a eventos culturais e esportivos, ao marketing urbano e à promoção de identidades empresariais. O fato é que nenhum arquiteto moderno, diante de suas (agora) prosaicas caixas de vidro, aço e concreto, poderia ter antecipado o grau de sofisticação técnica e exuberância formal que a “arquitetura de marca” está alcançando. A ascensão das marcas, mesmo as de empresas produtoras de mercadorias tangíveis, está sobretudo associada à nova hegemonia financeira, segundo a qual a imagem e o nome da marca se sobrepõem ao valor-trabalho das mercadorias que a empresa produz (ou terceiriza), acrescentando-lhes um valor de novo tipo: uma espécie de renda de representação das próprias mercadorias. Cumprem, como imagem que se destaca do corpo prosaico do objeto, um papel similar ao da abstração do dinheiro. O diferencial de exclusividade da marca é justamente ser uma forma de propriedade que não pode ser generalizada. O monopólio sobre seu uso é uma forma de renda, por isso é patenteada e, de forma correlata à terra, protegida por cercas jurídicas (e por vezes reais) para controle do acesso. Essa autonomização das formas de propriedade produz, ao mesmo tempo, uma autonomização da forma como pura propriedade. A forma torna-se capital por meio de um fenômeno imagético, no qual é remunerada como capital simbólico, pela renda da forma. Essa relação entre o objeto físico e os valores imateriais não ocorre apenas no plano da ideologia, evidentemente. Ela tem fundamentos produti5

Jacques Herzog, citado por Luis Fernández Galiano, “Diálogo y logo”, cit., p. 29.

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vos e faz parte de um processo de valorização do capital de novo tipo. Atualmente, todas as grandes empresas sabem fazer produtos similares com a mesma competência técnica, a diferença está nos valores imateriais que cada produto é capaz de incorporar por meio de estratégias de marketing, branding e design. Segundo Naomi Klein, as grandes corporações perceberam rapidamente que: todo mundo pode fabricar produtos [...] essa tarefa ignóbil pode ser delegada a terceiros [...] enquanto as matrizes estão livres para se concentrar em seu verdadeiro negócio – criar uma mitologia corporativa poderosa o bastante para infundir significado a esses toscos objetos, apenas assinalando-os com seu nome.6

Essa busca pela “transcendência corporativa” é um fenômeno relativamente recente, quando um grupo seleto de empresas percebeu que construir e fortalecer suas imagens de marca, em uma corrida pela ausência de peso, era a estratégia para alcançar um novo tipo de lucratividade7. “Esses pioneiros declaram audaciosamente que produzir bens era apenas um aspecto incidental de suas operações”, afirma Naomi Klein, “pois sua verdadeira meta era livrar-se do mundo das coisas”. Ou procurar “fazer crer que cada produto adquiria um estatuto superior ao de coisa”, como se tivesse uma “alma”, um “núcleo espiritual”8. A estratégia estava dando certo, pois as empresas que investiam na capitalização de suas marcas passaram a inflar como balões e a valer no mercado várias vezes mais do que no papel – numa impressionante capitalização fictícia. Mesmo que seguissem produzindo mercadorias palpáveis (cada vez menos diretamente), seus lucros se elevavam muito acima da média porque haviam se tornado verdadeiros “agentes produtores de significados”, como se fizessem parte da indústria cultural. 6

Naomi Klein, Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido (Rio de Janeiro, Record, 2004), p. 46.

7

É bom lembrar, no entanto, que essa estratégia não decorre exclusivamente da atual dominância financeira no regime de acumulação. A possibilidade de desviar lucros diferenciais da taxa média remonta, no fundo, à própria órbita produtiva: as formas rentistas de hoje estão, na verdade, exponenciando mecanismos de concorrência entre capitais, sobretudo quando fabricam diferenças imaginárias para abocanhar uma porção maior do lucro total.

8

Ver Naomi Klein, Sem logo, cit., cap. 1; Isleide Fontenelle, O nome da marca (São Paulo, Boitempo, 2004), p. 177 e 180.

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Parece que estamos presenciando uma espécie de “deslocamento” ou “mudança de estatuto” da forma mercadoria9. Além de gerar mais-valia por meio do trabalho, ela aufere rendas de modo crescente, assumindo a condição de mercadoria cultural – por natureza, distinta da mercadoria prosaica e, por isso, portadora de uma renda adicional, de tipo monopolista10. Mais que isso, o fato de cada empresa produzir mercadorias supostamente exclusivas limita as possibilidades de comparação entre produtos e trabalhos equivalentes. A própria medida de trabalho socialmente necessário estaria assim deixando de expressar o valor, que passaria a sofrer uma “desmedida”11. A articulação entre renda e lucro no interior das mercadorias introduz na lógica produtiva uma dinâmica nova, um “traço rentista” que não deve ser subestimado. Segundo François Chesnais, na contabilidade das “empresas-rede” passou a ocorrer uma “‘confusão das fronteiras entre o ‘lucro’ e a ‘renda’”12. Não por acaso, a “gestão de marcas” tornou-se a especialidade preocupada justamente em definir o ponto ótimo de tal combinação. Na arquitetura não é diferente. Os arquitetos da era financeira, ao contrário dos modernos, não procuram soluções universalistas para serem reproduzidas em grande escala – o que anularia o potencial de renda monopolista da mercadoria. O objetivo é a produção da exclusividade, da obra única, associada às grifes dos projetistas e de seus patronos. O sucesso estrondoso de algumas obras e seus arquitetos, contudo, acaba estimulando a repetição das mesmas fórmulas projetuais, reduzindo a cada duplicação de volumetrias similares sua competência para gerar rendas de exclusividade. A arquitetura de marca tem assim um limite comercial que a obriga a adotar soluções inusitadas e sempre mais chamativas: se diversas cidades almejarem uma obra de Frank Gehry, por exemplo, perderão progressivamente a capacidade de capturar riquezas por meio de projetos desse tipo. 9

Ambos são termos utilizados por Isleide Fontenelle.

10

David Harvey, “El arte de la renta”, cit.

11

Eleutério da Silva Prado, Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria (São Paulo, Xamã, 2005); Jorge Grespan, O negativo do capital (São Paulo, Hucitec, 1998).

12

François Chesnais, “A emergência de um regime de acumulação financeira”, Praga, São Paulo, n. 3, 1997, p. 37.

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Duplo fetichismo Ao caracterizar a sociedade do espetáculo como o estágio avançado do capitalismo no qual tudo virou representação, Guy Debord estava justamente apontando para o fato de que a práxis social teria definitivamente se cindido entre realidade e imagem. O espetáculo é, pois, a anti-história, o antitrabalho e a antipolítica. Trata-se de um mundo tautológico em que os meios se confundem com os fins, uma gestão de abrangência máxima das condições da existência por uma segunda realidade imaterial, separada, mas integrada. O termo “espetáculo” já havia sido adotado por Benjamin para definir a estetização da política como prática central do fascismo. Debord, entretanto, completa o argumento definindo o espetáculo não apenas como manifestação de regimes totalitários, mas do próprio capital. Em sua definição mais conhecida, “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”13. A descrição que passou a se generalizar a partir da década de 1970 é a de que viveríamos uma transição da modernidade para a chamada pós-modernidade – com uma correspondente transição da centralidade da lógica econômica da produção para a circulação e o consumo. A capacidade de controle acurado sobre a forma e sobre a imagem passa, em consequência, a ser um elemento decisivo. Presenciamos, por isso, a inflação vertiginosa do design. “O sistema de valor de troca estendeu-se a todo o domínio dos signos, formas e objetos [...] em nome do design”, afirma Baudrillard. Imagem e produto podem circular como uma coisa só, como produtos-imagem com “signos valores de troca”14. Segundo Hal Foster, nessas condições, o produto não é mais um objeto, mas um dado a ser manipulado15. Essa transformação é contemporânea da expansão da financeirização como fenômeno hegemônico global. É o momento em que a lógica do capital fictício passa a comandar a das forças produtivas reais, como previra Marx, em O capital. O tempo e a forma do capital portador de juros passam a se impor sobre os demais e servem como nova medida. De um lado, o tempo 13

Guy Debord, A sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro, Contraponto, 1997), p. 25.

14

J. Baudrillard, citado por Hal Foster, Design and crime (and other diatribes) (Londres, Verso, 2002), p. 18; tradução livre.

15

Ibidem, p. 21; tradução livre.

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se projeta para a frente, com os juros comandando – de forma ditatorial – a expectativa de lucros futuros e as decisões do presente. De outro, a forma-dinheiro deixa de estar articulada com seu conteúdo, descolando-se de seu fundamento. O capital pretende desgarrar-se do trabalho e instituir uma dominação sem sujeitos. No campo da produção das mercadorias, pois é ainda disso que estamos tratando, a expansão da lógica do capital portador de juros sobre todas as outras esferas da economia e da cultura se exprime por meio de uma autonomização do significado em relação à materialidade dura dos produtos. Na produção de mercadorias, a racionalidade do capital fictício se expressa com a troca de um produto imaginário (como o “nome da marca” ou a “experiência”) por dinheiro – isto é, a transformação em capital daquilo que originalmente não é. Como na sua forma financeira, essa é a possibilidade que o capital procura para valorizar-se, desprendendo-se da materialidade dura dos produtos. O que estamos presenciando é uma manifestação mais avançada do fetichismo da mercadoria, pois não se trata apenas da separação entre produto e produtor, mas entre o produto real e sua imagem como produto imaginário – que passa a circular e a valorizar-se com certa autonomia. O fetiche em sua primeira manifestação, como fetichismo da mercadoria, é a separação entre o fazer e o feito, a autonomização do produto em relação ao produtor. O encantamento da mercadoria, que parece nascida por iniciativa própria, negando sua origem, é uma abstração primeira. O exemplo dado por Marx é o da mesa que passa a dançar, como numa sessão espírita. Esse fetiche de primeiro grau está associado à formação de valor na produção de mercadorias, bens tangíveis que cristalizam a energia do trabalho fisicamente aplicado. Já o fetichismo na fase atual do capitalismo vai além dessa alienação inicial. Ele poderia ser comparado com o que Marx denominou no livro III de fetichismo do capital financeiro, como forma de autonomização da propriedade e de sua representação. Essa segunda abstração não é mais interna à mercadoria, como no primeiro caso, mas aparece como uma força externa. No fetichismo do capital, o dinheiro parece gerar mais dinheiro a despeito da produção e do trabalho, como se o valor nascesse da própria circulação. Essa segunda abstração passa a sobredeterminar a primeira, como forma mais acabada de exposição. Segundo Marx, nesse momento o fetiche

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encontra sua “forma pura” e “não traz nenhuma cicatriz, nenhuma marca de seu nascimento”16. Pode-se afirmar que, de forma similar à autonomização do dinheiro em relação à mercadoria, ocorre a da imagem em relação ao objeto – ambas são manifestações do fetiche em sua forma potencializada. A imagem também se torna um ativo financeiro, como uma renda que adquire uma figuração. Como afirma Debord, “o espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias [...] o espetáculo é o dinheiro que apenas se olha, porque nele a totalidade do uso se troca contra a totalidade da representação abstrata”17. Se o primeiro fetiche ainda estava preso à produção do valor e ao mundo de Prometeu, ou seja, à liberação de forças produtivas, ao “fogo do trabalho” que lambe as matérias inanimadas, despertando-as18, no fetiche de segundo grau prevalece o reino de Midas, em que tudo que o dinheiro toca passa a reluzir, tal qual sua imagem, ao mesmo tempo que se desumaniza – o processo de acumulação desprende-se de seus fundamentos. Na produção da cultura e, no caso da arquitetura, a passagem de um ao outro tipo de fetichismo tem consequências importantes. Como afirma Fredric Jameson, “há uma diferença radical no papel da abstração no modernismo e no pós-modernismo”19. A abstração pós-moderna está associada à financeirização, que, no âmbito da produção do espaço, encontra como equivalente ao capital portador de juros, e intimamente ligado a ele, a especulação imobiliária e suas rendas. O problema colocado por Jameson é o de definir as novas mediações entre economia financeira/ rentista e inflação cultural, levando-se em conta a especificidade da arquitetura. O fetichismo da mercadoria, na crítica de arquitetura, é um verdadeiro tabu, enfrentado por poucos. Creio que devemos ao arquiteto Sérgio Ferro a interpretação mais contundente dessa verdadeira interdição, em seu en16

Karl Marx, O capital (São Paulo, Nova Cultural, 1988), t.1, liv. III, cap. XXIV, p. 279.

17

Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 34.

18

Karl Marx, O capital, cit., t.1, liv. I, p. 146.

19

Fredric Jameson, “O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária”, em A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização (Petrópolis, Vozes, 2001), p. 173.

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saio sobre “O canteiro e o desenho”20. A dificuldade passava por definir a arquitetura como uma fusão entre arte e mercadoria, como protagonista na produção do valor, o que lhe permitia ser decifrada segundo a interpretação de Marx. A crítica ao fetiche da mercadoria na produção da arquitetura permitiu vislumbrar um espaço até então oculto: o canteiro de obras. A contradição entre desenho e canteiro, que está na base da separação entre os produtores e seu produto, é o mote da crítica de Sérgio Ferro. Em seus textos mais recentes, Sérgio Ferro também nota que a mudança na natureza do fetiche torna insuficiente a crítica à alienação do produtor para explicar a produção contemporânea. As utopias modernas, segundo ele, mal ou bem sempre foram “construtivas”, em consonância com os avanços da indústria e da engenharia. Nos projetos arquitetônicos de hoje, os preceitos construtivos convencionais são ironizados por aberrações elementares, tramas embaralhadas, geometrias não euclidianas, pilares inclinados, curvas oblíquas, volumes irregulares, cascatas de formas aleatórias. Um poço sem fundo da autonomia formal que encontra nas novas ferramentas tecnológicas de projeto a possibilidade de transladar o gesto artístico em processo produtivo factível no canteiro de obras. O desenho no computador aumenta sua força e permite figuras que antes seriam irrealizáveis com régua e compasso. A arquitetura pende para o escultórico e a imagem da obra acabada torna-se um evento midiático. A arquitetura pós-moderna, ou “simulada”21, ao incorporar recursos e expedientes da mídia, principia, decididamente e quase ao pé da letra, a desmaterializar-se. Nesse contexto, ocorre uma exacerbação do formalismo, uma reabilitação do frívolo, um predomínio do significante sobre o significado, enfim, estamos diante de uma arquitetura em que o “fútil assume proporções metafísicas”22. Malabarismos formais convertidos em apoteose publicitária dão origem a uma tectônica que não guarda mais relação com a escala humana e com a estática dos objetos. Segundo Peter Fuller, trata-se de “um fluxo de imagens que parecem mais reais do que a própria realidade”, o que dá “a impressão de um mundo físico em que as coisas foram 20

O ensaio, de 1976, foi revisado e republicado em Arquitetura e trabalho livre (São Paulo, Cosac & Naify, 2006).

21

A expressão “arquitetura simulada” é adotada por Otília Arantes, em O lugar da arquitetura depois dos modernos (São Paulo, Edusp, 1994).

22

Ibidem, p. 65.

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desmaterializadas ou reduzidas a superfícies”23. O design das mercadorias, dos objetos mais simples aos edifícios mais complexos, passa por uma expansão da estética das aparências, das embalagens e das “peles”, cada vez mais sofisticadas e chamativas, num “obsceno reino chapado das superfícies”, na expressão de Otília Arantes, em que a mera provocação da imagem desmancha qualquer propósito construtivo. Sai de cena Le Corbusier, com seu “modulor” e suas “máquinas de morar”, e entra Frank Gehry, o arquiteto-ícone da pós-modernidade financeira. Como Midas, ele tem a capacidade de transformar seus prédios, amontoados irregulares de aço, titânio e vidro, em verdadeiras minas de ouro. Sua clientela, como se verá nas análises a seguir, já não são mais os Citroën e Vargas de Le Corbusier.

Um mestre da instabilidade A primeira grande tentativa de Frank Gehry de realizar uma fusão entre arquitetura e marketing deu-se no projeto do Walt Disney Concert Hall, no centro de Los Angeles. O projeto de Gehry, datado de 1988, pretendia destacar-se radicalmente de seu entorno, cercado por imensas torres de escritório. Era uma dobradura irregular, em placas reluzentes de aço, como uma caixa encouraçada que fosse explodida pelo impacto de um bólido. O paradoxo visual residia na fluidez completa das formas recobertas por uma superfície dura, típica de blindagem militar. As junções complexas entre volumes e suas curvaturas dissimuladas eram, entretanto, um desafio construtivo que punha à prova o conhecimento da engenharia. O projeto de Frank Gehry colocou um novo problema para a arquitetura e a indústria da construção em pleno centro do capitalismo avançado: o edifício-emblema, vencedor de concurso público, ao começar a ser desenvolvido, mostrou-se inexequível. Aquele ícone da nova identidade urbana era irrepresentável em desenho, impossível de ser corretamente calculado e orçado. Acabou recusado por escritórios de projeto e empresas de construção e, assim, a Disney suspendeu sua execução. Gehry, entretanto, não desistiu da empreitada e foi descobrir nas indústrias aeroespacial e automotiva um programa de modelagem digital que pudesse transformar sua ousadia escultórica em um edifício exequível. O 23

Ibidem, p. 51.

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Catia, da francesa Dessault Systèmes, permitiu que as maquetes de criação de Gehry, feitas de papelão, massinhas de modelar e folhas de alumínio, pudessem ser esquadrinhadas e lidas a laser. O programa transformava as maquetes em grids tridimensionais, definindo coordenadas que permitiam detalhar a estrutura, peças e superfícies, e testar seu comportamento estático. O Catia permitia o desenho paramétrico de formas irregulares com membranas contínuas e suaves, como queria Gehry, construídas a partir de curvas de Bézier e de superfícies algorítmicas. Ainda assim, a Disney não estava completamente certa de seu investimento. Foi graças à parceria com o mais agressivo homem de negócios da cultura, Thomas Krens, diretor do Museu Guggenheim, que Gehry pôde construir de fato suas gigantescas flores metálicas. Em 1997, Gehry inaugurou o projeto que se tornou um verdadeiro emblema arquitetônico da globalização: o Museu Guggenheim de Bilbao. O museu é uma espécie de navio de guerra cubista, ancorado no rio Nervión, recoberto de chapas de titânio que reluzem ao sol como ouro. Gehry decompôs o campo perspéctico em múltiplos pontos de fuga, dando a sensação de movimento e instabilidade. A liberdade formal do museu, no limite do gesto aleatório, expressa a ausência de formas modelares que definiram a espacialidade arquitetônica até recentemente. Trata-se de uma espécie de “instabilidade semiótica” proposital, uma composição inapreensível que foge das matrizes visuais asseguradoras e converge, enfim, para os fundamentos da nova economia e da desestabilização do próprio mundo do trabalho. A fluidificação das formas revela uma real dimensão de classe, se for permitido falar do que afinal está em jogo: a alegação vanguardista corriqueira de que tal “desmanche” representa o fim de referências estáveis e sufocantes não deixa de incluir, como se fosse apenas um detalhe, o desmanche das instituições próprias ao campo do trabalho. O Guggenheim Bilbao é, por isso, bem-sucedido não apenas como surpreendente aparato técnico/ estético, como também, ou sobretudo, enquanto estratégia rentista. Ao ser divulgado pelos canais midiáticos como o ápice da produção arquitetônica recente, gerou fabulosas rendas de monopólio para os diversos agentes envolvidos. Como já constatara David Harvey, as intervenções urbanas têm se especializado em construir “lugares” exclusivos, capazes de exercer um poder de atração significativo sobre os fluxos de

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capital24. Nesse caso, a obra teria sido capaz de transformar a decadente e escura capital basca, que vinha sofrendo os efeitos da desindustrialização e da crise em seus estaleiros, numa das atrações do turismo mundial. Hal Foster chega a dizer que, depois dessa obra, a arquitetura não foi mais a mesma e vivemos, a cada novo projeto do gênero, uma espécie de “efeito Bilbao”25, no qual cada cidade procura construir um espetáculo de magnitude similar com o objetivo de atrair novos fluxos de capital. O museu é o resultado mais bem-sucedido de co-branding urbano até o momento, associando as “marcas” Guggenheim, Bilbao, Gehry, Dessault e da construtora Idom numa alavancagem midiática conjunta. A iniciativa pioneira foi capaz de capturar a super-renda imagética da operação, enquanto outras cidades e corporações corriam atrás da mesma estratégia. A megacorporação de entretenimentos norte-americana, dessa vez, havia ficado para trás. Após o sucesso estrondoso de Bilbao, a Disney autorizou finalmente a construção de sua sala de concertos na capital da Califórnia, inaugurada apenas em 2003, quinze anos após a elaboração do projeto. A 125 quilômetros de Bilbao, em Rioja, o arquiteto foi convidado para construir a Cidade do Vinho, um “templo dedicado ao néctar dos deuses”, a convite da casa Marquês de Riscal, em 2001. O espaço dionisíaco tem como programa: um museu da vinicultura, uma loja de vinhos (que não vende só as garrafas da casa), 43 suítes cinco-estrelas, um restaurante de primeira linha e um spa dirigido pela cadeia Les Sources de Caudalie. O acesso a essa experiência custa de 400 a 1400 dólares a diária. A “parceria” com o cada vez mais financeirizado mondo vino não foi casual26. A iniciativa associa dois tipos de rentismo, o do vinho27 e o da arquitetura. David Harvey, atualizando o exemplo de Marx, comenta que, na atual indústria globalizada do vinho, não é mais a tradição que garante as maiores rendas aos melhores terroirs, mas a prática discursiva do mercado de experts, que constrói critérios de avaliação de gosto cujos maiores favorecidos são os produtores que modernizam seus métodos e adotam estratégias de marketing. 24

David Harvey, “El arte de la renta”, cit.

25

Hal Foster, Design and crime, cit., p. 42.

26

Ver, por exemplo, a descrição da modernização da economia do vinho no documentário Mondovino, de Jonathan Nossiter (2004, 134 min.).

27

Marx, para explicar a teoria da renda diferencial da terra em O capital, utilizou como um de seus exemplos a produção de vinhos.

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O novo edifício de Gehry dá status inovador à casa Marques de Riscal e região, colaborando para o fortalecimento global da marca e ao mesmo tempo atraindo turistas, enólogos e enófilos para o referido “templo”. A obra de Gehry brota do meio da cidade medieval de sobrados de pedras de arenito como um jorro de vinho espalhando ondulações e reflexos metalizados púrpuras – figuração rentista, tal como um borbotão de riqueza (como a do petróleo) emergindo da terra. O arquiteto faz uma mínima concessão ao arenito local em alguns dos volumes do edifício, mas que são soterrados pelas cachoeiras de metal. As ondas, em tom violáceo e baunilha, fazem uma alegoria às cores e aos buquês dos vinhos. Há, de fato, um choque total entre o edifício e seu entorno, sem nenhuma preocupação contextual (contrariando a vertente regionalista/ vernacular tão em voga na Espanha). Esse é um fenômeno recorrente nos projetos contemporâneos, no qual os edifícios se apresentam como totalidades em si, desgarrando-se da cidade, de qualquer contexto ou território. Cumprem funções para além do lugar e do local, são edifícios e infraestruturas transnacionais de circulação do capital. Essa arquitetura se torna, por isso, autorreferente, tal como as finanças. Daí a irrelevância do contexto – não há mais por que se preocupar em formar a cidade, um mundo coeso, eventualmente homogêneo. Assim, pode-se chegar a um verdadeiro “espaço delirante”, sem restrições de estrutura, materiais, recursos e mesmo de qualquer uso. Como afirma Hal Foster, “sem os constrangimentos clássicos da arquitetura (resistência dos materiais, estrutura, contexto), sua arquitetura rapidamente se torna algo arbitrário e autoindulgente (porque essas curvas e não outras?) – os fãs de Gehry tendem a confundir essa arbitrariedade com liberdade”28. Em seu recente projeto para o DG Bank, em Berlim, Gehry produz novamente um choque contrastante, dessa vez entre a sobriedade externa do edifício e seu interior surpreendente. No pátio central do prédio, ele pousa uma cobertura irregular reluzente (de novo Midas), que poderia também ser interpretada como uma ironia norte-americana do arquiteto, como se uma derradeira bomba dos aliados tivesse ali sido lançada. Abrigada sob essa resplandecente massa informe, espécie de coração do sistema, está a mesa do board, conectada mundialmente por meio de telões de vídeoconferência. Quem olha da rua o edifício não chega a notar a intervenção de 28

Hal Foster, Design and crime, cit., p. 40.

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Gehry, a menos que entre e veja, por entre a colunata, os reflexos metalizados que vêm de seu coração. Aqui, a alegoria do capital financeiro – um choque de visualidade que cega – é mais sofisticada que as cascatas de vinho em Rioja. Seja pela comparação com o conjunto do edifício do banco, estruturado segundo a forma tríptica convencional (dois pilares e uma viga), ou mesmo pela própria intuição estática que a força da gravidade nos dá, a surpresa formal da intervenção de Gehry impede a compreensão de como foi feita. A massa irregular da cobertura em chapas de cobre aparece como uma mágica, contrariando as regras da física e da engenharia. A cobertura superior do pátio central, toda em vidro, eleva-se acima do gabarito do prédio, como se tivesse sido estufada pela explosão interior do volume em cobre. A forma curvilínea e aerodinâmica é dada por uma espetacular treliça metálica tensionada por cabos de aço. Mais uma vez, a imagem se destaca da tectônica do corpo do objeto como algo que paira acima de sua banal materialidade. Na verdade, há aqui alguns truques. A estrutura do volume central é toda composta por pórticos ondulados em aço e recoberta por painéis de cobre (externamente) e de madeira (internamente), constituindo superfícies fluidas, que escondem as estruturas e todas suas artimanhas para permanecer de pé. Uma solução aparentemente ousada, mas que se vale da técnica corriqueira da “armação oculta”, normalmente utilizada em esculturas grandes e ocas, como a Estátua da Liberdade, em Nova York29.

A produção do valor segue na base Se ainda formos procurar nas obras de Gehry expressões da contradição entre desenho e canteiro, próprias ao fetiche de primeiro grau, encontraremos diversas – o que comprova, aliás, que um tipo de fetiche não substitui o outro, mas sobrepõe-se a ele. Numa comparação com os arquitetos modernos – que desenhavam artesanalmente a nanquim e normógrafo em papel vegetal, mas propunham a padronização e a seriação de componentes pré-fabricados para montagem rápida em canteiro – pode-se dizer que houve uma estranha inversão entre esses polos. Gehry alcançou um patamar industrial de prática projetual, amparado por novas tecnologias de modela-

29

A lembrança é de Leonardo Benevolo, em Arquitetura do novo milênio (São Paulo, Estação Liberdade, 2007), p. 205.

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gem virtual (vindas da indústria avançada) que permitem desenhos irrealizáveis por instrumentos manuais e automatizam os cálculos complexos de engenharia. Entretanto, sua profusão formal, em que nenhuma curva repete outra, acaba por exigir uma produção ultraflexível (pré-industrial, mas hoje também pós-industrial). O resultado é que seus canteiros de obra se tornam verdadeiras oficinas de joalheria. Não há repetição de peças, cada parte do produto é diferente da outra. Em Bilbao, por exemplo, uma parte das placas de titânio foi cortada e aplicada manualmente em canteiro30. A precisão milimétrica de peças complexas produz um jogo de montagem “demencial”, “um pesadelo”, contam os construtores – trata-se de uma exatidão irracional para a arquitetura, que não dá espaço para as adaptações e pequenas correções necessárias em uma obra. O saber e a habilidade do trabalhador da construção, bases de seu poder, são mais uma vez depreciados pela inovação tecnológica capitalista. Se, num extremo, o arquiteto-estrela pesquisa novos limites da criação livre – ou da autonomia –, o trabalhador no canteiro é reduzido a um autômato – heteronomia máxima. Operários que trabalham em obras de Gehry afirmam que “não podem confiar na sua experiência e intuição para acertar, pois devem obedecer apenas ao comando da máquina. Cada peça encaixa em um espaço reticulado imaginário, ditado pelas coordenadas do software. Nem um único erro é permitido, sob pena de as demais peças não encaixarem ao final”. Dada a precisão dos cortes em máquinas de controle numérico, a menor imperfeição pode comprometer todo o conjunto. Em uma estrutura convencional, um erro de alguns centímetros pode ser corrigido pela equipe que executará a alvenaria, mas em um edifício de Gehry, com curvas em espiral no espaço, esses centímetros em determinado ponto podem se transformar em metros em outro ponto. Como afirma um engenheiro de obra, “o velho ditado, você mede duas vezes e executa uma”, não vale para uma obra como essa, pois “você tem que medir cada ponto uma dúzia de vezes”. A consequência é que o tempo despendido e o custo se elevam. Um jovem operário encarregado da montagem afirma: “É um pesadelo! Dois milímetros fora numa primeira junta e você terá vinte fora na outra ponta. Um pesadelo!”31 30

Hal Foster, Design and crime, cit., p. 36. Mesmo arquitetos high-tech e herdeiros do racionalismo, como Norman Foster e Renzo Piano, não adotam completamente a perspectiva da produção seriada, aceitando uma profusão de peças especiais em suas obras.

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“How to make a Frank Gehry Building”, em New York Times, 8 abr. 2001.

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Ou seja, a entrada do projeto na era digital-midiática, no caso de Gehry (mas não só), não levou a uma produção igualmente mecanizada, mas a canteiros cujas montagens são ainda artesanais, em que os operários não têm, entretanto, qualquer liberdade própria ao artesão – são verdadeiros autômatos reproduzindo e encaixando a cada milímetro as curvas projetadas pelo arquiteto. São peças especiais, únicas, de superfícies não pensadas originalmente para garantir uma fácil execução – na prática, um desrespeito pela produção, tão ao gosto do capital financeiro. O último projeto de Gehry para o Guggenheim será a nova filial do museu em Abu Dabi, capital dos Emirados Árabes, enclave paradigmático da nova economia rentista, como bem descreveu Mike Davis32. Nessa obra, Gehry teria trabalhado sem restrição orçamentária, com o objetivo confesso de superar Bilbao, por solicitação de Thomas Krens e dos magnatas do petróleo. O projeto, numa península do Golfo Pérsico (o mesmo que tem abrigado diversas outras “intervenções” do poder americano), é uma repetição das fórmulas desconstrucionistas anteriores, mas em escala muito superior – não deixando de lembrar Bagdá bombardeada. O projeto participa da transição da renda petroleira (naquele momento em alta33, mas algum dia em extinção) para as novas formas de rentismo – como parques temáticos, hotéis espetaculares, novos museus de grife, ilhas da fantasia, centros financeiros de lavagem de dinheiro etc. A outra face de obras como essa é a extração bruta de mais-valia: os canteiros de obras nos Emirados (e o novo Guggenheim não deverá ser exceção) são verdadeiros campos de trabalho semiescravo, povoados por imigrantes desprovidos de direitos e qualquer proteção trabalhista ou sindical. Conta Mike Davis que “o boom na construção (que emprega um quarto da 32

Mike Davis, “Sand, fear and money in Dubai”, em Evil paradises (Nova York, The New Press, 2007), p. 60. Segundo Davis, os Emirados Árabes, comandados por um xeique, que é ao mesmo tempo emir e CEO dos grandes empreendimentos, unificaram poder político e econômico sob um só comando, numa “verdadeira apoteose dos valores neoliberais do capitalismo contemporâneo: uma sociedade que poderia ter sido desenhada por economistas da Universidade de Chicago”. E alcançaram o que para os conservadores americanos era apenas um sonho: construir “um oásis de livre iniciativa sem impostos de renda, sindicatos e partidos de oposição (não há eleições)”, abastecido pelo fluxo da renda petroleira em alta.

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Uma alta “especulativa”, pois se trata de um preço que presentifica um futuro de escassez e faz uma comparação com outras aplicações financeiras, pouco tendo a ver com o custo de produção.

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força de trabalho) é transportado nas costas de um exército de paquistaneses e indianos mal pagos, trabalhando em viradas de 24 horas, seis dias e meio por semana, num calor de derreter o asfalto”34. Sem limites legais e morais que o refreiem, o capital tem como impulso natural “a sucção desmesurada da força de trabalho”, até o limite de sua “exaustão prematura e aniquilamento”35. Sua reprodução social também foi planejada de modo que os operários se tornem invisíveis aos visitantes. Ainda segundo Davis, “alojamentos sombrios nas periferias, nos quais seis, oito ou até doze trabalhadores são amontoados num único quarto, em geral sem ar-condicionado ou banheiros funcionando, são necessários para garantir aos turistas a imagem oficial da cidade suntuosa, sem pobreza ou favelas”36. Nada muito diferente do que se passou com os “candangos” na construção de Brasília, cinquenta anos antes – com a diferença de que aqui havia a promessa de um dia eles se tornarem cidadãos.37 A imaterialidade das novas formas, assim, está longe de pairar no ar. Com a crise do Welfare, a nova riqueza pode se assentar livremente na velha máquina de extração sem peias de mais-valia absoluta, funcionando sem descanso para ampliar a acumulação e contrabalançar a tendência de queda da taxa de lucros nos setores que dispensam trabalho vivo. Os Emirados Árabes evidenciam de forma caricata um fenômeno que ocorre em escala global de forma quase generalizada. Mesmo nos países centrais, os canteiros de obra representam uma espécie de “vanguarda da desintegração”38 34

Mike Davis, “Sand, fear and money in Dubai”, cit., p. 65.

35

O capital, cit., t. 1, liv. I, p. 184 e 203. No caso, aniquilamento em sentido estrito; segundo Javier Montes, só em 2004, Paquistão, Índia e Bangladesh repatriaram 880 cadáveres de trabalhadores da construção civil. Ver Arquitectura Viva, n. 111, Madri, 2006, p. 36.

36

Mike Davis, “Sand, fear and money in Dubai”, cit., p. 65.

37

Uma comissão de empresários brasileiros da construção civil esteve nos Emirados Árabes em busca de novidades para a organização de seus canteiros e encontrou lá um verdadeiro “paraíso” da exploração do trabalho. Carlos Leal, do Sinduscon, voltando da viagem afirmou que lá “não existe paternalismo, o que torna a relação empregador-empregado mais transparente e correta”. A euforia dos empresários foi descrita em “Dubai e os megaprojetos”, Construção Mercado, n. 60, jul. 2006.

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Tomo aqui emprestada a expressão de Roberto Schwarz para se referir ao Brasil em “fim de século”, em Sequências brasileiras (São Paulo, Cia. das Letras, 1999).

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do mundo do trabalho: concentram trabalhadores imigrantes e de origem étnica distinta, precarizados do ponto de vista dos direitos, com baixos salários e jornadas extensas, submetidos a riscos permanentes de acidentes e intoxicações, além do alto grau de informalidade decorrente das cadeias de subcontratação, o que também representa baixo grau de sindicalização39. E quanto mais as diversas formas de rentismo levam a uma redistribuição perversa do lucro social, apropriando-se de fatias consideráveis dele sem levar em conta as reais proporções da produção, mais se exige dos setores produtivos que ampliem a exploração. Na mundialização financeira, formas modernas e arcaicas seguem se articulando, mas com o sinal invertido: o rentismo passa a polo moderno e o setor produtivo, a arcaico. Associada a todos esses feitos, e por isso mesmo, a marca Frank Gehry atualmente explora a venda de softwares de projeto – mais uma forma de renda, a “renda do saber”, devidamente protegida pela cerca das patentes. Suas obras servem de publicidade das possibilidades do software que seu escritório desenvolveu, o Digital Project (uma adaptação do Catia para a construção civil, associada a programas de planejamento e gestão de obra), em parceria com a Dessault e a IBM. A empresa Gehry Techonologies promete aos usuários a chance de criar com a mesma liberdade que tornou Gehry um mito, o que os outros programas não permitem. Mas se não for esse o caso, a ferramenta promete ser eficiente para melhorar a produtividade em obras convencionais. Gehry já equipou os 3 mil profissionais do maior escritório de arquitetura do mundo, o SOM (Skidmore, Owings and Merrill), e vende pacotes para a China – o maior canteiro de obras de que já se teve notícia40.

Rumo à desmaterialização Para que nosso argumento não fique prejudicado, por ter se restringido ao mais espetacular de todos os arquitetos contemporâneos, seria necessário pelo menos indicar que ele é válido igualmente para diversas obras dos de39

Ver, por exemplo, a análise comparativa da pioneira “desconstrução” dos direitos sociais na construção civil na coletânea organizada por Gerhard Bosch e Peter Philips, Building chaos: an international comparison of deregulation in the construction industry (Londres, Routledge, 2003).

40

Informações obtidas em: . Acesso em: 15 mar. 2008.

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mais arquitetos-estrela de hoje – entre eles, Rem Koolhaas (no Centro de Convenções em Lille, na torre da CCTV em Pequim ou no complexo turístico de Jebel al Jais), Jean Nouvel (tanto na torre Agbar, em Barcelona, e sua similar, em Doha, quanto na Ópera de Dubai), Zaha Hadid (só nos Emirados Árabes, o Museu de Artes Cênicas de Abu Dabi e as torres Signature de Dubai, coassinadas por Schumacher), Daniel Libeskind (com seu projeto para o marco zero do World Trade Center) e tantos outros, como o mais high-tech dos arquitetos contemporâneos, Norman Foster (que deixou sua marca definitiva na City de Londres, alterando totalmente seu skyline ou projetando o maior aeroporto do mundo, em Pequim, na forma de um dragão – competindo com as estações, aeroportos e pontes do não menos requisitado por suas estruturas orgânicas e high-techs, a multiplicar “asas de pássaros” mundo afora, o espanhol Santiago Calatrava). Quase todos agraciados pelo Nobel da arquitetura, o prêmio Pritzker. Para efeito demonstrativo, detenho-me apenas em uma dessas obras, dos arquitetos suíços também vencedores do Pritzker, em 2001, Jacques Herzog e Pierre de Meuron, defensores confessos da “arquitetura de marca”, como se viu na abertura deste texto, e que se tornaram famosos graças à reforma, nos anos 1990, da usina que passou a abrigar a New Tate Modern, em Londres. A dupla adota uma proposta estética em seus projetos em certo sentido oposta à de Gehry, utilizando formas geométricas relativamente simples, como, por exemplo, no projeto da Bodega Dominus, um retângulo de espessas paredes de pedras justapostas, como gabiões, e, mais recentemente, na planta triangular do Fórum das Culturas, em Barcelona. Suas estruturas são, em geral, mais racionais, moduladas – há, por assim dizer, uma promessa de produtividade, de pré-fabricação de componentes. Mas o que nos interessa aqui é o fato de os arquitetos suíços, mesmo nos projetos aparentemente mais contidos, explorarem progressivamente o tratamento das “peles” até seu limite. Não custa insistir: a prevalência das superfícies em relação às estruturas é o que permite a mágica de sua desmaterialização e transformação em imagem midiática. Elas possibilitam quebrar a massa, a densidade e o peso aparentes de prédios gigantescos, como afirmou Charles Jencks41. A arqui41

Citado por Fredric Jameson, “O tijolo e o balão”, cit., p. 202.

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tetura pós-moderna quer diminuir a massa e o peso enquanto enfatiza o volume e o contorno – “a diferença entre o tijolo e o balão”, na expressão de Jameson, ou entre modernidade pesada e modernidade leve ou “líquida”, nos termos de Bauman. São princípios que já estão presentes em parcela da arquitetura moderna, mas agora são projetados em um mundo espacial inteiramente discrepante, pois já não operam de acordo com as oposições binárias modernas, explica Jameson. Wolfgang Fritz Haug, ao analisar a abstração na estética das mercadorias, aponta justamente o elemento de superfície como componente fundamental. Segundo ele, existe uma diferenciação estrutural que permite libertar a superfície de qualquer funcionalidade que não a de aderir à mercadoria como uma pele, “lindamente preparada”, não apenas como proteção envoltória, mas como “verdadeiro rosto a ser visto” antes do próprio corpo da mercadoria. A superfície torna-se uma nova mercadoria, explica Haug, “incomparavelmente mais perfeita que a primeira”, e desprende-se desta descorporificando-se e correndo pelo mundo inteiro como um “espírito colorido da mercadoria, circulando sem amarras”42. Ninguém estaria mais seguro contra seus “olhares amorosos”, pois essa aparência abstraída (ou encenada) é sempre mais perfeita tecnicamente. Herzog e De Meuron demonstram ousadia na experimentação de epidermes arquitetônicas cada vez mais inusitadas e imateriais. Passaram de uma experiência de arquitetura mais monolítica, com texturas em pedra, cobre e chapas enferrujadas, para invólucros sempre mais leves e high-tech. Sejam vidros serigrafados e suportados por aranhas metálicas, como na biblioteca de Brandenburgo; placas poliméricas que refratam a luz de forma multicolorida, no centro de dança Laban, em Londres; losangos de vidros côncavos e convexos, na Loja Prada de Tóquio; ou as membranas infláveis do Allianz Arena, o estádio de Munique que sediou a abertura da Copa de 2006. Este último é o exemplo mais acabado e espetacular dos feitos da dupla suíça. Jacques Herzog afirma que o estádio se tornou um modelo de “projeto-logo [marca] para um país ou um clube, uma ferramenta para entrar em um mercado”43. O estádio é a edificação esportiva mais midiática já 42

Wolfgang Fritz Haug, Crítica da estética da mercadoria (São Paulo, Unesp, 1996), p. 75.

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Citado por Luis Fernández Galiano, “Diálogo y logo”, cit., p. 26.

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construída para um grande evento, com sua imagem surpreendente, como um enorme pneumático iluminado (de azul, vermelho ou branco), divulgada pela mídia incessantemente para os quatro cantos do globo. As imagens da arena em construção revelam a técnica de abstração do projeto44 – afinal, como tornar um pesadíssimo estádio em algo leve como um balão? A estrutura interna é relativamente convencional: arquibancadas em concreto aramado, coroadas por uma cobertura de treliça metálica. Nada muito diferente da geração de estádios construídos na Europa nas últimas décadas. Para quem acompanhou as etapas da construção, a surpresa ficou por conta do momento em que a superfície inflável e iluminada começou a ser aplicada sobre o corpo do edifício, produzindo um estranhamento desconcertante. Quando a cobertura membranosa passa a envolver toda a estrutura de concreto, o efeito mágico se completa. A iluminação, que nos demais estádios concentra-se em seu interior, é dirigida também para o exterior: dentro, o espetáculo esportivo, fora, o espetáculo arquitetônico, capitalizando a cidade de Munique, a alta tecnologia alemã e os próprios arquitetos. Graças ao sucesso desse projeto, a dupla H&dM foi imediatamente contratada para o projeto do estádio olímpico de Pequim-2008 e, mais recentemente, pelo governo de São Paulo para projetar o novo e espetacular complexo de dança e ópera localizado na antiga “cracolândia”, no centro da cidade. Não há, entretanto, com o que se surpreender. Como lembra Sérgio Ferro, desde o princípio o capital pôs a arquitetura a seu serviço e transformou-a em forma-fetiche do objeto construído. O capítulo a que estamos assistindo é apenas mais uma de suas metamorfoses. A novidade agora é que a forma arquitetônica está sendo explorada em seus limites materiais, até a inversão de seus fundamentos construtivos. A financeirização empurra a arquitetura para uma arriscada fusão com a forma publicitária e a indústria do entretenimento. A relação clássica de forma e função, expressa na tectônica do objeto arquitetônico, parece estar sendo liquefeita para que a arquitetura possa circular mundialmente como imagem de si mesma. 44

O canteiro do Allianz Arena é apresentado no documentário Construindo o superestádio, de Su Turhan e Silvia Beutl (2005, 45 min.), Discovery Channel. A obra foi executada por 1,5 mil operários de 20 países diferentes, em regime de três turnos, para cumprir o prazo de inauguração exigido pela Fifa.

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Além disso, a economia rentista está levando a arquitetura a esferas de valorização cada vez mais distantes das reais necessidades humanas45. São mínimas ou mesmo inexistentes as iniciativas desses arquitetos-estrela para procurar soluções que possam ao menos amenizar a condição de pobreza da imensa maioria do globo. A outra face da arquitetura de marca, rendida ao espetáculo, é um planeta em urbanização acelerada e povoado por favelas, sem solução técnica à vista e sem horizonte de transformação política46. Um planeta sombrio que nenhuma estrela pretende iluminar.

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Compreendidas aqui não como uma ontologia, mas no sentido de uma objetividade histórica, quando se pode socialmente definir prioridades, como nos explica, por exemplo, Herbert Marcuse em A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional (Rio de Janeiro, Zahar, 1974), p. 26-8.

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Ver o quadro descrito por Mike Davis em Planeta Favela (São Paulo, Boitempo, 2006).

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CIDADES PARA POUCOS OU PARA TODOS? IMPASSES DA DEMOCRATIZAÇÃO DAS CIDADES NO BRASIL E OS RISCOS DE UM “URBANISMO ÀS AVESSAS” João Sette Whitaker Ferreira Nessa virada para o século XXI, o urbanismo brasileiro parece viver uma nova era, afinada com o espetáculo da globalização. Bairros de negócios com modernas torres, shopping centers cada vez mais luxuosos, sofisticados túneis e ousadas pontes, salas de espetáculo capazes de receber os grandes shows culturais globalizados são exemplos de que nossas grandes cidades parecem ter alcançado a desejada condição de “cidades globais”, graças ao que chamaremos aqui de “urbanismo de mercado”. Para deleite dos empreendedores, o mercado imobiliário, em especial em nossas maiores cidades, parece não ter freios: bairros inteiros estão sendo transfigurados e verticalizados. São Paulo e Rio de Janeiro digladiaram-se para sediar os Jogos Olímpicos, a nova moda entre cidades que se pretendem “globais”1, até que a segunda saiu vitoriosa, num elã de patriotismo que sacudiu a nação, para receber os jogos de 2016, com previsão de grandes e milionários projetos urbanos. Grandes e custosos projetos também estão previstos para outra grande conquista, a Copa do Mundo de 2014. Projetos de water fronts viraram moda, de Puerto Madero, em Buenos Aires, à Estação das Docas, em Belém. A Sala São Paulo, construída na antiga estação de trem Júlio Prestes e considerada uma das mais modernas salas de concerto do mundo, permitiu à metrópole paulistana inserir-se no seleto clube da elite da música erudita internacional e ao mesmo tempo promoveu a valorização e a elitização da área central da cidade por meio de um significativo investimento público. Aliás, o uso da cultura como alavanca para a valorização fundiária e imobi1

“Wannabe world cities”, nos termos de J. Short, “Urban imageneers”, em A. E. G. Jonas e D. Wilson (orgs.), The urban growth machine: critical perspectives two decades later (Nova York, State University of New York Press, 1999).

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liária tornou-se nesse início de século a nova receita para a região, que agora ganhou o projeto de uma escola de dança projetada pelo arquiteto do Ninho de Pássaro, em Pequim, orçado em nada menos que 600 milhões de reais. Na mesma direção, Rio de Janeiro, Curitiba e outras cidades disputavam o privilégio de ter, após Nova York e Bilbao, seu Museu Guggenheim. Em muitas de nossas grandes cidades, novas parcerias público-privadas eram anunciadas para alavancar ambiciosos planos de urbanização. Alguma coisa nova estava no ar. O urbanismo tradicional, herdeiro do funcionalismo modernista, repaginado segundo o clientelismo do regime militar – aquele dos planos tecnicistas pouco aplicados2, das grandes obras viárias e das fontes luminosas propícias a superfaturamentos –, embora até hoje recorrente, cedia espaço para uma “nova” visão “moderna e globalizada” da gestão urbana. Uma visão importada das grandes cidades do mundo desenvolvido, segundo a qual a cidade deve ser gerenciada como uma empresa3. Esse modelo do urbanismo internacional foi gerado no bojo do avanço liberal da era Reagan/Thatcher e apropriou-se de nomes da gestão empresarial, como “planejamento estratégico” e “marketing urbano”, para promover a ascensão das “cidades globais”, apresentadas pelos governos, na mídia e nas universidades, como a única configuração urbana capaz de garantir a sobrevida das cidades no competitivo contexto da “globalização” econômica4. Um modelo de submissão absoluta ao mercado, que parecia ter feito suas provas em cidades europeias e norte-americanas e passava a ser importado para nossa realidade, na velha tradição das “ideias fora do lugar”.

As origens de um “urbanismo de mercado” nos moldes do liberalismo globalizado A propagação dessa receita urbana partiu dos países industrializados e teve motivações muito pragmáticas. A partir de meados da década de 1970, 2

Flávio Villaça, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”, em C. Deák e S. Schiffer (orgs.), O processo de urbanização no Brasil (São Paulo, Edusp/ Fupam, 1999), p. 169-244.

3

C. Vainer, “Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico”, em Otília B. Arantes, Ermínia Maricato e Carlos Vainer (orgs.), O pensamento único das cidades: desmanchando consensos (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 75-104.

4

João S. W. Ferreira, O mito da cidade global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano (São Paulo, Vozes, 2007).

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no cenário de crise de superprodução e desemprego, desconcentração industrial em muitas cidades europeias e norte-americanas e alta competitividade, a possibilidade de alavancar parcerias milionárias com o setor privado para a construção de polos urbanos capazes de atrair grandes empresas e negócios globais mostrou-se uma via de salvação para prefeitos submersos em graves crises de governabilidade. É nesse contexto que surgia a já comentada receita dos investimentos culturais e esportivos como ótima oportunidade para construir as infraestruturas necessárias e transformar áreas obsoletas e quase falidas em polos de atração do grande capital global5, receita esta inaugurada ainda nos anos 1970 pelo Centro Cultural Georges Pompidou, em Paris6. A partir daí, com apelo cultural ou não, uma onda de grandes obras “revitalizadoras” de centros urbanos propagou-se pelos países centrais, produzindo centros de convenções e de negócios, museus e salas de espetáculos, arenas esportivas, modernos aeroportos. Tais investimentos ganhavam toda sua potencialidade lucrativa quando associados aos Jogos Olímpicos e a exposições universais. Em uma simbiose de interesses políticos e imobiliários, esse novo paradigma de urbanização transformava os espaços obsoletos e degradados decorrentes da reestruturação produtiva em fantásticas oportunidades para a realização do capital. O planejamento urbano modernista e funcionalista, tão útil no ciclo econômico anterior para organizar as cidades nos moldes da economia fordista e da sociedade de consumo de massa que se criava a partir do pós-guerra, foi aos poucos rechaçado por sua pouca flexibilidade e seu forte caráter estatal regulador, dando espaço para um “gerenciamento” das cidades supostamente mais ágil para enfrentar os problemas da obsolescência urbana – ou, em outras palavras, mais eficaz para integrar as cidades à lógica da economia financeirizada e globalizada. Os grandes conjuntos habitacionais do pós-guerra, embora na época tivessem cumprido seu papel de provisão habitacional em massa, foram execrados por seus vícios modernistas. 5

Otília B. Arantes, “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas”, em Otília B. Arantes, Ermínia Maricato e Carlos Vainer (orgs.), O pensamento único das cidades, cit., p. 11-74.

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A construção do centro levou à polêmica incorporação urbana do Quartier de L´Horloge e do bairro do antigo mercado dos Halles.

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Esse novo padrão de intervenção urbana, baseado em “grandes projetos”, é hoje a regra na maioria dos países do capitalismo central. Na onda do liberalismo crescente e do enfraquecimento do Estado de bem-estar social, deixa-se para trás a regulação estatal do espaço público para dar livre curso à ação de empreendedores privados, sempre associados a festejados arquitetos de renome internacional. São lançados ininterruptamente grandes empreendimentos de “recuperação” de qualquer área remanescente que ainda se preste a uma intervenção: resquícios de bairros operários, áreas fabris abandonadas ou mesmo o vazio deixado pelas torres gêmeas do World Trade Center. É evidente que o resultado é um forte processo de valorização fundiária e imobiliária, que transforma esses setores das cidades em nichos de oportunidades para o capital. Daí decorre a chamada “gentrificação” urbana, ou seja, a expulsão da população original e sua substituição por uma população de renda muito superior. Na esteira de cidades como Baltimore, Nova York, Londres, Paris, Barcelona e muitas outras, vemos, da década de 1980 até hoje, a constante aplicação do modelo dos “grandes projetos de revitalização urbana” como novo paradigma para o planejamento urbano no mundo. Em Bilbao, o projeto futurista do arquiteto Frank Gehry para o museu Guggenheim, construído numa área portuária em desuso, assegurou para a cidade um lugar ao sol na rota dos fluxos globais de turistas e capitais. Em Londres, uma das mais recentes operações foi a construção do Domo do Milênio, projeto do festejado arquiteto Richard Rogers para uma antiga e obsoleta área industrial de produção de gás, vizinha às docas, já urbanizadas por uma grande operação imobiliária em décadas anteriores. Em Paris, a área onde ficavam as usinas Renault, em Boulogne-Billancourt, é hoje um gigantesco canteiro de obras de um empreendimento imobiliário considerado pelos críticos um verdadeiro “parque de diversões para demiurgos, urbanistas e promotores imobiliários”7. Na maioria desses casos, os interesses privados foram alavancados por importantes investimentos públicos. Por exemplo, na grande operação de renovação das docas londrinas no fim dos anos 1990, num processo de “revitalização” e valorização do antigo “cinturão vermelho” dos bairros ope7

Disponível em: . Ver também, sobre o projeto: . Acesso em: ago. 2010.

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rários da cidade, cerca de 1,3 bilhão de dólares de fundos públicos foram investidos, o que não evitou, aliás, um grande desastre imobiliário, dada a insuficiência do transporte coletivo previsto para a área8. Somente mais de uma década depois é que o empreendimento se recuperou, graças à construção – pelo governo e com mais recursos públicos – de uma nova linha de metrô servindo a região. Em Barcelona, foram 5,5 bilhões de dólares públicos investidos na preparação dos Jogos Olímpicos de 1992, cujas obras de urbanização se tornaram a coqueluche dos planejadores das “cidades globais”9. Essa mobilização de importantes fundos públicos para alavancar projetos de renovação urbana quase sempre foi legitimada para a população justamente com o discurso de que essa seria a porta de entrada definitiva para o chamado “arquipélago das cidades globais”, o que permitiria a atração de um volume de capital muito maior do que o investido pelo Estado. Um prognóstico arriscado, como em qualquer operação capitalista. Os balanços, aliás, nunca são muito transparentes. Além das Docklands, não raro vêm à tona notícias de dificuldades financeiras não previstas, como no caso dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, ou da cidade de Nova York, no início deste século10.

Brasil: “Urbanismo de mercado” x reforma urbana? A expansão neoliberal gerada pela reestruturação produtiva alcançou nosso país a partir da década de 1990, e os ditames do Consenso de Washington provocaram importantes transformações econômicas, hoje bastante conhecidas: forte desregulação e enfraquecimento do papel do Estado, pri8

A canadense Olympia & York, maior incorporadora do mundo na época, faliu em decorrência do insucesso da urbanização de Canary Walf. Ver João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.

9

De fato, os urbanistas catalães, tendo à frente Jordi Borja, tornaram-se assíduos consultores internacionais de governos interessados em aplicar o planejamento estratégico, como no caso de Santo André para o Projeto Eixo Tamanduatehy. Ver, por exemplo, artigo de Borja para a Prefeitura de Bahía Blanca, com título dos mais explicativos: “Las ciudades en la globalización: planificación estratégica y proyecto de la ciudad” (Argentina, 1999).

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Folha de S.Paulo, “Nova York pode falir, adverte o prefeito”, 20 out. 2002. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u46669.shtml. Acesso em: ago. 2010.

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vatizações e abertura do mercado interno para o capital internacional, desnacionalização da indústria e precarização absoluta das relações trabalhistas, abandono de projetos de políticas públicas estruturais e adoção de políticas de assistência social pontuais etc.11 Embora não tenham sido notadas de imediato, também estavam incluídas no “pacote” as novas receitas urbanísticas importadas do “Primeiro Mundo”. O que tornou o quadro mais complexo foi o fato de que a expansão neoliberal chegou ao Brasil justamente quando o país começava a redemocratizar-se e assistia à paulatina chegada ao poder de grupos políticos mais comprometidos com a democracia e as causas sociais. Ser favorável à democratização ou mesmo indignar-se – no discurso – com a pobreza são posicionamentos políticos bastante cristalinos que não remetem a grandes polêmicas. Ou se é ou não. A questão não é tão simples, porém, quando se trata do posicionamento econômico num quadro de crise estrutural e, mais ainda, de promoção de políticas públicas que eventualmente, e de alguma forma, possam desestabilizar a relação de forças e o poder das elites dominantes. Ou seja, o fato de termos governos democráticos não garantia em nada que estes não adeririam às receitas econômicas do neoliberalismo. A contradição daí resultante estava no fato de que governos agora “democráticos” e com discurso social adotariam, em nome da busca de uma “modernização globalizada”, o modelo econômico neoliberal cujas consequências seriam justamente o agravamento da concentração de renda e da tragédia social. Como os governos municipais ganharam uma inédita autonomia na condução das políticas urbanas a partir da Constituição de 1988, era muito provável que a contradição na condução da política econômica contaminasse, por assim dizer, o campo do urbanismo. Assim, por um lado, na década de 1990 chegaram ao poder municipal governos de alinhamento progressista e fortemente amparados pelos movimentos populares que promoveram importantes avanços nas políticas sociais, inclusive nos campos habitacional e urbano. Ancorando-se na nova Constituição e em especial nos artigos (182 e 183) que tratavam da função social da propriedade urbana, Recife, Santo André, Porto Alegre, Diadema, Belo Horizonte e São Paulo, entre outras, passaram a ser referência de vanguarda na implantação de mecanismos de democratização da gestão da ci11

João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.

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dade e de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida da população mais pobre. Por outro lado, porém, no bojo do pensamento neoliberal, o apelo do “urbanismo de mercado” e do planejamento estratégico apresentava aos governantes que decidissem promover a aproximação público-privada na condução de projetos de “renovação” urbana calcados nos interesses do capital uma tentadora oportunidade de deixar “marcas” de modernização nas cidades. Paulatinamente, esse modelo urbano e sua receita de parcerias com o setor privado na busca de investimentos encontraram nesse cenário um ambiente propício a sua expansão – ainda mais num país em que o mercado imobiliário sempre teve, por assim dizer, vida bastante fácil. Esse antagonismo entre um urbanismo conduzido pelo Estado e comprometido com a “reforma urbana” democrática e outro calcado na aproximação com o capital privado se acentuaria cada vez mais. Para entendê-lo, vale retomar aqui um pouco da história da luta pela reforma urbana a partir da Constituição de 1988. Os artigos 182 e 183 da Constituição traziam alguns “instrumentos” supostamente capazes de dar ao Estado mais poder para enfrentar os desequilíbrios urbanos de nossas cidades. No entanto, teriam de esperar treze anos para serem efetivamente regulamentados pelo Estatuto da Cidade, em 2001. Contudo, antes mesmo de 1988, alguns municípios brasileiros já haviam implementado instrumentos de controle urbano de caráter democratizante, como, por exemplo, as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), que permitiam legislações urbanísticas específicas para áreas precárias, vinculando-as sobretudo a programas de regularização fundiária em favelas. Recife aplicou Planos de Regularização das Zeis (Prezeis) e regulamentou um complexo sistema de gestão participativa. O Orçamento Participativo também era experimentado em algumas cidades, como em Porto Alegre. Em Santo André, as Áreas de Especial Interesse Social foram aprovadas em 1991 para viabilizar a urbanização de favelas12. Tais iniciativas marcaram nesse cenário uma perspectiva inovadora, no sentido de que reconheciam 12

João S. W. Ferreira e Daniela Motisuke, “A efetividade da implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial”, em Laura Machado de Mello Bueno e Renato Cymbalista (orgs.), Planos diretores municipais: novos conceitos de planejamento (São Paulo, Annablume, 2007), p. 33-58.

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uma grande parcela da população urbana como cidadã e seus locais de moradia, mesmo que informais, como parte da cidade, e buscavam garantir sua recuperação e a melhoria de suas condições de vida. A reivindicação de uma reforma urbana, originada nos movimentos de moradia das periferias ainda na época do regime militar, parecia ganhar uma nova e promissora perspectiva de efetivação. Com a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, parecia que essas experiências pioneiras iriam difundir-se pelos municípios brasileiros. O Estatuto preconizava a gestão democrática da questão urbana, o enfrentamento da retenção de terras para fins especulativos, a regularização fundiária e a concessão de uso habitacional em terras públicas, entre outros avanços. A obrigatoriedade de elaboração de planos diretores para a aplicação desses instrumentos fez com que muitos municípios os discutissem e o tema ganhasse nova importância no meio acadêmico. Contudo, isso não significava que sua aplicação seria fácil, ou ainda efetiva. E por uma razão muito clara: a reforma urbana, no sentido da democratização das cidades, é uma questão essencialmente política, e a sociedade brasileira não estava aberta para romper a relação de forças por meio da qual as classes dominantes impuseram uma urbanização marcada pela drástica segregação socioespacial. Além disso, o modelo tradicional e arcaico do urbanismo de grandes obras viárias – objeto de superfaturamento e instrumento político-eleitoreiro – continuava com toda a sua força. Nesse jogo de forças, se o Estado atacasse a retenção de terras ociosas para fins especulativos, exigisse a construção de habitações de interesse social em imóveis vazios, investisse pesadamente em infraestrutura urbana nas periferias, desse direito de propriedade a moradores de favelas e de loteamentos clandestinos, combatesse a ação desenfreada e destrutiva do mercado imobiliário, ele estaria atuando no sentido contrário ao de sua história, de sua lógica patrimonialista de defesa dos interesses dominantes – interesses que se polarizam no extremo oposto, no controle do acesso à terra, na proteção quase sagrada da propriedade fundiária restrita às classes dominantes, na prioridade dos investimentos nos bairros mais ricos, na exclusão socioespacial como instrumento de dominação, questões que têm quinhentos anos de consolidação no Brasil. Assim, a um Estado “público” comprometido com os “novos” instrumentos urbanísticos e com a democratização das cidades, contrapunha-se o próprio Estado, em razão de suas características patrimonialistas, de sua instrumentalização pelas classes dominantes,

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dos antagonismos de nossa formação social e das condicionantes históricas de nosso subdesenvolvimento. Assim, na última década do século XX, as cidades brasileiras viviam um duplo e contraditório movimento: de um lado, dispunham de um novo instrumental legal que lhes permitia implementar uma reforma urbana democrática; de outro, sofriam pressão econômica para adotar novos modelos liberais de planejamento. A possibilidade de aplicação desses instrumentos, porém, esbarrava no fato de estes terem sido pensados na lógica do Estado-providência, e não na da urbanização subdesenvolvida e do Estado patrimonialista.

A produção do espaço urbano e os entraves do urbanismo no subdesenvolvimento O solo urbano tem seu valor determinado por sua localização13. Uma localização é melhor que outra em função, é claro, de suas condições físicas (vista, orientação, relevo), mas principalmente de sua infraestrutura urbana, que a torna mais acessível, mais equipada, mais propícia à edificação. Como é o Estado quem produz a infraestrutura, a localização urbana e sua valorização são fruto dos investimentos públicos realizados. Assim, como afirma Deák, “a intervenção estatal é um complemento necessário, ainda que antagônico, à regulação pelo mercado” do acesso ao solo urbano14. Uma das grandes contradições da cidade capitalista está, portanto, no fato de que, enquanto a valorização de um imóvel é determinada por investimentos públicos, o lucro obtido com ela é auferido individualmente pelo empreendedor ou proprietário. Foi para regular e mediar esse antagonismo entre mercado e sociedade que o keynesianismo do pós-guerra, regulador da economia, tornou-se também regulador da produção do espaço urbano por meio dos chamados instrumentos urbanísticos. Nos países centrais, a partir dos anos 1950 e no contexto do Estado de bem-estar social e da construção das economias de consumo de massa, o Estado teve o papel de garantir uma produção homogênea de infraestrutura em toda a cidade, evi13

Flávio Villaça, Espaço intraurbano no Brasil (São Paulo, Studio Nobel/ Fapesp/ Lilp, 2001).

14

Csaba Deák, A busca das categorias da produção do espaço, tese de livre-docência, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 2001.

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tando a exclusão das parcelas populacionais de menor renda, construindo equipamentos acessíveis a todos e recuperando, com tributos, parte do lucro obtido pelo mercado em decorrência dos investimentos públicos em infraestrutura – o que os estudiosos chamam de “mais-valia urbana”. No Brasil, entretanto, os investimentos públicos em infraestrutura foram claramente direcionados e concentrados nas áreas ocupadas pela população de alta renda15. Pela lógica peculiar do subdesenvolvimento, o Estado – se entendido no sentido público importado da realidade das democracias desenvolvidas – é um “não Estado”. Ele não planeja ações para a superação do atraso, mas confunde; não organiza, mas desestrutura; não facilita, mas embaralha e burocratiza os procedimentos administrativos. Não porque seja incompetente, como às vezes se propaga, mas porque é muito eficaz na produção da segregação socioespacial, que emperra o desenvolvimento independente, redistributivo e includente e poderia contrariar o equilíbrio de forças políticas, o poder das elites internas e os interesses externos que historicamente se alimentam desse atraso. A acelerada industrialização e urbanização “com baixos salários” das décadas de 1950 a 1970, que levou a um crescimento econômico significativo, porém condicionado à manutenção da pobreza, traduziu-se no âmbito urbano por um padrão de absoluta segregação socioespacial, que chamamos de “urbanização desigual”. Como explica Maricato: Inaugura-se assim o urbanismo que iria se consolidar durante todo o século XX no Brasil: a modernização excludente, ou seja, o investimento nas áreas que constituem o cenário da cidade hegemônica ou oficial, com a consequente segregação e diferenciação acentuada na ocupação do solo e na distribuição dos equipamentos urbanos.16

Nesse cenário, a “melhor” política habitacional era a “não política”: deixar a população que migrava para os grandes centros industriais sem alternativas habitacionais, sem condições de acesso à terra urbanizada e à mercê de loteadores clandestinos, que disseminaram a ocupação informal das periferias17. A autoconstrução tornou-se a alternativa de moradia que melhor 15

Flávio Villaça, Espaço intraurbano no Brasil, cit.

16

Ermínia Maricato, Habitação e cidade (São Paulo, Atual, 1997).

17

Ao contrário dos países centrais, Brasil viveu uma espécie de Estado de “deixe-estar” social, não só porque deixar a população à própria sorte era a melhor forma de não encarecer os custos da força de trabalho, mas também porque o Estado

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permitia a manutenção do baixo custo da força de trabalho18. Resultou desse modelo urbano um forte antagonismo entre uma parte quase exageradamente “desenvolvida” das cidades, beneficiada por constantes e importantes investimentos públicos em infraestrutura e objeto da ação do mercado, e outra sujeita a um “aparente” caos, na verdade bastante funcional do ponto de vista das necessidades da acumulação19.

Avanços e impasses do urbanismo democrático Quando da ascensão de partidos de esquerda às prefeituras, no fim da década de 1980, era inevitável acreditar que instrumentos urbanísticos do Estatuto das Cidades pudessem exercer a mesma função reguladora para a qual foram criados e transformar o Estado em promotor de uma ordem inversa, de distribuição das riquezas e de justiça social. Contudo, a verdade escondida era a de que dificilmente poderiam, por si só, alterar o equilíbrio de forças e alavancar a reforma urbana e a redemocratização do acesso à terra. Os treze anos que se levaram para que os artigos da Constituição fossem tão somente regulamentados em uma lei definitiva – o Estatuto das Cidades – já foram um sinal inequívoco de que a esperada inversão da lógica não ocorreria tão facilmente. Seria incorreto dizer, porém, que a política urbana brasileira não tenha logrado, nas últimas décadas, alguns avanços. Santo André e Porto Alegre, beneficiados pela continuidade de gestão por mais de um mandato20, experimentaram com certa efetividade alguns dos instrumentos urbanísticos para a regularização fundiária ou a delimitação de Zeis. No que tange à política para favelas, a ideia da erradicação total (e expulsão sistemática) deu lugar, em muitos municípios e nos programas federais, a políticas de incorporação à cidade por meio de sua urbanização. Esforços para uma regularização fundiária mais ampla foram às vezes promovidos, e equipamentos de era promotor do “laissez-faire” (deixe-fazer), ou seja, da livre iniciativa e dos interesses empresariais. 18

Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 130.

19

Ibidem, p. 59.

20

Lembramos que é quase impossível conceber políticas urbanas socialmente transformadoras em menos de oito ou dez anos.

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educação e saúde foram implantados em áreas pobres de periferia em algumas cidades. A criação do Ministério das Cidades, em 2002, e as ações daí decorrentes, como a implantação do Conselho das Cidades (com participação dos movimentos populares), a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e a estruturação de uma política de financiamento com envolvimento de municípios e estados, significaram outro avanço importante na luta pela reforma urbana no Brasil. Recentemente, políticas de desenvolvimento federais – mesmo que criticáveis em muitos aspectos – incluíram em seu rol de investimentos a questão dos assentamentos precários e da habitação social. A possibilidade de incorporação dos instrumentos do Estatuto da Cidade nos Planos Diretores municipais, mesmo que enseje disputas políticas duras nos municípios, e mesmo que às vezes seja vista pelo campo da esquerda com otimismo exagerado, ao menos trouxe a discussão da reforma urbana para a agenda política dos municípios. Mas há de se convir que tudo isso foi, pelo menos até agora, de pouca efetividade. De maneira geral, o quadro urbano brasileiro continua ainda trágico e inalterado: em média quase metade da população das grandes metrópoles vive em condições precárias, seja em favelas, loteamentos irregulares, cortiços ou mesmo na rua. Essa porcentagem não diminuiu, ao contrário, as periferias pobres continuam crescendo mais do que a média. Os centros das cidades, em compensação, estão se esvaziando e sobram imóveis desocupados, que não cumprem sua função social de propriedade urbana, por mais que exista o Estatuto da Cidade. Hoje, no Brasil, o número de imóveis vazios chega a 6 milhões (para um déficit de 8 milhões!). Em todo o país, as áreas de proteção ambiental estão tomadas por ocupações precárias de alta densidade habitacional, já que não resta aos pobres outra alternativa diante da falta de oferta de moradias, seja pelo Estado, seja pelo mercado. A porcentagem de domicílios sem saneamento ainda é significativa, até mesmo nas metrópoles, e nestas o transporte público precário consome horas e horas dos trabalhadores mais pobres. Enchentes e desmoronamentos são comuns, e a irregularidade fundiária na cidade informal parece insolúvel. Em inúmeras cidades, continuam os processos autoritários de expulsão da população pobre para a periferia, quase sempre em ações capitaneadas pelas prefeituras, em sintonia com o mercado. Nesse cenário, as leis parecem ser de muito pouco efeito.

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As experiências de gestões “democráticas e participativas” das últimas décadas, que se utilizaram dos instrumentos do Estatuto da Cidade, poderiam ser vistas como um caminho de planejamento urbano desejado para a reversão da injustiça urbana no Brasil. Contudo, elas ainda não levaram a transformações mais consistentes. Em que pese a luta dos movimentos populares e de muitos grupos organizados da sociedade civil, tais avanços parecem não ser suficientes para gerar as profundas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais necessárias para a reforma urbana. Uma das razões possíveis dessa dificuldade pode estar no fato de que os grupos de técnicos que participam dessas gestões, com intenções absolutamente verdadeiras de promover mudanças estruturais na cidade, defrontaram-se, ao assumir as prefeituras a partir dos anos 1990, com uma máquina de governo afundada na tradição de procedimentos centralizadores, autoritários e ineficazes de um urbanismo funcionalista e burocrático, que havia se consolidado durante os anos da ditadura militar e perdurava nas décadas seguintes. Uma máquina aperfeiçoada durante séculos não para ser “pública”, mas sim para desarticular e dificultar qualquer tentativa de transformação da lógica de produção do espaço urbano desigual. O aparato municipal de gestão urbana é quase sempre fragmentado, compartimentado pelas disputas internas de poder, abalado pelos projetos políticos pessoais, pela corrupção e pelo clientelismo, distante da população e de suas reivindicações e praticamente ineficaz – quando não conivente por alimentar-se da desigualdade – para promover alguma transformação social mais significativa nas cidades. Os governos de esquerda ficaram não raramente engessados nas dinâmicas restritivas da administração, afogados pelo ritmo alucinante das demandas emergenciais, cerceados pela suposta restrição financeira para investimentos sociais (que, na verdade, é decorrente da falta de uma decisão política de se inverter de vez as prioridades de investimentos), obcecados pela chamada “governabilidade” e preocupados em manter uma imagem eleitoral palatável e pouco radical entre as classes médias e altas. Some-se a isso o fato de que a recondução ao poder, após curtas gestões de esquerda, de políticos identificados com os setores mais atrasados, arcaicos e clientelistas de nossas elites desmantelava todo e qualquer avanço conseguido pelo governo anterior. Por fim, há de se lembrar que, diante dos problemas estruturais do capitalismo e, mais especificamente, do subdesenvolvimento, é difícil esperar que apenas políticas públicas mais “democráti-

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cas” sejam suficientes para resolvê-los, por mais que essa seja a vontade legítima de setores sociais progressistas.

A “solução” e a proliferação do “urbanismo de mercado” Diante disso, não é difícil entender como a solução urbanística dos “grandes projetos” e das parcerias público-privadas tenha surgido, nesse complexo e contraditório quadro de transição, como uma espécie de salvação, num polo oposto ao da reforma urbana e da crença nos instrumentos urbanísticos democratizantes. As perspectivas de investimentos propiciadas pelas parcerias com o mercado privado, o resultado vistoso e a aura de “modernidade” desses empreendimentos eram a garantia de certa “popularidade” e, portanto, de sucesso (sobretudo político-eleitoral) para seus autores na condução da política urbana. E ainda com a vantagem de identificá-los com uma imagem de gestão eficaz e atualizada, além de favorecer o mercado imobiliário, tradicionalmente um setor propício a engordar os caixas das campanhas eleitorais. Os modelos do “planejamento estratégico” e das “cidades globais” passaram a ser seguidos por muitas administrações municipais, sobretudo as conservadoras, habituadas à imiscuição sem constrangimentos do público com o privado. Se a “globalização econômica” pretendia nos fazer acreditar que a abertura do mercado e a desregulação econômica seriam o único, o melhor e o mais rápido caminho para nossa entrada no Primeiro Mundo, essas teorias urbanas pretendiam nos convencer de que a única saída para as cidades subdesenvolvidas sobreviverem no “novo” contexto globalizado seria a competição entre elas, numa disputa pela atração dos cobiçados capitais internacionais21. Assim, com a justificativa de que era “importante” tornar-se uma “cidade global”, formaram-se coalizões entre o Estado, as elites fundiárias e imobiliárias22 a fim de garantir a destinação dos fundos públicos – quando não a doação de terras públicas – para vistosas e supérfluas obras nos “distritos de negócios” e abrigar modernas torres de padrão “globalizado”. No Rio de Janeiro, em 1993, implementou-se um “planejamento estratégico” que mon21

João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.

22

Ver a esse respeito o conceito de “Urban growth machine”, proposto por Logan e Molotch nos EUA (1990) e detalhado em João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.

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tou falsos consensos para a legitimação de uma gestão moldada no “marketing de cidades”, e que a tratava como empresa para satisfazer a lógica do “rebatimento, para a cidade, do modelo de abertura e extroversão econômicas propugnado pelo receituário neoliberal para o conjunto da economia nacional”23. A financeirização econômica dos anos 1990 deu ainda mais impulso a esses grandes empreendimentos, pois novas regras mais permissíveis transformaram os fundos de pensão, em especial os nacionais de empresas públicas, em grandes financiadores dessas “modernização”. Em geral, os empresários imobiliários estabeleceram acirrada competição entre si – apoiados em lobbies no governo – para assegurar o privilégio de ter sua “frente” de atuação escolhida como a centralidade a ser promovida pelas novas políticas urbanas. Em São Paulo, foi a região da avenida Berrini e da Marginal Pinheiros que ganhou tal batalha: em apenas 3 anos de governo, foram investidos, num pequeno quadrilátero de cerca de 60 quilômetros quadrados, 4 bilhões de reais de dinheiro público – ou a metade do orçamento municipal anual na época – em operações destinadas a promover a valorização fundiária da região24, que em decorrência teve um acréscimo de cerca de 2 milhões de metros quadrados construídos entre 1991 e 200025 e tornou-se a área mais cara da cidade26. Tal receita urbana criou uma espécie de “pensamento único” nas cidades27, defendido pelo mercado imobiliário (o maior beneficiado), pelo Estado (que garantia assim uma imagem de modernidade) e pela mídia. Por fim, a academia alimentava o modelo, reproduzindo aqui uma teoria em voga nos grandes centros universitários do exterior, mesmo que descolada da nossa realidade. O interessante é que a observação de dados empíricos mostrou que, no caso de São Paulo, a cidade não apresentava nenhum dos atributos econô23

C. Vainer, “Pátria, empresa e mercadoria”, cit., p. 80.

24

O valor não computa o astronômico montante relativo aos precatórios das desapropriações na avenida Faria Lima, e nem mesmo a ponte estaiada, inaugurada somente em 2008.

25

O uso do solo segundo o cadastro territorial e predial (São Paulo, Sempla, 2002).

26

João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.

27

O lançamento do livro O pensamento único das cidades, organizado por Otília Arantes, Ermínia Maricato e Carlos Vainer (Petrópolis, Vozes, 2000), sem dúvida provocou uma clara inflexão no cenário de relativa apatia acadêmica no qual o “pensamento único” liberal das “cidades globais” vinha se firmando.

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micos e físico-espaciais apontados pelos teóricos das “cidades globais”28. No entanto, apoiando-se nessa falsa realidade, as elites urbanas conseguiram canalizar recursos públicos para a construção dessa e de outras “ilhas globalizadas”, que, na verdade, apenas ensejam uma rápida valorização fundiária e imobiliária e geram lucros extraordinários. Mais do que nunca, e sem cerimônias, em se tratando de administrações municipais de direita, os instrumentos do “urbanismo de mercado” se sobrepuseram aos do Estatuto da Cidade, quando não os confundiram. De fato, os setores ligados ao mercado conseguiram inserir no Estatuto um instrumento que, mesmo travestido de “interesse social”, nada mais era do que uma ferramenta de valorização imobiliária: as “Operações Urbanas Consorciadas”, cujo nome já indica a inclinação para as parcerias público-privadas e que se difundiram, por exemplo, em São Paulo. Ao vender o direito de construir acima do permitido para arrecadar recursos para financiar melhorias urbanas na própria área, ele subordina o planejamento urbano aos interesses do mercado, já que as prefeituras passaram a resumir sua política urbana à busca de “nichos” já valorizados, nos quais o mercado pudesse ter interesse em comprar mais permissividade construtiva, em detrimento das periferias esquecidas29. Em 2009, sempre sob a batuta de uma gestão conservadora e fortemente identificada com o mercado imobiliário, São Paulo parece ter atingido o auge do “urbanismo de mercado”, servindo de modelo para todo o Brasil: adotou, em áreas chamadas de “intervenção urbana”, o mecanismo da “Concessão Urbanística”. Por meio deste, numa interpretação um tanto duvidosa juridicamente, a prefeitura dessa vez transferiu para o mercado imobiliário nada menos que a prerrogativa de desapropriar terrenos nas áreas em que queira investir, e o “direito” para tal. No Rio de Janeiro, a prefeitura transferiu por licitação ao setor privado, no caso o grupo do empresário Eike Batista, a prerrogativa de urbanizar a Marina da Glória, dan28

João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.

29

João S. W. Ferreira e Ermínia Maricato, “Operação Urbana Consorciada: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade?”, em Letícia Marques Osório (org.), Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras (Porto Alegre/ São Paulo, Sérgio Antônio Fabris, 2002); Mariana Fix, “A ‘fórmula mágica’ da ‘parceria’: operações urbanas em São Paulo”, Cadernos de Urbanismo, Rio de Janeiro, ano 1, n. 3, 2000, p. 23-7.

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do-lhe poderes até de organizar concurso público de arquitetura e urbanismo, para o qual foram convidados os mais festejados arquitetos internacionais. Um deles, aliás, viu o filão oferecido não só no Rio de Janeiro, mas também na metrópole paulistana. Sir Norman Foster, um dos grandes nomes dos “grandes projetos urbanos” pelo mundo, “prepara, em parceria com empresários de São Paulo, um plano de revitalização para uma ampla região degradada entre a Mooca e o Ipiranga”30. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo: para iniciar o empreendimento, o grupo conta com a aprovação do Projeto de Lei da Concessão Urbanística, que vai ser votado nesta semana na Câmara Municipal. A concessão urbanística permite à prefeitura delegar à iniciativa privada, mediante licitação, obras de reurbanização de grandes áreas de São Paulo.

Os lucros obtidos por tais operações são inequívocos, como mostra o próprio jornal: Caso a prefeitura conceda ao grupo autorização de reurbanizar a região com base no projeto de Foster, a estimativa é de que os empreendedores possam ter um lucro operacional de R$ 3 bilhões. Estão previstos 20 prédios de 200 metros, de uso misto, com espaço para escritórios, residências, bares e hotéis. O terreno onde funcionava a fábrica da Ford daria lugar a um shopping center. Esses empreendimentos permitiriam ao mercado vender 2 milhões de metros quadrados em imóveis e arrecadar R$ 9 bilhões.31

Claro, como em qualquer boa parceria público-privada digna do “novo” paradigma do planejamento urbano, a cidade “ganharia” muito com isso. Em contrapartida, seriam construídos pelos investidores 360 mil metros quadrados de área verde: um parque central e outro ladeando a avenida do Estado. O custo da desapropriação dos imóveis é de R$ 900 milhões. Empresários gastariam ainda R$ 75 milhões na despoluição do solo da região e mais R$ 200 milhões em infraestrutura e prédios públicos, como escola e equipamento de saúde. A prefeitura também ganharia com a arrecadação de R$ 500 milhões em venda de títulos de potencial de construção (Cepacs) e R$ 410 milhões anuais em impostos.32

30

“Britânicos se inspiram em Milão para mudar área industrial de SP”, O Estado de S. Paulo, 20 abr. 2009.

31

Ibidem.

32

Ibidem.

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Como em todos esses projetos, os “cálculos” são confusos e distorcidos: os custos com desapropriações não são nenhuma “contrapartida” para a cidade, já que fazem parte dos custos do empreendimento. O mercado “gastaria” 275 milhões de reais com a despoluição do solo e equipamentos públicos, além dos custos de implantação do parque. Ou seja, cerca de 10% do lucro final e 3% da arrecadação total de 9 bilhões de reais! Na mesma direção, a prefeitura e o governo de São Paulo lançaram a construção de uma nova sede para a Companhia Municipal de Dança, no centro da cidade, com projeto de nada menos que do autor do famoso Ninho de Pássaro, o estádio de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Se já causam espanto os 25 milhões de reais pagos a ele pelo projeto, o que dizer dos fabulosos 600 milhões de reais orçados para a obra? O que acontece, nesses dois casos, com os atuais moradores da Mooca e do Centro, diante da impiedosa valorização que fatalmente os expulsará? Quanto não poderia ser feito em melhorias urbanas, habitacionais e sociais, no centro com 600 bilhões de reais? Com a Copa do Mundo em 2014, para a qual a festança de construção de estádios com valores que giram em torno de centenas de milhões e para os quais se fala cada vez mais em comprometimento de fundos públicos, e com os Jogos Olímpicos em 2016, para os quais a primeira medida anunciada é o comprometimento de quase 9 bilhões de reais para a construção de uma linha de metrô que ligará o privilegiado bairro da Barra da Tijuca à zona sul, o “urbanismo de mercado” parece ter chegado ao seu apogeu. A falta de transparência, os indícios de malversação de recursos públicos e a transformação das cidades em meros palcos para os grandes negócios imobiliários são hoje as práticas urbanas que mais proliferam no país. E, no caso desses megaeventos esportivos, o que é mais curioso é que se trata de projetos liderados por um governo “de esquerda”, historicamente comprometido com as demandas populares.

Um urbanismo às avessas? Talvez esteja aí a mais intrigante expressão do que poderíamos chamar de um “urbanismo às avessas”: no âmbito federal, um governo de esquerda assumiu a liderança da implementação do modelo urbano alavancado pelos Jogos Olímpicos e pela Copa do Mundo. Mas também no âmbito municipal, como em São Paulo, o novo instrumento da Concessão Urbanística,

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embora tenha sido implementado por uma gestão abertamente comprometida com o mercado imobiliário, foi inicialmente idealizado e proposto no bojo do Plano Diretor elaborado para a cidade durante a gestão “democrática e popular” do Partido dos Trabalhadores (2000-2004). Se não é tão estranho que o “urbanismo de mercado” tenha sido amplamente adotado por governos comprometidos com os interesses do mercado imobiliário, é entretanto surpreendente ver como ele passou a ser um elemento central nas plataformas de gestão de muitos governos de esquerda. É bem verdade que a identificação no Brasil de governos “de direita” ou “de esquerda” nunca foi fácil. As características de nossa formação levaram a um embaralhamento desses conceitos, dada a tradição demagógica e populista das elites, a manutenção e a manipulação da pobreza para alimentar o sistema econômico e político, o papel perverso da grande mídia, de tal sorte que as relações entre o “público” e o “privado” nunca foram claras, o acesso desigual à propriedade é pouco questionado, a desigualdade no entendimento e na aplicação das leis virou norma aceita e qualquer política pública minimamente voltada para os pobres, mesmo que insuficiente, assistencialista ou manipuladora, será faturada eleitoralmente como uma identificação de um compromisso “de esquerda”. Assim, não fica fácil para a opinião pública discernir quanto o “urbanismo de mercado”, afinado com o sonho de acesso ao mundo globalizado e ancorado na propalada “eficiência” do setor privado, é apenas um instrumento de lucro para o grande capital e para os empreendedores imobiliários, ou quanto é um instrumento de “progresso” e de “modernidade” – sobretudo porque o que se entende por esses termos é também bastante confuso. Conforme apontaram muitos intérpretes da formação nacional, no Brasil o “mito da modernização” confunde o que é apenas crescimento econômico e sofisticação para poucos com o que deveria ser desenvolvimento para toda a sociedade. Ver nas obras urbanas – mesmo que claramente superfaturadas e muitas vezes obviamente inúteis – um sinal de eficiência administrativa e política tornou-se no Brasil uma tradição de avaliação de “boas” ou “más” administrações. Tal cultura ajuda ainda mais a confusão, já que os grandes projetos urbanos “de mercado” promovem obras ainda mais modernas e vistosas. Por isso o entendimento do que seja um governo “progressista” ou “conservador”, a diferenciação de compromissos com os dominantes ou com os dominados, a manutenção ou a inversão das prioridades das políticas públi-

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cas urbanas não são processos de fácil discernimento. Talvez seja por isso que os primeiros governos petistas, na passagem da década de 1980 para a de 1990, aqueles que iniciaram a tentativa de aplicação de instrumentos urbanísticos mais democráticos, adotaram uma “marca” que não deixasse dúvidas e os destacassem naquele complexo e contraditório quadro: chamavam-se de governos “democráticos e populares”. Mas, diante do difícil desafio de ter de transformar a correlação de forças na produção do espaço urbano apenas com “instrumentos urbanísticos”, não demorou muito para que os “encantos” do “urbanismo de mercado” seduzissem também setores dessas administrações “democráticas e populares”. Os mecanismos de parceria com o setor privado, supostamente “gratuitos” para o Estado, foram então revestidos de uma roupagem de “modernidade”. Mesmo que sua principal característica fosse não enfrentar, mas sim exacerbar a exclusão socioespacial urbana, o modelo passou a ser veemente defendido, por mais contraditório que pareça, por governos que se alçaram ao poder justamente pelo voto das camadas excluídas e segregadas da cidade formal. Na ideia da hegemonia às avessas, “não são mais os dominados quem consentem em sua própria exploração. São os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que a ‘direção moral’ não questione a forma da exploração capitalista”33. Não há dúvida de que os dominantes de Santo André devem ter visto de bom grado – e talvez com certa surpresa – a possibilidade de serem conduzidos por um governo petista que lhes propunha implantar a mais festejada “grande intervenção urbana” do fim da década de 1990, o chamado Projeto Eixo Tamanduatehy, de forma muito mais ousada do que qualquer administração anterior já havia pensado em fazer. O projeto visava “revitalizar” uma extensa área industrial “obsoleta” ao longo da avenida do Estado, e tinha todos os ingredientes do “urbanismo de mercado”. Lançado em 1997, não sem uma visita do mais ilustre dos consultores internacionais do “planejamento estratégico”, o catalão Jordi Borja, o projeto estendeu-se por uma década, promovendo uma grande operação imobiliária para a “reconversão” da região e gerando significativa valorização fundiária e consequen33

Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

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te reintrodução da área no circuito imobiliário e financeiro. Era a marca de um “petismo moderno” na gestão urbana, amplamente difundido pela mídia, que se alavancou graças aos investimentos públicos de melhoria da infraestrutura urbana, graças à negociação para o uso e até mesmo para o repasse de terras ao setor privado, graças às isenções fiscais, aos processos de desapropriação muito favoráveis ao capital e às reduzidas “contrapartidas” exigidas34. Mas essa confusão conceitual alcançaria também os meios especializados, acadêmicos e técnico-administrativos, favorecendo ainda mais a consolidação do “pensamento único”. Isso porque a construção ideológica do Planejamento Estratégico, que visa “desregular, privatizar, fragmentar e dar ao mercado um espaço absoluto”35, e ainda estabelece as linhas de gestão para uma “cidade empresa”36, necessita antes de tudo criar consensos entre todos os agentes locais para legitimar-se. Vainer mostrou como o Planejamento Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro foi uma “bem-orquestrada farsa” com o objetivo de legitimar “projetos caros aos grupos dominantes da cidade”. A questão é que, nesse esforço de legitimação conceitual, e para embaralhar um pouco mais as coisas, o “urbanismo de mercado” incorporara alguns dos preceitos mais caros aos setores urbanistas de esquerda. De fato, o Planejamento Estratégico insiste fortemente em questões como a gestão participativa e a importância do “terceiro setor” e dá ênfase ao papel dos governos locais na criação de “polos geradores” da renovação urbana competitiva. Para isso, preconiza a existência tanto de consensos entre os atores locais envolvidos como de governos “inteligentes, decididos, honestos, eficazes”, mesmo que isso sirva no fim para criar, nas palavras de um especialista, “uma estratégia de desenvolvimento econômico, obviamente centrada na iniciativa empresarial privada, em torno de projetos que façam da cidade um ente competitivo”37. Ora, a participação popular, a gestão 34

Isabel A. P. Alvarez, A reprodução da metrópole: o Projeto Eixo Tamanduatehy, tese de doutorado, Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2009.

35

Ermínia Maricato, Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana (Petrópolis,Vozes, 2001), p. 59.

36

C. Vainer, “Pátria, empresa e mercadoria”, cit.

37

Manuel Castells, “Sobreviver na globalização”, Revista Urbs, São Paulo, set.-out. 1999.

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democrática e descentralizada, a importância de poderes locais honestos e decididos e o papel responsável e cidadão da sociedade civil são procedimentos há muito presentes na pauta dos movimentos urbanos de esquerda, dos quais o Planejamento Estratégico se apropriou. Para piorar ainda mais a situação, as agências de financiamento internacionais, e também a ONU, passariam a preconizar na década de 1990, pelo viés camuflado do liberalismo, os mesmos conceitos “de esquerda”, financiando mundo afora a adoção pelos governos municipais de programas revestidos dessa roupagem “social”. Para o Banco Mundial, as políticas urbanas teriam de “formular políticas e medidas que abordem os três problemas centrais do crescimento urbano: a redução dos obstáculos à produtividade urbana, o alívio da pobreza e a ordenação do meio ambiente”38. Como bem explica Isabel Alvarez, “o verniz da ‘redução da pobreza’ mal esconde o caráter intrínseco de definir políticas urbanas que pudessem ancorar o crescimento econômico e, portanto, o processo de valorização do capital”39. Em 1996, em Istambul, durante a conferência Habitat II, promovida pela ONU, os consultores Borja e Castells apresentaram um documento – mais bem um receituário – produzido sob encomenda da Habitat sobre os desafios da “gestão local” em tempos de globalização. A metodologia dos organismos internacionais é selecionar porções do território especialmente representativas das problemáticas existentes, elegê-las para sofrer intervenções locais “exemplares”, que serão chamadas de “best practices”, e então difundi-las pelo mundo em luxuosas publicações, apoiadas por textos teóricos produzidos por seus técnicos. O planejamento público de caráter universal dava oficialmente lugar a práticas de “gestão” pontuais e de eficiência quantitativa absolutamente irrisória, sem nenhum efeito estrutural de transformação. Comentando o encontro de Istambul, Maricato afirma: Apesar da roupagem democrática e participativa, as propostas dos planos estratégicos, vendidos às municipalidades latino-americanas, combinam-se perfeitamente com o ideário neoliberal que orientou o “ajuste” das políticas econômicas nacionais por meio do Consenso de Washington (que, aliás, também vestiu uma roupagem democrática).40

38

Banco Mundial, apud Isabel A. P. Alvarez, A reprodução da metrópole, cit.; grifo meu.

39

Isabel A. P. Alvarez, A reprodução da metrópole, cit., p. 109.

40

Ermínia Maricato, Habitação e cidade, cit.

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Assim, as posições “de esquerda” aparentemente adotadas pelos organismos de financiamento tiveram um efeito importante para o fortalecimento do “urbanismo às avessas”, já que foram esses financiamentos que permitiram, a partir da década de 1990, uma grande parte das políticas habitacionais e urbanas municipais no Brasil. Enfrentando a ingovernabilidade estrutural das cidades brasileiras, porém pressionados por forte expectativa de redemocratização urbana, muitos governos de esquerda perceberam nos financiamentos internacionais para a realização de “best practices” uma bem-vinda solução para seus problemas. Como seria de se esperar, isso gerou muita ambiguidade, pois, no interior mesmo dessas gestões, posições entusiasmadas com tais perspectivas de financiamento e de realização de limitados projetos “sociais” passaram a confrontar-se com aqueles que mantinham, uma vez no poder, coerência com o discurso democratizante que para ali os tinha conduzido. Assim, muitas vezes, em uma mesma gestão, enquanto de um lado se promoviam programas de “renovação” urbana baseados nos modelos de parcerias público-privadas, de outro se implementavam projetos sociais pioneiros, de caráter democrático e mais estruturais. Santo André, por exemplo, ao mesmo tempo que implantava seu grande projeto Eixo Tamanduatehy, tão alinhado com os ditames do planejamento neoliberal, tornava-se, no polo oposto, uma referência nacional pela ação de sua Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano e por suas políticas de regularização de favelas, de implementação de Zeis, de provisão habitacional e de utilização dos demais instrumentos do Estatuto da Cidade. Essa ambiguidade também marcaria, por exemplo, a gestão petista da Prefeitura de São Paulo, entre 2000 e 2004. De um lado, enquanto implementava uma política habitacional bastante variada, que melhorava consideravelmente o sistema de transporte público de massa, e construía equipamentos de educação e cultura na periferia nos quais promovia também importante programa de regularização fundiária, de outro adotava o discurso do “urbanismo de mercado” como principal mote de suas intervenções urbanas na cidade formal. É provável que, quando do início dessa gestão, especialistas do setor imobiliário tenham pensado que a fantástica “máquina de crescimento” paulistana, promovida pelas gestões conservadoras anteriores e responsável pela criação da “centralidade terciária e global” da avenida Berrini, estivesse com os dias contados. Entretanto, a ideologia da “competitividade urbana”

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já havia se enraizado o suficiente para confundir até os técnicos e urbanistas “de esquerda” do governo, e a ideia de projetos urbanos alavancados por altos investimentos públicos em consonância com o mercado tornou-se mais forte do que nunca. O primeiro ato do governo foi a aprovação da Operação Urbana Água Espraiada, justamente na região da avenida Berrini, que se tornaria a vitrine urbanística da gestão. O discurso era que esses recursos “sairiam da iniciativa privada” e os projetos resultantes, defendidos enfaticamente pelos “novos” urbanistas do governo, teriam um “efeito sinérgico” que beneficiaria a urbanização dos bairros pobres adjacentes. Mas essa não seria a única vitrine urbanística da gestão petista, que no Plano Diretor de 2002 promoveria a proliferação de novas operações urbanas como eixo da política urbanística (subordinada à lógica do mercado). Como apontava reportagem da Folha de S.Paulo de 1o de julho de 2001: sem recursos orçamentários para tocar as obras que podem mudar a cara e a dinâmica da cidade, a Prefeitura de São Paulo aposta nas operações urbanas para conseguir fazer intervenções de maior peso urbanístico. Nas palavras da prefeita Marta Suplicy, “elas são a saída para os investimentos na atual situação financeira da cidade”.

O “urbanismo de mercado” entrava na agenda governamental assumindo oficialmente seu caráter de “salvação”. Em 2002, a prefeitura lançou um concurso público para a “reconversão” do Largo da Batata, área de forte característica popular encravada no coração da Operação Urbana Faria Lima. Um artigo da revista Urbs, da Associação Viva o Centro, um think tank voltado para a “revitalização” do centro conforme os interesses empresariais, expunha o real significado daquele concurso: a “limpeza social” de um trecho apontado como “deteriorado”, no qual a presença exagerada de ônibus (e, pressupõe-se, de seus usuários) parecia impedir um urbanismo de “perfil” mais “sofisticado”: Por abrigar as conexões entre várias linhas de ônibus, não é paradoxal a presença do deteriorado Largo da Batata na ponta de uma avenida com o perfil da avenida Brigadeiro Faria Lima, que tange o bem cuidado Jardim Europa e abriga um shopping como o Iguatemi, considerado o mais sofisticado da cidade.41 41

Na reunião realizada no início da gestão para discutir essa “prioridade” urbanística, da qual este autor participou, ficou claro o embate entre urbanistas tradicionalmente ligados à reforma urbana, veementemente contrários ao projeto, e os “novos gestores”, alinhados com as receitas urbanas em voga.

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Sem ser tão direto, um dos “novos urbanistas” da gestão e então presidente da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), Maurício Faria, afirmava no mesmo artigo que “o Largo da Batata é hoje um ponto de desestruturação e, portanto, a requalificação da área interessa a todos, e mais, não pode ser entendida como excludente”42. Em um típico pensamento “às avessas”, tratava-se de promover, com o concurso, “um grande eixo terciário moderno em todos os sentidos, da arquitetura contemporânea aos processos de adição de valores, cujo efeito é irradiador”. Os dominados assumiam de vez a ideia de que mecanismos de mercado, tão caros aos dominantes, poderiam promover a “inclusão” social, graças a seu efeito “irradiador”. Sintomaticamente, entre os membros do júri do concurso estava Eduardo Leira, urbanista espanhol e consultor internacional sobre “cidades globais”. Quem passa hoje pela região se depara com os resultados desse urbanismo arrasa-quarteirão e com a “limpeza” que ele proporcionou, abrindo as portas para a valorização da área. A condução de uma política urbana claramente liberal no bojo de um governo de esquerda, quando os dominados capitaneiam uma “revolução moral [...] que se transforma, e se deforma, em capitulação ante a exploração desenfreada”43, ganhou ainda mais sentido quando em 2004 a prefeitura lançou mais um concurso, em moldes parecidos com o do Largo da Batata. Com a pergunta “como deve ser a cidade do século XXI?”, lançava-se o desafio a arquitetos e urbanistas de criar um “bairro novo”, dessa vez na “degradada” região da Barra Funda, uma região subutilizada nas proximidades do centro e de grande potencial imobiliário. Existia ali uma gleba vazia de cerca de 1 milhão de metros quadrados, parte dela originalmente pública, de propriedade da Telesp, que havia sido transferida para a Telefônica em seu processo de privatização (e mantida vazia desde então). Para não deixar dúvidas sobre o interesse imobiliário, a revista Vejinha on-line de novembro de 200544, em artigo intitulado “Terrenos milionário$”, apontava “seis das mais cobiçadas áreas que restam nas melhores re42

“O novo Largo da Batata”, Revista Urbs, n. 27, jul.-ago. 2002. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2009.

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Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

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Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

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giões paulistanas”. Lá estava o terreno de 251 mil metros quadrados da Telefônica, cujo preço estimado era de 100 milhões de reais. Dizia o texto, indicando claramente o papel que o concurso iria exercer: “O espaço deve ter as suas chances de venda ampliadas com a decisão da prefeitura de criar um novo bairro na região”. Vale lembrar que, na ótica de um governo progressista e comprometido com as mudanças sugeridas pelo Estatuto da Cidade, uma área como essa, vazia havia anos à espera de valorização, deveria ser combatida por mau uso e destinada à habitação de interesse social. Uma urbanização de densidade moderada indicaria um potencial para abrigar cerca de 40 mil pessoas, e uma postura governamental corajosa de enfrentamento das dinâmicas tradicionais de ocupação do espaço, condizente com o Estatuto da Cidade, poderia exigir que se destinassem habitações sociais para ao menos 25% dessa população, ou 10 mil pessoas. Contudo, o edital do concurso pedia apenas 600 unidades desse tipo, para cerca de 2,5 mil pessoas apenas, ou 6% do total. Pressupunha-se, portanto, a criação de um bairro elitizado, dentro dos padrões da urbanização desigual, sem espaço para os mais pobres. O mais surpreendente é que esse aspecto do edital era tão “importante” para o governo que este, na premiação, esqueceu-se dele, já que foi o terceiro colocado que mereceu o prêmio, mesmo sem ter proposto habitações de interesse social – embora não tenha deixado de sugerir um “setor tecnopolitano” bem ao gosto do “urbanismo de mercado” globalizado. No júri, vale destacar a presença de Alfred Garay, consultor internacional alinhado com o novo modelo urbano e principal responsável por um dos mais paradigmáticos “grandes projetos” liberais da América Latina, o de Puerto Madero, em Buenos Aires. Essa grande intervenção urbana, entretanto, nunca foi realizada: a gestão seguinte – de alinhamento conservador – recusou-a por ser uma marca política por demais identificada com o governo anterior! O avesso do avesso: um governo de direita descartando uma política claramente favorável ao mercado por ser a marca de um governo... de esquerda! Mas o “insucesso” do plano urbanístico não significou um fracasso dos objetivos empresariais em jogo. Em decorrência do concurso, houve uma forte valorização fundiária e imobiliária da região, e o bairro antes pouco visado tornou-se uma nova área de efervescência do mercado. Embora parte dos envolvidos no projeto talvez não imaginasse esse desfecho, ingenuamente crente no caráter “democrático” do concurso, o fato é que este representou uma grande mobilização do poder público – num governo de esquerda – para promover

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uma “renovação urbana” que, mesmo não tendo saído do papel, entregou de bandeja ao mercado um cardápio de projetos urbanísticos e realizou para ele uma significativa ação de marketing. Assim, em 2007, a área foi adquirida por uma importante construtora por 125 milhões de reais, ou seja, com uma valorização de 25% em apenas 2 anos45. A proposta era criar ali “um grande conjunto residencial, seguindo o modelo do que o mercado convencionou chamar de condomínio-clube”46. O projeto previa a construção de cerca de 30 torres, com um valor global de venda (VGV) potencial de 2 bilhões de reais. Um importante concurso público e um ambicioso “grande projeto urbano”, promovidos por uma prefeitura “democrática e popular”, resultaram assim em uma fantástica valorização fundiária e na previsão de transformação do sonhado “bairro novo” em uma das tipologias mais elitistas e segregadoras de assentamentos urbanos, a do condomínio fechado. “Como deve ser a cidade do século XXI?”, perguntava o edital do concurso. A marca da ambiguidade desse “urbanismo às avessas” acentua-se pelo fato de que, como já foi dito, a prefeitura empenhou-se ao mesmo tempo na elaboração de projetos sociais mais transformadores. E para aumentar ainda mais a confusão, as gestões seguintes, conservadoras e de direita, exacerbaram a tal ponto o urbanismo “de mercado” e o favorecimento do setor privado, como no exemplo já comentado das “concessões urbanísticas”, que os “grandes projetos” da gestão petista acima descritos parecem agora quase insignificantes. Mas o que se viu em São Paulo e em Santo André serviu de referência, e não são poucas as prefeituras de esquerda que, desde então, têm reproduzido o “urbanismo de mercado” com a mesma intensidade e com a mesma certeza de que esse é o caminho para a modernidade e de que ele tem, sim, um suposto caráter “democrático”. Esse modelo também se consolida porque difunde a ideia de que esses grandes empreendimentos dão “lucro” para a cidade, beneficiando-a. Jogos Olímpicos ou Copa do Mundo são bem vistos, pois “alavancam investimentos”, sem que se questione em algum momento se essa conta, na ponta do lápis, faz realmente sentido, e se esse dinheiro considerável não seria mais bem aplicado não em estádios e afins, mas em transporte público, sa45

Tomamos o preço sugerido no artigo de 2005, acima citado.

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Valor Econômico, “Tecnisa compra área de 244 mil m² da Telefônica por R$ 135 milhões”, São Paulo, 22 jan. 2007.

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neamento, habitação social, urbanização de favelas, escolas e assim por diante. É o “mito da modernização” fazendo efeito no campo do urbanismo. Assim, duas décadas depois da Constituição de 1988, o Brasil vive, na condução de suas políticas urbanas e habitacionais, um curioso momento. De um lado, os avanços da Constituição e do Estatuto da Cidade parecem ter trazido a esperança de uma mudança possível rumo à construção de cidades democráticas, e por isso amplos setores especializados, da academia e das administrações, alinhados na defesa da reforma urbana, depositam nos “instrumentos urbanísticos” uma crença de transformação que às vezes beira a supervalorização. De outro lado, o “urbanismo de mercado” e sua roupagem “democrática” dão a falsa impressão de que podemos ter cidades “modernas” comparáveis às do Primeiro Mundo, o que é um tanto irônico, já que lá no Primeiro Mundo, depois de décadas de políticas neoliberais, a reestruturação produtiva e a decadência do Estado-providência fazem com que sejam mais aquelas cidades que estejam se tornando parecidas com as nossas. Mas a aparência de que alcançamos aqui um “novo” patamar de urbanização escamoteia uma realidade preocupante: por trás desse urbanismo “modernizante”, continuam a reproduzir-se, ainda mais fortemente nos governos de direita, práticas urbanas arcaicas, clientelistas, corruptas, de expulsão dos pobres e de segregação espacial, de favorecimento a grupos econômicos, em mais uma faceta de nossa “modernização conservadora”. O mais intrigante é que o planejamento urbano socialmente transformador no Brasil parece ser tão simples quanto politicamente difícil é sua realização. Tratar-se-ia “tão somente” de inverter as prioridades de investimentos públicos e realizar, em essência, cinco níveis de ações urbanísticas: a produção em massa de moradia para os pobres, a implantação de saneamento básico generalizado, a estruturação de sistemas de transporte público de massa, em detrimento dos investimentos viários para os carros, e a provisão de equipamentos públicos em todas as periferias. O caminho para isso deve passar por um novo patamar de implicação da população usuária da cidade, sobretudo da “cidade informal”. O que politicamente também não é fácil. Enquanto a democracia parece se consolidar, tem-se a impressão de que a participação dos usuários nas decisões de políticas urbanas é cada vez menos lembrada. A “participação” da sociedade, um processo que, aliás, é exigido pelo Estatuto da Cidade, vem se resumindo à exibição para a população de planos já prontos, lindamente apresenta-

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dos, tecnicamente complexos, em “audiências públicas”, em que muito se deixa falar e se escuta47. Ora, transformações urbanas que afetam cada um dos usuários da cidade, e mais fortemente aqueles que dela são excluídos, deveriam ser discutidas por meses ou até anos em planos locais, promovidos por gestões descentralizadas e tendo como fio condutor a preservação dos direitos adquiridos, o respeito ao direito de moradia, a inclusão dos pobres na cidade “que funciona”, a urbanização dos bairros precários, a inversão das prioridades dos investimentos públicos e assim por diante. É um enorme desafio, mas nada impossível. É evidente que, com a crítica aqui apresentada, não se pode menosprezar, e muito menos jogar fora, todos os avanços decorrentes dos esforços intensos de um enorme número de pessoas que se dedica à transformação democrática de nossas cidades. Avanços estes que certamente demandarão muitos anos para se consolidar, sobretudo diante do peso das transformações políticas necessárias, mas que mostram ser o caminho mais consistente para a realização da chamada reforma urbana. Entretanto, não há como negar que o “urbanismo às avessas” pode confundir e assim atrasar ainda mais esse processo.

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Flávio Villaça, “As ilusões do Plano Diretor”, São Paulo, 2005. Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2010.

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VERDE, AMARELO, AZUL E BRANCO: O FETICHE DE UMA MERCADORIA OU SEU SEGREDO 1 Cibele Rizek Dona Cida Brasil é uma costureira de mão cheia. Habilidosa, conseguiu produzir o molde para a bandeira brasileira – uma bandeira difícil de fazer. O losango amarelo e o círculo azul estampado em silk screen dos dois lados precisam ser perfeitamente encaixados no retângulo verde, e dona Cida teve de montar e desmontar várias bandeiras até achar o jeito de encaixar e costurar, em dupla face, a bandeira brasileira. Também não deve ter sido fácil encontrar uma dona Cida Brasil lá em Cidade Tiradentes, disposta a trabalhar muito por muito pouco e a oferecer as habilidades conseguidas com muitos anos de costura, com muita prática de oficina, para poder finalmente produzir os moldes e ensinar as outras costureiras a produzir corretamente a bandeira brasileira. Durante nossa conversa2, percebi que tinha orgulho 1

Este texto nasceu das surpresas e dos achados da pesquisa de campo em Cidade Tiradentes. Ao lado desses achados, as considerações que o compõem têm por base uma longa colaboração com o Institut de Recherche pour le Développement (IRD) em uma investigação que começou sob a coordenação de Robert Cabanes e Vera da Silva Telles e tomou outros rumos, desembocando em um projeto aprovado pelo CNPq cujo eixo principal é o elo (mais ou menos perdido pela literatura, mas todos os dias presente nas incursões de campo) entre o trabalho e a cidade, entre o trabalho e a constituição dos territórios da precariedade. Do ponto de vista das questões que inspiraram essas incursões a campo e a leitura dessas informações aqui presentes, este texto se ancora nas dimensões de análise levantadas por mais um instigante texto de Francisco de Oliveira, bem como as discussões que dele surgiram no âmbito do Projeto Hegemonia às Avessas, aprovado pelo CNPq e desenvolvido pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic).

2

Realizei uma entrevista mais formal com d. Cida Brasil e tive outras conversas informais com ela. Seu nome neste texto é uma referência a apenas uma parte da forma como é conhecida. Algumas outras informações sobre a pesquisa de campo realizada serão expostas mais adiante.

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de muitas coisas: orgulho de decifrar o modo de produzir a bandeira, orgulho de não precisar do dinheiro da cooperativa em que trabalhava, já que podia contar com uma aposentadoria que ela considerava razoável – do marido falecido, funcionário público, cujos provimentos tinham se mantido integralmente na pensão que recebia –, orgulho dos filhos criados e suficientemente “bem de vida” para não depender do dinheiro dela. Dona Cida Brasil trabalha em uma cooperativa/ONG/empresa do extremo leste de São Paulo. Aqui, ela receberá o nome fictício de Atrito3, embora o nome de dona Cida Brasil não seja tão fictício assim, já que é conhecida pelo apelido Brasil no local onde produz as bandeiras utilizadas pelo Ministério dos Esportes do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Dona Cida, assim como o gerente da cooperativa, orgulhavam-se de ser as responsáveis pela produção daquelas bandeiras que foram levadas pelos atletas brasileiros para os últimos Jogos Olímpicos, em Pequim. Seguindo, de um lado, leituras, incursões e inquietações teóricas e, de outro, achados empíricos, topei com a produção inusitada dessa mercadoria de tanta carga simbólica que é a bandeira do Brasil, reificada e enfeitiçada por tantas camadas de opacidade, sobretudo no contexto de produção que será descrito a seguir. Acompanhar o processo que decifrou sua montagem complicada foi, antes de mais nada, a possibilidade de observá-la como produto do trabalho de corte, costura, encaixe e estamparia, em um galpão infernalmente quente e desconfortável do extremo leste de São Paulo, em meio a indistinções, indefinições e ambiguidades cuja trama esta pesquisa e este texto gostariam de poder começar a decodificar. Hegemonia? Embaralhamentos entre processos e suas significações? A vitória do menos pior sobre quaisquer outras possibilidades e alternativas? Trabalhadores precarizados a serviço das benesses dos programas sociais do governo de Luiz Inácio Lula da Silva? Hegemonia às avessas? Todas essas questões, esboçadas no âmbito do projeto e do seminário Hegemonia às Avessas, acabaram por desembocar na descrição e narrativa de um achado de pesquisa que, para além dos clássicos processos de fetichização, acabou por encontrar novas liminaridades, novas dimensões porosas, que talvez permitam identificar os trabalhadores precarizados dessa falsa cooperativa como “mercadorias políticas”, 3

Em texto sobre essa mesma cooperativa, esta autora e Isabel Georges denominaram-na com essa mesma alcunha. Ver Isabel Georges e Cibele Rizek, “Periferia dos direitos”, em Anais Anpocs, Caxambu, 2008.

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pagos – ou antes mal pagos – por um conjunto de verbas provenientes das parcerias com o Estado, bem como de seus programas sociais embaralhados.

O contexto e a produção Cidade Tiradentes é um bairro relativamente recente da cidade de São Paulo, data dos anos 1980 e foi construído pelo Estado na forma de um agregado de conjuntos habitacionais que tinham por função primeira alojar populações deslocadas por intervenções urbanas, bem como acomodar candidatos ao “sonho da casa própria” nas bordas distantes da cidade. Os conjuntos do bairro já tiveram o apelido de “caixotes da exclusão” e são portadores de fortes estigmas em torno da ideia de precariedade e pobreza, associadas a índices importantes de violência que apenas recentemente conheceram alguma diminuição4. Também é importante dar destaque à ideia de que Cidade Tiradentes traz, como marca de nascença, a porosidade entre legalidade e ilegalidade. Assim, por exemplo, o comércio que surgiu em torno dos principais eixos de circulação é abrigado em garagens e supostos quintais, em situação de completa ilegalidade. Parte considerável da população dos conjuntos mora ali por contrato de gaveta – completamente ilegal, mas na prática “impossível de coibir”, conforme aponta a própria Cohab. Outra parte não paga e nunca pagou as prestações do imóvel onde mora e uma terceira fundou a associação da qual trataremos a seguir, nascida como uma associação de moradores que reivindicava, por meio de instâncias e meios jurídicos, uma diminuição dos valores das parcelas de pagamento à Cohab. Essa associação se desdobrou em “ONG”, tal como se autodenomina em seu site, em órgão de assistência social e/ou trabalho social e – também de forma autodenominada – em “cooperativa de trabalho”, mais propriamente uma empresa. É parceira do governo Lula e também de outras empresas, cujos associados, beneficiários, público-alvo, trabalhadores cooperados ou trabalhadores assalariados apresentam, por sua vez, altos índices de “informalidade”, de precariedade e mesmo de ilegalidade, dados a dureza das formas de exploração e o grau de arbitrariedade com que são tratados, 4

De acordo com informações de pesquisa de campo, essa redução do número de homicídios resulta de um aumento do controle do tráfico e/ou do assim chamado “crime organizado” sobre o território.

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devidamente encobertos pelo caráter de “trabalho social”, “cooperativa”, “ONG”, “associação”. Essa ambiguidade é um dos elementos mais interessantes e instigantes desta investigação, bem como um dos elementos que estariam no centro da discussão levantada pelo seminário realizado pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania e do projeto de pesquisa que lhe deu origem. Afinal, como caracterizar esse modo de exploração do trabalho e as relações e formas de legitimação que o envolvem? Trata-se, a meu ver, de um exemplo das dificuldades que podem estar presentes nesse modo peculiar de dominação que Francisco de Oliveira chamou, na falta de melhor caracterização, de “hegemonia às avessas”5. Uma breve descrição de Cidade Tiradentes é importante para que possamos determinar como essa ambiguidade e esses índices de exploração e de uso do trabalho são possíveis – vistos ao mesmo tempo como política e economicamente funcionais em vários âmbitos. Talvez seja necessário, na descrição desse contexto, destacar o fato de que qualquer caracterização do bairro e de sua população deveria começar pela notação de um conjunto de incertezas. A primeira se refere ao número de habitantes desse distrito localizado na Zona Leste da cidade de São Paulo. De acordo com os dados oficiais, Cidade Tiradentes possuía 190 mil habitantes em 2000. A informação sobre o número atual da população, porém, é fortemente questionada pelos moradores e pelos movimentos sociais e associações “do pedaço”. Em visita realizada em maio de 2008, obtivemos um conjunto de respostas sobre as cifras populacionais que variavam de 200 mil a 600 mil pessoas. A impossibilidade de conhecer os dados mais elementares a respeito do distrito tem a ver com a forte opacidade que o cerca. Por exemplo, quantos apartamentos estariam desocupados? Quantos estão ocupados de modo irregular (o que é impossível detectar com clareza)? Quantos contratos de gaveta levaram à substituição dos moradores iniciais? Em relação às habitações supostamente unifamiliares, a mesma indefinição permeia, apenas para citar um exemplo, sua expansão e verticalização. Pode-se dizer o mesmo do número de famílias em coabitação etc. Esse caráter nebuloso se estende ainda,

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Ver o artigo publicado na revista Piauí, em janeiro de 2007. Esse também é o título do projeto de pesquisa encaminhado ao CNPq e aprovado em agosto de 2007, de autoria de vários pesquisadores, entre os quais Francisco de Oliveira e Cibele Rizek.

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e com mais razão, para as favelas do entorno: os chamados “Jardim Maravilha” e “Buraco do Gato”. Desse ponto de vista, por mais controle das informações que o Estado tenha, é possível afirmar que esse mesmo Estado promoveu, na própria origem do bairro, essa dimensão nebulosa que não permite um grau maior de conhecimento sobre o território e suas populações, já que tornou permanentes situações transitórias (como a de populações de risco “provisoriamente” alojadas em Cidade Tiradentes desde o governo de Luíza Erundina) e ocupou parcelas de terrenos que deveriam estar destinados à preservação ambiental, impossibilitando a regularização final da propriedade. Além disso, parte significativa dessas irregularidades ou situações liminares entre as dimensões legais e ilegais acabou por se aprofundar com o fato de que grupos de moradores vinculados ao tráfico adquiriram controle sobre os conjuntos habitacionais ou partes deles 6. De qualquer modo, a título de contextualização, é necessário dizer que Cidade Tiradentes está situada no extremo leste da capital, a 35 quilômetros de seu marco zero. O distrito abriga o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina, com cerca de 40 mil unidades, a maioria construída na década de 1980 pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) e por grandes empreiteiras que se valeram do último grande financiamento do Banco Nacional da Habitação (BNH) antes de seu fechamento. Chama a atenção, portanto, o caráter híbrido de um território marcado pela produção estatal de habitação social em grandes conjuntos habitacionais, fartamente criticados na literatura sobre cidades e provisão de moradia7, e ao mesmo tempo, e talvez por esse mesmo caráter estatal, crivado desde o seu nascimento por um conjunto significativo de irregularidades8. 6

Ver a esse respeito Ana P. Lavos, Sociabilidades em conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado: o caso da Cohab Cidade Tiradentes, tese de mestrado em Arquitetura e Urbanismo, EESC/ USP, São Carlos, 2009.

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Ver N. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria (São Paulo, Estação Liberdade, 1998).

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Mônica V. de Souza afirma que 72% do território de Cidade Tiradentes se encontra em área de preservação ambiental. Ver Transformações recentes no extremo leste de São

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O bairro – e toda a porção periférica que ocupa na franja da cidade – foi pensado e produzido como um grande conjunto periférico monofuncional, do tipo “bairro dormitório”, para onde se faria o deslocamento compulsório de populações atingidas por obras públicas. O poder público foi responsável por parte considerável dessas remoções. É importante observar que o distrito não possuía nenhuma infraestrutura necessária à reprodução da vida (transporte, saúde, educação, comércio de proximidade). Isso estimulou uma resposta vinculada a um padrão informal – quando não irregular ou simplesmente ilegal – de uma grande quantidade tanto de pequenos negócios (instalados em garagens improvisadas) quanto de mobilizações e movimentos que vão desde defesa de direitos até programas assistenciais, inclusive de geração de emprego e renda no âmbito local9. Além da vastidão dos conjuntos habitacionais que passaram a predominar na região, onde moram as cerca de 160 mil pessoas que compõem a chamada “cidade formal”10, constituiu-se também uma “cidade informal”, formada por favelas e loteamentos clandestinos e irregulares, instalados em áreas privadas, que são habitados por cerca de 60 mil pessoas. Cidade Tiradentes possui, portanto, uma população estimada em 220 mil habitantes categorizados por situações diferentes de acesso a condições urbanas e de serviços, bem como por Paulo: Itaim Paulista e Cidade Tiradentes (texto de qualificação de doutoramento apresentado ao programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, USP, São Carlos, 2007). 9

Conforme aponta texto de Isabel Georges e Cibele Rizek: “No final da década de 1970, o poder público iniciou o processo de aquisição de uma gleba de terras situada na região, que era conhecida como fazenda Santa Etelvina, então formada por eucaliptos e trechos da Mata Atlântica. Os conjuntos de prédios residenciais começaram a ser construídos, modificando a paisagem, e o local começou a ser habitado por enormes contingentes de famílias, que aguardavam na ‘fila’ da casa própria de companhias habitacionais”. Ver A periferia dos direitos, apresentado no 32o Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2008.

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Parte da literatura sobre os processos de urbanização utiliza fortemente a distinção entre cidade formal e cidade informal, ou ainda entre cidade legal e cidade real. Essas separações e modos de classificação são bastante enraizadas e têm larga história tanto no pensamento político brasileiro (Brasil real/Brasil legal) quanto na reflexão sobre o urbano. Como essas classificações parecem estar fortemente em xeque nos contextos abordados nesta pesquisa e neste texto, as aspas são mais do que mero instrumento de relativização. Com elas queremos expressar nossa distância em relação a esses modos de compreensão que separam o legal do real, o formal do informal no contexto brasileiro contemporâneo.

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estratos diferenciados de renda11. As áreas ocupadas pela “cidade informal” são as lacunas deixadas pela construção dos prédios da Cohab, pelas ocupações nas bordas dos conjuntos e também pela expansão da mancha urbana12. A composição da população de moradores de Cidade Tiradentes está diretamente ligada ao processo de constituição do bairro, feita ao sabor de camadas de intervenção estatal que, se por um lado “resolvia” a questão das intervenções do Estado ou do mercado imobiliário em outras áreas da cidade, por outro deslocava parcelas inteiras de população pobre para a franja leste, sem levar em conta suas necessidades mais elementares13. Assim, a população 11

Há 71 equipamentos na “cidade formal” e 3 na “informal”; a renda média do chefe de família varia de 500 a 1200 reais na “cidade formal” e de 200 a 500 reais na “informal”; o analfabetismo vai de 0 a 10% na “cidade formal” e de 10 a 20% na “informal”. Dados disponíveis em: . Acesso em: 4 set. 2008.

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Uma observação sobre as fronteiras da cidade de São Paulo se faz necessária. Essas fronteiras são limites do território administrativo do município e com frequência se combinam com a expansão dos outros municípios que compõem a Região Metropolitana. São territórios recentes, constituídos pela ocupação legal ou ilegal das franjas da cidade, de acordo com a disponibilidade de terras e seu desenho nos últimos vinte anos. Essa disponibilidade para além das chamadas “periferias consolidadas” acabou por gerar uma expansão da ocupação sobre as áreas de preservação ambiental. Esses territórios são alvos privilegiados dos programas sociais, assim como são facilmente identificáveis como territórios da pobreza urbana. Cabe notar ainda que o crescimento populacional desses territórios é significativamente maior do que o dos demais territórios e distritos da cidade. Essas fronteiras urbanas, identificadas como hiperperiferias, fronteiras ou zonas periurbanas, são também territórios onde pululam associações e comunidades, programas públicos e privados, ONGs, em meio a um processo de crescimento que se contrapõe a um encolhimento populacional da chamada cidade consolidada. Alguns dados disponíveis em artigo de H. Torres mostram a dimensão desse fenômeno: entre 1990 e 2000 o conjunto da cidade de São Paulo cresceu 1,4% ao ano, mas esse índice corresponde a um crescimento negativo de -1,3% ao ano da chamada cidade consolidada e a um crescimento demográfico de 6,3% ao ano das fronteiras; nesse mesmo período, a chamada periferia consolidada apresentou uma taxa de crescimento próxima do conjunto (1,3% ao ano). O mesmo autor mostra que a população dessas franjas, exatamente porque cresce a um ritmo muito maior do que o restante da cidade, correspondia, em 2000, a 30% da população da cidade, contra cerca de 14% do total de habitantes em 1990. Ver H. Torres, “Fronteira urbana”. Disponível em: . Acesso em: abr. 2006.

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Desse ponto de vista, é importante mencionar o chamado Setor G, ocupado por parcelas de população deslocada pela operação urbana Águas Espraiadas na zona sul

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de Cidade Tiradentes chegou aos conjuntos basicamente em função desses deslocamentos, combinados ou não com a “realização do sonho da casa própria”, ali onde essa realização parecia ser possível – nas bordas da cidade, em terrenos ocupados irregularmente pelo poder público, na ausência de outra opção de moradia. Também se pode afirmar que o bairro foi ocupado como lugar de passagem, e não de destino, por uma parcela dessa população que pretendia se mudar, assim que possível, para bairros mais consolidados. Logo, a situação do distrito em relação aos processos de segregação socioespacial da metrópole paulistana é bastante clara desde sua origem. Distrito pobre, fronteira leste do município, Cidade Tiradentes recebeu população da cidade de São Paulo desde os anos 1980. Sua composição e perfil podem ser brevemente desenhados pelos índices que se seguem: a renda média em Cidade Tiradentes é de cerca de 1,8 salários mínimos (dados relativos a abril de 2006) e a renda familiar média é de 3 salários mínimos; parte considerável dos moradores (48,5%) nasceu na cidade de São Paulo e, entre os que não nasceram na capital paulista, o tempo de migração é consideravelmente alto (22,3 anos)14, o que acaba por confirmar um conjunto de informações divulgadas pela grande imprensa sobre a origem e o modo de ocupação inicial do distrito, que chegou a ser conhecido como “caixote de exclusão”15. da cidade de São Paulo ao longo dos anos 1990. Essa operação urbana e a remoção populacional daí decorrente foram objeto de investigação de Mariana Fix, em Parceiros da exclusão (São Paulo, Boitempo, 2001). 14

Ver Centro de Estudos da Metrópole, Associativismo e redes sociais: condições de acesso a políticas sociais para populações de baixa renda (relatório de trabalho, mar. 2008).

15

“Os moradores mais antigos contam que foram ‘jogados’ no local no início dos anos 80, logo após a construção das primeiras habitações. A região fora ocupada por uma fazenda da época da escravidão, com senzala e pelourinho. Mais recentemente, parte da antiga sede da propriedade escravocrata foi destruída para a construção de um terminal de ônibus. Os primeiros habitantes do conjunto contam que as moradias e as ruas eram absolutamente iguais. Ninguém conhecia os vizinhos. Pessoas voltavam do trabalho e se perdiam, pois não tinham referências do caminho de casa. Não havia transporte, nem comércio, nem serviços. Gilson Negão, diretor da Sociedade Comunitária Fala Negão da zona leste, lembra, por exemplo, que uma população predominantemente negra do Bexiga foi levada para lá devido ao processo de desocupação dos cortiços: ‘Houve casos de pessoas que ficaram dias perdidas. O sujeito saía para trabalhar e depois não conseguia encontrar a própria casa’” (“Cidade Tiradentes é memória negra”, Folha de S.Paulo, 20 set. 2003).

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Esse contexto ancora um primeiro momento de reconhecimento e reação da população à situação em que se encontrava: falta de transportes públicos, precariedade e/ou escassez de serviços públicos, aliados à crescente crise econômica e de emprego e ao aumento indiscriminado e sem medida uniforme das prestações pagas à Cohab. Desse quadro inicial nasceu a associação em questão, fortemente vinculada à questão da moradia e das prestações da “casa própria”, ganhando outros sentidos e significados a partir de seu desenvolvimento posterior. Foi também no âmbito dessa associação que um conjunto de elementos se produziu e se reproduziu como parte de uma dinâmica impossível de ser identificada apenas com a mão do Estado, ou resultante de sua iniciativa, ou apenas com as relações e dimesões” associativas” da “sociedade civil”. Trata-se de localizar, no percurso dessa associação/ONG/empresa/cooperativa, as dimensões que mesclaram crescentemente legalidades e ilegalidades, programas oficiais e modos de exploração do trabalho – incompatíveis com quaisquer regulações formais, assistencialismo de programas oficiais de combate à pobreza e às precárias condições de vida – com a produção de legitimidades ancoradas na proximidade e no favor, devidamente redefinidas. Trata-se, portanto, de identificar um objeto que traz em si todas as aparentes ambiguidades presentes na fronteira tênue entre formalidade e informalidade, trabalho social e exploração/funcionalização da pobreza, regularidade e irregularidade, legalidade e ilegalidade, que parecem participar do processo de constituição do distrito de Cidade Tiradentes, modulando-se conforme a situação de trabalho e a inserção produtiva requeriam, mas também conforme se alternaram os canais e formas de legitimação ao longo das últimas décadas. Essa capacidade de modulação plástica, esse caráter adaptável desses processos (vistos, por vezes, como virtuosos, já que se assentariam na autodefesa e na capacidade de organização da população) parece ser um dos elementos centrais das dimensões que ao mesmo tempo escondem e revelam as novas relações entre produção e cidade, os novos territórios de produção que estão além e aquém dos territórios e porções fabris da cidade industrial clássica, com suas chaminés, seus sheds, seus edifícios, margeados de várias formas de habitação operária – da vila operária construída e mantida pela empresa (ou o que restou delas) às habitações econômicas, cortiços e pedaços inteiros constituídos pelo esforço do autoempreendimento da casa própria.

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No entanto, o caráter de bairro dormitório clássico também não pode ser tomado como elemento definidor desse mar de conjuntos habitacionais, quase todos bastante “degradados” em suas condições de durabilidade e habitabilidade. Como se pôde observar ao longo da pesquisa de campo, parte significativa da força de trabalho, em especial a força de trabalho feminina empregada e/ou “cooperada” por falta de qualquer outra opção de emprego ou inserção produtiva, vinha de trajetórias de ocupação que passavam pelas “oficinas” de costura do bairro. Estas funcionavam (ou ainda funcionam) nas salas apertadas das casas ou dos apartamentos e reúnem mulheres em torno da atividade mal remunerada que abastece lojas e confecções (algumas presentes em shopping centers de alto padrão de consumo), pequenas confecções do Brás e do Pari (antigas zonas industriais da cidade) ou mesmo as barracas da “feirinha da madrugada”. Assim, todas as mulheres entrevistadas na associação, mulheres que permaneceram em seus postos, eram consideradas “boas costureiras”, já que traziam para a produção “cooperativada” habilidades – algumas como as da dona Cida Brasil – difíceis de descrever com palavras. É curioso perceber que, assim como as mercadorias produzidas ocultam um segredo, as novas conformações urbanas nas bordas da cidade também escondem seu caráter de território produtivo de uma nova espécie – a do trabalho a domicílio em “oficinas” de costura, reproduzidas a título de virtuosas iniciativas da “sociedade civil”, bem-sucedidas experiências de associativismo “civil”, no âmago dessa “nova institucionalidade” que não é trabalho a domicílio nem fábrica, e encobre de modo talvez mais perverso, e certamente mais enigmático, suas formas brutais de exploração.

O percurso da associação: da luta pela moradia à produção em série de mercadorias A Associação dos Mutuários e Moradores do Conjunto Santo Estevão e Adjacências, antiga comissão de moradores do conjunto Santo Estevão, foi fundada em 1993. Um dos dois presidentes fundadores, antigo morador do conjunto, é hoje o presidente financeiro da associação16. O presidente é ad16

Em 2008, nenhum dos dois continuava morando no bairro. O gerente da cooperativa, um dos mais significativos dirigentes da associação, afirmou aos pesquisadores durante uma visita à associação/cooperativa que tinha se mudado do bairro por uma questão de segurança. “Ganhamos muito dinheiro com isso aqui, e aí, bom, tem

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vogado e ex-operador da Bolsa de Valores de São Paulo falido em 1992, quando veio para Cidade Tiradentes com a família. Sua esposa teve um ateliê de costura ao lado da cooperativa, onde fabricava seu vestuário pessoal com as costureiras mais experientes. Depois que levou seis tiros na rua em 1996, o presidente não circula mais pelo local – ele tem duas balas alojadas no corpo até hoje. A associação fez um acordo com a polícia militar e o corpo de bombeiros para a construção de um posto avançado da polícia e um canil (que deixou de existir em 2007)17. A associação nasceu assim das reivindicações em torno da questão central de Cidade Tiradentes: a moradia e seu preço. A partir da conquista da tutela antecipada e de outras sentenças judiciais favoráveis, as atividades sociais e econômicas (como, por exemplo, a construção do complexo poliesportivo e do ambulatório médico, bem como a parceria com a polícia, definida pelos próprios atores como um trabalho de “pacificação” do local) desdobrou-se nas operações da cooperativa de costura, fundada em 2004. Os cooperados construíram um galpão e adquiriram maquinário, parte dele doada por um grande banco privado e pelo Estado (no total, são mais de trinta máquinas de costura de todos os tipos, mesas de corte e bancos de trabalho para confecção de bolas). É preciso dizer ainda que a área ocupada pela associação é uma área da Cohab: uma encosta do bairro situada entre um importante eixo de circulação e a continuação do tecido urbano constituído pelas habitações unifamiliares de um dos últimos setores construídos e por diversos conjuntos de apartamentos. Por intervenção de Lúcia Alckmin, esposa do então governador do Estado de São Paulo, a cooperativa obteve seu primeiro contrato com a fábrica de brinquedos Estrela: produzia roupas de bonecas a 10 centavos a peça. Com dificuldades para obter capital – como cerca de 17 mil reais por muita inveja, muito problema, até ameaça de morte já recebi, então resolvi me mudar com a minha família para Itaquera.” Há muitos boatos em torno desse enriquecimento. Alguns trabalhadores relatam exemplos de nepotismo e arbitrariedade e sinais explícitos de riqueza (como um chofer ou um carro da marca alemã Mercedes Benz). Evidentemente não é possível apurar a realidade ou os fundamentos desses boatos, mas é certo que há uma visível situação de arbitrariedade que perpassa as relações de trabalho, bem como sinais de aberta desigualdade de condições de vida entre o “gerente” e sua família e os trabalhadores do chão de fábrica. 17

Isabel Georges e Cibele Rizek, “Periferia dos direitos”, em Anais Anpocs, Caxambu, 2008.

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3 ou 4 meses de trabalho –, a cooperativa passou também a produzir brindes para o McDonalds. Surgiu então a ideia do “brinde social” e os cooperados tentaram também estabelecer parceria com algumas empresas privadas. Chegaram a contatar a Associação Brasileira das Indústrias Têxteis (Abit), mas a “parceria” não se efetivou por intervenção do então prefeito, José Serra, que alegava que a operação da associação seria irregular, pois estava localizada em terreno ocupado18. A instituição da cooperativa de trabalho a partir da associação ganhou fôlego e visibilidade a partir de 2005. Foi nesse momento que, por meio de contatos entre os dirigentes da associação e um dos partidos da base do governo Lula, o PCdoB, ganhou espessura um conjunto de relações entre o que poderia ser identificado como um empreendimento de economia solidária e o Estado – crescentemente disponível para esse tipo de iniciativa. Esse “convênio” com o Ministério dos Esportes encerrou um período difícil, em que a permanência de algumas costureiras só foi possível graças ao trabalho autoagenciado para pequenas oficinas do Brás ou bancas de feiras e “feirinhas”. O esforço foi reconhecido pela direção da “cooperativa”, já que foi ele que garantiu a continuidade do negócio; como contrapartida, essas costureiras obtiveram postos de trabalho qualificados. O primeiro convênio com o Ministério dos Esportes foi assinado por Agnelo Queiroz, do PCdoB, no primeiro governo Lula e continuou na gestão de Orlando Silva, também do PCdoB19. Surgiram então mais dois “projetos sociais”: Pintando a Cidadania e Segundo Tempo. O “empreendimento” passou a fornecer material escolar ao Ministério dos Esportes, como bolas, bonés, sacolas e camisas, destinados a um projeto de atividade extraescolar para crianças “carentes”. Esse projeto, conhecido como Segundo Tempo, acabou sendo implantado pela associação no entorno da cooperativa, já que havia ali condições para acolher cerca de 5 mil crianças (a infraestrutura necessária foi construída em uma imensa área pública ocupada pela associação e não financiada diretamente pelo Ministério dos Esportes). 18

Ibidem.

19

O jornal Folha de S.Paulo, em 2 de março de 2008, no artigo intitulado “Ministério dá R$ 14 mi à ONGs do PCdoB”, relata que entre 2006 e 2007 o Ministério dos Esportes repassou para a Confederação Nacional das Associações de Moradores, dirigida por integrantes do comitê central do PCdoB, e outras entidades 5,2 milhões de reais.

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A implantação desse programa permitiu que a associação recebesse cerca de 15 reais por criança ao dia para mantê-las em atividades extraescolares. A partir da combinação desses elementos, e da íntima parceria e colaboração com o governo federal, a “cooperativa” deslanchou de forma definitiva. Configurou-se, assim, uma “parceria” com um “ cliente fixo”, cujo pedido é sempre solvável. Em 2007 e 2008 foram produzidas cerca de 250 mil camisetas ao ano, a um custo de 8 reais por camiseta, além de bonés e sacolas. Essa produção foi responsável, em 2007, por um rendimento de cerca de 4,5 milhões de reais, dos quais 30% teriam sido destinados ao pagamento da força de trabalho. O restante, sempre conforme as informações da gerência, teria sido usado para a compra de material. Mesmo assim houve descontinuidade no pagamento, já que a prestação de contas não foi regularizada. Essas dificuldades geraram quase um ano de paralisia. Nesse período, 600 trabalhadores entraram e saíram da cooperativa, entre eles moradores oriundos das parcelas mais vulneráveis da região: mulheres negras, idosas, com deficiências, responsáveis pelo sustento de jovens e crianças, e presidiários (A associação/cooperativa/ONG/empresa utiliza o trabalho realizado em prisões e completado em domicílio, em especial o de costura de bolas a partir de kits montados na cooperativa, pago por peça20. Ao contrário dos presidiários e dos trabalhadores em domicílio, as costureiras da cooperativa recebem por produção, com variações individuais significativas de 500 a 2 mil reais21. As jovens, sem qualificação, são recrutadas localmente e trabalham com arremate; as mais experientes, todas com expe20

Conforme relato de trabalhadores, o pagamento é extremamente variável, chegando a 2,50 reais por bola costurada. Para que o rendimento seja compatível com as necessidades mais elementares, é preciso familiaridade com o trabalho. Assim, quando começa a costurar bolas a partir dos kits, um trabalhador pode levar até um período inteiro para concluir o trabalho.

21

Informações imprecisas sobre as oscilações salariais foram coletadas em entrevistas com algumas trabalhadoras. Essa oscilação pode ser atribuída tanto à fidelidade e à continuidade do trabalho nos tempos de “vacas magras” como à experiência e à possibilidade de treinar trabalhadoras mais jovens e menos experientes. Desse ponto de vista, dona Cida Brasil é um caso emblemático, na medida em que utilizou toda sua experiência, inscrita em suas mãos e na possibilidade de “trabalhar o tecido e os encaixes”, para montar os bonecos e protótipos da bandeira brasileira. Utilizando suas habilidades incorporadas por uma vida de trabalho, d. Cida passou também a treinar outras trabalhadoras, o que se incorporou à sua rotina de trabalho de modo “naturalizado” e invisível.

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riência em fábrica e, em muitos casos, com mais de 45 anos, fazem a costura em “linha de produção”. Nenhuma delas recebe quaisquer outros benefícios, e a contribuição para o INSS “fica a critério de cada uma”, conforme indicação da gerência22.) Em 2008, a cooperativa trabalhou com cerca de noventa costureiras, selecionadas a partir de fevereiro (só quinze se mantiveram na cooperativa durante o ano, sem convênio, enquanto procuravam trabalho terceirizado no Brás)23. Houve uma inversão de prioridades quando a cooperativa obteve um contrato para a fabricação de 7 mil bandeiras nacionais – contrato que teve prioridade sobre os outros pedidos. Com isso, cada esportista brasileiro que participou dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, levou uma bandeira fabricada na Atrito e um panfleto da associação. Tudo isso ganhou destaque e publicidade quando, no fim de 2007, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, visitou a empresa/cooperativa/ONG/associação e lhe deu um status exemplar. A partir desse conjunto de dimensões, digamos, bastante heterodoxas, acabou sendo plausível que, sob péssimas condições de trabalho, em que os trabalhadores não têm acesso nem mesmo a papel higiênico, as idas ao banheiro são rigorosamente controladas e não há pagamento de horas extras nem qualquer garantia de continuidade de emprego e rendimento, um conjunto de pessoas possa imprimir em camisetas e outros itens o slogan “Brasil, um país de todos”... ou ainda se orgulhar de produzir a bandeira utilizada em jogos e práticas esportivas de escolas e de programas sociais.

Trabalhadores na bandeja: cenas de observação da miséria funcionalizada “Ei, vocês por acaso são do PCdoB?”, sussurrou um trabalhador que fazia kits de costura para presos e trabalhadores em domicílio. Diante da ne22

Em nossas várias incursões a campo, constatamos que nenhum trabalhador costuma contribuir para o INSS, já que essa contribuição é descontada ou paga diretamente pelo trabalhador, o que diminui ainda mais os parcos “rendimentos” auferidos pelo trabalho.

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Diante das oscilações da produção e da compra do material produzido pela cooperativa, mais uma vez as poucas trabalhadoras remanescentes trabalharam por iniciativa e procura própria, assim como parte das oficinas de costura do bairro, fornecendo peças de “modinha” para o Brás – tanto para as lojas como para a feirinha da madrugada. Como afirmou o gerente, “elas mesmas se viraram para continuar o trabalho”.

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gativa firme, o trabalhador pediu para conversar com a equipe de pesquisa, longe dali. Marcamos a entrevista e o trabalhador compareceu ao encontro marcado, pedindo ajuda para denunciar a situação criada pela cooperativa/ empresa/ONG/associação. Entre os muitos elementos dessa conversa, soubemos, e confirmamos depois, que os trabalhadores da Atrito tinham por obrigação incontornável comparecer aos atos e manifestações convocados pelo PCdoB. Mais do que obrigação, a punição por não comparecer era a metade do rendimento mensal do trabalhador. Além disso, situações de maus tratos, assédio moral, nepotismo, ganhos ilícitos, acordos espúrios e todo tipo de irregularidades foram denunciados por esse trabalhador que, enquanto processava o empregador anterior, fazia um “bico” na Atrito. Afinal, depois de um processo de “acumulação primitiva”, era o vínculo com o PCdoB e, por seu intermédio, com o governo federal que garantia o “empreendimento”. Outros vínculos se abriam em um vasto leque que se iniciara com a primeira-dama do Estado de São Paulo, Lúcia Alckmin, e se estendera às grandes empresas (auxiliadas pela associação no recrutamento local de mão de obra), à delegacia de polícia (cujas relações andavam um tanto estremecidas) e ao tráfico (“afinal, traficante também quer o melhor para os seus filhos”, como afirmava o gerente, que se orgulhava de fazer parte da pacificação de Cidade Tiradentes). O sucesso dos empreendimentos permitiu que parcelas inteiras de trabalhadores e, em especial, de trabalhadoras sem emprego e sem renda vissem na associação/cooperativa a possibilidade de algum rendimento (“é uma bênção para mim”), sobretudo diante das gigantescas dificuldades de transporte do bairro. Interessa explorar algumas dimensões desse processo. O primeiro vem do alto grau de reconhecimento que a Atrito adquiriu por sua atuação nos limites entre o trabalho social, a autocaracterização como ONG e o caráter empresarial com que realiza o processo de acumulação vinculado a um universo de “mercadorias políticas”, segundo o argumento e a noção utilizados por Michel Misse24. A ideia central da argumentação de Misse diz que a “eficiência” e a circulação das mercadorias políticas dependem da existência de um mercado decorrente de uma “demanda social”, isto é, de uma adesão comum (ao menos ambígua ou parcial) da população que resulta do fato do compartilhar 24

Ver Michel Misse, “As ligações perigosas: mercado informal ilegal, narcotráfico e violência no Rio”, Contemporaneidade e Educação, v. 1, n. 2, 1997, p. 93-116.

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de uma mesma representação social25. Nesse sentido, a apresentação no site da associação das formas como ela atua “para a comunidade” é um indicador muito significativo da contribuição ativa para a construção constante desse consentimento e da criação de uma demanda por “projetos sociais” (mais do que ou em vez de uma demanda por direitos, cuja impossibilidade e/ou inexistência foi naturalizada), isto é, de pacificação social no sentido de evitar ou silenciar outras formas de expressão26. O caráter dos empreendimentos, por um lado, e das próprias “políticas sociais”, por outro, acabam por legitimar, não sem algum grau de conflito, os processos que permitem e conformam esse conjunto de liminaridades e ambiguidades, tanto no âmbito do governo Lula quanto no âmbito local, seu deslizar para a ilegalidade e sua adesão à prática do “menor custo”. É fácil constatar, nos textos abaixo, a fabricação e o caráter quase inquestionável dessa mediação moral como alternativa do menos pior. Os programas e as linhas de atuação são apresentados a seguir, tal como constam do site da associação. Segundo Tempo É um programa do Ministério do Esporte em parceria com Atrito que tem como principal objetivo fazer a inclusão social de crianças e jovens em situação de risco, por meio de atividades esportivas, recreativas, reforço escolar e alimentar, atendimento pedagógico, médico e odontológico. [...] Projeto Guri-Polo Atrito Inaugurado no bairro Cidade Tiradentes em agosto de 2005, em parceria com a Associação Projeto Guri e a Secretaria de Estado da Cultura, o Projeto Guri-Polo Atrito desenvolve, por meio da música, habilidade e potencialidade de crianças e adolescentes de áreas culturalmente carentes, reconhecendo essa arte como agente de fortalecimento na construção da cidadania. [...]

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Em seu artigo (“As ligações perigosas”, cit.), o autor dá exemplos que mostram essa ambiguidade, assim como a aderência paradoxal da sociedade a valores como exigência para seu funcionamento, o que permitiria, dessa forma, a permeabilidade constante entre o legal e o ilegal. Afirma: “Tudo se passa como se não houvesse incongruência [entre a propina e a corrupção]”.

26

Houve algumas tentativas de processar a associação. Essas tentativas tiveram um caráter rigorosamente individual e, apesar de ter obtido ganho de causa em primeira instância, a trabalhadora que iniciou o processo não havia recebido nenhuma indenização até fim de 2008 e início de 2009.

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Pintando a Cidadania O programa Pintando a Cidadania é um programa do Ministério do Esporte em parceria com a Atrito que objetiva gerar trabalho e renda local. Foi implantado no bairro Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo, em janeiro de 2005. Desde que o programa foi implantado na Atrito, além de promover a inclusão social por meio da geração de renda e emprego, contribui também para o desenvolvimento socioeconômico de um bairro considerado o mais carente e populoso da cidade de São Paulo, hoje com cerca de 400 mil habitantes. [...] Cidade Tiradentes é um bairro que abriga cerca de 400 mil pessoas [sic]. Localizado no extremo leste da capital paulista, o bairro não dispõe de recursos básicos ao desenvolvimento da vida nos dias de hoje. Sua infraestrutura se resume a escolas, uma delegacia, duas companhias da Polícia Militar, doze unidades de saúde, algumas creches, dois mercados de médio porte e um terminal de ônibus. Cidade Tiradentes é um bairro que não conta com bancos, empresas de médio e grande porte, hipermercados, emprego e acesso a cultura e lazer. Com a chegada do programa Pintando a Cidadania foi possível suprir uma das maiores carências do bairro, o emprego. Possibilitou ofertar emprego a pessoas de poucas oportunidades no mercado de trabalho, como senhoras com idade acima de 40 anos, jovens de 18 a 24 anos, sem qualificação profissional, ex-internos do sistema penal e pessoas portadoras de necessidades especiais.27 Escolinha de esportes olímpicos Criadas em 2006, as escolinhas têm como principal objetivo formar jovens atletas olímpicos. As crianças e adolescentes que participam do programa Segundo Tempo na Atrito e possuem mais aptidão para determinada modalidade esportiva são encaminhadas a integrar a escolinha de esportes olímpicos [...].

Nesse sentido, diante do processo de “descentralização” das políticas sociais, vinculado a um processo de modulação e de transformação das rela27

A utilização do trabalho de presidiários permite apontar o vínculo entre o sistema prisional e o trabalho em muitas direções. Por um lado, o trabalho de costura das bolas não é exercido exclusivamente por presidiários, pois parte dele é realizado em domicílio no próprio bairro. Percebeu-se ainda, ao longo das entrevistas realizadas, uma permanente desqualificação do trabalho dos presos, considerado de baixa qualidade. A utilização desse tipo de trabalho remete às casas de trabalho (workhouses) mencionadas por Foucault em várias ocasiões, especialmente em O poder psiquiátrico (São Paulo, Martins Fontes, 2006). Além dessa referência, a situação de exploração da pobreza e a situação de liminaridade entre trabalho social, empresariamento e autoempresariamento remete à generalização da forma empresa a favor e contra o mercado, também discutida por Foucault em La naissance de la biopolitique (Paris, Gallimard/ Seuil, 2004).

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ções entre Estado e sociedade civil em torno do combate à pobreza e de novas mediações passíveis de serem aproximadas da noção de “mercadorias políticas”28, esses novos “empreendedores morais”29 altamente profissionalizados reivindicam seu lugar, cumprindo até mesmo funções de Estado, como deixa claro esta afirmação da gerência da associação: “Aqui... é por isso que a gente fala que nós somos o Poder Público dentro da Cidade Tiradentes. Por quê? O subprefeito aqui, ele diz que nós queremos ser um poder paralelo. Não, poder paralelo é você, porque você entrou agora”. Além dessa declaração, que faz coincidir a associação/empresa/ONG/ cooperativa com o Estado, outra confissão, feita também aos sussurros, surpreendeu os pesquisadores: “Pois é... Ganhamos muito dinheiro com isso aqui [o gerente aponta para o galpão de trabalho onde funciona a cooperativa] e tem gente que não se conforma. Então, [recebemos] várias ameaças de morte e tivemos de mudar para outro bairro com as nossas famílias...”30. 28

Mais uma citação de Misse poderia esclarecer as afirmações contidas nesse parágrafo: “O que distingue, em geral, uma atividade econômica ‘formal’ de outra ‘informal’ é sua maior ou menor subordinação à regulamentação estatal. Não se pense, no entanto, que essas atividades são inteiramente separadas, constituindo ‘setores’ bem demarcados [...]. Diferentes formas de ‘flexibilização’ informais participam da constituição de empresas econômicas ‘formais’ e a informalidade ilegal de certas atividades econômicas pode dirigir-se, ao mesmo tempo, para ‘fachadas’ formais ou mesmo mobilizar recursos em empresas legais. Múltiplas e complexas redes sociais se desenvolvem a partir dessas diferentes estratégias aquisitivas, legais e ilegais, relacionando ‘mundos’ que o imaginário moral prefere considerar inteiramente separados entre si” (“As ligações perigosas”, cit., p. 113).

29

Conforme sugestão de Isabel Georges, a partir de H. S. Becker, Outsiders: studies in the sociology of deviance (Nova York/ Glencoe, The Free Press, 1963). Em sua análise sobre as práticas vinculadas ao fumo de maconha, o autor desenvolve a perspectiva de análise do trabalho de lobbying. No texto de Isabel Georges e Cibele Rizek, “A periferia dos direitos”, propõe-se o uso desse conceito no sentido de busca de legitimidade de atividades formalmente ilegais.

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Muitos rumores a respeito dessa mudança foram mencionados em entrevistas fora da cooperativa. Um trabalhador afirmou que o gerente morava em uma mansão com piscina em Itaquera e possuía um BMW, com chofer, para levar a esposa e outros parentes à cooperativa todos os dias. Outros mencionaram imóveis de lazer, na praia. Evidentemente não coube constatar a veracidade ou não dessas afirmações. É importante ressaltar, no entanto, que essas falas assimilam o dirigente (mais ausente) e o gerente (mais presente no âmbito da produção) da cooperativa ao lugar e ao status de patrões.

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Outro elemento significativo diz respeito à fabricação em grande escala das camisetas nas quais se imprime a frase e o logo “Brasil, um país de todos”. Observando o processo de infestação (a montagem das camadas de malha que deverá seguir para o corte), feita a mão por dois trabalhadores (um dos quais, conforme denúncia de outro trabalhador, cunhado do gerente), perguntamos se não havia uma máquina ou qualquer outro instrumento que tornasse o trabalho menos monótono e pesado. O gerente, um tanto indignado, respondeu: “Mas nosso objetivo aqui é dar e não economizar trabalho!”. Ainda uma última observação, registrada apenas nos cadernos de campo, pode ser reproduzida aqui para explicitar algo de uma legitimidade também ambígua. Observando uma linha de montagem da bandeira brasileira, iniciei uma conversa informal, longe dos gravadores, com algumas costureiras. Elas me perguntaram se eu conhecia alguma cooperativa ou centro de triagem de resíduos sólidos nas redondezas. “Porque eu acho que deve ser melhor, né? Talvez seja melhor do ponto de vista do dinheiro e do trabalho, porque aqui, como você vê, é uma benção, mas é duro....” Da produção da bandeira brasileira à catação e triagem de lixo – esse parece ser o espectro de possibilidades resultantes dessa perversa combinação entre situação urbana, crise do emprego, dificuldades e precarizações de toda ordem, entre as dimensões formais e informais de uma inserção produtiva e urbana marcada pela ambiguidade de um consentimento e de uma coerção produzidas por novas e estranhas combinações, resultantes ainda de processos inéditos de fetichização, hegemonização às avessas, mediações morais e naturalização de um mundo de necessidades e privações distante da possibilidade de uma reinvenção sempre provisória da possibilidade da igualdade e, por seu intermédio, da possibilidade da política. Dona Cida Brasil, mas também cada uma das costureiras desempregadas, presidiários, trabalhadores em domicílio, deficientes e moradores de antigos bairros dormitórios nas franjas das cidades brasileiras constituem uma força de trabalho que, na bandeja de um processo nada claro de acumulação do capital, é reinserido produtivamente, reaproveitado, sem lenço nem documento, na contramão de quaisquer direitos ou benefícios, na contramão da possibilidade de sua constituição como sujeitos de direitos, de mãos atadas pelas cordas das mediações morais dos empreendimentos sociais, pelos vínculos embaralhados do combate e da assimilação da pobreza, nas tessituras das novas formas de produção entrelaçadas aos territórios híbridos das bordas da cidade.

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4 AMÉRICA LATINA E ÁFRICA DO SUL NA ENCRUZILHADA

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A TEORIA DA CONJUNTURA E A CRISE CONTEMPORÂNEA Carlos Eduardo Martins

Premissas teóricas e metodológicas para a análise das conjunturas A crise da economia mundial iniciada em 2008 tem causado grande impacto nos meios de comunicação e no pensamento social. Mais que uma simples recessão, apresenta de fato elementos de depressão ao produzir um intervalo de crescimento negativo, o que leva muitos a caracterizá-la como uma reedição da grande crise de 1929. Terá procedência essa comparação? Como podemos interpretá-la? Quais são seus determinantes e seu alcance? Que mudanças político-ideológicas e conjunturais pode suscitar? Essas questões são de enorme pertinência não apenas para as ciências sociais, mas também para a ação política. Vivemos um período de grande aceleração do tempo histórico provocada pelas amplas transformações materiais e sociais trazidas pela globalização. Essa aceleração produz choques, contradições e entrelaçamentos de tendências e contratendências. Distinguir a articulação específica das forças sociais que se combinam e se confrontam nas realidades que se apresentam é de importância central para identificarmos sua perenidade e nexo histórico. É alto o risco de se tomar fenômenos transitórios e aparentes por profundos e estruturais, em função do dinamismo de nosso tempo, o que exige do pesquisador uma extrema cautela. Para lidar com essa temporalidade, em que o fluxo histórico se intensifica, estabelecendo vínculos crescentes simultaneamente entre o futuro e o passado, a investigação social deve buscar os instrumentos conceituais de longa duração, submetendo-os sem cessar ao crivo dos processos empíricos. A construção da ciência na contemporaneidade exige cada vez mais a articulação crescente entre o abstrato e

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concreto, entre retrospectiva e prospectiva para teorizar a história ao mesmo tempo como fluxo e estrutura. Essa perspectiva tem sido particularmente desenvolvida nas ciências sociais pelo amplo movimento que busca aproximar as correntes de pensamento braudeliano e marxista e encontra sua expressão mais avançada no desenvolvimento de uma teoria do sistema mundial. Para isso, concorrem as análises do sistema-mundo, desenvolvidas em especial por Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi; as contribuições da teoria marxista da dependência, elaboradas sobretudo por Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini, pensadas pelos autores como a etapa inicial da construção de uma teoria do sistema mundial; as teorias da revolução científico-técnica, fortemente inspiradas nos Grundrisse e em O capital; e as teorias dos ciclos longos. A obra de Fernand Braudel constitui uma referência indispensável para a construção de conceitos de longa duração. Ele aponta a existência de múltiplas dimensões do tempo, diferenciadas, simultâneas e articuladas, que condicionam umas às outras e configuram um movimento dialético de deslocamento: são as estruturas, as conjunturas e o cotidiano. As estruturas configurariam as prisões da longa duração que se moveriam lentamente, desgastando-se e condicionando as possibilidades do existir. As conjunturas seriam inflexões cíclicas que afetariam as primeiras, incorporando-se a seu movimento de desenvolvimento e desgaste. E o cotidiano, inscrito nos marcos gerais estabelecidos por estruturas e conjunturas, representaria a composição anárquica e altamente imprevisível do dia a dia que interage com as dimensões anteriores. Esse enfoque foi amplamente desenvolvido por Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi no Fernand Braudel Center. Immanuel Wallerstein designou pelo conceito de moderno sistema mundial a estrutura do que chama de capitalismo histórico1. O moderno sistema mundial representa a combinação entre a economia-mundo capitalista, seus fluxos de capitais e mercadorias, e a superestrutura que lhe permite o controle do poder político: 1

Immanuel Wallerstein, El moderno sistema mundial: la agricultura capitalista y los orígenes de la economía-mundo europea en el siglo XVI (Madri, Siglo XXI, 1979); El moderno sistema mundial: el mercantilismo y la consolidación de la economía-mundo europea 1600-1750 (Madri, Siglo XXI, 1984); El moderno sistema mundial: la segunda era de gran expansión de la economía-mundo capitalista, 1730-1850 (Madri, Siglo XXI, 1998).

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o sistema interestatal. Para Wallerstein, o capitalismo constitui a gênese de sua estrutura de poder desde o século XVI, com a construção de uma economia euro-americana. Através dela, libertou as trocas de longa distância dos custos políticos exigidos pelos impérios, ampliou o mercado mundial para incluir a oferta de suprimentos básicos à Europa Ocidental e criou uma estrutura econômica monopólica, voltada para a obtenção do superlucro. Essa estrutura desenvolveu o sistema interestatal, a partir do século XVII, como o eixo de uma superestrutura jurídico-política para o protagonismo do capital e sua mundialização. Ao limitar a territorialidade do poder coercitivo, o sistema interestatal estabeleceu uma assimetria espacial entre o capital e os Estados, em favor do primeiro. Este se aproveita da competição estatal pelo capital circulante para impor seus interesses, invertendo a relação entre os poderes econômicos e políticos, tal como era configurada nos grandes impérios da Antiguidade e, em menor medida, na Idade Média. Giovanni Arrighi analisou com precisão a forma de coordenação do moderno sistema mundial2. Aponta que esta se realiza por hegemonias que limitam a anarquia e estabelecem padrões monetários, jurídicos e ideológicos organizadores do sistema interestatal. As hegemonias combinam consenso e coerção, utilizando a força como recurso em última instância. Trata-se de um padrão que se desenvolve não apenas no plano interestatal, mas também no intraestatal, uma vez que a reivindicação da legitimidade no plano internacional por um Estado vincula-se à capacidade de garanti-la internamente. Para reivindicar com êxito a hegemonia, um Estado deve possuir um grau bastante assimétrico de poder econômico (produtivo, comercial e financeiro) sobre os demais. Assimetria, segundo Wallerstein, que lhe permita vender seus produtos no mercado competidor a preços mais baixos que os produtores locais. Nem sempre é necessária a liderança militar, embora seja frequente, mas é preciso ao menos um equilíbrio geopolítico de forças que impeça o Estado mais poderoso de exercê-la contra a liderança econômica, como no caso das Províncias Unidas, derrotada militarmente pela Grã-Bretanha durante sua hegemonia, e da cidade de Gênova, protegida pela Espanha. Cada hegemonia amplia o liberalismo global, isto é, o grau de circulação de capitais e mercadorias na economia-mundo, o espaço 2

Giovanni Arrighi, O longo século XX (São Paulo/Rio de Janeiro, Edunesp/Contraponto, 1996), Caos e governabilidade no Moderno Sistema Mundial (Rio de Janeiro, Contraponto, 1999). Adam Smith em Pequim (São Paulo, Boitempo, 2008).

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territorial desta e os mecanismos de consentimento em que se baseia (representação política e sua amplitude social). Todavia, as formas ideológicas de que se utilizará para isso são complexas e diferem bastante entre si. As hegemonias configuram os ciclos políticos-institucionais do capitalismo histórico. Oscilam pendularmente entre as formas cosmopolitas-imperialistas e as corporativas-nacionalistas. Ambas aumentam a densidade do moderno sistema mundial, isto é, os volumes absoluto e relativo das trocas e dos investimentos internacionais, desenvolvendo as tendências seculares do capitalismo histórico. As hegemonias cosmopolitas-imperialistas introduzem inovações político-institucionais que ampliam radicalmente os limites espaciais da economia-mundo, e as corporativas-nacionalistas implementam profundas modificações organizacionais, mas conservam em grande parte os limites espaciais anteriores. Os ciclos se dividem em fases de expansão material e financeira. Estas culminam em períodos de caos sistêmico que correspondem a guerras mundiais de aproximadamente trinta anos, proporcionais em extensão à dimensão da economia-mundo. As guerras destroem anarquicamente os excessos de competição e de capacidade internacionais e, com eles, parte da densidade do sistema mundial, para relançá-lo em outra etapa de desenvolvimento. Cada oscilação do pêndulo corresponde à combinação entre duas perspectivas temporais simultâneas: a do retorno cíclico e da irreversibilidade do tempo, abrindo uma perspectiva de interpretação da realidade de extraordinária fecundidade. À hegemonia da Espanha-Gênova, seguiu-se a das Províncias Unidas, depois a britânica e por fim a norte-americana. A hegemonia como sistema de poder não exclui o imperialismo, mas articula-se com ele, subordinando-o a sua direção. O imperialismo é um sistema de poder que exige o controle político e territorial de um Estado ou formação social por outro. É extremamente útil para a expansão dos limites territoriais da economia-mundo e a anexação de regiões externas a ela. A vinculação da lógica capitalista às políticas territorialistas da nobreza de origem medieval foi decisiva para a conquista colonial das Américas, cujo custo não podia ser calculado em termos estritamente capitalistas. A anexação da Ásia e da África pela Europa Ocidental pôde basear-se muito mais no cálculo que a conquista das Américas e, portanto, no protagonismo político das forças capitalistas e liberais, em função das disparidades militares impulsionadas pela revolução industrial europeia,

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ainda que esse elemento por si só seja insuficiente para explicá-la3. Estabelecida a integração econômica a uma nova divisão internacional do trabalho, o imperialismo torna-se desnecessário do ponto de vista da lógica global do sistema, uma vez que a dominação passa a repousar nas classes dominantes nativas, integradas ao protagonismo do capital internacional, como assinalaram as teorias da dependência. Entretanto, esse ajuste não se fez de maneira fácil, dada a própria dimensão anárquica e competitiva do capitalismo histórico. Projetos imperialistas dirigidos ao centro do sistema contra o sistema interestatal foram elaborados durante as bifurcações de poder, inerentes aos períodos de caos sistêmico, mas foram amplamente derrotados: a Espanha imperial, a França napoleônica e a Alemanha nazista buscavam por meio da política (monopólio da violência) subordinar a economia e prorrogar ou estabelecer sua dominação sobre o moderno sistema mundial. O conceito de capitalismo histórico utilizado pelos autores é de grande importância. Por ele, analisam os processos de acumulação de capital tal como se desenvolveram historicamente, possibilitando a visualização dos primórdios do sistema de dominação capitalista e suas tendências de longa duração. Identificam as tendências seculares dessa estrutura: a acumulação ilimitada e a tendência decrescente da taxa de lucro, como polaridades antagônicas e indissolúveis e fundamentos de seus ciclos. Arranjos organizacionais historicamente provisórios garantem o predomínio da primeira, mas, ao se esgotar, dão lugar à primazia da segunda. Novos padrões de organização são estabelecidos, fundando-se em ultima instância nas possibilidades estruturais de desenvolvimento da acumulação ilimitada, mas se as impulsionam, desgastam-nas. Wallerstein e Arrighi partem ainda do conceito de capitalismo histórico para assinalar que a acumulação de capital vincula-se ao monopólio, sendo este produzido pela restrição da competição mediante a articulação de atores privados ao Estado. Apontam ainda que a criação de um sistema-mundo capitalista precedeu o desenvolvimento da chamada Revolução Industrial, iniciando-se com o controle econômico e orçamentário dos Estados europeus pelos capitais comercial e usurário. A perspectiva neobraudeliana desenvolvida por Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi representa um aporte extremamente importante para a 3

Deve-se agregar a decadência do Império Mogol. Ver Giovanni Arrighi, O longo século XX, cit., 1996.

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renovação do pensamento marxista. Todavia, apresenta também algumas limitações; a principal é o abandono de uma teoria da mais-valia e do conceito de modo de produção. Entretanto, esses limites podem ser ultrapassados, uma vez que não são necessários e podem ser ressignificados. O conceito de capitalismo histórico articula-se bastante bem com a concepção de Marx de que, na transição entre modos de produção, a política joga um papel decisivo. O modo de produção capitalista iniciou-se pelo controle político da superestrutura, da mesma forma que a ditadura do proletariado é o elemento-chave de organização da transição para o socialismo. Foi isso que permitiu no capitalismo o posterior desenvolvimento da base econômica do modo de produção, suas forças produtivas e relações de produção, e poderá fazê-lo, segundo Marx, num hipotético e futuro modo de produção comunista, caso o proletariado consiga impor sua hegemonia política para afirmar a transição socialista. O capitalismo criou um sistema-mundo de poder em que se articulou por trezentos anos com a liderança política da nobreza, controlando as políticas de Estado para impulsionar a busca de superlucro, mediante a pilhagem, a colonização e o tráfico de escravos como suas principais fontes de acumulação ilimitada. Entretanto, apenas pôde transformar-se de sistema-mundo em sistema mundial, com o pleno desenvolvimento de suas tendências seculares, mediante o estabelecimento de sua base específica de forças produtivas e relações de trabalho: a revolução industrial e o assalariamento, que impulsionaram o capital produtivo como eixo de articulação dos capitais comercial e usurário e, com ele, a instituição e a expansão da taxa de mais-valia. Se as versões braudeliana e neobraudeliana de capitalismo histórico apontam corretamente as identidades entre os distintos processos históricos de acumulação capitalista para definir, na acumulação ilimitada, o significado geral do conceito de capitalismo, falham, entretanto, na análise das condições materiais que a impulsionam e a sustentam secularmente, tornando-se insuficientes para abordar o processo histórico de construção, desenvolvimento, desgaste e obsolescência dessa estrutura. Para isso, deveriam incluir o conceito de modo de produção capitalista, cujo eixo central de forças produtivas, segundo Marx, é a grande indústria. A Revolução Industrial afirmou-se como o paradigma de desenvolvimento da economia mundial entre 1780-1970. Estabeleceu o princípio mecânico, desvalorizou a força de trabalho, incrementou a taxa de mais-valia e reduziu drasticamente a população empregada no campo. Durante

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esse período, as contradições, para a taxa de lucro, entre o aumento da taxa de mais-valia e o decréscimo relativo da massa de valor representada pela força de trabalho, principalmente em função do aumento da taxa de desemprego, foram solucionadas de modo favorável com as ondas longas de elevação da produtividade, a apropriação dos excedentes gerados nas periferias e a estabilidade político-institucional do sistema. A partir de 1970, com a convergência tecnológica microeletrônica, iniciou-se a mundialização da revolução científico-técnica. Esta estabelece o princípio automático no lugar do mecânico e substitui progressivamente o trabalho manual pelo intelectual. Se a Revolução Industrial reduziu drasticamente a proporção do trabalho agrícola, concentrando-o no setor secundário e de serviços, a revolução científico-técnica tende a fazer o mesmo com o trabalho manual, restringindo-o a uma proporção residual. Marx analisou esse processo do ponto de vista lógico-histórico em O capital e mais profundamente nos Grundrisse. Para o autor, a ciência seria uma força produtiva revolucionária, de natureza pós-capitalista, que apenas de forma parcial pode ser submetida ao capital. Ele assinala que o desenvolvimento da ciência tende a zerar o valor, uma vez que este depende não do trabalho que se incorpora à produção, mas daquele que se despende no processo de produção. A ciência ultrapassa o trabalho coletivo e estabelece o trabalho universal que se acumula infinitamente através das gerações, configurando um estoque de conhecimento gratuito que intervém de modo crescente na produção, garantindo as necessidades básicas da humanidade. A automação tende a eliminar o trabalho da produção direta e reestrutura as qualificações da força de trabalho, ameaçando o princípio da mais-valia relativa. Nesta, a produtividade vinculava-se à desvalorização da força de trabalho, substituindo o saber operário pela máquina e ampliando a taxa de mais-valia. Ao suprimir largamente o trabalho manual, a automação redefine as demandas sociais de trabalho em direção ao trabalho intelectual, vinculando a produtividade ao aumento do valor da força de trabalho, uma vez que passa a depender do aumento do tempo de formação do trabalhador. Essa contradição é resolvida pelo capital através da superexploração do trabalho, isto é, com o aumento do desemprego estrutural, reduzem-se os preços da força de trabalho por debaixo de seu valor, sustentando a taxa de mais-valia. A automação apresenta ainda outra importante contradição para a taxa de mais-valia. Ao reduzir a massa de valor representada pela força de trabalho a uma parcela muito diminuta da jornada de trabalho, restringem-se

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cada vez mais os impactos dos aumentos da produtividade sobre a elevação da taxa de mais-valia. Limita-se também a conversão de mais-valia extraordinária em lucro extraordinário, objetivo principal da inovação, segundo Marx. A mais-valia extraordinária amplia a massa de mercadorias sem reduzir o valor social de cada unidade, por isso, como menciona Ruy Mauro Marini, dirige-se principalmente ao consumo suntuário e gera sua demanda a partir da economia relativa de gastos com a força de trabalho. Ao reduzir-se de maneira significativa a economia de valor com a força de trabalho que se obtém com a inovação tecnológica, a mais-valia extraordinária encontra dificuldades de realização, pois a massa de mercadorias acrescentada pelo desenvolvimento da produtividade não encontra demanda equivalente na transferência de valor do trabalho para o capital por efeito da introdução do progresso técnico. A revolução científico-técnica recebeu amplo tratamento teórico-metodológico na obra de Radovan Richta, difundindo-se pelo pensamento marxista e ganhando em Theotonio dos Santos seu principal intérprete. O desenvolvimento da revolução científico-técnica debilita estruturalmente o capitalismo histórico e faz girar o pêndulo das tendências seculares do moderno sistema mundial em favor da queda da taxa de lucro. Entretanto, esse movimento é de longa duração e articula-se com outros que podem limitá-lo parcialmente e conter provisoriamente suas dimensões disruptivas. Esses movimentos são os ciclos. Além dos ciclos sistêmicos, de dimensão político-institucional, possuem grande relevância para a análise da conjuntura os ciclos de Kondratiev. Os ciclos de Kondratiev são ondas de cinquenta a sessenta anos de duração, divididas em fases A (de expansão) e B (de financeirização). Surgiram a partir da Revolução Industrial e expressam a combinação entre novos paradigmas tecnológicos e organizacionais e seus efeitos sobre a taxa de lucro. O surgimento desses novos paradigmas exige novas formas de organização do trabalho, das empresas, do Estado, e novos conteúdos de políticas públicas. Entretanto, esse é um processo lento. Durante o desajuste entre as dimensões físicas e organizacionais das novas tecnologias, cai significativamente a taxa de lucro e a acumulação tende a se deslocar para o setor financeiro, apoiando-se nos juros e na geração de capital fictício, o que provoca significativa redução nas taxas de crescimento econômico per capita. Durante as fases em que essas dimensões se ajustam, a taxa de lucro sofre uma forte ascensão e a acumulação se reorienta para o setor produtivo, elevando

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significativamente as taxas de crescimento per capita. O ajuste é instável e desenvolve-se numa trajetória pontuada por inovações primárias, secundárias e terciárias. Em seu conjunto, os Kondratievs descrevem fases A, divididas em retomada, prosperidade e maturidade, e fases B, em crise, depressão e recuperação. Cada uma dessas subfases compõe períodos decenais e dão lugar aos chamados Juglars, ciclos estudados por Marx e ligados à substituição dos meios de produção. Os Juglars absorvem a tendência preponderante do Kondratiev, isto é, as fases A deste prolongam e intensificam seu crescimento, ocorrendo o inverso durante a financeirização. Os ciclos de Kondratiev foram teorizados inicialmente por Nicolai Kondratiev entre os anos 1920 e 1930 e influenciaram diversas correntes marxistas, entre elas o trotskismo. Essas oscilações também foram observadas por Joseph Schumpeter e repercutiram sobre a corrente neoschumpeteriana. Todavia, tanto Schumpeter quanto Trotsky procuraram negar seu caráter sistemático, atribuindo-lhe a condição de onda, ao invés de ciclo, por razões apenas em parte distintas. Trotsky admitia somente os ciclos decenais observados por Marx. Qualificava-os de endógenos e atribuía às ondas longas caráter excepcional, na medida em que dependeriam supostamente de fatores externos ao processo de acumulação, como as lutas de classes, as guerras, as descobertas tecnológicas ou geográficas. Schumpeter, por sua vez, considerava o capitalismo um sistema em equilíbrio, cabendo a fatores externos, como os empresários inovadores, introduzirem seu dinamismo. A busca do lucro, visto como renda diferencial, por meio de inovações tecnológicas, colocaria o sistema em desequilíbrio. As inovações se desenvolveriam em cachos: inovações primárias, secundárias e terciárias se sucederiam, levando o sistema a novo ponto de equilíbrio, diferente do anterior. O pensamento neoschumpeteriano avançou bastante na análise das ondas longas, sobretudo com as obras de Christopher Freeman e Carlota Perez. Elaborou os conceitos de paradigmas tecnoeconômicos e trajetórias tecnológicas, identificou historicamente a existência de cinco grandes ondas, mas manteve o compromisso com a noção de equilíbrio schumpeteriana, que impediu a compreensão da acumulação ilimitada como parte da estrutura capitalista e dos ciclos como uma das formas de expressão de seu desenvolvimento. O pensamento trotskista alcançou alto nível de sofisticação com a obra de Ernst Mandel. Ele revisou as críticas de Trotsky aos ciclos, suavizando-as, mas manteve a dualidade endógeno/exógeno que era parte do esquema de análise do autor russo-ucraniano. Mandel assinalou

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que o desenvolvimento do capitalismo num sistema efetivamente mundial e o crescente controle que proporciona sobre a natureza por meio do progresso técnico, diminuíam a autonomia relativa de fatores como a natureza e a inovação tecnológica. Entretanto, apontou que a luta de classes permanecia como variável exógena ao poder capitalista, ainda que restringisse sua potencialidade libertadora ao período específico da primeira quinzena subsequente ao estalo da crise que inicia a fase B do Kondratiev. Em verdade, a polarização endógeno/exógeno é uma falsa questão para a compreensão da problemática dos ciclos. Ela é oriunda do liberalismo e da fragmentação que este provoca no pensamento social. Todo processo social constitui-se de uma articulação específica que se desenvolve sobre os elementos geográficos, territoriais, tecnológicos e culturais da vida humana que lhes são relativamente autônomos. O capitalismo criou uma poderosíssima força de articulação oriunda de suas tendências seculares, capaz de incorporar em grande parte a natureza e os processos sociais. Os Kondratievs são oscilações que correspondem ao desenvolvimento estrutural do modo de produção capitalista, de suas forças produtivas e relações de produção. O longo movimento pendular de ajustes e desajustes entre as dimensões materiais e subjetivas das tecnologias vincula-se ao predomínio da maquinaria, como força produtiva, sobre a condição humana e intelectual dos trabalhadores. E a alternância entre desenvolvimento produtivo e financeirização, ao protagonismo da acumulação ilimitada. A luta de classes tem sua autonomia relativa, mas não é um componente exógeno às estruturas capitalistas e a sua expressão cíclica: é inerente ao movimento dessas estruturas, desenvolve-se com sua expansão e afeta seu curso, podendo, no limite, interrompê-lo. Entretanto, essa possibilidade não é independente das condições materiais de existências, vinculadas, em última instância, à expansão do tempo secular do capitalismo. A reprodução dos Kondratievs, dos ciclos sistêmicos ou dos Juglars assinala o protagonismo do capital na luta de classes e o desenvolvimento das estruturas capitalistas de que são parte. Os Kondratievs têm se manifestado com razoável regularidade na história do capitalismo e sido extensamente observados nos períodos de 1790/1810-17 até 1844-51; 1844-51/1870-75 até 1890-96; 1891-96/1914-20 até 1939/45; 1939-45/1967-73 até 1991/94; e 1991/94 até 2015/20 (?). A articulação entre as tendências seculares e a perspectiva cíclica permite situar a história como uma força viva, constituindo um instrumento teórico-metodológico de grande importância para a análise das conjunturas.

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O tempo assume múltiplas dimensões, aparecendo simultaneamente como fluxo e estrutura, prospectiva e retrospectiva. A repetição cíclica, ao incidir sobre outro ponto de desenvolvimento da estrutura capitalista, cria uma temporalidade nova e original, ao mesmo que relança velhos temas e questões, articulando-os em outro contexto para suscitar novas respostas.

A conjuntura atual e os desafios do século XXI Nossa tese é que a conjuntura contemporânea se caracteriza pela combinação de três movimentos simultâneos e de longa duração: a mundialização da revolução científico-técnica, a crise de hegemonia dos Estados Unidos – processos que se estabelecem desde o início dos anos 1970 – e um ciclo expansivo de Kondratiev, que se inicia em 1994. Tanto a mundialização da revolução científico-técnica quanto a crise de hegemonia dos Estados Unidos atuam no sentido de deprimir a taxa de lucro, mas esse processo é contido pelo ciclo expansivo de Kondratiev que se inicia em 1994. Esse ciclo de expansão restabelece os altos níveis da taxa de lucro e da taxa de crescimento per capita na economia mundial, mas sofre os efeitos desses processos mais longos: a taxa de crescimento per capita fica abaixo do período dos anos dourados, entre 1950 e 1973, e da potencialidade tecnológica atual; o eixo geopolítico do crescimento da economia mundial se desloca para o Leste asiático e a taxa de lucro se recupera com certa dificuldade, dependendo da difusão da superexploração do trabalho da periferia para os centros decadentes, onde se situa por debaixo dos níveis do pós-guerra. A fase A desse Kondratiev divide-se em: retomada, que se institui entre 1994 e 2000, prosperidade, que se estabelece entre 2002 e 2008, e maturidade, que pode ser projetada possivelmente para 2010-2015/20. O fim do ciclo longo expansivo faria convergir os três grandes movimentos de queda da taxa de lucro, tornando-se altamente provável que lance a economia numa longa depressão e abra um período de crise geral do sistema capitalista, de caos sistêmico, similar ao de 1914-1945. Os períodos de crise geral do sistema combinam o esgotamento da trajetória dos padrões organizacionais econômicos e políticos vigentes. Nesse sentido, a crise de 2008-2010, apesar de trazer elementos de depressão, seria apenas um curto período de transição para uma nova expansão de aproximadamente cinco a dez anos. Ela se diferencia amplamente da crise de 1929: seu epicentro é um centro decadente e não o centro dinâmico da economia mundial; não pode do

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mesmo modo ser caracterizada como uma crise geral do capitalismo, que envolva uma ruptura de seus padrões políticos de organização. O aumento da intervenção estatal e o desenvolvimento do capitalismo de Estado, que a crise vem provocando, não é uma ruptura com os padrões neoliberais que organizam a economia mundial desde os anos 1980. O aumento da intervenção estatal e sua vinculação com o setor financeiro têm sido amplamente praticados pelo neoliberalismo e ainda que haja certo recrudescimento de medidas protecionistas, não há sinais de que estas possam limitar uma nova expansão do comércio mundial nos próximos dez anos. A profundidade da crise de 2008, todavia, indica a existência de uma crise estrutural em marcha. Durante os anos 1990, ainda sob a influência da crise mundial dos anos 1980, manejou-se a ideia de que viveríamos uma longa depressão. Iniciada nos anos 1970, esta se prolongaria pelo fato de o capitalismo encontrar sua etapa superior num regime de acumulação ideal, financeirizado, pautado numa moeda flexível e na força das armas. A recuperação do crescimento entre 2002 e 2007 pôs esse enfoque em segundo plano, mas algumas interpretações apressadas da crise de 2008 tentam restabelecê-lo. Essas afirmações, porém, não encontram sustentação empírica4. A taxa de crescimento do PIB per capita entre 1994 e 2008 (2,6%) mais que duplicou a do período de 1974 a 1993, conforme os indicadores da OCDE, tabulados por Angus Maddison. A crise deverá reduzi-la – para o largo intervalo iniciado em 1994 –, afastando-a dos 2,9% ao ano de 1950 a 1973 e aproximando-a dos 2,3% ao ano de 1939 a 1973, quando se inclui a década do caos sistêmico dos anos 1940. Todavia, permanece muito acima dos 1,2% ao ano da fase B do Kondratiev de 1974 a 1993. A taxa de lucro nos Estados Unidos, país que oferece as fontes estatísticas para calculá-la, caiu de 10,3% para 6,5% nos intervalos de 1959 a 1967 e 1968 a 1992. Subiu para 8,2% no intervalo de 1994 a 2007, sem recuperar o patamar da década de 1960, mas nesse mesmo período elevou-se significativamente a massa de lucros 4

A ideia de um império global capaz de sobrepor-se à competição e ao sistema interestatal para estabelecer o valor de maneira sustentável, independentemente das condições reais de produção, não encontra precedentes no capitalismo histórico e no moderno sistema mundial. Esses projetos se originaram nos períodos de caos sistêmico e buscaram submeter o sistema interestatal a forças pré-capitalistas, dada a incapacidade dos blocos históricos que os sustentavam de impor seu protagonismo pelo poder econômico.

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gerada pelas corporações estadunidenses fora dos Estados Unidos, o que indica níveis superiores de taxa de lucro em outras regiões da economia mundial, como a China e o Leste asiático. Em 1967, a parcela de lucros no exterior gerada pelas empresas não financeiras estadunidenses equivalia a 5% do total alcançado. Entre 1994 e 2007, essa parcela se elevou para 17%, atingindo 23% nas crises de 2001 e 20085. A fase A do novo Kondratiev apresenta características muito especiais. Se, por um lado, desloca a acumulação para a taxa de lucro, as crises do modo de produção capitalista e da hegemonia estadunidense atuam sobre a recuperação da taxa de lucro, limitando-a. A automação reduz a massa de valor representada pela força de trabalho e estabelece a contradição entre a inovação tecnológica e a valorização do capital. A taxa de mais-valia apresenta incrementos cada vez mais medíocres e o segmento de alta produtividade incorpora uma parcela restrita do conjunto dos trabalhadores. A conversão de mais-valia extraordinária em lucro extraordinário apresenta dificuldades: a economia de valor produzida pela substituição da força de trabalho por maquinaria, que transfere parte do fundo de consumo dos trabalhadores para o capital e se incorpora parcialmente à demanda que constitui o consumo de luxo, torna-se cada vez mais insuficiente para atender às expectativas de valorização da massa ampliada de mercadorias que circula em busca do lucro extraordinário. Tais processos levam à busca de formas complementares ao processo produtivo de valorização do capital, sem eliminar sua centralidade, e à difusão da superexploração do trabalho como instrumento de elevação da taxa de mais-valia. A superexploração estabelece altos níveis de desemprego nos países centrais, para que os preços da força de trabalho caiam abaixo de seu valor, e gera um excedente de capital que não se reinveste no setor produtivo deles. Esse excedente de capital busca a valorização no setor financeiro ou no exterior, colocando em crise a divisão internacional do trabalho em centros, semiperiferias e periferia, e proporcionando uma janela de oportunidade aos países periféricos que fornecem uma força de trabalho com qualidade similar e mais barata que a dos países centrais. A crise de hegemonia dos Estados Unidos se combina com essas necessidades da fase ascensional deste Kondratiev, oferecendo-lhe processos de 5

Veja-se o Economic Report of The President 2010. Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2010.

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valorização auxiliares. A sobrevalorização do dólar, que impulsiona os déficits comerciais estadunidenses, e a dívida pública dos Estados Unidos são seus principais instrumentos. O dólar sobrevalorizado e a dívida pública têm sido utilizados, desde os anos 1980, em maior ou menor grau, pelos governos estadunidenses como recursos de empoderamento econômico de sua burguesia e de atração de capitais, diante da perda de competitividade dos Estados Unidos para a economia mundial, em particular para o Leste Asiático. Entretanto, esses instrumentos são limitados: fortalecem provisoriamente o poder financeiro estadunidense, mas impulsionam dívidas e debilitam seu setor produtivo. A sobrevalorização do dólar eleva os preços de exportação em moeda estrangeira para as distintas economias nacionais e favorece a sustentação mundial da mais-valia extraordinária, impulsionando a migração dos investimentos das empresas estadunidenses para outras regiões, que podem pagar a força de trabalho em moeda local e realizar o valor da produção em dólar. A dívida pública, por sua vez, funciona como instrumento de criação de capital fictício, ao absorver e valorizar o capital global excedente que não encontra os meios suficientes para fazê-lo no setor real da economia. Entretanto, as taxas de juros, durante a fase expansiva do Kondratiev, tendem a se nivelar abaixo do crescimento da economia. A dívida pública, após um pico de 1979 a 1994, quando saltou de 33% para 66,7% do PIB, estabilizou-se e desceu suavemente para 58% durante o governo democrata de Bill Clinton, em 2000. No governo Bush, impulsionada pelo aumento dos gastos militares, a dívida pública recuperou os patamares de meados dos anos 1990, alcançando 65,5% do PIB. Mas essa elevação foi insuficiente para atender à demanda por lucro extraordinário gerada pelo dinamismo da economia. Durante a fase B do Kondratiev do pós-guerra, o Estado organizou, por meio da dívida pública, o mercado de valorização do capital fictício. Entretanto, no período iniciado em 1994, não pôde fazê-lo da mesma forma. Coube ao setor privado organizar essa tarefa mediante a valorização de ativos financeiros vinculados ao setor real da economia: entre 1994 e 2000, esse mercado se concentrou nas ações da Bolsa de Valores estadunidense do segmento de alta tecnologia e, entre 2005 e 2007, nos títulos vinculados às hipotecas imobiliárias. Mas a valorização desses ativos chocou-se com os limites de demanda da economia estadunidense, uma vez que em última instância se articulava com o setor real da economia. Esta não sustentou a

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expansão das mercadorias e os preços necessários às expectativas de lucros dos investimentos financeiros 6. Em 2001/02, o governo estadunidense baixou os juros e reduziu os impostos sobre as empresas como forma de estimular a recuperação econômica. Essas medidas aqueceram a economia, mas criaram a armadilha de uma enorme superacumulação de capital, que resultou na crise iniciada em meados de 2007 e levou à drástica intervenção do Estado para sustentar em grande parte os valores de ativos podres. Nesse novo período de longo crescimento, o Estado eleva seus níveis de intervenção para, por meio do exercício do monopólio da violência, transferir recursos do conjunto da sociedade para os monopólios, sustentando a expectativa de apropriação de lucros extraordinários pelo grande capital, uma vez que parte significativa destes já não pode ser gerada pelo movimento específico do capital produtivo. Entretanto, como as políticas públicas se organizam para a sustentação da taxa de lucro, o processo se dá de forma distinta: as taxas de juros deixam de ser o instrumento-chave de dívida pública que se constitui abertamente por meio de enormes transferências dos recursos públicos. Estas buscam amortecer as contradições entre o capital produtivo e os investimentos financeiros articulados a esse mesmo capital, de um lado, e a sustentação do lucro extraordinário. Essa é a especificidade da intervenção do Estado no novo Kondratiev, que torna obsoleta as pretensões de retorno ao velho keynesianismo de pleno emprego nos marcos do capitalismo contemporâneo. O Estado intervém não mais para sustentar a associação entre pleno emprego e produtividade, mas para sustentar lucros extraordinários em detrimento do emprego e da produtividade. A crise e as medidas anticíclicas, iniciadas no final do governo Bush filho, implicaram o forte desgaste de liderança política do neoliberalismo, versão contemporânea do pêndulo cosmopolita-imperialista, na economia mundial. Ao ser realizada de forma concentrada, diferentemente do período Reagan-Bush pai, quando se distribuiu por mais de uma década, a intervenção desnudou os profundos vínculos de classe do Estado com o grande capital nos centros da economia mundial. O resultado foi um novo impulso estrutural ao desenvolvimento dos movimentos antissistêmicos que de6

A difusão da superexploração do trabalho aos Estados Unidos elevou drasticamente o coeficiente de Gini, que ascendeu de 0,403 para 0,47 entre 1980 e 2007, mantendo os salários reais em níveis inferiores aos do fim dos anos 1960 (Economic Report of The President, 2010).

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verá marcar a próxima década. A eleição de Barack Obama deve ser vista como parte desse contexto. O governo Obama enfrenta uma agenda interna e externa de pressões crescentes para mudanças sociais, políticas e econômicas, mas sua capacidade de satisfazê-las é muito limitada. As perspectivas de retorno ao velho ideal social-democrata são muito improváveis. Herda uma brutal crise da economia estadunidense e dá prosseguimento a forte aumento da dívida pública para sustentar lucros extraordinários e o capital fictício. Compromete grande parte de sua capacidade de ação com os setores monopólicos e não consegue atender às demandas dos movimentos sociais e das lideranças nacionalistas que se afirmam no mundo contemporâneo. Seleciona o atendimento das pressões sociais internas, uma vez que sua especificidade está na tentativa de acomodar os choques entre movimentos sociais e capital financeiro para buscar resgatar a legitimidade interna e posteriormente a externa do Estado norte-americano. Entretanto, mesmo internamente, suas propostas sociais são de alcance reduzido7. O elevadíssimo índice de endividamento reduzirá o potencial de crescimento estadunidense, o que limitará a posterior redução dos altos níveis de desemprego alcançados durante a crise: 9,5% em junho de 2009, e 9,7% no primeiro semestre de 2010. O comprometimento financeiro dos Estados Unidos reduzirá sua capacidade de liderança para impulsionar os processos de transformação da economia mundial no sentido da sustentabilidade, inclusão e paz8. O deslocamento do dinamismo do crescimento econômico para o Leste asiático se aprofundará. Apesar da eleição de Obama, os Estados Unidos deverão con7

No informe A new era of responsibility: renewing America’s promise (2009), o governo Obama estima a elevação da dívida pública e do déficit público, entre 2008 e 2009, de 70,2% para 90,4%, e 3,2% para 12,3%, respectivamente. As previsões são ainda de que a dívida pública alcance cerca de 100% do PIB em 2011, mantendo-se nesse patamar durante a década, na medida em que o déficit público apresente taxas similares ao crescimento da economia a partir de 2012 (cerca de 3%). A previsão do informe é que, de 2008 a 2019, as despesas do governo federal aumentem 178% com juros, 128% com programas de saúde, 86% com seguridade social e 46% com defesa. Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

8

A possibilidade de uma nova crise decenal na segunda metade da próxima década poderá exaurir o que resta da hegemonia estadunidense e acelerar a transição para um novo padrão monetário mundial.

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tinuar a perder liderança política na próxima década. A agenda mundial dificilmente será estabelecida por sua decadente hegemonia. Os governos latino-americanos tomam a iniciativa de estabelecer os temas da agenda com os Estados Unidos – caso de Cuba e sua reincorporação à OEA, fim do bloqueio e restabelecimento democrático em Honduras – e desenvolver temas próprios, independentemente da participação estadunidense – novos rumos para a integração regional que contemplem a cooperação financeira, tecnológica, científica e cultural e não priorizem a competição e a concorrência econômica, e a articulação política entre América Latina, Ásia e África. Abre-se um enorme espaço para a reorganização geopolítica da economia mundial. Nesse processo, os Bricas – caso se inclua a África do Sul – poderão desempenhar um papel-chave. A América Latina ingressa na próxima década dividida em três grandes forças políticas e sociais: neoliberais, terceira via e neonacionalistas. Os neoliberais mantêm as políticas do consenso de Washington e o alinhamento aos Estados Unidos e situam-se à direita do espectro político, tendo seu eixo na região (Colômbia e México); a terceira via, baseada principalmente no Brasil, Uruguai e Chile, busca combinar políticas sociais, maior independência na política externa – e, no caso do Brasil, certa recuperação da indústria nacional –, com as políticas econômicas neoliberais; os neonacionalistas desenvolvem o capitalismo de Estado em direção a formas participativas e, nos casos mais radicais, de transição ao socialismo. O neonacionalismo assume em geral uma perspectiva latino-americanista e suas maiores expressões são Venezuela, Bolívia, Equador e Paraguai, às quais se articulam o socialismo cubano e o sandinismo na Nicarágua. A Argentina se articula com moderação e limitações a esse processo. O Brasil desempenha um papel central para a manutenção da hegemonia dos Estados Unidos na região. Um novo padrão de desenvolvimento para a região poderá se desenvolver com sua aproximação ao neonacionalismo, articulando no continente a formação de um novo bloco geopolítico com Ásia e África. Mantidas as tendências atuais, a China deverá ser o principal parceiro comercial da América Latina nos próximos vinte anos. A questão que se coloca é o que significará a aproximação com a China: a reprimarização de nossas economias na esteira de uma conjuntura de elevação dos preços dos produtos primários que, provocada pela expansão da demanda chinesa, deverá permanecer ao longo da próxima década; ou a utilização desse momento favorável para investir os excedentes comerciais na

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elevação da qualificação, da saúde e do bem-estar de nossos povos e no aumento de nossa capacidade de gerar valor agregado? A resposta a essa questão dependerá das lutas políticas e sociais na região. Caso predomine a articulação entre neoliberais e terceira via, a reprimarização de nossa economia aprofundará as desigualdades internas e a superexploração do trabalho e provocará o fortalecimento da fração agroexportadora das burguesias locais, produzindo um período de crescimento econômico ecologicamente predatório e de baixa sustentabilidade. Caso o neonacionalismo consiga atrair para si o centro político da região, pode-se abrir espaço para um novo desenho de políticas públicas, com impactos não apenas regionais, como também globais rumo à transição para um mundo multipolar.

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CONSTRUINDO A HEGEMONIA NA AMÉRICA LATINA: DEMOCRACIA E LIVRE MERCADO, ASSOCIAÇÕES EMPRESARIAIS E SISTEMA FINANCEIRO 1 Ary Cesar Minella Dirigido aos jovens de todo o mundo, duas organizações norte-americanas – o Centro Internacional para a Empresa Privada (Center for International Private Enterprise, Cipe) e o Fundo Nacional para a Democracia (National Endowment for Democracy, NED) –, patrocinam em 2010 um concurso de ensaios sobre democracia, empreendedorismo e participação da mulher na sociedade. A proposta é um “convite” para pensar “sobre como criar oportunidades para os jovens a fim de fortalecer a democracia e o setor privado em seus próprios países”2. O que representam essas duas organizações e o que podem ter em comum com outras organizações na América Latina, como o Instituto Apoyo, no Peru, ou o Centro de Implementación de Políticas Públicas para la Equidad y el Crecimiento (Cippec), na Argentina? Ou ainda com o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e o Centro de Divulgación del Conocimiento Económico para la Libertad (Cedice), da Venezuela? Mais ainda, o que isso tem a ver com o tema que nos ocupa aqui? Ao analisar as associações de bancos na América Latina, deparei-me com algumas referências que me levaram a examinar o Cipe e, a partir dele, o NED. No caso dos bancos, identifiquei a formação de uma rede que permite estabelecer uma conexão entre as associações a partir da presença si1

Trabalho desenvolvido com apoio do CNPq. Agradeço a colaboração de Maria Laura Gomez, Gabriela Augusta da Silva, Leonardo Salles e Álvaro Pereira Santos, alunos do Curso de Ciências Sociais da UFSC.

2

Podem participar estudantes e jovens profissionais com idades entre 18 e 30 anos; o prêmio é de mil dólares para cada um dos três temas propostos. Disponível em: . Acesso em: 8 abr. 2010.

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multânea de uma mesma instituição financeira na direção de associações de bancos em diferentes países3. De uma perspectiva que procura analisar as conexões das associações de classe do empresariado (e em especial das empresas e grupos econômicos que as comandam) com outras formas de organização, dirigi a pesquisa para as organizações genericamente definidas como político-ideológicas. Um exemplo era oferecido pelos Institutos Liberais fundados no Brasil nos anos 1980 e mantidos por grandes empresas brasileiras e multinacionais, incluindo grupos financeiros4. E um deles, o Instituto Liberal do Rio de Janeiro, havia estabelecido uma “parceria” com o Cipe. Este artigo apresenta os primeiros resultados da pesquisa e tem um caráter exploratório-descritivo que socializa com o leitor algumas bases empíricas, o que permite ampliar elementos interpretativos sobre a realidade latino-americana contemporânea. Analiso em primeiro lugar o NED, depois o Cipe, seguido de um primeiro levantamento sobre o modo como o sistema financeiro se insere nas redes de organizações a elas vinculadas; por fim, elaboro reflexões preliminares sobre o significado dessas articulações.

1. Rearticulação da ação do governo e das corporações norte-americanas: a criação do NED Ao final dos anos 1970 e início dos 1980, o governo dos Estados Unidos redefiniu parte de sua estratégia de atuação e intervenção no exterior. O contexto global inclui um questionamento interno e externo das operações da Agência de Inteligência Americana (CIA), as implicações das ditaduras apoiadas na América Latina e as transformações que se operavam na economia capitalista. Além do Executivo, o Legislativo norte-americano e as empresas privadas foram envolvidos nesse processo. Quando finalmente, em 1983, o governo Reagan e o Congresso dos Estados Unidos aprovaram a formação do NED, estavam institucionalizando, 3

Ary Cesar Minella, “Representação de classe do empresariado financeiro na América Latina: a rede transassociativa no ano 2006”, Revista de Sociologia e Política, n. 28, jun. 2007, p. 31-56.

4

Denise Barbosa Gros, “Institutos liberais e neoliberalismo no Brasil da Nova República”, Teses FEE, Porto Alegre, Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser, n. 6, 2003, e “Institutos liberais, neoliberalismo e políticas públicas na Nova República”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 54, fev. 2004, p. 143-59.

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por meio de uma organização não governamental, mas sustentada com recursos governamentais, um dos canais fundamentais de sua atuação e intervenção no exterior5. Uma peça fundamental na construção de uma hegemonia que se caracterizou como neoliberal, mas é sobretudo uma tentativa de atender a reestruturação capitalista em curso, conforme os interesses estratégicos do governo e das empresas norte-americanas. A formação do NED foi seguida pela criação do Center for International Private Enterprise (Cipe), e a ele também se vincularam o National Democratic Institute for International Affairs (NDI) e o National Republican Institute for International Affairs, mais tarde denominado International Republican Institute (IRI). Também se filiou ao NED o Free Trade Union Institute (FTUI), um dos institutos criados pela American Federation of Labor – Congress of Industrial Organisations (AFL-CIO) para atuar no exterior6. O NDI e o IRI7 são institutos associados ao Partido Democrata e ao Partido Republicano respectivamente; o Cipe constituiu-se como uma entidade da U. S. Chamber of Commerce (Câmara Americana de Comércio), uma poderosa organização empresarial à qual se vinculam mais de uma centena de associações empresariais no mundo. Em 1997, a AFL-CIO unificou seus quatro institutos de atuação no exterior, criando o American Center for International Labor Solidarity (Acils), também conhecido como Solidarity Center8. A estrutura do NED representa assim uma articulação estratégica 5

A história do NED desde sua própria perspectiva aparece em artigo de David Lowe, “Idea to reality: a brief history of the National Endowment for Democracy”. Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2008.

6

Para mais detalhes sobre a formação do NED ver David Lowe, “Idea to reality”, cit.; Hernando C. Ospina, “A mão (quase) invisível de Washington”, Le Monde Diplomatique, Brasil, jul. 2007, disponível em: , acesso em: 7 ago. 2007; Eric T. Hale, A quantitative and qualitative evaluation of the National Endowment for Democracy, 1990-1999 (tese de doutorado, Departamento de Ciência Política, Universidade Estadual de Louisiana, dez. 2003); Nicolas Guilhot, “Les professionnels de la démocratie: logiques militantes et logiques savantes dans le nouvel internationalisme américain”, Actes de la recherche en sciences sociales, n. 139, 2001-2003, p. 53-65; James M. Scott e Kelly J. Walters, “Supporting the wave: Western political foundations and the promotion of a global democratic society”, Global Society, v. 14, n. 2, 2000, p. 237-57.

7

Em 2005, com outras organizações, o IRI organizou no Congresso Nacional brasileiro um seminário sobre reforma política no país.

8

Institutos unificados: Free Trade Union Institute (FTUI), criado em 1977 para atuar na Europa, especialmente na Espanha e em Portugal; American Institute for Free

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entre o Estado norte-americano, os dois partidos políticos dominantes, as empresas norte-americanas e a cúpula do movimento sindical. De acordo com Lowe, os objetivos do NED definidos em sua fundação são: encorajar o desenvolvimento de instituições democráticas através de iniciativas do setor privado; facilitar o intercâmbio entre grupos do setor privado (especialmente entre os quatro institutos integrados ao NED) e os grupos democráticos no exterior; promover a participação não governamental em programas de treinamento democrático; fortalecer os processos democráticos no exterior em cooperação com as forças democráticas locais; promover a cooperação entre o setor privado dos Estados Unidos e aqueles no exterior “dedicados aos valores culturais, instituições e organizações democráticas pluralistas”; e encorajar o desenvolvimento democrático consistente com os interesses dos Estados Unidos e dos grupos que recebem a assistência.9

O mesmo autor – que, aliás, é vice-presidente do NED – destaca que a formalização dessa instituição como uma organização não governamental, apesar de financiada pelo governo dos Estados Unidos, “permite que possa apoiar forças políticas democráticas em situações repressivas ou politicamente sensíveis, em que o apoio do governo dos Estados Unidos [...] pode ser diplomática ou politicamente inviável”10. Como observam Scott e Walters11, o NED permite desenvolver políticas que normalmente seriam impedidas por princípios de soberania e não intervenção e essa “diplomacia informal” é um elemento potencialmente útil para a política externa. Essa dimensão intervencionista foi denunciada no próprio Congresso norte-americano desde o início da formação do NED. O NED é uma organização juridicamente privada, mas seu orçamento está presente no Departamento de Estado e deve ser aprovado pelo Congresso norte-americano. Os recursos são repassados basicamente pela Usaid. Labor Development (AIFLD), criado em 1962 para operar na América Latina; African-American Labor Center (Aalc, 1964) e o Asian-American Free Labor Institute (Aafli, 1968). Ver Wilson Aparecido Costa de Amorim, A evolução das organizações de apoio às entidades sindicais brasileiras: um estudo sob a lente da aprendizagem organizacional (tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007) 9

David Lowe, “Idea to reality”, cit.

10

Ibidem, p. 8.

11

James M. Scott e Kelly J. Walters, “Supporting the wave”, cit., p. 255.

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Nos anos 1990, recebeu entre 30 milhões e 35 milhões de dólares por ano, parte dos quais é operada diretamente pelo NED (entre 40% e 45%) e outra é repassada para as quatro organizações, que também recebem fundos de outras fontes, como empresas privadas12. Os recursos são utilizados para financiar atividades e organizações de diversos tipos no exterior: centros de pesquisa e formulação de políticas públicas (conhecidos como think tanks), ONGs, associações empresariais e de trabalhadores, partidos políticos e organizações diversas da sociedade civil13. Ao mesmo tempo, contribui para o processo de onguização da política social, conforme menciona Oliveira14, articulando-se com o conjunto de forças que interferem nas políticas públicas. Na avaliação de Petras15, um conjunto de ONGs criadas ao longo dos anos 1980 e 1990 desenvolveu uma ação política para minar o crescimento de movimentos sociais que se opunham ao modelo neoliberal. O NED recebe fundos específicos para apoiar iniciativas em “países de interesse especial”, como ocorreu com Polônia (Sindicato Solidariedade), Chile, Nicarágua, países do Leste Europeu, África do Sul, Mianmar (antiga Birmânia), China, Tibete e Coreia do Norte. Depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, fundos especiais foram dirigidos para os países com significativa população muçulmana no Oriente Médio, África e Ásia Central16. Segundo estimativas oficiais do NED, cada dólar investido em programas no exterior gera fundos adicionais equivalentes a oitenta centavos provenientes de outras fontes, como ONGs, fundações privadas e organizações governamentais17. Uma das principais iniciativas do NED foi a criação 12

Ibidem, p. 239.

13

Entre 1990 e 1997, o NED financiou diretamente 1.754 programas no mundo, com um total de 153,2 milhões de dólares (James M. Scott e Kelly J. Walters, “Supporting the wave”, cit., p. 243-4).

14

Francisco de Oliveira, “A dominação globalizada: estrutura e dinâmica da dominação burguesa no Brasil”, em Eduardo Basualdo e Enrique Arceo (orgs.), Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias nacionales (Buenos Aires, Clacso, 2006), p. 284.

15

James Petras, “Imperialism and NGOs in Latin America”, Monthly Review. v. 49, n. 7, dez. 1997b e “NGOs: in the service of imperialism”, Journal of Contemporary Asia, v. 29, n. 4, p. 429-40, 1999.

16

David Lowe, “Idea to reality”, cit.

17

James M. Scott e Kelly J. Walters, “Supporting the wave”, cit., p. 254.

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do World Movement for Democracy, que articula pessoas e organizações que apoiam a democracia ao redor do mundo18. Em 2006, num contexto de eleições presidenciais e legislativas (Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Haiti, México, Nicarágua, Peru e Venezuela), o NED financiava 95 projetos em 11 países latino-americanos, incluindo 14 projetos regionais. Mais de um terço dos projetos dirigia-se à região subandina (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela), a maioria deles concentrada na Venezuela e dirigida a organizações que desenvolviam ações e políticas de oposição ao governo Chávez19. Estabeleceu-se uma espécie de divisão de trabalho na atuação dessas organizações: enquanto o NED atua de forma ampla, o IRI e o NDI agem com organizações políticas (em especial partidárias), o Solidarity Center atua com organizações da classe trabalhadora e o Cipe, com o universo empresarial. Escapa às possibilidades analíticas deste artigo examinar o grau de articulação de suas atividades em um determinado país ou conjuntura específica. De qualquer forma, não é surpreendente constatar que no Peru, enquanto o Cipe apoia programas de organização da agenda dos empresários, o Solidarity estimula a organização dos trabalhadores mineiros terceirizados, ou que apoiem no Brasil, respectivamente, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa e as iniciativas das centrais e federações sindicais dos trabalhadores20. O Cipe passa a ser o foco central da análise na sequência deste artigo.

2. Center for International Private Enterprise (Cipe) Dentro da estratégia de atuação do NED, cabe ao Cipe dirigir sua atuação para o universo empresarial, especialmente para as associações de classe 18

Esse movimento já realizou seis assembleias mundiais: Nova Délhi (1999), São Paulo (2000), Durban (2004), Istambul (2006) e Kiev (2008). A mais recente foi realizada em Jacarta, entre 11 e 14 de abril de 2010.

19

Nesse país, o NED financiou atividades relacionadas com a independência e a transparência do poder judiciário, direitos humanos e organizações da sociedade civil. Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2008. Para mais detalhes ver Eva Golinger, El código Chávez. Descifrando la intervención de los Estados Unidos en Venezuela (Havana, Editorial de Ciencias Sociales, 2005) e Bush vs. Chávez: La guerra de Washington contra Venezuela (Havana, Editorial José Martí, 2006).

20

Wilson Aparecido Costa de Amorim, A evolução das organizações de apoio às entidades sindicais brasileiras, cit.

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e organizações da sociedade civil sob sua influência, buscando seu envolvimento na formulação e implementação de políticas públicas orientadas pelo interesse do mercado. Como foi mencionado, embora receba fundos governamentais, o Cipe é uma entidade privada, vinculada à Câmara Americana de Comércio. Segundo sua própria referência, a Câmara Americana de Comércio “é a maior federação empresarial do mundo e representa mais de 3 milhões de empresas de todos os portes, setores e regiões” e “inclui centenas de associações, câmaras de milhares de locais e mais de 100 Câmaras Americanas de Comércio em 91 países”21. Ao analisar a virada neoliberal nos Estados Unidos nos anos 1970, Harvey22 cita o histórico memorando de Lewis Powell à Câmara de Comércio dos Estados Unidos em agosto de 1971, quando estava prestes a assumir um posto na Suprema Corte, por indicação de Richard Nixon. Nesse documento, Powell faz uma defesa do sistema norte-americano de livre mercado e preconiza a necessidade de mobilizar esforços contra aqueles que queriam destruí-lo. Para isso, a ação individual não seria suficiente. Segundo ele: a força reside na organização, no planejamento e na implementação meticulosos de longo prazo, na coerência da ação durante um período indefinido de anos, na escala de financiamento que só se obtém por meio do esforço conjunto e no poder político que só se obtém por meio da ação unida e de organizações de alcance nacional.23

Powell propôs à Câmara de Comércio desenvolver uma ação direta em universidades, escolas, meios de comunicação, mercado editorial e Cortes de Justiça para reverter o quadro e mudar o pensamento das pessoas sobre “as empresas, o direito, a cultura e o indivíduo”24. Segundo Harvey, “é difícil dizer que influência direta teve essa injunção à entrada na luta de classe”. Todavia, diz ele, “sabemos que a Câmara de Comércio depois disso ampliou sua base de 60 mil empresas, em 1972, para mais de um quarto de 21

Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2008.

22

David Harvey, O neoliberalismo: história e implicações (São Paulo, Loyola, 2008).

23

Lewis Powell, citado por David Harvey, O neoliberalismo, cit., p. 52.

24

Ibidem, p. 53. Advogado de empresas, Powell participava do conselho administrativo de onze delas. Esse documento ficou conhecido também como “Manifesto Powell” e está disponível em: . Para breves comentários sobre o texto, ver nesse mesmo endereço: “The Powell Memo, Introduction”, de 3 de abril de 2004.

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milhão, dez anos mais tarde” e, em associação com a National Association of Manufacturers, reuniu recursos para fazer lobby e promover pesquisas25. Filiada à Câmara Americana de Comércio, a Associação de Câmaras Americanas de Comércio na América Latina (Association of American Chambers of Commerce in Latin América, AACCLA), com sede em Washington, representa as Câmaras existentes em vários países do continente. O Cipe reconhece que sua filiação à Câmara de Comércio dos Estados Unidos facilitou sua entrada na região26. Apesar de ser vinculado à Câmara de Comércio, os fundos do Cipe provêm basicamente do governo dos Estados Unidos, que repassa parte diretamente pela Usaid e outra pelo NED. Os recursos de outras fontes são poucos (1% em 2002, 6% em 2004 e 3% em 2005)27. Desde sua fundação, o Cipe articulou sua ação financiando mais de mil organizações e iniciativas locais em mais de cem países e conduziu programas de treinamento na administração de associações empresariais na África, Ásia, Europa, Eurásia, Oriente Médio e América Latina. Sua atuação principal se realiza por “parcerias” com organizações locais, em especial com associações empresariais, think tanks, ONGs, universidades e outras organizações da sociedade civil. No desenvolvimento dos programas conjuntos, essas organizações locais entram com recursos obtidos de outras fontes. Segundo este autor, nos primeiros anos o Cipe concentrou seus programas naqueles países que haviam demonstrado um empenho favorável ao desenvolvimento das empresas privadas e da democracia. Posteriormente, porém, ficou claro que a abordagem do Cipe poderia ser aplicada em países onde era fraco o empenho governamental para o capitalismo e a democracia, desde que encontrasse “dedicadas e corajosas” organizações parceiras. Foi assim, por exemplo, que o Cipe apoiou programas na Rússia e na Nigéria. Conforme a ideologia desse empreendimento, estimular o “surgimento de associações empresariais e think tanks é parte vital da promoção da cul25

Ibidem, p. 53.

26

Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, 1984-1999 (Washington, DC, Cipe, 2001, p. 64).

27

Entre elas estão o próprio Departamento de Estado, a ONU, o Banco Mundial e sua International Finance Corporation (IFC), ONGs como a Global Corporate Governance Forum e grandes empresas norte-americanas (Cipe, Annual Report, 2003, p. 4).

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tura democrática e impulso para reforma econômica”28. No final dos anos 1980 ampliou suas operações com programas na África e na Ásia. Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e as primeiras eleições “parcialmente livres” na Polônia e na Hungria, o Center passou a atuar na Europa Central e do Leste e, a partir de 1991, na Rússia e na Ucrânia. Em meados dos anos 1990 havia estabelecido programas na China e no Vietnã29. No começo dos anos 1990, o Cipe ampliou suas parcerias com empresas, instituições multilaterais e ONGs. São exemplos disso as conferências realizadas com o World Bank Institute em 1998 e 1999, a conferência sobre o combate à corrupção em países em desenvolvimento, em associação com a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), e o trabalho com organizações privadas e públicas durante a Conferência sobre a Mulher, realizada em 200030. Uma avaliação sobre os primeiros quinze anos (1984-1999) de atuação do Cipe considerou o impacto de 365 projetos realizados com 200 “organizações parceiras” em 63 países e concluiu que 5% dos projetos tiveram um resultado excepcional, 25% um alto impacto, 53% um efeito médio e 17% um efeito baixo31. Na avaliação do Cipe, três programas tornaram-se fundamentais: a) os programas de treinamento para dirigentes de associações empresariais, líderes de think tanks e jornalistas econômicos; b) os programas de apoio legislativo e econômico, especialmente para dar suporte à legislação e às reformas favoráveis ao livre mercado; c) as redes de reforma econômica, estabelecidas depois da realização de uma série de conferências ao redor do mundo cujo objetivo é “estabelecer uma conexão entre as organizações parceiras do Cipe, buscando compartilhar experiências e recursos, bem como definir agendas de reforma para o futuro”32. Segundo Geurts et al.33, as estratégias do Cipe estão focadas em reformas institucionais e o “coração de todos os projetos ” é a “advocacy”, o que 28

John Bohn, “Cipe at 15 years: lessons learned”, em Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 15.

29

Ibidem, p. 14-5.

30

Ibidem, p. 17.

31

Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 1.

32

John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit., p. 16.

33

Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit.

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significa a promoção efetiva de uma legislação que leve a mercados abertos e encoraje a participação do setor privado na definição das políticas públicas. O objetivo é desenvolver políticas que fortaleçam os mecanismos de mercado e o avanço dos interesses empresariais. A articulação com as organizações locais é central na abordagem e elas devem ser ativas na elaboração e implementação dos projetos (“empoderamento das organizações locais”). Outro aspecto fundamental de sua ação realiza-se por meio do Business Association Management Training, que permite identificar potenciais organizações parceiras e líderes, muitos dos quais, segundo o Cipe, acabam ocupando postos centrais no setor público e no privado. O Cipe desenvolve um programa de comunicação que desempenha um papel central em sua estratégia de construir demanda por reformas democráticas orientadas para o mercado. Uma variedade de canais é utilizada para divulgar informações, inclusive internet e publicações diversas. Na avaliação de Bohn34, na ocasião presidente do Cipe, o fato de este trabalhar com organizações “parceiras” ao redor do mundo proporciona ricos inputs sobre as transformações em curso e permite identificar tendências centrais que ultrapassam as fronteiras nacionais e regionais e desempenham papel importante na globalização. Se isso contribui para avaliar os mecanismos de funcionamento do mercado e a relação entre capitalismo e democracia, como acredita Bohn, permite também redefinir ou incorporar novos programas de ação. Os principais programas de ação incluem: a) combate à corrupção; b) promoção da governança corporativa; c) reformas institucionais para levar o setor informal para a economia formal; d) reforço do papel da mulher e da juventude (programas, cursos, organizações, educação); e) promoção da governança democrática; f ) redução das discrepâncias de renda por meio da iniciativa empresarial35; g) desenvolvimento das associações empresariais; h) reforma na legislação e nas regulações que dificultam as atividades empresariais; i) acesso à informação, para alcançar maior transparência no 34

John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit., p. 9.

35

O Cipe apoia o desenvolvimento de iniciativas empresariais que gerem emprego e renda, em especial por meio de pequenas e microempresas. No entanto, as pequenas e médias empresas também desempenham papel político e devem ser mobilizadas para dirigir as reformas; as associações empresariais seriam um instrumento efetivo para isso (ver John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit.).

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governo, na divulgação e no entendimento dos princípios democráticos orientados para o mercado36. As associações empresariais são consideradas fundamentais para a participação do setor na sociedade civil e atores-chave para a definição de políticas públicas. Portanto, o Cipe estabelece um vínculo estreito com essas organizações, estimulando e apoiando a participação dos empresários no processo político37. O centro elaborou um manual de orientação para mobilizar a “comunidade empresarial” no sentido de influenciar a reforma de políticas públicas, estabelecendo as prioridades empresariais no campo legislativo e da regulação38. Segundo avaliação publicada em 2002, esse manual alcançou grande sucesso no desenvolvimento de uma agenda empresarial nacional em países como Haiti, Argentina e Ucrânia e em agendas regionais na Rússia. Além disso, estava em aplicação em países do Oriente Médio39. Em 2003, o Cipe abriu escritórios no Afeganistão e no Iraque com o objetivo de “desenvolver a capacidade da comunidade empresarial de contribuir para a emergência de uma sociedade democrática estável”40. Na avaliação do Cipe, apesar da emergência de um consenso sobre a importância da democracia e da economia de mercado, muitos países não conseguem estabelecer arranjos institucionais favoráveis ao seu desenvolvimento. Assim, mesmo as melhores políticas teriam problemas de implementação em razão da “ausência de instituições e normas apropriadas”. A entidade identifica-se com a interpretação segundo a qual os limites ou fracassos das políticas neoliberais se devem ao fato de que elas não foram acompanhadas de reformas institucionais: “O fracasso das reformas do Consenso de Washington na América Latina obrigou os formuladores de políticas a dar mais atenção às reformas institucionais, uma posição que o Cipe 36

Ver , acesso em: 25 abr. 2008, e John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit.

37

Cipe, Annual report, 2004, cap. 1, p. 7-8. Disponível em: . Acesso em: set.-out. 2008.

38

Cipe, Guía para la agenda nacional empresarial: la voz de las empresas. Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2008. Essa orientação aos empresários apresenta-se de forma mais aprofundada em publicação do Cipe organizada por Larry S. Milner, Business associations for the 21st Century: a blueprint for the future (2. ed., Washington, DC, Cipe, 1999).

39

Cipe, Annual report, 2002, p. 41.

40

Cipe, Annual report, 2003, p. 133.

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defende de longa data para a região”41. Segundo o Cipe, essa é uma oportunidade para que os programas desenvolvidos pela organização tenham um impacto significativo na região. 2.1 Atuação do Cipe na América Latina Em seus primeiros anos, a maior parte dos recursos do Cipe foi dirigida para a América Latina e o Caribe, no contexto das mudanças ocorridas nos anos 1980. No final da década, segundo avaliação do Cipe, “quase todos os países da região haviam abandonado a política de substituição de importações em favor de um sistema econômico orientado pelo mercado” e “quase todos os países haviam avançado na adoção de formas democráticas de governo”42. No período de 1984 a 1999, o Cipe financiou 109 projetos na América Latina e no Caribe, envolvendo 50 organizações em 19 países. Os recursos envolvidos nessa atividade atingiram US$ 9.375.047,0043. O impacto desses programas foi considerado excepcional ou alto em 41% dos casos e médio em 50% deles, destacando assim a região com os melhores resultados alcançados no período pelo Cipe. O apoio aos projetos foi maior entre 1984 a 1994, declinando nos 5 anos posteriores em favor das operações realizadas na Europa Central e do Leste e na Eurásia. Na avaliação do Cipe, grande parte dos projetos apoiados foi importante para as reformas institucionais ocorridas nos países latino-americanos e outros contribuíram com elementos-chave para a governança democrática (democratic governance). Segundo avaliações internas do Cipe, um dos elementos que explicaria o “sucesso” de sua atuação no continente é a capacidade das organizações parceiras de adaptar os programas às condições locais de cada país. O Programa de Apoio Legislativo é mencionado como exemplo. Criado pelo Centro de Orientación Económica (COE), na República Dominicana, o programa baseava-se na análise “não partidária” da legislação, de modo acessível e apoiada por estudos em profundidade realizados por uma equipe de economistas e tecnocratas44. Esses relatórios basicamente analisavam as leis em 41

Cipe, Annual report, 2002, p. 31.

42

John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit., p. 14.

43

Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 60.

44

John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit., p. 16.

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debate no Legislativo, resumiam os efeitos da legislação sobre os setores público e privado, o orçamento nacional e o sistema legal, e apresentavam recomendações específicas para representação, revogação, rejeição ou emendas. Os relatórios eram distribuídos entre os legisladores, a mídia e o público45. Segundo o Cipe, até 1999, em pelo menos doze países, essa atividade foi realizada com sucesso e os relatórios produzidos constituíram uma fonte de informação que permitiu aos legisladores participar e tomar decisões em questões econômicas fundamentais46. Em 2002, os programas da organização buscavam implementar “instituições ausentes” na economia de mercado e suprir o “déficit de governança democrática”, além de “apoiar os líderes empresariais e os pensadores pró-mercado na implementação das reformas institucionais e o papel da imprensa na investigação da corrupção nos setores público e privado”47. No relatório anual de 2004, o Cipe avaliou que se agudizara a “crise da democracia” em países como Venezuela, Equador, Peru e Bolívia. Em 2009, desenvolvia 21 programas em 12 países da América Latina48 (ver anexo). A seguir examino em mais detalhes a presença do Cipe no Peru e na Argentina e identifico intervenções do NED (diretas ou através do IRI e do NDI). 2.2 Os parceiros no Peru: o Instituto Libertad y Democracia (ILD) e o Instituto Apoyo Segundo a avaliação do Cipe, o ILD é amplamente reconhecido por sua atuação no estabelecimento de um consenso em torno da economia de mercado no Peru durante os anos 1980 e dos pilares dos programas de reforma econômica durante os anos 199049. A figura de destaque é o fundador do ILD, Hernando De Soto50. 45

Cipe, Annual report, 2003.

46

Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 65. Segundo o Cipe, a avaliação dessa atividade indicou que 65% dos projetos de apoio legislativo tiveram um impacto alto ou excepcional na América Latina (ver ibidem, p. 63). O programa foi aplicado também na África, na Ásia e na Europa Central.

47

Ibidem, p. 31.

48

Cipe, Annual report, 2009.

49

Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 61.

50

Cipe, Annual report, 2003, cap. 6, p. 6.

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Entre 1981 e 1984, o ILD, então com um pequeno grupo de pesquisadores, analisou a situação do mercado informal no Peru e passou a defender um processo de mudanças que teria permitido reduzir o procedimento de registro legal de um negócio e ajudado milhares de empresas a passar do setor informal para o formal da economia51. De Soto avaliou que uma das formas de superar a economia informal e o atraso do capitalismo em geral no Peru era legalizar os títulos de propriedade dos lotes urbanos e habitações da população pobre, criando assim a possibilidade de serem utilizados como garantia de acesso a serviços (água, eletricidade) e de obtenção de empréstimos para pequenos negócios52. Em 1984, o ILD recebeu os recursos do primeiro programa de apoio do Cipe. Isso teria contribuído para criar um sistema mais estável de governo e minar o apoio ao Sendero Luminoso, constituindo-se assim, na avaliação do Cipe, uma abordagem alternativa para “combater o terrorismo”53. Segundo Islam, a obra de Soto The other path: The invisible revolution in the Third World*, publicada originalmente em 1986, oferecia “aos pobres uma alternativa à revolução: o empreendedorismo [entrepreneurship]”54. Essa perspectiva, que também identificava na debilidade das instituições a barreira primária para o crescimento empresarial e destacava a importância do desenvolvimento de instituições (como garantia de contratos, mercado financeiro e sistema judicial), teve uma boa acolhida no Cipe e passou a ser divulgada nas organizações multilaterais55. Para sua atuação política no Peru nos anos 1990, o Cipe estabeleceu vínculos com outra organização: o Instituto Apoyo56. Criado em 1989 para 51

Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 61, e Nafisul Islam, “Making the ‘extralegal’ legal”, em CIPE, Strategies for policy reform: experiences from around the world (Washington, DC, Cipe, 2007), p. 54-8.

52

Nafisul Islam, “Making the ‘extralegal’ legal”, cit., p. 55.

53

Cipe, Annual report, 2003, cap. 1 e 6, p. 2 e 13, respectivamente.

*

Nova York, Basic Books, 2002. (N. E.)

54

Segundo o Cipe, essa obra teria revolucionado a maneira de pensar dos acadêmicos, especialistas em desenvolvimento e governantes sobre o papel do direito de propriedade (Cipe, Annual report, 2003, cap. 1, p. 2).

55

Nafisul Islam, “Making the ‘extralegal’ legal”, cit., p. 55-6.

56

Segundo levantamento realizado pelo Foreign Policy Research Institute (FPRI) da Filadélfia, em um universo de 5.080 think tanks e organizações da sociedade civil,

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realizar pesquisa de política econômica, esse instituto é vinculado à Apoyo, uma entidade privada de consultoria empresarial fundada em 1977, durante o governo militar. O Instituto Apoyo começou a realizar o serviço de assessoria legislativa justamente no momento em que o governo de Fujimori iniciava seu programa de estabilização financeira e reforma econômica. Assim, entre julho de 1990 e fins de 1992, o Cipe repassou 150 mil dólares para o programa de Apoio ao Congresso do Instituto, que, por sua vez, fez um aporte de 90 mil dólares para o programa. Na avaliação de Mashek, o serviço de relatórios legislativos mensais foi recebido com grande entusiasmo no Congresso, inclusive por parlamentares da “esquerda moderada”57. O serviço “era novo no Peru, e ainda único”, e também alimentava a imprensa diária, editoriais e colunistas, além de painéis de discussão nos canais de televisão. O serviço sofreu descontinuidade quando o Congresso foi fechado, em abril de 1992. A formação da Assembleia Constituinte, porém, mobilizou o Cipe e o Instituto Apoyo para revisar e apresentar propostas sobre os itens econômicos. Conforme informações de Mashek, as propostas foram consolidadas em quatro relatórios distribuídos no Congresso, no Executivo, na imprensa e na comunidade empresarial, além de outras instituições58. Uma série de encontros foi planejada com os parlamentares encarregados da matéria econômica e alguns deles teriam trabalho em estreita relação com o Instituto Apoyo. Também se estabeleceu contato e coordenação com o Ministério da Economia. O Instituto Apoyo esteve presente até 2005, quando, em parceria com o Cipe, realizou uma série de discussões que serviu de base para a definição de uma Agenda Empresarial Nacional para o Peru e representa todo um programa de governo que visava as eleições presidenciais de 2006. No período de 2005 a 2007, o Cipe apoiou iniciativas para o desenvolvimento da governança corporativa no país em parceria com a Asociación de Empresas 408 estão na América Latina, das quais 21 no Peru. O Instituto Apoyo foi considerado um dos cinco melhores think tanks do continente. Os demais são da Argentina (dois), do Brasil e do Chile. Disponível em: < http://www.apoyo.com>. Acesso em: 4 set. 2008. 57

Robert W. Mashek, Performance and prospects for Legislative Advisory Programs in Latin América (Washington, DC, Cipe), 15 mar. 1993, p. 100.

58

Ibidem, p. 101.

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Promotoras del Mercado de Capitales (Procapitales)59 e a Universitad Peruana de Ciencias Aplicadas (UPC)60. A partir de 2006, o Cipe passou a apoiar as atividades da Confederación de Instituciones y Empresas Privadas (Confiep), uma organização fundada em 1984 que reúne a maioria dos setores empresariais do país, incluindo a Asociación de Bancos de Peru (Asbanc). Em pauta, a atualização da Agenda Nacional de Reformas Econômicas no Peru e a implementação das reformas institucionais que, segundo essa confederação, não teriam avançado o suficiente no país. Entre os pontos abordados, a revisão e difusão da agenda de reformas para o novo Congresso e o papel dos empresários na reforma educacional61. 2.3 Os parceiros do Cipe na Argentina: Ieral, Cippec e CEF O Instituto de Estudios Económicos de la Realidad Argentina e Latinoamericana (Ieeral) foi organizado em 1977 por empresários da cidade de Córdoba, juntamente com a Fundación Mediterránea, à qual está vinculado62. Em 1996 passou a denominar-se Instituto de Estudios de la Realidad Argentina y Latinoamericana (Ieral). O objetivo da fundação é promover pesquisas sobre questões econômicas, a fim de criar um espaço para discussão e formulação de propostas de políticas econômicas a partir da perspectiva empresarial. “A metodologia de trabalho imposta pela Fundación Mediterránea, desde sua criação, é a interação permanente entre empresários e técnicos”63. O Ieral contou com uma equipe de economistas dedicados em 59

Fundada em 18 de julho de 2001, com sete associados; em 2008, reunia cinquenta empresas. Seu objetivo é desenvolver o mercado de capitais e implementar práticas de governança corporativa. Disponível em: . Acesso em: 4 set. 2008.

60

Em 2005 foi realizada uma pesquisa sobre Governança Corporativa com 4 mil empresas peruanas. Ver Cipe, Annual report, 2005, 2006 e 2007.

61

Disponível em: . Acesso em: 4 set. 2008.

62

Para uma análise detalhada sobre a Fundación Mediterránea e o Ieral ver os trabalhos de Hernán Ramírez, La Fundación Mediterránea y de como construir poder: la génesis de un proyecto hegemónico (Córdoba, Ferreyra, 2000) e “Institutos de estudos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996”, Anos 90, Porto Alegre, v. 13, 2006, p. 179-214.

63

Ieral, Orígenes y objetivos. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2005.

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tempo integral à pesquisa. Domingo Cavallo, presidente do instituto, assumiu o Ministério da Economia em janeiro de 1991 e formou parte de sua equipe com pesquisadores do Ieral64. Segundo Geurts et al.65, muitos dos relatórios produzidos pelo Ieral serviram de base para as propostas de reforma da economia argentina adotadas por Cavallo. Conforme já mencionado, o Programa de Apoio ao Legislativo, desenvolvido entre março de 1988 e fevereiro de 1993 naquele país, canalizou quase 1 milhão de dólares, dos quais cerca de 450 mil dólares saíram dos fundos do Cipe. A partir de meados dos anos 1990, o Ieral ampliou suas pesquisas para outras áreas, como educação, saúde, justiça e seguridade e sua influência teria se estendido também para outras reformas, como as do trabalho, da lei do consumidor, da taxa de administração e do serviço civil66. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial também financiam projetos desenvolvidos pelo Ieral67. O apoio do Cipe ao Ieral aparentemente diminuiu a partir da crise econômica que assolou o país entre 2001 e 200268 e que, segundo Braun et al.69, levou também a um questionamento de um conjunto de think tanks enquanto fonte de análise política e recrutamento de quadros para o Estado70. 64

Hernán Ramírez, “Institutos de estudos econômicos de organizações empresariais”, cit., p. 187-8.

65

Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 61.

66

Ibidem, p. 61; Cipe. Annual report, 2003, cap. 3, p. 5-6.

67

Fontes de financiamento do Ieral em 2003: 50% de “organizações filantrópicas” argentinas, 25% de organizações internacionais (“filantrópicas e de crédito”), 15% de recursos governamentais (diferentes níveis) e o restante de contribuições empresariais e individuais (fonte: Gabriel Sánchez, diretor de pesquisa e vice-presidente do Ieral, em março de 2004. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2005).

68

As referências ao Ieral no relatório do Cipe de 2003 são pouco precisas. Informa apenas que continua realizando atividades de análise legislativa para influenciar o Congresso e a opinião pública.

69

Miguel Braun, Antonio, Cicioni e Nicolas J. Ducote, “Think tanks in developing countries: lessons from Argentina”, em Diane Stone e Andrew Deham (orgs.), Think tank traditions: policy research and the politics of ideas (Manchester, Manchester University Press, 2004).

70

Além de Domingo Cavallo, Humberto Petrei e Aldo Dadone, da Fundación Mediterránea, membros do Centro de Investigaciones Sociales sobre el Estado (Cisea), e

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A partir de 2002, o Cipe passou a apoiar o Centro de Implementación de Políticas Públicas para la Equidad y el Crecimiento (Cippec), organização que procura desenvolver um consenso sobre a necessidade de reforma política e econômica na Argentina, atuando na formulação e na implementação de políticas públicas71. Em pouco tempo, além do Cipe, o centro passou a contar com apoio de várias fundações e organizações da sociedade civil e recursos de organismos como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)72. Mas é importante destacar que o apoio do NED ao Cippec foi muito mais amplo e provavelmente fundamental para consolidá-lo. Assim, além do Cipe, o NED canalizou recursos para o Cippec de forma direta, em especial por meio do IRI. No período de 2002 a 2007 o Cippec recebeu dessas organizações mais de 900 mil dólares (somente do IRI recebeu 525 mil dólares). Além de sua atuação no Congresso argentino, o Cippec também opera com o Ministério da Educação em programas educacionais73 e com organizações da sociedade civil (coordena na América Latina o Programa de Alianzas de la Sociedad Civil, do Instituto para o Desenvolvimento Internacional–Overseas Development Institute [ODI], uma think tank britânica financiada por outras fundações de pesquisa, organizações internacionais, ONGs e empresas). Em 2006, dentro de sua estratégia de apoio à governança corporativa na América Latina, o Cipe articulou sua atuação com a Fundación Centro de Estabilidad Financiera (CEF) com o objetivo de desenvolver um padrão Dante Caputo e Felipe Sola, do Centro de Estudios Macroeconómicos de Argentina (Cema), Roque Fernandez e Carlos Rodriguez também ocuparam importantes postos no comando do Estado (ver Miguel Braun, Antonio Cicioni e Nicolas J. Ducote, “Think tanks in developing countries”, cit.). 71

Ver: , e Cipe, Annual report, 2002 e 2007. Entre os onze “jovens profissionais” que fundaram o Cippec em 2000, oito tinham em comum a formação (mestrado ou doutorado) na Universidade de Harvard (quatro em políticas públicas, três em economia, um em administração pública e outro em política educacional). Os demais se formaram na London School of Economics, na Universidade de Northwestern na Universidade de Chicago. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2008.

72

Além da capital, o Cippec atua em onze províncias argentinas e conta com um staff de 82 pessoas.

73

Miguel Braun, Antonio, Cicioni e Nicolas J. Ducote, “Think tanks in developing countries”, cit., p. 211; Cipe, Annual report, 2005 e 2007.

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de medição da qualidade das práticas de governança corporativa nas instituições financeiras na Argentina. Também desenvolveu um código de ética e de responsabilidade social para servir como um guia para instituições financeiras, bem como para agências financeiras reguladoras74. 2.4 Estratégias do Cipe para o período 2007-2012 Em fevereiro de 2007 o Cipe divulgou um documento a respeito da estratégia da organização para o período de 2007 a 201275. As considerações seguintes estão baseadas nesse documento. Na avaliação do Cipe, a emergência do “populismo” e do “protecionismo” são dois grandes desafios a serem enfrentados. Esse “novo populismo”, segundo o documento, procura desvincular a liberalização política das reformas de livre mercado e livre comércio e, ao mesmo tempo, busca reforçar laços políticos e econômicos regionais contrários à reforma global. Isso formaria o núcleo do que se denominou “recuo da democracia” (democracy backlash). “O desafio para os próximos anos é sustentar o ímpeto das reformas democráticas e do livre mercado”76. Na América Latina, alguns países estariam vinculados ao “recuo democrático”: Venezuela, Bolívia e Argentina são os exemplos citados. O presidente Hugo Chávez é considerado responsável pelo desenvolvimento de um sistema político com um Executivo sem controle; na Argentina, a presidência estaria concentrando superpoderes em detrimento do Congresso; e, na Bolívia, o presidente “demonstrou desprezo pelo Estado de direito e pelos direitos de propriedade por nacionalizar hidrocarboneto e ter avançado na expropriação de terras”. Deixando claro que esses países estariam no centro da estratégica do Cipe para a América Latina, o documento afirma: “É essencial que se desenvolvam estratégias de combate a essas ameaças ao longo dos próximos cinco anos”77. O Cipe considera que, apesar dos resultados macroeconômicos positivos em muitos países na região, existe um questionamento sobre a “qualidade do desenvolvimento”. Sondagens de opinião apontam claramente 74

Cipe, Annual Report, 2006.

75

Cipe, Five year strategy 2007-2012. Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

76

Ibidem, p. 3.

77

Ibidem, p. 34; grifo meu.

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que a população, apesar de apoiar a democracia, sente-se frustrada por não ser beneficiada diretamente pelo sistema78. São necessários esforços para criar instituições que tratem a “frustração popular” e criem prosperidade para a maioria da população da região. O fortalecimento das instituições inclui uma reforma política, o reforço dos direitos de propriedade e estruturas jurídicas que garantam o cumprimento das leis. Reformas institucionais são fundamentais para garantir uma democracia verdadeira e sustentável, segundo o documento79. Está clara a estratégia de manter as articulações com organizações locais, especialmente think tanks, associações empresariais e organizações da sociedade civil. Cinco temas foram considerados o foco da atuação a ser desenvolvida. O primeiro é atuar na formação de propostas econômicas para os partidos políticos. O objetivo é combater as propostas “populistas” e desenvolver uma abordagem centrada em governança, reformas institucionais e educação cidadã acerca das vantagens das políticas propostas. O segundo foco de atuação é a reforma do setor informal. O exemplo inspirador vem da atuação do Instituto Libertad y Democracia, no Peru. Existem razões políticas no interesse pelo setor informal: o Cipe avalia que ele oferece uma base importante para as políticas populistas, e o fortalecimento de pequenas e médias empresas é de interesse do Cipe. O terceiro foco é capacitar o setor privado para participar de forma mais ativa nos processos de definição das políticas públicas, sempre com o objetivo de criar um consenso em torno da democracia e das reformas pró-mercado. Ao mesmo tempo, como quarto foco, o Cipe seguirá apoiando a implementação da “governança corporativa e a cidadania corporativa” (corporate citizenship), como mecanismos para fortalecer o mercado de capitais e atrair investimentos. Finalmente, o quinto foco de atuação será o combate à corrupção, que, segundo avaliação do Cipe, representa um custo elevado para as empresas que atuam na América Latina (estimam-se em 10% os custos de transação envolvidos em corrupção).

3. Cipe e o sistema financeiro Como mencionei na introdução deste texto, ao iniciar a pesquisa atual, parti da estrutura de representação de classe do empresariado financeiro na América Latina, expressa na rede transassociativa das associações de bancos 78

Cipe, Five year strategy 2007-2012, cit., p. 35-6.

79

Ibidem, p. 35.

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e indaguei sobre as possíveis conexões que se estabeleciam com outros espaços de articulação e organização de classe. Encontrar no caminho o Cipe – e, em consequência, o NED – alargou o horizonte da pesquisa e descortinou um universo de relações e significados bem mais amplo do que eu imaginava de início. Esse movimento exploratório-descritivo preliminar permitiu identificar algumas conexões com o sistema financeiro e, mais especificamente, com a estrutura de classe expressa nas associações de bancos. Para efeito analítico, considerei que a interconexão entre esses níveis poderia se estabelecer diretamente, tanto por essas associações como pelas instituições financeiras, em especial aquelas de maior centralidade na rede transassociativa. A rede de parceiros do Cipe, uma organização atrelada aos interesses estratégicos do governo e das empresas dos Estados Unidos, não esgota o universo de organizações político-ideológicas que se vinculam ao sistema financeiro, e nem sequer podemos afirmar que estas sejam as mais significativas. Ainda assim, os vínculos identificados dão conta da complexa relação que se estabeleceu entre os Estados Unidos e organizações internas na América Latina para construir sua hegemonia a partir de meados dos anos 1980. Um sentido mais geral dessa conexão é dado pelo posicionamento do Cipe de considerar o papel fundamental das associações empresariais como atores políticos fundamentais no processo de implementação das reformas políticas e econômicas voltadas para o mercado. Em outro sentido, as propostas de reformas de livre mercado coincidem com o discurso das associações do setor financeiro, embora nem sempre quando se trate de abertura do próprio setor. Em termos mais específicos, pode-se identificar o envolvimento direto de instituições financeiras no financiamento de algumas das organizações que realizaram ou ainda mantêm “parcerias” com o Cipe. Uma primeira referência é a participação das instituições financeiras privadas, juntamente com outras empresas, brasileiras e multinacionais, no financiamento dos Institutos Liberais organizados no Brasil a partir de 1983, conforme foi mencionado80. Um desses institutos, o do Rio de Janeiro, foi quem estabeleceu uma “parceria” direta com o Cipe. 80

Alguns exemplos são bem emblemáticos da relação com os Institutos Liberais, como é o caso de Roberto Konder Bornhausen, do Unibanco, que ocupou a presidência de várias entidades de classe do setor.

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Um segundo exemplo refere-se às organizações envolvidas no programa mundial de governança corporativa estimulado pelo Cipe, em estreita associação com a Usaid. Instituições financeiras (Bradesco, Santander, Itaú Unibanco) estão entre as empresas “associadas patrocinadoras” que contribuem diretamente para a manutenção do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). O Itaú envolveu-se diretamente na ampliação da cobertura jornalística sobre governança corporativa por meio do Prêmio IBGC-Itaú Jornalismo, cujo objetivo é estimular os jornalistas a produzirem matérias sobre o tema (em 2009 o instituto unificou os Prêmios Trabalhos Acadêmicos e de Jornalismo e instituiu o Prêmio IBGC-Itaú Unibanco: Academia e Imprensa)81. No Chile, uma das principais fontes privadas de recursos do Centro para el Gobierno de la Empresa é o espanhol Banco Santander, um dos mais centrais na rede transassociativa. Na Argentina, o Cipe atua nesse campo com a Fundación Centro de Estabilidad Financiera (CEF), uma organização criada durante a crise de 2001 com o objetivo de “contribuir para a análise, o debate e a formulação de políticas públicas em temas relacionados aos serviços financeiros”82. A Asociación de Bancos Privados de Capital Argentino (Adeba) participa do Conselho de Administração do CEF83. O projeto desenvolvido pelo CEF com apoio do Cipe em 2007-2008 está relacionado com a governança corporativa entre as empresas financeiras que operam na Argentina. Situação semelhante podemos encontrar no México, onde o Centro de Excelencia en Gobierno Corporativo (CEGC)84 inclui a 81

É também uma forma de contornar a restrição estatutária do IBGC sobre a publicação de matérias pagas. Disponível em: . Acesso em: 2 abr. 2010.

82

O Mercado a Término de Rosario (Rofex) e o Instituto Argentino de Ejecutivos de Finanzas (Iaef ) são os fundadores do CEF. O site da organização não identifica explicitamente o conjunto de financiadores, que inclui, além dos fundadores, fontes multilaterais e bilaterais, institutos públicos e privados, assim como aportes individuais. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2008. Ver em especial CEF: Memoria de Actividades, 2006).

83

A Adeba foi criada em 1972, com a denominação de Asociación de Bancos Argentinos, e reorganizada com o nome atual em abril de 2003 por iniciativa de bancos privados argentinos. Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

84

O CEGC foi fundado em março de 2004 pela Universitad Anáhuac del Sur e pela empresa Deloitte de México, com o apoio e a assessoria da Universidade de Yale, o

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Asociación Mexicana de Bancos entre os sete membros de seu Conselho Consultivo Institucional85. Na Argentina, o Instituto Argentino para el Gobierno de las Organizaciones (Iago) foi organizado pela Fundación Empresarial para la Calidad y la Excelencia (Fundece) e o Instituto para el Desarrollo Empresarial (Idea), uma organização que conta com mais de quatrocentas empresas associadas, entre as quais bancos locais e estrangeiros86, e associações de classe, incluindo a Asociación de Bancos de la Argentina (ABA) e a Asociación de Bancos Privados de Capital Argentino (Adeba). No caso argentino, bancos locais e estrangeiros encontram-se entre as empresas mantenedoras da Fundación Mediterránea, ao qual o Ieral está vinculado. Entre as instituições privadas, é o Citibank que estabelece uma conexão indireta entre o Cipe e algumas associações de bancos, por sua participação simultânea na diretoria daquelas associações e na diretoria das Câmaras Americanas de Comércio em vários países da América Latina87. Pode-se constatar que, na parceria direta com as organizações de representação de classe do empresariado na América Latina, o Cipe privilegia aquelas de maior representatividade setorial, nas quais normalmente as associações de bancos também participam, como, por exemplo, a Confederación de Instituciones y Empresas Privadas (Confiep), da qual participa a Asociación de Bancos de Peru (Asbanc).

Considerações finais Neste artigo examinei aspectos particulares de um processo mais amplo de relações que se estabelecem entre organizações norte-americanas instiBanco Mundial e o National Association of Corporate Directors (NACD), uma organização vinculada aos membros dos conselhos empresariais que se dedica à questão da governança corporativa e está localizada na capital norte-americana. 85

Os demais membros são: Instituto Mexicano de Ejecutivos de Finanzas, Nacional Financiera, Bolsa Mexicana de Valores, Confederación de Cámaras de la Industria, Asociación Mexicana de Intermediarios Bursátiles e o Club de Empresarios Bosques.

86

Entre as dezenove instituições financeiras mencionadas como associadas, encontram-se ativos participantes das associações de classe como o Citibank, o ABN Amro, o Banco Itaú, o Deutsche Bank e o HSBC. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2008.

87

Em 2008, o Citibank estava presente na diretoria das Câmaras Americanas de Comércio nos seguintes países: República Dominicana, Guatemala, Peru, Equador (Quito), Uruguai, Brasil (Rio de Janeiro).

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tuídas no começo dos anos 1980 e organizações na América Latina, com o objetivo de não apenas renovar a ordem capitalista no continente, mas também de desenvolvê-la conforme os interesses estratégicos do governo e das empresas dos Estados Unidos. A análise das informações sintetizadas neste artigo possibilita algumas reflexões. Em termos gerais, as organizações norte-americanas aglutinadas em torno do NED tratam de criar e manter um consenso geral no continente em torno de um eixo fundamental representado por democracia e livre mercado. No fim dos anos 1980, quando as principais propostas econômicas foram definidas em torno do chamado Consenso de Washington, uma rede de entidades já estava atuando na América Latina, com apoio financeiro e organizacional, no sentido de formular e implementar políticas públicas convergentes com o consenso mencionado. Coube ao Cipe atuar de forma mais direta nos interesses empresariais e nas organizações a eles vinculadas, enquanto o Solidarity Center atuava em organizações de trabalhadores. As associações empresariais foram estimuladas a assumir um papel central na definição das políticas públicas e atuar nos poderes executivo e legislativo. Em seu conjunto, identificamos um processo de construção de hegemonia no sentido gramsciano do termo. Como sugere Mato88, a expansão das ideias neoliberais não é simples consequência das políticas econômicas impostas por instituições financeiras multilaterais e/ou FMI, mas é – além disso e até cronologicamente antes – a ascendência dessas ideias que é o “resultado de práticas de atores sociais” que participam de redes transnacionais e promovem de longa data “um sentido comum” de natureza neoliberal. A forma e o ritmo que assumiu a expansão do ideário e a implementação de políticas neoliberais estiveram condicionados pelas situações específicas de cada país, em um contexto de reestruturação econômica global89. A criação de um consenso em torno de reformas econômicas e políticas alcançou relativo sucesso, considerando as políticas públicas adotadas pela maioria 88

Daniel Mato, 2007a, p. 22.

89

Para uma análise detalhada, incluindo casos nacionais, ver em Eduardo Basualdo e Enrique Arceo, “Los cambios de los sectores dominantes em América Latina bajo el neoliberalismo”, em Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias nacionales (Buenos Aires, Clacso, 2006), p. 15-26. E o livro de Sebastião C. Velasco e Cruz, Trajetórias: capitalismo neoliberal e reformas econômicas nos países da periferia (São Paulo, Unesp, 2007).

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dos países do continente ao longo das décadas de 1980 e 1990 e a influência que os valores capitalistas têm na região. Um processo que se estabelece não sem resistências e movimentos contra-hegemônicos, que ganham força especialmente quando as implicações sociais, políticas e econômicas do modelo adotado se revelam de forma mais clara. É quando também se percebe o alcance limitado da democracia que essas organizações estão dispostas a aceitar: uma democracia que não pode contrariar o mercado, tampouco questionar os interesses estratégicos dos Estados Unidos. Deve-se ter presente que a atuação do NED e suas quatro organizações foi em parte desenvolvida no passado por meio da Central de Inteligência Americana (CIA), como reconhecem vários autores, inclusive dirigentes do próprio NED. A atuação por meio de centros de pesquisa e de formulação de políticas públicas, e também por ação política direta, realizou-se em todo o continente para interferir nos processos políticos locais e contribuiu para desestabilizar e derrubar governos na região90. A análise da atuação do Cipe deve ser realizada levando em conta o conjunto de ações desenvolvidas pelo NED e considerada no contexto mais amplo da política externa norte-americana. O NED e as quatro organizações a ele vinculadas expressam a articulação entre o Estado e as grandes empresas norte-americanas, combinada com um setor de cúpula da classe trabalhadora daquele país e os dois partidos políticos dominantes (Republicano e Democrata). Sua articulação, organização e atuação envolve uma rede que inclui órgãos do governo dos Estados Unidos, associações empresariais, think tanks, intelectuais, universidades, centros de pesquisa, mídia, grupos econômicos e financeiros, ONGs e outras organizações da sociedade civil nos Estados Unidos e na América Latina. Além disso, como foi possível perceber, instituições do Grupo Banco Mundial (o próprio Banco e o IFC) e o BID se integram a essa estratégia, pois se constatou que algumas organizações “parceiras” do Cipe também recebem fundos dessas instituições. Dessa forma, a atuação do Banco Mundial e do BID não se realiza apenas na dimensão macroeconômica e de forma direta com os governos, mas também reforça essa extensa rede de ação em favor de reformas políti90

No caso brasileiro, um exemplo significativo é o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes) e seu papel no golpe de Estado de 1964 e no primeiro governo militar (sobre esse caso, ver em especial René Armand Dreifuss, 1964: a conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe, 3. ed., Petrópolis, Vozes, 1981).

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cas e de livre mercado, segundo os interesses hegemônicos dos Estados Unidos. Embora escape do alcance deste artigo, é necessário ter presente que no período, além da estratégia política e ideológica descrita em parte neste trabalho, os Estados Unidos mantiveram uma ativa estratégia militar e ampliaram acordos e bases militares na década de 1990, estendendo sua presença militar na Europa Central e em mais de cem países ao redor do globo91. Na América Latina atuam também outras organizações que não se vinculam diretamente aos interesses estratégicos dos Estados Unidos, mantendo com eles tanto campos de articulação como de concorrência. Algumas delas estão vinculadas a partidos políticos europeus. Alguns países criaram organizações similares para atuar no exterior, como o Canadá com seu International Center for Human Rights and Democratic Development (ICHRDD), criado em 199092. Outras são controladas por instituições privadas e desempenham um papel fundamental na promoção das ideias neoliberais em escala mundial, como o Institute of Economic Affairs (IEA) e Atlas Economic Research Foundation93. Entre as organizações latino-americanas que receberam recursos dessa fundação, algumas também foram apoiadas pelo Cipe (por exemplo, o Instituto Libertad y Democracia no Peru e o Centro de Divulgación del Conocimiento Económico na Venezuela). No âmbito da ONU, especialmente a partir de 1993, os Estados Unidos se defrontaram com diferentes concepções e propostas de atuação na promoção da democracia94. 91

James Petras, “Os fundamentos do neoliberalismo”, em Waldir J. Rampinelli e Nildo Ouriques (orgs.), No fio da navalha: crítica das reformas neoliberais de FHC (São Paulo, Xamã, 1997a) e José L. Fiori (org.), O poder americano (Petrópolis, Vozes, 2004).

92

Scott e Walters desenvolvem um estudo comparativo entre o NED, o International Center for Human Rights and Democratic Development (ICHRDD) e a Westminster Foundation for Democracy (WFD), estabelecida pelo governo da Inglaterra em 1992 (“Supporting the wave”, cit.). Abelson compara think tanks do Canadá e dos Estados Unidos (“Do think tanks matter? Opportunities, constraints and incentives for think tanks in Canada and the United States”, Global Society, v. 14, n. 2, 2000, p. 213-36).

93

Denise Barbosa Gros, “Institutos liberais e neoliberalismo no Brasil da Nova República”, cit.; Daniel Mato, 2007a.

94

Jerry Pubantz, “The US–UN relationship and the promotion of democratic nation-building”, Societies Without Borders, n. 2, 2007, p. 93-116.

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O fato de realizar parcerias com o Cipe não significa que as organizações passem a depender necessariamente da organização norte-americana. As parcerias se fazem num contexto de convergência de interesses do ponto de vista da manutenção e da renovação de uma ordem capitalista, mas o papel que as organizações podem desempenhar nesse processo pode sofrer variações importantes. Como já foi mencionado, as organizações locais operam também com diferentes fontes de financiamento. A estratégia é de longo prazo, mas o Cipe operacionaliza suas ações por meio de projetos específicos de apoio organizacional, político e financeiro, com objetivos e prazos definidos. Esse procedimento lhe permite operar com grande flexibilidade para manter, redefinir ou romper as parcerias, em função dos resultados alcançados, das alterações conjunturais em cada país ou de suas próprias prioridades, que são definidas em termos de sua atuação global. Como observa Cruz, para analisar a política do neoliberalismo “é preciso ver como os grupos/tendências políticos identificados com essa perspectiva atuam, que problemas enfrentam, que alianças precisam estabelecer para se colocar em posição de implementar seus projetos”95. O sistema financeiro vincula-se de diversas formas à rede de organizações mencionada. Como se viu, instituições financeiras multilaterais como o Banco Mundial e o BID apoiam algumas dessas organizações. Associações de representação de classe do setor financeiro participam de associações empresariais que também recebem recursos do Cipe. Instituições financeiras privadas, especialmente grupos financeiros, participam e doam recursos. O Citigroup, por exemplo, tem uma presença ativa nas associações de bancos na América Latina, assim como nas Câmaras Americanas de Comércio existentes no continente. Mas é necessário destacar sobretudo que o sistema financeiro na América Latina, em ritmos e graus diversos de intensidade, sofreu um profundo processo de abertura, desregulamentação e privatização, política que o NED e especialmente o Cipe apoiaram e contribuíram para estabelecer. O modelo de democracia institucional que os Estados Unidos pretendem exportar para o mundo, além de essencialmente articulada com a economia de livre mercado, busca gerar posições aliadas ou amistosas com seus interesses políticos e econômicos. Não se trata de implementar, manter e 95

Sebastião C. Velasco e Cruz, Trajetórias, cit., p. 41.

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renovar uma ordem democrática e capitalista em cada país apenas; ela deve articular-se com os interesses estratégicos da potência hegemônica. Dessa forma, o campo da disputa democrática cria alianças e também rivalidades com as iniciativas de outros países capitalistas, que também desenvolvem ações semelhantes por meio de organizações específicas. Ao mesmo tempo, não consegue ocultar as contradições com práticas internas e, especialmente, externas de atuação. As debilidades também se revelam quando se deparam com processos locais que questionam a economia de livre mercado e os interesses dos Estados Unidos, ou se conectam com movimentos populares, como está ocorrendo atualmente em alguns países da América Latina. Que o modelo de democracia e o esforço do governo e das empresas norte-americanas para implementá-lo ao redor do mundo seja eivado de contradições não deixa de colocar um significativo desafio teórico e político em torno da questão da democracia96. Guilhot faz uma análise da cooptação de intelectuais para esse processo de defesa de uma democracia conforme a visão e o interesse do governo e das empresas norte-americanas97. Para Callari, essa cruzada pela democracia se vincula à nova forma do imperialismo e requer das forças políticas da esquerda e do discurso marxista o engajamento no terreno do debate sobre democracia98. Levanta assim novas questões relacionadas com o imperialismo99. A partir da rede de organizações que se inseriram na estratégia do governo e das empresas norte-americanas, das práticas que dela derivam e das forças sociais e políticas que logram mobilizar a partir de meados dos anos 1980, é possível perceber uma estrutura complexa e abrangente de relações.

96

Atilio A. Boron, “Crisis de las democracias y movimientos sociales en América Latina: notas para una discusión”, Observatorio Social de América Latina, ano 7, n. 20, maio-ago. 2006; Noam Chomsky, Estados Fallidos: el abuso de poder y el ataque a la democracia (Buenos Aires, Zeta, 2007), em especial cap. 4: “Fomento de la democracia en el extranjero”.

97

Nicolas Guilhot, “Les professionnels de la démocratie”, cit.

98

Antonio Callari, “Imperialism and the rhetoric of democracy in the age of Wall Street”, Rethinking Marxism, v. 20, n. 4, out. 2008, p. 700-9.

99

Leo Panitch e Colin Leys (orgs.), Socialist register 2004: o novo desafio imperial (Buenos Aires, Clacso, 2006) e Socialist Register 2005: o império reloaded (Buenos Aires, Clacso, 2006); David Slater, “Imperial powers and democratic imaginations”, Third World quarterly, v. 27, n. 8, 2006, p. 1369-86s; James Petras, “NGOs: in the service of imperialism”, cit.

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Mesmo que não tenham conseguido evitar as contradições geradas pela implementação em maior ou menor grau das políticas neoliberais, definiram e estruturaram um padrão de atuação e luta de classes do qual ainda se deve alcançar uma melhor compreensão.

Anexo América Latina e Caribe: organizações parceiras do Cipe (1984-2009) que, em diferentes momentos e com intensidades diversas, receberam apoio do Cipe Argentina: Asociación Argentina de Mujeres Empresarias y Profesionales; Centro de Estudios sobre la Libertad; Centro de Implementación de Políticas Públicas para la Equidad y el Crecimiento (CIPPEC)*; Centro para la Apertura y el Desarrollo de América Latina (CADAL); Centro para la Aplicación de Políticas Públicas; Fundación Acción para la Iniciativa Privada (AIP); Fundación Centro de Estabilidad Financiera (CEF)*; Fundación de Investigaciones Económicas Latinoamericanas (FIEL); Fundación del Tucumán; Instituto Argentino para el Gobierno de las Organizaciones (IAGO); Instituto de Estudios Contemporáneos; Instituto de Estudios de la Realidad Argentina e Latinoamericana (IERAL) - Fundación Mediterránea. Bolivia: Cámara de la Industria y Comercio de Santa Cruz (CAINCO); Centro de Estudios de la Realidad Económica e Social (CERES); Confederación de Empresarios Privados de Bolivia; Fundación Milenio*. Brasil: Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil; Instituto Atlântico; Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC); Instituto Liberal do Rio de Janeiro (ILRJ). Caribe (região): Council of Eastern Caribbean Manufacturers. Chile: Cámara de la Producción y del Comercio de Concepción (CPCC); Centro de Estudios Públicos; Centro para el Gobierno de la Empresa – Facultad de Ciencias Económicas y Administrativas, Universidad Católica de Chile (FEAUC); Fundación de Economía y Administración de la Universidad Católica; Instituto Latinoamericano de Doctrina y Estudios Sociales (ILADES); Libertad y Desarrollo (LYD); Unión Social de Empresarios Cristianos (USEC). (continua)

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Colômbia: Asociación Colombiana Popular de Industriales; Confederación Colombiana de Cámaras de Comercio (CONFECÁMARAS)*; Fundación Corona; Fundación para el Desarrollo Integral del Valle del Cauca; Fundación para la Educación Superior y el Desarrollo (FEDESARROLLO)*; Fundación Respuesta; Instituto Colombiano de Estudios Avanzados en Administración; Instituto de Ciencia Política (IPC)*. Costa Rica: Federación de Entidades del Sector Privado de Centroamérica e Panamá; Instituto Latinoamericano de Gerencia de Organizaciones (ILGO) Cuba: Alianza Democrática Cubana; Promoting Reform in Cuba (Programa)*. Equador: Alianza Equidad*; Asociación Nacional de Empresarios (ANDE); Bolsa de Valores de Quito (BVQ); Fundación Alternativa para el Desarrollo (FA); Instituto Ecuatoriano de Economía Política (IEEP)*. El Salvador: Asociación Nacional de la Empresa Privada (ANEP). Guatemala: Cámara de la Libre Empresa; Centro de Investigación Económica Nacional (CIEN). Haiti: Center for Free Enterprise and Democracy; Cámara de Comercio y Industria de Haití (CCIH); Private Sector Alliance for Development. Jamaica: Fund for Multinational Management Education. México: Centro de Estudios sobre Economía y Educación; Centro de Excelencia en Gobierno Corporativo (CECG)*; Confederación Nacional de Cámaras de Comercio; Confederación Patronal de la Republica Mexicana (COPARMEX). Nicarágua: Cámara de Comercio de Nicaragua; Consejo Superior de la Empresa Privada (COSEP)*; Fundación Panamericana para el Desarrollo (FUPAD). Panamá: Consejo Nacional de la Empresa Privada (CONEP)*; Asociación Panameña de Ejecutivos de Empresa. Paraguai: Federación de la Producción, la Industria y el Comercio (FEPRINCO); Fundación Paraguaya de Cooperación y el Desarrollo; Fundación Desarrollo En Democracia (DENDE)*. (continua)

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Peru: Confederación Nacional de Instituciones Empresariales Privadas (CONFIEP); Instituto APOYO; Instituto de Economía de Libre mercado (IELM); Instituto para la Libertad y la Democracia*; Instituto INVERTIR*; PROCAPITALES; Universidad Peruana de Ciencias Aplicadas (UPC). República Dominicana: APEC Centro de Educación a Distancia; Committee for Progress in Democracy; Greater Newark Chamber of Commerce; Centro de Orientación Económica. Uruguai: Centro para el Estudio de Asuntos Económicos y Sociales (CERES). Venezuela: Centro de Divulgación del Conocimiento Económico para la Libertad (CEDICE)*; Centro Empresarial de Conciliación y Arbitraje (CEDCA); Confederación Venezoelana de Industriales (CONINDUSTRIA)*; Consejo Nacional del Comércio y de los Servicios; Liderazgo y Visión (LYV); Asociación Venezolana de Ejecutivos (AVE). Vários países (Argentina, Bolivia, México, Nicaragua e Peru): Pro Mujer. América Central: Federación de Entidades Privadas de Centroamérica y Panamá (FEDEPRICAP). Fonte: Elaborado por equipe de pesquisa a partir de: a) CIPE. “Global Partners 1984-2003”. Disponível em: ; b) CIPE. Annual Report 2004, 2005, 2006, 2007 e 2009; c) pesquisa na internet para identificar nomes originais das organizações. (*) Parcerias vigentes em 2009.

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QUE TIPO DE LIDERANÇA É CHÁVEZ? Gilberto Maringoni

O presidente venezuelano Hugo Chávez Frías tem merecido uma classificação mais ou menos unânime por parte de seus adversários, ao longo da última década. É a de que ele não passaria de um político populista, como tantos já surgidos na América Latina. Chávez encarnaria mesmo uma liderança desse tipo? Seus apoiadores se apressam em dizer que não. O sacerdote nicaraguense Ernesto Cardenal afirmou, em 2004, o seguinte: “Acusam Chávez de populista, mas creio que isso não é correto, e que é autenticamente revolucionário, ainda que também populachero”1. Antes de entrar na polêmica, é bom lembrar que o termo populista tem sido alardeado pelo pensamento conservador como peça de acusação contra toda figura pública que se afaste dos caminhos da ortodoxia liberal, ainda hegemônica no mundo. Quem externar contrariedade à pretensa racionalidade técnica das políticas de ajuste estrutural em favor do fortalecimento do caráter público do Estado ou tentar materializar orientações de distribuição de renda ou de justiça social ganhará logo a pecha de populista nas páginas e telas da grande imprensa mundial. Equipara-se assim o populismo à demagogia, à mentira e à conversa mole de políticos espertalhões para se manter no poder. Não é novidade que o pensamento neoliberal tenha sido pródigo na apropriação de determinados conceitos para – em uma eficiente luta ideológica – mudar-lhes completamente o significado. Assim, o embate entre 1

Ernesto Cardenal, “Venezuela: uma nova revolução na América Latina”. Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2010.

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direita e esquerda não existiria mais. Em seu lugar existiriam os atritos entre o moderno e o arcaico. Direitos sociais adquiridos por trabalhadores, após décadas de lutas, não passariam de privilégios. Reforma e mudança, antigas bandeiras da esquerda, agora são palavras de ordem de governos neoconservadores para justificar restrições nos regimes previdenciários, trabalhistas e educacionais. No Brasil, por exemplo, um dispositivo legal, editado em 2001 e destinado a comprometer a administração pública com o pagamento de dívidas financeiras, ganhou o sonoro nome de Lei de Responsabilidade Fiscal. A adjetivação de populista ganhou ares de desmascaramento definitivo para maus governantes. Populista seria algo arcaico, fora de moda e atrasado em um mundo que se globaliza e se interliga aceleradamente.

O que é populismo? O conceito de populismo é elástico e complexo o suficiente para alcançar qualquer coisa, tempo e lugar. O Dicionário de política, organizado por Norberto Bobbio, ressalta: O populismo não conta efetivamente com uma elaboração teórica orgânica e sistemática. [...] Como denominação, amolda-se facilmente a doutrinas e a fórmulas diversamente articuladas e aparentemente divergentes. [...] As dificuldades do populismo se ressentem da ambiguidade conceitual que o próprio termo envolve.2

A socióloga venezuelana Margarita López Maya, por sua vez, assinala o seguinte: “O populismo não é, estritamente falando, nem um movimento sociopolítico, nem um regime, nem um tipo de organização, mas fundamentalmente um discurso que pode estar presente no interior de organizações, movimentos ou regimes muito diferentes entre si”3. Não existe uma caracterização única para definir o fenômeno. Uma classificação geral do que seria um líder populista, comumente aceita, dá conta de tratar-se do dirigente que estabelece vínculos e canais diretos com a população, sem a mediação de entidades ou organismos institucionais. Um personagem com tais atributos se relacionaria com multidões, acima de 2

Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de política (5. ed., Brasília, UnB/ LGE, 2004), p. 980.

3

Margarita López Maya, Populismo e inclusión en el caso del proyecto bolivariano (inédito, 2004).

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Que tipo de liderança é Chávez? • 289

partidos, parlamentos, sindicatos etc. Há componentes centralizadores e autoritários na figura do chefe populista. Na falta de mediações, ele geralmente se torna a própria encarnação do Estado no imaginário das camadas populares. Mesmo assim, tal classificação é inexata. A historiadora brasileira Ângela de Castro Gomes destaca o que seria a “seleção de variáveis histórico-sociológicas” possíveis de se vislumbrar no modelo populista: “Um proletariado sem consciência de classe; uma classe dirigente em crise de hegemonia e um líder carismático”4. A figura do “pai dos pobres”, no caso de Getúlio Vargas no Brasil (1930-1945 e 1950-1954), a de redentor dos “descamisados”, quando se alude a Juan Domingo Perón na Argentina (1946-1955), ou a de Lázaro Cárdenas no México (1934-1940) representam expressões da condensação de um projeto de nação em uma só pessoa, algo que ocorre em momentos muito particulares da história. Ao mesmo tempo, os três líderes buscaram, em seu tempo, construir uma institucionalidade baseada em partidos e organizações sindicais, que canalizassem as energias da crescente classe operária em formação em seus países, e no atendimento de reivindicações longamente feitas por tais setores. Não se podem examinar tais manifestações do populismo apenas por seus aspectos exteriores ou suas manifestações fragmentadas. É necessário observar quais as bases objetivas levaram a seu surgimento. O populismo é uma expressão própria de sociedades de capitalismo tardio, de industrialização e urbanização aceleradas e de consequentes deslocamentos de grandes contingentes humanos do campo para a cidade. Tais fatores raramente estiveram presentes nos países de desenvolvimento industrial menos intensivo em espaços de tempo tão curtos, como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos. Margarita López Maya sintetiza bem a questão: “O populismo aparece como [...] uma maneira particular de fazer política na América Latina, associado ao período de trânsito das sociedades agroexportadoras para as industriais”5. 4

Ângela de Castro Gomes, “O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito”, em Jorge Ferreira (org.), O populismo e sua história, debate e crítica (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001), p. 26.

5

Margarita López Maya, Populismo e inclusión, cit.

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A historiadora brasileira Maria Helena Rolim Capelato avança nessa conceituação: Na perspectiva da sociologia da modernização, o populismo foi caracterizado como um momento de transição de uma sociedade tradicional para a moderna (o que implica um deslocamento do campo para a cidade, do agrário para o industrial). No que se refere ao político, a teoria explica o populismo como uma etapa do desenvolvimento das sociedades latino-americanas que não conseguiram consolidar uma ideologia e uma organização autônomas.6

Mais adiante, diz o seguinte: “Acredito que os novos estudos sobre os referidos governos denominados populistas permitem afirmar que um traço comum os caracteriza: a introdução de uma nova cultura política, baseada no papel interventor do Estado nas relações sociais”7. Os casos brasileiro, argentino e mexicano, na primeira metade do século XX, são ilustrativos. Os países souberam aproveitar uma conjuntura internacional pós-crise de 1929 e duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) para incrementar processos de industrialização iniciados nas primeiras décadas do século. Nos três exemplos, a centralidade da ação estatal na economia tornou-se decisiva para o desenvolvimento. Aplicando políticas nacional-desenvolvimentistas de substituição de importações, os três, em ritmos próprios e obedecendo a condicionantes internos e externos, lograram tornar-se, em poucas décadas, sociedades industriais e urbanas. Esse padrão se assentava em três agentes básicos: o Estado, o capital estrangeiro e o capital privado nacional, como sócio menor. O capital estrangeiro entrou de forma crescente, à medida que os poderes públicos ofereciam condições cada vez mais vantajosas de investimento e de retorno. Os dados dessas transformações, quando confrontados com as mudanças demográficas, são surpreendentes. No caso brasileiro, a parcela de população urbana passou de 31,2% em 1940 para 49% em 1960, alcançando 67,6% em 19808. Na Argentina, o processo foi mais precoce: 37,4% dos

6

Maria Helena Rolim Capelato, “Populismo latino-americano em discussão”, em Jorge Ferreira, O populismo e sua história, cit., p. 136.

7

Ibidem, p. 163.

8

Ipece – Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará. Retratos do Brasil e do Ceará: indicadores sociais e econômicos. Fortaleza, 14 abr. 2005. Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2010.

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argentinos viviam nas cidades em 1895; em 1914 já eram 52,7% e em 1960, 72%9. No México de 1940, por sua vez, 35,5% dos habitantes ocupavam as zonas urbanas; duas décadas depois, essa fatia alcançava 50,7% e, em 1980, 76,3% dos mexicanos estavam fora das zonas rurais10. Mais do que um exercício estatístico, tais números apontam para o brutal processo de desenraizamento de milhões de pessoas e de alteração de padrões de vida e referências familiares, sociais, afetivas e culturais seculares. No plano político, estava selado o fim de uma legalidade baseada em oligarquias rurais e em suas instâncias de poder, como o latifúndio e a Igreja, em favor de uma sociedade de massas sem parâmetros de identidade definidos de imediato. Essas levas de exilados do campo, juntamente com os fluxos de imigrantes, europeus em sua maioria, viriam a formar a classe operária dos três países, com reivindicações até então inéditas. As lutas por direitos sociais, trabalhistas e cidadãos criaram demandas que o velho Estado oligárquico não mais conseguia atender. A história brasileira é exemplar. A partir da década de 1910, e mais acentuadamente a partir da seguinte, começa a oligarquia agrária a perder força para a nascente burguesia urbana, ao mesmo tempo que se avolumam as demandas operárias e cresce o descontentamento entre os chamados setores médios da sociedade. Quando a insatisfação se transforma em revolta aberta e atinge as forças armadas, surgem conflitos sérios no interior das classes dominantes e um golpe muda a face do país em 1930. O chefe da rebelião, Getúlio Vargas, assume a Presidência da República e inicia um governo ditatorial que muda radicalmente o desenho institucional brasileiro. Logo nos primeiros anos de gestão, Vargas promulga uma nova constituição e enfraquece o domínio político das oligarquias rurais. Busca, como base social de sustentação, os vastos contingentes de trabalhadores urbanos e setores das diminutas camadas médias. Ao mesmo tempo que reprime movimentos sociais organizados, o governo Vargas atende parte das reivindicações históricas dos trabalhadores, como registro profissional, jornada de oito horas e salário mínimo. Tais medidas se consubstanciam em um arcabouço legal de normatização do traba9

Censos Nacionales de Población y Atlas Demográfico de la República Argentina. Resultados provisionales (Buenos Aires, Indec, 1991).

10

Consejo Nacional de Población – Conapo, 1986.

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lho, além de vincular solidamente os sindicatos ao Estado. Mais do que a concessão de direitos, existia, por trás de tudo, a tentativa de enquadrar o movimento social. Havia um projeto de país em execução, dirigido de modo autoritário com o auxílio de uma hábil política econômica. Esta atendia os reclamos de paz social de vários setores do capital e incorporava a classe operária no jogo político. Agindo diretamente no atendimento das insatisfações populares e manejando frações da burguesia, surgia a figura do líder populista, dirigindo o país acima das instituições, entre outros motivos, por serem irrelevantes para o jogo político ou por estarem em processo de formação. Assim, o populismo varguista possuiu características aparentemente díspares, mas complementares dialeticamente. Era a um só tempo nacionalista e progressista, autoritário e elitista. Com diferenças de aplicação, o modelo teve sucedâneos externos, como na Argentina da mesma época. Luiz Alberto Moniz Bandeira lembra: O golpe militar de 1943 abatera a predominância da oligarquia agrário-exportadora na direção da Argentina de Perón, cuja força crescia, tratava de organizar um sistema de poder similar àquele que Vargas organizara no Brasil, após a revolução de 1930, ao entretecer, como alicerce, a aliança dos militares com os trabalhadores e as classes médias urbanas, em torno de um projeto de industrialização e de desenvolvimento nacional.11

No México, o populismo foi identificado a partir do governo de Lázaro Cárdenas, iniciado em 1934, e no desenho de um projeto nacional que incluía a classe operária como parceira da burguesia, por meio do atendimento de inúmeras reivindicações de demandas sociais. Com características particulares a cada local, líderes que buscaram realizar campanhas ou administrações lastreadas no que se poderia chamar de nacional-estatismo apareceram ao longo do século XX em processos originais por boa parte da América Latina. Além de Vargas, Perón e Cárdenas, podem ser arrolados nessa lista dirigentes de um espectro que vai do centro até a esquerda, como Augusto Sandino (El Salvador), Jacobo Arbenz (Guatemala), João Goulart e Leonel Brizola (Brasil), entre outros12. 11

Luiz Alberto M. Bandeira, Brasil, Argentina e Estados Unidos, da Tríplice Aliança ao Mercosul (Rio de Janeiro, Revan, 2003), p. 210-1.

12

A lembrança é de Daniel Aarão Reis Filho, “O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita”, em Jorge Fereira, O populismo e sua história, cit., p. 375.

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Margarita López Maya nota ainda: O populismo não pode nem deve reduzir-se a juízos de valor negativos centrados em seus potenciais atributos demagógicos ou de manipulação dos interesses das massas, pois, se bem que tal característica possa acontecer – e muitas experiências populistas o constatam –, trata-se de um conceito muito mais rico que isso, que provou capacidade explicativa para um fenômeno que ocorre na América Latina em momentos de crise de hegemonia e facilitou a inclusão política de setores populares no século XX.13

O populismo permitiu a entrada das massas empobrecidas no cenário político latino-americano. Em alguns casos, tornou-as protagonistas do processo. Até seu advento, a vida política estava centrada especialmente nas disputas entre facções das oligarquias agrárias. O populismo democratizou a atividade política. Com base no que foi exposto, em que aspectos a prática política de Hugo Chávez pode ser caracterizada como populista e que populismo seria esse?

A situação venezuelana Chávez está a quilômetros de distância da demagogia de setores conservadores, que se valeram da prática populista como maneira de exercer seu domínio político. O dirigente venezuelano tem um discurso acentuadamente antioligárquico, anti-imperialista e, na prática, demarcador de interesses de classe. É preciso, mais uma vez, atentar para as condições objetivas sobre as quais se formou e atua a administração do ex-tenente-coronel do Exército. A Venezuela viveu uma crise política e social profunda desde 1983, quando os preços do petróleo tiveram uma queda acentuada no mercado internacional. Foi o início de um longo ciclo de baixa, que perdurou pelos dezesseis anos seguintes. Como consequência, as vidas política, social e cultural do país, organizadas em torno da renda petroleira, entraram em parafuso. A sucessão de turbulências vivida até a eleição de Chávez, em 1998, resultou em uma quebra dos padrões de convivência internos, construídos ao longo de várias décadas. O marco da ruptura deu-se em 27 de fevereiro de 1989. Nesse dia, Caracas e as principais cidades venezuelanas foram palco de uma imensa rebe13

Margarita López Maya, Populismo e inclusión, cit.

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lião social. O evento ficou conhecido como Caracazo e encerrou um ciclo histórico. Quebrou-se ali um pacto político, que havia se alicerçado no preço do petróleo e havia possibilitado a convivência entre dois partidos de centro-direita e a exclusão dos setores populares da disputa política, sem que a alternância no poder e os aspectos formais da democracia liberal fossem colocados em questão. Um feito, em um continente pontilhado de ditaduras militares e golpes de Estado. Em 4 de dezembro de 1988, Carlos Andrés Pérez foi eleito presidente da República pela segunda vez. Mais do que ninguém, o líder do partido Ação Democrática personalizava a prosperidade petroleira vivida na década anterior e sua situação de crescimento econômico, altos níveis de emprego e melhoria constante no padrão de vida da população. Sua campanha e sua vitória se deram sob o signo da promessa de dias melhores14. No entanto, a situação, do ponto de vista das contas públicas, era preocupante. Como resultado da queda dos preços internacionais do petróleo, as reservas do Banco Central, que em 1985 alcançavam 13,75 bilhões de dólares, despencaram para 6,67 bilhões de dólares no final da gestão de seu antecessor, Jaime Lusinchi. A inflação alcançava 40,3% ao ano, o desemprego chegava a dois dígitos e o salário real havia despencado. Uma aguda fuga de capitais completava o quadro15. Em 16 de fevereiro de 1989, Pérez dirigiu-se ao país para anunciar que o governo havia firmado um memorando com o Fundo Monetário Internacional16. O objetivo de tudo era a liberação de um empréstimo de 4,5 bilhões de dólares. A contrapartida, concretizada no dia 25, um sábado, era salgada: o pacote incluía a desvalorização da moeda nacional, a redução do gasto público e do crédito, liberação de preços, congelamento de salários e aumento dos preços de gêneros de primeira necessidade. A gasolina sofreria um reajuste imediato de 100%. Isso resultaria, segundo anunciado, numa majoração de 30% nos bilhetes de transporte coletivo. Na prática, esses reajustes chegaram também a 100%. Nada disso havia sido ventilado durante a campanha. 14

Heinz Sonntag e Thaís Maingón, Venezuela: 4F-1992 (Caracas, Nueva Sociedad, 1992), p. 63.

15

Fonte: Banco Central da Venezuela.

16

Ver Margarita López Maya, “Venezuela: la rebelión popular del 27 de febrero de 1989, resistencia a la modernidad?”, Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, n. 5, abr.-set. 1999, p. 177-99.

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Antes das 6 horas da manhã da segunda-feira, dia 27, começaram os primeiros protestos. Ao longo daquele dia e dos subsequentes, a rebelião tomou as ruas de Caracas e de outras cidades. Saques, barricadas e enfrentamentos com as forças de segurança compuseram uma semana violenta e sangrenta. Familiares e grupos de direitos humanos conseguiram apurar um total de 396 vítimas fatais. Os feridos contavam-se aos milhares e era quase impossível estimar os prejuízos materiais. Os centros médicos contabilizaram entre 1 mil e 1,5 mil mortos17. A crise econômica se aprofundou, com dramáticas consequências sociais. A Venezuela encerrou aquele ano com uma queda de 8,5% no PIB18 e uma taxa de inflação de 81%19. A parcela da população que vivia abaixo da linha de pobreza aumentou de 15% no fim de 1988 para 45% dois anos depois. Até o final de seu mandato, Pérez eliminaria as regulamentações bancárias, acabaria com a maior parte dos controles de preços, privatizaria a companhia telefônica nacional (Cantv), o sistema de portos, uma importante linha aérea (Viasa), e abriria a indústria petroleira e outros setores estratégicos ao capital privado20. Quebrou-se, em fevereiro de 1989, a imagem que os venezuelanos faziam de si mesmos. Segundo ela, o país seria um modelo de democracia e tolerância no continente, com eleições regulares, instituições, direitos civis, partidos com sólidas bases sociais etc. Rompeu-se um padrão de convivência construído ao longo de todo o século. Os canais de mediação de demandas entre a população e o Estado (partidos políticos e sindicatos), que durante décadas resolveram conflitos variados, mostraram-se inúteis quando a crise se tornou irreversível. A engrenagem política que sobreviveu ao Caracazo perdeu grande parte de sua legitimidade. Quando vence as eleições, em 6 de dezembro de 1998, Chávez se vê diante de uma sociedade esgarçada e sem referenciais institucionais com 17

Steve Ellner e Daniel Hellinger (orgs.), La política venezolana en la época de Chávez (Caracas, Nueva Sociedad, 2003), p. 48.

18

Dados do Banco Central da Venezuela. Disponíveis em: . Acesso em: ago. 2010.

19

Dados da Fundación Cidob, Disponíveis em: . Acesso em: ago. 2010.

20

Steve Ellner e Daniel Hellinger (orgs.), La política venezolana en la época de Chávez, cit., p. 23.

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credibilidade. O país se arrastava em um caos econômico de proporções gigantescas, que gerou em sua esteira uma aguda crise social, política e institucional. Sua chegada ao Palácio de Miraflores sacramentou a falência do sistema institucional e partidário, cujas raízes haviam sido fincadas em 1958, após a queda do general Marcos Pérez Jiménez. Partidos, sindicatos e os próprios órgãos de Estado viram suas legitimidades evaporar. Sem alicerces organizativos claros para o exercício mínimo da democracia representativa, era difícil vislumbrar outro caminho na Venezuela se não o exercício da liderança em linha direta com as massas. Chávez valeu-se dos preços internacionais excepcionalmente altos do petróleo, entre 2004 e 2008, para ampliar programas sociais, fortalecer o poder de intervenção do Estado, estatizar empresas antes privatizadas e dar impulso a sua agenda internacional. Ao fazer isso, descolou-se da ortodoxia liberal. Se abstrairmos seu discurso, sua ação interna se mostra como caudatária de uma espécie de desenvolvimentismo petroleiro. Há na conduta do mandatário venezuelano semelhanças com as experiências capitalistas de fortalecimento do poder público, realizadas nos anos 1930 em parte do mundo industrializado. Tal conduta, em um meio internacional adverso e sem referências maiores para a esquerda, mostra que Chávez não se adaptou ou não se amoldou ao modelo hegemônico. Seu governo ajudou a mudar a face política da América Latina.

Populismo progressista Há aqui uma distante semelhança com características de algumas experiências históricas: a Venezuela é uma sociedade em transformação, em processo de definição de novos arcabouços institucionais e políticos. O movimento social organizado ainda é incipiente. As entidades sindicais e associativas, assim como os partidos políticos populares, ainda estão em fase de amadurecimento, com pouca representatividade real entre a população. Em uma frase, inexistem pontos de apoio institucionais sólidos. Assim, a relação de Hugo Chávez em linha direta com a população não é uma opção, mas uma necessidade. Não se tratava – e não se trata – de uma vontade pretensamente caudilhesca ou autoritária, como acusam seus inimigos, mas de uma adaptação às condições objetivas encontradas.

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Chávez é não só o líder, mas o principal e praticamente único garantidor do processo político em curso em seu país. É porta-voz central de seu governo, assim como o grande intelectual, formulador e estrategista das ações do Estado. Não é de espantar que sua prática tenha, de fato, contornos populistas. É preciso lembrar, contudo, que ninguém é populista porque e quando quer. Isso corresponde a necessidades históricas objetivas. Por fim, é preciso chamar atenção para um marco distintivo da ação chavista em relação a muitos líderes históricos do continente. Seu populismo tem características progressistas na realidade venezuelana. Ao liderar o processo constituinte e estabelecer novos parâmetros institucionais, Chávez tornou-se o fiador da legalidade e logrou empurrar para a periferia da atividade política os setores das classes dominantes que tentaram derrubá-lo. Se tal ação lograr construir canais democráticos de participação, sua ação populista poderá, dentro de algum tempo, negar a si mesma.

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A DESORIENTAÇÃO DO “ESTADO DESENVOLVIMENTISTA” NA ÁFRICA DO SUL * Patrick Bond

A vitória do Congresso Nacional Africano (CNA) nas eleições de abril de 2009 nunca foi motivo de dúvida, mas o que foi de importância crucial para as políticas radicais duráveis na África do Sul foi a dramática enxurrada de votos a favor da facção de Thabo Mbeki, do CNA, por parte dos leais de Jacob Zuma, primeiro na conferência do partido em Polokwane, em dezembro de 2007, e depois nos próprio governo, em setembro de 2008. Crucial como indicação da instabilidade da coligação política dominante. Resta saber se esse fato vai desviar ou não do caminho o falso “Estado desenvolvimentista” sul-africano. Embora o termo “Estado desenvolvimentista” se refira mais comumente às experiências do Sudeste asiático, que combinam crescimento e diversificação manufatureira com sistemas políticos autoritários, eu me aproprio do termo de maneira abusiva para nomear – no contexto sul-africano – uma combinação de neoliberalismo macroeconômico com megaprojetos de desenvolvimento insustentáveis, embalada com políticas de ação afirmativa e apoio retórico a políticas industriais mais coerentes. Embora o ministro das Finanças, Trevor Manuel, apareça nas pesquisas como o quarto líder político mais bem-conceituado na lista eleitoral do CNA em 2009, garantindo em troca que suas políticas econômicas neoliberais prosseguirão sob o mandato do presidente Jacob Zuma, há, entretanto, uma potencial guinada para a esquerda tanto em microprojetos quanto na parte industrial da política econômica. Alec Erwin – o homem mais frequentemente identificado com projetos de exportação grandiloquentes, multibilionários e camaradas *

Tradução de Fernando Rogério Jardim.

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com o capitalismo – foi exonerado do Ministério das Empresas Públicas por ocasião do massacre eleitoral dos pró-Mbeki contra os pró-Zuma em setembro de 2008. (Curiosamente, Alec Erwin foi substituído por uma ineficaz ministra pró-Mbeki e ex-ministra da Justiça, Brigitte Mabandla, envolvida em inúmeras controvérsias.) O ex-estrategista do sindicalismo, que volta e meia dizia ter continuado marxista, estava na berlinda como o principal responsável pelo apagão elétrico da Eskom no início de 2008. Para ser exato, a ascensão de um sindicalismo mais genuíno e da influência comunista na coligação partidária dominante desde 2006 conseguiu direcionar recursos públicos substanciais para projetos em prol dos pobres, em vez de comerciais, tais como o Seguro Saúde Nacional. Além disso, não só os índices reais de investimento caíram drasticamente até os níveis de dois dígitos do período de 1995 a 2005 (porque a inflação subiu muito mais rápido que os índices nominais de investimento), como também o orçamento de fevereiro de 2009 de Trevor Manuel sofreu um brusco déficit (3,8%), após três anos de próspero superávit. Ainda assim, continuamos a desconfiar de Jacob Zuma quando ele afirma aos líderes das finanças mundiais – tais como os diretores do Merril Lynch e do Citibank, bastiões das práticas econômicas responsáveis – sua intenção de não relaxar as atuais restrições monetárias e fiscais. Para ilustrar, o próprio Jacob Zuma disse em Los Angeles, em dezembro de 2007: Algumas pessoas têm dito que se Jacob Zuma assumir o país, o governo penderá para a esquerda, por causa do apoio dos sindicatos, que são de esquerda, e do Partido Comunista Sul-Africano [...] e que as políticas econômicas do governo mudarão. Eu prefiro pensar que esse não é um assunto relevante, mas sou grato pela oportunidade de esclarecer isso; e gostaria de dizer a vocês, irmãos e irmãs, que nada mudará.1

É claro que a trajetória do governo poderá mudar se a esquerda ganhar impulso, porque a economia nacional e mundial continua a afundar em 2009 (o último trimestre de 2008 assistiu a uma retração espetacular da produção industrial, especialmente a automobilística e ao primeiro o PIB negativo em dez anos). Se a esquerda perder o ímpeto, e se a cooptação dos principais líderes comunistas do CNA e da lideranças do governo continuar, como é bem provável que aconteça, nós presenciaremos uma relegitimação 1

Christelle Terreblanche, “No changes, Zuma vows”, Independent on-line, 9 dez. 2007.

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das políticas macroeconômicas e microprogressistas neoliberais, e os megaprojetos em andamento produzirão mútua-dependência, desperdício e corrupção. Apenas para ilustrar, a eletricidade e a água potável são dois serviços públicos que enfrentam condições de escassez cada vez piores e deveriam ser distribuídos gratuitamente e em maior quantidade para a população necessitada. Entretanto, megaprojetos estão saindo do papel para que as empresas e a rica população branca tenham acesso ilimitado a água potável e eletricidade. Esses elefantes brancos precisam passar por uma análise crítica. Infelizmente, embora o interesse popular tanto pelas macropolíticas como pelos microprojetos tenha crescido, é necessária uma fusão de forças políticas verde e vermelha, rural e urbana, trabalhista e comunitária, feminista e antirracista para deter isso e apresentar estratégias desenvolvimentistas alternativas ainda não disponíveis. No entanto, inúmeros indicadores de lutas sociais nos dão algum alento.

O neoliberalismo e seus estragos Consideremos, em primeiro lugar, oito áreas de progresso e de problemas socioeconômicos e ambientais que representam pontos de tensão na era pós-apartheid, como resultado das políticas pós-1994 ou mesmo das perturbações estruturais mais profundas que remontam às décadas passadas: • nos anos imediatamente pós-apartheid, a desigualdade aumentou; em 2001, com o aumento das prestações assistenciais, ela teve um leve recuo, mas isso significou um salto no coeficiente de Gini de menos de 0,6 em 1994 para 0,72 em 2006 (0,80, se excluirmos as prestações assistenciais)2; • o índice oficial de desemprego simplesmente duplicou (de 16% em 1994 para quase 32% no início dos anos 2000, caindo para 26% no final da década; mas se incluirmos aqueles que desistiram de procurar emprego, o índice mais realista fica próximo dos 40%), em consequência da importação tanto de produtos do Sudeste asiático em setores de mão de obra relativamente intensiva (confecção, tecelagem, calçados, equipamentos e eletrônicos) como de técnicas de produção intensivas em capital (especialmente na mineração e na siderurgia); 2

Hilary Joffe, “Growth has helped richest and poorest”, Business Day, 5 mar. 2008.

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• a oferta de moradia para milhões de pessoas malogrou pelo fato de que as unidades produzidas eram muito menores que as “caixas de fósforos” da época do apartheid, ficavam afastadas do trabalho e da infraestrutura municipal, eram construídas com material pouco durável, ofereciam serviços públicos de péssima qualidade e eram confrontadas com uma dívida ainda mais alta se e quando o crédito estava disponível; • embora água e eletricidade ainda sejam oferecidas a muitas pessoas de baixa renda, os preços aumentaram de forma dramática desde 1994, levando a cada ano milhões de pessoas a enfrentar cortes por não poderem pagar a multa aplicada à segunda suspensão de fornecimento; • a deterioração do sistema de saúde, combinada com a aids, causou uma drástica diminuição da expectativa de vida, de 65 anos no período da liberação para 52 anos uma década depois3; • o sistema de educação faliu por causa do custo excessivo de cobertura e da austeridade fiscal, levando 35% dos estudantes a abandonar a escola na 5a série (índice pior que nos vizinhos Namíbia, Lesoto e Suazilândia) e 48% na 12a série; além disso, de acordo com o mais recente senso escolar (2001), 27% das escolas estão sem água, 43% sem energia e 80% sem bibliotecas e computadores4; • os problemas ambientais são cada vez mais graves, conforme pesquisa financiada pelo próprio governo para o relatório “Panorama Ambiental” de 2006; segundo o representante oficial do Estado, a pesquisa “apontou um declínio generalizado nas condições ambientais”5; • o crescimento da criminalidade foi acompanhado de uma verdadeira corrida armamentista: sistemas de segurança privados, alarmes, muros, cercas, condomínios fechados, bloqueios em ruas e até em rios tornaram os bairros da classe operária mais vulneráveis a assaltos, arrombamentos, 3

Pali Lehohla, “State of the world population: 2004”. Disponível em: . Acesso em: 25 ago. 2010. CNN, “Life expectancy in Africa cut short by aids”, 18 mar. 1999, e em: .

4

Salim Vally e C. A. Spreen, “Education rights, education policy and inequality in South Africa”, International Journal of Educational Development, v. 26, n. 4, 2006.

5

South Africa Government Information. “‘The State of our environment should remain under a watchful eye’ Government release the 2006 Environment Outlook State of the Environment Report and urges that more work needs to be done”. Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

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roubos de carros e outros crimes pequenos (houve crescimento de mais de um terço nessa categoria entre 1994 e 20016, com um pequeno declínio desde então), assim como a índices epidêmicos de estupros e outros crimes violentos. Crimes de colarinho-branco (inclusive evasão de capital) não são vigiados ou têm aparentemente uma penetração organizada nas altas rodas do serviço policial sul-africano. O “Estado desenvolvimentista” pretende reverter o processo. Contudo, dado o abuso dos investimentos direcionados a alguns dos maiores “elefantes brancos” em construção neste momento, a reversão durará tanto quanto o boom artificial da construção civil: • o complexo industrial Coega, na Metrópole Nelson Mandela (área que inclui a velha Porto Elizabeth e Uitenhage), onde grande quantidade de água e eletricidade pode ser consumida num único dia pela nova fundição (a Alcan e a Rio Tinto também se comprometeram, apesar de no início de 2008 serem evidentes problemas como redução do fornecimento de energia); • as gigantescas represas do Projeto Águas do Planalto de Lesoto (as maiores da África), que desde 1998 têm desviado as águas de Lesoto pelo rio Senqu, drenando o lençol freático do Free State para o insaciável complexo industrial Gauteng, em especial para resfriar as caldeiras das usinas termelétricas e encher as piscinas de Johannesburgo (a terceira grande represa deve ser aprovada em 2009); • os caros, luxuosos e desnecessários novos estádios para a Copa do Mundo de 2010, que no início de 2009 já ultrapassavam três vezes o custo inicial; • a corrupção generalizada de 43 bilhões de rands no comércio de armas, que envolveu grande parte das facções zumita e mbekita do CNA, a começar da cúpula; • os reatores nucleares da Pebble Bed, que custam centenas de bilhões de rands, além de outras centenas de bilhões de rands gastos com usinas termelétricas (apesar da já grande contribuição da África do 6

Institute for Security Studies (ISS). Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

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Sul para o agravamento das condições climáticas, com suas emissões de carbono7; • a rede de trens de alta velocidade, estimada em mais de 20 bilhões de rands, que ligará Johannesburgo, Pretória e o aeroporto O. R. Tambo e somente será acessível à elite rica. Os limites deste texto somente nos permitem examinar em detalhe um desses grandes projetos (o Coega). Os recursos públicos podiam ter ido para a base da pirâmide social de forma muito mais direta, não fosse o contexto neoliberal mais amplo. O início dos anos 2000 testemunhou um otimismo crescente de que a crise emergente dos mercados nacionais dos anos 1990 – que englobou a África do Sul – poderia ser superada e a reavaliação internacional da maioria de nossas empresas nacionais não afetaria negativamente nosso crescimento. Com efeito, em 2001, a taxa de lucro do grande capital sul-africano recuperou o declínio na atividade comercial entre 1970 e 1990, atingindo a nona melhor posição entre as maiores economias mundiais (muito à frente das taxas de lucro nos Estados Unidos e na China, de acordo com um estudo do governo britânico8). A realidade, no entanto, é que os altos lucros das empresas não são prenúncio de crescimento econô7

“Um investimento de 4 milhões de randis foi autorizado por Erwin, em 2008, para melhorar a imagem do poder nuclear na África do Sul... Entre outras coisas, marketeiros estão procurando identificar os assim chamados ‘embaixadores nucleares’ no intuito de legitimar o poder nuclear nas comunidades e no mundo dos negócios... Paralelamente às pesquisas de opinião pública houve o desenvolvimento de um vocabulário nuclear nas onze línguas oficiais do país. Isso ‘asseguraria que o discurso público a respeito de questões relacionadas com a energia nuclear fosse acessível a todos os sul-africanos’.” Como observou Dominique Gilbert, coordenador do grupo de trabalho anti-nuclear Pelindaba, menos de duas semanas antes de Erwin renunciar, o contrato com os marketeiros deveria ser cancelado imediatamente, com o financiamento indo para um processo de consulta pública sobre o futuro da política energética. Organizações da sociedade civil e ONGs têm repetidamente exigido uma solução energética alternativa para a crise energética sul-africana em que a energia nuclear urânio-alimentada não esteja envolvida, ‘em contraste com os esforços de Erwin para avançar naquilo que está cada dia mais parecendo com sua agenda particular’” (SA Press Association, “R4m for govt nuclear ‘research’ project”, 2 set. 2008). Contudo, apesar de um ex-presidente anti-nuclear interino, Kgalema Motlanthe (ex-secretário do sindicato dos mineiros), o financiamento PBMR permaneceu no orçamento de 2008.

8

Laura Citron e Richard Walton, “International comparisons of Company Profitability”. Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

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mico sustentável, mas resultado de contradições persistentes e profundamente enraizadas: • com relação à estabilidade, o rand (comparado a uma cesta de moedas estrangeiras) perdeu mais de um quarto de seu valor em 1996, 1998, 2001, 2006 e 2008, a pior marca entre todas as grandes economias globais. Isso mostra quão vulnerável aos mercados financeiros internacionais a África do Sul se tornou, graças à progressiva liberalização do controle cambial iniciada em 1995; • a África do Sul assistiu ao crescimento do PIB nos anos 2000, mas não levou em conta o esgotamento de seus recursos não renováveis. Se, além desse fator, considerarmos a poluição, a África do Sul teria um PIB per capita negativo (de, ao menos, $2 ao ano), de acordo com o próprio Banco Mundial9; • a economia sul-africana tem se orientado muito mais para os lucros rápidos dos mercados financeiros do que para a produção de bens reais, em parte devido à extremamente elevada taxa de juros desde março de 1995 (quando se relaxou o controle cambial do rand). A taxa de juros pós-inflacionária se elevou a níveis recordes por uma década na história econômica sul-africana, com frequência atingindo dois dígitos (mas após um pico de 3,5% em meados dos anos 2000, o crédito ao consumidor e o crédito imobiliário foram fortemente pressionados por uma forte inadimplência); • os dois setores mais bem-sucedidos entre 1994 e 2004 foram as comunicações (12,2% de crescimento anual) e as finanças (7,6% de crescimento anual), ao passo que os setores de mão de obra intensiva, tais como têxteis, calçados e mineração aurífera, diminuíram de 1% a 5% ao ano e, em geral, a manufatura como parte do PIB também declinou; • o governo admite que o nível geral de emprego caiu 0,2% ao ano entre 1994 e 2004, mas esses 0,2% são um problema bastante subestimado, já que a definição oficial de emprego inclui ocupações como “mendicância”, e “caça de animais selvagens para alimento” e “cultivo do próprio alimento”; • o problema da intensidade excessiva de capital na produção – máquinas demais por trabalhador – certamente se agravará, pois a Corporação pa9

Banco Mundial, Where is the wealth of nations? (Washington, DC, 2006), p. 66.

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ra o Desenvolvimento Industrial (uma agência do Estado) prevê que o setor com mais investimentos no período de 2006 a 2010 seja o siderúrgico, com um crescimento maciço de 24% em investimentos fixos ao ano; mas espera-se que o emprego setorial caia 1,3% ao ano, a despeito de (ou por causa de) todo esse novo investimento; no geral, o problema da “greve de capital” – falta de investimentos das empresas de grande porte – continua, na medida em que a formação de capital fixo bruto estagnou entre 15% e 17% no período de 1994 a 2004, não sendo suficiente para cobrir o custo da depreciação dos equipamentos; as empresas investiram os lucros obtidos, mas não todo na África do Sul: na mesma época da liberalização política e econômica, a maioria das empresas presentes na Bolsa de Valores de Johannesburgo – Anglo American, De Beers, Old Mutual, AS Breweries, Liberty Life, Gencor (hoje o núcleo da BHP Billiton), Didata, Mondi e outras – transferiram seus fundos e suas principais cotas de ações para mercados estrangeiros de ações; a fuga de lucros e dividendos dessas firmas é uma das duas razões principais por que o déficit das contas correntes sul-africanas aumentou bruscamente para um dos maiores do mundo (superado em meados de 2008 apenas pela Nova Zelândia) e, por isso, é o maior perigo em caso de instabilidade monetária, tal como aconteceu na Tailândia (5%) em meados de 1997; outra causa para o déficit nas contas correntes é a balança comercial negativa, culpada pelo imenso fluxo de importações após a liberação alfandegária, que o crescimento das exportações não conseguiu compensar; outra razão para a “greve do capital” é a questão da superprodução experimentada na indústria existente (altamente monopolizada), na medida em que a capacidade de utilização da manufatura caiu consideravelmente de 80% em média nos anos 1970 para 70% no começo dos anos 2000; os lucros privados evitam investimentos em instalações, equipamentos e fábricas e buscam retornos especulativos rápidos na Bolsa de Valores de Johannesburgo: houve um aumento de 50% no preço das ações na primeira metade dos anos 2000, e o boom imobiliário que começou em 1999 elevou os preços dos imóveis em mais de 200% em 2004 (em comparação com os míseros 60% de aumento no mercado imobiliário nos Estados Unidos pouco antes do estouro da bolha, de acordo com o FMI).

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Esses profundos dilemas estruturais têm raízes não apenas na liberalização pós-apartheid, mas também nas persistentes vulnerabilidades associadas à economia da era do apartheid. Devido à liberalização tanto do comércio estrangeiro (de agosto de 1994 em diante) como do mercado financeiro (a partir de março de 1995), o déficit nas contas correntes é perigosamente alto (10,4% esperados para 2009), em comparação com economias equivalentes. No início de 2009, a revista The Economist apontou a África do Sul como “o país mais arriscado” dos dezessete mercados econômicos emergentes. Os principais problemas são o elevado déficit nas contas correntes, as reduzidas reservas e o alto custo de rolagem dos papéis da dívida externa a curto prazo (o terceiro pior caso, após a Coreia do Sul e a Indonésia). [Além disso,] os bancos sul-africanos dependem de empréstimos, muitas vezes tomados do exterior, para financiar empréstimos contraídos nacionalmente e, por isso, serão pressionados pela escassez mundial de crédito [...]. O rand, moeda que já se desvalorizou fortemente, continua sendo uma das mais vulneráveis moedas dos mercados emergentes.10

Ironicamente, uma das razões da redução das reservas e do ameaçador déficit nas contas correntes é o aumento das taxas de lucro das empresas sul-africanas – lucros que, por sua vez, serão desviados de forma ilegal pela repatriação dos dividendos para os novos centros financeiros no exterior. Os lucros das empresas são em geral substanciais, em comparação com os salários dos operários, que chegaram ao seu ponto mais baixo desde o fim dos anos 1980. No entanto, um problema contínuo é que os lucros do setor manufatureiro têm caído dramaticamente desde o início dos anos 1980, em relação aos lucros financeiros e especulativos. As vantagens da exportação na África do Sul estão em poucas áreas e são difíceis de manter (em alguns casos, estão sujeitas à dramática volatilidade dos preços de venda) – tais como componentes automotivos, filtros para piscinas, vinhos, carvão e metais básicos. Além disso, os baixos níveis de investimento fixo persistem, especialmente nos setores privados, em parte devido à excessiva capacidade ociosa das instalações e equipamentos existentes. Isso ajuda a explicar o baixo nível de investimentos estrangeiros diretos, em contraste com o influxo de capital volátil, atraído pelos níveis anteriormente significativos de inves10

“Economics focus: Domino theory”, 26 fev. 2009. Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

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timentos reais na África do Sul. Nenhum desses processos é salutar; ao lado dos preços extremamente inflacionados da eletricidade e da alimentação (bem como do petróleo no primeiro semestre de 2008), gerarão ainda mais tensões sociais – um tópico ao qual retornaremos na conclusão.

O projeto Coega e o Estado desenvolvimentista Consideremos em mais detalhes uma história extrema, mas bastante reveladora. Durante a última década, o governo sul-africano começou a revolver terreno para aquilo que poderá ser o maior subsídio para a zona industrial e para o porto Coega – localizado a quase vinte quilômetros de Porto Elizabeth, dentro do perímetro municipal da baía Nelson Mandela. Os fundos estão indo não apenas para as demandas de eletricidade do projeto Coega, que inclui uma fundição de alumínio já prevista e um complexo automotivo, mas também para a sugerida refinaria da Petro SA, orçada em 40 bilhões de rands. Os defensores do governo afirmam que o Coega representa com perfeição a política industrial e de desenvolvimento macroeconômico, mas os críticos do projeto o consideram um “assistencialismo corporativo” gratuito e repleto de características socialmente impiedosas e ecologicamente predatórias – bastante evidentes agora, graças à renovada atenção que está sendo dada às mudanças climáticas. Numa mensagem em sua revista eletrônica, no fim de 2006, Thabo Mbeki enfatizou o projeto Coega como sendo um exemplo máximo dos “marcos miliários da era da esperança”: A companhia líder da indústria de alumínio, a Alcan, entrou em acordo quanto ao fornecimento de eletricidade que tornaria possível a ela construir uma imensa fundição de alumínio no porto de Ngqura/Coega. Com efeito, essa foi outra das muitas boas notícias de 2006, a despeito da campanha encabeçada por algumas poucas pessoas em nosso país que apresenta o novo porto de Ngqura/ Coega como o símbolo notável do fracasso e da estupidez do nosso governo democrático, liderado por esse movimento!

O Coega, se não for o símbolo mais notável, é decerto um dos inúmeros exemplos do fracasso e da estupidez dos governos pós-apartheid, que representa a correlação entre o “capitalismo camarada” e os efeitos negativos das mudanças climáticas e ambientais11. Os enormes subsídios estatais canaliza11

Além do grande número de projetos dispendiosos e inúteis apontados acima, vimos também políticas macroeconômicas neoliberais ineficazes, desenvolvimento de desas-

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dos para a suposta fundição e para muitos outros beneficiários empresariais, seriam mais bem dirigidos para satisfazer as grandes demandas sociais reprimidas no Eastern Cape. No fim, de 2006, respondendo à crítica que eu mesmo apresentei no jornal The Mercury de Durban, Ongama Mtimka, diretor executivo da Coega Development Corporation, endossou sem perceber os principais pontos de minha crítica: “O comentário de Cynthia Carroll, segundo a qual o projeto Coega possui a melhor infraestrutura que ela já viu pelo mundo afora, só reafirma a competitividade da nossa Zona de Desenvolvimento Industrial Coega, em comparação com seus congêneres estrangeiros”. Poucas semanas antes, Cynthia Carroll, presidente e diretora executiva da Alcan Primary Metal, havia negociado um acordo de redução de preços da eletricidade para uma siderúrgica canadense. Logo depois, ela foi nomeada diretora executiva do escritório da Anglo American, mostrando que o infame “Complexo Energético Minerador”12 que une o capital minerador sul-africano, a organização paraestatal Eskom e o Ministério da Indústria e Comércio Exterior havia se internacionalizado e se desvencilhado de sua face puramente patriarcal. O acordo para o barateamento da energia elétrica foi amplamente ridicularizado. Como afirmou o colunista do jornal Business Day Rob Rose: Se o Coega é o equivalente do castelo fantasma, ele tem uma característica particular: o governo o construiu por 7,5 bilhões de rands e sem nenhum morador; abriu suas portas e nem um flanelinha o invadiu. [...] Dado o absurdo consumo de energia da fundição de alumínio, a melhor coisa a fazer seria vendê-la para o ferro-velho. Acima de tudo, a Alcan está recebendo um desconto especial pelos maciços 1.350 MW de potência de que ela precisa, por meio de um precinho camarada com a Eskom, sob o (bizarramente denominado) “programa de fixa-

tres microeconômicos, aumento da desigualdade social e do desemprego, uma política de combate à aids descrita por muitos especialistas como “genocida”, agravamento da degradação ambiental, incentivo sem precedentes ao consumismo materialista, corrupção política generalizada, larga especulação nos mercados imobiliário e de ações, alianças com potências imperiais (ou seja, venda de armas para os invasores do Iraque), venda de armas para regimes políticos opressivos, falhas no comércio multilateral e nas reformas financeiras, aspirações subimperialistas (através do programa intitulado “Nova Parceria para o Desenvolvimento da África”), repressão da democracia no Zimbabwe, na Suazilândia e na Birmânia e aumento da repressão estatal interna. 12

Ben Fine e Zav Rustomjee, South Africa’s politicale economy (Johannesburgo, University of the Witwatersrand Press, 2006).

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ção de preços da eletricidade para o desenvolvimento”. As etapas de fundição do alumínio são especialmente intensivos em energia elétrica, e 1.350 MW é o equivalente a quase 4% de toda a capacidade energética da África do Sul (37 mil MW). Mas a Eskom, sendo a Eskom, está mantendo em segredo o preço exato que vem cobrando da Alcan. A ONG Earthlife Africa afirma com razão que o perigo é que a Eskom esteja subsidiando um projeto que gerará menos de mil empregos de período integral. [...] Também é sabido que a maior parte do alumínio produzido pela Alcan em Coega será enviado para o mercado exterior, em vez de ser beneficiado e valorizado em nosso país. Nos anos 1950, o alumínio foi apelidado de “eletricidade congelada” por causa da imensa quantidade de energia necessária para produzi-lo. Alguém poderia dizer então que o governo sul-africano está simplesmente permitindo à Alcan “exportar eletricidade barata” – num momento em que não estamos exatamente esbanjando capacidade excedente.13

Além da infraestrutura feita sob medida, que inclui 1 bilhão de rands para residências para a elite branca e um grande porto de 20 metros de calado, a principal atração do projeto Coega é a eletricidade ultrabarata. Ao mesmo tempo, porém, é evidente que a ingerência da Eskom no curso da privatização deixou a companhia sem investimentos suficientes e com sobrecargas frequentes (falhas no fornecimento de energia) no início de 2008. A empresa norte-americana AES pretendia anunciar a construção de uma usina privada ainda maior em Porto Elizabeth para aumentar o fornecimento da Eskom, mas logo depois de gerar expectativas e especulações ela desmentiu o compromisso. A lista da Eskom e seus acordos camaradas para uns poucos e poderosos usuários empresariais inclui a usina siderúrgica Lakshmi Mittal (anteriormente denominada Iscor), as operações mineradoras da Anglo American e as fundições da BHP Billiton. Quando foi comprada pela Rio Tinto, a Alcan assinou um contrato de 25 anos de fornecimento de eletricidade com a Eskom – eletricidade que cobrada abaixo dos 0,14 rands por hora que a maioria das indústrias geralmente paga. Durante muito tempo, a África do Sul foi o paraíso da energia elétrica barata. Em 2008, contudo, tornou-se evidente que as fontes de energia elétrica eram escassas e que assim que o mercado mundial de alumínio começasse a arrefecer, os executivos da Alcan desmantelariam suas ope-

13

Rob Rose, “Minister has a cheek threatening electricity consumption fines”, Business Day, 4 jun. 2007.

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rações. Dito e feito: quando em meados de 2008 os seis anos de prosperidade da commodity se interromperam de repente, a siderúrgica Rio Tinto, sob o controle da BHP Billiton, afundou, logo após a companhia australiana esbarrar na crise financeira global. Até a crise elétrica, o site do projeto Coega (www.coega.co.za) antecipava a incorporação da fundição, o novo e vasto porto (que começaria a funcionar no fim de 2008), um terminal de contêineres, uma zona petroquímica com uma imensa refinaria operada pela estatal Petro SA e uma Zona de Desenvolvimento Industrial (ZDI). Investimentos públicos de pelo menos 12 bilhões de rands eram esperados, incluindo os mais de 2 bilhões de rands em isenções fiscais para a Alcan, além de enormes quantidades de terra, água e energia elétrica baratas. Os novos empregos previstos no porto e na ZDI seriam os mais caros de toda a África, quando avaliados em termos de capital investido por trabalho. Onde quer que as novas fundições de alumínio e de manganês fossem construídas, os custos ambientais do projeto Coega – em termos de consumo de recursos hídricos, poluição do ar, dispêndio de eletricidade e impacto no ambiente marinho – seriam imensos. A infraestrutura em construção não tem precedentes em toda a África e inviabiliza quaisquer instalações alternativas de desenvolvimento para o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos da Metrópole Mandela e de todo o Earsten Cape. Por essa razão, a controvérsia tem acompanhado o processo de tomada de decisões sobre a construção do porto e da ZDI. Rumores sobre conflitos de interesses entre os principais atores do projeto atrapalham a governança. Além da controvérsia, há o fato de que o projeto Coega foi inicialmente arquitetado para ser uma forma de as indústrias europeias envolvidas na venda de armas para a África do Sul poderem “compensar”, criando empregos, e o governo poder justificar à opinião pública o escândalo dos 6 bilhões de rands em corrupção na compra de armas. Mas há aqui custos sociais igualmente significativos. Milhares de famílias foram deslocadas para a construção da infraestrutura do parque industrial Coega; e aquelas famílias que continuaram na área terão de pagar taxas ambientais ao novo projeto. Os custos do projeto Coega envolvem muito mais que os 10 mil empregos perdidos em setores da economia que ou serão fechados, ou serão impedidos de se expandir, como as salinas, a maricultura, a pesca, a agricultura e o ecoturismo, como mostrado na tabela abaixo:

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TABELA 1 Custos diretos e custos de oportunidade da ZDI e do porto Coega14 Setor

perdas em salários (milhões de rands por ano)

perdas em empregos (n. de postos de trabalho)

produção nas salinas

20

136

maricultura

116

875

não estimado

não estimado

agricultura*

510

7500

ecoturismo

60

975

Total

706

9486

pesca*

* Os impactos na agricultura são de longo prazo e, portanto, têm natureza diferente das outras perdas de emprego e de salários.

Os ativistas da comunidade e os ambientalistas têm apontado alternativas muito melhores para a criação de empregos e para o progresso econômico e social, caso tais recursos fossem utilizados de outras maneiras. Em 2001, um grupo cívico, a Coalizão da Metrópole Mandela pela Sustentabilidade, propôs um cenário alternativo para o desenvolvimento econômico, pelo qual se priorizavam os investimentos em infraestrutura para as necessidades fundamentais da população em todo o Eastern Cape e, em Coega, ecoturismo apoiado pelo Estado, agricultura e pesca marinha em pequena escala e nas mãos do povo negro. Se as instalações industriais não fossem prejudicadas pela crise financeira internacional, o Coega iria contribuir rapidamente para a mudança climática, num momento em que as emissões de carbono na África do Sul já caminham para vinte vezes mais que a dos Estados Unidos, num cálculo per capita. Ironicamente, enquanto a tinta secava do contrato de doação de energia da Eskom para a Alcan, o ministro do Meio Ambiente, Martinus van Schalkwyk, retornava triunfante das negociações para o tratado sobre 14

Fonte: Cálculos de Steven Hosking e Patrick Bond, em Patrick Bond, Unsustainable South Africa (Londres, Merlin Press, 2002).

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mudanças climáticas, realizadas em Nairóbi, em novembro de 2006, afirmando que “a África do Sul alcançará a maioria de suas principais metas”. Essas metas incluíam “mecanismos de desenvolvimento sustentáveis” (MDS) e investimentos como os créditos de carbono recomendados pelo Protocolo de Kyoto – metas que em algum momento teriam de ser levadas em conta pelos investidores do Coega. Investindo em projetos de MDS no Terceiro Mundo, que supostamente reduziriam as emissões de carbono, os poluidores do Norte rico podem comprar o direito de continuar a emitir carbono nos níveis atuais. Visto que a Alcan havia se comprometido a usar tecnologias relativamente eficientes no consumo de eletricidade em Coega, a organização norte-americana Enviromental Defense sugeriu que o projeto fosse considerado merecedor de investimentos de MDS pelos grandes poluidores mundiais, o que lhes permitiria manter seus índices atuais de emissões. Existem inúmeros problemas no novo sistema de comércio de emissões, e projetos como o Coega mostram por que esse mercado não deveria ser expandido a ponto de gerar novos problemas ecológicos, sem exigir uma redução das emissões totais e globais15. Richard Fuggle, professor de estudos ambientais da Universidade da Cidade do Cabo e um dos mais respeitados ambientalistas sul-africanos, combateu o aumento de emissões de carbono provocado pelo projeto Coega em seu discurso de despedida e descreveu Van Schalkwyk como “um político inconsequente [...] e incapaz de pressionar os empresários para que considerações ambientais tenham precedência sobre o desenvolvimento insustentável”. Segundo Richard Fuggle: chega a ser patético que Van Schalkwyk tenha detalhado as virtudes dos treze pequenos projetos da África do Sul para obter créditos de carbono com os MDS do Protocolo de Kyoto, mas não tenha expressado desânimo pela Eskom vender 1.360 MW por ano de energia elétrica derivada de queima de carvão para uma indústria de alumínio estrangeira. Nós temos, hoje, um dos mais elevados índices de emissão mundial de carbono por dólar de PIB. Somando o carbono que será emitido para fornecer energia a essa única fábrica, em breve nós estaremos em primeiro lugar nesse placar duvidoso.16 15

Patrick Bond, Rehana Dada e Graham Erion (orgs.), Climate change, carbon trading and civil society (Pietermaritzburg, University of Kwazulu-Natal Press, 2008).

16

Richard Fuggle, “We are still indifferent about the State of our environment”, Cape Times, 6 dez. 2006.

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O que dizem os advogados e defensores do Coega sobre esse tipo de crítica? Em 2002, como ministro da Indústria e Comércio Exterior, Alec Erwin chamou a análise acima de “polêmica malfeita e destinada a defender sua óbvia oposição prévia ao projeto. Eu nem faria esses comentários se o documento tivesse algum mérito real. Mas não tem. Nós fizemos várias discussões abertas com grupos responsáveis pelo meio ambiente e atuaremos intimamente com eles” (os pontos específicos defendidos por Alec Erwin foram avaliados em detalhe e rejeitados na análise que escrevi em coautoria com o economista Stephen Hosking)17. A resposta do diretor executivo da Coega Development Corporation (CDC), Ongama Mtimka, publicada no The Mercury, recorria a outras considerações, relacionadas às acusações de corrupção: O argumento conforme o qual “as consultas públicas e o processo participativo associado ao desenvolvimento do porto e da ZDI têm sido insatisfatórios” é factualmente incorreto e difamador com respeito ao caráter da CDC. Todos os procedimentos concernentes ao lançamento do projeto e aos investimentos foram seguidos. [...] Não há evidências de conflitos de interesse entre os principais atores do processo de tomada de decisões que “embaracem sua governança”. Essa declaração é maliciosa e, baseada em alegações infundadas, prejudica a integridade da CDC.18

As alegações são mesmo graves. Envolvem um conflito de interesses com um ator-chave do processo de tomada de decisões: o gerente de operações Achilles Limbouris. Investigações levaram a sua (aparentemente justificada) demissão da Coega Development Corporation (CDC) apenas duas semanas antes da publicação do relatório de Ongama Mtimka. Achilles Limbouris mantinha “contato com uma empreiteira, a Scribante Construction [...] que foi contratada para uma empreitada de 85 milhões de rands [...] [e vazou] informações delicadas e confidenciais da CDC [...] para o ambiente externo à empresa”19. Mas o problema é aparentemente mais profundo e envolve compensações pelo famoso acordo de armas, que possibilitou negociações com a fabricante alemã de submarinos Ferrostaal, em troca dos prometidos (mas 17

Alec Erwin, “Criminal not to develop Coega”, Eastern Province Herald, 1 fev. 2002.

18

Mtimka Ongama, “Only history will vindicate Coega”, The Mercury, 28 dez. 2006.

19

Coega Development Corporation, “Coega manager dismissed over misconduct”, Porto Elizabeth, 11 dez. 2006, comunicado de imprensa.

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jamais concretizados) investimentos dela em Coega20. O Serviço Público de Auditoria só começou a se preocupar, de acordo com seu diretor Colm Allan, quando “o projeto Coega efetivamente afundou com a debandada da BHP Billiton como sua âncora. O que ressuscitou o Coega, segundo Colm Allan, foi: o acordo ilegal do então ministro da Defesa Joe Modise com o consórcio alemão [em 13 de junho de 1999] para a aquisição de três submarinos avaliados em 4,5 bilhões de rands, como compensação à promessa da Ferrostaal de construir uma siderúrgica de 6 bilhões de rands em Coega [...]. [Pouco tempo depois, quando se aposentou,] Joe Modise comprou ações e foi nomeado presidente de uma companhia que vem ganhando contratos para conduzir as obras do projeto Coega.

Segundo Colm Allan, apesar de Joe Modise ter falecido logo em seguida, outros executivos passaram a orientar o projeto, entre eles Mafika Mkwanazi (então assessor do diretor administrativo da Transnet), Saki Macozoma (então diretor administrativo da Transnet) e o presidente do conselho diretivo da CDC, Moss Ngoasheng. A CDC é uma empresa privada que está editando contratos para arrancar dinheiro dos contribuintes. Mas como é uma empresa privada, as demonstrações financeiras da CDC não podem ser auditados pelo escritório do auditor-geral. A CDC também não precisa cumprir a exigência de publicar relatórios financeiros detalhados, conforme solicitado pela Lei do Gerenciamento das Finanças Públicas.21

Todas as entidades ambientais se mobilizaram contra o Coega, inclusive a Earthlife Africa, a Zwartkops Trust, os Valley Bushveld Affected Parties e os produtores de frutas cítricas. No entanto, para mudar decisões políticas, é preciso uma campanha articulada – que una ambientalistas, trabalhadores, comunidades e demais cidadãos – por políticas radicalmente novas, que atendam as demandas da sociedade e não o apetite do mundo econômico por alumínio. Em maio de 2007, houve manifestações coordenadas contra a Alcan em Porto Elizabeth, Richards Bay e Johannesburgo. A ONG Earthlife Africa tentou esclarecer melhor os acordos que haviam sido firmados 20

Terry Crawford-Browne, Eye on the money (Cidade do Cabo, Umuzi, 2007).

21

Colm Allan, “Coega, conflicts of interest and the arms deal”, Public Service Accountability Monitor Report, Grahamstown, Rhodes University, 24 jul. 2001.

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em Coega por meio da Lei de Promoção do Acesso à Informação, consultando a Eskom sobre o preço da energia elétrica, as condições de fornecimento e o poder da Alcan para vender a eletricidade não consumida. A resposta, segundo a Earthlife Africa, foi “um completo e absoluto silêncio [sobre] questões legítimas referentes ao bem-estar e ao fornecimento de longo prazo à população sul-africana” 22. Por fim, no final de 2008, o que pareceria ser o último prego do caixão do Coega se revelou um incrível manancial de informações: a publicação de uma biografia hagiográfica sobre o poderoso ministro das Finanças, Trevor Manuel, escrito por Pippa Green, ex-assessor de imprensa do ministro. Um ataque de cinco páginas ao projeto Coega – começando com a frase “você deve estar louco para acreditar que é uma boa ideia” (citação de um dos assessores de Trevor Manuel) – transformou o debate num embate entre a responsabilidade fiscal (Manuel) e o socialismo irresponsável (Erwin). Como ministro das empresas públicas, Alec Erwin disse a Pippa Green que havia uma diferença ideológica fundamental nas teorias econômicas: “A minha é basicamente marxista. Trevor Manuel não é um economista marxista – não porque se oponha a Marx, mas porque nunca o estudou” (um ponto que Pippa Green nega, usando uma citação descontextualizada de Trevor Manuel de um trecho do terceiro volume de O capital, contra os excessos nos gastos públicos). Alec Erwin supostamente se inspirou na análise da cadeia de valores de Bruno Bettelheim quando promoveu o projeto Coega, esperando conexões anteriores e posteriores na produção de alumínio23.

Conclusão O conflito surreal sobre o “Estado desenvolvimentista” sul-africano não seria resolvido pelos interesses conflitantes do Coega, pelo “capitalismo camarada”, pela corrupção e pelas loucas teorias pseudomarxistas sobre o capitalismo na semiperiferia, vulgarizadas pelos dois ministros da economia mais neoliberais do país. Ultimamente, foi a crise mundial do capitalismo que tornou inviáveis as grandes fundições de alumínio, mas mesmo assim a equipe de Jacob Zuma pretende dar prosseguimento ao Coega (por en22

Earthlife Africa, “Eskom’s secret deal with Alcan: refusal to release details”, Johannesburgo, 20 fev. 2007, comunicado de imprensa.

23

Pippa Green, Choice not fate (Johannesburgo, Penguin, 2008), p. 524-8.

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A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 317

quanto, sem suas fundições), bem como a outros aspectos do projeto do “Estado desenvolvimentista”, entre eles a maciça expansão da energia nuclear proposta por Alec Erwin. Em 2007, Ben Fine apontava para o caráter pobre do debate sobre o desenvolvimento sul-africano. No entanto, manifestava alguma esperança: O governo justifica sua repentina virada para o Estado desenvolvimentista como se nos bastidores sempre tivesse esperado que a economia se apresentasse suficientemente estabilizada, firme e segura. A meu ver, essa é uma simples reinvenção das políticas econômicas e sociais da década passada, uma maneira de justificar as políticas de crescimento, empregabilidade e redistribuição, quando na verdade se procura afastar-se delas. A ascensão do suposto Estado desenvolvimentista é um expediente retórico do governo que indica sua crença de que o trabalho está sendo feito pela metade, e que hoje as condições são favoráveis às políticas intervencionistas e megalomaníacas. [...] Em segundo lugar, é claro, as políticas de ascensão do Estado desenvolvimentista são um pretexto para amansar as críticas contra as iniciativas econômicas e sociais do governo. Em particular, é óbvio a incapacidade do governo de lidar com níveis altos e ascendentes de desemprego e pauperização, enquanto o aumento da influência do povo negro tem florescido especialmente como manancial para o enriquecimento da elite branca. [...] Em poucas palavras, eu daria um viva ao Estado desenvolvimentista por sua guinada no quadro das políticas públicas, outro viva se conduzisse a políticas mais progressistas e intervencionistas na prática, e um terceiro e mais alto viva se identificasse, desafiasse e mobilizasse com propriedade os interesses políticos e econômicos subjacentes que impediram tais políticas no passado.24

É sempre fácil aplaudir a retórica na África do Sul, onde a ideia de “discursar como esquerdista” enquanto se “caminha como direitista” corresponde à crítica feita por Frantz Fanon ao nacionalismo africano. A outra realidade, a dura realidade dos sul-africanos comuns, simplesmente não foi disfarçada pela propaganda do “Estado desenvolvimentista”. De fato, o que esses fenômenos representam é um regime neoliberal duradouro que agrava sistematicamente o fardo do povo, enquanto adota políticas que beneficiam o capital sediado no exterior, inclusive o capital nacional antes baseado nos negócios da classe branca africana. O que podemos verificar a partir do caso Coega é que esse tipo de abordagem é recorrente no planejamento e na implementação de megaprojetos, tanto quanto em políticas nacionais comuns. 24

Ben Fine, “Looking for a developmental State”, Alternatives International, 12 set, 2007. Disponível em: . Acesso em: ago. 2010.

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Da mesma maneira, a única reação lógica – mas até agora, apenas um fragmento do que é necessário – é a oposição social, interna, político-econômico-ambiental sustentada pela sociedade civil organizada, dada a ausência de um partido de esquerda que se oponha ao Congresso Nacional Africano. Provavelmente, ocorrem mais protestos sociais por pessoa na África do Sul que em qualquer outra parte do mundo. Além dos mais de 30 mil “encontros” formais entre 2004 e 2007, dos quais a maioria foram protestos (e cerca de 10% foram “distúrbios”), há protestos espontâneos e não registrados pela polícia, com uma concentração entre 2004 e 2007 na província de Gauteng, onde foram realizadas mais de 50% de todas as “manifestações encomendadas”25. Daí o duplo movimento descrito por Polanyi: intervenções excessivas do mercado, crise econômica e “capitalismo camarada” gerando reações de sindicatos e comunistas de centro-esquerda dentro da aliança partidária dominante, e dramáticos protestos – às vezes denominados de extrema-esquerda – das forças cívicas independentes e não oficiais. O futuro reserva novos desgostos para as confusões do “Estado desenvolvimentista”, mas não está claro quais combinações políticas produzirão novas rebeliões no interior do projeto de Jacob Zuma, ou pelo eventual lançamento de partidos operários sérios, ou simplesmente pelas batalhas sociais em marcha pela sobrevivência quotidiana e contra o neoliberalismo. Eis os processos aos quais devemos nos manter atentos, oferecendo a eles nossa solidariedade.

25

Instituto Liberdade de Expressão e Centro de Pesquisa Sociológica da Universidade de Johannesburg, “National trends around protest action”, Johannesburgo, fev. 2009, p. 13.

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DO APARTHEID AO NEOLIBERALISMO José Luís Cabaço

Uma sociedade colonial A sociedade do apartheid, que se explicitou na atual República da África do Sul depois de 1948, representou o modelo mais estruturado, no plano social, e mais desenvolvido, no plano econômico, de todas as sociedades coloniais do continente africano. Sua definição como colônia resulta de alguns fatores determinantes: ela era resultado de uma conquista do território e da dominação administrativa por parte de uma minoria originária da Europa em sua fase de expansão mercantil-capitalista; a ordem político-social e a economia foram controladas e apropriadas pelas comunidades ocupantes, que impuseram os próprios interesses por meio de mecanismos de poder e repressão; a superestrutura que sustentava a dominação e a opressão fundava-se na afirmação da superioridade “civilizacional” da minoria estrangeira (o que se traduziu na polarização tendencial da sociedade, cuja fronteira passava pela ideologia racista); o problema político fulcral era a chamada “questão indígena”, para usar a expressão consagrada por Mahmood Mamdani1. Com a penetração capitalista, a “questão indígena” surgiu como problema central na política interna da ordem colonial no continente africano. Era expressão, no seio dos grupos dominantes, de um conflito latente entre as estratégias traçadas nas metrópoles e “os que vivem no terreno”. As primeiras obedeciam aos imperativos da conjuntura internacional e aos interesses das respectivas economias em competição, e eram seduzidas pelos

1

Mahmood Mamdani, Ciudadano y súbdito: África contemporánea y el legado del colonialismo tardio (Madri, Siglo XXI, 1998), p. 5.

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potenciais lucros, quer da exploração de mão de obra qualificada autóctone, muito barata, quer da gradual criação de mercados nas colônias. A promoção econômica dos colonizados – não sua promoção política – era favorável aos desígnios que perseguiam. Os segundos, pelo fato de se sentirem uma minoria estatística potencialmente ameaçada, constituíam um grupo solidário, cuja unidade se consubstanciava na “superioridade” da civilização de que se consideravam portadores e que representava a própria sobrevivência em face da maioria colonizada. A consolidação de sua segurança – física, dos bens apropriados e da condição de estrato social dominante – dependia da capacidade de controle das populações submetidas. Seu instinto de sobrevivência dizia-lhes que a promoção econômica representava um perigo político e uma ameaça à hegemonia “civilizacional”. Paralelamente, eles viam no protecionismo dos governos coloniais aos produtos metropolitanos um obstáculo ao rápido enriquecimento. O compromisso colonialista se negociava na inevitável complementaridade de ambas as partes, a metrópole assegurando força e capitais e os colonos garantindo ocupação e presença. Se num primeiro momento o fato colonial conduziu os estrangeiros à definição de uma oposição fundada na cor da pele e na cultura, num momento sucessivo (e na senda da colonização britânica) a definição das populações autóctones começou a ser definida em termos tribais. A passagem da raça à tribo ocorre em paralelo com o desenvolvimento das colônias como campo de estudo privilegiado da etnologia europeia. Retomando Mamdani, a “tribalização” do colonizado trazia grandes vantagens ao processo de dominação sobre a maioria: “À diferença da raça”, explica o autor, “a tribo ia dissolver a maioria dos colonizados em várias minorias tribais e, além disso, permitia argumentar que a identidade tribal era [ao contrário da identidade fundada na ‘raça’] tanto natural como tradicional”2. Contudo, a criação dos “mapas étnicos” não anulava a segregação racial dominante nas sociedades coloniais africanas. As identidades tribais tinham existência simplesmente no interior da dicotomia que as sustentava, fragmentando a resistência dos povos, estimulando referências tradicionalistas e repropondo rivalidades ancestrais que deveriam obstar à conscientização susceptível de emergir de uma reação unitária à dominação racista. 2

Ibidem, p. 100.

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Contradições sobrepostas A emergência do nacionalismo africano constituiu a resposta à política do “dividir para reinar”. Opondo-se à tribalização política, o pensamento africano da primeira metade do século XX faz próprio o apelo oriundo da diáspora (principalmente do centro e norte do continente americano e de alguns pensadores africanos na Europa) e proclama um anticolonialismo baseado na unidade da resistência articulada em termos do denominador “raça”. O pan-africanismo, sob a bandeira de uma “África para os africanos”, leva esse ímpeto unitário até a unidade intrínseca de todos os povos negros do continente, e seus intelectuais buscam nos fundamentos das culturas oprimidas, destroçadas ou amordaçadas, uma “negritude” regeneradora. As reivindicações fundamentais eram de liberdade e dignidade, consubstanciadas no direito de participar das decisões, da independência política e, mais tarde, a dispor da própria vida e das riquezas de sua terra. Raça e classe se articulam, na totalidade despótica e rapaz da ordem colonial, em duas formas de exclusão, uma superestrutural (a segregação racial) e a outra estrutural (a exploração do trabalho). Os “brancos pobres”, quando existiam, eram beneficiados por serviços sociais (assistência médica, educação, pensões e subsídios etc.) e leis protetoras (reserva de emprego e cidadania plena, por exemplo) e incorporados na esfera ideológica da burguesia colonial, reforçando a representação da coincidência entre raça e classe. A sobreposição da ideologia da superioridade racial do dominador e da condição objetiva do dominado no processo produtivo é um elemento essencial na compreensão da realidade africana. Na luta pela liberdade, a contradição determinada pelo racismo torna-se preponderante na consciência africana. A discriminação persegue o(a) homem/mulher colonizado(a) em cada momento de sua vida. Está presente na própria epiderme, colada a sua condição de súdito(a) e marginalizado(a). É na cor da pele, na história e na cultura que ela representa, que o colonizado identifica, em primeiro lugar, a impossibilidade intrínseca de mobilidade social no quadro do capitalismo que se vai instalando em sua terra. O sistema lhe acena com a promessa de ascensão ao preço de uma ruptura radical com a própria história e cultura, da renúncia a sua humanidade. Mas quando negocia essa humilhante opção, ele descobre, como diz Fanon, “que o racismo e o desprezo se mantêm”3. O colono nunca o aceita como 3

Frantz Fanon, Os condenados da terra (Lisboa, Ulisseia, s.d.), p. 46.

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igual, nunca lhe permite a paridade de estatuto e de oportunidades. O “assimilado”, diz Memmi em seu romance autobiográfico, perde sua unidade fundamental, deixa de se reconhecer e de ser reconhecido e procura-se em vão4. Em um ensaio seu, o autor é peremptório: na situação colonial, “a assimilação revelou-se impossível”5. O dualismo da sociedade é irredutível. A tomada de consciência da própria exploração como classe se esbate sob o manto sufocante e fatalista da exclusão racista. Essa contradição, muito mais que a condição de trabalhador explorado, separa-o dele próprio e impede o acesso ao usufruto das mercadorias e dos serviços que a sociedade “branca” ostenta diante de seus olhos. A libertação anticolonial é, antes de mais, a da condição de discriminado, e o nacionalismo africano esgota-se nessa conquista. Com a independência política, o colonizado resgata sua humanidade, mas não resolve a condição de dependente, de súdito, de explorado. A mobilidade social conquistada vai se realizar, com análogas dificuldades, no contexto desigual da ordem estrutural herdada. A debilidade das economias africanas no momento da independência política, os vínculos de subordinação às antigas metrópoles coloniais, a especificidade político-antropológica dos estratos sociais que podiam ser os motores da libertação econômica e uma conjuntura internacional desfavorável estão entre as causas mais evidentes da dificuldade histórica de transformar a natureza das relações de produção definidas pela ordem colonial. Alguns movimentos guerrilheiros que lutaram e derrotaram o colonialismo intuíram as limitações do combate travado e procuraram, em opções socialistas, converter a euforia da vitória numa tomada de consciência da condição de dependência. As elites revolucionárias não souberam, porém, interpretar de forma criativa a tarefa que tinham se proposto. Na linha do pensamento de esquerda dominante na época, fizeram uma leitura ortodoxa das categorias sociológicas e marxistas do Ocidente, sem aprofundar o estudo do modo de produção colonial e da forma como os trabalhadores se inseriam, estrutural e subjetivamente, no processo de produção de bens. Não menos importante para a pequena burguesia colonizada que ocupou os aparelhos estatal e político, revelou-se o fato de que as mordomias e os 4

Albert Memmi, A estátua de sal (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008), p. 50.

5

Idem, Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967), p. 108.

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padrões de consumo que tinham caraterizado a sociedade dos colonizadores se incorporavam simbolicamente na representação do poder que se construía nas novas nações. O projeto político desvinculou-se da realidade que pretendia transformar e naufragou em verbalismos demagógicos ou soluções populistas. Os grupos dirigentes perderam-se na ambiguidade das intenções ou nos próprios instintos de classe: uns acabaram soçobrando politicamente; outros, em nome do pragmatismo, renderam-se aos privilégios do poder e ao fascínio do consumismo.

Um colonialismo “desenvolvido” Todas as sociedades coloniais na África acabaram exprimindo especificidades dentro da matriz comum que caraterizava aquele sistema de dominação. Na África do Sul, a originalidade determinante terá sido o fato de, na primeira metade do século XX, o poder político ter sido apropriado diretamente pelo grupo de colonizadores mais enraizado no território, a nação afrikaner, que havia muito tinha deixado de se referir a uma metrópole europeia. Esse colonialismo interno permitiu que a política e a economia se estruturassem segundo uma agenda que respondia, no plano nacional e internacional, aos interesses das classes dos colonos – a base social do poder instituído – e não, como nas restantes possessões africanas, em diálogo subordinado com os desígnios imperiais das metrópoles. Os boer (da palavra holandesa para “camponês”), como são normalmente designados os afrikaner, sustentaram uma guerra sangrenta contra os interesses imperiais britânicos para defender a própria autonomia político-cultural e manter o controle das imensas riquezas do subsolo (das quais o ouro se tornou estrategicamente dominante) que viriam a constituir os fundamentos da acumulação do capitalismo nacional. Embora militarmente derrotada, a nação boer ganharia gradualmente ascendência política no contexto do modelo pluripartidário instituído para a comunidade branca e, respondendo de forma mais direta aos interesses e aspirações dos colonos, venceria as eleições de 1948. O caráter dual da sociedade, marca da dominação colonial, manifestou-se no país de forma institucional por meio de leis, normas, regulamentos e práticas que determinavam as relações entre as comunidades, definindo os campos da política, dos direitos humanos e da vida social, as relações

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com a riqueza do território, por meio da segregação econômica e do acesso diferenciado a bens e serviços e até a relação com a natureza, pela ocupação seletiva do território rural e urbano. O zelo de políticos e legisladores do apartheid teceu uma exaustiva rede de oposições que discriminavam o cotidiano das populações submetidas. A África do Sul, como já referido, é o único país africano onde o capitalismo colonial ganhou dinâmicas endógenas no quadro do imperialismo. As raízes do fenômeno remontam à revolução mineira da segunda metade do século XIX, quando começaram a ser explorados importantes depósitos de diamantes (1867) e de ouro (1886). A ação militar para a ocupação da totalidade do território às populações autóctones foi imediatamente desencadeada, após o que o império britânico se concentrou na dominação das repúblicas boer que tinha reconhecido na década de 1850. A guerra anglo-boer (1899-1902) colocou frente a frente, fato inédito na África, duas comunidades de colonizadores em luta pelo poder. Após a vitória, a Inglaterra criou quatro colônias. Logo em 1910, elas viriam a ser unificadas na União Sul-Africana e o governo, sempre em nome da Coroa, transferido para a comunidade branca residente. A soberania integral sobre o território seria outorgada aos colonos em 1931, consagrando um regime político de colonialismo interno. Com a indústria mineira, nasce na África do Sul o sistema de produção capitalista. Segundo Davis, O’Meara e Dlamini, é nesse setor que se implanta um sistema de exploração de trabalho assalariado em vasta escala, o qual, não obstante as baixas remunerações, amplia o mercado interno de mercadorias e cria as condições para o desenvolvimento capitalista na agricultura e na indústria de transformação. O escasso teor de ouro (uma onça para quatro toneladas de rocha), a dispersão das minas e a profundidade de extração tornam a atividade muito onerosa e estão no origem tanto do regime de exploração intensiva e coerciva da mão de obra como da rápida concentração de capital em poderosas corporações6. A política laboral ensaiada e teorizada nesse setor de atividade viria a reforçar a institucionalização do apartheid. A necessidade de mão de obra a baixo custo potencializa, em situação colonial, sua racialização. O governo sul-africano cria o regime de trabalho migratório com contratos de curto 6

Rob Davis, Dan O’Meara e Sipho Dlamini, The struggle for South Africa: a reference guide (Londres/New Jersey, Zed Books, 1988), p. 7-9.

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prazo, fazendo uso do argumento tipicamente colonialista de que o salário representava um complemento da economia doméstica do trabalhador africano, cuja família permaneceria ligada à produção agrícola de subsistência e para junto da qual ele regressaria após o término do compromisso contratual. Esse retorno era estimulado pelo fato de os trabalhadores viverem em “compounds” (acampamentos) onde não eram permitidas as famílias. Muito cedo, a Câmara das Minas (associação dos proprietários) começou a utilizar trabalhadores recrutados nos países vizinhos, tentando atenuar o impacto do trabalho assalariado e a pressão da urbanização na transformação da vida das populações africanas locais. A história do trabalho na África do Sul, é óbvio, tem implicações políticas e sociais que transcendem a argumentação antropológica. O dilema central dos racistas sul-africanos, especialmente depois da tomada do poder pelo Partido Nacional boer, é o de responder às necessidades do capitalismo interno em crescimento, evitando a proletarização e a urbanização de uma classe trabalhadora negra, o que comprometeria uma identidade fundada na tribo e as respetivas redes tradicionais de solidariedade. Para forçar a tribalização dos camponeses africanos, o Estado introduziu, em 1913, a Lei de Terras Indígenas (Native Land Regulation Act), pela qual se destinavam 8% da terra arável para produtores africanos que, nessas áreas, poderiam ser detentores de títulos de propriedade (a percentagem foi duas décadas mais tarde ampliada para 13%). A mesma lei determinava o número de famílias que podiam viver nas terras reservadas aos agricultores de ascendência europeia, como arrendatários desses colonos ou como mão de obra assalariada. Os restantes deviam ser reconduzidos às áreas a eles reservadas. Sob o olhar complacente das autoridades locais, os agricultores brancos iam contornando a aplicação rigorosa da medida em conformidade com as necessidades de mão de obra ou de renda proveniente das terras não aproveitadas. A participação da África do Sul na Primeira Guerra Mundial, tornando escassa a disponibilidade de trabalhadores brancos, levou as autoridades nacionais a abrandar o controle estrito da lei e, por volta de 1920, uma classe trabalhadora africana semiespecializada começava a fixar-se em algumas periferias urbanas. O governo, terminado o conflito, preocupou-se com a perspectiva da formação de um proletariado negro e tomou novas medidas restritivas para obstar à livre circulação dos africanos. A prática dos documentos controla-

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dores da livre circulação era comum desde os tempos da escravatura por meio de regulamentos locais. Como acenado, a conjuntura internacional e as necessidades do capitalismo em expansão fizeram com que a aplicação real dessas medidas obedecesse, de região para região, e até em conformidade com o setor produtivo, a critérios pragmáticos. Diante da crise econômica de 1929, os setores produtivos voltam a exercer pressão sobre o governo para permitir uso mais amplo de mão de obra a baixo custo (isto é, negra), com acesso a tarefas mais qualificadas. Logo depois, a África do Sul decide participar da Segunda Guerra Mundial. Ao esforço produtivo acrescido que a decisão pedia, juntava-se a mobilização de muitos milhares de brancos, com os consequentes efeitos na oferta de trabalhadores qualificados em todos os sectores produtivos. Em tempos de guerra, o recurso à imigração de operários europeus tornava-se difícil. Embora mantidas a divisão racial do trabalho (a colour bar) e a filosofia política que a norteava, o fim do conflito mundial veio encontrar um grande número de famílias africanas residindo nas periferias urbanas e com trabalho permanente. Desde 1920, a população negra periurbanizada duplicara. Na década de 1920, nasceu o movimento sindical africano, organizado na ICU (Industry and Commerce Worker’s Union of South Africa) e agregando também trabalhadores rurais. A crise de 1929 e medidas repressivas do regime levaram a sua extinção uma década mais tarde. Com a participação do Partido Comunista Sul-Africano, constitui-se nos anos de 1930 uma nova organização, o CNETU (Council of Non-European Trade Unions), que ganhou dimensão suficiente para proclamar em 1946 a primeira greve geral pela paridade salarial. Nas eleições para brancos que se sucederam ao fim da guerra, o Partido Nacional apresentava-se com um programa explicitamente racista, tendente, segundo seu slogan, a “pôr os africanos em seu lugar e os indianos fora do país”: preconizava o rígido controle da circulação de mão de obra negra e sua recolocação nas “reservas” como forma de assegurar força de trabalho para a agricultura em crise. Além disso, defendia, para esse setor, a fixação subsidiada de preços ao produtor, consolidando o apoio político dessa base eleitoral que havia décadas votava majoritariamente pelo United Party (um partido mais liberal e de influência britânica). A plataforma do Partido Nacional é a da institucionalização do desenvolvimento separado das raças (forma extremista do indirect rule britânico), que viria a ser conhecido pelo

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sistema do apartheid. A retumbante vitória eleitoral demonstra o quanto esse programa respondia aos interesses (e às angústias) dos colonos.

Os anos do apartheid institucional As medidas tendentes à “desproletarização” dos negros são imediatas. Logo em 1950, o governo racista publica o Popular Registration Act, pelo qual todos os habitantes do país são oficialmente registrados segundo a “raça”. Em 1951, é instituído o Bantu Authority Act, que cria as “homelands” ou bantustões (áreas reservadas para negros e da administração das quais participavam os chefes tradicionais), e são instituídos tribunais industriais com poderes para definir, em cada setor de atividade econômica, o nível de acesso dos trabalhadores “não brancos”. A partir de 1952, a “Natives (Abolition of Passes and Coordination of Documents) Law” institui, para todo o território, um documento único que substitui o conjunto de certidões e atestados que os homens africanos eram obrigados a transportar com ele, facilitando o controle nacional de sua circulação pela polícia. A Lei do Passe torna-se política do Estado. É contra a inclusão das mulheres na aplicação dessa lei, em 1960, que o ANC desencadeia a ação de desobediência civil que culminará no massacre de Sharpesville, em 16 de junho, data simbólica da resistência anti-apartheid. Em 1955, três milhões de negros são transferidos à força para as “homelands” de origem e remetidos à vida tribalizada. Grande parte da força de trabalho assalariada permanente era, assim, administrativamente reconvertida em mão de obra migratória. A década da institucionalização do apartheid é também a década do desenvolvimento do nacionalismo africano. O debate nacionalista tem na África do Sul grandes figuras, como Albert Luthuli, William Gumede, Yussuf Dadoo, Oliver Tambo, Nelson Mandela, Walter Sizulu, Joe Slovo, Winnie Mandela, entre muitos outros, que dialogam com ideias vindas do resto do continente, da diáspora americana, dos países de leste. É um período de difícil luta política e social e de grandes proclamações que marcarão o futuro do país. Os trabalhadores negros reorganizam-se. Em 1954, cria-se o South African Congress of Trade Unions (Sactu), no qual conflui o que resta do CNETU, e que em breve seria proibido, tornando-se clandestino. O ANC (African National Congress), que nascera em 1912 como o partido da pequena-burguesia negra, transforma-se em movimento de massas e, interdi-

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tado em 1960, reestrutura-se na ilegalidade em aliança com o Partido Comunista da África do Sul, proibido dez anos antes. A aliança ANC/PCAS/ Sactu radicaliza sua ação e cria, no ano seguinte, o uMkhonto we Sizwe, seu braço armado do qual Mandela foi um dos dirigentes. O esforço dos movimentos nacionalistas sul-africanos centra-se na criação e na consolidação de uma classe trabalhadora consciente de sua condição de explorada, na qual novos laços de solidariedade nasçam a partir das relações de produção e ultrapassem as afinidades étnicas. Contudo, as organizações laboristas brancas (que representavam em sua maioria esmagadora trabalhadores especializados e semiespecializados) recusam qualquer afinidade com os sindicatos negros, cujas reivindicações, em geral, são vistas como uma ameaça a seus privilégios. A barreira racial continua prevalecendo sobre a identidade de classe. De 1950 até aos finais de 1960, a indústria de produção de bens registra assinalável expansão. É o período da política da substituição de importações, expressão de estabilidade econômica conseguida pela fixação do preço internacional do ouro. Mas, como explica Gelb, em 1973, quando entra em colapso o sistema monetário acordado três décadas antes em Bretton Woods e instala-se a crise petrolífera, a política sul-africana de substituição de importações manifestava já os primeiros sintomas de esgotamento7. Como reflexo da consequente espiral inflacionária, verifica-se uma sucessão de greves dos trabalhadores africanos pressionando os salários. O movimento reivindicativo vai se politizando e a crise social se agrava, acompanhando a deterioração estrutural da economia. A indústria sul-africana não era competitiva no plano internacional: a produtividade era baixa e a tecnologia, ultrapassada. Crescia vertiginosamente a dependência das importações. No ano seguinte, inicia-se a transição para a independência das colônias portuguesas, com regimes saídos de guerrilhas vitoriosas, com políticas radicais e internacionalistas e comprometidos com a libertação total do continente. Angola e Moçambique tinham constituído, até então, a “barreira protetora” das fronteiras do apartheid e negros e brancos sul-africanos, com sentimentos antagônicos, acompanhavam atentamente a evolução dos acontecimentos. 7

Stephen Gelb, Inequality in South Africa: nature, causes and responses (Johannesburgo, The Edge Institute, 2003), p. 25.

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Quando ocorre, em 1976, a revolta dos estudantes em Soweto, sufocada em sangue, o nome de Samora Machel, herói da libertação de Moçambique, é cantado pelos jovens em revolta ao lado de Steve Biko, ícone das novas gerações urbanizadas na África do Sul. A indignação mundial pelo massacre dos jovens de Soweto alimenta o movimento internacional das sanções econômicas ao regime e encarece sua dependência do exterior. O governo boer ensaia então algumas reformas (a chamada política do petty-apartheid): acelera a “autonomia” dos bantustões, promove os serviços sociais para “não brancos”, em especial no campo da educação e do treino profissional, abranda o controle sobre o influxo de africanos para as cidades. Por pressão dos setores capitalistas nacionais, em busca de soluções para a crise, inicia-se um processo de gradual integração de mão de obra africana em níveis profissionais mais qualificados e remunerados. Segundo Stephen Gelb, já citado, a despesa social per capita com a população africana, que tinha se mantido durante muitos anos em 12% da despesa equivalente para a população branca, começa a subir. Em 1990, antes do processo de democratização nacional, atingiria os 28%8. Instala-se na sociedade uma desigualdade intrarracial que se acentuará de ano para ano. Embora a desigualdade entre raças permaneça dominante até a queda do apartheid, o fator classe social vai emergindo e corroendo laços de solidariedade que até então percorriam a identificação racial. Cresce claramente a incidência da ocupação profissional na aferição do fosso econômico e dos níveis de pobreza entre a população negra, e a tradicional sobreposição raça-classe começa a deslocar-se. A urbanização de estratos cada vez mais numerosos de africanos e a proletarização dos trabalhadores torna-se tendência irreversível. Uma burguesia de quadros qualificados e comerciantes toma forma no seio da comunidade negra.

A passagem para a sociedade democrática Sitiadas no plano interno e internacional, as classes aliadas no poder racista fazem novos esforços de sobrevivência. Para o capital, era patente que o apartheid, mesmo “reformado”, tornava-se inaceitável para o crescimento da economia na África do Sul. Entre outros motivos, a política do regime dificultava seu acesso ao mercado de capitais, com a consequente escassez 8

Ibidem, p. 13.

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de moeda forte e a necessidade de recorrer a fontes especulativas; os emergentes mercados africanos, mais sensíveis aos preços do que à qualidade dos produtos, eram economicamente atrativos, mas politicamente interditados; e, finalmente, a instabilidade social inflacionava o preço da mão de obra especializada com reflexos na produtividade, aumentando os custos de produção. Em 1989, verifica-se um acontecimento crucial e com repercussões que se prolongam até os nossos dias. Sob a direção da nova e poderosa central sindical que entretanto se constituíra, a Cosatu (Congresso dos Sindicatos da África do Sul, criado em 1985 e com quase de 2 milhões de aderentes), é lançada uma campanha contra o “Labour Relations Act”, a lei que regulava as relações de trabalho. O patronato tomou a iniciativa de propor aos sindicatos uma aliança tática, que foi aceita. Acordou-se uma plataforma de entendimento segundo a qual se reconheciam os direitos de ambas as partes e se exigia do governo a revisão da lei e a aceitação do princípio de que toda a futura legislação laboral teria de ser aceita pelas organizações dos trabalhadores e dos patrões. Nascia o triângulo de concertação trabalho-capital-Estado. Em 1993, já depois da democratização, o National Economic Forum consagraria o modelo tripartite de gestão das relações de trabalho. Quando o ANC, sob a liderança de Nelson Mandela, vence as eleições e toma o poder, é adotado, em 1994, o Reconstruction and Development Programme (RDP), no qual a política macroeconômica e a política financeira surgiram como aspetos complementares. O foco do documento incidia sobre a chamada ação afirmativa, a expansão dos serviços sociais, o investimento público em setores de uso intensivo de mão de obra (habitação e infraestruturas, principalmente), o incentivo ao investimento privado em áreas de apoio aos estratos mais desfavorecidos como forma de estimular a expansão do mercado interno etc. A produção deveria privilegiar a satisfação da demanda nacional. Para Mandela, as preocupações centrais eram a “desracialização” da sociedade e uma política econômica que, melhorando as condições de vida e de trabalho dos mais pobres, permitisse que essa transição se processasse sem perturbações da ordem pública. Arquiteto de um projeto de grandeza humana e de resgate da dignidade de seu povo, ele se concentrou no objetivo central que marcara sua geração, a supressão do estigma colonial. Se a eliminação da raça como fator de exclusão social era uma medida clássica (e indispensável) dos processos de descolonização no continente, a promoção

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paralela de uma distribuição mais justa da riqueza social correspondia à outra promessa importante da luta de libertação conduzida pelo ANC. A concretização da política anunciada pelo RDP implicava a reestruturação do capitalismo sul-africano, comprometia o domínio dos grandes conglomerados e preconizava uma maior intervenção estatal na economia. Mas os princípios defendidos pela liderança do ANC foram se diluindo, com a transformação individual de alguns de seus mais destacados dirigentes após a tomada do poder. Cyril Ramaphosa, o líder da Cosatu na luta anti-apartheid (que negociara o acordo tripartite de 1989), abandonou a política para criar um grande grupo econômico de “capitalismo negro”. Destacados militantes, como Tokyo Sexwale, Patrice Motsepe, Mosiuoa ”Terror” Lekota e tantos outros, beneficiaram-se dos cargos políticos que desempenharam para ingressar nas mais altas posições do mundo empresarial e financeiro ou para constituir suas próprias sociedades. Como em muitos outros países libertados da opressão colonial, também na África do Sul poder e riqueza se associaram rapidamente. O reconhecimento dos direitos de propriedade adquiridos durante o apartheid, justificados em grande medida com o argumento da necessidade de estabilidade política e social durante a transição, representou um dos principais obstáculos à transformação da economia sul-africana. Impediu, por um lado, a reforma agrária, deixando os camponeses africanos confinados às terras menos produtivas, e manteve incólume a estrutura e os centros de poder da economia capitalista herdada. Para o grande capital, o apoio dado ao processo de transição visava o acesso facilitado ao mercado de capitais e uma renovação tecnológica que modernizasse a produção e permitisse reduzir a força de trabalho, tornando-a competitiva no mercado internacional. Um acordo tácito foi estabelecido sob pressão das instituições financeiras internacionais: o ANC trocou a estabilidade macroeconômica exigida pelo grande capital pelo empoderamento econômico da burguesia africana. Para Thabo Mbeki, a quem Mandela entregou a direção da economia e que lhe sucederia como presidente, a globalização não é um fato político, mas, como afirmaria no discurso de abertura do Conselho Nacional Geral do ANC em 2000, “um resultado objetivo do desenvolvimento das forças produtivas para criar riqueza [....] e do impacto que nelas exercem os avanços na ciência, tecnologia e engenharia”. Com essa perspetiva tecnocrata, elabora sua estratégia econômica no quadro conjuntural liderado por FMI,

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Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio. Richard Calland, em seu livro Anatomy of South Africa, refere uma conversa tida pelo autor com um importante capitalista negro sul-africano, próximo do poder, que lhe explica a visão política do presidente. Segundo ele, Mbeki defendia a união das elites do país para evitar oposição ao processo de transição e promovia a formação de uma burguesia negra, armada de uma firme consciência de nacionalismo africano, embora sabendo “da inevitabilidade de sua acomodação com o capitalismo branco”9. Com efeito, logo em 1996 o RDP foi revisto e substituído por um novo programa, o Gear (Growth, Employment and Redistribution). A política macroeconômica é o ponto focal do novo programa. Aceita-se explicitamente o princípio de que a política social e de desenvolvimento setorial depende do crescimento global do capitalismo nacional. A redistribuição é tratada como processo à parte, financiada pelo resultado desse crescimento. A nova política privilegia a produção para exportação. Os resultados estatísticos da política neoliberal do Gear são elucidativos. Analisando as categorias sociais mais bem remuneradas (gestores, políticos, altos funcionários, profissionais e técnicos de elevada qualificação) segundo a classificação racial do apartheid, a porcentagem de brancos permanecia, em 2001, a mais expressiva (44%), seguida dos negros (41%), mestiços (9%) e indianos (7%). Seekings e Nattrass10 mostram como, após o Gear, potencializou-se a classe mais alta, a qual se desracializou, enquanto diminuiu o contingente da classe média (embora melhorando o nível de vida) e piorou o estrato mais baixo da população, constituído pela classe operária marginalizada, os desempregados em aumento e aquilo que os autores chamam de subclasse, isto é, aqueles estratos marginalizados e marginais cuja trajetória tendencial de vida conduz não à perspetiva de uma possível integração social, mas cada vez mais para “fora” da sociedade organizada. Todos esses estratos sociais permaneciam constituídos exclusivamente por negros. O fosso da desigualdade entre as classes dominantes e esse último setor da sociedade tem crescido desde 1996 e é mais crítico do que nos últimos anos do apartheid. 9

Richard Calland, Anatomy of South Africa: who holds the power? (Cape Town, Zebra Press, 2006), p. 268.

10

Jeremy Seekings e Nicoli Nattrass, Class, race and inequality in South Africa (Durban, University of Kwazulu-Natal Press, 2006), p. 337.

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Os últimos desenvolvimentos É nesse quadro de agravamento da desigualdade social, de frustração dos trabalhadores em relação às expectativas da democracia e de crescente crise social e política que se devem ler os desenvolvimentos políticos recentes na África do Sul e a humilhante derrota de Mbeki, no último congresso do ANC. À “desracialização” da sociedade colonial não correspondeu, como vimos, a melhoria das condições de vida material a que as populações aspiravam. No campo, o reconhecimento dos direitos de propriedade adquiridos no regime do apartheid impediu o acesso dos camponeses africanos à terra. A política estatal exigia a compartipação dos camponeses na compra, o que, para estes, tornava incomportável a aquisição de propriedade rural. Segundo o relatório de 2003 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano, existiam então cerca de 69 mil pedidos de concessão de terra, mas apenas cerca de 3% do total da terra arável da África do Sul tinham sido transferidos. Para a satisfação de todos os pedidos até aquela data, e para cumprir a promessa de ajuda, o Estado teria de gastar ainda 31 trilhões de rands, cerca de 4,5 trilhões de dólares ao câmbio da época, não previstos no orçamento de despesas. Livres do estigma racial, dos obstáculos jurídicos à mobilidade social e das restrições de circulação, as classes trabalhadoras urbanizadas ou periurbanizadas defrontaram-se com o espectro do desemprego e da marginalização dos benefícios da modernidade. Em 2002, regista Patrick Bond, o desemprego atingiu 45% da força de trabalho, o mais elevado índice da história da África do Sul11. A tomada de consciência do processo econômico de exclusão deixa de estar coberta pela capa da discriminação racial. As greves, organizadas e espontâneas, ressurgem como instrumento de luta dos trabalhadores. Os sindicatos, parte na tripla aliança anti-apartheid (ANC, PCAS e Cosatu), que tinham dado um voto de confiança ao governo nas duas primeiras eleições democráticas, começam a distanciar-se da linha insofismavelmente neoliberal perseguida pelo Executivo. Em seus documentos, criticam a interpretação de alguns princípios sobre os quais fundaram esse voto de confiança: o empoderamento (africanização do poder e controle da economia) é, para os 11

Patrick Bond, Unsustainable South Africa (Londres, Merlin Press, 2002), p. 6.

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sindicatos, social e não individual; o Estado deve manter-se forte e intervir na transformação da economia; os serviços sociais e as políticas distributivas devem prevalecer sobre o enfoque macreconômico etc. A luta política desloca-se para o interior do ANC. A demissão, em 2005, de Jacob Zuma, vice-presidente da República e figura carismática da luta armada de libertação, sob alegação de corrupção, é entendida pelas massas populares e a base do ANC como uma manipulação do poder para afastar um dirigente crítico à estratégia econômica seguida pelo Executivo. Com efeito, Mbeki havia ordenado aos serviços secretos uma vasculha minuciosa da vida privada de seu vice e os fatos alegados foram passados imediatamente à grande mídia, pública e privada, que os publicou com grande destaque e sensacionalismo. Em 2004 e 2005, a ação da imprensa foi devastadora, mas a população de baixa renda recebeu-a como uma campanha política e identificou em Zuma seu líder. No Congresso do ANC de dezembro de 2007, em Polokwane, Jacob Zuma derrotou claramente Thabo Mbeki e foi eleito presidente do partido com o apoio dos sindicatos, organizações da juventude e da mulher, da maioria dos comitês de base e dos comunistas. Mbeki e a vice-presidente, Mlambo-Ngcuka, renunciaram aos cargos e o ANC indicou Kgamela Montlanthe, segunda figura da ala vencedora, como presidente interino até as eleições gerais. Um grupo de importantes personalidades partidárias da linha político-econômica de Mbeki abandonou o ANC e constituiu, em desafio à liderança de Zuma, um novo partido, o Congress of the People (Cope).

Conclusão Ninguém está em condições de prever os desenvolvimentos político-econômicos da África do Sul nos próximos anos. A experiência africana é fértil em exemplos de elites representativas das forças sociais nacionalistas que, uma vez no poder, sucumbem à sedução das mordomias e das oportunidades individuais que sua posição lhes proporciona. Mas, indiscutivelmente, o processo político, social e econômico desse grande país (que a globalização transformou em plataforma continental de seu projeto hegemônico) representa um caso de estudo privilegiado de muitas questões vitais para a interpretação da tragédia que assola o continente. Em nenhuma outra colônia do continente é tão evidente a relação entre raça e classe, entre política colonial e desenvolvimento capitalista. Em nenhu-

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ma outra nação africana como na África do Sul, a identidade de classe das massas assalariadas dá indícios de poder prevalecer sobre a consciência racial dos negros. Em nenhum outro país do continente, o embrião do conflito de classe intrarracial foi tão evidente e marcante. O percurso da África do Sul segregada e seus desdobramentos pós-apartheid são indicativos do insucesso da opção capitalista na resolução das feridas abertas pelo colonialismo. A aplicação do modelo neoliberal agravou, apesar da libertação política e da riqueza do país, as desigualdades sociais que a ordem racista institucionalizou. Os conflitos ganham contornos de confrontação entre as classes sociais, independentemente do fator raça. O debate em curso anuncia uma política que parece voltar ao programa RDP dos dois primeiros anos de governança democrática. O sucesso ou o fracasso da nova elite dirigente dependerá dos interesses de classe que constituírem as prioridades de sua ação e da maior ou menor capacidade, por parte da liderança, de interpretar e de saber dialogar com os anseios das duas Africas que continuam a coexistir, aquela em que prevalecem valores “tradicionais” e a que se rege pelos parâmetros da modernidade, as quais, parafraseando Ayittey, operam por princípios e lógicas diferentes12.

12

George Ayittey, Africa in chaos (Nova York, St. Martin’s Griffin, 1999), p. 14.

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4 O SOCIALISMO APÓS O DESMANCHE

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REENCONTRANDO O COMUNISMO DA EMANCIPAÇÃO Álvaro Bianchi

Se levarmos a sério revistas e suplementos culturais de jornais diários – e por que não fazê-lo? –, um espectro ronda o mundo: o espectro do comunismo. Na América Latina, fala-se sem constrangimentos a respeito do “socialismo do século XXI” e discute-se acaloradamente a respeito da existência ou inexistência de processos de transformação social no continente. A conjuntura política europeia certamente não é a mesma, mas isso não impede que, sob várias fórmulas, a própria ideia de comunismo esteja sendo retomada: Antonio Negri escreveu sobre o “comunismo da imanência”, Alain Badiou tratou da “hipótese comunista”, Slavoj Žižek fala da “reabilitação do comunismo”. É de se convir: essa desenvoltura toda seria inimaginável alguns anos atrás. Pois o socialismo e o comunismo não haviam sido definitivamente derrotados pelo liberalismo? A queda do Muro de Berlim não havia sepultado definitivamente as utopias? O que significa, então, esse resgate? Trata-se de um gesto desesperado que revela mais a impotência de seu sujeito que sua força? Sim, para alguns não passa disso mesmo. Quando, nos capítulos finais de seu livro De quoi Sarkozy est-il le nom?, Alain Badiou relança aquilo que chama de “hipótese comunista”, ele está pensando em uma reação ao que considera uma derrota. Mas então por que esse grito encontra eco e reverbera? O espaço em que esse grito é ouvido é aquele criado pela crise do neoliberalismo. Que o neoliberalismo como ideologia esteja em crise é algo que seus próprios defensores afirmam depois do colapso dos mercados financeiros. Não é mera coincidência o fato de o Prêmio Nobel de Economia ter sido dedicado, em 2008, a Paul Krugman, um dos mais ácidos críticos da desregulamentação dos mercados. Paradoxalmente, o desmanche das formas históricas que as ideias do socialismo e do comunismo haviam adquirido, respectivamente a

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social-democracia e o stalinismo, foi sucedido pelo desmanche da forma histórica que o liberalismo assumiu. É, pois, em um espaço vazio de ideias que o “socialismo do século XXI” e o “comunismo” repercutem. Um espaço vazio porque ainda não foi preenchido por ideias capazes de expandir-se e ocupar todos os lugares. Não faltam ideias com alcance universal para tal, mas faltam aquelas que tenham assumido a força material para isso. Entretanto, a situação é favorável ao desenvolvimento da teoria para aqueles que não têm saudades das formas históricas que viraram pó e das ideias que não deixavam ninguém pensar. Para socialistas/comunistas que recusam as formas históricas da social-democracia e do stalinismo, a estrada parece livre. Pode-se, agora, criticar abertamente o liberalismo sem correr o risco da marginalidade política ou intelectual. Pode-se, agora, discutir livremente sobre o socialismo e o comunismo, sem que argumentos de autoridade ou autoridades sem argumentos interrompam o debate. Pode-se, assim, retomar em condições favoráveis para a crítica uma questão primeira: o que é o socialismo/comunismo hoje? A resposta de Alain Badiou a essa pergunta é simples e clara e pode ajudar, por meio de um diálogo crítico, a investigar esses conceitos após o desmanche. Para o filósofo francês, a “hipótese comunista” estaria assentada no Manifesto comunista*, de Marx e Engels, e afirmaria as seguintes ideias-chave: • que é possível superar a subordinação do trabalho a uma classe dominante; • que é possível uma organização coletiva que elimine a desigualdade na distribuição de riquezas e a divisão do trabalho; • que é possível que a apropriação privada desapareça como forma de organização social; • que é possível superar a existência de um Estado coercitivo separado da sociedade civil1. O comunismo seria, assim, uma ideia reguladora capaz de orientar uma prática social, um modelo intelectual sempre renovado. Na prática social, essa ideia invariante assumiria suas diferentes formas. Fazer a história da hipótese comunista seria, assim, reconstruir as diversas formas que essa ideia *

São Paulo, Boitempo, 1998. (N. E.)

1

Alain Badiou, De quoi Sarkozy est-il le nom? (Paris, Lignes, 2007), p. 131.

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reguladora assumiu com o passar do tempo. Na era moderna, essa hipótese teria assumido duas formas nitidamente demarcadas. Na primeira, vigente entre a Revolução Francesa e a Comuna de Paris, portanto entre 1792 e 1871 aproximadamente, ocorreu o estabelecimento da hipótese comunista e esta assumiu o perfil de um movimento que esteve cada vez mais sob a direção da classe operária2. A segunda dessas formas teve lugar entre a revolução bolchevique e a Revolução Cultural chinesa e foi marcada pela realização dessa hipótese e pelo perfil de partido que ela assumiu. Segundo Badiou, a segunda forma teria dado conta dos problemas evidenciados pela primeira. Na Comuna de Paris, a forma movimento deixou evidentes seus limites. Os communards não conseguiram criar um poder estável nem estender a revolução a toda a França. Não foram nem sequer capazes de defender Paris quando esta foi assediada pelas forças da contrarrevolução. A forma partido, por sua vez, teria realizado aquilo que o século XIX havia sonhado. Mostrou-se eficiente para conduzir a revolução à vitória e mostrou ser capaz não apenas de construir um poder estável, como também de defender esse poder do assédio inimigo3. Para Badiou, uma primeira característica do século XX foi sua paixão pelo real: “O século XIX anunciou, sonhou, prometeu; o século XX declarou que ele fazia, aqui e agora”4. A forma partido teria sido um dos instrumentos privilegiados dessa realização dos sonhos. No entanto, a nova forma partido trouxe novos problemas consigo. Foi capaz de conduzir a revolução à vitória e transformar o sonho em realidade. Foi uma máquina de guerra eficaz em um século cuja outra característica é a guerra, as guerras ferozes que o marcaram, mas também a semântica da guerra que organizou os discursos a partir dos quais o século se pensou5. Mas essa nova forma da hipótese comunista não teria sido capaz de construir aquilo que Marx denominou “ditadura do proletariado”, um Estado transitório que organizava sua própria extinção. O resultado foi uma nova forma de autoritarismo e burocratismo que se expressou na prolongada crise daqueles países nos quais primeiramente a hipótese comunista teria se realizado. 2

Ibidem, p. 139-41.

3

Ibidem, p. 141-5.

4

Idem, O século (Aparecida, Ideias e Letras, 2007), p. 58; ver também De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 143.

5

Ibidem, p. 60-1.

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O argumento de Badiou, apesar de simples e claro, deve ser compreendido no complexo contexto metapolítico definido por ele. De fato, o filósofo francês recorreu a duas estratégias diferentes em seu pequeno livro. Na primeira, ele procura compreender aquilo que é e pergunta-se a respeito: “De quoi Sarkozy est-il le nom?”. A perspectiva de Badiou é vincada pela antropologia do nome de Sylvain Lazarus6. Para este, o nome é o real, é aquilo que é pensado no pensamento e não deve ser objetivado por uma definição ou referente. O nome não pode ser nomeado. Por isso, não tem uma definição e a historicidade pura de sua singularidade, ou seja, aquilo que seria apreendido pela definição, permanece impensável. A singularidade do nome seria apenas apreendida em seus lugares, ou seja, pela materialidade das prescrições que permitiriam localizá-lo numa multiplicidade homogênea. Assim, o nome “política revolucionária” entre 1792 e 1796 poderia ser apreendido em sua singularidade nos debates da Convenção, nas sociedades sans-cullotes e no Exército do ano II7. Apreender o nome naquilo que ele indica em sua singularidade é, assim, descrever os lugares que permitem localizá-lo em uma multiplicidade homogênea. Para Badiou e Lazarus, a multiplicidade homogênea dos lugares é coextensiva à natureza prescritiva do nome. Assim, quando o lugar deixa de existir, o modo político daquilo que é nomeado também cessa. “Por exemplo, desde que os sovietes, que são um dos lugares da política bolchevique, desapareceram (logo, desde o outono de 1917), o modo político bolchevique, do qual Lenin nomeia o pensamento, deixa de existir”8. Ai está a razão por que Badiou não pôde escolher como estratégia investigar aquilo a que o comunismo dá o nome. Se fizesse isso, seria levado a concluir que: a) o comunismo cessou de existir e que isso aconteceu muito antes de 1989; ou b) o comunismo poderia ser apreendido em sua singularidade nos processos de Moscou e no gulag soviético, na perseguição aos intelectuais durante a Revolução Cultural chinesa, nos massacres promovidos pelo Khmer Vermelho, na execução do general Arnaldo Ochoa, em Cuba.

6

Sylvain Lazarus, Anthropologie du nom (Paris, Seuil, 1996).

7

Alain Badiou, Compêndio de metapolítica (Lisboa, Instituto Piaget, 1999), p. 44 e 47.

8

Ibidem, p. 49.

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“Um se divide em dois”, escreveu Badiou9, recordando e levando a sério uma daquelas banalidades filosóficas de Mao Tsé-tung que encantaram jovens franceses. Esse filosofema expressa um antagonismo não dialético que se resolve sem a superação interna da contradição pela supressão de um dos dois termos. Para concluir que o comunismo cessou de existir muito antes de 1989, Badiou deveria identificar no stalinismo (em todas as suas variantes) o antagonista não dialético do comunismo, o stalinismo como o simples cancelamento do comunismo. Mas Badiou foi um francês maoista e, embora tenha se distanciado de suas origens, nunca rompeu explicitamente com elas e isso o impede de chegar a esse ponto. “Dois se fundem em um”, diziam os opositores de Mao na “grande luta de classes no campo da filosofia”, para expressar a síntese dos termos contraditórios nessa simplória dialética. Para concluir que o comunismo pode ser apreendido em sua singularidade pelo gulag, os termos contraditórios comunismo e stalinismo deveriam ser fundidos em uma nova síntese. Mas Badiou foi um sofisticado maoista francês e isso o impede de chegar a esse ponto. É verdade, como muitos franceses de sua geração, sua querida geração marcada pelos eventos de 1968 que para Lazarus representam uma coupure, Badiou foi maoista. Sob vários aspectos, o maoismo francês é completamente singular, pois incorpora vários elementos da cultura política e intelectual desse país: ele contemplou uma recusa ao stalinismo soviético que ia muito além do próprio Mao Tsé-tung e que repercutiu a crescente ruptura da juventude com o Partido Comunista Francês; encontrou na Revolução Cultural uma crítica à divisão do trabalho similar àquela que intelectuais como André Gorz haviam produzido; enfatizou a crítica ao “primado das forças produtivas”, traduzindo em termos voluntaristas a recusa althusseriana ao economicismo; procurou “ir ao povo”, do mesmo modo como os prêtres-ouvriers haviam feito logo após a Segunda Guerra. Mas, em sua singularidade, esse maoismo francês não deixou de reproduzir as linhas essenciais da linha chinesa. O próprio Badiou, também é verdade, espelhou, embora não sem ingênuo incômodo, a apologética que caracterizou esse movimento. Assim, em 1976, escreveu em sua Théorie de la contradiction, sob o impacto da Revolução Cultural chinesa, que “apenas o empreendimento maoista desenvolve 9

Idem, De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 99-100.

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integralmente o que os proletários fazem e nos permite reconhecer o incondicional e permanente caráter de sua revolta”10. Essa ideia Badiou nunca renegou. Ainda em 2002, ele escrevia: “O livrinho vermelho de Mao foi nosso guia, não como dizem as marionetes, como um catecismo dogmático, mas, pelo contrário, na medida em nos permitia esclarecer e intervir de novos modos em todo tipo de situações disparatadas que eram desconhecidas para nós”11. O fracasso da Revolução Cultural teve efeitos avassaladores sobre a extrema-esquerda francesa. Badiou refletiu profundamente sobre esses efeitos e sobre a própria Revolução Cultural. Notável é, sobre essa perspectiva, sua conferência de 2002 a esse respeito e a conclusão a que chega: a Revolução Cultural foi uma “experiência política que saturou a forma do partido-Estado” e “a última sequência política significativa que é ainda interna ao partido-Estado”12. O fracasso da Revolução Cultural teria, segundo o filósofo francês, evidenciado a impossibilidade de libertar a política dos estreitos quadros do partido-Estado que a aprisionavam13. Dessa experiência, Badiou chegou a uma conclusão de alcance supostamente universal: a política emancipatória deve emancipar-se do modelo do partido, deve ser política sem partido. A crítica aos limites da Revolução Cultural assumia assim a forma da crítica de toda representação e a defesa de uma política sem representação. Mas esta última é uma conclusão à qual é possível chegar a partir do balanço a respeito do fracasso da Revolução Cultural? É possível identificar a incapacidade de autorreforma do partido-Estado-Exército, ou seja, do partido burocrático, com a incapacidade de todo partido de conduzir um processo revolucionário. Esse é um claro limite das conclusões postas por Badiou. A aposta da Revolução Cultural foi sempre uma aposta na capacidade de Mao Tsé-tung de enfrentar a burocracia do partido. Mas Mao Tsé-tung era parte da própria burocracia que dizia enfrentar. O culto à personalidade denunciado por Badiou14 nunca foi um acidente, um desvio, ou um limite da Revolução 10

Idem, Théorie de la contradiction (Paris, François Maspero, 1976), p. 22.

11

Idem, La Révolution Culturelle: la dernière révolution? (Paris, Les Conférences du Rouge-Gorge, 2002), p. 4.

12

Ibidem; ver também De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 102.

13

Idem, La Révolution Culturelle, cit., p. 29.

14

Ibidem, p. 26-9.

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Cultural. Era uma parte inalienável dela própria, era a afirmação de sua personificação. Consternado, Badiou concluiu quase trinta anos depois de ver sua aposta fracassar: pode-se sustentar que “Mao” é um nome intrinsecamente contraditório no campo da política revolucionária. Por um lado, é o nome supremo do partido-Estado, seu presidente incontestável, aquele que detém, como chefe militar e fundador do regime, a legitimidade histórica do partido comunista. Por outro lado, “Mao” é o nome daquilo que no partido não é redutível à burocracia de Estado.15

Haverá de fato contradição nesses lugares distintos dos quais Mao Tsé-tung é o nome? O enunciado da contradição pressupõe que a burocracia só encontrava seu espaço na administração direta do Estado. Mas o próprio Badiou em seu relato identifica outros espaços. Há o Exército, o lugar do qual Lin Biao era o nome e que foi usado por este para impedir em agosto de 1966 que os membros do Comitê Central do Partido Comunista Chinês que se opunham a Mao Tsé-tung participassem da reunião, episódio narrado candidamente por Badiou, sem se dar conta de que revela o caráter antidemocrático do PCC e do próprio Mao Tsé-tung16. Há os sindicatos operários, que, liderados por velhos quadros, enfrentaram os Guardas Vermelhos em Xangai, em 1966, e lançaram um movimento grevista que o filósofo francês não deixa de lamentar, em razão de suas “demandas setoriais de natureza puramente econômica”17. E há ainda a burocracia do partido (ou pelo menos de uma parte deste), que não pode ser identificado de modo absoluto com o Estado e cujo nome é Grupo de Revolução Cultural do Comitê Central, uma dúzia de pessoas lideradas por Mao Tsé-tung, segundo Badiou, com o objetivo de “inspirar aos adversários um medo durável, de modo a preservar o quadro geral do exercício do poder que continuava a ser a seus olhos o partido único”18. Não interessa aqui discutir se a Revolução Cultural pode ser resumida a um choque de burocracias. O filósofo francês rejeita veementemente esse argumento, mas não deixa de afirmar que o conflito do qual Revolução 15

Badiou, 2004, p. 28.

16

Idem, La Révolution Culturelle, cit., p. 11 e 31.

17

Ibidem, p. 18.

18

Ibidem, p. 20-1.

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Cultural é o nome teve lugar no interior do partido. É essa sua tese e é por isso que chega às conclusões que já foram expostas aqui. O espaço, então, é o partido. Mas quais são forças sociais dessa estranha revolução? Sim, é isso que falta nomear! Quais são, afinal, os sujeitos da emancipação? Estes não são nunca nomeados nem dão nome a ninguém. São o nada. Tendo afirmado com Althusser que a estrutura não tem sujeito, Badiou termina por chegar à conclusão de que a subjetividade não tem sujeito. Pode-se brincar com as palavras e repetir o bordão althusseriano, afirmando que esse claro limite da abordagem de Badiou é o efeito de um obstáculo epistemológico. De fato, o filósofo francês tem uma sofisticada teoria do sujeito. A importância da crítica althusseriana à “problemática do sujeito” não deve ser menosprezada. De várias maneiras, ela permitiu romper com uma concepção do sujeito ao mesmo tempo essencialista, naturalista e teleológica. Badiou desenvolveu essa crítica na afirmação de que o sujeito “está na dependência de um acontecimento e só se constitui como capacidade de verdade, de modo que sendo sua ‘matéria’ procedimento de verdade, ou procedimento genérico, o sujeito não é de maneira alguma naturalizável”19. O evento é um acontecimento sem passado, e sem futuro, que encontra seu lugar em uma situação sem ser definido ou previsto por meio dela. O sujeito que está na dependência desse evento é intermitente, depende de um evento, começa e acaba20. Daí não poder existir para ele um sujeito da revolução, do comunismo ou da emancipação. Cada evento encontra seu próprio sujeito. O problema está justamente nessa intermitência do sujeito, que não é senão a intermitência da própria historie événementielle. Louis Althusser havia percebido muito bem que a expulsão do sujeito do âmbito da estrutura exigia a recusa da história. Badiou procurou reconciliar subjetividade e história, mas para tal recorreu ao evento para expurgar destas toda memória e experiência. Por essa razão, o sujeito de Badiou está condenado a fracassar. Ele é recriado a todo momento a partir do ponto zero por um evento sem conexão com os eventos precedentes. Esse sujeito é, por isso, indiferente às derrotas e às vitórias dos movimentos de emancipação ao longo dos séculos XIX e XX. Não tem suas memórias, não adquiriu suas experiências. É por 19

Idem, O século, cit., p. 156.

20

Badiou, 1996.

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isso que o mais eventual dos sujeitos, um indivíduo, isto é, Mao Tsé-tung, pôde aparecer como o demiurgo. Moisés teria conduzido o povo de Israel através do Egito em direção a Canaã, a terra prometida por Deus a Abraão. A longa marcha liderada por Mao Tsé-tung não ficaria nada a dever a essa façanha. Para Badiou: “Mao certamente fez um serviço infinitamente maior para seu povo, o qual libertou simultaneamente da invasão japonesa, do colonialismo desenfreado das potências ‘ocidentais’, do feudalismo no interior do país e da pilhagem pré-capitalista”21. Uma ruptura radical com o stalinismo e todas as suas formas (e não apenas a soviética) exige encontrar esse sujeito perdido do comunismo. O filósofo francês critica a articulação do sujeito sobre transcendências coletivas universalizáveis – para os stalinistas, classe operária e partido; para os fascistas, raça e nação. Com base no poder de Estado, o stalinismo teria substituído os processos políticos reais por tais entidades coletivas transcendentais22. Mas o que o stalinismo substituiu foi justamente a classe operária e o partido pelo poder do Estado. Os obstáculos que Badiou enfrenta não são apenas de ordem epistemológica, são também de ordem política. Sua fidelidade ao maoismo o impede de levar a cabo uma crítica radical desse substitucionismo. Badiou reconhece que o culto à personalidade expressa um processo de substituição política no qual o partido se autonomeia representante da classe operária, fonte hegemônica da política e única garantia da verdade. A seguir, uma pessoa assume o papel de fiador da verdade sob a forma clássica do gênio, que encarna a capacidade representativa do partido. Mas, para Badiou, o caso de Mao Tsé-tung seria diferente: ele não teria substituído a classe operária e o partido, porque sua luta teria tido lugar no próprio partido. Assim, em vez de ser o chefe absoluto do partido real, Mao Tsé-tung seria, “para a massa de revolucionários”, a “encarnação, somente ele, de um partido ainda por vir. Ele é como uma revanche da singularidade sobre a representação”23. Em sua cruzada contra a representação, Badiou comemora o fato de esta ter sido usurpada em nome do futuro por um único indivíduo. Impossibilitado de chegar à crítica radical do stalinismo, Badiou precisou abandonar sua estratégia argumentativa inicial. Para definir o que é o 21

Idem, La Révolution Culturelle, cit., p. 27.

22

Idem, De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 159.

23

Idem, La Révolution Culturelle, cit., p. 28.

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comunismo seria necessário dizer o que ele nunca foi, seria necessário nomear sua radical negação. Mas em vez de interrogar-se a respeito daquilo a que o comunismo dá o nome, ou seja, em vez de definir aquilo que o comunismo é, o filósofo francês apresentou uma segunda estratégia: definir o comunismo como aquilo que deveria ser. Para tal, recorreu a uma ideia reguladora: o comunismo é uma hipótese. O risco é evidente. Badiou rejeita explicitamente que sua hipótese comunista seja um programa. Sua recusa a inscrever um projeto político na história leva-o a recusar todo programa sociopolítico. A política de emancipação não deveria ter partido nem programa, se não quiser se confundir novamente com o Estado. Daí essa política poder ser traduzida sob a forma de prescrições tais como as que se encontram resumidas em sua “hipótese comunista”. Aquilo que nela é afirmado como um conjunto de possíveis é traduzido em enunciados prescritivos incondicionais pelos quais vale a pena lutar. Badiou propõe agora uma nova prescrição, unidade performativa que poderia traduzir a hipótese comunista nos dias atuais: “Não há mais que um mundo”24. Separar a política do Estado deve ser, para o filósofo francês, o fundamento de toda política. Para fazer isso seria necessário negar toda ideia de partido e de representação. Mas é de se perguntar o que fica da política quando são suprimidos os partidos políticos25. Qual é a possibilidade de as prescrições se transformarem em uma força material? Badiou sabe que sua opção está a um passo de confundir-se com a negação da política e o anarquismo, o qual considera que “nunca foi nada mais do que uma crítica vã”26. Mas não são os anarquistas que ele encontra nesse caminho. Ao definir o comunismo como uma ideia reguladora, o filósofo francês aproximou-se perigosamente de Kant e daquela filosofia política que quer recusar27. Pois ao definir a hipótese comunista como uma ideia reguladora, não está ele também se colocando na posição do filósofo que determina de modo abstrato os princípios da boa política? As prescrições de Badiou contrapõem-se claramente à preguiçosa política parlamentar da social-democracia e do stalinismo. Mas isso não basta. É evidente que a prescrição de que “não 24

Idem, De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 71.

25

Daniel Bensaïd, Résistances: essai de taupologie générale (Paris, Fayard, 2001), p. 157-8.

26

Alain Badiou, La Révolution Culturelle, cit., p. 29.

27

Idem, Compêndio de metapolítica, cit., p. 21-37.

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há mais que um mundo” tem “a forma dogmática de comandos religiosos” e, como tal, não necessita ser confrontada com a prática28. Ela permite manter as mãos limpas, mas não permite muito mais que isso. A definição da hipótese comunista como uma ideia reguladora não pode ser considerada suficiente. Se é verdade que o comunismo tem uma dimensão que permite ao olhar projetar-se sobre o futuro definindo o que ele deveria ser, não pode ser esquecido que o comunismo foi também um movimento e um programa político inscritos na trágica história do século XX. É verdade que, para Lazarus29, o nome não tem história e a própria categoria do tempo deveria ser recusada. Nesse ponto, Lazarus, assim como Badiou, revela a influência de seu querido Althusser, para quem a filosofia não tinha história. Mas é justamente essa recusa que os impede de avaliar politicamente a história do comunismo. Pois o comunismo deu nome ao movimento de emancipação dos trabalhadores, à Comuna de Paris, à Revolução Russa, à Revolução Chinesa e à Internacional. Mas a capacidade de nomear da palavra “comunismo” foi afetada pelo stalinismo; a relação entre o nome e o real que ela nomeava foi desfeita. Nada mais distante do real do que chamar o resultado histórico do stalinismo de “socialismo real”, pois era justamente a irrealidade desse socialismo aquilo que esse nome nomeava. Comunismo, então, passou a designar aparelhos burocráticos de sujeição dos trabalhadores, assassinato de militantes revolucionários na União Soviética, perseguição dos intelectuais na China. Sim, o ato de nomear é um momento da luta de classes que tem lugar na história. O nome tem história, assim como aquilo que é nomeado. É preciso, pois, distinguir historicamente aquilo que dá o nome à emancipação e aquilo que dá o nome à sujeição, aquilo que dá o nome ao movimento revolucionário das classes trabalhadoras e aquilo que é nomeado por Stalin, Tito, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Ho Chi Minh ou Fidel Castro. E é preciso marcar a profunda descontinuidade que há entre essas duas coisas. Se quisermos distingui-las de maneira precisa será preciso ir além daquelas ideias-chave às quais Badiou fez referência em sua definição da hipótese comunista – superação da subordinação do trabalho, da desigualdade, da apropriação privada e do Estado coercitivo separado da sociedade civil. Pois 28

Daniel Bensaïd, Résistances, cit., p. 164.

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Sylvain Lazarus, Anthropologie du nom, cit.

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foi dizendo agir em nome delas que o stalinismo procurou sua legitimidade. Será preciso ir além da política performativa que se satisfaz com abstratas prescrições. E para tal precisaremos encontrar os agentes sociais dessa superação. Os agentes da emancipação só podem ser aqueles que se emancipam. Um comunismo da emancipação, por oposição a uma política da sujeição, é um comunismo da autoemancipação. A autoemancipação implica ação autônoma dos sujeitos dessa emancipação. Inerente a essa ideia é a rejeição de toda substituição política ou social desses sujeitos por sujeitos outros que não aqueles que devem se emancipar. Esse sujeito da emancipação tem seu lugar na história. Sua emancipação se dá em nome de um passado que ele quer vingar, de um presente que o oprime e de um futuro que ele deseja. Mas isso só é possível na medida em que acumulou experiências e com base nelas construiu um identidade que lhe permite reconhecer a si próprio, reconhecer seus iguais e também distinguir seus inimigos. Essa não é uma ideia incompatível com todas as formas de partido ou de representação. Mas é incompatível com aquelas formas nas quais representantes e representados se encontram em uma relação de exterioridade. Para compatibilizar a ideia de representação com a ideia de autoemancipação é preciso concebê-la como autorrepresentação, ou seja, o sujeito deve representar a si próprio e os representantes não devem ser algo estranho àquilo que é representado, mas devem ser suas partes integrantes. No mesmo sentido, a organização política da autoemancipação deve ser concebida como auto-organização, ou seja, uma organização que, embora não se identifique com a totalidade do sujeito, é por ele criada a partir de suas experiências históricas. Como se pode ver, não há muito que inventar. Trata-se, na verdade, de reencontrar o comunismo da emancipação, de emancipar as próprias ideias do socialismo e do comunismo da prisão a que foram condenadas pela social-democracia e pelo stalinismo. Nessa busca, o pior caminho é aquele que identifica a história com um nome próprio. O melhor caminho é ainda aquele que a identifica com a experiência das revoluções nas quais a autoemancipação e a auto-organização deixaram de ser prescrições para tornar-se práticas sociais.

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POLÍTICA COMO PRÁXIS: HEGEMONIA ÀS AVESSAS, UM EXERCÍCIO TEÓRICO Wolfgang Leo Maar

1. O que me atraiu para a presente investigação do Cenedic – integrante tardio que sou – foi a possibilidade de pensar a sociedade a partir de sua reprodução concreta, ou seja, em seu dinamismo real e não abstrato. O que a ideia da hegemonia às avessas propõe, o que constitui seu núcleo conceitual, é pôr no centro das preocupações a práxis e não o sujeito da práxis. É claro que a ideia do sujeito da práxis também é posta, pois, afinal, o sujeito faz parte da práxis, embora não em uma relação de exterioridade, mas num nexo indissolúvel de pertencimento e participação. Aqui, penso basicamente na transformação teórica decisiva presente, sobretudo, na oitava das Teses sobre Feuerbach, conforme a síntese magistral de Marx: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem ao misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no compreender dessa práxis.”1 Nessa experiência refletida da práxis apontada por Marx, cabe destacar a presença “imanente” do sujeito: não está em causa uma práxis que algum sujeito, exteriormente a ela, encena. Ou então alguma elaboração teórica posteriormente praticada por um sujeito e aplicada à “realidade”. A vantagem da inovação na conceituação marxista ao apreender a práxis reside justamente em propiciar a aptidão para focalizar, simultaneamente e em sua dialética, os momentos subjetivos e objetivos, ou seja, as determinações da subjetividade e da objetividade sociais. É fundamental atentar à distinção entre práxis e prática, tendo em vista como a prática, enquanto práxis social, passou por um “esvaziamento” tan1

Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos (São Paulo, Abril Cultural, 1974), p. 52.

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to de sua dimensão subjetiva – vale dizer, de sua dinâmica social e política transformadora – quanto de sua dimensão objetiva – ou seja, a que se refere à realidade efetiva e que não está circunscrita à construção social a que o sujeito julga pertencer. Esse encurtamento da práxis ocorre em decorrência da prática social do trabalho alienado e alienante, trabalho este que se impôs como modelo – com pretensão à exclusividade – da prática conforme a cunha universalizada no modo de produção capitalista. Mas cabe enfatizar que a práxis está além da prática praticada, por exemplo, conforme os ditames teóricos da teoria “política” atual e suas “aplicações” a uma realidade política, institucionalizada como se fosse “natural”. A própria redução da política como gerência exemplifica esse estado de coisas. Confundir práxis com a prática política conforme essa perspectiva contraria o que Marx examina, decifra e propõe compreender, isto é, precisamente uma política como práxis determinada de permanente autoprodução da realidade social humana, seja na interação dos homens com a natureza, seja em sua interação inter-humana. Não confundir esta última com a “segunda natureza” humana, que se impõe aos homens como o faz, “naturalmente”, o processo de acumulação capitalista. A hegemonia às avessas caracteriza precisamente uma forma social contemporânea determinada dessa práxis política. Só assim, nos termos postos por Marx, é possível compreender como a prática seria pautada por uma verdadeira inversão entre os momentos subjetivo e objetivo, que afinal é operada pelo capital. Este último, de objeto produzido que é, instala-se, contudo, como se fosse sujeito efetivo da produção. Ao mesmo tempo, o capital, de objeto que é, furta-se a essa realidade objetiva, parecendo ser “natural”, infenso à transformação pelo verdadeiro sujeito, “nós” enquanto os criadores de trabalho vivo. Aqui, o que o capital aparentaria ser para os sujeitos induz a tratar a práxis pelo que ela parece ser depois da reprodução ampliada em curso, isto é, mera prática, aplicação “neutra” de um sujeito exterior a ela, em relação ao qual é indiferente. Cabe realçar que se trata de uma aparência socialmente necessária, objetiva, e não aparência induzida por alguma visão equivocada do estado de coisas. A advertência de Marx incide na necessidade de se desfazer essa inversão – a verdadeira reificação promovida pelo modo de produção capitalista – que é, ao mesmo tempo, esvaziadora e formalizante, pela qual a práxis se

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instala como prática, arriscando-se a pôr a perder o momento de efetivo dinamismo da política, que, para além de ser mera prática no real construído pela acumulação do capital, diz respeito à própria práxis como dinâmica de formação ou produção desse real, assim reproduzido de forma ampliada2. Em vista dessas considerações iniciais, parto de uma apreensão, baseada numa citação de A ideologia alemã, de socialismo – ou “comunismo”, como afirmam os autores na ocasião – não como realização de um ideal a orientar a realidade: “Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento (devem ser julgadas conforme a própria realidade efetiva) resultam dos pressupostos atualmente existentes” 3. Assim, coloca-se a possibilidade de refletir acerca do socialismo a partir da reprodução atual da sociedade, isto é, justamente aquela que acontece nos termos de uma política sob a forma socialmente determinada da hegemonia às avessas. Como já indicado acima, a novidade posta pela perspectiva da hegemonia às avessas é pensar o socialismo situando no centro de nosso processo de apreensão a práxis e não o que se apresentaria como sendo o sujeito, que seria pressuposto abstratamente como construção social e não assumido em sua existência efetiva. Agora já não precisamos pressupor o ou algum/qualquer sujeito. Este se estabelece simultaneamente à, em estreita vinculação com, de maneira imanente à práxis – que, por sua vez, não se relaciona de modo exterior com um sujeito, pois este, antes, apresenta-se na mesma num nexo de determinações recíprocas. Eis a perspectiva: apreender o socialismo a partir das formas sociais da práxis e não a partir do sujeito pressuposto da práxis, o qual seria posteriormente um possível alvo de críticas como “falso” sujeito, dotado de “falsa” consciência de classe etc. 2

As várias traduções disponíveis das Teses sobre Feuerbach nem sempre levam em devida conta essa importante e decisiva questão. Curiosidade à parte, porém, somos instigados a comparar duas versões feitas por José Arthur Giannotti com intervalo de décadas. A primeira, publicada na famosa coleção Os Pensadores (Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos, São Paulo, Abril Cultural, 1974), atenta corretamente para o problema; já a segunda (Marx, Porto Alegre, L&PM, 2000) – seria uma inflexão na própria perspectiva do tradutor? – teima em rever o que era “compreender dessa práxis” como “compreensão dessa prática”, sem a distinção entre prática e práxis enfatizada acima.

3

Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 38.

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Em outras palavras, há uma profunda dependência das formas sociais da práxis que precisa ser levada em devida conta. A mudança, agora,vincula-se fundamentalmente às políticas e não apenas, e ainda mais de maneira mecânica, aos sujeitos. A hegemonia às avessas é uma forma social determinada, concreta, de luta de classes, efetiva em todo seu poder real. A política como práxis na situação vigente encontra-se muito bem caracterizada pela hipótese da hegemonia às avessas. Por seu intermédio, a partir das formas sociais da práxis como política que são reificadas, para além do que sejam seus sujeitos, abre-se uma produtiva perspectiva para apreender a dinâmica das formas sociais da política, do aparente paradoxo entre, de um lado, um eclipse da política de transformação social e, de outro, uma consolidação de uma prática política instrumental. Mas, mais do que isso, cabe enfatizar que dessa maneira se caracteriza uma forma da práxis política alienada, o modo burguês da política, a partir da qual é possível pensar um movimento de superação histórica, ou seja, apreender o dinamismo que possibilita pensar – e efetivar – alternativas à situação vigente e seu modelo. É necessário, por exemplo, pensar o trabalho concreto nos termos da práxis e de suas relações com o momento subjetivo, em vez de insistir no contrário, decorrente da perspectiva “ortodoxa”. Por esta última, a práxis é pensada nos termos do trabalho concreto, juntamente com a relação de exterioridade com a dimensão subjetiva que o caracteriza etc. O proletariado não pode ser pressuposto em relação a sua existência prática real, não apenas no trabalho, mas conforme a perspectiva da totalidade, inclusive da política, ou seja, em relação a sua posição na luta de classes. Que práticas políticas se associam a determinada forma social de trabalhador? Como a luta de classes se expressa politicamente, não como ideal a ser realizado, mas em sua efetividade cotidiana, presente? A hegemonia às avessas permite pensar a luta de classes em sua extensão política, sem depender de uma configuração prévia fixada da classe. No ensaio Sobre estática e dinâmica como categorias sociológicas 4 – escrito em 1961, bem antes de Adeus ao proletariado, de André Gorz* –, Theodor W. Adorno procurou mostrar como, em função da práxis reprodutiva da sociedade, as tendências de desenvolvimento de um possível sujeito da his4

Theodor W. Adorno, “Soziologische Schriften I”, em Gesammelte Schriften 8 (Frankfurt, Suhrkamp, 1979), p. 217.

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2. ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987.

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tória, no sentido de sua potencial transformação, são eclipsadas pela imposição da continuidade do vigente. Explicando melhor: quando, em decorrência do desenvolvimento imanente das forças produtivas, o trabalho já não precisaria persistir como medida de todas as coisas, o que se impõe como ideal da sociedade é justamente o pleno emprego nos termos do trabalho assalariado. Em decorrência – é isto que importa – impõe-se hegemonicamente esse modo alienado de trabalho, que obstrui a apreensão de alternativas a serem buscadas a partir do mesmo trabalho alienado, mas para além dele, e consolida a hegemonia do vigente. Penso que essa questão constitui referência importante no que Chico de Oliveira disse, por exemplo, sobre as mudanças no perfil da composição operária na população de alguns bairros de São Paulo5, ou seja, como as relações de trabalho e a inserção pelo trabalho terminam por determinar objetivamente a prática política de cada forma determinada de trabalhador. Como, em sua dinâmica, terminam por configurar até mesmo a “cara” da cidade ao excluir o trabalhador. E o inverso disso – ou seria melhor dizer o avesso –, ou seja, como uma determinada inserção na sociedade, no processo concreto de sua reprodução social, direciona as formas sociais da práxis. Importa apreender a determinação da luta de classes não a partir de um sujeito preestabelecido ou provida de certo horizonte, mas a partir – embora, é claro, sem se restringir dinamicamente a essa situação – da vida concreta, das manifestações da reprodução social que a condicionam. Há na cidade de São Paulo uma luta de classes que se expressa de forma conservadora e não transformadora. A luta de classes desenvolvida sob as formas concretas, socialmente determinadas aqui e agora nos termos da hegemonia às avessas, corresponde a trabalhadores que, como classe, estão a milhas de serem agentes do socialismo, embora sejam agentes de sua própria exclusão social da sociedade em que, ainda por cima, figuram como os “verdadeiros” agentes. Esse constitui o imbroglio que nos cabe, a questão imposta e, dialeticamente, posta. Nessa manifestação concreta da práxis podemos delimitar os elementos a partir dos quais a ação política pode ser aprendida em sua dialética e com seus sujeitos, seus conflitos, suas contradições, seus limites. Em resumo, cabe insistir na questão central: a referência para o trabalho – e a política – é a práxis, e não o inverso. Vale dizer: a utilização do trabalho 5

Folha de S.Paulo, 19 out. 2008.

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em suas formas sociais concretas, determinadas, alienadas e de exploração, como referência para a práxis e, em decorrência, para a política. Do mesmo modo, não cabe usar o trabalhador coletivo em sua forma social determinada – de trabalhador coletivo pela perspectiva da acumulação, pela perspectiva burguesa – como referencial para a análise do sujeito da práxis na política, por exemplo. Ou considerar suas formas de organização e socialização, até mesmo quando correspondem a uma crítica a sua organização capitalista como eventuais “parâmetros” já configurados para o que seria “socialismo”. Na hegemonia às avessas, os “dominados” não só são objetivamente subordinados à dominação (o que também ocorre na hegemonia que não é às avessas), mas são subjetivamente os agentes da estrutura de dominação, em vez de assumi-la conforme padrões impostos que se tornariam hegemônicos. São sujeitos imanentes ao âmbito da hegemonia, que não promovem a hegemonia de algo “exterior” a si próprios, como se fora mera aplicação de sua situação de avassalados. Os dominados não são pré-constituídos, mas constituem-se como dominados no exercício objetivo da ação política e social em que ocupam uma função e funcionam como executores da dominação. Assim como a política deve ter como referência a práxis, há uma política que se refere à práxis reduzida enquanto instrumento de aplicação, como prática instrumental. A política reduzida como administração – o esvaziamento da política – corresponde a uma forma da práxis sustentada no modelo estrito do trabalho alienado e alienante conforme a situação vigente. A prática instrumental objetiva que a hegemonia às avessas implica conduz a uma práxis subjetiva reduzida como política, convertida em mera engrenagem reprodutora da ordem vigente. Estamos em face da seguinte “contradição em processo”: a hegemonia às avessas, ao mesmo tempo que se apresenta como “política” – por ser hegemonia do vigente –, também resulta na “anulação da política” – porque só administra o presente como vigente, procurando reduzir toda política ao cálculo racional no plano do vigente. Por isso,não cabe nesse plano pensar numa possível “contra-hegemonia”. A hegemonia social e historicamente determinada na forma presente não é uma – possível – “falsa” hegemonia, a ser “ideologicamente” corrigida. A hegemonia às avessas retira o que seria a hegemonia do âmbito de uma política segundo formas pré-configuradas, como formas invertidas ou então críticas. Em certa medida, os que seriam caracterizados como os “do-

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minados” são formados no curso da hegemonia às avessas numa dinâmica de que resultaria a sua função de executores da função de reprodução da dominação. Em vez de pensar numa “contra-hegemonia” alternativa, impõe-se a necessidade de novas formas sociais de politização do próprio processo de construção social e de sua reprodução, para além dos nexos que, no plano vigente, configuram a forma social da hegemonia. Há necessidade da experiência do conflito entre política e sua forma social instrumental para possibilitar a crítica [...] e uma elaboração alternativa. Não há reflexão crítica que se baste sem se traduzir em experiência prática. É preciso privilegiar um outro leito para o processo de formação social da realidade [...] [...], para que se converta em experiência muito além da que se encontra em curso na atualidade.6

Contudo, será que, a partir de suas formas políticas históricas, concretas, essa contradição pode se desenvolver em seu dinamismo? Por exemplo, como nova forma do conflito entre Estado e sociedade civil? A partir dessa dimensão política como contradição processante, seria possível pensar o socialismo como experiência? É possível caracterizar a hegemonia às avessas como práxis concentrada nos momentos da socialização (política gerencial-tecnológica) do vigente (enquanto substituto do que seria política na sociedade vigente) e da anulação da política da construção da sociedade vigente. Esta última é social e historicamente determinada como política burguesa. A política como práxis vai além dessas dimensões determinadas. Como já afirmou Paulo Arantes, desapareceu a política burguesa e não a política7. Nesse caso, política burguesa cujo sujeito explícito são trabalhadores. Mas isso não é trivial. Ocorre uma privatização da política sem haver o momento correspondente de politização dessa apropriação privada. É preciso politizá-la. Esse seria o primeiro momento da dinâmica do qual pode resultar uma ação transformadora. Ou seja, é necessário mudar a relação entre sociedade e sujeito – que na hegemonia às avessas, conforme o sujeito, é impositiva – em uma relação participativa, dinâmica. Aqui, deveria se situar, por exem6

Wolfgang Leo Maar, “O eclipse da política na experiência social brasileira”, em Margem Esquerda, São Paulo, Boitempo, n. 9, 2007, p. 116.

7

Paulo Arantes, Extinção (São Paulo, Boitempo, 2007).

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plo, o papel possível dos partidos educadores, tal como outrora modelados como formadores de consciência de classe ou de uma perspectiva crítica de elaboração da relação com a realidade vigente. Importa antes de tudo destacar que se trata de um resultado histórico-social determinado. Além disso, mas de modo não menos decisivo, trata-se de enfatizar uma abordagem da práxis em que o sujeito não é apreendido num nexo de exterioridade, mas forma-se a partir da práxis em sua forma socialmente determinada de hegemonia às avessas. 2. Na hegemonia às avessas, o sujeito se forma e se determina. O sujeito precisa ser apreendido simultaneamente à práxis em sua forma determinada, política, de hegemonia às avessas. A ordem social vigente objetivamente impõe ao que seriam os “sujeitos” uma função privada na administração do vigente, pela qual eles se experienciam como sujeitos, mas que objetivamente resulta em sua anulação como sujeitos efetivamente políticos. Essa é uma novidade. Não se trata de prescrever ou até mesmo de definir o sujeito anteriormente a sua práxis, mas de modo imanente a ela. Assim também não seria uma determinada forma social do sujeito que conduz a transição ao socialismo, mas sim uma determinada práxis junto com suas condições de possibilidade efetiva, em que é preciso considerar também o sujeito e, sobretudo, as formas de determinação objetiva do “assujeitamento”, da subordinação desse sujeito ao objeto, ou seja, seu avassalamento em relação à sociedade vigente. O problema já foi examinado ao menos em dois momentos marcantes no debate do socialismo durante o século XX, agora para adquirir contornos mais nítidos mediante a caracterização da hegemonia às avessas. a) O fator subjetivo na política materialista. O trabalhador coletivo “falso”, mas dotado de poder efetivo Num primeiro momento, György Lukács refere-se à questão sob a égide da “falsa consciência de classe” que é necessária à reprodução da formação social. Em suas palavras: A reificação de todas as manifestações da vida social é partilhada por burguesia e proletariado. Como afirma Marx: “as duas classes representam a mesma autoalienação. A primeira sente-se à vontade nela e sente-se confirmada pela mesma; apreende a alienação como seu poder e possui nela uma aparência de vida

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humana. A segunda sente-se desconfortável na alienação, em que vê sua impotência e a realidade efetiva de uma existência desumana.8

E aponta pouco à frente, no mesmo argumento: “A realidade objetiva do ser social em sua imediatez é a mesma para as classes”9. A partir desse ponto, há para ele as mediações que converteriam essa realidade imediata em realidade objetiva. Mas Lukács falha na expressão da dialética dessas mediações, saltando do proletariado individual empírico para o proletariado como substância, sem contradições. O decisivo, porém, não é o proletariado substantivado, atribuído, mas o proletariado real no vigente; o mesmo que, por sua ação, confirma a burguesia e lhe confere poder. Para Lukács, o proletariado é o agente do poder da burguesia pela alienação em que ele mesmo se encontra e pelo trabalho alienado que produz e reproduz a alienação. Em certo sentido, o proletariado lukacsiano realiza uma “hegemonia” social, o interesse da burguesia; porém o poder da burguesia – uma classe “falsa” – é real. É uma classe falsa, por que se centra na alienação, por meio da qual, contudo, é dotada de poder efetivo. O poder está do lado da burguesia. O problema de Lukács está em que, embora parta da análise da reificação da práxis, imediatamente a seguir ele se empolga em direção a uma determinação do sujeito – a consciência atribuída – para, a partir desse ponto, abandonar o exame da práxis. b) A mudança no fator subjetivo. A política efetiva e seu poder sobre o trabalhador coletivo “verdadeiro” Há um segundo momento para a questão, que é o da teoria crítica da sociedade, que toma precisamente as dificuldades na determinação do sujeito como seu ponto de partida. Já em seus primeiros textos, Max Horkheimer questiona a “possibilidade de que a situação do proletariado constitui garantia”10 para o conhecimento verdadeiro. A mera “sistematização dos conteúdos de consciência do proletariado” não oferece uma apreensão de seus interesses. Seria uma 8

György Lukács, História e consciência de classe (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 309.

9

Idem.

10

Max Horkheimer,“Teoria tradicional e teoria crítica”, em Walter Benjamin et. al., Textos escolhidos (São Paulo, Abril Cultural, 1980), p. 134.

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“teoria tradicional”, isto é, moldada nas “ideias que a burguesia faz de si”11 em função de sua inserção social e, assim, veículo de sua reprodução como sociedade. Mas é Adorno quem se refere à questão de modo particularmente interessante em seu livro Minima Moralia, no verbete 147, intitulado “Novissimum organum”12, ao tratar da mecanização do homem como completude orgânica da reificação. O próprio processo que impõe aos homens a barbárie constitui a base de sua sobrevivência. O “proletariado” já não se sente desconfortável, mas, envolvido nas condições da sociedade de massa, transforma-se, “inclusive organicamente”, em agente ativo do poder da burguesia. Em termos semelhantes, em sua última aula no curso de introdução à sociologia, oferecido em 1969, Adorno se refere novamente ao nexo entre, de um lado, sociedade e democracia e, de outro, teoria social; mas agora mediante uma visão polar, em que à consciência verdadeira cabe, de certo modo, evitar a não realização da democracia. Em suas palavras: o lado institucional objetivo da sociedade se autonomizou e se consolidou em face dos homens de que a sociedade se compõe. Por outro lado, há de pensar que também os sujeitos fazem parte da sociedade e, para que esta possa ser preservada em sua forma vigente, precisa ser acompanhada de uma determinada situação dos sujeitos. Se os sujeitos fossem outros ou se fossem emancipados, como se diz corretamente hoje em dia, então essa sociedade, apesar de todos os meios de coação existentes a sua disposição, provavelmente nem sequer poderia ser preservada nos termos vigentes. O papel do fator subjetivo se transforma no curso do processo social como um todo. Diante de uma integração crescente, a relação base-superestrutura perde sua acuidade anterior. Quanto mais os sujeitos são presas da sociedade, quanto mais intensa e completamente eles são determinados pelo sistema, tanto mais o sistema se conserva não apenas mediante a aplicação de coações aos sujeitos, mas inclusive por intermédio dos mesmos.13

A reflexão de Adorno não se encontra tolhida por uma forma social concreta de sujeito, mas encontra-se comprometida com a dinâmica da sociedade de classes. Mas, em que pese esse prisma, mesmo assim o avanço em relação ao passo lukacsiano ainda não destaca com a ênfase necessária o primado da práxis objetiva dos sujeitos em relação à determinação destes en11

Ibidem, p. 135.

12

Theodor W. Adorno, Minima Moralia (Rio de Janeiro, Azougue, 2008), p. 226.

13

Idem, Introdução à sociologia (São Paulo, Edunesp, 2008), p. 340.

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quanto sujeitos. Na apreensão pela perspectiva da hegemonia às avessas, propõe-se pensar que eles seriam sujeitos que se excluem da política nos moldes vigentes. A práxis objetiva dos que – no sentido usual, não crítico – “deveriam” ser apreendidos como sujeitos converte-os em objetos, mas com um “papel funcional no processo de acumulação” decorrente da forma específica da financeirização internacional atual do mesmo14. Já não há uma “inclusão passiva”, como ocorria sob a hegemonia burguesa, mas ocorre uma “exclusão ativa”. Não se trataria já tanto de uma forma difícil de sujeito, se não de reposicionamento da própria apreensão dos sujeitos. A tarefa residiria em repensar como sujeitos podem se formar, uma vez que na sociedade vigente já não se formam mais “sujeitos”, mas “objetos”. Ocorre, como mostraram os frankfurtianos, não um processo de deformação de que resultariam subordinados, mas um “novo” processo, o de semiformação, caracterizado como um processo social de desindividuação que seria “voluntário”, de “autossubordinação”. c) A práxis política alienada: dialética e inversão entre subjetivo e objetivo A questão apreendida sob o prisma da hegemonia às avessas constitui um terceiro momento da discussão, examinada em seus momentos anteriores a partir das contribuições representadas por Lukács e pela teoria crítica da sociedade. Assim como apreendemos, segundo a dialética hegeliana, a verdade como sendo, a um só tempo, “alvo” e “objeto”, da mesma maneira também a política é simultaneamente “fim” e “tema”: abrange ao mesmo tempo a práxis e a compreensão, ou seja, a apreensão da práxis em sua dinâmica, em suas formas sociais e históricas, em sua dimensão subjetiva e objetiva. Somente por essa via deixam de ser impostos critérios pressupostos à ação política, para esta ser compreendida no âmbito imanente das contradições da realidade efetiva. A rigor, os fins da política se conectam com a inserção da mesma objetivamente na realidade social, de que são simultaneamente decorrências e condições. Ou seja, a práxis política se conecta inexoravelmente à experiência da práxis política. Ao contrário da versão simplória muitas vezes propalada a respeito, a “teoria crítica da cultura”, configurada nos conceitos de “indústria cultural” e de “semiformação”, é uma teoria política que não se desvia do objeto po14

Francisco de Oliveira, “Há vias abertas para a América Latina?”, em Atílio Boron (org.), Nova hegemonia mundial (Buenos Aires, Clacso, 2004), p. 117.

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lítico. É um equívoco pensar que Adorno, por exemplo, teria “recuado” à crítica da cultura, à estética e à literatura, porque a transformação da realidade se tornara mais difícil após o declínio revolucionário de sua época. Esse movimento de Adorno não é um “recuo”, mas decorre, ao contrário, como imposição do objeto da crítica, instala-se pela própria realidade da coisa objetiva. A crítica à indústria cultural é a crítica a um sustentáculo objetivo da democracia que é meramente formal, em que a práxis política é reduzida à administração de conflitos e converte-se em esteio da política instrumental calculista. Ela não pode ser praticada sem a mediação necessária da apreensão dessa experiência. Não só o trabalhador coletivo não se sente desconfortável – o que acontece até mesmo em função da distância, pois a possibilidade de entrar em contato coletivo recíproco, ou de se constituir como trabalhador coletivo, existiria apenas pela via do consumo ou da via nacional, como afirma Chico de Oliveira15. Mas ele é levado objetivamente à práxis alienada – até porque a valorização agora se realiza sobre o valor virtual do capital, e não pelo capital como “representante” e “agente” de um processo produtivo, conforme destaca, por exemplo, Laymert Garcia dos Santos16. Não existe a experiência formativa de uma eventual situação de classe, mas a práxis resulta de uma situação objetiva de dominação de classe. Se hoje a nossa sociedade é caracterizada pela “contenção da transformação”, como assinalou Herbert Marcuse17, não é só por ser desprovida de oposição, como ele explica. Se assim fosse, haveria uma dialética de contraposição de sujeitos, em certo sentido de pressupostos, cuja interação produziria um vetor político que determinaria a sociedade como resultante de uma aplicação que seria posterior ao jogo de forças. No entanto, ocorre algo além do que é caracterizado por Marcuse apenas “unidimensionalmente” como práxis política – com o perdão antecipado por essa quase heresia em relação a sua obra de mestre, O homem unidimensional. Não só na nossa sociedade existe hoje uma contenção da transformação pela inexistência de uma oposição, como diz acertadamente Marcuse, mas, além disso (ou seria 15

Francisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.), A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 45.

16

Idem, p. 33.

17

Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial (Rio de Janeiro, Zahar, 1969), p. 16.

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aquém?), ela é ativamente reproduzida por quem aparentemente deveria ser seu coveiro e que se situa, em razão de sua própria ação, em grande medida exteriormente à sociedade, motivo por que está impedido de se experienciar como coveiro dessa sociedade. Não só há uma inexistência de oposição, mas há também uma existência ativa de apoio por quem em outra concepção figurava como opositor. Para além de uma dialética entre conservação e transformação, idealisticamente pressuposta, estamos, a rigor, em face de um processo efetivo de reprodução social, material e histórico que exige uma renovada disposição de momentos de objetividade e de subjetividade. Assim, hegemonia às avessas é a verdade da práxis alienada, isto é, a confirmação do poder na sociedade real pela reificação, sem que se apele para a ação de um sujeito automático travestido de “capital”. Essa é a sociedade real construída conforme a referência burguesa, e que abrange como sujeito real o trabalhador coletivo em sua existência vigente. Não se trata de “inclusão passiva”, mas de “exclusão ativa”. Marx, a certa altura de O capital, adverte que os economistas até então haviam apenas apreendido a produção na sociedade e que cabia apreender a própria produção da sociedade. Sob pena de reincidência ideológica, é preciso advertir evidentemente que tal produção da sociedade ocorre, e só pode ocorrer, na sociedade: a hegemonia às avessas é uma forma social determinada desse acontecer histórico. Por ele, a sociedade capitalista vigente é efetivamente produzida pela perspectiva burguesa nos parâmetros vigentes. Seu agente é o “trabalhador coletivo” que não faz a experiência de si no trabalho – questionando assim sua existência como classe –, mas é objetivamente resultante da socialização de uma sociedade reificada, em que a forma dinheiro aparece em todos os momentos da vida social e vice-versa, e em que a cada momento da vida social adequadamente apreendido está o segredo da forma dinheiro. O trabalhador coletivo real, burguês, rejeitado como dotado de falsa consciência de classe por Lukács é, no entanto, o verdadeiro artífice efetivo da produção da sociedade real. Ele é “falso” em sua consciência e, ao mesmo tempo, “verdadeiro”, dotado de poder social real, como destacam em sua análise Negt e Kluge18. Mas o que aparecia como “falso” trabalhador coletivo para Lukács resultava ser “deformado” – ou semiformado – pela processo de acumulação conforme o prisma adorniano. 18

Oskar Negt e Alexander Kluge, O que há de político na política? (São Paulo, Edunesp, 1999), p. 103.

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Aqui, estaríamos em presença do processo de desindividuação característico da sociedade de massas. Agora, no plano da hegemonia às avessas, ele funciona como a mediação por meio da qual se realiza a práxis de reprodução do vigente. Saímos do âmbito do sujeito para o âmbito da política e da produção do sujeito; não de uma política estabelecida – nesta os sujeitos são avassalados como agentes de sua exclusão –, porém aberta em suas formas sociais. Os “dominados” defendem em seus pensamentos e em sua prática os interesses dos “dominadores”; fazem-no, contudo, como resultado de uma imposição objetiva da sociedade, uma práxis efetiva, mas que não é experimentada como tal em decorrência da “tecnologização da sociedade”, que, sob a forma social de ganhos – aparentes, mas também efetivos –, obstrui a experiência formada a partir das contradições sociais. A quantificação em valores de troca fetichistas não só interage com todas as formas sociais vitais, mas amplia essas formas de modo a abranger o todo social. À forma social mencionada de trabalhador coletivo – bem como, é claro, ao capitalista, – isso significa sobretudo o incremento de objetos sob seu cálculo, um incremento da racionalização, da mecanização do mundo que se lhe apresenta; enfim, a perspectiva de um progresso ilimitado que – interrompido aqui e ali por crises – aponta para uma racionalização completa da sociedade. Essa seria a chamada “privatização” do sujeito, que restringiria o que seria a ação pública ao plano dos interesses na sociedade vigente. Hoje, para além de uma inclusão passiva do trabalho na esfera da sociedade, deparamos com uma exclusão ativa, política, do trabalho, inclusive exclusão de sua apreensão como classe, que, conforme o processo formativo, depende da organização do trabalhador coletivo. Agora ocorreria uma privatização da política e não mais do sujeito. Isso ocorre nas condições da práxis política pela perspectiva hegemônica presente, em que o trabalhador é objetivamente, se não propriamente “organizado”, mas certamente direcionado coletivamente na defesa efetiva dos interesses do capital. Essa práxis de privatização da política, por sua vez, impõe a necessidade de uma apreensão e da forma social dessa práxis. É preciso haver uma politização da apropriação privada da política. A questão do socialismo é de práxis histórica e social; encontra-se em nexo com o que se costuma denominar políticas de transição. Hoje, o socialismo é questionado sobretudo quando se pensa em termos de um modo

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de produção capitalista sob cuja hegemonia ocorreria uma prática de inclusão passiva do trabalho e do sujeito histórico social a ele associado. Assim se enquadrariam as políticas populistas e as políticas assistencialistas, por serem desprovidas de uma real e efetiva subjetividade e apenas destinadas à adequação à formação social vigente, sem potenciais de inserção crítica e transformadora. Agora, no entanto, estaríamos diante de uma reprodução do modo de produção capitalista com uma prática social de exclusão política ativa do trabalho, promotor de sua própria exclusão social. Eis a consequência mais terrível da hegemonia às avessas. O deslocamento do trabalho de sua centralidade é consequência objetiva de um determinado modo social de reprodução cujo agente são os trabalhadores da sociedade. Não se trata de colocar esse trabalho no centro novamente. Não só porque isso seria impossível, mas porque seria inócuo: foi o que marcou experiências do chamado “socialismo realmente existente”, incapazes de se vincular à necessidade de uma mudança no modo de produção, de trabalho e de práxis. É preciso ampliar a apreensão do trabalho no âmbito da práxis como autoprodução das formas sociais da sociedade pelos homens em seu processo de produção material, no intercâmbio com a natureza e entre si. Uma das formas sociais a serem inseridas nessa apreensão é a própria exclusão ativa, política, como produção da sociedade excludente do capitalismo em sua vigência presente. Para conseguir isso, precisamos propiciar “constelações” de relações entre trabalho concreto e suas formas sociais determinadas, para compreender adequadamente essa práxis, ao fazer a experiência da autoprodução humana da história dos homens como produto social e não natural. O trabalhador coletivo deve refletir sobre essa questão. Não houve apenas um saque do tesouro público rumo à acumulação privada; essa “economização” – agora “financeirização” – da sociedade implicou também um saque da práxis pública e coletiva rumo às atividades privadas acumulativas, e da política como ação privada. O trabalho foi privatizado como trabalho alienado, gerador de valor; aqui, ele se situa no mesmo nível abstrato do dinheiro. Em última instância, é isso que significa o saque ao Estado patrocinado pelo neoliberalismo. Houve uma “perda” na dimensão política e social do trabalho, que cobra seu preço justamente numa concepção meramente produtivista-laboral do trabalhador coletivo como sujeito da história,

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em que a práxis é isolada da experiência refletida de si própria. Essa “perda” não é, a rigor, uma perda, mas é a consolidação ativa do vigente, em que o lugar de sujeito é reservado ao “sujeito morto”, o capital que faz de conta ser um sujeito automático a ser gerenciado e administrado. Essa é a política efetiva de que resulta o chamado “fim da política”. Por isso é equivocado pensar na “ausência de culpa de nós, o povo”; não basta recolocar o trabalho, já em jornada reduzida, no centro da vida social; é preciso sobretudo atentar e dar dimensão vital ao que se encontra eclipsado no trabalhador coletivo: o que é efetivamente objetivo em sua subjetividade social formativa, sua aptidão necessária à produção objetiva da sociedade. É preciso restaurar o momento político do trabalhador coletivo, para além de seu mandato como sujeito da produção; restaurá-lo como sujeito da práxis em sua dimensão objetiva – da hegemonia às avessas, por exemplo –, tendo em vista a perspectiva da emancipação como crítica política do modo capitalista vigente de produção e reprodução da sociedade. Essa perspectiva seria o que Adorno, na ausência que percebia em qualquer busca de sentido para além da própria vida humana em sua forma social e material, chamava de ponto de vista da redenção. Tal reconexão da política é uma verdadeira rememoração, rememoração no sentido em que toda alienação, toda abstração, toda perda, toda reificação é um esquecimento, conforme assinalam Benjamin e Adorno. Mas esquecimento referido, a rigor, como um “eclipse”, resultado de uma imposição objetiva na práxis a que se vincula a experiência do esquecimento ou da compreensão da práxis. Refere-se a um posicionamento do trabalhador coletivo em seu nexo com a luta de classes, para ressituar as próprias classes como sujeitos sociais e políticos. E mais: atualizar as formas dessa política, sem permanecer – ainda que criticamente – restrito à prática instrumental ou meio de realização. A consciência de classe é um momento da classe, assim como a compreensão da práxis é um momento essencial da própria práxis, segundo a oitava tese sobre Feuerbach. Sujeito e objeto não se identificam, mas também não podem se relacionar como “exterioridades” contrapostas numa substancialização de agentes em que, de modo imediato, os “trabalhadores” se contrapõem ao capital. O socialismo após o desmanche depende da apreensão do que ocorreu ao que era o trabalhador coletivo como sujeito da práxis e não unicamente enquanto aparente sujeito do trabalho na sociedade estabelecida. Diz respeito à compreensão da práxis, conforme a lição genial de Marx, e não só a

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alguma de suas dimensões, subjetivas ou objetivas, desconectadas, abstraídas, sem nexo com a dialética característica da práxis como um todo. Marcuse nos lembra acertadamente que o próprio modo de produzir se tornou ideologia19, isto é, implica uma reconstrução social que aparece como se fosse a sociedade efetiva, em sua totalidade. Adorno diria: sociedade como aparência20, que é sua própria ideologia e onde esta já não seria aprendida no plano das ideias, mas da aparência social real necessária. Manter o modo de produção, a rigor capitalista, que caracterizava o socialismo em desmanche, significa condenar-se à sociedade como construção ideológica. Também na crise atual, que seria marcada pela existência de um mercado aparentemente autorregulado e pela lógica financeira ou do valor virtual, menciona-se com frequência a necessidade de uma reconexão desse “estado de coisas” com a “produção material efetiva” de que estaria desconectado. Contudo, a mera reconexão nos termos vigentes, sem a atenção devida à própria característica ideológica de construção social dessa esfera da produção material, sem a crítica da práxis, essa rearticulação não seria uma volta do parafuso e muito menos um momento na transformação possível do estado de coisas. Funcionaria apenas como mais um giro da lâmina de moer carne e tudo continua como antes.

19

Herbert Marcuse, “Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber”, em Cultura e sociedade (São Paulo, Paz e Terra, 1998), v. 2, p. 113.

20

Theodor W. Adorno, Sociologia (São Paulo, Ática, 1986), p. 88.

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O AVESSO DO AVESSO * Francisco de Oliveira

O artigo “Hegemonia às avessas”1 pretendeu fazer uma provocação gramsciana para melhor entender os regimes políticos que, avalizados por uma intensa participação popular (a “socialização da política”, segundo Antonio Gramsci), ao chegar ao poder, praticam políticas que são o avesso do mandato de classes recebido nas urnas. É o caso das duas presidências do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil. E da destruição do apartheid na África do Sul, por meio de uma longa guerra de posições e das seguidas reeleições do Congresso Nacional Africano (CNA), uma frente de esquerda com forte influência do Partido Comunista. Quase sete anos de exercício de Luiz Inácio Lula da Silva já tornam possível uma avaliação dessa hegemonia às avessas e dos resultados que ela produziu. Não se parte aqui, e não fiz essa presunção também no artigo provocador original, de que Lula recebeu um mandato revolucionário dos eleitores e sua Presidência apenas se rendeu ao capitalismo periférico. Mas o mandato, sem dúvida, era intensamente reformista no sentido clássico que a sociologia política aplicou ao termo: avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo. Os resultados são o oposto dos que o mandato avalizava. O eterno argumento dos progressistas conservadores – caso, entre outros, do ex-presiden*

Uma primeira versão deste artigo foi publicada em Piauí, Rio de Janeiro/ São Paulo, n. 37, out. 2009.

1

Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

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te Fernando Henrique Cardoso – é que faltaria, às reformas e ao reformista mandatário, o apoio parlamentar. Sem sustentação no Congresso, o país ficaria ingovernável. Daí a necessidade de uma aliança ampla. Ou de uma coalizão acima e à margem de definições ideológicas. Ou, mais simplesmente, de um pragmatismo irrestrito. Fernando Henrique Cardoso teve recursos retóricos para justificar uma mudança de posição ideológica que talvez não tenha paralelo na longa tradição nacional do “transformismo” (outro termo emprestado do teórico sardo). Luiz Werneck Vianna – um de nossos melhores intérpretes da “revolução passiva” gramsciana, juntamente com Carlos Nelson Coutinho –, é mais sutil e tem um argumento mais complexo: não se governa o Brasil sem o concurso do atraso não apenas por razões parlamentares, mas porque a estrutura social que sustenta o sistema político é conservadora e não avalizaria avanços programáticos mais radicais. Além disso, as fundas diferenças e desigualdades regionais, bem como o modo como desde a Colônia se fundiram o público e o privado – vide Caio Prado Jr. –, tornam quase obrigatório um pragmatismo permanente, que leva de roldão perspectivas mais ideológicas ou meramente programáticas. Infelizmente para os defensores do eterno casamento entre o avançado e o atrasado, a história brasileira não dá suporte ou evidências do acerto do conservadorismo com enfeite ideológico progressista. Nem mesmo de maneira remota. Até no caso da abolição da escravatura, que talvez tenha de fato subtraído o apoio parlamentar ao trono imperial, abrindo espaço para a República, não se deve perder de vista que ela foi pregada por radicais e realizada por conservadores. Nem se pode esquecer que o gabinete da Lei Áurea era presidido pelo conselheiro João Alfredo, um notório conservador. A Proclamação da República, entendida modernamente como um golpe de Estado, foi conduzida por militares conservadores e, logo em seguida, usurpada pela nova classe paulista que emergia da formidável expansão cafeicultora. Rui Barbosa, um grande liberal republicano, chega ao Ministério da Fazenda já com Deodoro da Fonseca – e faz uma administração considerada temerária – e depois tenta várias vezes alcançar a Presidência por meio das eleições “a bico de pena”, fracassando em todas elas. Os nomes que ficarão serão os da nova plutocracia paulista: Prudente de Morais, Campos Sales e Rodrigues Alves. Por fim, as bases sociais da abolição já vinham sendo estruturadas pela mesma expansão do café, que, para tanto, promoveu a

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imigração italiana. Não foi a abolição que derrubou a monarquia, mas a expansão econômica violentíssima na virada do século XIX para o XX. Outro exemplo, mais perto de nós, é o da Revolução de 30. Quem derrubou o regime caduco da Primeira República foi uma revolução que veio da periferia, do Rio Grande do Sul e da Paraíba, com a associação de Minas em seguida, e contando com a oposição de São Paulo. O atraso, então, serviu de base para o avanço? Longe disso. O Rio Grande do Sul tinha uma longa tradição revolucionária, um sistema fundiário mais progressista que o do resto do país, além de uma cultura positivista entre suas elites, sobretudo a elite militar, que forneceu o programa social lançado em 1930 (e sustentado continuamente por cinco décadas), cujo conteúdo foram as reformas do trabalho e da previdência social. A historiografia da Unicamp, liderada por Michael Hall, está pondo reparos à tese de que Getúlio Vargas copiou a Carta del Lavoro. Decisiva mesmo teria sido a fundamentação positivista, que fez com que a nossa consolidação das Leis do Trabalho fosse muito além da legislação italiana. Contra todas as tendências do já principal centro econômico brasileiro, Vargas fez São Paulo engolir goela abaixo um programa industrializante, reformista e socialmente avançado. Não foi à toa que, em 1932, articulou-se em terras bandeirantes uma “revolução constitucionalista” cujo programa é hoje emoldurado com galas de avanço – a fundação da Universidade de São Paulo –, mas que na realidade pretendia barrar o avanço das leis reformistas e reforçar a “vocação agrícola do Brasil”. Esse argumento, que ainda frequenta as páginas do Estadão (de forma sinuosa, é verdade), era explicitado em prosa e verso pelo jornal hoje plantado às margens malcheirosas do Tietê e pelas principais lideranças paulistas. O atraso governando o país? O golpe de Estado de 1964, que derrubou o governo João Goulart e terminou com a precária democratização em curso desde 1945, pintou-se com as cores do atraso, mas na realidade realizou o programa capitalista em suas formas mais violentas. Não foi um conflito entre o atraso e o progresso, mas entre duas modalidades de avanço capitalista. O vencedor fez seu o programa do vencido, radicalizando-o e ultrapassando-o. Fincou os novos limites à acumulação de capital muito além do que os vencidos teriam ousado, na esteira da evolução do regime chamado varguista-desenvolvimentista. A estatização promovida pela ditadura militar significou a utilização do poder estatal coercitivo para vencer as resistências não do atraso, mas das burguesias mais “avançadas”. Nunca a divisa da bandeira foi levada tão ao

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pé da letra quanto naqueles anos: “Ordem e progresso”. Poderosas empresas estatais se fortaleceram nos setores produtivos, fusões bancárias foram financiadas por impostos pesados, recursos públicos foram usados sem ambiguidades não para preservar o velho, mas para produzir o novo – como a Aeronáutica e o ITA, criando a Embraer. Avanço ou atraso? O fim é conhecido: desatada a caixa de Pandora, o regime sucumbiu não ao seu fracasso, mas ao seu êxito em construir uma ordem capitalista avassaladora. O regime militar relegou a burguesia nacional ao papel de coadjuvante, submeteu a classe trabalhadora a pesadas intervenções e não abriu ao capital estrangeiro, como faria supor seu ato mais imediato, a revogação da Lei de Remessa de Lucros de Goulart, que deu pretexto ao golpe. Melancolicamente, como cantava uma valsa antiga que eu ouvia na voz de Carlos Galhardo – com certeza produzida em Hollywood –, a ditadura terminou seus dias com um general enfadado, que preferia o cheiro de cavalos ao do povo, encurralada por um poderoso movimento democrático que deitou raízes em praticamente todos os setores da sociedade. O movimento pelas Diretas Já, no entanto, teve um desenlace moldado em termos irretorquivelmente brasileiros: um pacto pelo alto, entre o partido oficial de oposição à ditadura e o falido partido da própria ditadura, que entregou a Presidência, numa eleição indireta, a um civil mais conservador que o próprio general que saía de sua ronda. Por infelicidade, o poder terminou nas mãos de um acadêmico maranhense de mais do que duvidoso prestígio literário. Como diria minha professora d. Delfina, desafiando-nos: “Dou um doce a quem tenha lido os tais Maribondos de Fogo”. Chamava-se José Sarney. Continua nos brindando com nomeações ao Senado como se estivesse na praia do Calhau, em São Luís. Quem governa, o atraso ou o avanço? Houve então o interregno de Fernando Collor, que tinha voto, mas não tinha voz, e de Itamar Franco, que não tinha nem voto nem voz. E então chegou o progresso mesmo, em pessoa, adornado com os títulos e as pompas da Universidade de São Paulo. Fernando Henrique Cardoso realizou o que nem a Dama de Ferro tinha ousado: privatizou praticamente toda a extensão das empresas estatais, numa transferência de renda, riqueza e patrimônio que talvez somente tenha sido superada pelo regime russo depois da queda de Mikhail Gorbachev. Como Antônio Carlos Magalhães, o enérgico cacique da Bahia, foi seu parceiro, confirma-se a tese de que somente se pode governar com o atraso?

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Longe disso. ACM nunca foi um oligarca no sentido rigoroso do termo e, mais que isso, a política econômica de Fernando Henrique jamais esteve sob o controle de Antônio Carlos e assemelhados. A política econômica era reserva de caça exclusiva de FHC e de seus tucanos, hoje banqueiros. Essa turma se desfez do melhor da estrutura do Estado longamente criada desde os anos 1930, cortando os pulsos num afã suicida sem paralelo na história nacional. Honra a São Paulo e a seus ideólogos: Eugênio Gudin não faria igual e o Estadão exultava a cada medida “racional” do governo FHC. Manipulando o fetiche da moeda estável, Fernando Henrique retirou do Estado brasileiro a capacidade de fazer política econômica. Com os dois mandatos, os tucanos operaram um tournant do qual seu sucessor veio a ser prisioneiro – com a peculiaridade de que Lula radicalizou no descumprimento de um mandato que lhe foi conferido para reverter o desastre de FHC. É nesse contexto que opera a “hegemonia às avessas”. Que se pode ver no avesso do avesso? Começando pela economia, que tem sido o argumento maior da era Lula: sua taxa de crescimento médio nos seis anos é inferior à taxa histórica da economia brasileira e, em 2009, previa-se uma queda relativa que o levaria de volta à performance de seu antecessor imediato, o odiado (para os petistas-lulistas) FHC. O crescimento tem se baseado numa volta à “vocação agrícola” do país, sustentado por exportações de commodities agropecuárias – o Brasil, um país de famintos, é hoje o maior exportador mundial de carne bovina – e de minério de ferro, graças às pesadas importações da China. Com o simples arrefecimento do crescimento chinês, que de 10% ao ano regrediu para uns 8%, a queda das exportações brasileiras já provocou uma forte retração do PIB agropecuário. As exportações voltaram a ser lideradas pelos bens primários, o que não acontecia desde 1978. Proclama-se aos quatro ventos a diminuição da pobreza e da desigualdade, baseada no Bolsa Família. Os dados disponíveis não indicam redução da desigualdade, embora deva ser certo que a pobreza absoluta diminuiu. Mas não se sabe quanto. A desigualdade provavelmente aumentou, e os resultados proclamados são falsos, pois medem apenas as rendas do trabalho, que, na verdade, melhoraram muito marginalmente, graças aos benefícios do INSS e não do Bolsa Família. Quem proclama isso é o insuspeito Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É impossível medir a desigualdade total de rendas: em primeiro lugar, pela conhecida subestimação que é prática no Brasil e, em segundo lugar, por um problema de natureza metodo-

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lógica (conhecido de todos que lidam com estratificações), que é a quase impossibilidade de fechar o decil superior da estrutura de rendas. Metodologicamente, como lembrou Leda Paulani, as rendas do capital são estimadas por dedução, enquanto as rendas do trabalho são medidas diretamente na fonte. Medidas indiretas sugerem, e na verdade comprovam, o crescimento da desigualdade: o simples dado do pagamento do serviço da dívida interna, em torno de 200 bilhões de reais por ano, contra os modestíssimos 10 bilhões a 15 bilhões do Bolsa Família, não necessita de muita especulação teórica para a conclusão de que a desigualdade vem aumentando. Márcio Pochmann, presidente do Ipea, que continua a ser um economista rigoroso, calculou que uns 10 mil a 15 mil contribuintes recebem a maior parte dos pagamentos do serviço da dívida. Outro dado indireto, pela insuspeita – por outro viés – revista Forbes, já alinha pelo menos 10 brasileiros entre os homens e mulheres mais ricos do mundo capitalista2. Por último, a Fundação Getulio Vargas divulgou, no fim de setembro, uma pesquisa que prova que a classe que mais cresceu proporcionalmente, de 2003 a 2008, não foi a C nem a D. Foi, isso sim, as classes A e B, que têm renda familiar acima de 4.807 reais – e o dado não leva em conta a valorização da propriedade, ações e investimentos financeiros. Do ponto de vista da política, o avesso do avesso é sua negação. Trata-se da administração das políticas sociais. Cooptam-se centrais sindicais e movimentos sociais, entre eles o próprio Movimento dos Sem-Terra, que ainda resiste. A política não só é substituída pela administração, como se transformou num espetáculo diário: o Presidente anuncia com desfaçatez avanços e descobertas que no dia seguinte são desmentidos. O etanol, que seria a panaceia de todos os males, foi rapidamente substituído pelo pré-sal, que agora urge defender com submarinos nucleares e caças bilionários. Aliás, o pré-sal prometia reservas que elevariam o Brasil à condição de maior produtor mundial de petróleo, superando os países do Golfo e dando, de colher, 2

Essa famigerada lista é liderada por Carlos Slim, mexicano que fica cada vez mais rico, enquanto seu belo país mergulha fundo na mais infame pobreza. Carlos Fuentes, o magnífico romancista mexicano de A morte de Artemio Cruz, nos brinda, em seu recente La voluntad y la fortuna, com um implacável retrato do gordo bilionário mexicano, além de nos dar, na tradição dos grandes muralistas do país asteca, um magnífico panorama do México moderno, atolado na miséria e no crime, tendo no pescoço a pedra do Nafta, o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio.

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os recursos para quitar a obscena dívida social brasileira. Não tardou muito e a Exxon furou um poço... seco. E agora a British Group, associada à Petrobras, anuncia a mesma coisa. E as expectativas de reserva passaram de 1 trilhão de barris de petróleo para modestos 8 bilhões. As previsões da equipe econômica são de mágico de quintal. No princípio do ano, em plena crise, o crescimento estimado estava na casa dos 6% para 2009. Pouco a pouco, as previsões – dignas de Nostradamus – foram caindo para 4%, 5%, 3% e hoje se aposta em 1%. O chamado ciclo neoliberal, que começa com Fernando Collor e já está com seus quase vinte aninhos com Lula, é um ciclo anti-Polanyi, o magistral economista e antropólogo húngaro radicado na Inglaterra. O projeto do socialismo democrático de Karl Polanyi começava por deter a autonomia do mercado e dos capitalistas. Ora, o governo Lula, na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique, só faz aumentar a autonomia do capital, retirando das classes trabalhadoras e da política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática. Se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação. E todos fomos mergulhados outra vez na cultura do favor – viva Machado de Assis, viva Sérgio Buarque de Holanda e viva Roberto Schwarz! As classes sociais desapareceram: o operariado formal é encurralado e retrocede, em números absolutos, em velocidade espantosa, enquanto seus irmãos informais crescem do outro lado também de maneira espantosa. Em sua tese de doutorado, Edson Miagusko flagrou, talvez sem se dar conta, a tragédia: de um lado da simbólica Via Anchieta, no terreno desocupado onde antes havia uma fábrica de caminhões da Volks, há agora um acampamento de sem-teto, cuja maioria é de ex-trabalhadores da Volks. Do outro lado da famosa via, sem nenhuma simultaneidade arquitetada – aliás, os dois grupos se ignoraram completamente –, uma assembleia de trabalhadores ainda empregados da Volks tentava deter a demissão de mais 3 mil companheiros. Eis o retrato da classe: em regressão para a pobreza. De são Marx para são Francisco. As classes dominantes, se de burguesia ainda se pode falar, transformaram-se em gangues no sentido preciso do termo: as páginas policiais dos jornais são preenchidas todos os dias com notícias de investigações, depoimentos e prisões (logo relaxadas quando chegam ao Supremo Tribunal Fe-

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deral) de banqueiros, empreiteiros, financistas, executivos que lhes servem e policiais a eles associados. A corrupção campeia de alto a baixo: do presidente do Senado, que ocultou a propriedade de uma mansão, ao ex-diretor da casa, que repetiu – ou antecipou? – a mesma mutreta, passando por senadores que pagam passagens de sogras e namoradas com verbas de viagem e deputados que compram castelos com verba indenizatória. Trata-se de um atavismo nacional? Só os que sofrem de complexo de inferioridade tenderiam a pensar assim. Qualquer jornal norte-americano da segunda metade do século XIX noticiava a mesma coisa. Até a mulher de Lincoln praticava, em conluio com o jardineiro, pequenos “desvios” de verba da casa da avenida Pensilvânia (segundo a famosa má língua de Gore Vidal). A novidade do capitalismo globalitário é que ele se tornou um campo aberto de bandidagem – que o diga Bernard Madoff, o grande líder da Nasdaq durante anos. Nas condições de um país periférico, a competição global obriga a uma intensa aceleração, que não permite regras de competição que Weber gostaria de louvar. O velho Marx dizia que o sistema não é um sistema de roubo, mas de exploração. Na fase atual, Marx deveria reexaminar seu ditame e dizer: de exploração e roubo. O capitalismo globalitário avassala todas as instituições, rompe todos os limites, dispensa a democracia. O avesso do avesso da “hegemonia às avessas” é a face, agora inteiramente visível, de alguém que vestiu a roupa às pressas e não percebeu que saiu à rua do avesso. Mas agora é tarde: Obama sentenciou que “ele é o cara” e todo mundo o vê assim. O lulismo é uma regressão política, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda.

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Bibliografia • 391 POCHMANN, M.; MORETTO, A. Reforma trabalhista: a experiência internacional e o caso brasileiro. Cadernos Adenauer. Rio de Janeiro, Konrad Adenauer Stiftung, ano 3, n. 2. POLANYI, Karl. The great transformation. Nova York, Farrar & Rinehart, 1944. [Ed. bras.: A grande transformação, Rio de Janeiro, Elsevier Campus, 2000.] POWELL, Lewis F. Confidential memorandum: attack of American free enterprise system (To: Mr. Eugene b. Sydnor, Jr., chairman, Education Committee, U.S. Chamber of commerce). 23 ago. 1971. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2008. PRADO, Eleutério da Silva. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São Paulo, Xamã, 2005. PUBANTZ, Jerry. The US-UN relationship and the promotion of democratic nationbuilding. Societies Without Borders, v. 2, n. 1, 2007. p. 93-116. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2010. PUTNAM, Robert. Bowling alone: the collapse and revival of American community. Nova York, Simon & Schuster, 2000. RAMÍREZ, Hernán. La Fundación Mediterránea y de cómo construir poder: la génesis de un proyecto hegemónico. Córdoba, Ferreyra, 2000. ______. Institutos de estudos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996. Anos 90. Porto Alegre, v. 13, 2006. p. 179-214. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2010. REES, E. A. State control in Soviet Russia: the rise and fall of the workers’ and peasants’ inspectorate, 1920-1934. Londres, Macmillan, 1987. RICHTA, Radovan. La civilización en la encrucijada. Cidade do México, Siglo XXI, 1971. RICOUER, Paul. Freud and philosophy: an essay on interpretation. New Haven, Yale University Press, 1970. RITTERSPORN, Gabor T.; ROLF, Malte; BEHRENDS, Jan C. (orgs.). Sphären von Öffentlichkeit in Gesellschaften sowjetischen Typs: Zwischen partei-staatlicher Selbstinszenierung und Gegenwelten. Berna, Peter Lang, 2003. RIZEK, Cibele. A greve dos petroleiros. Praga. São Paulo, n. 9, 1998. RODRIGUES, L. M. Partidos e sindicatos: ensaios de sociologia política. São Paulo, Ática, 1990. ROLLE, Pierre. Norme et chronométrage dans le salaire au rendement. Cahiers d’Études de l’Automation et des Sociétés Industrielles. n. 4, 1962. p. 9-38. ROSE, Rob. Minister has a cheek threatening electricity consumption fines. Business Day. 4 jun. 2007. ROSEFIELDE, Steven. Stalinism in post-communist perspective: new evidence on killings, forced labor and economic growth in the 1930s. Europe-Asia Studies. v. 48, n. 6, set. 1996. p. 959-87. SANTOS, T. A teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000. SCHUMPETER, J. Business cycles: a theoretical, historical and statistical analysis of the capitalist process. Filadélfia, Porcupine Press, 1989.

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392 • Hegemonia às avessas SCHWARZ, Roberto. Cultura e política: 1964-1969. Em: ______. O pai de família e outros estudos. São Paulo, Paz e Terra, 1978. p. 61-92. SCOTT, James M.; WALTERS, Kelly J. Supporting the wave: Western political foundations and the promotion of a global democratic society. Global Society. v. 14, n. 2, 2000. p. 237-57. SEEKINGS, Jeremy; NATRASS, Nicoli. Class, race and inequality in South Africa. Durban, University of Kwazulu-Natal Press, 2006. SENNETT, Richard. The corrosion of character: the personal consequences of work in the new capitalism. Nova York, W. W. Norton, 1998. SHEARER, David R. The language and politics of socialist rationalization: productivity, industrial relations and the social origins of stalinism at the end of NEP. Cahiers du Monde Russe et Soviétique. v. 32, n. 4, out.-dez. 1991. p. 581-608. SHORT, J. Urban imageneers. In: JONAS, A. E. G.; WILSON, D. (orgs.). The urban growth machine: critical perspectives two decades later. Nova York, State University of New York Press, 1999. SIEGELBAUM, Lewis H. Soviet norm determination in theory and practice, 1917-1941. Soviet Studies. v. 36, n. 1, 1984. p. 45-68. SIEGELBAUM, Lewis H. Stakhanovism and the politics of productivity in the USSR (19351941). Cambridge, Cambridge University Press, 1988. SILVER, Beverly J. Forces of Labor: Workers’ Movements and Globalization since 1870. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003. [Ed. bras.: Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870, São Paulo, Boitempo, 2005.] SLATER, David. Imperial powers and democratic imaginations. Third World Quarterly. v. 27, n. 8, 2006. p. 1369-86. SOUTH AFRICA GOVERNMENT INFORMATION. “‘The State of our environment should remain under a watchful eye’ Government release the 2006 Environment Outlook – State of the Environment Report and urges that more work needs to be done”. Disponível em: . Acesso em: 25 ago. 2010. SOUZA, M. V. de. Transformações recentes no extremo leste de São Paulo: Itaim Paulista e Cidade Tiradentes. Texto de qualificação de doutoramento apresentado ao programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, USP, São Carlos, 2007. STANDING, Guy. Global labour flexibility: seeking distributive justice. Nova York, St. Martin’s Press, 1999. TAVARES DE ALMEIDA, M. H. Crise econômica e interesses organizados. São Paulo, Edusp, 1996. TAYLOR, Frederick W. The principles of scientific management. Nova York, Harper & Brothers, 1911. THE ECONOMIST. Economics focus: Domino theory. 26 fev. 2009. THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa, vol 1: A árvore da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. URGENSE. Un taylorisme arythmique dans les économies planifiées du centre. Critiques de l’Économie Politique. n. 19, abr.-jun. 1982. p. 99-146. VAINER, C. Os liberais também fazem planejamento urbano? Em: ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. O pensamento único das cidades: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.

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Bibliografia • 393 ______. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico. Em: ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. O pensamento único das cidades: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000. p. 75-104. VALLY, Salim; SPREEN, C. A. Education rights, education policy and inequality in South Africa. International Journal of Educational Development. v. 26, n. 4, 2006. VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. Em: DEÁK, C.; SCHIFFER, S. (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp/ Fupam, 1999. p. 169-244. ______. Espaço intraurbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/ Fapesp/ Lilp, 2001. ______. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo, 2005. Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2010. VALOR Econômico. “Tecnisa compra área de 244 mil m² da Telefônica por R$ 135 milhões”. São Paulo, 22 jan. 2007. WALLERSTEIN, I. El moderno sistema mundial I: la agricultura capitalista y los orígenes de la economía-mundo europea en el siglo XVI. Madri, Siglo XXI, 1979. ______. El moderno sistema mundial II: el mercantilismo y la consolidación de la economía-mundo europea (1600-1750). Madri, Siglo XXI, 1984. ______. El moderno sistema mundial III: la Segunda era de gran expansión de la economía-mundo capitalista (1730-1850). Madri, Siglo XXI, 1998. WEBSTER, E.; LAMBERT, R.; BEZUIDENHOUT, A. Grounding globalization: labour in the age of insecurity. Oxford, Blackwell, 2008. WESTERGAARD-NIELSEN, Niels. Low-wage work in Denmark. Nova York, Russell Sage Foundation, 2008. WILLIAMS, Raymond. Marxism and literature. Londres, Oxford University Press, 1977. [Ed. bras.: Marxismo e literatura, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.] ______. Politics and letters. Londres, Verso, 1979. ______. Base and superstructure in Marxist cultural theory. Em: ______. Problems in materialism and culture. Londres, Verso, 1980. ______. You’re a Marxist, aren’t you? Em: ______. Resources of hope. Londres, Verso, 1989. ______; ORROM, Michael. Preface to film. Londres, Film Drama Limited, 1954. WOLF, Erika. When photographs speak, to whom do they talk? The origins and audience of “SSSR na stroike” (USSR in construction). Left History. v. 6, n. 2, 2000. p. 53-82.

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SOBRE OS AUTORES

Alvaro Bianchi, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é professor do Departamento de Ciência Política da mesma instituição, diretor do Arquivo Edgard Leuenroth – Centro de Pesquisa e Documentação Social, secretário de redação da revista Outubro e autor, entre outros livros, de O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política (São Paulo, Alameda, 2008). Arne L. Kalleberg, professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, é autor de diversos livros na área de sociologia do trabalho, dentre os quais destaca-se The Mismatched Worker (Nova York, W. W. Norton, 2007). Foi presidente da Associação Americana de Sociologia entre 2007 e 2008. Ary Cesar Minella, doutor em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Nacional Autônoma do México, com pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Unicamp e no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), é professor titular na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordena o Núcleo de Estudos Sociopolíticos do Sistema Financeiro – Nesfi (www.nesfi.ufsc.br) e é autor do livro Banqueiros: organização e poder político no Brasil, além de diversos artigos publicados em periódicos científicos. Carlos Eduardo Martins, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É um dos organizadores dos livros A América Latina e os desafios da globalização: ensaios dedicados a Ruy

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Mauro Marini (São Paulo, Boitempo, 2009) e Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006). Carlos Nelson Coutinho, professor de Filosofia da UFRJ, é autor, entre outros livros, de O estruturalismo e a miséria da razão (São Paulo, Expressão Popular, 2010) e Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo (São Paulo, Cortez, 2008), tendo participado do volume Lukács e a atualidade do marxismo (São Paulo, Boitempo, 2002). Cibele Rizek, mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutora em Sociologia pela USP e livre-docente pela mesma instituição, é professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos – USP. Coorganizadora dos livros A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007), Francisco de Oliveira: a tarefa da crítica (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006) e France/Brésil: politiques de la question sociale (Caen, Presses Universitaires de Caen, 2000). Francisco de Oliveira, professor titular aposentado de Sociologia da USP, é autor de extensa obra, da qual destacamos Noiva da revolução: elegia para uma re(li)gião (São Paulo, Boitempo, 2008), Crítica à razão dualista: o ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003) e Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita (Petrópolis, Vozes, 1998). Gilberto Maringoni, jornalista, cartunista e doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), é autor de A revolução venezuelana (São Paulo, Editora Unesp, 2009), Tocaia e outros quadrinhos (São Paulo, Devir, 2009) e Barão de Mauá: o empreendedor (São Paulo, Aori, 2007), entre outras publicações. João Sette Whitaker Ferreira, arquiteto-urbanista e economista, é mestre em Ciência Política, doutor em Urbanismo e professor de Planejamento Urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde coordena o Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab). Também leciona na Faculdade de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie e atua como consultor na área de habitação e urbanismo. É autor do livro O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano (Vozes/Unesp/Anpur, 2007).

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Sobre os autores • 397

José Luís Cabaço, sociólogo moçambicano com textos publicados em Margens da cultura (São Paulo, Boitempo, 2004), Raça como retórica: a construção da diferença (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001), Eleições, democracia e desenvolvimento (Maputo, Elo Gráfico, 1995) e Repensando estratégias sobre Moçambique e África Austral (Maputo, Instituto Superior de Relações Internacionais, 1991). Sua tese de doutorado pela USP foi publicada no livro Moçambique: identidades, colonialismo e libertação (Maputo, Marimbique, 2010). Leda Maria Paulani, economista, professora titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pesquisadora sênior da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), foi presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) de junho de 2004 a junho de 2008. É autora de Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico (São Paulo, Boitempo, 2008) e Modernidade e discurso econômico (São Paulo, Boitempo, 2005). Leonardo Mello e Silva, mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutor em Sociologia pela USP com pós-doutorado pelo Centre Pierre Naville (Université d’Évry, França), é professor no Departamento de Sociologia da USP, autor de Trabalho em grupo e sociabilidade privada (São Paulo, Editora 34, 2004) e coorganizador de Mudanças no trabalho e ação sindical: Brasil e Portugal no contexto da transnacionalização (São Paulo, Cortez, 2005). Luiz Renato Martins, doutor em Filosofia, na área de Estética, pela USP, é professor de História, Crítica e Teoria da Arte no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da mesma universidade (ECA-USP). Autor dos livros Manet: uma mulher de negócios, um almoço no parque e um bar (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007) e Conflito e interpretação em Fellini: construção da perspectiva do público (São Paulo, Edusp, 1994). Maria Elisa Cevasco, doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela USP e professora titular da mesma universidade, publicou vários artigos e capítulos de livros no Brasil e exterior. Autora de Dez lições sobre estudos culturais (São Paulo, Boitempo, 2003), dentre outras publicações, e coorganizadora de Crítica cultural materialista (São Paulo, Humanitas,

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2008) e Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz (São Paulo, Companhia das Letras, 2007). Patrick Bond, professor de economia política da Universidade de KwaZulu-Natal, em Durban, na África do Sul, destacou-se em temas como os movimentos sociais na África do Sul. É autor de Looting Africa: the economics of exploitation (Scottsville, África do Sul/Londres, Zed Books/ University of KwaZulu-Natal Press, 2006), entre outros livros e artigos em revistas especializadas. Pedro Fiori Arantes, arquiteto e urbanista, doutor pela FAU-USP e professor de História da Arte e Arquitetura Contemporânea na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é coordenador da Usina, coletivo de assessoria técnica a movimentos populares em projetos de moradia e urbanização (http://www.usinactah.org.br). Autor do livro Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões (São Paulo, Editora 34, 2002). Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Wolfgang Leo Maar, doutor em Filosofia pela USP, com pós-doutorado pela Universität Kassel, é professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor de O que é política (São Paulo, Brasiliense, 1994) e organizador de O público e o privado: o poder e o saber (Rio de Janeiro, Marco Zero, 1984). Yves Cohen, conhecido como um dos mais destacados historiadores do taylorismo francês, é professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) de Paris e especialista em História do Trabalho, com pesquisas realizadas na Alemanha, nos Estados Unidos e nos arquivos da ex-União Soviética. Dentre seus diversos trabalhos publicados, cabe realçar o livro Organiser à l’aube du taylorisme: la pratique d’Ernest Mattern chez Peugeot, 1906-1919 (Besançon, Presses Universitaires Franc-Comtoises, 2001).

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E-BOOKS DA BOITEMPO EDITORIAL & ENSAIOS A educação para além do capital * formato PDF István Mészáros

A era da indeterminação * formato PDF

Francisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.)

Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917 * formato ePub Slavoj Žižek

Bem-vindo ao deserto do Real! (versão ilustrada) * formato ePub Slavoj Žižek

Cinismo e falência da crítica * formato PDF Vladimir Safatle

Crítica à razão dualista/O ornitorrinco * formato PDF Francisco de Oliveira

Extinção * formato PDF Paulo Arantes

Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira * formato PDF Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibele Rizek (orgs.)

Lacrimae rerum: ensaios de cinema moderno * formato PDF Slavoj Žižek

O que resta da ditadura: a exceção brasileira * formato PDF Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs.)

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A situação da classe trabalhadora na Inglaterra * formato PDF Friedrich Engels

Crítica da filosofia do direito de Hegel * formato PDF Karl Marx

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Sobre a questão judaica * formato PDF Karl Marx

Sobre o suicídio * formato PDF Karl Marx
Francisco de Oliveira, Ruy Braga & Cibele Rizek - Hegemonia às avessas

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