É o Senhor! Estudo dos relatos - Alberto Casalegno

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BÍBLICA LOYOLA

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BÍBLICA LOYOLA Sob a orientação da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Belo Horizonte — MG

“É o Senhor!” (Jo 21,7) Estudo dos relatos da ressurreição no Evangelho de João

Alberto Casalegno

À minha mãe, Teresita, e a todos os que zelaram pela minha formação humana e cristã e já vivem na glória do Ressuscitado

Sumário

Prefácio .....................................................................................................

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1. O anúncio da ressurreição no Novo Testamento ............................. 1. Alguns textos .............................................................................. 1.1. Atos dos Apóstolos.............................................................. 1.2. Cartas de Paulo ....................................................................... 1.3. Evangelhos.............................................................................. 1.4. Apocalipse .............................................................................. 1.5. Outros escritos ........................................................................ 2. Fórmulas primitivas ........................................................................ 2.1. A fórmula “Bendito Deus, o ressuscitador de Jesus dentre os mortos” .......................................................... 2.2. A fórmula “Creio que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos” .......................................................... 2.3. A fórmula “Cremos que Jesus morreu e ressuscitou” ............ 2.4. A fórmula de fé: 1 Coríntios 15,3b-5 ..................................... 3. Desenvolvimento da fé pascal ........................................................

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2. Uma visão de conjunto ................................................................... 1. Organização do relato ..................................................................... 2. Incongruências do relato ................................................................ 2.1. Incongruências em João 20,1-18 ............................................ 2.2. Elementos repetidos em João 20,19-29 .................................. 3. Relação do relato com os textos anteriores e posteriores ............... 3.1. João 20 e a narração da paixão ............................................... 3.2. João 20 e a primeira conclusão ...............................................

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3. O túmulo vazio ............................................................................... 1. As mulheres ao túmulo ...................................................................

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1.1. O tempo da visita .................................................................... 1.2. A motivação da visita ............................................................. 1.3. O obstáculo da pedra .............................................................. 1.4. O túmulo de Jesus ................................................................... Os homens visitando o túmulo ....................................................... 2.1. A figura do discípulo amado .................................................. 2.2. O discípulo amado, intérprete do túmulo vazio...................... 2.3. O discípulo amado e Pedro ..................................................... 2.4. Uma fonte literária comum ..................................................... As mortalhas ................................................................................... 3.1. Os panos mortuários ............................................................... 3.2. O sudário ................................................................................ 3.3. Exatidão na descrição dos panos mortuários .......................... O nascimento da fé ......................................................................... 4.1. Ver e crer................................................................................. 4.2. Fé na ressurreição e Escritura ................................................. Interesse pelo túmulo vazio ............................................................ 5.1. Atenção progressiva ao túmulo vazio ..................................... 5.2. O túmulo vazio e as explicações dos autores.......................... 5.3. Elementos em favor da historicidade do túmulo vazio ........... 5.4. Túmulo vazio e fé cristã .........................................................

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4. Maria Madalena ao túmulo ............................................................. 1. Interesse pela figura feminina ........................................................ 1.1. Madalena, mulher cheia de entusiasmo .................................. 1.2. Madalena, símbolo da Igreja .................................................. 1.3. Madalena e as tarefas femininas na comunidade joanina ....... 2. Aparição dos anjos e aparição de Jesus .......................................... 2.1. Os anjos e o túmulo vazio....................................................... 2.2. A aparição de Jesus................................................................. 3. A glória do Ressuscitado ................................................................ 3.1. Não me toques ........................................................................ 3.2. A ascensão de Jesus ................................................................ 3.3. Páscoa e Aliança definitiva ..................................................... 4. Leituras simbólicas .........................................................................

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5. Jesus aparece aos discípulos ........................................................... 1. Os discípulos, destinatários da aparição ......................................... 2. A experiência do Ressuscitado ....................................................... 2.1. Superação do medo................................................................. 2.2. A iniciativa de Jesus ............................................................... 2.3. O dom da paz ..........................................................................

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2.

3.

4.

5.

2.4. O Ressuscitado e Jesus de Nazaré .......................................... 2.5. A alegria ................................................................................. 3. As palavras de Jesus ....................................................................... 3.1. O mandato missionário ........................................................... 3.2. O dom do Espírito Santo ........................................................ 3.3. O perdão dos pecados ............................................................. 4. Relação entre João 20,19-23, Lucas 24,36-49 e Mateus 28,16-20 .

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6. Aparição a Tomé ............................................................................. 1. O personagem de Tomé .................................................................. 2. Confissão dos discípulos e pedido de Tomé ................................... 3. Necessidade de uma reviravolta interior ......................................... 4. Confissão de fé de Tomé ................................................................ 4.1. Os termos ................................................................................ 4.2. A modalidade da fé de Tomé .................................................. 4.3. A fórmula da Aliança.............................................................. 4.4. Reprovação ou elogio?............................................................ 5. A bem-aventurança da fé ................................................................ 6. Tomé e Natanael .............................................................................

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7. A aparição no Lago de Tiberíades .................................................. 1. Tradição da aparição aos discípulos na Galileia ............................. 2. Intuito atualizador ........................................................................... 3. Elementos literários e organização ................................................. 4. A pesca milagrosa........................................................................... 4.1. Uma narrativa aberta para o futuro ......................................... 4.2. Êxito depois do fracasso ......................................................... 4.3. Entusiasmo de Pedro............................................................... 4.4. Os 153 grandes peixes ............................................................ 5. A refeição ....................................................................................... 6. O beneficiário originário da aparição ............................................. 6.1. As incongruências do relato ................................................... 6.2. Relação entre João 21,1-8 e Lucas 5,1-11 .............................. 6.3. Aparição a Pedro? ................................................................... 7. Jesus e Pedro ................................................................................... 7.1. O amor de Pedro por Jesus ..................................................... 7.2. Mais do que estes.................................................................... 7.3. Tu sabes tudo .......................................................................... 7.4. A tarefa pastoral de Pedro....................................................... 7.5. O futuro de Pedro.................................................................... 8. O destino do discípulo amado ........................................................

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9. Situação histórica da Igreja joanina................................................ 140 10. Em síntese ....................................................................................... 142

8. A experiência dos discípulos .......................................................... 1. O limite da linguagem humana....................................................... 2. Diferentes tipos de narrativas ......................................................... 2.1. Narrativas sucintas .................................................................. 2.2. Narrativas circunstanciais ....................................................... 2.3. Narrativas mistas .................................................................... 3. O que os discípulos “viram” ........................................................... 3.1. O vocabulário joanino da visão .............................................. 3.2. O encontro com o Senhor ....................................................... 4. A linguagem da ressurreição .......................................................... 4.1. Despertar e levantar(-se) ......................................................... 4.2. Viver ....................................................................................... 4.3. Elevar, glorificar ..................................................................... 4.4. Em síntese ...............................................................................

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9. A teologia joanina dos relatos de aparição ..................................... 1. Vitória sobre a morte ...................................................................... 2. Unidade do evento pascal ............................................................... 3. Ressurreição, sinal da vitória da cruz ............................................. 4. Ressurreição, perfeita revelação de Jesus e de Deus ...................... 5. O dom do Espírito Santo ................................................................ 6. A nova Aliança................................................................................ 7. A Igreja, dom pascal para a humanidade........................................

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10. A ressurreição do cristão ................................................................ 1. Jesus, ressurreição e vida................................................................ 1.1. Lázaro volta à vida ................................................................. 1.2. Ressurreição futura e ressurreição presente ........................... 1.3. A escatologia realizada ........................................................... 2. Jesus, doador da vida ...................................................................... 3. Batismo, início da vida ressuscitada ............................................... 4. Palavra e Eucaristia, fontes de vida ................................................ 4.1. Jesus, palavra que vivifica (6,35-48) ...................................... 4.2. Jesus, pão eucarístico que dá a vida (6,49-58) ....................... 5. A espera da morada definitiva ........................................................ 5.1. A casa e as moradas ................................................................ 5.2. A partida e a volta de Jesus .................................................... 5.3. Jesus, caminho para o encontro com Deus ............................. 6. Seriedade da vida cristã ..................................................................

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6.1. A responsabilidade humana .................................................... 193 6.2. Viver na fé e no amor ............................................................. 195 6.3. A ressurreição de vida ............................................................ 195

11. O corpo da ressurreição .................................................................. 1. A visão antropológica da Bíblia ..................................................... 1.1. Corpo (ba-sa-r, sôma) ............................................................... 1.2. Alma (néfesh, psyché)............................................................. 1.3. Espírito (rûah., pneûma) .......................................................... 1.4. Coração (leb, kardía) .............................................................. 1.5. Linguagem a ser preservada ................................................... 2. A realidade da morte ...................................................................... 2.1. Condição mortal do ser humano e fidelidade de Deus ........... 2.2. Lado positivo da morte ........................................................... 3. Morte e ressurreição ....................................................................... 3.1. Morte completa ou sono da alma? .......................................... 3.2. Ressurreição na morte ............................................................ 3.3. Coincidência entre morte, ressurreição e parusia ................... 4. Pressupostos para compreender a ressurreição............................... 4.1. Corpo e corporeidade ............................................................. 4.2. Alma separada ou incorporada? ............................................. 4.3. Perigo do gnosticismo............................................................. 4.4. Realismo pneumático ............................................................. 4.5. Estado intermediário............................................................... 5. Ressurreição como processo em desenvolvimento......................... 5.1. Morte, início da ressurreição .................................................. 5.2. Ressurreição no último dia .....................................................

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12. O desafio da reencarnação.............................................................. 1. História e doutrina do espiritismo .................................................. 1.1. Espíritos e reencarnação na Antiguidade................................ 1.2. Reencarnação no Oriente e no Ocidente ................................ 1.3. O espiritismo de Allan Kardec ............................................... 1.4. Os princípios do espiritismo kardecista .................................. 2. Espiritismo e suas experiências básicas.......................................... 2.1. Lembranças de vidas passadas ............................................... 2.2. Viagens fora do corpo............................................................. 2.3. Experiências de pré-morte ...................................................... 2.4. Comunicação com os finados ................................................. 2.5. Recusa da ressurreição ........................................................... 3. Crítica à doutrina da reencarnação ................................................. 3.1. Visão dicotômica da pessoa ....................................................

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3.2. Banalização da morte e do mal............................................... 3.3. Salvação como autorrealização .............................................. 3.4. Homogeneidade da realidade.................................................. 3.5. Falta de cientificidade e confusões ......................................... 4. Reencarnação e ressurreição ..........................................................

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À guisa de conclusão ................................................................................ 237 Bibliografia ............................................................................................... 243 Índice dos autores ..................................................................................... 247 Índice dos textos ....................................................................................... 253 Índice analítico .......................................................................................... 255

OBSERVAÇÃO À TRANSLITERAÇÃO DE TERMOS GREGOS:

ch se pronuncia como kh o- = ômega (com acento tônico: ô) e- = eta (com acento tônico: ê)

Prefácio Cantai ao Senhor um cântico novo, porque ele fez maravilhas; a sua destra e o seu braço santo lhe alcançaram a vitória. Salmo 99,1

No Novo Testamento, o grande anúncio da ressurreição se espalha com rapidez pelo mundo afora, atingindo os habitantes de Jerusalém e as cidades mais importantes da bacia mediterrânea, chegando até Roma, o centro do Império e o coração do paganismo. Embora a pregação do Cristo morto e ressuscitado seja “escândalo” e “loucura” (1Cor 1,23) e as perseguições contra os cristãos não faltem, o testemunho corajoso deles acaba se impondo na sociedade pagã da época. Com Teodósio, o cristianismo é reconhecido como religião do Estado romano. Trata-se de um anúncio rico de consequências que reconhece o caráter messiânico da vida de Jesus, o valor salvífico de sua morte e a verdade de sua identidade de Filho de Deus. Refere-se não somente à pessoa de Jesus, mas abrange a humanidade toda, solidária com o Verbo que se fez carne, representando o início da renovação cósmica de todas as coisas. Na sociedade moderna, bastante secularizada e caracterizada pelo progresso da ciência e da técnica, em que o bem-estar dos povos aumentou, apesar das graves situações de pobreza que ainda existem, muitos estão se tornando adoradores das obras de suas mãos, pensando que o homem seja dono de si mesmo e possa construir aqui e agora sua felicidade, sem a necessidade de Deus. Por isso, não poucos, marcados pelo racionalismo, aceitam uma visão 13

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

agnóstica da existência, duvidando da dimensão transcendente da realidade e recusando toda perspectiva de ressurreição. Os motivos são vários: pensa-se que a ressurreição seja a simples reanimação de um cadáver; portanto algo de absurdo porque, como ensinam as ciências humanas, a morte é irreversível e o cadáver não pode voltar para a vida. Sob o influxo das disciplinas psicológicas, destaca-se que a fé na ressurreição é a simples projeção do desejo do inconsciente; então, uma mera utopia. Além disso, o mito da produção e da praxe leva a considerar a fé na ressurreição uma realidade alienante que transpõe para a vida futura o que deveria ser alcançado na vida presente, representando assim um empecilho para o verdadeiro desenvolvimento da sociedade. Há também pessoas às quais parece mais digno do ser humano e mais realista viver sem a perspectiva final da ressurreição. Afirmam que para uma existência satisfatória são suficientes os objetivos limitados que cada um pode alcançar nesta vida, louvando “a coragem daqueles que, julgando a existência humana vazia de qualquer significado, se esforçam por lhe conferir, por si mesmos, todo o seu valor”, como reconhece o Concílio1. O resultado dessas perspectivas, aceitas com passividade crescente, é considerar a vida “uma paixão inútil” (Jean-Paul Sartre), da qual o ser humano não deve dar conta a ninguém. Essa visão, que aos poucos leva a sentimentos de impotência e de resignação, é porém recusada por muitos que, em nome da razão, se perguntam se é verdade que nada existe fora do que é constatável e mensurável pelo ser humano. Se as críticas feitas ao anúncio cristão da ressurreição ajudam a precisar melhor sua realidade, evitando erros perigosos, é bastante evidente que essas tomadas de posição se baseiam na compreensão errada do dado revelado. Nos textos bíblicos, nunca se fala de ressurreição como reanimação de um cadáver, destinado à corrupção, porque a ressurreição não representa uma volta para trás, mas a entrada numa outra dimensão, que é a dimensão de Deus. Igualmente, nem todo desejo do ser humano corresponde à projeção de anseios psicossociais limitados, sinais de sua imperfeição, porque nele há um desejo estrutural de eternidade, que revela sua abertura básica para o transcendente, permitindo-lhe superar a realidade da própria morte, o que é impossível ao animal. É óbvio também que a verdadeira fé na ressurreição não afasta dos compromissos terrestres, mas oferece uma força maior na luta pela justiça e pela igualdade entre os homens. Aliás, a consideração da precariedade da 1. Cf. Gaudium et spes 10. 14

Prefácio

justiça terrena exige uma justiça divina, portanto uma vida futura, pois seria um absurdo que aos mortos pela justiça nunca fosse reconhecido o valor de seu sacrifício. Pode-se acrescentar que também entre os que acreditam na vida do além há erros e desvios. Os partidários dos grupos espíritas ou das religiões orientais procuram dar um sentido à existência humana à luz da doutrina da reencarnação e do eterno retorno de todas as coisas, sem, porém, reconhecer o valor da pessoa em sua integridade e sem conseguir explicar de forma adequada o mistério da existência humana. À luz dessa situação de confusão e desnorteamento, que atinge também muitos cristãos, é importante reconsiderar os relatos evangélicos da ressurreição. É importante ter consciência de que a palavra definitiva da revelação se encontra na pessoa de Jesus, o qual, sendo Filho de Deus, representa o cume de todos os anúncios salvíficos dirigidos à humanidade e constitui o alicerce estável de toda esperança. O estudo analisa o tema da ressurreição no quarto evangelho, que constitui o ponto mais elevado da reflexão teológica neotestamentária, levando em conta, quando necessário, também as perspectivas sinópticas, mostrando como o pensamento da Igreja primitiva evoluiu no tempo. O título do estudo, É o Senhor!, é extraído da confissão de fé do discípulo amado diante de Jesus ressuscitado no episódio da pesca milagrosa no lago de Tiberíades e expressa a meta que todos os cristãos são chamados a alcançar, reconhecendo em Jesus, vencedor da morte, o Senhor da glória. A análise paciente dos textos nos permitirá compreender melhor o que João e os outros evangelistas entendem quando falam de ressurreição. Ao mesmo tempo, será possível evidenciar que o evento representa realização plena de toda a história da salvação, que começa por Abraão, oferecendo uma resposta a todos os anseios do ser humano. Trata-se de um evento de fé que revela a grandeza do plano de Deus e a dignidade da pessoa humana, destinada a encontrar-se com Deus nesta vida e na vida futura. O anúncio não oferece uma consolação efêmera e ilusória, porque a fé na ressurreição exige a aceitação lúcida da existência com todos os seus sofrimentos e com a morte, na certeza de que o desfecho da vida humana é determinado por Deus, que ama sua criatura. Nesse sentido, a proclamação da ressurreição de Jesus se torna um anúncio libertador que proporciona uma visão otimista da vida. Este trabalho é fruto de vários cursos ministrados em várias faculdades de teologia, no Brasil e na Europa, nos quais foram enfrentados sucessivamente vários aspectos do tema. É dirigido tanto aos profissionais da Bíblia como às 15

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

pessoas que, sem ter uma competência específica, gostam de aprofundar-se cientificamente num assunto importante como o da ressurreição. Belém do Pará, 27 de maio de 2012 Solenidade de Pentecostes ALBERTO CASALEGNO, SJ

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Capítulo 1

O anúncio da ressurreição no Novo Testamento

O anúncio de que Jesus morreu e ressuscitou representa a convicção básica da comunidade primitiva, o alicerce de sua fé e de sua esperança. Com efeito, se Cristo não tivesse ressuscitado, ilusória seria a fé cristã e o pecado ainda não teria sido derrotado (1Cor 15,17). Todos os livros do Novo Testamento falam da ressurreição.

1. Alguns textos 1.1. Atos dos Apóstolos Nos Atos, logo depois da descida do Espírito Santo, os discípulos, com coragem, começam a dirigir-se aos judeus da diáspora que estão presentes em Jerusalém, proclamando o grande evento da ressurreição de Jesus. Embora se faça uma breve alusão à vida pública de Jesus, dizendo que foi “homem aprovado por Deus […] com milagres, prodígios e sinais”, todo o peso da declaração vai para o evento pascal: “Este, entregue segundo um desígnio determinado e a presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pela mão dos ímpios; mas Deus o ressuscitou, libertando-o das angústias da morte, pois não era possível que ele fosse retido em seu poder” (At 2,22-24). É Pedro que, em nome de todos os apóstolos, manifesta essa firme convicção de fé, que caracteriza toda a comunidade. 17

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Isso acontece também nos outros sermões. Logo após a cura do paralítico da Porta Formosa, Pedro destaca que o milagre não teve como causa a força ou a capacidade humana — “como se por nosso próprio poder ou piedade tivéssemos feito este homem andar” — , mas deve ser atribuído ao Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, o Deus “que glorificou o seu servo Jesus”, a quem os judeus entregaram e negaram diante de Pilatos e que Deus “ressuscitou dentre os mortos” (3,12-15). Também perante o Sinédrio Pedro e João repetem a mesma confissão de fé, opondo à ignorância homicida dos chefes do povo judeu a ação reabilitadora de Deus, que ressuscitou Jesus dentre os mortos (4,10; cf. 5,29-30). Esses exemplos mostram que no relato dos Atos, escrito no final do século I, a pregação da Igreja começa com a proclamação do evento pascal, que penetra no coração dos ouvintes e gera novos cristãos. Paulo a reitera no sermão da sinagoga de Antioquia da Pisídia (13,29-30), bem como no Areópago de Atenas, diante dos filósofos estoicos e epicureus (17,31). Sua pregação tem o mesmo enfoque também no cativeiro, confessando diante do Sinédrio (23,6), do procurador romano Félix (24,15.21) e do rei Agripa II (26,8.23) que Jesus ressuscitado é uma realidade que ele deve obrigatoriamente anunciar. De fato, Lucas realça que a ressurreição de Jesus constitui o cumprimento da promessa que Deus fez aos patriarcas (At 13,32), explicitando a afirmação que já se encontra no relato dos discípulos de Emaús (Lc 24,27.32). Dessa forma, manifesta sua persuasão de que a morte e a ressurreição de Jesus representam o ponto mais elevado de toda a revelação bíblica, mostrando que o Antigo Testamento está orientado para o evento pascal. Com efeito, o Deus dos patriarcas é Deus de vivos, não de mortos (Mc 12,26-27).

1.2. Cartas de Paulo No corpo paulino, a insistência no evento pascal é ainda maior. Não há carta em que o Apóstolo não mencione a morte e a ressurreição de Jesus. Na primeira epístola aos Tessalonicenses, que representa o primeiro documento do Novo Testamento, Paulo resolve a dúvida da comunidade a respeito da união entre os já falecidos e os que ainda estarão vivos na hora da vinda escatológica do Senhor, destacando que todos serão transformados pela força da ressurreição de Jesus e formarão uma só família (1Ts 4,14). Na primeira carta aos Coríntios, o Apóstolo, para combater as opiniões de alguns membros da comunidade que, à luz da filosofia grega, recusavam a perspectiva da ressurreição, oferece uma análise aprofundada da questão, fazendo referência 18

Capítulo 1 – O anúncio da ressurreição no Novo Testamento

à tradição primitiva e procurando dar uma explicação da realidade do corpo ressuscitado (1Cor 15,1-58). Também nas outras cartas paulinas o evento da morte e ressurreição de Jesus recebe grande destaque. No início da carta aos Romanos encontra-se uma confissão de fé anterior ao próprio Paulo que frisa tanto a humanidade de Jesus como sua ressurreição: “nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos, segundo o Espírito de santidade” (Rm 1,3-4). Paulo acrescenta que é pela morte e ressurreição de Jesus que se torna possível a justificação do ser humano pecador (4,24-25), a partir do batismo, que constitui o início da vida nova, animada pelo Espírito (6,4.9). A energia com que Paulo desempenha seu ministério lhe vem de Deus “que ressuscita os mortos” (2Cor 1,9), sendo convencido de que “aquele que ressuscitou o Senhor Jesus” o ressuscitará juntamente com Jesus, por meio do Espírito Santo, que renova todas as coisas (4,14). A generosidade que leva o Apóstolo a viver pela causa do Reino — e não mais para si — depende da consideração da doação que Jesus fez na cruz e de sua vitória na ressurreição (5,14-15). O mesmo interesse pela morte e ressurreição de Jesus aparece no hino da carta aos Filipenses (Fl 2,6-11). Também nas cartas aos Colossenses e aos Efésios, que pertencem provavelmente a um discípulo de Paulo, afirma-se que os dons escatológicos da unidade e da paz vêm do Ressuscitado (Ef 1,3-10.20; Cl 1,15-20; 2,12). Por isso, Romano Penna qualifica o realce dado ao tema da morte e ressurreição de Jesus como “a ideia fixa do cristianismo paulino”, representando “tanto o cume da existência terrena de Jesus como a raiz de todo desenvolvimento da teologia cristã”1.

1.3. Evangelhos Nos evangelhos, o fato da morte e ressurreição de Jesus não representa simplesmente o relato final que encerra a narração da vida pública de Jesus, mas o acontecimento básico à luz do qual foram escritos os evangelhos. Sua redação foi fruto do evento pascal, que proporcionou aos autores sagrados a clareza necessária para entenderem a identidade de Jesus e o sentido de sua atuação. Essa perspectiva é explicitada pelo quarto evangelista, que declara que durante a vida pública de Jesus os discípulos tiveram uma compreensão de Jesus “segundo as aparências” (Jo 7,24) e “segundo a carne” (3,6.31), 1. R. PENNA, Paolo di Tarso. Un cristianesimo possibile, Cinisello Balsamo, San Paolo, 42006, 93. 19

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

sem saberem de verdade o que estava acontecendo (10,6; 14,5; 13,7; 16,17). Somente com o evento pascal eles compreenderam em profundidade as experiências feitas no seguimento de Jesus (14,20). Os evangelhos são, portanto, fruto da lembrança que ocorreu depois da Páscoa, como frisa ainda João. Após os episódios da purificação do templo e da entrada em Jerusalém, ele nota que quando Jesus “ressuscitou dos mortos, seus discípulos se lembraram do que ele dissera e creram na Escritura e na sua palavra” (2,22; 12,16)2. Não se tratou de um simples esforço mnemônico que lhes permitiu entender os fatos do passado à luz do presente. A lembrança dos discípulos foi determinada pelo Espírito Santo, ele também dom da Páscoa, que lhes deu a possibilidade de interpretar com segurança os acontecimentos (14,26). Os evangelhos representam, pois, diferentes hermenêuticas da pessoa de Jesus a partir da Páscoa. Em todos eles encontra-se o Cristo da fé pascal em estreita relação com o Jesus da história. Em consequência disso, João, mais que os sinópticos, frisa que a glória da ressurreição brilha na vida pública de Jesus e transfigura todos os seus empreendimentos. Segue-se que Jesus atua sempre como senhor dos eventos e dono das situações. Também os sermões do quarto evangelho, em que Jesus, de forma solene, fala de seu relacionamento com o Pai, são iluminados pela luz da Páscoa. Neles, o anúncio querigmático se entrelaça com os eventos históricos.

1.4. Apocalipse Também no livro que encerra a revelação bíblica Jesus é apresentado como o Cristo pascal. Ele é “a testemunha fiel, o primogênito dos mortos, o príncipe dos reis da terra” (Ap 1,4-5), e ainda “o primeiro e o último, o vivente” que estava morto mas agora está vivo pelos séculos dos séculos e tem as chaves da morte e do inferno (1,18; 2,8). Da mesma forma, a especificação de que o Cordeiro — que abre o livro selado da história — está “de pé, como que imolado”, alude ao evento da cruz e da ressurreição (5,6.12). Sua posição ereta, sinal da ressurreição, é frisada também em 14,1, em que o Cordeiro aparece “em pé sobre o monte Sião” com os cento e quarenta e quatro mil que têm escritos na fronte o nome de Jesus e o do Pai. É após o triunfo pascal que o Cordeiro é digno de “receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e 2. Somente à luz da Páscoa os discípulos compreenderam que o templo de Jerusalém terminou sua função histórica e que o novo templo era o próprio Jesus ressuscitado; da mesma forma, após o evento da cruz a entrada triunfal em Jerusalém apareceu-lhes como um sinal profético da glória da ressurreição de Jesus. 20

Capítulo 1 – O anúncio da ressurreição no Novo Testamento

o louvor” (5,12), garantindo a salvação dos eleitos que passaram pela grande tribulação da vida e alvejaram suas vestes no sangue dele (7,14). Por meio dele os cristãos perseguidos encontram a coragem de se opor aos poderes mundanos da opressão e da mentira, entregando sua vida até o martírio (12,11). No livro, as imagens do Ressuscitado se multiplicam: Jesus, em sua tarefa de juiz do mundo, é o “cavaleiro” vitorioso em cujo manto e em cuja coxa está escrito “Reis dos reis e Senhor dos senhores” (19,16); a definição de “estrela luminosa da manhã”, no final do livro, tem uma clara referência ao triunfo pascal (22,16). O autor do Apocalipse coloca então no centro de sua reflexão Jesus, que em seu evento pascal é o vencedor das forças do mal e o juiz da história.

1.5. Outros escritos A menção ao evento pascal ocorre também nas cartas de Pedro e de João3, assim como na epístola aos Hebreus e na carta de Judas4. Somente na carta de Tiago faltam referências à morte e à ressurreição de Jesus, sendo uma coletânea de exortações morais, de acordo com o estilo de várias composições judaicas.

2. Fórmulas primitivas No Novo Testamento encontram-se não somente referências ao evento da Páscoa, mas também fórmulas primitivas, testemunhos das primeiras confissões de fé, anteriores aos próprios evangelhos, que foram incorporadas pelos autores sagrados nos textos por eles redigidos. Isso indica que logo após o evento pascal a comunidade dos cristãos sentiu a necessidade de proclamar suas convicções religiosas de várias formas, aprofundando aos poucos sua compreensão da ressurreição de Jesus. Considerando essas fórmulas, constatase um processo de inteligência progressiva do núcleo da fé cristã, como se destaca no estudo de Senén Vidal ao qual fazemos referência5.

2.1. A fórmula “Bendito Deus, o ressuscitador de Jesus dentre os mortos” As primeiras confissões de fé são constituídas por fórmulas nas quais Deus é apresentado como o autor da ressurreição de Jesus e indicado por meio de um particípio, de acordo com a oração litúrgica hebraica (bera-kâ) 3. Cf. 1 Pedro 1,3; 2,21-25; 3,18.21; 4,13; 2 Pedro 1,1.16; 2,2; 3,18; 1 João 2,2; 4,10.14. 4. Cf. Hebreus 2,9-10; 4,14; 5,7-10; 9,11-13; 10,8-14; 12,2; 13,20; Judas 25. 5. Cf. S. VIDAL, La resurrezione di Gesù nelle lettere di Paolo. Analisi delle tradizioni, Assisi, Cittadella, 1985. 21

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que se expressa do mesmo modo6. Nelas, o particípio equivale literalmente à frase “o ressuscitador (tòn egeíranta) dentre os mortos”, mas é traduzido para o português com a expressão “aquele que ressuscitou”. Um exemplo dessa confissão antiga se encontra em Romanos 4,24b-25. Depois de ter mostrado que a justificação pela fé é uma constante de toda a história bíblica a começar por Abraão, Paulo conclui afirmando que isso vale em particular para os cristãos que acreditam no ressuscitador de Jesus, nosso Senhor, dentre os mortos, o qual foi entregue pelas nossas faltas e ressuscitou por nossa justificação. A primeira frase, referente a Deus, é explicitada pela seguinte, não mais referida a Deus, mas a Jesus: “o qual foi entregue pelas nossas faltas e ressuscitou por nossa justificação”. A mudança do sujeito e a repetição do tema da ressurreição, já presente no versículo anterior, indicam que na origem as duas frases eram independentes e que sua ligação é artificial. Não é improvável que Paulo tenha concluído o capítulo referente à fé de Abraão justapondo essas duas frases que representam duas confissões de fé da comunidade primitiva. Na primeira fórmula, com o particípio, Deus é qualificado como aquele que dá a vida a Jesus, resgatando-o dentre os mortos com sua ação poderosa, assim como resgatou seu povo, libertando-o do cativeiro do Egito. A expressão “dentre os mortos” (ek nekrôn), sem artigo, pouco usada por Paulo, pertence à tradição primitiva, à diferença da frase “nosso Senhor”, que é um acréscimo paulino e especifica a identidade de Jesus. À luz desses elementos é bem provável que uma das primeiras confissões de fé consistisse numa bênção dirigida a Deus, qualificado com um particípio: “Bendito o ressuscitador de Jesus dentre os mortos”, de acordo com o estilo das orações hebraicas. A frase se encontra na oração das “Dezoito bênçãos” (Šemo-neh ‘es´re-h), em que se lê: “Bendito tu, Yhwh, o vivificador dos mortos”7. Trata-se de uma expressão breve, simples, essencial, de origem palestinense, que nasceu num contexto litúrgico e representa uma louvação a Deus pela ressurreição de seu Filho, por meio da qual ele manifestou seu poder e sua identidade de verdadeiro Deus. Por meio dela proclama-se que, ressuscitando Jesus, Deus se manifestou o salvador dos perdidos, aquele que opera a reviravolta das situações humanas. 6. Ibid., 15-38. 7. Além da oração Šemo-neh ‘es´re-h 2, encontra-se a fórmula com o particípio na bênção dos túmulos: “Bendito aquele que é fiel à sua palavra e vivifica os mortos” (Tosefta, Bera-kôt 3,24; Talmude de Babilônia, Bera-kôt 58b). 22

Capítulo 1 – O anúncio da ressurreição no Novo Testamento

Os estudiosos pensam que a fórmula com o particípio, referida a Deus que ressuscita Jesus, está na base de outros textos paulinos, por exemplo de Romanos 4,17b, em que se destaca que Abraão é pai de todos os que têm fé, tanto judeus como pagãos, porque ele acreditou em Deus, o vivificador (toû zo-opoioûntos) dos mortos e aquele que chama (kaloûntos) à existência o que não existe. Também em Romanos 8,11ab aparece duas vezes a expressão com o particípio com o mesmo sentido: Se o Espírito do ressuscitador de Jesus dentre os mortos habita em vós, o ressuscitador de Cristo dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o Espírito que habita em vós8. Confessando a ressurreição de Jesus dentre os mortos, a comunidade primitiva pensa, então, em primeiro lugar em Deus todo-poderoso que, de braço estendido, liberta Jesus dos grilhões da morte, usando uma fórmula consagrada pela liturgia hebraica que ela bem conhece, porque faz parte de sua tradição.

2.2. A fórmula “Creio que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos” Esta fórmula, de teor narrativo, que representa o desenvolvimento da anterior, se encontra em Romanos 10,9. Nela Deus é indicado de forma explícita como o autor da ressurreição de Jesus: Se confessares com tua boca que Jesus é o Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Também neste texto estão presentes duas tradições originariamente independentes: a primeira consiste numa aclamação de fé: “Jesus é o Senhor”, semelhante à que se encontra em 1 Coríntios 12,3 (cf. Fl 2,11); a segunda, numa verdadeira confissão de fé, em que se reconhece Deus como o artífice da ressurreição de Jesus dentre os mortos (ek nekrôn). Foi Paulo que juntou as duas expressões. Na confissão de fé não é Jesus que ressuscita a si mesmo, mas o Pai que o chama à vida, porque somente Deus pode vencer a morte. O teor primitivo dessa profissão de fé devia ser: “Creio que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos”, com o verbo “crer” no início, o que é bastante lógico. Também esta confissão é muito simples; nela, de forma explícita, realça-se a convicção que fundamenta a vida religiosa de cada cristão. 8. Cf. 2 Coríntios 4,14; Gálatas 1,1; Colossenses 2,12; Efésios 1,20. 23

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A fórmula aparece também em 1 Tessalonicenses 1,9-10, em que Paulo frisa a pronta acolhida da mensagem do evangelho por parte dos cristãos de Tessalônica, lembrando sua conversão ao Deus vivo e verdadeiro e sua espera da vinda escatológica de Jesus que livra da ira vindoura, acrescentando no final a expressão que se refere a Deus: “a quem ele ressuscitou dentre os mortos”. Nota-se que no texto as expressões “Deus vivo e verdadeiro”, “a ira vindoura”, junto com o verbo “esperar” (anaménein), não correspondem à terminologia paulina, aparecendo somente nesse trecho do Novo Testamento. Isso indica que se trata de um texto antigo, reutilizado pelo Apóstolo. É bastante provável que na frase secundária, que constitui uma espécie de parêntese, Paulo faça referência à fórmula primitiva da ressurreição: “Creio que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos”, dando crédito à sua existência9. A fórmula deve ter se formado num contexto litúrgico-batismal, embora seja usada também na pregação missionária da Igreja, como mostra o próprio texto de 1 Tessalonicenses 1,9-10. É provavelmente mais recente do que a com o particípio, por causa de sua referência explícita a Deus e do verbo não participial. Um eco dessa fórmula se encontra em outros textos paulinos, por exemplo em Romanos 10,9, em que se lê “Se […] crerdes que Deus o ressuscitou dentre os mortos”, ou em 1 Coríntios 6,14, em que Paulo afirma: “Ora, Deus que ressuscitou o Senhor ressuscitará também a nós pelo seu poder”, embora nesse último trecho apareça o termo “Senhor” e falte a frase corriqueira “dentre os mortos”. Os autores destacam que também as expressões dos Atos dos Apóstolos, formadas por dois membros, em que se salienta tanto a morte de Jesus, procurada pelos judeus, quanto sua ressurreição, operada pela ação poderosa de Deus, estão relacionadas com essa confissão de fé primitiva: Este homem, que fora entregue segundo o desígnio bem determinado e a presciência de Deus, vós o entregastes, crucificando-o por mão de ímpios. Deus, porém, o ressuscitou, livrando-o das dores do Hades (2,23-24)10.

2.3. A fórmula “Cremos que Jesus morreu e ressuscitou” As fórmulas cristológicas representam outro momento da explicitação da fé pascal. Não se menciona mais a ação de Deus a respeito de Jesus, mas 9. S. VIDAL, Resurrezione, op. cit., 97-147. 10. Cf. Atos 4,10; 5,30-31; 10,39-40. 24

Capítulo 1 – O anúncio da ressurreição no Novo Testamento

destaca-se que ele mesmo morreu e ressuscitou11. Em 1 Tessalonicenses 4,14 Paulo declara: Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará em sua companhia os que dormem. No versículo há certa tensão entre as duas partes por causa da mudança de sujeito. De fato, no início a atenção está fixada em Jesus em seu evento pascal; logo depois é dirigida a Deus, que ressuscita os que dormem12. Isso leva a pensar que também nesse caso Paulo fez menção a uma das fórmulas corriqueiras de fé pascal primitiva, destacando na segunda parte do texto o efeito da Páscoa de Jesus. No início do versículo, a expressão “cremos que”, que introduz a proclamação do evento pascal, deve ser originária (cf. Rm 10,9b). É portanto plausível que a fórmula primitiva fosse a seguinte: “Cremos/creio que Jesus morreu e ressuscitou”. Sua antiguidade é indicada pelo verbo grego anéste-, com o sentido de “levantar-se”, que se encontra somente nesse texto paulino13, mas que está presente na tradição sinóptica (Mc 8,31; 9,31; 10,34; Lc 24,7)14. A mesma confissão de fé constitui o pano de fundo de Romanos 14,9, em que Paulo insiste na acolhida recíproca entre os cristãos mais esclarecidos e os cristãos frágeis que moram em Roma, lembrando que Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos vivos e dos mortos, e realçando a necessidade da caridade. O texto tem uma relação com a fórmula de fé primitiva, embora nele falte a frase “nós cremos”, e ao verbo “morreu”, característico da tradição, se siga o verbo “reviveu” (éze-sen), que pode ser uma transformação do originário “ressuscitou” (anéste-). Estes exemplos mostram que aos poucos, na Igreja primitiva, se passou de uma confissão de fé teocêntrica para uma cristocêntrica. Apesar das aparências, é possível pensar que também nessa fórmula cristológica, que se formou no contexto litúrgico batismal palestinense, Deus continua sendo considerando o autor da ressurreição de Jesus, em particular à luz de 1 Tessalonicenses 4,14b, em que à afirmação de que Jesus ressuscitou se segue a menção à ressurreição, operada por Deus, dos que dormem. Só em João 10,17, com o desenvolvimento da cristologia do quarto evangelista, Jesus pode declarar 11. S. VIDAL, Resurrezione, op. cit., 148-169. 12. Nota-se a repetição do termo “Jesus”. 13. Paulo, para indicar a vitória de Jesus sobre a morte, usa normalmente o verbo “acordar-se” (egeírein), muito mais frequente que “levantar-se”. 14. Cf. Isaías 26,14.19; Daniel 12,2.13; 2 Macabeus 7,9.14; 12,44. 25

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que ele dá sua vida para a reassumir, tendo o poder de entregá-la e o poder de retomá-la: “Ninguém a tira de mim, mas eu a dou livremente”15.

2.4. A fórmula de fé: 1 Coríntios 15,3b-5 A formulação mais elaborada do anúncio pascal encontra-se em 1 Coríntios 15,3b-5, que veio à luz na comunidade primitiva depois de certo tempo, em que se faz memória de todos os momentos do evento pascal. Trata-se de uma fórmula sintética e complexa que consta de dois membros, com um ritmo bem definido. Cada membro, em sua primeira parte, tem três elementos aos quais se segue outro elemento que tem valor de conclusão, segundo o esquema 3 + 1: Cristo morreu/ por nossos pecados/segundo as Escrituras foi sepultado tem sido ressuscitado/ao dia o terceiro/segundo as Escrituras apareceu a Cefas e depois aos Doze A dúplice repetição da expressão “segundo as Escrituras”, a expressão semitizante “ao dia o terceiro” (com o artigo antes do substantivo e antes do adjetivo), a forma aramaica do nome Pedro, “Cefas” — todas expressões que não se encontram nas cartas paulinas —, indicam que Paulo faz referência a uma fórmula da tradição anterior a ele16. Nela menciona-se a morte de Jesus, frisando que seu sentido salvífico é apagar os pecados do mundo; lembra-se a sepultura de Jesus, indicando a realidade irreversível de sua morte. Segue-se a menção à ressurreição, fruto da obra de Deus, em que o verbo “ressuscitar”, na forma passiva e no tempo perfeito (egêgertai)17, realça que a ressurreição de Jesus não é um ato pontual do passado, mas um evento cuja eficácia dura para sempre. Dessa forma torna-se contemporâneo a todas as gerações e produz seus frutos em todos os tempos. A expressão “ao terceiro dia” não indica tanto o tempo cronológico entre a morte e a ressurreição quanto o tempo da intervenção salvífica de Deus, que opera a reviravolta da sorte de Jesus, de acordo com Oseias 6,2. 15. Inácio de Antioquia, no início do século II, na Carta aos cristãos de Esmirna 2, fala de autorressurreição de Jesus: “Ele sofreu sua paixão por nós, para que fôssemos salvos; e sofreu realmente como realmente ressuscitou a si mesmo” (anéste-sen heautón, em Sources Chrétiennes 10, 156; cf. também Padres apostólicos, São Paulo, Paulus, 1995, 116). 16. As fórmulas binárias que se encontram em Atos 2,23-24; 4,10; 5,30-31; 10,39-40, cujo primeiro membro se refere à morte, outro à ressurreição, são anteriores a 1 Coríntios 15,3b-5, em que são mencionadas a morte, a sepultura, a ressurreição e as aparições de Jesus. 17. A forma passiva alude provavelmente à ação de Deus que ressuscitou o Cristo. 26

Capítulo 1 – O anúncio da ressurreição no Novo Testamento

Na fórmula não se fala do túmulo vazio, mas lembram-se as aparições; em primeiro lugar aquela a Pedro e aos Doze, que representam as testemunhas básicas da fé da Igreja (cf. Mc 16,7; Mt 28,16-20; Lc 24,36-49). A lista delas não tem como finalidade exaltar as testemunhas, mas realçar que o evento da ressurreição foi acolhido pelos representantes principais da Igreja antiga18. O verbo “apareceu” referido a Jesus, que significa “mostrou-se” (ôphthe-), indica que o Ressuscitado tomou a iniciativa das aparições, realçando que as aparições representam um evento objetivo e não uma experiência subjetiva dos discípulos19. Os exegetas pensam que a fórmula, de cunho catequético ou litúrgico, que representa o primeiro “credo” da comunidade primitiva20, foi elaborada nas comunidades judeu-helenistas de língua grega que utilizaram uma fórmula aramaica anterior, difícil de ser reconstruída. Com toda a probabilidade Paulo a conheceu em Antioquia, onde ficou um ano junto com Barnabé, trabalhando na comunidade (At 11,26).

3. Desenvolvimento da fé pascal A panorâmica apresentada, embora sumária e de certa forma hipotética, mostra que na Igreja primitiva houve um desenvolvimento progressivo da confissão de fé pascal21. Os cristãos expressaram sua fé de modo sempre mais completo. Passaram da simples proclamação de que Deus ressuscitou seu Filho Jesus a uma sistematização em que se faz menção não somente à morte e à ressurreição de Jesus, mas também ao seu sepultamento e às aparições, isto é, às experiências básicas feitas pelas primeiras testemunhas. Com a composição dos evangelhos, passou-se da lista das aparições, mencionada na primeira carta aos Coríntios, para uma descrição pormenorizada delas. Nesses relatos, que se formaram ao longo de vários anos em que a Igreja refletiu sobre o evento da ressurreição, procurou-se responder às questões 18. A lista das testemunhas que dão credibilidade ao evento pascal é representada por Cefas e pelos Doze, pelos quinhentos irmãos, por Tiago e pelos apóstolos, incluindo no final o próprio Paulo (1Cor 15,6-10). 19. O verbo ôphthe-, em relação às aparições, pertence à tradição: Atos 7,30.35; Marcos 9,4; Lucas 1,11; 22,43. Cf. X. LÉON-DUFOUR, Resurrezione di Gesù e messaggio pasquale, Cinisello Balsamo, Paoline, 1973, 40-41.169-184. O verbo é frequente nas teofanias do Antigo Testamento (Gn 12,7; Ex 3,2; Is 40,5; 60,2). 20. B. GERHARDSSON, Memory and Manuscript. Oral Tradition and Written Transmission in Rabbinic Judaism and Early Christianity, Uppsala, C.W.K. Gleerup, 1961, 288-306. 21. Também o grito “Maranathá”, que significa: “Vem, Senhor Jesus”, faz referência à vitória pascal de Jesus (1Cor 16,22). 27

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levantadas pelas comunidades no final do século I. O anúncio se tornou um relato construído segundo uma ordem lógica: nele apresentou-se em primeiro lugar o túmulo vazio (nunca mencionado por Paulo) e depois narraram-se as aparições, indicando suas localizações diferentes. A redação das várias cenas incluiu elementos teológicos e catequéticos, necessários para compreender melhor o evento da ressurreição. Esses pormenores devem ser entendidos à luz das intenções dos evangelistas, procurando descobrir o que com eles queriam comunicar aos membros de suas comunidades. O leitor pode ser tentado a pensar que as narrativas dos evangelhos são uma documentação fiel do que aconteceu e devem ser privilegiadas a respeito dos anúncios da ressurreição que se encontram no Novo Testamento. A perspectiva não é correta, porque desconhece o trabalho redacional dos autores sagrados, que procuram ajudar os cristãos do seu tempo a entender o sentido da ressurreição de Jesus, respondendo às questões levantadas por eles, sem a intenção de fazer uma crônica dos eventos. Levando em conta o desenvolvimento da tradição, segue-se que é melhor interpretar os relatos evangélicos da ressurreição à luz da tradição primitiva e de suas fórmulas querigmáticas do que o contrário, porque só dessa forma é possível descobrir qual foi a finalidade dos evangelistas ao redigir as narrativas22. Essa afirmação vale em particular para os relatos joaninos, que foram os últimos a aparecer entre os escritos do Novo Testamento.

22. G. GHIBERTI, La resurrezione di Gesù, Brescia, Paideia, 1982, 31-62. Cf. S. VIDAL, Resurrezione, op. cit., 181-218. 28

Capítulo 2

Uma visão de conjunto

Antes de fazer um estudo pormenorizado dos relatos pascais de João 20, é útil ter uma visão de conjunto da sequência narrativa. Quais são as unidades literárias do capítulo? Como contribuem para dar um sentido ao texto? Que conexões relacionam cada pequeno relato com o anterior e o posterior? Há um elemento temático unificador da narração? Procedamos com ordem.

1. Organização do relato João 20,1-29 constitui uma unidade literária bem definida, antecipada pela narração do sepultamento de Jesus que encerra o relato da paixão (19,38-42) e seguida pela primeira conclusão do evangelho (21,30-31). O relato gira ao redor do tema da ressurreição, e Jerusalém é o lugar em que todas as cenas se desenvolvem, representando a unidade topográfica do capítulo. Na narrativa aparecem vários personagens: Pedro, o discípulo amado, Maria Madalena, os discípulos, Tomé. Nela há duas indicações temporais importantes, cada uma formada por três elementos justapostos, que destacam o momento em que ocorrem os acontecimentos narrados: No primeiro dia da semana/de madrugada/quando ainda estava escuro (v. 1) À tarde/daquele mesmo dia/o primeiro da semana (v. 19) 29

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Segue-se outra indicação temporal: Oito dias depois, que introduz a perícope de Tomé (v. 26). Os eventos acontecem no dia da Páscoa ou oito dias depois, a saber, no dia de domingo, que corresponde ao “primeiro dia da semana”, o dia em que se faz menção à ressurreição de Jesus. A organização do relato apresenta outro pormenor interessante. Os acontecimentos da primeira parte do capítulo se verificam de madrugada, antes do despontar do sol; os da segunda, na tarde daquele mesmo dia ou do domingo seguinte. De manhã, Pedro e o discípulo amado correm ao túmulo vazio (20,1-10) e, logo depois, Jesus ressuscitado se manifesta a Maria Madalena (20,11-18). Na tarde, o Ressuscitado aparece aos discípulos no cenáculo (20,19-25) e “oito dias depois”, no mesmo lugar, a Tomé (20,26-29). Nota-se que nos dois momentos da narrativa o autor relata sempre dois episódios nos quais aparecem personagens diferentes: Pedro e o discípulo amado, juntamente com Madalena, no primeiro caso; os discípulos sozinhos e depois com Tomé, no segundo caso. Levando em consideração as indicações temporais da narrativa e os personagens, o texto pode ser dividido da seguinte forma: do túmulo vazio (20,1-10) { Descoberta Aparição a Maria Madalena (20,11-18)

{ Aparição aos discípulos (20,19-25) Aparição a Tomé (20,26-29)

Esta organização está confirmada por outros elementos do texto que se encontram nas unidades literárias indicadas1. Na primeira parte, a repetição do nome “Maria Madalena” emoldura a primeira sequência (v. 1.18)2. O termo “Senhor” (kýrios), mencionado nos versículos 2 e 18, tem a mesma função, indicando os limites do primeiro momento da narração. Também a frase “Tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram”, referente ao corpo de Jesus, repetida nos versículos 2.13.15, contribui para dar unidade à 1. Alguns autores fazem terminar a primeira perícope da segunda seção do capítulo em 20,23. Para eles, a repetição da expressão “veio Jesus” nos versículos 19 e 24 indica um novo início, assim como a introdução do personagem de Tomé (v. 24). Por sua vez, os verbos “ver” e “crer” emolduram a unidade literária 20,24-29. Pessoalmente dou mais valor à indicação de tempo do versículo 26 para determinar a divisão do texto. É verdade, porém, que os versículos 24-25 constituem uma transição. 2. Em termos técnicos, trata-se de uma “inclusão”, a saber, da repetição do mesmo termo ou motivo literário tanto no início como no fim de um texto, destacando que ele constitui uma unidade literária. 30

Capítulo 2 – Uma visão de conjunto

primeira seção do capítulo. Não há elementos que emolduram a segunda parte da narrativa (v. 19-29). Sua divisão depende dos personagens que entram em cena: no primeiro momento, os discípulos (v. 19.25.26); no segundo, Tomé (v. 24.26.27.28). A respeito da primeira parte do capítulo, outros elementos literários chamam a atenção. Na perícope do túmulo vazio prevalecem os verbos de movimento: “Maria Madalena vai ao sepulcro de madrugada” (v. 1), “Corre, então, e vai a Simão Pedro” (v. 2); “Pedro saiu junto com o outro discípulo e foram ao túmulo” (v. 3), “os dois corriam juntos” (v. 4). “O outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo” (v. 4), mas “não entrou” no sepulcro (v. 5b). “Chega, então, também, Simão Pedro […] e entrou no túmulo”. “Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao túmulo” e vê e crê (v. 8). Trata-se de uma cena dinâmica que mostra o desejo dos discípulos, impulsionados pelo amor, de encontrar o corpo de Jesus. No texto, tudo é tensão, pressa, vontade de descobrir o que aconteceu. Na cena da aparição de Jesus a Maria Madalena, que se desenvolve “junto ao sepulcro”, “fora” do túmulo, a atmosfera é diferente. Prevalece o verbo “dizer” (légein), que ocorre dez vezes, frisando que se trata de um episódio de revelação que exige compreensão e aceitação. Jesus, falando com a mulher, faz que ela, aos poucos, compreenda seu destino glorioso. Por outro lado, o choro da Madalena, mencionado quatro vezes, indica o amor e a emoção íntima de quem procura Jesus nas dificuldades da vida. À apresentação dinâmica do primeiro episódio segue-se o momento mais contemplativo do segundo, com o intuito de mostrar que para encontrar-se com Jesus ressuscitado é preciso procurá-lo com entusiasmo, saindo das situações corriqueiras da vida e, ao mesmo tempo, ser disponível para escutar sua palavra sempre misteriosa e inesperada. Vale a pena notar que tanto no primeiro momento do relato como no segundo a atenção do autor é fixada inicialmente num grupo de pessoas, para dirigir-se depois a uma pessoa particular. No começo da primeira cena aparecem Pedro e o discípulo amado, que cedem espaço, logo depois, a Maria Madalena. No segundo momento da narrativa acontece o mesmo: dá-se destaque aos discípulos reunidos e em seguida fixa-se a atenção em Tomé. No final de ambas as seções do texto há uma abertura para um grupo maior: no primeiro caso, esse grupo é representado pelos discípulos, aos quais Maria deve anunciar que Jesus ressuscitou (v. 18); na segunda parte do capítulo, pelos fiéis que creram sem ter a possibilidade de “ver” Jesus nas aparições, a saber, pelos cristãos da geração do evangelista e de todas as outras seguintes 31

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

(v. 29). No capítulo passa-se, assim, de um pequeno grupo a um personagem particular3, para depois concentrar-se num grupo mais extenso. Dois discípulos ao túmulo (v. 1-10) Maria Madalena (v. 11-18) Discípulos de Jesus (v. 18) Comunidade dos discípulos (v. 19-25) Tomé (v. 26-29) Futuros discípulos (v. 29) Sabemos que em cada sequência narrativa o narrador faz uma montagem do material à sua disposição, como acontece num filme. Em nosso caso, faz do relato do sepulcro vazio o pressuposto da narração das aparições, mostrando que o anúncio pascal é destinado a expandir-se, atingindo grupos sempre maiores. Se o centro temático de João 20 é a ressurreição de Jesus, em todas as perícopes encontra-se também o tema da fé. O discípulo amado vê e crê (20,8); Madalena reconhece “o Senhor” em Jesus que lhe aparece (v. 18); os discípulos reunidos no cenáculo exultam “por verem o Senhor”, reconhecendo-o vivo (v. 20); Tomé perante Jesus ressuscitado acredita confessando: “Meu Senhor e meu Deus” (v. 29). As várias experiências de fé não são idênticas entre si, mas brotam de situações diferentes: o discípulo amado acredita perante o enigma do túmulo vazio; Maria Madalena diante de Jesus vivo que não reconhece, pensando ser o jardineiro; os discípulos amadurecem sua fé de forma comunitária; Tomé chega a acreditar passando pela dúvida e pelo desejo de constatar o que se passou com Jesus. Na narrativa, varia a maneira de aproximar-se do Ressuscitado, mas, por caminhos diferentes, todos os personagens do relato chegam à mesma fé. Talvez no texto haja uma apresentação em crescendo: o discípulo amado, que acredita perante o túmulo vazio, pode representar o primeiro degrau de uma caminhada que encontra seu ponto mais elevado em Tomé. Este, apesar da incredulidade inicial, diferentemente dos outros personagens do relato, reconhece explicitamente a divindade de Jesus, qualificando-o com a frase “Senhor e Deus”. É bastante lógico que por meio da narração o evangelista, além de apresentar o que aconteceu no dia da Páscoa, queira estimular o leitor a fazer 3. Em João, várias vezes um personagem particular se torna o representante de um grupo: Maria Madalena é o símbolo das mulheres que vão ao túmulo na manhã de Páscoa; Tomé, dos discípulos que duvidam da ressurreição de Jesus. 32

Capítulo 2 – Uma visão de conjunto

um caminho de fé, como aconteceu com os personagem do relato. De fato, cada narração bíblica tem valor “performativo”, e as aparições devem ser consideradas uma “imagem normativa” da experiência que cada cristão é chamado a fazer4. Sabemos que todos os episódios de João 20 se desenrolam “no primeiro dia da semana”; isso indica que o dia da ressurreição de Jesus constituía, desde o início da Igreja, o dia de festa da comunidade e o alicerce de sua vida comunitária, à diferença dos judeus, que, conforme a tradição bíblica, descansavam no sábado5. Trata-se do dia da celebração da eucaristia dominical, que com toda a probabilidade é o âmbito privilegiado em que se formaram os relatos da ressurreição.

2. Incongruências do relato Apesar da organização regular e harmoniosa de João 20, no capítulo existem várias tensões, em particular em sua primeira parte. Isso significa que o relato não é fruto de uma única tradição, mas o resultado de uma coletânea de várias, unificadas pelo evangelista numa narrativa coerente, procurando lembrar os eventos principais que impulsionaram os discípulos a crer na ressurreição6.

2.1. Incongruências em João 20,1-18 A apresentação de Madalena não é linear. Fala-se dela no versículo 1; logo depois entram em cena os dois discípulos. O autor narra o que aconteceu com mulher só em 20,11-18. O plural com que Maria Madalena se expressa: “retiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram”, aponta provavelmente para a tradição das mulheres ao túmulo, relatada pelos sinópticos. O pormenor indica que o evangelista faz de Madalena o protótipo das mulheres que na manhã da Páscoa visitaram o túmulo. Também na apresentação dos dois discípulos que foram ao sepulcro há certa incongruência. No versículo 3 afirma-se que “saiu Pedro e o outro discípulo” e chegaram (êrchonto) ao túmulo. Surpreende que o primeiro verbo, 4. I. DE LA POTTERIE, Genesi della fede pasquale secondo Gv 20, in Studi di cristologia giovannea, Genova, Marietti, 1992, 191-214. 5. Também no Apocalipse João, na ilha de Patmos, teve as visões “no dia do Senhor” (en tê kuriakê hêmera, Ap 1,10; cf. 1Cor 16,2). Provavelmente o dia do domingo era celebrado a partir da tarde do sábado (At 20,7). 6. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni III, Brescia, Paideia,1981, 497-502; R. E. BROWN, Giovanni. Commento al vangelo spirituale, Assisi, Cittadella, 1979, 1251-1261. 33

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

com referência a Pedro, esteja no singular e o segundo, no plural, embora no versículo 4a se especifique que os dois discípulos corriam juntos. No versículo 4b frisa-se ainda que o discípulo amado chegou primeiro ao túmulo e no versículo 6a repete-se que também Pedro chegou (érchetai), embora o leitor já conheça que os dois “chegaram” ao túmulo desde o versículo 3b. As incongruências fazem supor que a figura do discípulo amado foi acrescentada pelo evangelista num momento particular de sua redação, utilizando uma tradição que inicialmente se referia somente a Pedro. Essa hipótese recebe crédito considerando que nos versículos 4-5 os dois discípulos fazem as mesmas ações: correm, chegam ao túmulo, inclinam-se, veem os panos mortuários, com a única diferença de que o discípulo amado não entra no túmulo, ao contrário de Pedro, que entra e constata a posição dos panos funerários de Jesus, sem entender o que aconteceu. Só o discípulo amado desvenda o enigma do túmulo vazio, pronunciando sua confissão de fé. A perícope está, pois, organizada em função da interpretação do túmulo vazio feita pelo discípulo amado; a atuação de Pedro fica, de certa forma, em segundo plano. Existe também certa tensão entre os versículos 8 e 9, porque, logo após ter destacado a fé do discípulo amado, o evangelista acrescenta que ele e Pedro “ainda não tinham compreendido” que Jesus, conforme a Escritura, devia ressuscitar dentre os mortos. Fé, então, e não compreensão da Escritura, o que põe a questão da relação entre fé na ressurreição e entendimento do Antigo Testamento. Também a afirmação de que Maria Madalena estava junto ao sepulcro (v. 11) chega repentinamente, depois que o evangelista disse que ela, correndo, foi ter com os dois discípulos, anunciando-lhes que o túmulo estava vazio (v. 2). O motivo da volta ao sepulcro não é mencionado. Além disso, o gesto da mulher, que “se abaixou e olhou para dentro do túmulo” (v. 11), não tem uma justificativa clara, porque a mulher já sabe que o corpo de Jesus foi tirado da sepultura (v. 2). Ela vê os anjos “sentados onde o corpo de Jesus fora posto, um à cabeceira e outro aos pés” (v. 12), que não têm a função de intérpretes do túmulo vazio, como nos sinópticos (Lc 24,5), porque essa tarefa já foi desempenhada pelo discípulo amado. Limitam-se a indagar à mulher: “por que choras?” (v. 13), frase pronunciada também por Jesus (v. 15). A menção aos anjos poderia ser tirada sem comprometer o sentido do relato. Cria certo problema também o fato de que a mulher duas vezes se volta para Jesus, seja em seu primeiro encontro com ele (v. 14), seja no momento do reconhecimento (v. 16), sem que no texto se fale de uma mudança de posição. Nota-se também que a fé do discípulo amado (v. 8) não tem nenhuma 34

Capítulo 2 – Uma visão de conjunto

influência na mulher, que deve fazer sua caminhada sem a ajuda de outras testemunhas para compreender que Jesus está vivo. Ao cristão acostumado a ler os textos do evangelho de forma espiritual pode parecer um exagero o destaque dado a esses pequenos detalhes que na leitura corriqueira passam despercebidos. O esforço crítico dos exegetas não é, porém, inútil, porque permite entender que o evangelista usou várias fontes ou tradições em sua composição. A esse respeito, as hipóteses são diferentes. Com bastante probabilidade, na primeira parte do capítulo pode-se pensar na presença de três tradições diferentes, constituídas a primeira por um relato das mulheres ao túmulo, a segunda por uma narrativa dos discípulos ao sepulcro, a terceira pela aparição de Jesus a Maria Madalena7. O relato das mulheres ao túmulo é plausível à luz do plural “nós sabemos” do versículo 2; os exegetas supõem que a esse relato devia pertencer também a menção aos anjos que se encontra na perícope da Madalena (v. 11b-14a). A tradição dos discípulos ao túmulo está presente também em Lucas 24,12.24, embora no texto lucano não se mencione o companheiro com que Pedro visita o sepulcro. A narrativa da aparição de Jesus a Maria Madalena corresponde a um dado documentado na tradição sinóptica, embora pouco desenvolvido (Mc 16,9; cf. Mt 28,9-10)8.

2.2. Elementos repetidos em João 20,19-29 No segundo momento do capítulo, referente às aparições aos discípulos reunidos e a Tomé, a narração é mais linear (v. 19-29). Nas duas aparições que constituem a seção há vários elementos literários que se repetem: as portas estão “trancadas” (v. 19.26), Jesus se põe “no meio” (v. 19.26) e diz aos discípulos “paz a vós” (v. 21.26). Nas duas perícopes faz-se também menção a Tomé, que no versículo 25 pretende ver o sinal dos cravos nas “mãos” de Jesus e ali pôr seu “dedo”; o mesmo discípulo, no versículo 27, é desafiado por Jesus a colocar seu “dedo” e a pôr sua “mão” no lado dele. Em ambas as aparições Jesus ressuscitado é qualificado como “o Senhor” (v. 25.28). Essa repetição de termos e expressões parece indicar que o autor construiu a perícope referente a Tomé à luz da aparição aos discípulos, com a intenção 7. É a opinião de R. E. BROWN (Giovanni, op. cit., 1254-1261). Cf. X. LÉON-DUFOUR, Leitura do evangelho segundo João, IV, São Paulo, Loyola, 1998, 144-145. 8. P. BENOIT (Exégèse et théologie III, Paris, Cerf, 1968, 270-282) pensa em dois relatos básicos. A opinião é partilhada por F. NEIRYNCK, John and the Sinoptics, in M. DE JONGE (Éd.), L’évangile de Jean. Sources, Rédaction, Théologie, Leuven, Leuven University Press, 1977, 71-106. 35

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

de fazer de Tomé o representante da dúvida apostólica, nunca mencionada na cena relativa aos discípulos. O intuito dessa montagem é destacar que a fé pascal, que proporciona alegria e paz, exige também abandono completo a Deus e aceitação das provações interiores que necessariamente existem no caminho cristão. Esse modo de composição por parte do autor cria uma incongruência de tipo teológico; tomado ao pé da letra, o relato faria supor que Tomé, não estando presente na primeira aparição de Jesus, não recebeu, como os outros discípulos, o mandato missionário, o dom do Espírito Santo e a missão de perdoar os pecados. Evidentemente isso é um absurdo e mostra que o evangelista não quis fazer uma crônica dos eventos, mas, por meio de perícopes distintas, destacar a realidade da dúvida apostólica e sua superação.

3. Relação do relato com os textos anteriores e posteriores 3.1. João 20 e a narração da paixão Em nível redacional, vários elementos relacionam o capítulo 20 de João com a parte final do relato da paixão (19,38-42). A figura do “jardineiro” que Madalena pensa encontrar, não reconhecendo Jesus (v. 15), tem uma ligação com o “jardim” em que começa a paixão (18,1) e outro jardim em que Jesus é sepultado (19,41). A menção ao túmulo, assim como aos “linhos mortuários” (othónia), se encontra tanto no relato da sepultura de Jesus como no da ressurreição9. O evangelista usa também o verbo “pôr” (tithénai), seja a respeito da sepultura do corpo de Jesus, seja para indicar o lugar em que este foi colocado, depois de Madalena ter aventado a hipótese do roubo (20,2.13.15). Na segunda parte do capítulo, a menção ao “lado” de Jesus, característica de João, determina outra ligação com o relato da paixão em que se frisa que do lado transpassado de Jesus saíram sangue e água (19,34; 20,20.25.27). No relato joanino da sepultura, um pormenor chama a atenção: falta o motivo das mulheres, frisado pelos sinópticos, que na tarde da sexta-feira observam o lugar onde foi posto o corpo de Jesus (Mc 15,47; Mt 27,61; Lc 23,55; 24,10) e na manhã de Páscoa vão ao túmulo para ungi-lo (Mc 16,1; Lc 24,1; cf. Mt 28,1). A intenção dos sinópticos é fazer das mulheres o elemento que relaciona entre si a narrativa da morte e da ressurreição de Jesus. Isso não ocorre em João, que relata a unção do corpo de Jesus já na sexta-feira por 9. O túmulo é mencionado em João 19,42; 20,1.2.3.4.6.8; os linhos mortuários, em 19,40; 20,5.6.7. 36

Capítulo 2 – Uma visão de conjunto

parte de José de Arimateia e de Nicodemos, logo após a descida da cruz (19,38-39), e não pelas mulheres, às quais é reservada a visita ao túmulo na manhã de Páscoa. Esse pormenor não pode prejudicar a conexão entre o relato da ressurreição e o da paixão, porque em João a conexão está garantida por meio da repetição das várias expressões que indicamos. A falta do motivo das mulheres na cena do sepultamento realça provavelmente que na tradição joanina os relatos da paixão e da ressurreição de Jesus foram transmitidos separadamente.

3.2. João 20 e a primeira conclusão O evangelista relaciona também a perícope de Tomé com a primeira conclusão do evangelho, cuja finalidade é levar os que acreditam a aprofundar sempre mais sua fé e a viver em plenitude a dimensão da vida nova proporcionada por Jesus (20,30-31). A frase dirigida a Tomé: “porque me viste, creste”, está em relação com a que se segue: “Felizes os que não viram e creram”, referente à fé das gerações da época pós-apostólica. Esta fé é lembrada também na conclusão do capítulo, realçando que ela consiste em reconhecer Jesus como Messias e Filho de Deus (v. 31)10. Se para os cristãos das épocas sucessivas à do evangelista não será mais possível ter a experiência das aparições de Jesus ressuscitado, será sempre possível confessar que Jesus é o Messias transcendente, alcançando a única “bem-aventurança”, oferecida a todas as gerações, que consiste na fé.

10. A. FEUILLET, Les christophanies pascales du quatrième évangile sont-elles des signes?, Nouvelle Revue Théologique (1975) 577-592. 37

Capítulo 3

O túmulo vazio

À diferença dos sinópticos, que relacionam a tradição do túmulo vazio com as mulheres, o quarto evangelista, na madrugada do dia de Páscoa, narra a visita de Pedro e do discípulo amado ao sepulcro (v. 3-10). Põem-se as seguintes questões: historicamente, tanto as mulheres como os homens foram ao túmulo na manhã de Páscoa? A visita masculina está documentada em outros trechos do Novo Testamento? Por que no imaginário coletivo lembra-se somente a visita das mulheres ao sepulcro e não a dos homens?

1. As mulheres ao túmulo O evangelista conhece a tradição sinóptica da visita das mulheres ao túmulo, como indica a expressão no plural: “não sabemos onde o colocaram”, e faz de Madalena a representante das mulheres que vão ao túmulo, afirmando no início do capítulo: “No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu que a pedra estava revolvida” (20,1). A redação do relato apresenta detalhes um pouco diferentes dos sinópticos que merecem ser evidenciados.

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“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

1.1. O tempo da visita João frisa que Maria Madalena foi ao sepulcro “de madrugada, quando ainda havia trevas”, enquanto os sinópticos colocam a cena ao raiar do sol. O pormenor joanino parece sugerir que a mulher, impulsionada por seu amor, quer aproveitar o favor da noite para ficar perto de Jesus morto, sacrificando as horas do descanso. Essa interpretação não é a única, porque em João o termo “trevas” tem valor simbólico e um sentido teológico-espiritual1 e pode servir para indicar o desnorteamento interior de Madalena, que não pensa que Jesus esteja vivo. Isso é diferente dos sinópticos, que, colocando o episódio ao despontar do sol, preparam o leitor para a grande manifestação da glória de Deus que se revela na ressurreição de Jesus dentre os mortos.

1.2. A motivação da visita Em João não se especifica a finalidade da ida ao túmulo de Maria Madalena; destaca-se que a mulher “permanecia junto à entrada do túmulo, chorando” (20,11.13.15). Os sinópticos não são concordes entre si: em Marcos 16,1 e Lucas 24,1 nota-se que as mulheres foram ao sepulcro para “ungir” o corpo do Jesus, enquanto em Mateus 28,1 realça-se que elas foram “ver” o lugar da sepultura de Jesus, com a provável intenção de fazer uma oração de lamentação. Em nível histórico, parece mais lógico que as mulheres tivessem o desejo de homenagear Jesus falecido por meio de um canto fúnebre, conforme o hábito judaico da época. É o que escreve João, isto é, que as mulheres foram ao túmulo para chorar a morte de Jesus, fazendo súplicas por ele a Deus, como fez Madalena junto ao sepulcro. De fato, na redação joanina o corpo de Jesus já foi ungido na tarde da sexta-feira, logo depois da descida da cruz (Jo 19,38-42). Marcos parece confirmar esta perspectiva, fazendo entrever a possibilidade de que a unção foi feita na tarde do dia da crucificação. De fato, afirma que, após a morte de Jesus, José de Arimateia, descendo o corpo da cruz, “o envolveu em um lençol que comprara e o depositou em um túmulo”, deixando entender a possibilidade de que a compra do lençol em Marcos 15,46 correspondeu à dos aromas2.

1. Cf. João 3,2; 13,30; 19,39. 2. X. LÉON-DUFOUR (Resurrezione di Gesù, op. cit., 199) pensa que em Marcos 16,1 o motivo da unção tenha sido justaposto para justificar a entrada das mulheres no túmulo. 40

Capítulo 3 – O túmulo vazio

1.3. O obstáculo da pedra A pedra colocada na entrada do túmulo destaca a separação definitiva entre os falecidos e os vivos3. O motivo, sem dúvida histórico, recebe um realce diferente nos vários evangelhos. Em João, mostra-se pouco interesse pela pedra sepulcral, porque Maria Madalena, ao chegar ao sepulcro, vê que a pedra já estava removida, como diz Lucas. Ao contrário, Mateus, referindo-se a uma tradição antiga, dá muito destaque ao pormenor, apresentando “o anjo do Senhor” que, descendo do céu, remove a pedra e senta-se nela, declarando que a relação entre os vivos e os mortos se torna outra vez possível com a ressurreição de Jesus. Mateus manifesta seu interesse pela pedra, mencionando-a também no episódio do sepultamento de Jesus, dizendo que José de Arimateia rolou “uma grande pedra para a entrada do túmulo” (Mt 27,60; cf. Mc 15,46). Esses detalhes mostram que o interesse pelo tema da pedra vai diminuindo com o desenvolvimento da tradição primitiva4. Aos poucos a pedra é interpretada não tanto como um empecilho físico que dificulta o acesso ao túmulo de Jesus, mas, sendo encontrada já removida, como um presságio da vitória pascal de Jesus.

1.4. O túmulo de Jesus O evangelista especifica que Jesus foi sepultado num jardim, num “sepulcro novo, no qual ninguém ainda tinha sido sepultado” (Jo 19,41)5. Se o gesto mostra a reverência e a piedade dos seguidores de Jesus, o pormenor representa também um motivo apologético porque o cadáver de um supliciado não podia ser sepultado em um túmulo já ocupado, do contrário haveria profanação dos outros falecidos colocados nele6. Provavelmente trata-se de um túmulo em “arcossólio”, cavado na rocha, como parece indicar o detalhe dos anjos sentados um à cabeceira e outro aos

3. Cf. ibid., 146. 4. O evangelho apócrifo de Pedro (37) afirma que a pedra rolou por si mesma, colocando-se de lado. 5. Y. SIMOENS (Secondo Giovanni. Una traduzione e un’interpretazione, Bologna, EDB, 1997, 795) nota que, para indicar o sepulcro de Jesus, João não usa o termo táphos, que significa “lugar da sepultura”, mas o termo grego mne-meîon, que aponta para a “memória” dos finados que o túmulo procura manter. 6. Mateus 27,60 declara que o sepulcro pertencia a José de Arimateia, portanto a uma pessoa rica. Marcos 15,46 e Lucas 23,53 não especificam a propriedade do túmulo. Dizem que Jesus foi posto num “túmulo que fora talhado na rocha”; Lucas completa, frisando: “onde ninguém ainda havia sido posto”. 41

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

pés de Jesus. Era formado por dois pequenos compartimentos que se comunicavam entre si: o primeiro representava uma espécie de entrada ao túmulo, comunicando-se com ele por meio de uma abertura muito estreita. No compartimento mais interno, sobre uma laje de pedra, era colocado o cadáver, cujas ossadas, depois da decomposição, eram colocadas num pequeno poço escavado no chão, onde já se encontravam os restos mortais dos antepassados. Uma pedra bloqueava o acesso ao primeiro compartimento por motivos higiênicos e para significar a situação de não retorno dos mortos. Esse tipo de túmulo pertencia a uma família bastante rica, como a de José de Arimateia. Distinguia-se de outra sepultura mais frequente no mundo judaico que consistia numa simples escavação na rocha (kokim), muito estreita, de cerca dois metros de profundidade, na qual o defunto era colocado com a cabeça na parte da rocha viva. A escavação era fechada por fora com pedras e argamassa, sem necessidade de “rolar” uma pedra em sua abertura. Havia também túmulos pertencentes a famílias ainda mais abastadas, nos quais os cadáveres eram colocados em sarcófagos postos nos três lados da câmera mortuária. Isso mostra que depois do falecimento persistiam as diferenças entre as camadas sociais, reprovadas pelos profetas7. Também na morte Jesus participa da sorte de todos os mortais. Pode ser interessante lembrar outra opinião a respeito da sepultura de Jesus. Baseando-se em Atos 13,29, em que se afirma que os habitantes de Jerusalém e os chefes desceram Jesus do madeiro e “o colocaram no túmulo”, alguns autores pensam que ele foi posto numa fossa comum, levando em conta que Jesus foi incriminado por subverter a nação (Jo 11,48). De fato, aos condenados por delitos de lesa-majestade normalmente negava-se o direito de serem sepultados em um túmulo particular; também na tradição judaica os condenados não podiam ser sepultados no sepulcro dos pais, devendo ser tirados do patíbulo antes do pôr do sol e enterrados no mesmo dia (Dt 21,22-23). Não há, porém, nenhum fundamento sério para pensar que em Atos 13,29 Lucas faça referência a uma tradição diferente da que se encontra nas narrações sinópticas. Além disso, em vários casos a praxe romana permitia que o cadáver de um criminoso fosse restituído aos parentes para o enterro, embora não esteja claro se esse hábito valia para quem não era cidadão romano, como Jesus8. O reconhecimento da inocência de Jesus por parte de Pilatos, realçada por todos 7. G. RINALDI, Sepulcro, in Enciclopedia de la Biblia, Barcelona, Garriga, 1965, VI, 620-627. 8. X. LÉON-DUFOUR, Resurrezione di Gesù, op. cit., 358. 42

Capítulo 3 – O túmulo vazio

os evangelistas9, pode ter sido motivo suficiente para que Jesus tivesse um destino diferente de outros condenados por crimes contra o imperador e fosse sepultado no sepulcro de José de Arimateia. Por isso a tradição do túmulo em arcossólio continua tendo um grande valor.

2. Os homens visitando o túmulo João menciona a visita dos homens ao túmulo. Refere-se à notícia que se encontra em Lucas, o qual, após o anúncio da ressurreição feito pelas mulheres aos Onze e aos outros companheiros, acrescenta: “Pedro, contudo, levantou-se e correu ao túmulo. Inclinando-se, porém, viu apenas os panos mortuários. E voltou para casa, muito maravilhado com o acontecido” (24,12). Também na narrativa dos discípulos de Emaús, Lucas especifica: “alguns dos nossos foram ao túmulo e encontraram as coisas tais como as mulheres haviam dito; mas não o viram” (24,24a). A referência à visita dos homens ao túmulo pertence, pois, à tradição.

2.1. A figura do discípulo amado Se Lucas fala da visita de Pedro ao túmulo, João acrescenta a figura do “discípulo que Jesus amava”. Trata-se de um personagem histórico, cuja identidade não está clara, embora a tradição patrística seja concorde em identificá-lo com João, o filho de Zebedeu. É o discípulo que, amado por Jesus de modo gratuito, responde ao dom da graça que lhe é oferecido amando Jesus de todo o coração, tornando-se assim o símbolo do discípulo ideal. Não se trata de um privilegiado, porque no quarto evangelho Jesus ama também Lázaro e suas irmãs, assim como todos os seus seguidores (11,3.5.36). Com toda a probabilidade, identifica-se com o responsável pela Igreja joanina que deu testemunho de Jesus e escreveu o evangelho, que goza do respeito e da estima da comunidade.

2.2. O discípulo amado, intérprete do túmulo vazio Por que João introduz a figura do discípulo amado na narrativa? O motivo não é maior fidelidade ao que realmente aconteceu, porque só João lembra esse personagem, desconhecido nas outras camadas da tradição neotestamentária. A razão é teológica. João quer que seja o discípulo amado e não o anjo, como na 9. Cf. João 18,38; Marcos 15,13; Mateus 27,23.24b; Lucas 23,4.14.22. 43

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

tradição sinóptica, o intérprete do sepulcro vazio10. Faz isso para prestigiar o fundador da comunidade joanina, que perante o túmulo de Jesus “viu e creu”, compreendendo o que tinha acontecido, sabendo interpretar a ausência de Jesus como uma presença misteriosa, afirmando assim que ele verdadeiramente ressuscitou. Também em todo o quarto evangelho esse discípulo mostra uma particular perspicácia em compreender o que aconteceu com Jesus. Historicamente é plausível que não foi um ser divino que anunciou às mulheres o evento da ressurreição de Jesus, mas que foi a própria comunidade cristã, iluminada pelo Espírito Santo, que teve a certeza da vitória de Jesus sobre a morte. A figura do anjo, que se encontra nos sinópticos, afirma que o anúncio da ressurreição é uma revelação que vem de Deus e não uma simples hipótese humana. Pensar num verdadeiro mensageiro divino que anuncia às mulheres o sentido do túmulo vazio seria, de certa forma, cair no mito que caracterizou nossa infância e não entender o que de verdade os evangelhos querem transmitir. Segue-se que João comunica a interpretação do túmulo vazio feita pela Igreja, sustentada pela graça de Deus. Evitando o pormenor do mensageiro divino, é mais realista do que os outros evangelhos. Provavelmente só depois das aparições que transmitiram aos discípulos a certeza inabalável de que Jesus estava vivo o túmulo vazio foi considerado o primeiro sinal que orientou os seguidores de Jesus a crer na ressurreição.

2.3. O discípulo amado e Pedro O evangelista apresenta a cena com perícia e equilíbrio, realçando a colaboração entre Pedro e o discípulo amado na descoberta do túmulo vazio. A corrida de ambos manifesta o amor que eles têm por Jesus. O discípulo amado, que é mais novo e cheio de energias, chega primeiro ao sepulcro, inclina-se e olha para dentro do túmulo. Por deferência, porém, não entra. Depois que Pedro chega ao túmulo e entra, também o outro discípulo faz o mesmo, e é o primeiro a entender que o sepulcro vazio não representa um fracasso, mas um evento novo, surpreendente e inesperado, que vai além de toda lógica humana. João não diz nada da reação de Pedro, ao contrário de Lucas, que anota que ele ficou cheio de estupor e de admiração por não encontrar o corpo de Jesus, não sabendo interpretar o evento (Lc 24,12). 10. Em Mateus “o anjo do Senhor”, que corresponde ao próprio Senhor, desvenda o enigma do túmulo vazio (Mt 28,5-6). Em Marcos é um “jovem”, “vestido com uma túnica branca” (Mc 16,6), e em Lucas são “dois homens”, eles também “com veste fulgurante” (Lc 24,5). Trata-se sempre de mensageiros divinos. 44

Capítulo 3 – O túmulo vazio

No relato não há nenhuma rivalidade entre os dois discípulos, como também em todo o quarto evangelho, em que Pedro e o discípulo amado são apresentados sempre unidos nos momentos importantes11. Não devem, portanto, ser levados a sério os exegetas protestantes que se serviram da figura do discípulo amado para desacreditar Pedro, vendo entre os dois discípulos uma competição. Rebaixaram, assim, Pedro em sua tarefa de responsável pela Igreja, em favor do discípulo amado12. Suas considerações dependem de motivos teológicos. De fato, o discípulo amado, deixando entrar no túmulo vazio primeiro Pedro, reconhece implicitamente sua dignidade.

2.4. Uma fonte literária comum A tradição relativa à visita dos homens ao sepulcro, seja ela relacionada com Pedro ou com mais pessoas13, se encontra provavelmente já na fonte comum utilizada por João e por Lucas na composição de seus relatos para comprovar o testemunho das mulheres. Esse relato representa uma tradição secundária e posterior, de sabor apologético, que completa a narrativa da visita das mulheres ao túmulo. Lucas poderia ter omitido esse pormenor sem comprometer sua mensagem pascal, porque a visita de Pedro ao sepulcro, em seu evangelho, não leva à fé, mas indica somente que os discípulos levaram a sério o testemunho das mulheres a respeito do túmulo vazio e foram verificar. É provável que o quarto evangelista tenha dado realce à tradição da visita dos homens ao sepulcro porque na sociedade judaica da época o testemunho feminino não tinha valor jurídico. Dessa forma, destacou que a base da fé no Ressuscitado é o testemunho dos discípulos e não o das mulheres, cujas palavras pareceram aos apóstolos “um desvario” (Lc 24,12).

11. Isso acontece na ceia (Jo 13,23-25), no pátio do sumo sacerdote (18,15-16) e no episódio da pesca no lago de Tiberíades (21,7.20-23). 12. Alguns autores pensam que o evangelista apresenta a rivalidade que existia entre grupos cristãos de sua época. 13. Cf. S. SABUGAL, La tradición histórica del sepulcro vacío (Mc 16,1-8 par; Lc 24,12; Jo 20,110), Estudios Augustinianos 28/3 (1993) 417-449; A. DAUER, Zur Authentizität von Lk 24,12, Ephemerides Theologicae Lovanienses 70 (1994) 294-318; F. OLIVEIRA, El sepulcro vacío. Estudio exegético de Jn 20,1-10, Mayéutica 19/47 (1993) 9-54. 45

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

3. As mortalhas 3.1. Os panos mortuários Ao aproximar-se do túmulo, Pedro vê os panos com os quais Jesus foi sepultado (othónia, Jo 20,5.6.7), mencionados também na hora da sepultura, dizendo que os discípulos “tomaram o corpo de Jesus e o envolveram em panos de linho com aromas, como os judeus costumavam sepultar” (19,40). Não é fácil traduzir para o português a palavra othónia. Não se trata de “faixas” ou de “bandagens”, como supuseram alguns autores, embora o evangelista, na hora do sepultamento, afirme que Jesus foi “atado” com othónia (19,40)14. Se no século passado essa tradução prevaleceu, hoje é recusada, porque na língua grega há outro termo para indicar as “faixas”, usado pelo próprio quarto evangelista a respeito de Lázaro, que, levado para o sepultamento, tem os pés e as mãos atados com faixas (keiríai, 11,44). O evangelista teria usado também para Jesus esse termo se quisesse falar de “faixas”. Além disso, a especificação de que Jesus foi sepultado “como os judeus costumavam sepultar” (19,40) exclui que se trate de faixas, características do processo de mumificação feito no Egito15. Entre os judeus não ocorriam operações complicadas no sepultamento, porque, como atesta o Novo Testamento, os falecidos — chamados outra vez para esta vida — se levantam logo e não precisam libertar-se de ataduras particulares (cf. Mc 5,41-42; Lc 7,1-11). As faixas com as quais Lázaro é atado são necessárias por causa do transporte do cadáver à cova, provavelmente situada em um lugar pouco acessível. Como entender então o termo othónia? Descartado o sentido de “faixas” e sem dar muita importância à forma diminutiva do termo, nem a seu uso no plural, é possível pensar que corresponda à palavra othonê no singular, que significa uma grande peça de linho16. De fato, na maioria das vezes no grego da koiné do século I d.C. o diminutivo corresponde ao termo normal17 e o 14. Muitas versões em português escrevem que Jesus foi “envolvido”, não “atado”, simplificando a questão. 15. Em Gênesis 50,2.26 fala-se da embalsamação dos corpos de Jacó e de José, de acordo com os hábitos dos egípcios. Cf. H. STRACK, P. BILLERBECK, Das Evangelium nach Markus, Lukas und Johannes und die Apostelgeschichte. Erläutert aus Talmud und Midrasch, München, C.H. Becksche Verlagsbuchhandlung, 1924, II, 545. 16. Em Oseias 2,7.11, na LXX, encontra-se o termo othónia para indicar um pano de linho que Israel recebe de seus amantes e que o Senhor ameaça tirar, expondo sua esposa à nudez. 17. Em João 12,14, “burrinho” (onárion) corresponde a “burro” (ónos); em 21,16.17, “ovelhinha” (probátia), a “ovelha” (próbaton), assim como “orelha” (ôtion, Mt 26,51; Lc 22,51) tem o mesmo sentido de “orelhinha” (otárion, Mc 14,47). Cf. F. BLASS, A. DEBRUNNER, A Greek Grammar of the New Testament, Chicago/London, The University of Chicago Press, 1961, 111,3. 46

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plural pode frisar a extensão de um objeto, isto é, sua dimensão, ou indicar uma pluralidade de objetos que pertencem à mesma categoria18. No singular, o termo othonê se encontra em Atos 10,11 e 11,5 e se refere à “toalha” com animais puros e impuros que Pedro vê em Jope e que corresponde a uma grande peça de linho ou de algodão. Interpretando desta forma o termo othónia, haveria uma correspondência, embora imperfeita, entre a redação de João e a dos sinópticos, que destacam que Jesus, na hora da sepultura, foi envolvido num “lençol” (sindôn, Mc 15,46; Mt 27,59; Lc 23,53), isto é, numa peça de grande tamanho. Em Marcos o termo é usado também para indicar o tecido que “enrola” o corpo do jovem que segue Jesus no horto do Getsêmani e foge nu, tendo medo de ser preso (Mc 14,51-52). Nesse caso, trata-se de uma peça de linho fino que adere diretamente à pele e serve para dormir. Muitos autores são partidários dessa opinião19, pensando que em João o corpo morto de Jesus foi envolvido num lençol. De fato, em Lucas os termos othónia e sindôn são correspondentes entre si, porque o evangelista destaca que José de Arimateia envolveu o corpo de Jesus “num lençol” (sindôn, 23,53) e em 24,12 diz que Pedro viu “os panos sepulcrais” de Jesus (othónia). Embora muitos exegetas concordem em considerar a redação dos sinópticos semelhante à de João, parece melhor pensar que o termo othónia signifique não somente um grande pano de linho, segundo a versão sinóptica, mas indique todo o conjunto dos panos mortuários usados na sepultura de um falecido. Isso está de acordo com o sentido que tem esse termo em alguns documentos antigos, nos quais se refere a vários tipos de panos que serviam para usos diferentes20. À luz desta explicação, torna-se plausível a afirmação de que o corpo de Jesus foi “atado” com othónia (Jo 19,40), supondo que entre as mortalhas havia também “faixas”. Seria difícil explicar esse pormenor se othónia apontasse simplesmente para um lençol21. Talvez fosse preciso amarrar o corpo de 18. Na língua portuguesa há termos no plural referidos a uma categoria: por exemplo “votos”, “talheres”. 19. Em alguns manuscritos de Juízes 14,13 aparece o termo othónia para indicar o pano de linho fino debaixo do vestuário; Sansão promete “trinta túnicas (othónia) e trinta vestes de gala” a quem explicar seu enigma. Em outros manuscritos o termo é traduzido por sindónai, apontando para a equivalência dos termos. 20. M. BALAGUÉ (La prueba de la resurrección (Jn 20,6-7), Estudios Bíblicos 25 [1966] 169-192 [174]) chama a atenção para um documento da Antiguidade mencionado no catálogo dos papiros gregos e latinos, redigido por J. Rylands, na Biblioteca de Manchester (1952), IV, 627. 21. Mateus 27,59 e Lucas 23,53 destacam que o corpo de Jesus foi “envolvido” (entylíssein) num lençol; Marcos 15,46, que foi “colocado dentro” de um lençol (eneileîn). Os verbos basicamente são correspondentes entre si, embora a expressão de Marcos seja mais forte. 47

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Jesus, depois da morte na cruz, por causa de sua rigidez ou do transporte ao túmulo. A falta do termo específico keiríai não constitui, pois, um problema, porque o evangelista não é obrigado a fazer a listagem completa de todas as peças usadas na sepultura de Jesus22. O uso do verbo “atar” (deîn) na sepultura de Jesus pode, porém, ter um significado simbólico. Jesus, ao ser sepultado, é submetido aos vínculos da morte, sendo atado, isto é, acorrentado, agrilhoado. Na ressurreição, Jesus quebra os obstáculos que o prendem e manifesta sua liberdade, triunfando sobre o poder do mal, conforme o Salmo 116,7: “Sou teu servo, filho de tua escrava; quebrastes os meus grilhões”.

3.2. O sudário Além dos panos sepulcrais, na perícope menciona-se “o sudário”, especificando que estava “sobre a cabeça de Jesus” (Jo 20,7). A peça, que pertence às mortalhas, é mencionada também no episódio de Lázaro que volta para a vida com a cabeça encoberta por um sudário (11,44)23. Trata-se de uma peça de pequenas dimensões, uma espécie de lenço que servia normalmente para secar o suor, mencionado na parábola das minas, em que o servo negligente esconde o dinheiro que lhe é entregue pelo patrão (Lc 19,20)24. Diferenciase, pois, do lençol venerado em Turim, chamado popularmente no Brasil de “Santo Sudário”, que corresponde a uma grande peça de linho. Qual a função do sudário na sepultura de Jesus? O texto apresenta diferentes possibilidades de interpretação. Dizendo que o sudário estava “sobre” a cabeça de Jesus, o evangelista pode referir-se a um pano que servia para manter fechado o queixo de Jesus, após sua morte, como ocorre normalmente com os finados; tratar-se-ia, então, de uma tira de tecido que girava ao redor da cabeça de Jesus e por baixo do queixo. O termo pode indicar também um véu colocado por cima da sua cabeça para encobrir o rosto desfigurado pelos tormentos da paixão. Alguns autores pensam que o hábito de fechar a boca de um falecido com um sudário começou após a queda de Jerusalém e realçam que na época de Jesus se dobrava somente o lençol usado para o sepultamento 22. No relato da ressurreição de Lázaro não se fala de othónia. 23. Não se trata de um lenço para assoar o nariz, porque seu uso foi introduzido somente no século III. No mundo latino, além do sudarium, há vários panos usados na vida cotidiana: o orarium para limpar a boca e o facialia para secar o rosto. 24. O termo, no plural, aparece também em Atos 19,12 para indicar os lenços usados por Paulo que restituíam aos doentes a saúde. 48

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sobre a cabeça do falecido25. Supõem, consequentemente, que o sudário seja um véu26. O que pensar a respeito? No episódio de Lázaro, João especifica de forma explícita que o rosto do finado estava “enrolado” (periedédeto) por um sudário, apontando para um pano que servia para segurar o queixo do falecido (11,44). Provavelmente com Jesus ocorreu a mesma coisa, embora no texto falte o verbo “enrolar”, porque o autor não fixa sua atenção no “rosto” (ópsis) de Jesus, como no caso de Lázaro, mas na “cabeça” dele (kephalê), e usar o verbo “enrolar” poderia levar a considerar o sudário uma espécie de turbante27. Essas breves considerações mostram a dificuldade de entender com exatidão o sentido dos termos usados por João referentes às mortalhas de Jesus. Seria de grande ajuda conhecer mais exatamente os hábitos funerários dos judeus no século I28, mas as notícias a esse respeito são poucas e fragmentárias29.

3.3. Exatidão na descrição dos panos mortuários O evangelista é muito exato na apresentação das mortalhas de Jesus, notando por três vezes que os panos estavam “deitados” no chão (keímena, 20,5.6.7), um pormenor que realça que, ao desaparecer do corpo de Jesus, os linhos voltaram à sua posição normal, faltando o objeto que envolviam. A respeito do sudário, o texto grego oferece várias possibilidades de interpretação. A mais provável parece-me a seguinte: “não estava como os panos de linho 25. O sepultamento dos cristãos nos primeiros séculos parece confirmar esse uso: cf. EUSÉBIO CESAREIA, História eclesiástica 7,16, São Paulo, Paulus, 22008, 362. 26. X. LÉON-DUFOUR (Leitura, IV, op. cit., 150) afirma que no Targum palestinense do Pentateuco a Êxodo 34,31-35 interpreta-se o sudário como um véu. Encontra-se a mesma interpretação em Jerônimo, Orígenes e Cirilo de Alexandria. 27. S. M. SCHNEIDERS (The Face Veil; A Johannine Sign (John 20,1-10), Biblical Theology Bulletin 13 [1983] 94-97) pensa que o texto possa ser interpretado à luz das tradições judaicas referentes ao véu que Moisés tira de seu rosto ao encontrar-se com Deus. 28. O cadáver era lavado e colocado no chão vestido com um vestuário simples, por exemplo um manto (1Sm 28,14). Em Ezequiel 32,27 nota-se que os guerreiros eram sepultados “com todas suas armas”, com “suas espadas colocadas debaixo da sua cabeça”. Cf. M. BALAGUÉ, La prueva, op. cit., 177. 29. Na sepultura de um falecido usavam-se também “aromas”. No caso de Jesus, João diz que Nicodemos e José de Arimateia trouxeram “cerca de cem libras de uma mistura de mirra e aloé”. A mirra é uma resina perfumada, muitas vezes misturada com azeite de oliveira (Sl 45,9; Pr 7,17; Ct 1,13); o aloé é uma essência aromática usada na perfumaria. As duas substâncias trituradas formavam os “aromas”, no plural (Jo 19,40; Mc 16,1; Lc 23,56; 24,1), colocados nos panos mortuários para tirar o mau cheiro produzido pelo cadáver e atrasar a corrupção. No relato joanino chama a atenção a grande quantidade de essências, usada normalmente para a sepultura de um rei (cf. 2Cr 16,14): “cem libras” corresponde a 32,125 quilos. Com o detalhe, talvez o evangelista reconheça que Jesus é rei.

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no chão, mas distintamente enrolado no mesmo lugar”, uma tradução para o português um pouco diferente da corriqueira, porque normalmente se lê que “o sudário não estava com os panos de linho no chão, mas enrolado em um lugar, à parte” (v. 7). Com a frase, o evangelista quer realçar que o sudário estava envolvido em si mesmo, “no mesmo lugar” em que se encontrava no sepulcro quando Jesus foi sepultado30, negando que possa ter sido levado daí. Embora vários detalhes do texto pareçam indicar a importância da posição das mortalhas de Jesus, é mais correto pensar que o interesse do evangelista é simplesmente informar o leitor da descoberta delas. Sua presença é suficiente para levar a pensar que algo de inesperado aconteceu com Jesus31. Com efeito, no texto não há sinais de que a fé do discípulo amado está relacionada com a posição das mortalhas32. Qualquer que seja a tradução adotada para João 20,7, o intuito do autor é frisar que no túmulo tudo foi encontrado como estava no momento do sepultamento de Jesus. Isso significa que ninguém penetrou no sepulcro antes dos discípulos. Levando em conta a correspondência entre a narração da ressurreição de Jesus e a de Lázaro, é possível dizer que Jesus, ressurgindo, deixou para trás as mortalhas, entrando definitivamente na vida escatológica, ao contrário de Lázaro, que ao ressuscitar estava ainda envolvido pelos panos sepulcrais, sinal de que ele devia ainda morrer33.

4. O nascimento da fé 4.1. Ver e crer De acordo com o relato joanino, os dois discípulos devem ter entrado no primeiro compartimento do sepulcro de Jesus e de lá visto as mortalhas que se encontravam no âmbito mais escondido do túmulo. Pedro não compreendeu, mas o discípulo amado “viu e creu” (20,8)34. 30. Os autores notam que na expressão grega en héna tópon o adjetivo cardeal “um” (heis) pode corresponder ao pronome grego autós, com o sentido de “o mesmo”, de acordo com o relato da criação em Gênesis 1,9: “juntem-se em um só lugar (eis synago-gên mían) as águas que estão debaixo do céu”. Cf. também Ecl 3,20; 6,6. Para dizer “em outro lugar”, a frase mais apta seria eis héteron tópon, como em Atos 12,17. Cf. R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 1236-1237. 31. A presença das mortalhas aponta para a ressurreição de Jesus porque no caso do roubo também elas teriam desaparecido. 32. Poucos exegetas realçam que o evangelista está interessado na posição das mortalhas de Jesus; também os Padres da Igreja recusam essa perspectiva. Cf. B. BYRNE, The faith of the Beloved Disciple and the community in John 20, Journal for the Study of the New Testament 23 (1985) 83-97. 33. Cf. R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 1267. 34. No versículo há dificuldades textuais. No códice de Beza (D) lê-se: “viu e não creu”, negando que o discípulo amado tenha chegado à fé, provavelmente à luz do versículo 9, que frisa que os 50

Capítulo 3 – O túmulo vazio

Os dois verbos não têm complemento. Não é difícil compreender que “ver” faz referência aos panos sepulcrais, deixados no sepulcro por Jesus, enquanto “crer” diz respeito ao evento da ressurreição, embora Agostinho destaque que o discípulo creu nas palavras de Madalena, isto é, no roubo do cadáver, dando uma interpretação que exerceu grande influência na Igreja antiga35. Essa interpretação deve, porém, ser excluída porque no quarto evangelho o verbo “crer”, em absoluto, é usado sempre no sentido teológico de “acreditar” em Jesus ou em Deus, indicando um ato de fé sobrenatural. Para o discípulo amado o túmulo vazio, com as mortalhas de Jesus, representa, então, um sinal que desperta sua fé, semelhante aos que Jesus fez em sua vida pública. É preciso notar que o ato de “ver”, referido ao discípulo amado, é indicado pelo evangelista com o verbo grego eîden, derivado de oîda, e não com blépein, que conota a simples percepção visiva, nem com theo-reîn, que significa “observar”. Eîden destaca que o discípulo, vendo os panos sepulcrais, começou a entender o segredo do túmulo vazio: viu, então, e começou a compreender, chegando aos poucos à fé. Trata-se de uma compreensão não ainda plena, porque no versículo o verbo está no aoristo (eîden) e indica um entendimento inicial, destinado a amadurecer. Embora a fé do discípulo amado seja ainda embrionária, entrevê algo da ação misteriosa de Deus em Jesus. Bem diferente é a situação de Maria Madalena, que proclama aos discípulos “Vi o Senhor” (heôraka, 20,18), ou aquela dos discípulos reunidos que confessam “Vimos o Senhor” (heo-rákamen, v. 25). Nestas frases, embora falte o termo “crer”, o verbo “ver” está no tempo perfeito, indicando um olhar que compreende plenamente, então uma fé amadurecida e perseverante, que começou no passado e continua no futuro. “Ver” e “crer” devem, portanto, ser considerados dois momentos do mesmo processo de fé, relacionados entre si, porque o primeiro ato leva ao segundo; aliás, o primeiro contém em potência o segundo. Segue-se que o discípulo amado, perante o túmulo vazio, entende a linguagem das coisas inanimadas, ao contrário de Pedro, que somente “observa” dois discípulos não compreenderam a Escritura. Algumas traduções para a língua siríaca escrevem: “viram e não creram”, realçando a experiência negativa dos dois discípulos. 35. No Sermão 246,2 Agostinho escreve: “Eis o que tendes ouvido e que foi lido: ‘viu e creu, pois ainda não tinham compreendido a Escritura’. Que significa então: ‘viu as mortalhas no chão e acreditou’? Acreditou em quê? Ao que a mulher lhe tinha dito: ‘Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram’” (cf. AGOSTINO, Discorsi, Col. Nuova Biblioteca Agostiniana 32/2, Roma, Città Nuova, 1984, 699). 51

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

as mortalhas de Jesus e fica perplexo (Lc 24,12). Isso depende do primado do amor, porque “Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus” (1Jo 4,7). Como nota Blaise Pascal, “O coração tem razões que a razão não conhece”36. No difícil caminho de compreensão da realidade, a intuição espiritual de quem ama atinge o objetivo mais facilmente do que a pura razão. Por isso, no quarto evangelho o personagem mais apto para reconhecer o Ressuscitado é o discípulo amado, cuja “clarividência do amor” lhe permite desvendar o sentido do túmulo vazio37. Ele é também o discípulo que primeiro entende o sentido do lado transpassado de Jesus do qual brota toda salvação: “Aquele que viu dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro e ele sabe que diz a verdade, para que vós creiais” (Jo 19,35). De acordo com a tradição primitiva, é muito provável que historicamente, perante o túmulo vazio, os discípulos não chegaram à fé, porque nenhum outro texto do Novo Testamento afirma isso. Também em Mateus 28,9-10 as mulheres acreditam após a aparição de Jesus perto do túmulo, na qual abraçam seus pés, prostrando-se diante dele, e não perante o sepulcro vazio. É plausível, portanto, que o quarto evangelista tenha projetado no episódio do túmulo a confissão de fé da comunidade primitiva que se formou posteriormente. No texto, essa confissão de fé é apresentada como uma convicção pessoal do discípulo e não como um anúncio que deve ser transmitido aos outros. Segue-se que a fé do discípulo amado tem a função de idealizar sua figura.

4.2. Fé na ressurreição e Escritura Depois da afirmação de que o discípulo amado “viu e creu”, parece um pouco estranha a frase: “Pois ainda não tinham compreendido que, conforme a Escritura, ele devia ressuscitar dentre os mortos” (20,9). Não resolve a questão a variante, com o verbo no singular, que se encontra em alguns manuscritos: “ele não havia ainda compreendido a Escritura”, referida somente a Pedro, nem representa uma solução relacionar o plural com a figura de Pedro e de Maria Madalena38. Tampouco merece atenção a suposição de que os versículos 8 e 9 representam duas diferentes tradições justapostas39, das quais a 36. B. PASCAL, Pensamentos 277, São Paulo, Victor Civita, 21979, 107. 37. A frase é de D. MOLLAT, La fois pascal selon le chapitre 20 de l’Évangile de Jean, in Resurrexit. Symposium International sur la Résurrection de Jésus (Rome, 1-5 avril 1970), Roma, Città del Vaticano, 1974, 316-332 (320). 38. Vários exegetas pensam que o versículo é uma glosa. 39. Para indicar a ressurreição de Jesus dentre os mortos, em 20,9 encontra-se a expressão ek nekrôn anistánai, de acordo com a tradição sinóptica (Mc 8,31; 9,9.31; 10,34; Mt 17,9.23; Lc 9,22; 52

Capítulo 3 – O túmulo vazio

do versículo 9 seria a mais primitiva e referida somente a Pedro — talvez em companhia de outros discípulos —, que diante do túmulo vazio fica surpreso, sem chegar à fé. Apesar da dificuldade de interpretação, o versículo não carece de sentido, porque a fé do discípulo amado é uma fé ainda embrionária e não aprofundada, fruto somente da experiência do túmulo vazio, sem uma consideração da palavra de Deus contida no Antigo Testamento. Destacando esse pormenor, o evangelista levanta a questão do relacionamento entre fé e Escritura40, afirmando que somente após o encontro pessoal com o Ressuscitado é possível entender o sentido verdadeiro da revelação veterotestamentária, em força do Espírito da verdade que conduz os discípulos à verdade plena (Jo 16,13). A compreensão das profecias do Antigo Testamento ocorre, portanto, sempre depois do nascimento da fé pascal. Essa perspectiva se encontra também em Lucas: os discípulos de Emaús se dão conta de que as Escrituras anunciavam a morte e a ressurreição do Messias somente depois que Jesus lhes apareceu, reconhecendo-o no gesto de partilhar o pão (Lc 24,25-27). Também nos Atos Pedro faz menção ao Salmo 16,8-11, referente à ressurreição do justo, depois de ter proclamado o evento da ressurreição de Jesus (At 2,25-28). Fé em Jesus ressuscitado e compreensão da Escritura são, pois, entrelaçados entre si, embora a fé pascal represente o ponto mais elevado da revelação bíblica e tenha sua autonomia a respeito da compreensão do Antigo Testamento. Portanto, se na manhã de Páscoa, perante o túmulo vazio, os discípulos ainda não compreenderam a Escritura, deve-se supor que logo em seguida a compreenderam. De fato, viviam numa comunidade interessada em descobrir a continuidade da única história de salvação que vai da criação do homem à vinda escatológica do Messias. O versículo não quer, pois, afirmar que se os discípulos tivessem entendido logo a Escritura teriam chegado à fé por meio dela, sem a necessidade de ir ao túmulo e de fazer a experiência do Ressuscitado41. Nesse caso, a fé se tornaria uma simples dedução doutrinal a partir do Antigo Testamento e não dependeria de um encontro com Jesus vivo. Por isso, na gênese da fé as 18,33; 24,7.46). João, porém, usa normalmente a frase egeírein ek nekrôn (Jo 2,22; 21,14), referida também a Lázaro (12,1.9.17). 40. Em 20,9, na frase “conforme a Escritura”, o autor usa o singular (cf. Jo 10,35b; 13,18; 19,24.28.36.37), fazendo menção a um texto preciso do Antigo Testamento. Refere-se provavelmente ao Salmo 16,8-10 ou a Isaías 53,10-11, que falam da provação e da glorificação do justo perseguido. 41. M.-J. LAGRANGE, Evangile selon Saint Jean, Paris, Gabalda, 1925, 508. 53

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

aparições têm uma importância primária, proporcionando um contato imediato com o Ressuscitado42. Poder-se-ia dizer que entre fé e compreensão da Escritura há uma relação circular, uma recíproca correspondência: o evento da ressurreição de Jesus, aceito como revelação definitiva de Deus, leva a examinar o Antigo Testamento, que confirma a fé no Ressuscitado, fortalecendo-a. Por sua vez, a palavra que anuncia a fidelidade do Senhor à sua Aliança, proclamando que a morte não tem a última palavra no projeto salvífico de Deus, constitui a garantia da validade do ato de fé no Ressuscitado, antecipando-o no tempo. É verdade, porém, que a compreensão plena da palavra veterotestamentária depende da convicção dos discípulos de que Jesus está vivo, determinada pela experiência dele nas aparições. Essa dinâmica acompanha toda a vida da Igreja primitiva que crê em Jesus ressuscitado, compreendendo aos poucos a riqueza da revelação do Antigo Testamento, que prepara e anuncia os tempos escatológicos. Dessa forma, os discípulos compreendem a coerência do plano de Deus que começa com a criação de Adão e encontra sua plenitude em Jesus Cristo.

5. Interesse pelo túmulo vazio Todos os evangelistas dão realce ao sepulcro vazio, considerando-o o pressuposto da experiência das aparições.

5.1. Atenção progressiva ao túmulo vazio À medida que progride a reflexão teológica da Igreja sobre Jesus Cristo, cresce a importância do túmulo vazio. Na tradição paulina e nas fórmulas de fé anteriores à redação do Novo Testamento, quase nunca se faz menção ao sepulcro de Jesus. Em 1 Coríntios 15,3b-5, no compêndio de fé da Igreja primitiva anterior a Paulo, lê-se: “Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras, foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. A menção ao sepultamento tem a finalidade de indicar a irreversibilidade da morte de Jesus e não está relacionada com a fé pascal. Nos discursos querigmáticos dos Atos faz-se memória do túmulo de Jesus somente de forma indireta, dizendo que “o patriarca Davi morreu e foi sepultado, e o seu túmulo se acha entre nós até o presente dia”, ao contrário de Jesus, que “não foi abandonado no mundo dos mortos, nem a sua carne experimentou a corrupção” (At 2,29.31). 42. No querigma primitivo destaca-se que Jesus padeceu, foi morto e sepultado e ressuscitou “segundo as Escrituras” (1Cor 15,3b-5). 54

Capítulo 3 – O túmulo vazio

O mesmo faz Paulo em Antioquia da Pisídia (cf. 13,36-37). Isso indica que o túmulo de Jesus no início não despertava muito interesse. O tema encontra, porém, atenção maior em Marcos 16,5. O jovem celestial, sentado “ao lado direito” do sepulcro, sinal de que traz boas-novas, exorta as mulheres, que procuram Jesus, a conscientizar-se de que ele ressuscitou e o sepulcro está vazio: “Estais procurando Jesus o Nazareno, o crucificado. Ressuscitou, não está aqui; eis o lugar onde o puseram”. No texto, o convite a constatar que o túmulo está vazio vem depois do anúncio da ressurreição, indicando que este tem prioridade sobre a constatação do sepulcro. A ordem das palavras indica uma intenção teológica43. Por isso, as mulheres não verificam primeiro a ausência do corpo de Jesus para concluir que ele ressuscitou. Acontece exatamente o contrário: o anjo logo as convida a reconhecer que Jesus ressuscitou e só em seguida a olhar para o túmulo. Em Marcos, o túmulo vazio se torna, assim, um elemento do querigma pascal, porém secundário. Lucas insiste mais no túmulo vazio. Antes de receberem o anúncio da ressurreição, as mulheres se dão conta de que o túmulo está vazio. Ao chegar ao lugar do sepultamento de Jesus, “encontraram a pedra do túmulo removida, mas, ao entrar, não encontraram o corpo do Senhor Jesus”, o que desperta sua perplexidade (Lc 24,3). Os dois varões, com vestes resplandecentes, dizem: “Ele não está aqui, ressurgiu”, realçando na primeira parte da frase a realidade do sepulcro vazio (v. 6), embora proclamem que não é preciso procurar “entre os mortos aquele que está vivo” (v. 5). Lucas muda, portanto, a ordem da mensagem angélica que aparece em Marcos, fixando duas vezes a atenção no túmulo vazio e só depois na ressurreição. Também, mencionando a visita de Pedro ao túmulo, realça seu interesse pelo sepulcro (24,12). A atenção ao túmulo cresce no evangelista Mateus, o único a descrever sua abertura, fazendo intervir o anjo do Senhor que remove a pedra e sentase sobre ela (Mt 28,2). O pormenor serve para destacar de forma plástica a vitória de Deus sobre a morte44. Só depois de afirmar que o túmulo está vazio o evangelista coloca na boca do anjo o anúncio da ressurreição: “Sei que estais procurando Jesus, o crucificado; ele não está aqui, pois ressurgiu, conforme havia dito” (v. 5b-6a). Em Mateus o anjo chega a convidar as mulheres a constatar que o corpo de Jesus não está mais no lugar da sepultura, dizendo 43. O interesse pelo túmulo é frisado pelo advérbio “aqui” (hôde) e pelo termo “lugar” (tópos): “Não está aqui; vede o lugar onde o puseram”. 44. O motivo do “terremoto”, que se encontra várias vezes em Mateus (24,7; 27,54), aponta para a teofania de Deus. 55

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com uma expressão de teor apologético: “Vinde ver (déute ídete) o lugar onde ele jazia” (v. 6b), destacando ainda mais a importância do túmulo vazio45. Também a perícope dos guardas colocados junto ao túmulo para impedir que o corpo de Jesus seja tirado por seus discípulos, característica da redação mateana, mostra o interesse do evangelista pelo tema46, procurando negar a hipótese do roubo47. No evangelho de João o túmulo vazio adquire uma importância ainda maior por causa da acurada descrição dos linhos sepulcrais e da fé do discípulo amado que nasce com a constatação da ausência do corpo de Jesus no lugar da sepultura48. Mais exatamente, trata-se de uma fé que amadurece a respeito do túmulo vazio, não por causa dele, porque crer depende da misteriosa atração do Pai que revela ao ser humano a identidade da pessoa de Jesus (Jo 6,44) e não da simples visão dos panos sepulcrais. Os pormenores evidenciados mostram, em todo caso, que no final do século I o túmulo de Jesus se tornou “uma atestação sempre mais tangível” na reflexão da Igreja49.

5.2. O túmulo vazio e as explicações dos autores O túmulo vazio pode ser considerado um evento histórico? Como nota Xavier Léon-Dufour, reconhecer a historicidade do sepulcro vazio depende 45. Os exegetas notam certo paralelismo entre as palavras do anjo do Senhor e as de Jesus. Ambos anunciam às mulheres, com frases semelhantes, as aparições na Galileia (cf. Mt 28,7b.10b). 46. Os guardas são mencionados logo após o sepultamento (Mt 27,62-66) e depois da ressurreição (28,11-15). E. RUCKSTHUL e J. PFAMMATTER (La resurrezione di Gesù Cristo. Realtà storico-salvifica e centro della fede, Roma, AVE, 1971, 38) pensam que a tradição pertença ao âmbito hierosolimitano e que tenha sido uma invenção para combater a calúnia do roubo do corpo de Jesus, por causa de seu cunho lendário. O evento aparece também no evangelho apócrifo de Pedro (150 d.C.). De acordo com os estudiosos, representa uma tradição marginal, bastante tardia, de caráter apologético. 47. O relato tem escassa probabilidade de ser histórico. É duvidoso o encontro de sumos sacerdotes e fariseus com um pagão (Pilatos), na véspera da Páscoa (cf. Jo 18,28), assim como o é o fato de que os adversários pensam na eventualidade da ressurreição (Mt 27,63), diversamente dos próprios discípulos, que parecem não levar a sério essa possibilidade (28,17b). Além disso, os guardas foram colocados para vigiar o túmulo de Jesus “no dia seguinte” (27,62a), o que não teria evitado a possibilidade do roubo. No relato, não está clara a identidade dos guardas: se judeus ou romanos. O medo de que os discípulos digam ao povo “Ressurgiu dos mortos” (27,64) corresponde exatamente às palavras que o anjo do Senhor diz às mulheres (28,6) e que elas devem transmitir aos discípulos (28,7). Todos esses elementos mostram o trabalho redacional do evangelista. 48. Cf. P. BENOIT, Marie Madeleine et le disciple au tombeau selon Jean 20,1-18, in Exégèse et Théologie, Paris, Cerf, 1968, III, 270-282 (280). Provavelmente, na época do evangelista, a realidade do sepulcro de Jesus era objeto de discussões entre cristãos e judeus. 49. X. LÉON-DUFOUR, Resurrezione di Gesù, op. cit., 356-363. 56

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do conceito que os exegetas têm da ressurreição de Jesus. Para quem acredita que Jesus, morrendo, entrou na glória do Pai, o túmulo vazio é um vestígio histórico que testemunha que ele não pertence mais a este mundo. Para quem considera o anúncio da ressurreição de Jesus meramente simbólico, o motivo do túmulo vazio é uma linguagem figurada para dizer que Jesus ressuscitou, como sustentam vários exegetas, entre os quais Rudolf Bultmann, que pensa que Cristo ressurgiu somente na pregação da Igreja, e Willi Marxsen, para o qual o anúncio da ressurreição significa apenas que “a causa de Jesus continua”. Também outros autores, protestantes ou católicos50, pensam que o relato do túmulo vazio não representa um dado histórico, mas é um simples “teologúmeno” que ajuda a compreender melhor o anúncio da ressurreição. Na realidade, o corpo de Jesus que foi sepultado não corresponde ao corpo ressuscitado que entrou no mundo de Deus. O desaparecimento do corpo físico de Jesus, então, não teria um sentido particular. Na mesma linha, outros estudiosos consideram a narrativa uma lenda “etiológica”51 com a finalidade de justificar a devoção ao sepulcro de Jesus por parte da comunidade primitiva. Perplexidade a respeito da historicidade do sepulcro vazio é manifestada também pelo exegeta Charles Harold Dodd, que escreve: “No ambiente judaico da época, os que acreditavam na vida depois da morte, na maioria dos casos, a imaginavam como uma espécie de ressurreição do corpo já sepultado”. Por isso o exegeta acha possível que os primeiros cristãos, convencidos por várias razões de que Jesus estava vivo, tenham expressado sua convicção de fé, de forma concreta, por meio do motivo do túmulo vazio52. Apesar das opiniões diferentes dos autores, pode-se dizer que o túmulo vazio não constitui uma prova da ressurreição, porque coloca uma questão sem oferecer uma resposta. Isolado do contexto do evangelho e, em particular, do testemunho dos discípulos que nas aparições fizeram a experiência de Jesus vivo, fica um detalhe sem grande valor em relação à fé. Não se pode, porém, afirmar que seja uma mera invenção dos autores sagrados, porque o tema do sepulcro vazio tem um sólido alicerce na tradição do Novo Testamento. Por isso a questão da historicidade do sepulcro vazio deve ser aprofundada.

50. A. TORRES QUEIRUGA, Repensar a ressurreição. A diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura, São Paulo, Paulinas, 2004, 83-85; 173-178. 51. “Etiologia” significa a busca das causas que deram origem a um relato ou ao fenômeno que é objeto de estudo. 52. C. H. DODD, Il fondatore del cristianesimo, Torino/Leumann, EllediCi, 1975, 172. 57

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5.3. Elementos em favor da historicidade do túmulo vazio Se o túmulo vazio é um sinal “ambíguo”, permitindo várias interpretações — a primeira das quais é o roubo —, é, porém, um sinal “orientador”, mostrando que algo aconteceu com o corpo de Jesus. Estimula, assim, a investigação53. Para uma avaliação equilibrada da narração, alguns pormenores merecem ser levados em consideração. — A tradição do túmulo vazio está relacionada, de forma especial, com o testemunho das mulheres, que no mundo judaico não tinha valor perante a lei54. Prova disso é que em Lucas 24,11 o anúncio das mulheres é qualificado como um “desvario” que não merece crédito. O anúncio delas na manhã de Páscoa arrisca comprometer o papel dos discípulos, cujo testemunho constitui o alicerce da fé da Igreja. É justamente por causa da falta de valor jurídico do testemunho das mulheres que se criou a tradição dos homens visitando o túmulo, que é secundária e apologética, e sobre a qual João fixa sua atenção, sem esquecer a tradição das mulheres, de acordo com os sinópticos55. Além disso, o personagem de José de Arimateia relacionado com a tradição do sepulcro vazio é histórico. É preciso, portanto, ter muita prudência na avaliação do valor desse dado evangélico. — Os judeu-cristãos, vivendo numa cultura que destacava o valor do corpo, dificilmente teriam acreditado na ressurreição se tivessem encontrado o corpo de Jesus no túmulo. Por isso, a falta do cadáver se torna um elemento indispensável para crer que Jesus ressuscitou, embora entre os judeus não houvesse uma ideia clara da ressurreição, sendo uma realidade escatológica não plenamente compreensível. — A ausência na tradição primitiva, em particular em Paulo, da menção ao túmulo vazio não significa necessariamente que a comunidade ignorasse esse elemento. Talvez fosse considerado um pormenor de menor importância por causa de seu relacionamento com as figuras femininas; por isso não aparece na mensagem apostólica oficial. 53. J. KREMER, J. SCHMITT, H. KESSLER, Dibattito sulla resurrezione di Gesù, Brescia, Queriniana,1969, 94-103; J. DELORME, Résurrection et tombeau de Jésus, in La résurrection du Christ et l’exégèse moderne, Paris, Cerf, 1969, 105-151 (145-149). Cf. BROWN, Giovanni, op. cit., 1217-1224; G. KOCH, Die Auferstehung Jesu Christi, Tübingen, Mohr, 1965, 162-165. 54. A. FEUILLET, La découverte du tombeau en Jean 20,3-10 et la foi au Christ ressuscité. Étude exégétique et doctrinal, Esprit et Vie 87 (1977) 257-266.273-284 (280). 55. H. KESSLER, La resurrezione di Gesù Cristo. Uno studio biblico, teologico-fondamentale e sistematico, Brescia, Queriniana 1999, 104-112. 58

Capítulo 3 – O túmulo vazio

De fato, nem tudo o que ocorre na história da Igreja primitiva entra na tradição. Também a aparição de Jesus às mulheres (Mt 28,9-10; Jo 20,11-18) não faz parte do querigma inicial. Às vezes motivos acessórios favorecem a lembrança de eventos importantes, como no caso das desordens nas reuniões comunitárias em Corinto, que estimulam Paulo a fazer referência à Eucaristia e às palavras pronunciadas por Jesus (1Cor 11,23-25). É plausível, portanto, que o túmulo vazio fosse um dado conhecido já antes da pregação de Paulo, sem que ele o utilizasse porque considerado secundário. Não há elementos decisivos para dizer que a tradição do sepulcro se segue, no tempo, à das aparições; pode ser contemporânea a esta, embora apareça na pregação da Igreja só num momento posterior. De fato, a realidade de um evento nem sempre corresponde à sua menção pública e oficial. Além disso, é metodologicamente errado opor a tradição dos evangelhos que falam do túmulo vazio à tradição representada por Paulo (1Cor 15,3b-5) e pelos Atos dos Apóstolos (At 2,25-31; 13,27-29), que se calam sobre esse evento, sem a intenção de desvalorizá-lo. — Na polêmica dos primeiros séculos entre Igreja e sinagoga não há afirmações por parte dos judeus de que no túmulo foi encontrado o corpo de Jesus. Em época posterior, o judaísmo não contestou a realidade do túmulo vazio, mas pensou em um erro na identificação do sepulcro ou no roubo do corpo de Jesus56. Pode-se acrescentar que o relato joanino do sepulcro vazio é bastante sóbrio e mais realista que o dos sinópticos, não fazendo menção ao mensageiro celeste. Se a descrição pormenorizada dos linhos manifesta certo interesse apologético, pode apontar também para uma testemunha ocular57. De fato, o quarto evangelho, teologicamente muito elevado, não carece de pormenores históricos. Por isso, sustentar que o relato do túmulo vazio é meramente literário e destituído de toda base histórica é uma afirmação que deve ser provada58. Pode-se, ao contrário, presumir que a narrativa corresponda a um conjunto 56. Alguns autores mencionam a lenda do Talmude na qual se narra que o corpo de Jesus foi roubado pelo jardineiro e depois restituído. 57. No relato da paixão, somente em João refere-se o nome do servo do sumo sacerdote a quem Pedro corta a orelha, Malco (18,10); lembra-se, com maior verossimilhança histórica, o encontro de Jesus com o sumo sacerdote Anás (18,12-27); fala-se do golpe de lança que transpassa o lado de Jesus, evento historicamente provável (19,31-37). 58. Os exemplos de túmulos vazios alegados pelos exegetas, em relação com o arrebatamento do cadáver, são tardios e podem depender das narrativas evangélicas. Cf. R. PESCH, Il vangelo di Marco, Brescia, Paideia, 1982, II, 761-767. 59

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de lembranças autênticas, alicerçadas na vivência das primeiras testemunhas, juntamente com as reflexões da comunidade que elaborou o relato59. Não se trata, pois, de uma mera crônica, mas tampouco é um mito produzido pela fantasia. Contudo, deve-se reconhecer que o túmulo vazio representa um elemento de pouco valor se considerado de forma isolada e não em relação com o testemunho apostólico das aparições.

5.4. Túmulo vazio e fé cristã A afirmação do túmulo vazio, escreve Franz Mussner, é para a teologia “a defesa permanente contra a tentação, nunca desaparecida, de uma cristologia docetista”60. Seu realismo ajuda a entender que a pessoa concreta de Jesus, em sua identidade humana, foi glorificada. Opõe-se, portanto, a uma visão desencarnada e espiritualista da ressurreição. Por isso, pode ser definida como uma importante “ajuda hermenêutica” para compreender o sentido verdadeiro da ressurreição, destacando a identidade entre o crucificado e o Ressuscitado e insistindo no valor da encarnação61. O túmulo vazio não deve ser considerado, pois, um detalhe marginal na dinâmica da fé cristã. Em outras palavras, aceitar que o sepulcro foi encontrado vazio significa crer que a vida humana e a totalidade deste mundo são destinadas a participar da glorificação escatológica. O que Deus criou não será destruído, mas recriado. Já Tertulliano, com uma expressão sintética e muito eficaz, destacava que a carne é o princípio da salvação: caro salutis est cardo62. É verdade que insistir demais na realidade do sepulcro vazio e, em consequência, no corpo físico de Jesus pode ser fonte de erros, porque leva a supor que a ressurreição corresponda à reanimação de um cadáver63. O Ressuscitado seria, pois, igual a Lázaro, que volta para esta vida. Deve-se reconhecer que esse modo de representar o evento, embora errado, satisfaz a curiosidade 59. Em Marcos encontra-se somente o relato do túmulo vazio (Mc 16,1-8), apontando para as futuras aparições aos discípulos. Se no projeto original do autor o evangelho terminava em 16,8, a tradição do túmulo vazio poderia ser considerada um dado arcaico. 60. F. MUSSNER, La resurrección de Jesús, Santander, Sal Terrae, 1971, 125. Cf. M. BRÄNDLES, Müsste das Grab Jesus leer sein?, Orientierung 31 (1967) 108-112, estudo que mostra o perigo, sempre atual, da teologia neodocetista. 61. F. MUSSNER, Resurrección, op. cit., 123. 62. TERTULLIANO, La resurrezione dei morti 8,1, Roma, Città Nuova, 1990, 62 (cf. Corpus Christianorum 2,931). 63. L. MARIN (Du corps au texte. Propositions métaphisiques sur l’origine du récit, Études 423 [1973] 913-928) realça que a ausência do corpo aponta para a novidade da presença de Jesus entre os que acreditam. 60

Capítulo 3 – O túmulo vazio

humana que procura “imaginar” o Ressuscitado à luz dos parâmetros deste mundo, pensando num corpo sutil, evanescente, que passa através das paredes, que é a sublimação do corpo terreno, esquecendo que a cruz bloqueia qualquer representação humana do Ressuscitado. De fato, para Lucas, os filhos da ressurreição serão semelhantes aos anjos, não sendo mais submetidos às contingências desta vida (Lc 20,36). É preciso destacar também que a afirmação de que o corpo de Jesus não foi encontrado no túmulo não deve levar a pensar que suas células vão fazer parte do corpo ressuscitado. Este corpo, renovado pelo Espírito Santo, não vem do túmulo, mas de Deus, que transforma a pessoa física de Jesus Nazareno64. Não se pode, portanto, afirmar que o corpo de Jesus foi levado para o céu da forma como fora sepultado. Proclamando que na manhã de Páscoa o corpo de Jesus não foi encontrado no sepulcro, os evangelhos nada dizem a respeito do destino do cadáver. Discutir sobre sua sorte é uma questão ociosa65; sua ausência representa o simples “sinal” da transformação que ocorreu na pessoa de Jesus, sem possibilidade de maior precisão. É, portanto, suficiente dizer que o túmulo vazio constitui um sinal “aberto” a várias interpretações, orientando para a fé na ressurreição, obra exclusiva de Deus, fiel à sua Aliança. Pode ser interessante notar que a ausência do corpo de Jesus determina uma ruptura radical com os hábitos antigos de venerar os cadáveres dos finados, considerados sagrados, prática que é uma mera compensação pela perda do ente querido ou um exorcismo contra a própria morte. O túmulo vazio de Jesus impede a sacralização do corpo do falecido e relativiza os ritos fúnebres, sem negar o respeito devido aos finados66.

64. W. KÜNNETH, Entscheidung heute. Jesu Auferstheung Brennpunkt der theologischen Diskussion, Hamburg, Wittig, 1966, 63. 65. M. AMIGUES, Le chrétien devant le refus de la mort. Essais sur la résurrection, Paris, Cerf, 1981, 237. 66. B. LAURET, Cristologia dogmatica, in B. LAURET, F. REFOULÉ, Iniziazione alla pratica della teologia, Brescia, Queriniana, 1985, 420-438. Cf. M. AMIGUES, Le chrétien, op. cit., 236. 61

Capítulo 4

Maria Madalena ao túmulo

Após ter se afastado do sepulcro para avisar os discípulos do desaparecimento do corpo de Jesus, Madalena aparece outra vez junto ao túmulo, sem que o evangelista explicite o motivo. O detalhe indica que a mulher quer preencher o vazio que experimenta no coração mostrando seu afeto pela pessoa de Jesus. Na narração, vários elementos caracterizam o temperamento feminino, embora em seu evangelho João queira comunicar um anúncio salvífico, sem se preocupar com a psicologia e a afetividade dos personagens (Jo 20,11-18).

1. Interesse pela figura feminina 1.1. Madalena, mulher cheia de entusiasmo A força do amor caracteriza o comportamento de Maria Madalena, que, embora saiba que o corpo de Jesus não está mais no túmulo, continua junto dele perseverantemente, como indica o verbo grego no tempo perfeito (heistêkei, v. 11). Também o choro destaca sua devoção afetuosa por Jesus, que ela qualifica com a expressão carinhosa “meu Senhor”, dizendo aos anjos: “Levaram o meu Senhor e não sei onde o colocaram” (v. 11bis.13.15). O desejo de reencontrar o corpo de Jesus é tão grande que ela não presta atenção aos mensageiros celestes, que passam quase despercebidos. Também as palavras que Madalena pronuncia diante de Jesus que se lhe manifesta e que 63

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

ela supõe ser o jardineiro: “Senhor, se foste tu que o levaste, dize-me onde o puseste e eu o irei buscar” (v. 15), manifestam seu afeto por Jesus. A tríplice repetição do pronome pessoal, que fica indeterminado, mostra que ela pensa que todos conheçam seu problema e que está disposta a qualquer sacrifício para reencontrar o corpo de Jesus. Esse desejo se torna uma busca ativa e incansável, como reconhece o próprio Jesus, que, ao aparecer, pergunta à mulher: “A quem procuras?”. A narrativa é construída em crescendo. No início, a mulher está sozinha junto do túmulo, em seguida encontra os anjos, afinal faz a descoberta de que Jesus está vivo e a chama pelo nome. É nesse momento que o relato alcança seu cume e o autor evidencia a capacidade de intuição da mulher, que reconhece Jesus quando este pronuncia seu nome: “Maria”. Ela responde com outra palavra simples e essencial: “Rabuni”, que significa “Meu mestre”. Dois nomes, então, e o encontro se verifica, destacando a ligação profunda que une Maria Madalena a Jesus1. Na narrativa, outro pormenor chama a atenção: a mulher “volta-se” (stréphein) duas vezes. A primeira vez, quando Jesus lhe aparece: “voltou-se e viu Jesus de pé” (v. 14). Trata-se de um gesto lógico, porque pouco antes Madalena estava olhando para os anjos. A segunda vez, depois de Jesus ter pronunciado o seu nome: “Maria”, embora não tenha necessidade de mudar de posição, porque já está orientada para Jesus, que está falando com ela2. Como explicar essa incongruência? A interpretação de Agostinho, que considera as duas ocorrências do verbo “voltar-se” de forma diferente, é até hoje a mais provável. O primeiro “voltarse” da mulher é físico: Madalena muda sua posição. O segundo é espiritual: Madalena, ao encontrar-se com Jesus, passa de um afeto ainda muito terreno para um amor genuíno e purificado que lhe permite um verdadeiro ato de fé que a prepara para anunciar aos discípulos que viu o Senhor. “Antes, mudada a posição do corpo, pensou no que não era; agora, mudado o seu coração, conheceu o que era”, escreve o bispo de Hipona3. O segundo “voltar-se” in1. A. FEUILLET, L’apparition do Christ à Maria Madeleine (Jn 20,11-18). Comparaison avec l’apparition aux disciples de Emmaüs (Lc 24,13-35), Esprit et Vie 12-13 (1978) 193-204.209-223 (210). 2. Não tem sentido afirmar que na primeira vez Maria se voltou parcialmente e na segunda totalmente, ou que houve um movimento intermediário não indicado pelo evangelista, talvez na direção do túmulo, para depois dirigir-se novamente para Jesus. 3. Na língua latina: “Tunc conversa corpore quod non erat putavit, nunc autem corde conversa quod erat cognovit”. Cf. AGOSTINHO, Comentário ao Evangelho de São João 121,2 (cf. AGOSTINO, Commento al Vangelo di San Giovanni, Col. Nuova Biblioteca Agostiniana, 24, Roma, Città Nuova, 2 1985, 1573). 64

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

dica, então, a conversão da mulher, que a habilita a entender a realidade do evento pascal. Uma possível confirmação dessa interpretação simbólica do verbo se encontra em João 12,40, em que o mesmo termo “voltar-se” é usado em sentido espiritual. Muitas versões em português do quarto evangelho, traduzindo o segundo “voltar-se” por “converter-se”, resolvem o problema à luz da leitura agostiniana. O entusiasmo da mulher se une, assim, com sua capacidade de renovação interior, que faz que ela se torne a primeira testemunha de Jesus glorificado. João cria, pois, um retrato vibrante de Maria Madalena, que pela força do Ressuscitado sabe purificar seus sentimentos, tornando-se um personagem significativo da Igreja antiga. No quarto evangelho ela é a única figura feminina que recebe o benefício de uma aparição de Jesus4, tendo uma experiência semelhante à dos discípulos e à de Tomé, narradas nas perícopes seguintes. Por isso, com as outras mulheres que visitam o túmulo na manhã de Páscoa, pode ser considerada “mãe da fé”5.

1.2. Madalena, símbolo da Igreja É possível que o evangelista considere Madalena a representante da comunidade joanina, de acordo com a técnica joanina de fazer de um personagem particular o símbolo de um grupo maior. De fato, como Madalena, a comunidade cristã é chamada a procurar constantemente Jesus, que representa o objeto de sua fé e de sua esperança. A pergunta que Jesus faz à mulher quando lhe aparece: “A quem procuras?” (ze-teîn, 20,15), está em paralelismo com a palavra que Jesus dirige aos primeiros dois discípulos que, atraídos por sua pessoa, o seguem: “Que estais procurando?” (1,38)6. Eles interpelam Jesus com o termo “rabi”, exatamente como faz Maria Madalena (1,38; 20,16), e Jesus, olhando para os seus primeiros seguidores (1,37), “volta-se” (stréphein), de acordo com o comportamento da mulher na presença dos anjos e de Jesus (20,14.16). É bastante evidente que, lembrando o motivo da procura, tanto no começo do evangelho como no fim, o quarto evangelista cria uma espécie de moldura que dá realce ao tema, 4. A aparição é mencionada na conclusão do evangelho de Marcos, texto que depende provavelmente do quarto evangelista (Mc 16,9), e é lembrada em oblíquo em Mateus 28,9-10, em que Madalena e outra Maria se prostram perante Jesus ressuscitado, abraçando-lhe os pés. 5. G. GHIBERTI, Dall’incredulità alla fede. I racconti della resurrezione nel vangelo di Giovanni, Parole di Vita (1973) 137-146. 6. No quarto evangelho os adversários procuram Jesus para eliminá-lo (7,1.11.19.25; 8,37.40; 10,39; 11,8; 18,8) e as multidões para receber favores dele (6,24.26). 65

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

destacando que a tarefa básica do discípulo é buscar Jesus sem cansar; não somente na vida pública, mas em particular no evento pascal, até reconhecer nele o Ressuscitado. Também o choro de Madalena por causa da morte de Jesus está em relação com a aflição da Igreja, lembrada várias vezes no quarto evangelho: “Em verdade, em verdade vos digo: chorareis e vos lamentareis, mas o mundo se alegrará. Vós vos entristecereis, mas a vossa tristeza se transformará em alegria” (16,20). O choro da comunidade cristã é “tristeza” pela morte cruel de Jesus, mas também pelas perseguições que a Igreja da época do evangelista deve suportar por parte dos judeus, no final do século I. Nessa situação grave, o evangelista exorta a comunidade a ter esperança, anunciando-lhe que suas provações se mudarão em alegria, quando Jesus se manifestar: “Quando a mulher está para dar à luz, entristece-se porque a sua hora chegou; quando porém nasce a criança ela já não se lembra mais dos sofrimentos, pela alegria de um homem ter vindo ao mundo” (16,21). Como Maria Madalena, também a comunidade cristã precisa de conversão para aderir ao anúncio de vida que brota da cruz (Jo 20,9.25). Isso representa outro elemento que permite considerar Madalena como figura da Igreja que procura Jesus, ama, luta, sofre, na esperança da ressurreição7. Alguns padres da Igreja supuseram um contato literário entre a figura joanina de Madalena e a noiva do Cântico dos Cânticos, embora não haja elementos claros para estabelecer uma dependência direta entre os dois textos; além disso, o amor de Madalena por Jesus não é do mesmo tipo do que a noiva tem por seu querido. A procura caracteriza a noiva, separada de seu amado, assim como Madalena: “Sobre o meu leito, de noite, procurei aquele que o meu coração ama; procurei-o e não o achei!”. Essa procura se torna ação concreta: “Levantar-me-ei e percorrerei a cidade, pelas ruas e pelas praças procurarei aquele que o meu coração ama. Procurei-o e não o achei”. A constância é premiada porque o encontro com o amado acontece: “Encontraram-me os guardas que fazem a ronda da cidade: ‘Vistes acaso aquele que o meu coração ama?’. Mal passara por eles, encontrei aquele que o meu coração ama. Segurei-o e não mais o larguei até introduzi-lo em casa de minha mãe, nos aposentos daquela que me concebeu” (Ct 3,1-4). Pode-se acrescentar que tanto Madalena como a noiva do Cântico pensam que todos estão a par de seu drama; nunca mencionam o nome do amado que imaginam 7. Também em outros trechos dos escritos joaninos usa-se a figura feminina para falar da comunidade (Jo 16,20-21; 19,25-27; Ap 12,1-6). 66

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

ser conhecido por todos; uma vez reencontrado, nunca mais querem perdê-lo (Ct 1,7-8)8. É por isso que também a noiva do livro veterotestamentário pode ser considerada o símbolo da comunidade de Israel.

1.3. Madalena e as tarefas femininas na comunidade joanina Se Madalena é a representante da comunidade cristã, isso permite supor que na Igreja joanina havia ministérios exercidos por mulheres. Prova disso pode ser o fato de que Jesus faz de Maria Madalena a anunciadora aos discípulos de sua subida ao Pai: “Vai aos meus irmãos e dize-lhes: Subo para o meu Pai e vosso Pai”. Na frase, usa-se o verbo “ir” (poreúesthai), que nos evangelhos, de vez em quando, se encontra em um contexto missionário (cf. Mt 10,6.7; 28,19). Apresenta-se, assim, a mulher com uma tarefa missionária a desempenhar. Não se trata de um mandato com alcance universal, como o dos discípulos depois da Páscoa (Jo 20,21; cf. 17,18), mas de uma missão limitada aos membros do grupo ao redor de Jesus — missão que no quarto evangelho somente Madalena recebe de forma explícita por parte de Jesus. O detalhe leva a pensar que na comunidade joanina havia mulheres que desempenhavam o papel de testemunhas e anunciadoras do querigma. Essa tarefa é sugerida também pela figura da Samaritana, que narra aos seus conterrâneos o encontro com Jesus que mudou sua vida, embora faça isso sem o explícito mandato de Jesus. A presença na comunidade joanina de mulheres que exerciam ministérios eclesiais parece confirmada por Marta, que antes da ressurreição do irmão falecido confessa a identidade de Jesus, fazendo sua bela profissão de fé: “Creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que deve vir ao mundo” (11,27). Com toda a probabilidade ela é a representante das mulheres que lideravam uma Igreja doméstica na área de Éfeso, desempenhando uma função catequéticoespiritual, fortificando a fé da comunidade. Também a figura de Maria, que durante a ceia faz o gesto profético da unção dos pés de Jesus, anunciando sua sepultura (12,1-8), pode ser o símbolo das mulheres que desempenhavam serviços práticos na Igreja, para permitir aos apóstolos dedicar-se com mais fruto à pregação e à oração.

8. Cf. M. CAMBE, L’influence du Cantique des Cantiques sur le Nouveau Testament, Revue Thomiste 62 (1962) 5-25; A. FEUILLET, La recherche du Christ dans la Nouvelle Alliance, d’après la christologie de Jean 20,11-18, in L’homme devant Dieu. Mélanges H. de Lubac, éd. Jacques Guillet, Paris, Aubier, 1963, I, 93-112. 67

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No versículo 18 o autor lembra que Maria Madalena obedeceu à ordem de Jesus: “ela foi anunciar aos discípulos: ‘Vi o Senhor’, e as coisas que ele lhe disse”, usando o verbo “anunciar”, igualmente característico da pregação primitiva (Jo 4,25; 16,13.14.15)9. Fortalece-se, assim, a hipótese de que por meio da figura de Madalena João fale do papel da figura feminina em sua comunidade, embora essa dimensão apareça somente nas entrelinhas.

2. Aparição dos anjos e aparição de Jesus Os dois anjos vestidos de branco, mencionados na perícope da Madalena, carecem de uma função específica. Quem ajuda Madalena a entender o que se passou no evento pascal não são os anjos, mas Jesus que se lhe manifesta, o que não ocorre nas narrativas sinópticas.

2.1. Os anjos e o túmulo vazio Em João os mensageiros celestes não têm o papel de anunciar a ressurreição de Jesus. Não dizem nada; seu papel se esgota em consolar a mulher que chora e em indicar, por meio da sua posição, onde fora posto o corpo de Jesus no túmulo, estando “um à cabeceira e outro aos pés” dele (20,12). Poder-se-ia dizer que eles têm uma função simplesmente ornamental10. De acordo com o Antigo Testamento, em que Deus se revela por meio dos anjos, indicam que o Altíssimo está presente no evento da morte e da sepultura de Jesus, garantindo sua atuação providente que se manifesta também em situações dramáticas11. Como foi dito, provavelmente o motivo dos anjos, presente na tradição sinóptica, foi introduzido pelo autor quando o evangelho já estava parcialmente escrito, criando certa dissonância no relato. De fato, na narrativa o trabalho redacional do evangelista é bastante evidente, encontrando-se vários detalhes que se repetem. Alguns dos gestos de Madalena são parecidos com os dos dois discípulos ao sepulcro: ao chegar ao túmulo, a mulher “inclina-se” (v. 11),

9. L. DUPONT, CH. LASH, G. LEVESQUE, Recherches sur la structure de Jean 20, Biblica (1973) 482-498 (486). 10. A comparação é de P. BENOIT, Passion et résurrection du Seigneur, Paris, Cerf, 1966, 290. 11. Y. SIMOENS (Secondo Giovanni, op. cit., 800), desenvolvendo uma intuição de P. EVDOKIMOV (La teologia della bellezza. Il senso della bellezza e l’icone, Roma, Paoline, 1970, 371-372), pensa que há uma relação entre a menção aos anjos e o propiciatório, a tampa de ouro da arca da aliança com os dois querubins, que indica o lugar em que Deus entra em comunhão com seu povo e em que se realiza a salvação (Ex 25,21; 37,6). 68

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

como faz o discípulo amado (v. 5); ela “viu dois anjos” (v. 12), assim como o discípulo a quem Jesus amava “viu” e creu (v. 8). Da mesma forma, os anjos estão no lugar em que “estava deitado” o corpo de Jesus (ékeito, v. 12), assim como os linhos mortuários “estavam deitados” por terra (keímena, v. 6) quando foram vistos por Pedro. Também a repetição da pergunta “por que choras?”, dirigida à mulher pelos anjos e por Jesus (v. 13a.15), e do termo “voltar-se”, referido a Madalena, indicam o trabalho de redação do evangelista, que na cena procura juntar elementos que pertencem a várias camadas da tradição pascal (v. 14a.16). Justifica-se, assim, a introdução dos anjos que aparecem nas narrativas pascais dos sinópticos, embora não tenham um papel concreto a exercer12. Sem falar, realçam que o lugar no qual se encontrava o corpo de Jesus está vazio13, confirmando a experiência da mulher (v. 2) e deixando espaço para a manifestação do próprio Jesus a ela.

2.2. A aparição de Jesus A sobriedade caracteriza a cena da aparição de Jesus. Embora no primeiro momento a mulher identifique Jesus ressuscitado com o jardineiro, considerando-o uma pessoa deste mundo, o evangelista ajuda o leitor a tomar distância dessa perspectiva. Alguns pormenores do relato chamam a atenção.

2.2.1. Necessidade de tempo Madalena não reconhece logo Jesus. O detalhe representa um motivo teológico necessário para frisar que o Ressuscitado não se identifica simplesmente com o Jesus histórico, porque, enquanto glorificado, pertence ao mundo de Deus; portanto, seu reconhecimento não é a consequência de uma ingênua verificação ou de uma mera constatação física, mas é o resultado de um ato interior. Portanto, se o motivo do túmulo vazio frisa que o Ressuscitado é o mesmo Jesus de Nazaré, o atraso em seu reconhecimento aponta para a no-

12. P. BENOIT (Marie Madeleine, op. cit., 275) define o texto referente ao anjos como “pouco original e cheio de repetições”. Encontram-se dissonâncias e tensões também em outros trechos do quarto evangelho. Cf. A. CASALEGNO, Para que contemplem a minha glória (Jo 17,24). Introdução à teologia do evangelho de João, São Paulo, Loyola 2009, 89-91. 13. No texto lê-se que os anjos estavam “sentados no lugar onde (hópou) o corpo de Jesus fora colocado”. Alguns exegetas, fazendo uma consideração espiritual, supõem que por meio do advérbio “onde” o autor queira apontar para o lugar “onde” Jesus está efetivamente, isto é, junto ao Pai. Cf. João 7,27.28; 8,14; 9,29 e 8,14; 13,36; 14,5; 16,32. 69

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vidade de sua existência e para a dimensão escatológica em que Jesus entrou após sua vitória sobre a morte14. Qualificando Jesus como “o Senhor”, Maria Madalena mostra uma compreensão aprofundada da identidade de Jesus. Para chegar a esse objetivo, o tempo é indispensável15. O atraso no reconhecimento de Jesus tem também uma intenção apologética, indicando que Madalena — e com ela todos os discípulos — não foi crédula e vítima de sugestões da fantasia e de desejos frustrados. Sua escolha de fé amadureceu na calma e no discernimento. No caso de Madalena, é Jesus que, tomando a iniciativa, se faz reconhecer. Só depois de Jesus ter pronunciado o nome da mulher, Madalena chega a compreender que ele está vivo e a interpela. Em todos os relatos neotestamentários de aparição Jesus tem sempre um papel ativo em relação à fé dos discípulos, atuando de forma semelhante a Deus, que no Antigo Testamento é o primeiro ator da história da salvação, dependendo da sua exclusiva iniciativa a promessa, a libertação da escravidão e a Aliança. Para os discípulos de Jesus, como para o povo veterotestamentário, a fé é sempre o resultado de uma acolhida que reconhece, com lucidez, a obra salvadora de Deus.

2.2.2. Interioridade do apelo Madalena reconhece Jesus ressuscitado quando é chamada pelo nome. Na cultura semítica o nome indica o íntimo da pessoa, o que constitui sua característica específica. Jesus, dizendo “Maria”, atinge a dimensão mais profunda de Madalena, o que no Antigo Testamento constitui o “coração” da pessoa16. O modo de proceder de Jesus com Maria Madalena é o mesmo que ele usa a respeito de cada ser humano: de fato, Jesus, que é o Bom-pastor, “conhece suas ovelhas” e as “chama pelo nome” e elas reconhecem e escutam sua voz (10,3.5.14.27). O apelo interior que Madalena experimenta representa o elemento básico na gênese da fé. Com efeito, o processo de fé é sempre determinado por um misterioso chamado de Deus, dirigido a uma pessoa particular, ao qual é necessário responder. Não depende da simples opção do ser humano que, independentemente de qualquer influxo do alto, decide acreditar ou recusar 14. O atraso no reconhecimento de Jesus ressuscitado se encontra também em Lucas 24,37, em que os discípulos pensam ver um fantasma. Em Mateus, na aparição pascal, nem todos os discípulos chegam a crer que Jesus está vivo (Mt 28,17). 15. A dinâmica da fé dos discípulos é semelhante à de todo cristão que se aproxima do Ressuscitado. 16. J. A. G. LARRAYA, Nombre, in Enciclopedia de la Biblia, Barcelona, Garriga, 1965, V, 547-548. 70

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

seu assentimento a Deus que se lhe manifesta. Para entender isso é preciso considerar o discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum. Quando Jesus se apresenta como “o pão descido do céu”, a reação dos judeus é de descrença: “Este não é Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos”? (6,41-42). Nesta ocasião, Jesus explica como se verifica o processo de fé: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o atrair” (v. 44). Tornar-se seguidor de Jesus e crer nele como o enviado do Pai dependem da atração que o Pai exerce no coração humano. A fé é, pois, sempre uma resposta a um apelo, cuja primazia é divina (cf. 6,65). Madalena faz a experiência dessa atração e responde com amor ao chamado de Deus que opera nela por meio de Jesus (12,32)17. Não é, porém, uma pessoa privilegiada. Deus concede esse dom a todos, como se destaca em 6,45: “Está escrito nos profetas: todos serão ensinados por Deus”. Nem todos, porém, chegam à fé, por causa de seu coração endurecido que ama de amor preferencial as trevas e recusa a luz (3,19). Madalena tem um coração aberto e disponível. Por isso ao chamado de Jesus se segue sua resposta pessoal, consciente e livre, tornando-se, assim, a representante de cada cristão que se abre para a fé com generosidade.

2.2.3. Entrar em si Antes de descobrir que Jesus está presente e a chama, Madalena está chorando “fora, junto ao sepulcro” (v. 11). O advérbio “fora” (exô) indica sua posição física, mas também sua atitude interior, de acordo com outros textos joaninos nos quais o termo tem um sentido espiritual e não somente local18. Isso ocorre, por exemplo, em João 18,16, em que se afirma que no pátio do sumo sacerdote, durante o processo de Jesus, Pedro “ficou fora, junto à porta”. Como no caso de Pedro, a posição de Madalena indica certa distância espiritual em relação a Jesus. A aparição faz que a mulher passe do estado de desnorteamento em que se achava para uma situação em que consegue superar seus limites, compreendendo o evento que a atinge. Um autor da Idade Média interpreta bem a situação de Madalena: “Possuis dentro de ti o que procuras fora. Mostrar-me-ei fora, para reconduzir-te dentro de ti, a fim de que encontres em ti o que procuravas fora de ti”, destacando 17. A atração do Pai se realiza por meio da mediação histórica de Jesus, que no evento pascal chama a si todos os seres humanos. A mediação de Jesus é indicada em 12,32, em que Jesus exclama: “Quando eu for elevado da terra atrairei todos a mim”, onde se encontra o mesmo verbo “atrair”. 18. Cf. João 6,37; 12,31; 15,6; 18,16. 71

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que o lugar da fé é a interioridade. Da mesma forma Agostinho evidencia a importância de encontrar no íntimo o Senhor ressuscitado: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo. A verdade habita no coração do homem”19. E ainda: “Repara que agora estás fora. Começaste a amar a ti mesmo. […]. Talvez o dinheiro te fez rico, tu que amas o dinheiro? Começaste a amar o que estava fora de ti: perdeste a ti mesmo. Quando o amor do homem vai de si mesmo para as coisas que estão fora, ele começa a tornar-se vão com as coisas vãs, a desgastar suas forças, como o filho pródigo. Esvazia-se, desperdiça-se, torna-se necessitado, apascenta os porcos […]. Voltou para si mesmo. Se voltou para si, significa que ele saiu de si. Porque caiu por causa de si mesmo e saiu de si, deve entrar primeiro em si para voltar àquele do qual se afastou, caindo fora de si”20.

2.2.4. Encontro com o Senhor É interessante notar que no texto o processo que leva Madalena a reconhecer Jesus é progressivo. No início de seu itinerário ela procura Jesus como “o meu Senhor”, mostrando seu apego afetivo. Logo depois não sabe que Jesus está diante dela (v. 13b); em seguida pensa que se trata do jardineiro (v. 15b); só após um amadurecimento interior reconhece Jesus, exclamando: “Rabuni”, que significa “meu mestre”, uma expressão que ela usava na vida pública dele, na qual o adjetivo possessivo manifesta seu afeto ainda não totalmente purificado (v. 16)21. Quando, afinal, perante os discípulos proclama ter visto “o Senhor”, mostra ter superado definitivamente a dimensão autorreferencial que caracterizava sua fé, chegando a uma fé genuína. O termo “Senhor”, usado por Madalena, aponta para a transcendência de Jesus (20,25.28; 21,7), embora isso nem sempre aconteça no relato joanino porque na maioria das vezes a palavra representa um termo de cortesia, uma forma educada para dirigir-se a uma pessoa desconhecida. Isso acontece quando Madalena interpela o jardineiro, pensando ser ele o responsável pelo sepulcro vazio (20,15), ou quando os judeus da diáspora se dirigem a Filipe, cumprimentado-o dessa mesma forma (12,21)22. 19. AGOSTINHO, A verdadeira religião 39,72, São Paulo, Paulus, 2002, 98. 20. ID., Sermões 96,2 (cf. AGOSTINO, Discorsi, Col. Nuova Biblioteca Agostiniana 30/2, op. cit., 179). 21. Cf. João 1,38.49; 3,2.26; 4,31; 6,25; 9,2; 11,8. Também os discípulos das escolas rabínicas chamavam seus mestres de rabi ou mar. 22. Cf. João 4,11.15.19.49; 5,7; 6,34. Em alguns textos não está claro se o termo “Senhor” representa uma confissão de fé ou um simples título honorífico (6,68; 9,38; 11,2.21.27.32.34.39). Em 20,2.13 o termo não indica a transcendência de Jesus. 72

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

A narrativa mostra, então, que progressivamente a mulher reconhece Jesus como “Senhor”. A variação dos verbos de visão indica que Madalena passa de uma simples visão sensorial de Jesus que lhe aparece, sem que o reconheça (theo-reîn, v. 14), para uma visão que compreende e determina um novo relacionamento com ele (heôraka, v. 18). O amor proporciona a Madalena olhos novos para enxergar o que passa despercebido a uma pessoa de coração frio e árido, permitindo-lhe chegar ao “ver” da fé. Gregório, o Grande, nota que no texto se encontra a dinâmica do desejo espiritual que cresce e se fortalece, apesar das dificuldades: “Procurou, então, primeiro, e não encontrou; perseverou na busca e conseguiu encontrar. É indispensável que o desejo se prolongue e cresça e, crescendo, alcance o objetivo da busca. […] pois, como foi dito, os santos desejos crescem pela demora [da sua realização]. Mas, se diminuem pelo adiamento, isto é sinal de que não eram verdadeiros desejos”23.

3. A glória do Ressuscitado Nas palavras de Jesus à mulher: “Não me toques, pois (gár) ainda não subi para o meu Pai, mas (dé) vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus” (20,17), o quarto evangelista procura esclarecer ao leitor o sentido do evento da ressurreição de Jesus. A frase contém elementos teológicos e catequéticos que ajudam os fiéis a aprofundar sua fé24. A ordem de Jesus de não tocar nele encontra sua explicação na declaração da sua subida para o Pai. É, sem dúvida, esta segunda parte da frase a mais importante, como realça a repetição do verbo “subir” que aparece seja nas palavras de Jesus, seja nas que Madalena deve dirigir aos discípulos.

3.1. Não me toques Em várias edições do Novo Testamento em lugar da expressão “não me toques” (mê mou háptou) encontra-se a frase “não me segures”. A meu ver, essa tradução não está correta, porque em grego o verbo que significa “se-

23. GREGÓRIO, o Grande, Homilias sobre os evangelhos 25,2 (cf. SAN GREGORIO MAGNO, Omelie sui Vangeli, ed. G. Cremascoli, Roma, Città Nuova, 1994, 313-315). 24. Há uma relação entre a primeira e a segunda parte da expressão, indicada pela conjunção “pois” e pela partícula “mas”, que cria certo contraste e tem valor de transição. 73

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

gurar” é outro (krateîn, cf. Mt 28,9-10)25. Expressando-se com o verbo no imperativo presente, Jesus não proíbe somente à mulher tocar nele, mas a exorta a interromper sua ação, porque ele, enquanto ressuscitado, não pode mais ser tocado26. Maria Madalena quer continuar a relacionar-se com Jesus como durante a vida pública dele; Jesus ressuscitado, porém, vive na esfera divina. Todo contato com ele não pode mais ser físico, mas espiritual, e consiste basicamente na fé, como explica Santo Agostinho: “Que significa tocar senão crer? É com a fé que tocamos em Cristo; é melhor não tocar nele com a mão e tocar nele com a fé do que tocar nele com a mão e não tocar nele com a fé. Não foi grande coisa tocar em Cristo. Tocaram nele também os judeus, quando o prenderam […]. Se pensais que Cristo é simplesmente homem tocastes nele na terra. Se acreditastes que Cristo Senhor é igual ao Pai, então tocastes nele quando subiu ao céu”27. Tocar com a fé em Jesus ressuscitado é, pois, o prolongamento do verdadeiro tocar nele quando estava neste mundo. Porque Jesus está junto ao Pai, somente quem utiliza os sentidos espirituais e se deixa dirigir pelo Espírito Santo pode aproximar-se dele, passando por uma purificação radical de seu ser e de seu modo de pensar. Chama a atenção que Jesus proíbe a Madalena tocar nele e, oito dias depois, convida Tomé a colocar sua mão nas feridas que ele traz nas mãos e no lado. Há uma contradição entre as duas atitudes de Jesus? A oposição é aparente, porque os pormenores das narrativas têm somente um valor didático-teológico e seu sentido depende da mensagem que o evangelista quer transmitir ao leitor. Na perícope de Madalena, João quer frisar a identidade gloriosa de Jesus que é presente em sua comunidade “de outra forma”; na narrativa de Tomé, quer destacar que o Cristo transfigurado é o mesmo Jesus histórico.

3.2. A ascensão de Jesus Logo após ter dito a Madalena “Não me toques”, Jesus acrescenta: “Ainda não subi para o meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus”. Qual o sentido destas palavras que foram fonte de equívocos e de incompreensões?

25. O verbo tocar (háptesthai) aparece somente nesse trecho do quarto evangelho; encontra-se em 1 João 5,18 com sentido metafórico. 26. Há manuscritos em que se lê “toca-me”, tirando o “não”, provavelmente para eliminar o contraste com o relato de Tomé (20,27). 27. AGOSTINHO, Sermões 246,4 (cf. AGOSTINO, Discorsi, Col. Nuova Biblioteca Agostiniana 32/2, op. cit., 703). Cf. P. BENOIT, L’Ascension, in Exégèse et théologie, Paris, Cerf, 1961, I, 363-411. 74

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

3.2.1. Ressurreição e ascensão de Jesus Será que dizendo “Ainda não subi para o meu Pai” Jesus quer comunicar a Maria Madalena que ele se encontra numa situação intermediária entre a ressurreição e a ascensão, como parece sugerir a primeira parte da frase? Poder-se-ia pensar que após sua saída do túmulo Jesus está a caminho para o céu, isto é, que ele já ressuscitou mas ainda não ascendeu? Do ponto de vista teológico, essa perspectiva é um absurdo. Nada mais do que um “mito” e não uma verdade de fé, porque supõe que depois da ressurreição e antes de sua subida para o meu Pai Jesus tenha ficado em alguma parte do universo. Pensa-se, dessa forma, que ele está ainda relacionado com o nosso tempo e o nosso espaço28. Para uma correta interpretação do versículo deve ser privilegiada sua segunda parte, em que, de forma positiva, Jesus afirma: “Subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus”, realçando o seu efetivo ascender ao Pai. A subida de Jesus para o Pai é lembrada, então, num texto referente à sua ressurreição. Por meio desse pormenor, o evangelista quer realçar que ressurreição e ascensão constituem um único mistério salvífico, embora sob aspectos diferentes. Esta afirmação encontra sua explicação no fato de que ao longo do evangelho João usa pouco os verbos clássicos da ressurreição que se encontram nos sinópticos29 e prefere as expressões “ir para junto do Pai” (7,33; 13,3.33.36; 14,4; 16,5.10.17), “passar deste mundo para o Pai” (13,1), “subir ao céu” (3,13; 6,62), que apontam para a ascensão, mostrando dessa forma que por parte de Jesus ressurgir corresponde ao voltar para o Pai, realizando plenamente o plano da salvação. Portanto, na perspectiva do evangelista a ressurreição corresponde à ascensão, embora o autor, usando a terminologia da ressurreição, indique a vitória de Jesus sobre a morte (20,9) e, por meio da terminologia da ascensão, se refira à glorificação de Jesus junto ao Pai. Considerar a ressurreição e a ascensão como um único grande mistério pode gerar certa perplexidade, porque a liturgia da Igreja nos acostumou a pensar ressurreição e ascensão como dois momentos salvíficos diferentes e separados no tempo. Isso não é correto, porque a fé pascal é completa quando se confessa que Jesus ressuscitou, embora não se mencione a ascensão. No final do evangelho de Mateus nunca se faz menção à ascensão, mas somente 28. O verbo “ascender” tem valor simbólico e deve ser interpretado como glorificação de Jesus junto a Deus, não como movimento ascensional, de acordo com a visão cosmológica da Antiguidade, hoje superada, que pensava o céu acima da terra e o inferno debaixo dela. 29. Cf. João 2,22; 20,9; 21,14. 75

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

a Jesus ressuscitado, que em seu estado de glória sustenta seus discípulos até a consumação dos séculos, enviando-os em missão. Também Paulo frisa quase exclusivamente o evento da ressurreição de Jesus (1Ts 1,10; 4,16; 1Cor 4,5; 15,4), fazendo só em Efésios 4,8 uma alusão marginal à ascensão por meio da citação do Salmo 68,19. É Lucas que dá realce ao evento da ascensão de Jesus, apresentando em primeiro lugar a vitória de Jesus sobre a morte e em seguida sua entronização junto ao Pai, depois dos quarenta dias nos quais apareceu aos discípulos. Descrevendo esse segundo acontecimento, narra de forma sensível, com a imagem da levitação, a glorificação de Jesus, que é invisível, e a apresenta como se fosse um evento distinto e sucessivo da ressurreição30. Sua finalidade é destacar que o momento privilegiado das aparições acabou e que começa o tempo da missão. O terceiro evangelista sabe, porém, que os dois eventos, embora apresentando aspectos diferentes, se identificam. Com efeito, no primeiro sermão após o Pentecostes Pedro declara: “Foi a este Jesus que Deus ressuscitou (anéste-sen) e disso todos nós somos testemunhas. Exaltado (hypso-theís), pois, à destra de Deus, tendo recebido a promessa do Pai, a saber, o Espírito Santo, ele o derramou sobre nós, como estais vendo e ouvindo” (At 2,32-33). No texto, os eventos da ressurreição e da exaltação estão relacionados entre si; aliás, se correspondem, por causa da conjunção “pois” (oûn), que indica a equivalência entre os dois verbos. Lucas, então, sabe que ressurreição e ascensão constituem um único evento, embora no início dos Atos os distinga (At 1,3.9), obedecendo a um interesse pedagógico-catequético31. Prova disso é que em Lucas 24 o autor coloca os dois eventos no mesmo dia da Páscoa, sugerindo sua correspondência (24,13-49.50-51). De fato, vencendo a morte Jesus entra imediatamente na glória do Pai, sem necessidade de uma ulterior elevação ao céu32. Em João 20,17 o evangelista afirma, então, que no evento pascal ocorre a glorificação de Jesus junto ao Pai. Uma leitura que interpreta ao pé da letra os dois momentos apresentados no versículo: “ainda não subi para o 30. Nos textos apócrifos procura-se “materializar” a ascensão de Elias e de Henoc ao céu. Há textos profanos que apresentam a ascensão ao céu dos Dióscuros, de Hércules, de Belerofonte e de Rômulo. 31. Benoit nota que na literatura cristã apócrifa os textos que separam a ressurreição da ascensão são poucos. Os eventos estão separados em Ascensão de Isaías 9,16-19 e em alguns textos da gnose valentiniana e ofita em que a distância temporal chega a oito dias. Em Pistis Sophia 1-2 chega a doze anos. Cf. IRENEU, Contra as heresias I, 30.14. 32. O único trecho das cartas católicas que faz alusão à ascensão de Jesus é 1 Pedro 3,22, em que se lê: “tendo subido ao céu, está à direita de Deus”. A frase se refere à ressurreição. 76

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

meu Pai” e “subo para o meu Pai”, considera indevidamente o texto como uma crônica33, sem pensar que o Ressuscitado não é mais submetido às contingências humanas e que, logo após sua vitória sobre a morte, está junto ao Pai. Quando então aparece, aparece vindo de Deus. Mencionando na perícope ressurreição de Jesus e sua subida para o Pai, o interesse joanino é realçar a complexidade do evento pascal, evitando, porém, colocar em tempos diferentes os dois aspectos do único evento salvífico, o que traria o risco de uma visão lendário-mitológica dele34. A frase de João 20,17 é, pois, uma afirmação teológica e não histórica.

3.2.2. Perspectiva joanina e perspectiva lucana É útil realçar que entre a teologia joanina e a lucana não há incongruência nenhuma, mas somente uma diferença de perspectivas. O enfoque de João é cristológico: ele declara que na vitória sobre a morte Jesus é glorificado junto ao Pai. O Pai acolhe o Filho, aceitando seu sacrifício redentor, e o entroniza junto a si. Em Atos, Lucas apresenta o evento segundo uma perspectiva eclesiológica, destacando que a ascensão ocorre quarenta dias depois da Páscoa, isto é, depois de um tempo oportuno em que a Igreja se formou e se fortaleceu (At 1,6-11). Descrevendo a ascensão com a imagem da levitação, Lucas distingue, assim, o tempo em que Jesus viveu e se manifestou aos seus discípulos da época da comunidade cristã35. A levitação, portanto, é somente um elemento secundário, um meio literário corriqueiro na literatura antiga e de grande impacto visual, por meio do qual Lucas realça que as manifestações de Jesus acabaram e que doravante ele estará presente na comunidade de outra forma. Dar um valor excessivo à descrição da subida ao céu de Jesus, sem entender o sentido da linguagem espacial da narrativa, favoreceria uma visão errada do evento. A Jesus aconteceria o mesmo que na mitologia latina aconteceu a Rômulo, fundador da cidade de Roma, elevado para o céu, com a consequência de que a glorificação de Jesus, que se realiza de forma misteriosa e consiste na entrada no mundo da santidade de Deus, se tornaria um evento espetacular. 33. A expressão, de forma negativa, “ainda não subi para o meu Pai” se justifica por causa de seu relacionamento com a frase anterior, “não me toques”, indicado pela conjunção “pois” (gár). 34. A. FEUILLET, L’apparition, op. cit., 202. R. BROWN (Giovanni, op. cit., 1270-1279) fala de uma apresentação “plástica” dos eventos, de uma “dramatização” que ajuda o leitor a aprofundar sua fé. 35. Lucas obedece à lógica da “periodização”, que constitui uma das características de sua obra literária, apresentando em sucessão o tempo do Antigo Testamento (Lc 1–2), o tempo de João Batista (Lc 3,1-20), o tempo de Jesus (Lc 4,14–24,53), o tempo da Igreja (o livro dos Atos). 77

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

A narrativa da ascensão nos Atos não é, porém, um relato fictício, inventado pelo evangelista. Refere-se provavelmente à última aparição pós-pascal de Jesus aos discípulos. Para dizer que foi a última, o autor usa justamente o artifício da levitação36.

3.3. Páscoa e Aliança definitiva Nas palavras dirigidas a Madalena: “Subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus”, Jesus, por meio dos adjetivos possessivos “meu” e “vosso”, destaca que os cristãos são chamados a participar da intimidade que ele tem com Deus, reconhecido como Pai. Isso significa que os fiéis se tornam filhos adotivos de Deus no Filho que é o único a ter acesso direto ao Pai; participam, assim, da filiação divina pela mediação de Jesus. A expressão “meu Pai e vosso Pai, meus Deus e vosso Deus” apresenta um contato literário com as fórmulas veterotestamentárias da Aliança. Pensando na intervenção salvífica de Deus no final dos tempos, Jeremias escreve: “Esta é a aliança que concluirei com a casa de Israel depois daqueles dias, oráculo do Senhor. Na mente lhes imprimirei a minha Lei, também no coração lha inscreverei; eu serei seu Deus e eles serão o meu povo” (Jr 31,33; cf. Ez 36,28). Também em Levítico 26,11-12 encontra-se uma expressão semelhante: “Estabelecerei a minha morada no meio de vós e a minha alma não vos aborrecerá. Andarei entre vós, e serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo”. À luz desses textos, a expressão joanina pode ser considerada uma nova enunciação da fórmula da Aliança, embora formulada de modo muito sintético. Dessa maneira, João destaca que com a morte e a ressurreição de Jesus se realiza uma nova relação entre os seres humanos e Deus por meio do sacrifício pascal de Jesus. O Pai dá sua garantia de que ele está próximo de cada ser humano, estabelecendo com ele laços de amizade que o tornam verdadeiro filho (Jo 1,12), em vista da salvação definitiva. À luz da perspectiva da Aliança, encontra sua explicação a frase “meus irmãos” com a qual Jesus se dirige aos discípulos, que comparece somente nesse trecho do quarto evangelho. O adjetivo possessivo “meus” indica o afeto sincero que Jesus tem por seus seguidores, que ele chama também de 36. Alguns pormenores da narrativa de Atos 1,6-11 indicam que se trata de uma aparição pascal: o verbo “ver”, relativo a Jesus que ascende ao céu, se encontra nos relatos pascais; os dois homens vestidos de branco evocam os anjos da ressurreição (At 1,9; cf. Lc 24,4.6). Além disso, a “nuvem”, na qual Jesus entra não se refere a um fenômeno atmosférico; tem valor simbólico e aponta para o âmbito divino (Lc 9,34; cf. Ex 13,22; Nm 9,15). 78

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

“filhinhos”37 e de “amigos” (Jo 15,15). É interessante notar que é Jesus que qualifica os discípulos de “irmãos”, não eles que se dirigem a Jesus com esta palavra. A nova relação com Jesus é, portanto, exclusivo dom de graça, fruto da benevolência e do amor de Jesus para com “os seus” (13,1). A moda atual de chamar Jesus de irmão, considerando-o um “bom camarada”, não corresponde à revelação bíblica. Também em outros trechos do Novo Testamento Jesus interpela os discípulos com o termo “irmãos”; isso, porém, sempre depende de sua iniciativa (Mt 28,10; Rm 8,29; Hb 2,9-10).

4. Leituras simbólicas A narrativa de Madalena foi objeto de várias leituras simbólicas, em particular à luz do personagem do “jardineiro”, com quem Madalena pensa encontrar-se antes de reconhecer Jesus ressuscitado (20,15). A figura está em relação com o “jardim” em que no relato joanino Jesus foi crucificado e sepultado (kêpos, 19,41) e com o “jardim” do Getsêmani, em que ele enfrenta os adversários que procuram prendê-lo (18,1.26), embora esses dois jardins sejam diferentes entre si38. Muitos exegetas supõem que com esse termo o quarto evangelista queira fazer uma relação com o jardim do Éden, no qual se inicia a história da salvação (Gn 3,3). Dizem que no lugar no qual triunfou o pecado ocorre também a derrota do mal, por obra de Jesus salvador, de acordo com a frase paulina: “onde avultou o pecado, a graça superabundou” (Rm 5,20). Frédéric Manns nota que o tema do jardim é bastante comum na literatura hebraica apócrifa para indicar a situação escatológica dos eleitos39. De fato, o judaísmo, refletindo sobre Ezequiel 36,34-35: “Lavrar-se-á a terra deserta, em vez de estar desolada aos olhos de todos os que passam. Dir-se-á: Esta terra desolada ficou como o jardim do Éden; as cidades desertas, desoladas e em ruínas estão fortificadas e habitadas”, imagina que o paraíso será semelhante a um jardim, realizado por obra do Messias. Na literatura judaica, a imagem do jardim se relaciona também com a do paraíso-templo, referente à casa do Senhor em que se encontra a árvore da vida e em que morarão os justos40. À 37. Cf. 13,33; 1 João 2,1.12.28; 3,7.18; 4,4; 5,21. 38. Os sinópticos fazem referência à “propriedade rural” (chôríon) na qual Jesus se retira para rezar antes da paixão (Mt 26,36; Mc 14,32; cf. Jo 4,5). 39. F. MANNS, Le symbole do jardin dans le récit de la passion selon St Jean, in L’Évangile de Jean à la lumière du Judaïsme, Jerusalem, Franciscan Printing Press, 1991, 401-429. Cf. ID., En marge des récits de la Résurrection dans l’évangile de Jean: le verbe voir, Revue des Sciences Religeuses 57 (1983) 10-28. 40. Cf. 1 Henoc 25,4-5; Livro dos segredos de Henoc 8,4. 79

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

luz dessas referências, alguns autores pensam que João quer afirmar que com o evento pascal o ser humano é colocado no jardim escatológico do paraíso e beneficia-se da definitiva Aliança no sangue do Cordeiro. Há exegetas que presumem que na perícope de Maria Madalena haja uma relação com o jardim do Cântico dos Cânticos, no qual ocorre o diálogo amoroso entre a esposa e o esposo. No texto, então, poder-se-ia considerar Jesus como o esposo que se manifesta à sua esposa, representada por Madalena, expoente da humanidade. Outros estudiosos, citados por Manns, frisando a possível relação do texto com o relato da criação de Adão colocado no jardim, levantam a hipótese de que Jesus é comparado ao novo Adão que renova os seres humanos, sempre simbolizados por Maria Madalena. Esta opinião seria confirmada pelas relações existentes entre os capítulos finais do quarto evangelho e os do começo do Gênesis: no Cenáculo, Jesus, aparecendo aos discípulos, se manifesta “no meio” deles (20,19), pormenor que evoca a árvore da vida que está “no meio” do jardim (Gn 2,10). Jesus inclina a cabeça na hora da morte (19,30b), fazendo alusão ao sono de Adão, de cuja costela foi formada Eva, representada no relato joanino pela mãe de Jesus que está aos pés da cruz. Também a expressão que Jesus pronuncia na hora da morte: “está consumado” (tetélestai, 19,30a), pode apontar para o paraíso restaurado, porque na Septuaginta, na frase “Assim foram terminados o céu e a terra e todos os seus exércitos” (synetelésthe-san, Gn 2,1), que indica que Deus completou a sua obra, utiliza-se o mesmo verbo teleîn, porém com um prefixo. Além disso, o fato de que no jardim Jesus declara aos seus adversários “Eu sou”, que evoca sua dimensão transcendente (Jo 18,5.6.8), pode ter uma relação com a presença de Deus (Shekinah) que passeia “no jardim na hora de brisa”, de acordo com as especulações judaicas (Gn 3,8)41. Embora não possam ser provadas, essas interpretações, às vezes audaciosas, despertam interesse, estimulando a considerar a unidade dos dois Testamentos e a compreender como, no começo do cristianismo, se desenvolveu certa mística judaico-cristã. Há também autores que consideram de modo polêmico a figura do jardineiro na aparição a Madalena42. No relato, o evangelista polemizaria com as 41. O termo shekinah pertence à literatura rabínica e não se encontra na Bíblia. Indica a presença de Deus no meio do seu povo, a glória divina que se torna visível, a manifestação do Altíssimo que irradia luz e esplendor, embora sempre de forma velada. Manifesta-se na coluna de fogo no deserto e nas diferentes manifestações do Senhor ao seu povo; está presente, em particular, no Propiciatório, na parte mais sagrada do Templo. 42. Tertulliano (De spectaculis, 30,6; cf. Sources chrétiennes 332, 327) menciona a lenda segundo a qual o jardineiro teria levado o corpo de Jesus para evitar que os discípulos pisassem nas hortaliças 80

Capítulo 4 – Maria Madalena ao túmulo

seitas místicas do farisaísmo da época que especulavam sobre o lugar certo para ver a glória de Deus, afirmando que este se identificava com o estudo da Torah, que permite o acesso ao jardim do paraíso, no qual é possível ver Deus (cf. Sifré a Dt 11,22)43. O relato joanino, identificando o jardineiro com Jesus, destacaria que somente pela mediação deste o ser humano pode se aproximar de Deus (Jo 1,18), porque o esforço humano, embora iluminado pela Torah, não alcança seu objetivo. Somente por meio de Jesus é possível entrar no jardim celeste, simbolizado pelo jardim terrestre no qual Jesus é sepultado e ressuscita. Sua manifestação à mulher inaugura, então, o momento escatológico que encontra sua plenitude na união definitiva com ele (Jo 14,1).

de seu campo perto do túmulo. Aproveitando a ocasião, estes teriam proclamado a ressurreição de Jesus. Na polêmica anticristã, feita pelos judeus, às vezes o jardineiro é identificado com Judas. Cf. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 520. 43. E. URBACH, The Sages: Their Concepts and Beliefs, Jerusalem, Magnes Press/Hebrew University, 1975, 184-213. 81

Capítulo 5

Jesus aparece aos discípulos

A aparição aos discípulos constitui a narrativa básica de João 20, porque relata a aparição oficial às mais importantes testemunhas da fé. O enfoque é comunitário, à diferença das narrativas anteriores, nas quais somente personagens particulares chegam a acreditar em Jesus. Essas narrativas não são mencionadas no relato da aparição aos discípulos, embora Maria Madalena tenha sido incumbida de anunciar aos irmãos que viu o Senhor. Esse pormenor indica que o evangelista, compondo o capítulo, usa relatos desligados entre si, com a finalidade de mostrar o sentido teológico dos eventos pascais e não de reproduzir sua sucessão cronológica. As próprias indicações temporais que servem de ligação entre os episódios: “à tarde daquele dia, o primeiro da semana” ou “oito dias depois”, não passam de “evocações litúrgicas”, aludindo à celebração dominical que foi o âmbito em que as narrativas se formaram1. O lugar exato em Jerusalém em que ocorre a cena fica genérico. Trata-se de um espaço fechado, talvez a “sala superior” lucana (At 1,13). João não se preocupa em estabelecer o âmbito físico no qual aconteceu o evento; interessam-lhe mais as pessoas, frisando que Jesus apareceu lá onde se encontravam os discípulos, talvez no íntimo deles, sem com isso afirmar que se 1. X. LÉON-DUFOUR, Resurrezione di Gesù, op. cit., 317. No versículo 19 fala-se da “tarde do primeiro dia da semana”, isto é, do domingo. 83

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

tratou de uma experiência puramente psicológica2. No relato realizam-se as promessas feitas por Jesus durante a ceia: sua volta após uma breve ausência (Jo 14,19; 16,16), o dom do Espírito Santo (14,26; 15,26; 16,7-13), a oferta da paz (14,27) e da alegria (15,11; 16,24).

1. Os discípulos, destinatários da aparição Há vários elementos em comum na apresentação da aparição de Jesus aos discípulos em João e em Lucas. Nos dois textos Jesus se mostra vivo durante uma refeição (Lc 24,36-49), ele se manifesta de repente pondo-se “no meio” (Jo 20,19; Lc 24,36), deseja-lhes a paz, suscita a alegria (Jo 20,19.20; Lc 24,36.40), mostra o seu corpo (Jo 20,20; Lc 24,39), entrega ou promete aos discípulos o Espírito Santo (Jo 20,22; Lc 24,49), enviando-os a anunciar o perdão de Deus (Jo 20,23; Lc 24,47). Isso mostra que provavelmente as duas narrações representam redações diferentes de um mesmo relato originário que se formou no âmbito da Palestina, embora em João faltem vários elementos de teor teológico e apologético que se encontram no terceiro evangelho (24,39.40)3. Nos dois textos há, porém, uma diferença importante a respeito dos destinatários da aparição, que muitas vezes passa despercebida. João faz menção aos “discípulos” (20,19); a tradição sinóptica, aos “Onze” (Lc 24,33; Mc 16,14) ou aos “onze discípulos” (Mt 28,16). O termo “discípulos” não corresponde a “Onze”, que tem um âmbito de aplicação mais restrito, embora o quarto evangelista conheça a tradição referente a eles, mencionando os “Doze” no final do discurso de Cafarnaum, depois da multiplicação dos pães (6,67.70.71), e qualificando Tomé como “um dos Doze” (Jo 20,24)4. Dessa forma, João amplia o grupo dos destinatários da aparição. Os sintomas desse processo aparecem já em Lucas, que realça que os destinatários do anúncio do túmulo vazio feito pelas mulheres são “os Onze e aqueles que estavam com eles”, aos quais voltam também os discípulos de Emaús, depois de, no caminho, terem reconhecido Jesus ressuscitado (Lc 24,9.33). 2. D. MOLLAT, L’apparition du Ressuscité et le don de l’Esprit, in Études johanniques, Paris, Seuil, 1979, 148-164 (150). 3. Cf. A. FEUILLET, La communication de l’Esprit Saint aux Apôtres (Jn 20,19-23) et le ministère sacerdotal de la réconciliation des hommes avec Dieu, Esprit et Vie 82 (1972) 2-7. 4. O fato de que no momento da aparição de Jesus os discípulos são somente onze não cria problema, porque o autor não quer fazer um enunciado histórico (cf. 1Cor 15,5). O evangelista lembra membros particulares do grupo dos Doze: Pedro (1,42), Tomé, Filipe, Judas (14,5.8.22) e o próprio Judas Iscariotes (6,71; 18,2). 84

Capítulo 5 – Jesus aparece aos discípulos

A mudança encontra sua explicação no fato de que em seu evangelho João usa com muita frequência o termo “discípulo” (mathetês)5, não o reservando somente aos seguidores históricos de Jesus, mas a todos os que vão atrás dele, independentemente do tempo e do espaço em que vivem. Indicam isso as frases que têm um enfoque universal: “Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos” (8,31) ou “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (13,35)6. É plausível, portanto, que no texto com a expressão “os discípulos” João não se refira somente aos Onze, mas a todos os membros de sua comunidade que acreditam em Jesus. Dessa forma, não se limita a fazer memória do passado, mas procura estimular os cristãos do seu tempo a sentir-se parte do grupo que fez a experiência particular do Ressuscitado, atualizando sua mensagem. A modificação da terminologia em relação à tradição sinóptica pode ser intencional7.

2. A experiência do Ressuscitado 2.1. Superação do medo O tema das “portas trancadas” mostra a situação de desnorteamento e de falta de coragem dos discípulos. Vivem fechados por causa do “medo dos judeus” (20,19.26), que se apodera deles já durante a paixão (19,38). O texto aponta para a situação de conflito entre a comunidade cristã e o judaísmo, gerado pela confissão de fé na identidade divina de Jesus. Trata-se do conflito que no ano 62 d.C. determinou o assassinato de Tiago, o Menor, responsável pela Igreja de Jerusalém, no momento da troca do governador romano, e foi a causa da recusa dos cristãos na participação da guerra contra Roma, obrigados a fugir para Pela, uma cidade da Decápole, no território da Transjordânia, não querendo compartilhar o messianismo político de seus compatriotas. Falando de judeus, o autor não se refere ao povo hebreu em geral, nem a seus chefes que às vezes manifestam simpatia por Jesus (7,26; 12,42), mas a um grupo extremista, próximo dos zelotes, que domina a cena 5. No quarto evangelho, o termo “discípulo” é encontrado 78 vezes, enquanto só quatro vezes aparece o termo “Doze” para indicar os discípulos. Em Mateus, Marcos e Lucas–Atos o termo “discípulo” aparece respectivamente 73, 46 e 65 vezes. 6. Cf. João 1,37.38.40.43; 8,12; 10,4.5.27; 12,26. D. MOLLAT, Giovanni maestro spirituale, Roma, Borla, 1980, 84; F. MANNS, Les disciples de Jésus dans le quatrième évangile, in L’Évangile de Jean, op. cit., 89-91. 7. A qualificação “um dos Doze”, referida a Tomé, é genérica e não suficiente para afirmar que ao usar o termo “discípulos” em 20,19 o autor queira referir-se aos Doze. 85

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

política, querendo a libertação do jugo romano e a volta à pureza da religião dos pais8. Não somente os judeu-cristãos ficam com medo dessa facção judaica, mas também o povo, por causa da intransigência e da violência praticada por esse grupo (7,13; 9,22). A confusão interior e o medo dos membros da comunidade dependem também da experiência do fracasso da missão de Jesus, que terminou com a morte na cruz, pena reservada aos escravos e aos subversivos. Somente o Ressuscitado que se manifesta muda essa situação de desânimo.

2.2. A iniciativa de Jesus Como em cada relato de aparição, a perícope está centrada em Jesus. É ele que toma a iniciativa de se manifestar aos discípulos, fazendo que eles o reconheçam: deseja-lhes a paz, enche seus corações de alegria, entrega-lhes a missão. O verbo “veio” (êlthen), referido a Jesus (20,19) e repetido nos versículos 24.26, não é uma palavra corriqueira para indicar uma aparição. Equivale ao verbo “mostrar-se” (ôphthe-), que é o termo clássico nos relatos de aparição para indicar a experiência inesperada feita pelos discípulos (1Cor 15,3-5)9. Dessa forma exclui-se que eles foram vítimas de uma fantasia doentia ou de uma alucinação. Com toda a probabilidade, o verbo “vir” representa um tema teológico que evoca a dimensão litúrgica da cena, apontando para a “vinda” eucarística do Senhor10. A iniciativa do Ressuscitado e a centralidade de Jesus na cena são indicadas também pela frase “pôr-se no meio” (cf. 19,18), que destaca a fidelidade que Jesus manifesta aos seus discípulos, confirmando sua promessa de não os deixar órfãos (Jo 14,18). A expressão tem certa relação com 1 Samuel 3,10, em que se lê: “veio o Senhor e pôs-se ali”, isto é, perto de Samuel, ou com Sofonias 3,15, em que se frisa que Deus está “no meio” do seu povo, como poderoso salvador, prometendo a restauração de Israel11. É em sua função de libertador do ser humano que o Ressuscitado está no meio de seus discípulos, realizando as profecias veterotestamentárias.

8. M. NICOLACI, E diceva loro il Padre. I discorsi con i giudei a Gerusalemme in Giovanni 5-12, Roma, Città Nuova, 2007, 325-341. 9. G. GHIBERTI, Gv 20 nell’esegesi contemporanea, Studia Patavina 20 (1973) 293-337 (331). 10. D. MOLLAT, L’apparition, in Études, op. cit., 163-164. 11. R. FABRIS, Giovanni, Roma, Borla, 1992, 1036. 86

Capítulo 5 – Jesus aparece aos discípulos

2.3. O dom da paz A primeira palavra que Jesus pronuncia é: “A paz esteja convosco”, que não representa uma simples saudação humana, mas a realização do que Jesus disse em sua vida pública: “Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim” (16,33a), “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou” (14,27). Trata-se da paz que vem de Jesus, que traz seu selo, fruto de sua benevolência e de sua misericórdia, como indica o adjetivo possessivo que caracteriza também outras frases colocadas na boca de Jesus: “a minha hora” (2,4), “o meu mandamento” (15,12), “a minha alegria” (17,13), “o meu Reino” (18,36), destacando que a realização dessas realidades se torna possível pela força que Jesus oferece. A paz desejada depende, então, da ação de Jesus operante na vida de seus seguidores. Especificando que não se pode confundir a paz proporcionada por Jesus com a paz que “o mundo dá” (14,27), o autor aponta para a qualidade nova dessa paz e para o modo diferente com o qual ela é dada. Com efeito, a paz de Jesus representa a plenitude dos bens messiânicos, como indica o termo hebraico sha-lôm12. Além disso, é fruto do sacrifício da cruz, do qual brotam todos os dons escatológicos. Não é, pois, a consequência de imposições ou de esforços simplesmente humanos. Nota-se que Jesus oferece a paz aos discípulos só depois de ter prometido que o Pai e o Filho virão estabelecer sua morada nos crentes: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada” (14,23), mostrando que essa paz depende da união do fiel com Deus e da renovação operada pelo Espírito Santo. Os primeiros a beneficiar-se dessa paz são os discípulos, que na hora da aparição de Jesus passam do medo à coragem. Esse dom de Jesus, na existência humana, pode ser experimentado só parcialmente e de forma incompleta, na espera do momento escatológico em que a paz reinará definitivamente na criação redimida.

2.4. O Ressuscitado e Jesus de Nazaré Mencionando as “portas trancadas”, o evangelista não quer afirmar que Jesus passou fisicamente pelos muros da casa, superando o obstáculo das paredes de pedra do edifício, porque os autores sagrados não dizem nada a respeito do “como” Jesus se manifestou repentinamente aos discípulos. O 12. Cf. Gênesis 43,23; Juízes 6,23; 19,20, Isaías 45,4-7; 9,5; 53,5. 87

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

pormenor aponta mais para a novidade do corpo de Jesus e para sua diferença a respeito das condições que caracterizam cada ser que vive neste mundo. Dessa forma, por meio do motivo das portas trancadas, o autor faz referência à identidade transfigurada de Jesus, que lhe permite tornar-se presente em qualquer circunstância da história, destacando sua descontinuidade a respeito da condição terrena. Embora diferente, o evangelista, com a repetição da conjunção “e” antes de cada termo, destaca que Jesus “mostra” aos discípulos “e as mãos e o lado”, fazendo compreender que ele é sempre o mesmo e que sua ressurreição não pode ser desligada de sua crucificação13. O verbo “mostrar” (deiknýnai) aponta para a revelação que Jesus oferece a seus discípulos, de acordo com o sentido do verbo no quarto evangelho14, excluindo que se trate de uma exibição física. As mãos de Jesus guardam as marcas dos pregos, revelando a crueldade do suplício ao qual foi submetido; a ferida provocada pela lança representa um ato arbitrário, feito quando Jesus já estava morto, destacando que sua morte foi verdadeira e se tornou a fonte dos dons escatológicos, simbolizados pelo sangue e pela água que brotam do lado transpassado. O Ressuscitado é, pois, o mesmo que enfrentou o martírio da cruz e venceu o poder do mal.

2.5. A alegria A cena culmina com a exultação dos discípulos “por verem o Senhor”. Reconhecendo em Jesus de Nazaré “o Senhor” (tòn Kýrion), alegraram-se. Realiza-se a promessa de Jesus antes da paixão: “vossa tristeza se converterá em alegria” (16,20). O termo “alegria” não indica um sentimento superficial de regozijo ou de alívio, segundo os parâmetros deste mundo, mas é sinônimo de júbilo interior, que enriquece mente e coração. Trata-se da alegria que Jesus oferece aos que creem nele (“minha alegria em vós”), que depende da comunhão de vida com ele (15,11). É, portanto, de uma realidade estável e beatificadora que atinge o profundo do ser e que ninguém pode tirar (16,22). Jesus deseja para os discípulos a “plenitude” da alegria (17,13; 15,11), que começa a realizar-se com o evento da ressurreição e encontra sua perfeição na vida escatológica15.

13. X. LÉON-DUFOUR, Resurrezione di Gesù, op. cit., 319. 14. O verbo é usado com o sentido de “revelação” em João 2,18; 5,20; 10,32; 14,8.9. 15. O anúncio da alegria se encontra nas profecias veterotestamentárias (Is 9,3; 35,10; 51,11; 61,7). Cf. G. FERRARO, La gioia di Cristo nel quarto Vangelo, nelle lettere giovannee e nell’Apocalisse, Roma, Libreria Editrice Vaticana, 2000. 88

Capítulo 5 – Jesus aparece aos discípulos

A paz e a alegria mencionadas no relato realçam, assim, que com a morte e a ressurreição de Jesus se estabeleceu no universo uma nova harmonia, tornando possível a reconciliação dos seres humanos entre si e com Deus (Cl 1,15-20).

3. As palavras de Jesus Na aparição privilegia-se a dimensão auditiva e destacam-se três palavras que Jesus dirige aos seus discípulos. Referem-se ao mandato missionário, ao dom do Espírito Santo, à tarefa de reconciliação dos seres humanos: três elementos que devem ser compreendidos conjuntamente. Jesus pronuncia essas palavras depois de ter desejado aos discípulos, pela segunda vez, a paz, uma repetição que ajuda a distinguir a experiência do reconhecimento do Ressuscitado do momento do mandato, dando a este um realce particular.

3.1. O mandato missionário Com uma palavra simples e essencial Jesus entrega o mandato missionário aos discípulos: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21), sem indicar quem são seus destinatários, nem em que consiste a missão. As lacunas podem ser preenchidas à luz de todo o evangelho, em particular do texto de João 17,18-19, em que se destaca que a missão deve ser dirigida ao “mundo” (17,18), isto é, a todos os seres humanos, independentemente de sua cultura, sua língua ou sua nação, todos destinados a ser salvos por Jesus Cristo (3,16). De fato, a finalidade da missão é que todos conheçam a Deus, único e verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviou (17,3), tornando-se verdadeiros filhos de Deus por meio da fé em Jesus (1,12) e participando da vida nova (10,10; 17,3) que brota da ressurreição. A sobriedade da redação joanina se distingue dos textos paralelos e mais desenvolvidos dos sinópticos, em que Jesus, apresentado como o Senhor todo-poderoso, exorta seus discípulos a ensinar todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28,19), ou a proclamar a conversão para a remissão dos pecados a todos os seres humanos, na força do Espírito Santo (Lc 24,47). Apesar de sua brevidade, o texto joanino contém em si uma novidade importante em relação à tradição sinóptica, porque é o único que indica a fonte da qual procede toda missão, a saber, o Pai, que para realizar seu projeto redentor envia Jesus. Realça-se dessa forma a continuidade entre a missão que Jesus recebe do Pai e a missão da Igreja. Os discípulos não desempenham, então, uma tarefa simplesmente humana, 89

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mas perpetuam a obra missionária de Jesus, enviado pelo Pai. João não fala da missão histórica dos discípulos durante a vida pública de Jesus, mas fixa sua atenção na missão pós-pascal da Igreja, enraizando-a no projeto eterno de salvação do Pai, destacando que ela leva ao cumprimento o que o Pai realizou por meio de Jesus16.

3.1.1. A expressão “como… também” A estreita relação entre o mandato dos discípulos e o de Jesus é evidenciada por meio da expressão “como (kathôs) o Pai me enviou, também (kai) eu vos envio”. Para entender o sentido, é preciso lembrar que no quarto evangelho se encontram várias expressões comparativas nas quais aparece o advérbio “como”17, mas raras são as expressões comparativas semelhantes à de 20,21, que faltam por completo nos sinópticos. Nessas expressões o objeto da primeira frase se torna o sujeito da segunda com a repetição do mesmo verbo, como acontece nas expressões: “como o Pai me amou, também eu vos amei” (15,9), “como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (17,18), juntamente com outra que apresenta uma forma um pouco mais complexa: “como o Pai, que tem a vida, me enviou e eu vivo pelo Pai, também aquele que me come viverá por mim” (6,57). Nessas frases há sempre uma relação entre o Pai, Jesus e os discípulos. O amor eterno com que o Pai ama o Filho, a missão que lhe é entregue e a vida que lhe é proporcionada são transmitidos por ele aos fiéis. O paralelismo indicado pela expressão “como… também” não se refere somente a um exemplo que deve ser imitado, não representa só uma analogia externa; por meio dele realça-se a participação íntima e ativa que deve existir entre os personagens mencionados na frase. Como o discípulo pode amar unicamente se sustentado pela força que procede do Pai e de Jesus, assim sua obra missionária exige o sustento que vem do alto; torna-se possível somente quando animada pela força que o Pai proporciona a Jesus e que ele transmite aos discípulos, a fim de que também a missão deles produza fruto18. 16. O horizonte da perspectiva joanina referente à missão é teocêntrico. 17. O termo, que ocorre 31 vezes, pode indicar uma simples comparação: “como disse o profeta” (1,23), “como os judeus costumam sepultar” (19,40); é usado em frases com dois termos de comparação referentes à mesma ação: “como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do homem” (3,14), nas quais kathôs é seguido por houtôs (cf. 5,21.26; 12,50; 14,31; 15,4). 18. O. DE DINECHIN, Kathôs: la similitude dans l’évangile selon Saint Jean, Recherches de Science Religieuse 58 (1970) 195-236. 90

Capítulo 5 – Jesus aparece aos discípulos

Trata-se da missão de todos os cristãos (não somente dos responsáveis pela Igreja), que, em modalidades diferentes, está estritamente relacionada com a vocação batismal. À luz dessa perspectiva compreende-se a palavra de Jesus: “Quem crê em mim fará as obras que faço e fará até maiores que elas, porque vou para o Pai” (14,2). Essas obras extraordinárias, relacionadas com a missão, não dependem das capacidades humanas dos discípulos, mas de Jesus, que, enquanto glorificado, continua ativo no trabalho apostólico da comunidade, manifestando o poder do evento pascal19. Vale destacar que a missão deve começar pela maneira de ser da Igreja e por seu modo de apresentar-se ao mundo. Com efeito, o “permanecer” dos fiéis em Cristo e seu amor recíproco constituem a melhor demonstração da verdade da fé, atraindo novos discípulos (17,23).

3.1.2. A relação entre 20,21 e 17,18 A respeito da missão, o texto de João 17,18-19, que tem certo paralelismo com 20,21 e faz parte da oração de Jesus antes da paixão, acrescenta alguns pormenores interessantes. Jesus pede ao Pai: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. Como tu me enviaste ao mundo também eu os enviei ao mundo. E por eles a mim mesmo me santifico para que também eles sejam santificados na verdade”. Nestes versículos chama a atenção a tríplice repetição do termo “santificar” (hagiázein) que constitui a moldura do texto. No Antigo Testamento, o verbo indica a consagração especial que uma pessoa recebe em vista de uma tarefa a desempenhar, pela qual é separada dos outros (Ex 28,41; Sr 33,12; 45,4; Jr 1,5)20. Em João a expressão “por eles a mim mesmo me santifico” (hypér com o genitivo) se refere a Jesus, que, de forma cruenta, se oferece em sacrifício para a redenção da humanidade (Es 13,2; Dt 15,19), agindo por sua livre iniciativa, estimulado pelo amor (Jo 13,1)21. No quarto evangelho, santificação consiste, pois, na entrega generosa até o limite das forças para o bem dos outros, não em uma simples separação física para cumprir a missão recebida.

19. F. MANNS, Jean 20,19-23. Lectures exégétiques et traditions targumiques, in L’Évangile de Jean, op. cit., 449-468 (460). 20. O verbo pode ser utilizado para uma realidade profana que é separada para uma finalidade ritual (Ex 29,27.37.44); a “sagração” ocorre por contato com outra realidade já sagrada (Mt 23,17.19) ou por meio da palavra de Deus (1Tm 4,5). 21. Cf. João 10,11; 11,51; 15,13; 1 Coríntios 15,3b. 91

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Consequência disso é que para realizar o mandato apostólico também os discípulos devem ser santificados. No texto especifica-se que isso ocorre por meio da “verdade” (Jo 17,17.19b)22. O termo aponta para a revelação de Jesus, ou melhor, para sua própria pessoa, que é “via, verdade e vida” (14,6) e atua no coração dos discípulos, transformando-os. Isso mostra que, à medida que os batizados vivem sua relação com Jesus e interiorizam o evangelho, participam da santificação na verdade que é fruto da oferenda sacrifical de Jesus e da ação do Espírito Santo, qualificado de “Espírito da verdade” (14,17; 15,26). A obra missionária depende, assim, em primeiro lugar da renovação profunda e radical de seus membros. Essa renovação exige também uma configuração a Jesus crucificado, com um desejo de fazer de si mesmo uma oferenda completa, uma oblação sacrifical para a realização do Reino. Somente com esses pressupostos colabora-se, de verdade, para a realização da obra de Jesus no mundo.

3.2. O dom do Espírito Santo João relaciona estreitamente o mandato missionário com o dom do Espírito Santo que logo se segue. Esse é transmitido pelo sopro de Jesus e pela palavra que ele pronuncia que explicita o sentido do gesto: “Soprou sobre eles e lhes disse: Recebei o Espírito Santo”. A ligação entre os dois momentos realça que a missão pode começar somente pela força do sopro renovador23. O verbo “soprar” (emphysân) em absoluto e sem complementos aparece só nesse trecho do Novo Testamento, porque para indicar a entrega do Espírito Santo o quarto evangelista usa somente os verbos “enviar” (15,26) ou “dar” (14,16). O termo “soprar” faz referência ao sopro criador de Deus (enephýse-sen) que plasma o ser humano da poeira do chão, infundindo-lhe o espírito de vida (Gn 2,7). Também em outros trechos do Antigo Testamento o verbo conota a ação criadora de Deus. Trata-se do sopro divino que dá ao homem o espírito vital e uma alma ativa (emphysêsanta, Sb 15,11), que faz que os ossos ressequidos recobrem a vida (emphýse-son, Ez 37,9), que preserva da morte e reconduz à vida (1Rs 17,21). O evangelista, usando o mesmo verbo, destaca que Jesus, por meio do Espírito, realiza uma nova criação, proporcionando ao ser humano uma vida qualitativamente nova. À criação antiga segue-se a nova criação com a vitória definitiva de Jesus sobre o poder das trevas (Jo 1,4). 22. Cf. Juízes 13,7; 16,17; Salmos 106,16. 23. A ligação é estabelecida pela expressão “e lhes disse”. Cf. João 7,9; 9,6; 18,1.38; 20,14.20; 21,19. 92

Capítulo 5 – Jesus aparece aos discípulos

Sabe-se que o autor faz menção à entrega do Espírito (pneûma) também em João 19,30, por ocasião da morte de Jesus. A expressão “entregou o espírito” é ambígua e não se encontra nos sinópticos. À luz do contexto indica o morrer, o emitir o último suspiro; levando, porém, em conta o simbolismo joanino, pode apontar também para o dom do Espírito Santo, feito à comunidade recém-formada, representada pela mãe de Jesus e pelo discípulo amado (19,25-27), antecipando assim o que é narrado em João 20,22. De fato, o verbo “entregar” é mais apto para indicar a transmissão de um dom do que a realidade da morte. Essa interpretação, aceita pela maioria dos exegetas, destaca que o Espírito, dado por Jesus ressuscitado, é fruto do sacrifício da cruz.

3.2.1. A realização da promessa de Jesus No quarto evangelho o dom do Espírito, feito aos discípulos na Páscoa, representa a realização da promessa que Jesus fez aos discípulos no último dia da festa das Tendas, anunciando que rios de água viva jorrarão de seu seio, apontando para o evento pascal (7,38-39). Jesus volta a prometer o Espírito no sermão depois da ceia em quatro trechos bem conhecidos24, relacionados com sua partida. Os verbos, no futuro, preparam para o momento da chegada do Espírito, mantendo viva a espera de sua vinda, que se verifica quando Jesus ressuscitado derrama o Espírito sobre os discípulos reunidos. Chama a atenção o fato de que em João o Espírito é entregue no dia da Páscoa e não no de Pentecostes, como realça o livro dos Atos dos Apóstolos. No passado, procurando resolver a discrepância, os autores supuseram que em João 20,22 o evangelista pensasse somente em uma antecipação do dom do Espírito que seria feito por Jesus no dia de Pentecostes, levando em conta que, à diferença dos trechos dos discursos depois da ceia, na frase “Recebei (o) Espírito Santo” falta o artigo. Notavam também que nos discursos depois da ceia a tarefa do Espírito é ser o mestre interior dos discípulos ou o defensor de Jesus na diatribe com o judaísmo incrédulo, enquanto em 20,22 o dom do Espírito está relacionado com a missão da Igreja25. Na opinião dos exegetas contemporâneos, essas diferenças são insignificantes. A falta de artigo existe também na promessa do Espírito feita por Jesus na festa das Tendas (7,39), e as diferentes funções do Espírito são per24. Cf. João 14,15-17.25-26; 15,26-27; 16,7-13. 25. Cf. C. L. BLOMBERG, The Historical Reliability of the Gospels, Leicester, Inter-Varsity Press, 1987, 166-168. 93

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

feitamente integráveis entre si. À luz da teologia do Espírito desenvolvida no quarto evangelho, seria um absurdo que o autor pensasse somente em uma antecipação do dom do Espírito, sem falar de sua definitiva efusão — aliás, nenhum pormenor do texto aponta para essa possibilidade. Levanta-se a questão: o relato joanino está em contradição com o lucano?

3.2.2. A efusão do Espírito e o Pentecostes É verdade que, na aparição pascal de Jesus, João menciona a efusão do Espírito sobre os discípulos, enquanto Lucas fala somente da “promessa” do Espírito (Lc 24,49), descrevendo seu advento em Atos 2,1-13. Ambos os evangelistas, porém, colocam a efusão do Espírito depois da ascensão de Jesus ao Pai e realçam que Jesus é o doador desse dom (Jo 20,17; At 2,33); da mesma forma, relacionam o dom do Espírito Santo com o nascimento da Igreja (Jo 19,25-27; At 2,1-13)26. Afirmando que o Espírito é entregue à comunidade no dia de Pentecostes, Lucas se inspira na narrativa do dom da Lei feito a Israel no Sinai. Dizendo que o evento ocorre cinquenta dias depois da Páscoa, faz referência à festa da ceifa da messe (Dt 16,9; 23,14.16) e à celebração da renovação da Aliança27, realçando dessa forma que à antiga aliança, baseada na Lei, se segue a Nova, alicerçada no Espírito. Além disso, Lucas apresenta o evento do ponto de vista eclesiológico, descrevendo uma das primeiras manifestações carismáticas que aconteceram na Igreja de Jerusalém, cuja lembrança ficou na memória dos fiéis, impulsionando-os à missão. A perspectiva de João é, ao contrário, cristológica. No texto, o autor considera o Espírito como o fruto do sacrifício de Jesus, aceito pelo Pai. Não se interessa, pois, pela experiência pneumática particular feita pela comunidade. Por isso João coloca a efusão do Espírito Santo no dia de Páscoa. 26. João Crisóstomo pensa que em João o Espírito é dado aos discípulos somente para o perdão dos pecados, na espera do dom de Pentecostes; Teodoro de Mopsuéstia sustenta, erroneamente, que em João o dom do Espírito foi feito aos apóstolos só “de forma simbólica”. Tomás de Aquino distingue o Espírito que desce sobre os discípulos em consequência do sopro de Jesus e o Espírito entregue com a manifestação das línguas de fogo (Super Evangelium S. Joannis Lectura 20, lectio 4,5). Destacam a convergência entre o relato joanino e o lucano: M.-J. LAGRANGE, Évangile selon Saint Jean, Paris, Gabalda, 1925, 514-515; A. FEUILLET, La communication, op. cit., 6; J. KREMER, Pfingstbericht und Pfingstgeschehen. Eine exegetische Untersuchung zu Apg 2,1-13, Stuttgart, KBW Verlag, 1973, 224-228; D. MOLLAT, L’apparition, in Études, op. cit., 161-162; I. DE LA POTTERIE, Genesi della fede pasquale, op. cit., 204-205; F. MANNS, Jean 20,19-23, in L’Évangile de Jean, op. cit., 449-454.462, e muitos outros exegetas. 27. Cf. 2 Crônicas 15,10-13; Livro dos Jubileus 6,20. 94

Capítulo 5 – Jesus aparece aos discípulos

Mostrando-se verdadeiro teólogo, frisa, assim, a unidade do momento salvador, evidenciando a estreita relação entre o fato pascal e o evento de Pentecostes, sem narrar os acontecimentos em momentos sucessivos, como faz Lucas, e também sem identificá-los. Os exegetas notam que no cristianismo primitivo era prevalente a perspectiva joanina e que o relato lucano de Pentecostes “não devia ter valor de norma, mas de exceção”, limitando-se a descrever uma manifestação particular do Espírito, sem se preocupar com a fonte do mesmo28.

3.3. O perdão dos pecados As palavras de Jesus terminam com a exortação: “Àqueles a quem perdoardes (aphête) os pecados lhes são perdoados (aphéo-ntai); e àqueles a quem os retiverdes (kratête) lhes são retidos (kekráte-ntai)”. A ordem do perdão dos pecados se segue à entrega do Espírito Santo, mostrando que a tarefa de perdoar os pecados está ligada ao dom do Espírito, embora falte uma conexão literária específica entre os dois momentos (cf. Lc 24,47.49). A missão torna-se, então, possível pelo envio do Espírito e sua finalidade consiste na reconciliação da humanidade consigo mesma e com Deus, de acordo com a intenção do Pai que envia seu Filho ao mundo para remir os pecados (Jo 1,29).

3.3.1. Relações entre João 20,23 e Mateus 16,19; 18,18 Em João, a ordem de perdoar ou de reter os pecados apresenta uma grande semelhança com a palavra dirigida a Pedro em Mateus 16,19: “o que (hó) ligares (dêse-s) na terra será ligado (éstai dedeménon) nos céus e o que (hó) desligares (lýse-s) na terra será desligado (éstai lelyménon) no céus”, e também com as palavras semelhantes, proferidas à comunidade mateana no âmbito da correção fraterna: “tudo quanto (hósa) ligardes (dêse-te) na terra será ligado (éstai dedeména) nos céus e tudo quanto (hósa) desligardes (lýse-te) na terra será desligado (éstai lelyména) nos céus” (Mt 18,18). Três textos, então, muito próximos, pertencentes a evangelhos diferentes, nos quais Jesus entrega à sua Igreja um poder particular para o bem de todo o corpo dos fiéis. Apesar de serem frases similares, há diferenças bastante evidentes entre elas. A mais importante é que João, referindo-se ao ministério de toda a Igreja e não somente ao de Pedro, coloca em primeiro lugar o gesto de perdoar e em segunda posição o de reter o pecado, de acordo com sua teologia que frisa 28. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 536. 95

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

o amor de Deus que salva (Jo 3,16-17; 12,47b), enquanto Mateus antecipa o ato de ligar e pospõe o de desligar. De forma mais específica, João fala de pecado, ao contrário de Mateus, que é mais genérico, limitando-se a falar de “o que ligares/desligares”, sem mencionar explicitamente o objeto ao qual o gesto se refere. Além disso, a fórmula joanina relativa à ação de perdoar os pecados ou de retê-los, que se encontra também na tradição cristã primitiva29, representa um anúncio de salvação, feito em um contexto pastoral, ao passo que o binômio mateano “ligar/desligar” é mais jurídico30 e aponta para uma decisão oficial referente à proibição ou à liceidade de um comportamento31, indicando também uma medida disciplinar de exclusão da comunidade de um membro ou de sua admissão32. Na frase em pauta, a semelhança dos binômios “perdoar/reter” ou “ligar/ desligar”, apesar da mudança dos contextos, faz supor que se trate da mesma palavra de Jesus, da qual não se pode mais reconstruir a situação histórica originária, que cada evangelista redigiu de forma diferente, à luz dos problemas de sua comunidade. Provavelmente a fórmula joanina é uma interpretação, feita no âmbito cultural grego, da expressão aramaica de Mateus, que é mais antiga. Destacando o dom do perdão, João mostra que em sua comunidade havia uma grande necessidade de libertação do pecado, como realça desde o começo do evangelho, apresentando Jesus como “o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”33. Esse anseio se realiza plenamente, porque no evento pascal os pecados são definitivamente perdoados e o ato de absolvição, se aceito com as devidas disposições, é completo e para sempre34, porque transforma radi29. Cf. Lucas 5,20; 7,47b; 24,47, onde se encontra o verbo “perdoar” (aphiénai). No Novo Testamento, o verbo “reter” (krateîn) para indicar a não remissão dos pecados é usado somente neste versículo de João. A fórmula joanina, referida à Igreja, é mais próxima da de Mateus 18,18 do que aquela de Mateus 16,19, referida a Pedro. 30. O binômio corresponde aos dois verbos hebraicos ’asar-hittir. Cf. H. STRACK, P. BILLERBECK, Das Evangelium nach Matthäus. Erläutert aus Talmud und Midrasch, München, C.H. Becksche Verlagsbuchhandlung, 1922, 738-741; A. VÖGTLE, Das Evangelium und das Evangelien. Beiträge zur Evangelienforschung, Düsseldorf, Patmos, 1971, 246-252. 31. Cf. Mateus 23,4, em que se lamenta que os escribas e os fariseus “amarram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, fechando assim o reino dos céus aos homens” (23,13). F. BÜCHSEL, déô (lýô), in Grande lessico del Nuovo Testamento, II, 891-896; Cf. J. JEREMIAS, kleîs, in Grande lessico del Nuovo Testamento, V, 547-572 (562-563). 32. P. BONNARD, L’Évangile selon Saint Matthieu, Genève, Labor et Fides, 1982, 246.275. A medida disciplinar não corresponde necessariamente a uma excomunhão; pode tratar-se de um isolamento provisório, de uma quarentena (Mt 18,18); cf. C. H. DODD, Some Johannine “Herrenworte” with Parallels in the Synoptic Gospel, New Testament Studies 1 (1954-55) 75-86 (85). 33. João 1,29; cf. 8,21.24.34; 9,41; 15,22; 16,8. 34. Na frase “os pecados lhes são perdoados (aphéo-ntai)” o verbo grego está no tempo perfeito. 96

Capítulo 5 – Jesus aparece aos discípulos

calmente a vida do ser humano, sendo o fruto da benevolência inesgotável de Deus. Se o evangelista menciona a possibilidade da recusa da absolvição, isso depende exclusivamente do pecador, que rejeita responsavelmente a graça que lhe é oferecida, e não de Deus, que em sua misericórdia perdoa qualquer tipo de pecado a quem está arrependido. Também na primeira carta de João dá-se destaque ao perdão: a Igreja agradece a Deus pela remissão dos pecados que se torna possível pelo sacrifício pascal de Jesus, qualificado como “propiciação” pelos pecados do mundo inteiro (cf. 1Jo 1,7; 2,2; 3,5; 4,10b.14)35. Além disso, na carta é apresentada uma prática penitencial embrionária, frisando o valor da intercessão da comunidade pelos pecadores (1Jo 5,16-17)36. Isso indica que desde o fim do século I a comunidade cristã tinha clara consciência do poder de reconciliação dos pecadores que lhe foi entregue pelo Ressuscitado. Parece bastante provável que a frase do quarto evangelho referente ao perdão dos pecados seja fruto da reflexão da Igreja joanina, que após a Páscoa procurou entender o sentido de sua missão no mundo. Também a expressão estilisticamente muito equilibrada do texto, em que se menciona o perdão e sua possível negação, aponta para uma compreensão amadurecida da Igreja, à luz de problemas concretos.

3.3.2 Que tipo de perdão? No texto joanino a palavra referente ao perdão dos pecados apresenta certa dificuldade de interpretação, porque seus destinatários são os discípulos, aos quais Jesus aparece, e não os apóstolos, como nos sinópticos. Põe-se a seguinte questão: quem tem na Igreja a incumbência de perdoar os pecados? Todos os membros da comunidade cristã ou somente pessoas particulares? A solução deve ser encontrada fora do âmbito estritamente exegético, porque no texto bíblico faltam elementos a respeito37. 35. O tema está unido ao da pureza interior (Jo 13,10; 15,3), que caracteriza a religiosidade judaica (2,6; 3,25; 18,28). 36. Em 1 João 5,16-17 distingue-se pecado que não conduz à morte e pecado que conduz à morte. Para o pecado que conduz à morte e que se identifica com a apostasia não há possibilidade de perdão, não por causa do pecado em si, porque todo pecado foi perdoado por Jesus, mas por causa do endurecimento do pecador, indisponível à reconciliação. Talvez certa prática penitencial existisse também na comunidade de Mateus, embora os indícios sejam frágeis: depois da cura do paralítico, em que Jesus reivindica o poder de perdoar, o evangelista afirma que “a multidão […] glorificou a Deus que deu tal poder aos homens” (Mt 9,8). 37. Lutero interpreta o texto à luz de Lucas 24,47, como poder de “pregar” a remissão dos pecados, já realizada por Deus na cruz, valorizando o serviço da palavra e colocando em segundo lugar o sacramento. 97

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Os Padres da Igreja dos primeiros séculos supuseram que a palavra de Jesus se referisse ao perdão batismal, evitando enfrentar a dificuldade que caracteriza o texto. Sustenta isso Cipriano, que, em relação ao versículo, na Epístola 73,7 escreve: “Está claro onde e por quem é possível ministrar o perdão dos pecados que é dado pelo batismo”38. A oferta ou a recusa do perdão é interpretada, assim, como admissão ao sacramento do batismo ou negação dele, interpretação muito restrita que não satisfaz e deve ser abandonada. O que cria confusão na compreensão do versículo é uma leitura fundamentalista dele, como se no texto bíblico estivessem presentes todos os pormenores que foram especificados pela Igreja ao longo dos séculos em relação à missão de perdoar os pecados. A palavra de Deus não é a confirmação do desenvolvimento teológico de uma comunidade, mas seu fundamento. O versículo afirma que o poder contra o pecado é confiado à Igreja, sem especificar a modalidade de seu exercício. O texto em questão abre-se para várias formas de remissão das culpas, incluindo a absolvição sacramental39. Seria, porém, um erro pensar que no trecho joanino a tarefa do perdão sacramental possa ser exercida por cada membro da comunidade, sem nenhuma distinção. João diz simplesmente que o perdão é confiado à Igreja em sua globalidade, sem determinar seus ministros efetivos. A Igreja toda tem a possibilidade de perdoar, assim como a Igreja toda é profética ou apostólica, embora nem todos os seus membros sejam profetas ou apóstolos. Também em Mateus 18,18 o autor, frisando que o poder de ligar e desligar é confiado aos discípulos, não entra em detalhes. Com o desenvolvimento da reflexão teológica, os cristãos compreenderam que a palavra de Jesus se referia a uma comunidade eclesial organizada, com ministérios bem circunstanciados. O Concílio de Trento destaca que em João 20,23 se encontra o fundamento bíblico do perdão sacramental que somente alguns membros da comunidade podem exercer, sem afirmar que essa interpretação do texto seja a única40. De fato, a frase joanina, além do perdão sacramental, aponta para o exercício do perdão a que na vida concreta os fiéis devem entregar-se reciprocamente. Ninguém pode recusar-se a cumprir essa tarefa, porque cada cristão tem o dever de rezar e de interceder pelos pecados seus e dos irmãos (1Jo 5,16-17). 38. Cf. Corpus Christianorum 3C, 537. 39. R. SCHNACKENBURG, Giovanni, III, op. cit., 539; cf. 1 João 1,9. 40. Cf. H. DENZINGER, Enchiridion symbolorum: definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, Bologna, EDB, 1995, 1703-1710. Católicos, ortodoxos e protestantes concordam na interpretação de que o poder do perdão é entregue à Igreja. A questão é definir quem deve exercer oficialmente esse poder. 98

Capítulo 5 – Jesus aparece aos discípulos

O ministério do perdão, portanto, deve ser desempenhado de modo diferente na comunidade, seja por parte de ministros específicos, seja por cada membro, com o intuito de destruir o poder do mal presente no mundo (Jo 3,19b), conduzindo os homens das trevas à luz da nova criação, realizada por Jesus ressuscitado.

4. Relação entre João 20,19-23, Lucas 24,36-49 e Mateus 28,16-20 Terminada a explicação da narrativa da aparição de Jesus aos discípulos, pode ser útil fazer uma comparação entre o texto joanino e os relatos sinópticos que se referem ao mesmo episódio, a saber, Lucas 24,36-49 e Mateus 28,1620. Sabe-se que João não menciona os pormenores apologéticos, presentes em Lucas, que destacam a realidade do corpo de Jesus. Tomados ao pé da letra, poderiam levar o leitor a pensar que o Ressuscitado é um reanimado que voltou para a vida. Também a respeito da missão o quarto evangelista é mais sóbrio do que Mateus, não especificando a modalidade dela. A única grande diferença com que, em João, Lucas e Mateus, é apresentada a aparição aos discípulos consiste na diferença de lugar. Em João e Lucas ocorre em Jerusalém na tarde da Páscoa (Jo 20,19-25; Lc 24,36-49), enquanto em Mateus 28,16 acontece no monte da Galileia. Com toda a probabilidade, trata-se da mesma aparição colocada em contextos geográficos diferentes, apesar dos pequenos acréscimos feitos por cada redator. Isso indica a existência de duas tradições do evento: uma ambientada em Jerusalém, outra na Galileia. Explica-se essa mudança levando em conta que cada evangelista redige os eventos à luz de seus interesses redacionais, não se preocupando com a exatidão topográfica, de acordo com o gênero literário dos evangelhos, que não querem ser crônicas da vida de Jesus, mas hermenêuticas de fé, baseadas na história. Para os autores sagrados é mais importante o evento — nesse caso, o fato de que Jesus apareceu aos discípulos — do que sua situação geográfica, que pode ser uma reunião em Jerusalém ou um encontro num monte da Galileia. Sabe-se que o lugar das aparições se tornou mais significativo quando os evangelistas começaram a escrever um relato ordenado dos eventos pascais, começando com o túmulo vazio e terminando com a ascensão de Jesus. De acordo com as necessidades de sua narração, eles conservaram a localização histórica originária dos acontecimento ou a mudaram. Por isso, deve-se evitar fazer uma harmonização das narrativas de João e de Lucas com a de Mateus à luz de um concordismo simplório, como nos acostumou a pregação popular. 99

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

É bastante provável que historicamente a aparição aos discípulos, que foi única e representou o alicerce da fé da Igreja, tenha acontecido na Galileia, como destaca Mateus, de acordo com a tradição que se encontra em Marcos 16,7: “Ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia. Lá o vereis, como vos tinha dito” — embora Marcos não descreva a manifestação de Jesus, mas somente a anuncie. Essa tradição aparece também em João 21, que fala de uma aparição no lago da Galileia, embora reservada a sete discípulos. A colocação da aparição em Jerusalém por parte de João e de Lucas depende da teologia dos dois evangelistas. Com efeito, em João, Jerusalém representa o âmbito mais importante da atividade de Jesus, que começa no sul da Palestina (1,28) e só poucas vezes atinge a Galileia41. Em Lucas, todo o evangelho está orientado para Jerusalém, de onde começa a missão da Igreja, narrada em Atos42. Se a Galileia é o âmbito mais certo da manifestação de Jesus aos seus discípulos, deve-se supor que eles, depois do encontro do túmulo vazio em Jerusalém, voltaram para sua terra, retomando seu trabalho corriqueiro, onde Jesus se lhes mostrou vivo.

41. Cf. João 2,1-12; 4,46-50; 6,1-71. 42. Na conclusão do evangelho de Marcos as aparições são colocadas em Jerusalém. A lista das aparições em 1 Coríntios 15,5-8 carece de referências cronológicas. 100

Capítulo 6

Aparição a Tomé

Nos evangelhos sinópticos, diante do Ressuscitado que se lhes manifesta, os discípulos nem sempre creem. Mateus afirma que “alguns duvidaram” (Mt 28,17); Lucas realça que, pensando ver um espírito, os discípulos não acreditavam “por causa da alegria” (Lc 24,41). O motivo é apologético e tem a finalidade de mostrar que a fé da comunidade primitiva não se baseou em entusiasmo vazio. De forma ainda mais incisiva, João não faz menção à dúvida na aparição pascal, mas constrói uma nova perícope, que tem como protagonista Tomé, personificando nele a perplexidade dos discípulos. A narrativa joanina, introduzida pelo texto de João 20,24-25 e desenvolvida nos versículos 26-29, deve ser considerada uma elaboração do evangelista e não um relato originário, porque falta nos sinópticos e, em particular, por causa da repetição dos muitos temas que já se encontram na narração da aparição de Jesus aos discípulos reunidos1. A única novidade é o cenário, que apresenta, depois de oito dias, os discípulos num lugar fechado, provavelmente “dentro” de uma casa (ésô)2.

1. Cf. M.-E. BOISMARD (Saint Luc et le rédaction do quatrième Évangile (Jn 4,46-54), Revue Biblique 69 [1962] 183-211 [200-203]) supõe que o texto seja um acréscimo redacional lucano. 2. Cf. Marcos 14,54; 15,16; Atos 5,23. 101

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

A frase que introduz a cena de Tomé: “não estava com eles quando veio Jesus”, é um pretexto que permite ao evangelista redigir a perícope e desenvolver um elemento que não foi aprofundado no relato anterior, porque a ausência de Tomé na manifestação de Jesus a todos os discípulos poderia induzir à conclusão de que ele não recebeu a missão entregue aos seus companheiros, o que seria um absurdo.

1. O personagem de Tomé Nos sinópticos, Tomé aparece somente na lista dos Doze3, à diferença de João, em que é o destinatário de uma aparição do Ressuscitado, recebendo certo realce também ao longo do evangelho4. É chamado Dídimo, isto é, gêmeo, como explica João traduzindo para o grego o termo aramaico, desconhecido aos leitores5. Sua qualificação principal é ser “um dos Doze”6, o que indica que a dificuldade em crer não poupa nem os que Jesus chama de “amigos” (15,16.19). Quais os motivos da escolha de Tomé para fazer dele o expoente da dúvida apostólica? Em 11,16, após o anúncio da morte de Lázaro e a determinação de Jesus de ir para Betânia, Tomé reage com entusiasmo dizendo: “Vamos também nós para morrermos com ele”. A frase tem certa ambiguidade, podendo indicar que Tomé não compreende plenamente o sentido das palavras de Jesus ou que ele imagina de antemão o destino cruel reservado a Jesus, desejando ser fiel a ele até as últimas consequências. Levando em conta que Tomé mostra certa dificuldade de entendimento quando Jesus anuncia sua partida, dizendo: “Senhor, nós não sabemos para onde vais; e como podemos saber o caminho?” (14,5), é plausível que a interpretação mais certa de sua reação perante Jesus, que decide deixar a região além do Jordão e voltar para a Judeia, seja a falta de compreensão. Esse motivo faz dele a pessoa mais apta entre os discípulos para personificar a dúvida dos membros da comunidade. Pedindo uma prova tangível do evento da ressurreição que seus companheiros lhe anunciam, Tomé não é infiel a Jesus. Hesita, desconfia do testemunho dos discípulos, reagindo com um protesto espontâneo, sem recusar necessariamente que Jesus esteja vivo; de certa forma, torna-se o expoente da 3. Cf. Mateus 10,3; Marcos 3,18; Lucas 6,15; Atos 1,13. 4. Cf. João 11,16; 14,5; 20,24.26.27.28; 21,2. 5. Cf. João 4,5.25; 5,2; 9,11; 11,54; 19,13.17; 20,16. 6. A frase pertence à tradição e se encontra em Mateus 26,14.47, Marcos 14,10.20.43 e Lucas 22,47. Também Judas é qualificado como “um dos Doze” (6,71). 102

Capítulo 6 – Aparição a Tomé

“cultura da suspeita” de nosso tempo. É, pois, “gêmeo” do homem que vive neste mundo e se questiona sobre o sentido global da existência humana e da possibilidade da ressurreição dentre os mortos7.

2. Confissão dos discípulos e pedido de Tomé Ao testemunho dos discípulos o evangelista contrapõe a resposta de Tomé. Baseando-se em sua experiência do Ressuscitado, os primeiros repetem a Tomé: “Vimos o Senhor”, fazendo isso com certa insistência8. Tomé reage em nome de sua liberdade, exigindo ele mesmo testar o que aconteceu com Jesus, examinando as mãos e o lado dele, colocando condições para crer e desejando algo que não foi concedido aos outros discípulos. Suas pretensões são apresentadas em crescendo: ele quer “ver” (horân) nas mãos de Jesus o sinal dos cravos, depois “colocar” (bállein eis) seu dedo na ferida e, em seguida, pôr sua mão no lado de Jesus9. “Ver” corresponde a esses gestos de constatação10. Só após essa análise minuciosa e pessoal (meu dedo/minha mão) pode fazer sua opção de fé. Se isso não for possível, a conclusão de Tomé é drástica e radical: “não acreditarei” (ou mê pisteúsô), expressa com uma frase construída com uma dupla negação, cujo sentido é “não acreditarei de forma alguma, nunca me dobrarei às vossas convicções”11. Outros personagens do evangelho partilham tal situação, em si não necessariamente negativa, que leva Jesus a dizer: “Se não virdes sinais e prodígios, não acreditareis” (4,48). A frase não quer afirmar que seria desejável crer sem o apoio dos sinais, porque os sinais fazem parte da economia da encarnação, frisada no quarto evangelho12. Critica-se 7. O apelido “gêmeo” despertou interesse na literatura apócrifa cristã, em particular no Evangelho de Tomé (Ditos 31.39) e nos Atos de Tomé, inspirados pela gnose. Nessas composições Tomé é considerado o destinatário de revelações esotéricas especiais, em sua qualidade de “irmão gêmeo de Jesus”. Segundo R. SCHNACKENBURG (Giovanni, op. cit., II, 543-544), o destaque dado por João à figura de Tomé depende dos contatos que o evangelista teve com o mundo cultural da Síria, em que as tradições referentes ao Apóstolo eram muito desenvolvidas. 8. O verbo “diziam” (élegon), no tempo imperfeito, tem valor iterativo. 9. O evangelista menciona as mãos de Jesus e as de Tomé. Somente neste versículo do Novo Testamento faz-se menção aos pregos (hêloi) com os quais Jesus foi crucificado. 10. J. KREMER, Nimmt deine Hand und lege sie im meine Seite!. Exegetische, hermeneutische und bibeltheologische Überlegungen zu John 20,24-29, in F. VAN SEGBROECK, C. M. TUCKETT, G. VAN BELLE, J. VERHEYDEN (Ed.), The Four Gospels. FS F. Neirynck, Leuven, Leuven University Press, 1992, III, 2153-2181. 11. A construção com ou mê, com o futuro ou o subjuntivo aoristo, se encontra em vários textos joaninos: João 4,14.48; 6,35.37; 8,12.51.52; 10,5.28; 1,26.56; 13,8.38; 16,7; 18,11; 20,25. Cf. em particular 4,48; 8,51; 16,7. 12. Cf. João 2,11; 6,26; 12,37; 20,30. 103

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

o desejo de condicionar a fé a experiências humanamente satisfatórias ou ao contentamento da curiosidade humana, porque dessa forma se esvazia o sentido do crer, que é acolhida de uma realidade que não está à disposição do ser humano e o sobrepuja. Se são necessárias mediações entre o ser humano e o Ressuscitado, elas devem ter o estatuto de sinais que interpelam, evitando considerá-las provas evidentes, porque desse modo se tornariam obstáculos no caminho da fé, alimentando o egocentrismo13. Jesus não exige que Tomé acredite sem ter um convencimento interior em força de uma experiência particular, como aconteceu com os outros discípulos que “viram” o Senhor, mas alerta para não ir à procura de prodígios ou de milagres que fazem notícia nos jornais, fazendo deles a base da fé.

3. Necessidade de uma reviravolta interior O evangelista convida a participar da cena, dizendo, com o tempo verbal presente, que Jesus “vem” (érchetai) e “diz” (légei), como se o evento ocorresse diante do leitor, sem usar os verbos no tempo passado — “veio” e “disse” —, como na narrativa anterior14. Também na frase “Põe o teu dedo aqui” o advérbio de lugar “aqui” é um convite, dirigido a todo cristão, para que supere suas perplexidades na vida de fé. Considerando que a cena é colocada “oito dias depois” da Páscoa, a saber, sempre no dia de domingo15, é plausível que na narrativa as dúvidas se refiram à presença de Jesus ressuscitado na eucaristia. No relato dá-se destaque às palavras de Jesus, que, dirigindo-se diretamente a Tomé, o desafia oferecendo-lhe analisar os membros de seu corpo, de acordo com as exigências manifestadas por ele, mostrando, dessa forma, sua onisciência, como em outros trechos do quarto evangelho16. Jesus sabe tudo; conhece também a incredulidade de Tomé e as condições que ele põe para acreditar, sem que isso represente um empecilho para sua manifestação ao discípulo; aliás, valorizando os pedidos de Tomé, faz que ele chegue à fé, superando suas dificuldades17. O amadurecimento interior do discípulo não é fruto de uma imposição externa, mas de uma progressiva e pessoal compreen13. Y. SIMOENS, Secondo Giovanni. Una traduzione e un’interpretazione, Bologna, EDB, 1997, 815. 14. Na perícope da aparição aos discípulos predomina o tempo aoristo, em lugar do presente histórico. 15. Cf. Atos 20,7; Apocalipse 1,10; cf. Instrução dos doze apóstolos (Didaqué), 14,1-3, in Padres apostólicos, São Paulo, Paulus, 1995, 357-358 (Cf. Sources Chrétiennes 248, 193). 16. Cf. João 1,45; 2,25; 4,16; 13,1; 19,28. 17. Tomé pôs condições para acreditar dizendo: “se eu não vir… não acreditarei” (v. 25); Jesus o provoca retrucando: “vê minhas mãos”. 104

Capítulo 6 – Aparição a Tomé

são da verdade do anúncio apostólico recebido. Jesus mostra assim respeitar a liberdade de cada ser, levando a sério suas exigências, permitindo-lhe seguir o caminho mais apto para chegar à fé. Para sair da situação de fechamento em que Tomé se encontra, é preciso confiar em Jesus, que de forma imperativa lhe diz: “Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos; estende também a mão e põe-na no meu lado”. A palavra de Jesus determina uma mudança radical no discípulo; realiza-se o desejo de Jesus, indicado pela frase: “não fique (mê gínou) descrente, mas crente”, construída com dois termos em oposição. Tomé é exortado a não continuar a ficar descrente18, saindo de certa inércia mental19. A confissão de fé de Tomé, que logo se segue, revela sua efetiva reviravolta interior, mostrando que a aparição de Jesus teve uma eficácia transformadora.

4. Confissão de fé de Tomé 4.1. Os termos Introduzida pela expressão solene “respondeu e disse”20, a confissão de fé de Tomé é muito densa. Proclamando: “Senhor meu e Deus meu” (ho Kýrios mou kaí ho Theós mou), faz a mais completa declaração de fé que se encontra no quarto evangelho. Nele, os personagens qualificam normalmente Jesus à luz do Antigo Testamento ou de sua obra de redenção, como mostram as frases: “Tu és o Filho de Deus e o rei de Israel” (1,49), “Tu és o santo de Deus” (6,69), “Este é verdadeiramente o salvador do mundo” (4,42). Tomé é o primeiro entre os discípulos a reconhecer o senhorio de Jesus e sua divindade, evidenciada pelo autor do evangelho somente no prólogo, afirmando que Jesus é Deus (1,1), o “Unigênito Deus” que revela o rosto do Pai (1,18). Tomé se torna, assim, o representante da comunidade cristã que, depois do seguimento de Jesus durante a vida pública, reconhece a verdadeira identidade dele. A frase pronunciada por ele é uma exclamação, cheia de entusiasmo, que sai do seu coração21, semelhante a várias expressões com que no Antigo Testamento

18. M. ZERWICK, Graecitas biblica, Roma, Pontificio Istituto Biblico, 1966, 246. Cf. Lucas 1,13.30; 2,10; João 2,16; 19,21. 19. Nos sinópticos os discípulos são chamados de homens “sem inteligência” (Mc 7,18), de “coração endurecido” (Mc 8,17) ou “fracos na fé” (Mt 8,26; 14,31; 16,8), incapazes de se abrir para a revelação. 20. Cf. João 1,48.50; 2,18.19. 21. Encontra-se uma frase semelhante em João 13,13, em que Jesus é qualificado como “o Mestre e o Senhor” pelos discípulos. Os dois termos talvez indiquem o caminho feito por eles no 105

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

o fiel se refere a Deus22. Nela Tomé manifesta seu afeto sincero por Jesus, reconhecendo-o como “seu” Senhor e “seu” Deus. Trata-se provavelmente de uma aclamação de fé comunitária, feita nas celebrações litúrgicas23. Sabe-se que a profissão explícita da divindade de Jesus é bastante rara no Novo Testamento. Nos sinópticos, aponta-se para a transcendência de Jesus, considerando suas obras extraordinárias, sem porém nunca atribuir-lhe o termo “Deus” (theós). Paulo, em Romanos 9,5, apesar das dificuldades críticas do texto, qualifica Jesus como “Deus bendito”, e o reconhece “igual a Deus” em Filipenses 2,6. A divindade de Jesus é claramente afirmada nas cartas pastorais, nas quais Jesus é caracterizado como “grande Deus e Salvador” (Tt 2,13) ou “Deus e Salvador” (2Pt 1,1). Isso acontece só no final do século I. A reticência a esse respeito nos demais escritos do Novo Testamento deve-se ao tempo necessário para a plena compreensão da identidade de Jesus por parte da comunidade cristã. Depende também da dificuldade de reconhecer Jesus como o verdadeiro Filho de Deus em um ambiente judaico no qual reinava um monoteísmo estrito, longe da compreensão de que em Deus há uma complexidade que não nega a unidade. João, que redige seu evangelho por último, destaca explicitamente essa perspectiva. É, portanto, bastante difícil ver na proclamação de Tomé um motivo polêmico contra o culto imperial, ligado à época em que o imperador Domiciano exigia ser chamado de “Senhor e Deus nosso”24.

4.2. A modalidade da fé de Tomé Na narrativa não são indicados os motivos específicos que impulsionam Tomé a reconhecer em Jesus o seu Senhor e o seu Deus. Em particular, não fica claro se o discípulo tocou ou não tocou no corpo de Jesus ressuscitado,

reconhecimento de identidade de Jesus. Logo depois Jesus modifica a expressão, qualificando-se como “o Senhor e o Mestre” (13,14). 22. Depois da vitória de Elias sobre os profetas de Baal o povo exclama: “O Senhor é Deus! O Senhor é Deus!” (1Rs 18,39). Em 2 Samuel 7,28 e Zacarias 13,9, o termo “Deus” tem a função de especificar quem é o Senhor. No Salmo 34,23 o fiel se dirige a Deus chamando-o de “meu Deus e meu Senhor”, com a ordem dos termos invertida em relação à frase de Tomé (cf. Fl 2,11; Ef 1,3; Ap 4,11). 23. Cf. O. CULLMANN, Cristologia del Nuovo Testamento, Bologna, Il Mulino, 1970, 351.397.455456; F. HAHN, Christologische Hoheitstitel. Ihre Geschichte im frühen Christentum, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 31966, 124. 24. Cf. SUÉTONE, Vie des douze Césars. Domitien 13, Paris, Les Belles Lettres, 1961, III, 92. A perspectiva é mais plausível no Apocalipse, escrito no tempo desse imperador, no qual a comunidade cristã foi chamada a defrontar-se com a ideologia totalitarista romana. 106

Capítulo 6 – Aparição a Tomé

como inicialmente exigiu. No versículo 29a Jesus lhe diz simplesmente: “Porque viste (heôrakas), creste”. Como sabemos, “ver” não deve ser entendido em sentido material, como uma experiência corpórea, mas em sentido espiritual e ao mesmo tempo real, indicando a compreensão do objeto da visão, porque o verbo está no tempo perfeito25. Tomé não precisou tocar para chegar à fé, porque a palavra de Jesus o purificou de seus apegos carnais. Os autores do passado pensaram que o discípulo incrédulo tivesse de verdade tocado no corpo glorioso de Jesus26, embora acreditar em Jesus ressuscitado nada tenha a ver com uma averiguação física. Tomé creu como os outros discípulos, sem tocar: viu, compreendeu e creu. O tocar material não teria sido possível, porque o corpo do Ressuscitado é totalmente transformado pelo Espírito e não é mais uma realidade palpável deste mundo27. Pertence à esfera divina, embora seja o mesmo corpo de Jesus crucificado.

4.3. A fórmula da Aliança A confissão de fé de Tomé apresenta certa relação com a fórmula tradicional da Aliança do Antigo Testamento: “eles serão meu povo e eu serei seu Deus”28, que no relato bíblico comparece com pequenas variações. Às vezes, é mais resumida, como em Oseias 2,25, em que Deus chama Israel “meu

25. GREGÓRIO, O GRANDE (Homilias sobre os evangelhos 26,7-8), explica os dois verbos “ver” e “crer” dizendo: “As coisas que se veem não exigem fé, mas são objeto de conhecimento. Se Tomé viu e tocou, por que Jesus lhe diz: ‘Porque me viste, creste.’?, outra coisa foi o que viu e em o que creu. A divindade não pode ser vista por um mortal. Viu, então, um homem e reconheceu Deus, dizendo: meu Senhor e meu Deus. Creu portanto vendo. Viu um homem e disse que era aquele Deus que ele não podia ver” (cf. SAN GREGORIO MAGNO, Omelie sui vangeli, ed. G. Cremascoli, Roma, Città Nuova, 1994, 339). 26. Na mesma homilia, Gregório ainda afirma: “Irmãos, o que entendeis com tudo isso? Pensais, talvez, que por puro acaso aquele discípulo, escolhido pelo Senhor, estivesse ausente e, ao chegar com os seus companheiros, tenha ouvido do acontecido e, ouvindo, tenha duvidado e, duvidando, tenha tocado e tocando tenha crido? Não, isso não aconteceu por acaso, mas por divina vontade”. LEÃO MAGNO (Segundo sermão na Ascensão do Senhor 4, in Sermões, São Paulo, Paulus, 1996, 175) afirma, porém: “A fé mais esclarecida, pelos passos do espírito foi acedendo ao Filho, igual ao Pai, sem necessitar tocar a substância corpórea de Cristo, pela qual é menor do que o Pai. Manteve sua natureza, o corpo glorificado; a fé dos fiéis era convidada até onde podia atingir o Unigênito igual ao Pai, não mais com mãos corporais, mas com o entendimento espiritual”. 27. Em 1 João 1,1-4 lembra-se que a experiência das testemunhas privilegiadas da comunidade joanina foi a de apalpar o Verbo da vida; o texto se refere ao Jesus histórico, ao Verbo encarnado, não ao Cristo glorioso. 28. Cf. Jeremias 7,23; 11,4; 24,7; 30,22; 32.30; Ezequiel 11.20; 14,11; 34,30; 36,28; Zacarias 8,8; 13,9. 107

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

povo” e Israel qualifica a Deus como “meu Deus”29. Sempre no contexto da Aliança, acham-se também fórmulas que apresentam somente um membro da expressão clássica, pressupondo o outro; em Isaías 63,8, por exemplo, Deus destaca a gratuidade de sua ação em favor de seu povo dizendo: “Sim, são meu povo”. Também no Salmo 100,3 o povo se limita a confessar: “Somos dele, seu povo e ovelhas do seu campo”. A liberdade com que os autores sagrados expressam a realidade da Aliança permite pensar que também na confissão de Tomé há uma referência ao pacto que, em Jesus Cristo, Deus concluiu com seu povo Israel, apesar das repetidas traições. João menciona somente a resposta de Tomé: “meu Senhor e meu Deus”, sem lembrar a outra parte da fórmula tradicional, na qual Jesus manifesta seu amor benevolente pela humanidade. Por meio de sua confissão de fé, o discípulo reconhece a fidelidade de Jesus a ele e a todos os crentes. Juntamente a Tomé, a Igreja manifesta, assim, sua convicção de que, com a ressurreição de Jesus, Deus estabeleceu um laço de amor com todos os seres humanos, que nada poderá romper. Trata-se do fruto do sacrifício redentor que restabeleceu a união dos seres humanos com Deus (1,51) e entre si (11,52). O tema da Aliança, já presente na narrativa de Madalena (20,17), é, pois, retomado na perícope de Tomé.

4.4. Reprovação ou elogio? À confissão de fé de Tomé Jesus responde dizendo: “Porque viste, creste (pepísteukas); bem-aventurados os que não viram e creram”. No versículo não está claro se a frase é afirmativa ou interrogativa, porque as edições críticas do quarto evangelho, baseadas nos manuscritos, apresentam leituras diferentes. Em nível literário, é impossível decidir qual é o texto original, porque nos códices mais antigos falta pontuação. A questão não é marginal, porque as duas possibilidades de leitura proporcionam sentidos diferentes. Se a frase é interpretada como interrogativa, constitui certa reprovação a Tomé, semelhante àquela que Jesus dirige a Natanael: “Porque te disse que te vi debaixo da figueira, crês?” (1,50), ou aos discípulos que pensam crer nele, embora estejam prestes a abandoná-lo: “Credes agora? Eis que vem a hora e já é chegada em que sereis dispersos, cada um para sua casa, e me deixareis só” (16,31). Se considerada uma afirmação, representa um elogio que aprecia o caminho de fé feito pelo discípulo. A maioria dos autores opta pela segunda 29. Em Cântico dos Cânticos 2,16 lê-se: “Meu bem-amado é meu e eu dele”. 108

Capítulo 6 – Aparição a Tomé

interpretação, que é mais conforme à teologia do evangelista, que considera os sinais elementos necessários para chegar à fé30. Além disso, a reprovação seria pouco plausível, porque a resposta de Tomé que se segue representa a mais completa afirmação de fé de todo o evangelho. É, portanto, mais razoável que Jesus louve Tomé pela fé alcançada. Trata-se de uma fé madura, estável, que vai além da mera curiosidade e não fica presa na experiência sensível31. A fé se tornou uma realidade indelével (heôrakas) no coração do discípulo, orientando sua vida. Por isso, seu “ver” não pode ser adequadamente distinto do “crer”, porque o verdadeiro “ver” que reconhece Jesus glorificado se identifica com o ver que é contemplação de fé32. Com Tomé verifica-se, assim, a mesma dinâmica que ocorreu com Maria Madalena (20,18) e com os discípulos (20,25), em que o “ver” o Ressuscitado corresponde ao “crer”. Considerando que todos os relatos dos evangelhos têm um valor performativo, também Tomé, passando por perplexidades e dúvidas, se torna um modelo para as gerações futuras.

5. A bem-aventurança da fé A narrativa se encerra com uma bem-aventurança: “bem-aventurados os que não viram e creram”. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, toda bem-aventurança tem uma dimensão religiosa e está relacionada com fidelidade a Deus: é bem-aventurado quem teme o Senhor (Sl 112,1), quem anda na lei do Senhor (Sl 119,1), ou ainda quem procura a sabedoria (Pr 8,34), a encontra (Pr 3,13) e nela cresce (Sr 14,20), tendo fome e sede de justiça (Mt 5,6), sem ficar escandalizado por causa de Jesus (Lc 7,23)33. No evangelho de João, a bem-aventurança é fruto da fé; aliás, identificase com ela, porque “crer” significa viver uma relação íntima com o Senhor ressuscitado que transforma e dá sentido pleno à existência. Por isso, o “crer” relativiza o “ver” e o inclui34. Entende-se, então, que a situação do cristão que

30. Cf. os comentários de C. H. Barrett, R. Schnackenburg, R. E. Brown, R. Fabris, Y. Simoens. 31. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 552. 32. D. MOLLAT, Giovanni maestro spirituale, op. cit., 91-97; P. J. JUDGE, A note on Jn 20,29, in The Four Gospels, op. cit., III, 2183-2192. 33. Cf. G. STRECKER, Die Makarismen der Bergpredigt, New Testament Studies 17 (1970-71) 255-275; J. DUPONT, Le Beatitudini, Roma/Alba, Paoline, 31976-1977, I-II. Na perspectiva veterotestamentária os bens terrenos são sinais da bênção de Deus: uma esposa digna (Sr 25,8), os filhos (Sl 144,12-15), uma riqueza adquirida com honestidade (Sr 31,8). 34. Y. SIMOENS, Secondo Giovanni, op. cit., 818-819. 109

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

vive numa época da história da Igreja diferente daquela dos discípulos não é inferior, embora não possa fazer a experiência direta de Jesus. Não pode mais “ver” Jesus como o viram as testemunhas da primeira geração; pode, porém, relacionar-se com ele pelo intermédio das testemunhas oculares do passado, e também porque o Ressuscitado continua atuando em sua história. Não importa, pois, ter visto ou não ter visto o Senhor que aparece aos discípulos; o fundamental é o encontro com ele, sempre possível em todas as épocas (cf. 1Pd 1,8)35. Por isso, a bem-aventurança abrange todos os que “não viram” e não tiveram o privilégio dos primeiros discípulos36. Essa perspectiva ajuda a entender que também a fé dos discípulos que conheceram Jesus dependeu de um livre reconhecimento do Ressuscitado que se lhes mostrou vivo, sem nenhuma facilitação a respeito dos cristãos dos séculos posteriores. Também os membros da comunidade reunida no dia de Páscoa experimentaram o risco de crer, abandonando-se totalmente ao Senhor ressuscitado que os interpelava, em força de uma experiência objetiva e interior dele. Desta forma, a pessoa de Tomé pode ser considerada uma ponte entre os que tiveram a visão de Jesus ressuscitado e os que acreditaram nele sem o auxílio das aparições, na aparente ausência de Jesus. Os dois momentos não se opõem entre si, mas são justapostos, e o primeiro conduz ao segundo. Se a quase totalidade dos cristãos é chamada a crer sem ver o Senhor, isso não significa que seja possível prescindir dos sinais concretos que cada batizado encontra em sua vida; estes representam o meio adequado para aproximar-se do Ressuscitado, porque a fé não é algo de puramente intelectual e desencarnado, mas tem uma base experiencial. Também na vida pública de Jesus seus seguidores foram cativados pelas obras que viram (Jo 10,38; 14,11).

6. Tomé e Natanael Os exegetas notam que entre as narrativas de Tomé e Natanael (Jo 1,4550) há vários elementos que se correspondem. Ambos os personagens se tornam discípulos de Jesus aceitando o convite proposto por conhecidos. O anúncio feito por Filipe a Natanael, no início do evangelho: “Encontramos aquele de quem escreveram Moisés na Lei e os profetas” (1,45), não é aceito. Da mesma forma, Tomé recusa as palavras dos discípulos: “Vimos o Senhor” 35. O quarto evangelista menciona outra bem-aventurança: a do serviço aos irmãos, simbolizada por Jesus no lava-pés (13,17). 36. No texto, os tempos verbais, no aoristo, indicam que o evangelista reflete sobre a situação do passado, projetando-a, porém, para o futuro. 110

Capítulo 6 – Aparição a Tomé

(20,25). Filipe destaca a importância da experiência: “Vem e vê”, e Natanael obedece. De forma mais radical, Tomé exige uma experiência específica do Ressuscitado que tenha o teor de uma verificação física, desafiando Jesus. Em ambos os casos Jesus manifesta sua presciência, dizendo a Natanael que o viu quando estava sob a figueira (1,48) e mostrando conhecer as exigências de Tomé. Ambos os personagens reconhecem a identidade de Jesus: Natanael confessa a messianidade dele dizendo: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel”; Tomé, no fim do evangelho, proclama a divindade de Jesus: “meu Senhor e meu Deus”. No episódio de Natanael, a palavra de Jesus que encerra o episódio: “Verás coisas maiores do que estas”, prepara o futuro desenvolvimento do evangelho, apontando para os sinais que Jesus vai operar; no final da narrativa de Tomé, a atenção é fixada na Igreja após a primeira geração, chamada a participar da mesma fé dos discípulos históricos e a partilhar a mesma bem-aventurança. Embora na seção em que se encontra a perícope de Natanael se reflita sobre o seguimento e no relato de Tomé sobre o tema da fé, seguimento e fé são elementos que estão em mútua relação, porque o seguimento se torna possível à medida da fé. É plausível que, construindo as duas narrativas em paralelo e colocando-as no começo e no fim do evangelho, o evangelista tenha querido destacar que a aceitação de Jesus por parte do discípulo apresenta sempre certa dificuldade. Esta pode ser superada somente pela intervenção do próprio Jesus, ajudando o ser humano a remover os obstáculos. O caminho que passa através de dúvidas não é, porém, o único para chegar à fé. O exemplo de André, de Pedro, de Filipe (1,41.42.43) ou do grupo dos Doze (6,69) mostra que ele pode ser menos íngreme. Quase sempre, todavia, fé e incredulidade são entrelaçadas entre si, até a luz prevalecer sobre as trevas (4,29). Por isso Gregório, o Grande, declara que a incredulidade de Tomé ajudou os cristãos mais do que a fé dos outros discípulos.

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Capítulo 7

A aparição no Lago de Tiberíades

Além das aparições em Jerusalém, João apresenta outra manifestação de Jesus no lago da Galileia (Jo 21,1-14). A narrativa é conhecida: Jesus se mostra, vivo, a sete discípulos que estão pescando no lago de Tiberíades: Simão Pedro, Tomé, Natanael, os filhos de Zebedeu, e outros dois discípulos que ficam desconhecidos. Depois da pesca milagrosa, Jesus renova a Pedro o mandato de apascentar o rebanho e anuncia o destino do discípulo amado. A frase do evangelista: “Foi esta a terceira vez que Jesus se manifestou aos discípulos, depois de ressuscitado dentre os mortos” (21,14), colocada depois da cena da pesca, deixa supor que após os eventos pascais os discípulos voltaram para a Galileia e retomaram o trabalho, durante o qual Jesus lhes apareceu. Põem-se as seguintes questões: Jesus apareceu aos discípulos em Jerusalém no dia de Páscoa e, oito dias depois, aos mesmos discípulos, inclusive Tomé, e também uma terceira vez no lago de Tiberíades? Por que foram necessárias várias aparições? Porque só a terceira foi a decisiva? Qual o sentido da redação joanina?

1. Tradição da aparição aos discípulos na Galileia No Novo Testamento realça-se que Jesus apareceu a vários discípulos, mas nunca se afirma que isso aconteceu com as mesmas pessoas, porque signi113

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

ficaria que a primeira aparição não produziu o efeito desejado. A narrativa joanina não representa uma crônica dos fatos, mas oferece ao leitor diferentes tradições referentes à Páscoa, relacionando-as por meio de uma cronologia fictícia. O primeiro relato referente à aparição aos discípulos em Jerusalém é o básico; o que se refere a Tomé é uma repetição do primeiro, destacando a dúvida apostólica; o terceiro, embora referente só a sete discípulos, é outra tradição presente na Igreja primitiva, fornecendo o desfecho no quarto evangelho. De fato, nos evangelhos são narradas várias experiências da comunidade primitiva relativas à ressurreição, independentes entre si e relatadas de forma ordenada e sequenciada somente no momento final da redação dos textos, com a finalidade de fundamentar a fé dos fiéis e justificar a pregação apostólica1. Além disso, cada evangelista fez memória das tradições conhecidas por ele e que possuíam uma relação estreita com os personagens importantes de sua Igreja, sem a pretensão de ser completa2. O caráter adicional de João 21 torna-se evidente, considerando que o capítulo se encontra depois da primeira conclusão do quarto evangelho (20,30-31) e antes da segunda (21,24-25). Provavelmente a narrativa foi acrescentada por um membro da comunidade joanina depois da primeira redação do evangelho. Sua intenção era desenvolver algumas questões eclesiológicas não suficientemente tratadas no corpo da narração, como a presença do Ressuscitado na Igreja pós-pascal, o êxito da missão, o mandato a Pedro e a sorte do discípulo amado3. O capítulo representa, assim, um texto que completa a narrativa do evangelho, em que a dimensão eclesial é bastante reduzida. Recorreu-se, portanto, à outra tradição da aparição do Ressuscitado, que foi incorporada à narrativa com o desejo de não deixar de lado nenhum dos relatos pascais importantes que a Igreja joanina conhecia. Com efeito, de acordo com a apresentação do quarto evangelista, não se pode supor que os discípulos depois da primeira aparição voltaram para o trabalho corriqueiro, como se a experiência feita não tivesse mudado radicalmente sua vida e eles precisassem de outra confirmação para começar a missão4. Por que ir para a Galileia se já no dia da Páscoa receberam o mandato

1. O relato das aparições apresenta feições diferentes a respeito da narrativa da paixão, que é uma narrativa contínua e fiel ao desenvolvimento cronológico dos eventos. 2. Há aparições que não são mencionadas no querigma primitivo (cf. 1Cor 15,6). 3. Não há códices do quarto evangelho em que falta João 21. Isso significa que esse capítulo foi acrescentado muito cedo. 4. Entre os sete discípulos há membros do grupo dos Doze e outros que não fizeram parte desse grupo, como Natanael. 114

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

missionário? A ausência da volta para a Galileia em João é lógica, embora se saiba que o lugar histórico no qual Jesus apareceu aos discípulos não foi Jerusalém, como afirma João 20, mas a Galileia.

2. Intuito atualizador O relato de João 21, qualificado pelos exegetas de epílogo necessário ou de conclusão integrativa5, representa uma releitura do tema da missão confiada aos discípulos em 20,21, à luz da nova problemática que se manifestou na comunidade depois da redação dos primeiros vinte capítulos do evangelho6. Com efeito, no final do século I, quando as primeiras heresias começaram a comprometer a unidade dos cristãos, sentiu-se a necessidade de dar novo vigor à missão da Igreja, destacando que Jesus ressuscitado a acompanha e a sustenta constantemente. Igualmente foi necessário indicar os principais responsáveis pela comunidade cristã, especificando o papel de Pedro e do discípulo amado. A nova narrativa representa, pois, uma tradição antiga, já presente na Igreja primitiva desde o seu início7, alicerçada na vida de Jesus, da qual o autor faz uma reelaboração para responder às questões levantadas pelos cristãos de sua época. O trecho, no qual se menciona explicitamente a “volta” do Senhor, se torna, assim, um elo entre a história de Jesus e a história da Igreja que se desenvolve até o momento escatológico8. João 21 não é o único exemplo de atualização que se encontra na tradição joanina. Também os capítulos 15–17, relativos aos discursos depois da ceia, representam uma reconsideração das palavras de Jesus contidas em 13,31–14,31, aprofundando quase os mesmos temas. Da mesma forma, o pão descido do céu, concebido em 6,35-48 como o pão que é a palavra, nos versículos 49-58a é interpretado como o pão que é a eucaristia. Também o prólogo, que constitui uma apresentação sintética da identidade de Jesus, é um

5. O termo “epílogo” relaciona o relato com o resto do evangelho, dizendo que representa uma complementação. Não se trata de um “acréscimo”, porque no capítulo não há informações adquiridas depois da redação dos primeiros vinte capítulos do evangelho. Tampouco é possível falar de “apêndice”, como a respeito da conclusão do evangelho de Marcos, porque se trata de um texto bem relacionado com o resto do evangelho. 6. M. MARCHESELLI, Gv 21 come ripensamento della tradizione del quarto Vangelo, Ricerche Storico-bibliche 15 (2004) 337-358 (355). 7. J. ZUMSTEIN, La rédaction final de l’évangile selon Jean (à l’exemple do chapitre 21), in J. D. KAESTLI, J. M. POFFET, J. ZUMSTEIN (Éd.), La communauté johannique et son histoire. La trajectoire de l’évangile de Jean aux premiers siècles, Genève, Labor et fides, 1990, 207-230. 8. G. SEGALLA, Un epilogo necessario (Gv 21), Teologia 31 (2006) 514-533. 115

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

texto adicionado no final da composição do evangelho, embora já basicamente formado nos primeiros estágios da tradição joanina. Esse modo de proceder não se deve estranhar, porque o quarto evangelho se formou ao longo de um extenso processo de reflexão, em que o material primitivo foi constantemente reelaborado à luz das novas problemáticas da comunidade. Os textos acrescentados não dependem, pois, do intuito de assemelhar o quarto evangelho aos sinópticos, corrompendo o sentido originário9. O aprofundamento básico feito pela Igreja joanina aconteceu no começo da vida da comunidade, antes do ano 70, quando o anúncio de Jesus foi, por parte de seus catequistas e teólogos, interpretado e aplicado tendo em vista as novas problemáticas da Igreja. O redator final, com a intenção de não perder nada da genuína tradição joanina, recuperou todas essas atualizações, inclusive as que se encontram no capítulo 21.

3. Elementos literários e organização Os exegetas notam que no capítulo há elementos que remetem à redação joanina, como a menção ao discípulo amado (13,27; 19,35), o patronímico de Pedro, filho de João (1,42) e não de Jonas (Mt 16,17), a presença de Tomé, chamado “gêmeo” (Jo 20,24), o personagem de Natanael (1,45), assim como a menção ao “lago de Tiberíades” (6,1). Também o pescado que Jesus oferece aos discípulos (21,9-10) é indicado com o termo opsárion, como no relato da multiplicação dos pães (6,1-15a); da mesma forma a expressão “nada apanharam” (21,3) evoca o texto de João 15,5a: “sem mim não podeis fazer nada”. Desse jeito poder-se-ia continuar10. Há, porém, pormenores que nunca comparecem no quarto evangelho, como a menção aos filhos de Zebedeu, traço que pode vir do ambiente lucano. Além disso, no texto há vários elementos estilísticos que não correspondem à maneira de expressar-se do quarto evangelista11. Isso destaca que o capítulo 9. Trata-se da opinião de R. Bultmann, que sustenta que a teologia do evangelista foi falsificada pelos acréscimos feitos. 10. Jesus é qualificado de “o Senhor” (21,7), como em 20,18.25.29. Em 21,12 Jesus alimenta os discípulos como em 6,11; em 21,19.22 Pedro é convidado a “seguir” Jesus, como são solicitados os discípulos em 1,37. No texto há uma relação com 1,42, em que se indica a nova função de Simão, que recebe o nome de Cefas. Cf. M. MARCHESELLI, Gv 21, op. cit., 351-352. 11. A frase “revelou-se assim” (houtôs, 21,1), que introduz o tema que será desenvolvido em seguida, não corresponde ao estilo do evangelista. A qualificação da aparição como “revelação” é característica de Lucas (Lc 24,31; At 10,40). No versículo 3, a frase pronunciada pelos discípulos, “Vamos nós também contigo”, é construída com a preposição syn e não com metá, em contraste com o modo de escrever do evangelista; no versículo 4, o advérbio de tempo prôías é diferente de 116

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

foi redigido por um membro da comunidade joanina, distinto do quarto evangelista, embora muito próximo dele, que fez uma reconsideração da tradição da comunidade com objetivos teológicos específicos. Por essas razões pode ser considerado um epílogo. A organização do texto é bastante clara: após a aparição de Jesus aos discípulos que estão pescando no lago de Tiberíades (v. 1-14), relatam-se as palavras que Jesus dirige a Pedro e ao discípulo amado, indicando a tarefa e o destino dos dois personagens (v. 15-23). A conexão entre os dois momentos do capítulo é realizada por meio da figura de Pedro e do discípulo amado12 e pela expressão “depois de comerem” (v. 15), que retoma o tema da “refeição” que aparece no versículo 12, embora o evangelista, afirmando “foi esta a terceira vez que Jesus se manifestou aos discípulos depois de ressuscitado dentre os mortos” (v. 14)13, pareça criar certa interrupção entre as duas unidades literárias da narração14. Vamos analisar o texto.

4. A pesca milagrosa 4.1. Uma narrativa aberta para o futuro A perícope representa uma nova manifestação de Jesus aos discípulos. Usa-se o verbo “revelar” (phaneroûn, 21,1bis.14), que, a respeito das aparições de Jesus, aparece só na conclusão do evangelho de Marcos (ephanerôthe-, Mc 16,12.14; cf. Mt 27,53), diferente do verbo “vir”, empregado em João 20: “veio e pôs-se no meio” dos discípulos (érchesthai, 20,19.24.26)15. No quarto evangelho o verbo “revelar” se encontra também no início: João Batista vem batizar com água para que Jesus seja “revelado” a Israel (Jo 1,31),

proí, usado normalmente pelo autor para indicar o alvorecer (Jo 18,28; 20,1); no versículo 6, para realçar a impossibilidade de puxar a rede por causa da grande quantidade de peixes, usa-se a preposição apó e não diá. Da mesma forma, o verbo “não podiam” (ischýein apó), em lugar de dynástai, não pertence ao estilo de João. No versículo 10, Jesus manda trazer alguns dos peixes capturados e o autor usa a preposição apó e não ek, que tem sentido partitivo. Em 21,15-17, para qualificar as ovelhas como “minhas”, o redator usa o pronome pessoal (mou) e não o adjetivo possessivo (tà emá), como em 10,26; em 21,20, para descrever o voltar-se de Pedro, usa-se o verbo epistréphein e não o verbo stréphein, como em outros trechos do quarto evangelho (1,38; 12,40; 20,14.16). 12. Pedro toma a iniciativa da pesca; o discípulo amado reconhece Jesus na beira do lago. 13. No versículo 14 a afirmação realça o gosto do evangelista pela enumeração dos eventos, mostrando seu estilo redacional (cf. 4,54). 14. Apresentando Jesus como “ressuscitado dentre os mortos” (egertheís), com o particípio aoristo passivo, o autor declara que a ressurreição é obra do Pai (cf. At 2,24; 3,13; 4,10). 15. O advérbio “de novo” (pálin, 21,1), na frase “revelou-se de novo”, determina uma ligação com o relato anterior, sem que o autor queira apresentar as aparições em sucessão cronológica. 117

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

e em Caná da Galileia Jesus “revela” a sua glória, operando seu primeiro sinal (2,11); da mesma forma, a cura do cego de nascença “revela” as obras de Deus (9,3). Isso mostra que desde o começo do evangelho o interesse do autor é revelar a identidade de Jesus, como o próprio Jesus realça na oração antes da paixão: “Revelei o teu nome aos homens que me deste do mundo” (17,6; cf. 7,4). A presença do mesmo verbo no final do quarto evangelho indica que somente com as aparições pascais a revelação de Jesus chega à sua plenitude. As manifestações do começo apontam, então, para a manifestação conclusiva, completa e definitiva, na qual Jesus se manifesta como “o Senhor” (21,7). Levando em conta que ocorre entre a Páscoa e a vinda final (21,23), a revelação de Jesus narrada em João 21 pode ser considerada o símbolo dos encontros da Igreja com o Ressuscitado que ocorrem ao longo da história até a parusia (14,21-22), na qual haverá a “revelação” plena do plano salvífico de Deus (1Jo 2,28). A indicação topográfica “mar de Tiberíades” (propriamente um lago, cujo nome deriva da cidade construída às margens em honra de Tibério) pode ter um valor simbólico16. Em toda a tradição bíblica o mar é considerado símbolo do mal, porque representa uma realidade ameaçadora (Jo 6,16-21), tanto que na nova criação o mar não existirá (Ap 21,1). A situação de perigo em que se encontram os discípulos é indicada também pela realidade da noite (Jo 21,3). A noite é, pois, sinônimo de trevas (3,1; 9,4b; 11,10; 13,31), enquanto a manhã é o tempo propício no qual se manifesta a ação salvadora de Deus (Ex 14,24; Sl 5,4; 30,6; 90,14). Por isso é necessário operar durante o dia (na presença de Jesus), porque ninguém pode trabalhar quando vem a noite (Jo 9,4b). O valor simbólico desses pormenores permite supor que o redator queira apresentar nas entrelinhas não somente as dificuldades que os discípulos são chamados a enfrentar, mas também as dos membros da Igreja futura. Estas, se encaradas com simples meios humanos, serão arrasadoras (Jo 21,3c.5); com a ajuda de Jesus ressuscitado, serão superáveis (v. 6). Também os sete discípulos, beneficiários da aparição, podem ter valor simbólico; apresentados todos juntos (homoû, v. 2a), no mesmo lugar, formam uma pequena comunidade (At 1,14; 5,12). Além disso, só aparentemente constituem um grupo restrito. O número sete é um número perfeito e pode representar a totalidade dos discípulos, isto é, a Igreja toda solidária na pesca com Pedro, qualificado com nome duplo “Simão Pedro”, muito frequente no

16. Só em Lucas 5,1 usa-se com exatidão o termo “lago”, enquanto em Mateus e em Marcos, como em João, fala-se de “mar da Galileia” (Mt 4,18; Mc 1,16). Em João 6,1 encontra-se a frase “mar da Galileia de Tiberíades”, especificando com dois termos sua identificação. 118

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

quarto evangelho17, destacando seu papel de liderança. Sem negar a dimensão histórica da cena, o autor, ao redigir a narrativa, pode ter pensado na Igreja de todos os tempos, chamada a pelejar com as ondas do mar, na certeza de que Jesus está presente e a sustenta até o final da história18. Yves Simoens pensa que os filhos de Zebedeu19 e os outros dois discípulos, que ficam sem nome e neste episódio têm seu primeiro encontro com Jesus ressuscitado, podem simbolizar todos os discípulos de Jesus da época pós-apostólica. Também a entrega do mandato de pastor a Pedro, depois de sua negação durante a paixão, pode ser um sinal de que a misericórdia do Ressuscitado continua se espalhando sobre a Igreja, apesar de suas falhas e infidelidades. Esses elementos mostram que, embora bem circunstanciado, o relato representa uma palavra significativa para a comunidade cristã de todas as épocas.

4.2. Êxito depois do fracasso É Simão Pedro que resolve ir pescar. Serve-se do barco, essencial para um trabalho que tem fins econômicos e não meramente desportivos20, e vai pescar durante a noite, que é uma situação favorável para apanhar os peixes e a mais conveniente para vendê-los logo de manhã cedo no mercado. Infelizmente o êxito é negativo. Só a intervenção de Jesus, que ocorre “ao alvorecer”, muda inesperadamente uma situação sem saída. O resultado supera todas as previsões, por causa da grande quantidade de peixes capturados. O evangelista destaca que Jesus “estava na beira” (este-, Jo 21,4), usando uma expressão quase idêntica à que se encontra em 20,19: “esteve no meio”. Afirma, assim, que Jesus ressuscitado acompanha os discípulos em todos os momentos da vida deles, seja no Cenáculo, seja no lago, tanto no momento da fraternidade como na hora da provação. O verbo “estava”, na voz ativa, realça que Jesus toma a iniciativa do contato. Lembrando aos discípulos o fracasso

17. Cf. João 1,41-43; 6,8.68; 13,6.9.24.36; 18,10.15.25; 20,2.6; 21,2.3.7b.11.15, e também 2 Pedro 1,1; Atos 15,14. O simples nome “Pedro” se encontra em João 1,44; 13,8.37; 18,11.16.17.18.26; 20,3; 21,7a.17.20.21. 18. Y. SIMOENS (Secondo Giovanni, op. cit, 824) nota que o termo “discípulo” se repete sete vezes no capítulo (21,1.2.4.7.8.12.14). 19. M.-J. LAGRANGE (Jean, op. cit., 523) supõe que a frase “os de Zebedeu” (no texto grego falta o termo “filhos”) seja uma glosa, com a finalidade de identificar os dois discípulos que carecem de nome. 20. O barco é mencionado com o termo grego ploîon em 21,3.6 e com o diminutivo ploiárion, no versículo 8, mostrando que no grego da koiné os dois termos são equivalentes. 119

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

noturno, manifesta sua presciência (13,1.3; 18,2; 19,28), e com a frase “Não tendes algo para comer, (não é)?” (v. 5)21 expressa sua compreensão da situação em que se encontram seus amigos. Segue-se o convite a lançar a rede à direita do barco, que é o lado da boa sorte, e os discípulos apanham tamanha quantidade de peixe que ficam sem força para puxar a rede. O êxito da pesca lhes permite superar a situação de ignorância inicial: “não sabiam que era Jesus” (v. 4), não devido à fraca luz da hora matutina, mas à dificuldade de reconhecer o Ressuscitado que se lhes manifesta “de forma diferente” (Mc 16,12; Mt 28,17; Lc 24,41). Verifica-se a mesma situação que se encontra no episódio de Madalena, quando a mulher só aos poucos reconhece o Mestre (Jo 20,15-16). Jesus interpela os seus com o diminutivo “filhinhos” (paidía), como costumava na vida terrena, embora viva numa dimensão gloriosa22. O evangelista realça, então, que o Ressuscitado é o mesmo Jesus de Nazaré, porém glorificado pelo poder de Deus. No texto, o reconhecimento é feito pelo discípulo que Jesus amava, constatando o grande número de peixes apanhados (v. 7)23. Levando em conta que também no episódio do túmulo vazio é ele que primeiro compreende o acontecido (20,8), é óbvio que o evangelista insiste em dar destaque ao fundador da comunidade joanina, o qual, ao reconhecer Jesus, proclama: “É o Senhor”. A frase, pronunciada diante de Pedro e dos outros companheiros, produz fruto, porque o evangelista nota em seguida que “Nenhum dos discípulos ousava perguntarlhe: ‘Quem és tu?’, porque sabiam que era o Senhor” (v. 12). A fé do discípulo amado é contagiosa e ajuda os outros discípulos a superar as dúvidas e também permite a Pedro manifestar sua afeição por Jesus, como o relato vai destacar.

4.3. Entusiasmo de Pedro Se na narrativa o discípulo amado tem a função básica de reconhecer a identidade de Jesus, carece de um papel específico durante a pesca, mostrando-

21. O termo grego prosphágion indica o que se come com o pão nas refeições. Como na maioria das vezes se comia pão e peixe, o termo passou a indicar o peixe. O mesmo vale para a palavra opsárion, que se encontra em 21,9.10.13. Há no texto uma correspondência entre os três termos: prosphágion, opsárion, ichty´s. 22. Y. SIMOENS (Secondo Giovanni, op. cit., 826) nota que o termo paidía é usado para os recémnascidos (cf. 16,21-24) e pensa no novo nascimento dos discípulos que ocorre com a ressurreição de Jesus. A palavra tem em si algo de materno. Cf. João 13,33; 1 João 2,12, em que se encontra a palavra teknía. 23. Também em Caná da Galileia e na multiplicação dos pães o dom proporcionado por Jesus supera toda expectativa e tem em si algo de excessivo. 120

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

se alheio da realidade do dia a dia24. Pedro, ao contrário, mencionado doze vezes na perícope, é apresentado sempre em ação, com um papel de destaque na cena: toma a iniciativa da pesca (v. 3a); ao escutar que Jesus está na beira, atira-se ao mar, deixando a rede com os peixes (v. 7); quando Jesus pede que os discípulos tragam alguns dos peixes apanhados, arrasta a rede para a terra (v. 11); em seguida Jesus lhe entrega a tarefa de apascentar o rebanho, depois de tê-lo interrogado a respeito do seu amor: “Tu me amas?”, (v. 15-17). No final, é ainda Pedro que pergunta a Jesus qual será a sorte do discípulo amado (v. 21). A insistência sobre a figura de Pedro e o papel marginal do discípulo amado na narrativa indicam que a figura deste não pertencia à tradição primitiva, mas foi introduzida pelo evangelista, como ocorreu na cena da visita dos dois discípulos ao sepulcro na manhã de Páscoa (20,1-10). Isso mostra que a comunidade joanina teve grande interesse pela figura de Pedro, realçando sua capacidade de tomar decisões e sua coragem, juntamente com certa impulsividade, como indicam vários trechos do quarto evangelho (13,89.23-24.36; 18,10; 20,3). Quando Pedro sabe que o desconhecido na praia é Jesus, sua reação é repentina: “vestiu sua roupa, porque estava nu, e atirou-se ao mar”, como está traduzido na maioria das versões do Novo Testamento (Jo 21,7). O motivo de jogar-se ao mar é a proximidade da beira, estando o barco longe da terra cerca de duzentos côvados, isto é, mais ou menos cem metros (v. 8). O pormenor de que Pedro vestiu sua roupa antes de mergulhar na água tem em si algo de insensato, porque para nadar normalmente as pessoas se despem. Como interpretar, então, o fato de que Pedro estava nu? Não se pode pensar na nudez completa, que teria ofendido a sensibilidade hebraica e representaria uma falta de respeito pelos companheiros, sendo completamente fora da cultura da época. Deve-se também excluir que Pedro trouxesse uma simples tanga, não suficiente para se defender do frio da noite. Provavelmente Pedro vestia sua roupa íntima, algo leve que favorecia o trabalho. Ao dar-se conta da presença de Jesus o que ele fez? São possíveis duas interpretações: na primeira, Pedro colocou em cima da roupa de lã ou de linho (himátion, 19,23) um vestuário externo (ependytê, 21,7), por reverência a Jesus, embora isso o atrapalhasse para nadar. Na segunda, Pedro, para nadar com maior facilidade, atou a veste que trazia em cima do corpo que consistia no seu único vestuário — porque debaixo estava nu — e procurou chegar até Jesus. Arregaçou, 24. G. SEGALLA, Un epilogo necessario, op. cit., 520. 121

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

então, sua roupa sem tirá-la. Essa interpretação é bastante plausível porque o verbo “cingir” (diazônnymai), usado no texto, indica não somente vestir uma roupa, mas também arregaçá-la para movimentar-se com maior facilidade25. Nesse caso, exclui-se que Pedro, no momento de se jogar ao mar, vestiu outra roupa diferente daquela com que trabalhava, o que é muito lógico. À luz desta explicação, seria melhor traduzir o versículo: “arregaçou sua roupa porque estava nu e atirou-se ao mar”. Alguns autores, à luz do relato de Gênesis 3,7-11, pensam que a nudez de Pedro pode indicar a perda de dignidade do apóstolo, depois de ele ter renegado Jesus26. Na cena, porém, Pedro não está pensando no passado, nem manifesta arrependimento, mas está cheio de entusiasmo, todo projetado para o encontro com Jesus.

4.4. Os 153 grandes peixes Especulou-se muito sobre o sentido do número 153, que no relato é um número exato, faltando o advérbio “aproximadamente” (hôs), usado várias vezes pelo evangelista (Jo 1,39; 6,10; 21,8). Com uma apresentação em crescendo, a quantidade precisa dos peixes é mencionada só no final da cena (v. 11), depois de se ter notado a enorme “quantidade de peixes” capturados (v. 6) e que “a rede com os peixes” foi tirada para a terra (v. 8). As interpretações do número são muitas. São Jerônimo afirma que os zoólogos gregos tinham encontrado no lago de Galileia 153 espécies de peixes diferentes; o número poderia, então, significar que a pesca feita pelos discípulos é destinada a abranger os confins do mundo. Santo Agostinho, que reconhece no pormenor “um grande mistério”, chega mais ou menos à mesma conclusão. Interpreta o número como a soma de todos os números de 1 até 1727, pensando que se trate de um número triangular, com dezessete elementos em cada lado de um triângulo equilátero fictício, que corresponde à soma de todos os números de 1 a 17. Também nesse caso o número indicaria a totalidade dos peixes. O bispo de Hipona, mais pormenorizadamente, pensa que o 25. O verbo é referido a Jesus, que “cinge” uma toalha em torno do corpo para lavar os pés dos discípulos (13,4-5). Cf. M.-J. LAGRANGE, Jean, op. cit., 354.525; R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 1352-1353. 26. F. MANNS, Jean 21: Contribution à l’ecclésiologie do IV Évangile, in R. FABRIS (a cura di), La parola di Dio cresceva (At 12,24). Scritti in onore di Carlo Maria Martini nel suo 70o compleanno, Bologna, EDB, 1998, 195-213 (207). 27. Cf. AGOSTINHO, Comentário ao Evangelho de São João 122,8 (cf. AGOSTINO, Commento al Vangelo di San Giovanni, Col. Nuova Biblioteca Agostiniana 24, op. cit., 1592-1593). 122

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

número 17, que é a soma de dez mais sete, aponta para os dez mandamentos e para os sete dons do Espírito Santo, indicando que a Igreja se constrói na obediência aos preceitos de Deus e na força do Espírito28. As interpretações moldadas pela gematria judaica29, às vezes muito originais, se multiplicam. Cirilo de Alexandria supõe que o número 153 seja equivalente a cem, mais cinquenta, mais três: cem corresponderia à plenitude dos gentios que entram na Igreja; cinquenta, ao povo de Israel; e três, à Santíssima Trindade. A comunidade cristã é, pois, universal, obra do Deus trino que atua nela. Não vale a pena levar em conta as outras explicações da Antiguidade. Com toda a probabilidade, falando de 153 grandes peixes (sem contar os “pequenos”!), o evangelista quer frisar o êxito da missão da Igreja depois da Páscoa30. De fato, também as imagens do barco, do mar e da pesca têm algo a ver com a tarefa missionária da comunidade31. Levando em conta que o sacrifício pascal de Jesus tem como finalidade “congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos” (11,52; cf. 17,20), é plausível pensar que a pesca milagrosa representa a realização desse desejo. Outro pormenor do texto merece atenção. Após Jesus ter mandado trazer alguns dos peixes recém-capturados (nûn, v. 10), utilizando o verbo no imperativo, Simão Pedro “arrasta” para a terra a rede, provavelmente subindo (anébe-) no barco ao qual a rede estava amarrada. O verbo “arrastar” (hélkein) é o mesmo que se encontra em João 12,31 para dizer que Jesus, levantado na cruz, “arrastará/atrairá” todos a si, fazendo referência aos gregos, isto é, aos judeus da diáspora, que logo antes manifestam seu desejo de conhecer Jesus e de entrar na fileira da comunidade cristã (12,20). Por meio desse verbo, pouco usado no corpo joanino, o autor estabelece uma relação entre os dois

28. Os números 10 e 7 são importantes nos escritos judaicos da época de Jesus. Muitos autores antigos aceitam a explicação de Agostinho; outros estudiosos supõem que 17 seja a soma de 9 mais 8, em que 9 corresponderia às ordens dos anjos e 8 às bem-aventuranças. 29. A gematria é o estudo numerológico das palavras da língua hebraica, baseada no fato de cada letra do alfabeto corresponder a um número. Trata-se de um método usado na Cabala. 30. F. MANNS (Jean 21, in La parola, op. cit., 210) pensa que o número 153 corresponde à frase “comunidade de amor” (qahal há’ahavah), aceitando a sugestão de J. A. ROMEO, Gematria and John 21,11 — The children of God, Journal of Biblical Literature 97 (1978) 263-264. Cf. N. J. MCELENEY, 153 Great Fishes (John 21,11) — Gematriacal Atbash, Biblica 58 (1977) 411-417. 31. F. MANNS (Jean 21, in La parola, op. cit., 211-213) analisa o simbolismo dos peixes, que corresponde ao das ovelhas em João 21,15-17, considerando como foi interpretado na história da exegese. Os Padres da Igreja consideraram os peixes como símbolos dos fiéis que se unem ao grande peixe que é Jesus. A água na qual vivem é símbolo do batismo. Comer os peixes era um hábito praticado na festa do sábado, com sentido messiânico e escatológico. No fim dos tempos Deus dará aos justos o Leviatã, o gigantesco monstro marinho, para ser comido. 123

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

textos mencionados, especificando que a atração operada por Jesus na cruz se realiza por mediação da Igreja, representada por Pedro, que “arrasta” a rede cheia de peixes para onde se encontra Jesus. O detalhe de que a rede “não se rompeu”, apesar da tamanha quantidade de peixes (v. 11), deve ser interpretado à luz da teologia do evangelista, que destaca a importância da unidade da Igreja, não obstante a fragilidade humana32. Por ela Jesus reza ao Pai em sua oração antes da paixão (17,21.23). É preciso notar que a constatação de que a rede não se rompeu ocorre diante de Jesus ressuscitado; com toda a probabilidade, o pormenor indica que a unidade da comunidade cristã é um dom escatológico, feito aos seus membros pecadores. Essa interpretação parece confirmada pelo fato de que a comunidade joanina está prestes a se dividir por causa de hereges, influenciados pelo docetismo (1Jo 2,19). Se a interpretação não fosse escatológica, o desejo de Jesus logo seria desmentido. Apesar de ser um dom prometido para o futuro, a unidade deve ser uma meta à qual a comunidade cristã deve almejar continuamente, superando as forças desagregadoras e os conflitos históricos.

5. A refeição Com a narrativa da refeição dos discípulos com o Ressuscitado, João dá início a uma nova cena (Jo 21,9-13). Ao chegarem perto de Jesus, os discípulos veem na praia brasas acesas, mais exatamente carvão de lenha colocado aí (keiméne-n) e, por cima, “peixe” e “pão”. Esses dois termos, no texto grego, estão no singular e sem artigo, provavelmente conferindo-lhes um sentido coletivo, sem indicar um número exato. Jesus manda os discípulos trazerem alguns dos peixes que apanharam, solicitando sua colaboração (v. 10). A cena tem um sentido eucarístico, como realçam os vários elementos do texto, os quais, na tradição cristã, se referem à eucaristia. Jesus toma o pão e o distribui entre os discípulos com um gesto que remete ao evento da multiplicação dos pães e, nos sinópticos, à instituição da eucaristia33, embora falte o verbo específico “dar graças” (eucharisteîn). Na narrativa, somente Jesus reparte o pão e os peixes, sem o auxílio dos discípulos, exatamente como no episódio da multiplicação dos pães (6,11), mostrando que ele continua atuando como antes, mantendo a comunhão com os seus amigos também depois da morte. O interesse eucarístico do autor se manifesta também quando diz que 32. O verbo “romper-se” (schízein) é usado em João 7,43; 9,16; 10,19 para indicar o povo judeu que se divide diante de Jesus. 33. Os verbos estão no presente histórico. Cf. Mateus 26,26; Marcos 14,22; Lucas 22,19. 124

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

Jesus oferece aos discípulos “o pão” e “o peixe” (v. 13), mudando a ordem da menção aos alimentos que eles veem em cima das brasas ao descerem para terra: “peixe” e “pão” (v. 9). Mencionando primeiro o pão, o evangelista chama a atenção para o elemento fundamental da ceia. À luz da perspectiva eucarística do episódio, os exegetas preferem afirmar que o peixe apanhado pelos discípulos não faz parte da refeição, pois ficaria prejudicada a dimensão simbólica do evento, uma vez que o dom proporcionado por Jesus dependeria também da colaboração humana34. Na cena há outro detalhe interessante que aponta para a eucaristia: Jesus não se alimenta, mas oferece aos seus a refeição preparada. Apresentando a cena da ceia depois do episódio da pesca milagrosa referente à missão, o evangelista parece lembrar que é necessário estar em comunhão com Jesus para que o trabalho apostólico da Igreja tenha êxito; ao mesmo tempo destaca que toda missão deve levar à eucaristia. Os discípulos, que sabem que Jesus ressuscitado está diante deles (21,12; cf. v.4), e creem nele, reconhecem ser Igreja, chamada para a missão, ao redor da eucaristia. A primeira parte do episódio apresenta três temas: a aparição de Jesus, a pesca milagrosa e a refeição, símbolo da eucaristia. Levanta-se a questão: na tradição primitiva, a aparição de Jesus, relatada por João, aconteceu durante a pesca ou durante uma refeição? A pergunta é lógica porque também no episódio da refeição o autor afirma que Jesus “vem” (érchetai, v. 13), usando o mesmo verbo “vir” que se encontra em 20,19a.24 a respeito da aparição de Jesus aos discípulos reunidos na tarde de Páscoa. Considerando o texto ao pé da letra, poder-se-ia concluir que nele estão relatadas duas aparições. Isso mostra que a junção da manifestação de Jesus aos discípulos e os episódios da pesca e da refeição é obra do redator, porque a refeição poderia ter acontecido em um outro momento e não logo após a pesca35. Por isso, duvida-se se a narrativa originária da pesca terminava com a refeição, como destaca João. Por esse motivo, não fica claro se a aparição de Jesus originariamente estava relacionada com a pesca ou com a refeição. Sobre essa questão os autores estão divididos, pois, por um lado, o episódio da pesca milagrosa é relatado por Lucas 5,1-11 sem fazer menção à aparição de Jesus; por outro lado, a ligação entre a aparição e a refeição está 34. Se, em nível simbólico, no relato os peixes representam os novos cristãos que se convertem e são o fruto da missão da Igreja, seria ilógica a afirmação de que alguns dos peixes serviriam para a refeição dos discípulos. 35. Na tradição lucana a aparição durante a ceia acontece em Jerusalém; João a coloca na Galileia. 125

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

documentada no evangelho de Lucas, tanto em relação aos Onze e outros que estavam com eles no cenáculo quanto em relação aos discípulos de Emaús (Lc 24,30.35.41-43; At 10,41; cf. Mc 16,14). A resposta não é fácil e mostra que é preciso continuar a análise.

6. O beneficiário originário da aparição 6.1. As incongruências do relato As várias discrepâncias presentes no episódio mostram a intervenção redacional do evangelista, como, por exemplo: Jesus pergunta aos discípulos se eles têm peixe (v. 5) quando, na realidade, Jesus já tem peixe e pão para a refeição para lhes oferecer (v. 9); Jesus convida os discípulos para trazer alguns dos peixes apanhados, sem que esses peixes fossem distribuídos na refeição. Além disso, o evangelista afirma que os discípulos, que não estão longe da terra, trazem (sýrontes) “a rede dos peixes”, sem especificar para onde (v. 8). Tudo deixa supor que ela foi levada para a terra. No relato, porém, é Pedro que arrasta para a terra a rede repleta dos 153 grandes peixes (v. 11), depois de Jesus haver feito o pedido. O texto é bastante enigmático, porque destaca que “Simão Pedro subiu e arrastou a rede para a terra”, sem especificar o lugar onde ele subiu: se na terra ou no barco, mesmo que a tradução de muitas versões em português simplifique a questão. Se foi na terra, o gesto deveria supor que a rede já havia sido puxada para a beira por parte dos companheiros. É possível, porém, que a rede tenha ficado amarrada ao barco com todos os peixes e deixada ali pelos companheiros. Nesse caso, Pedro teria subido no barco, arrastando a rede para a terra (eis tèn gên). O leitor deveria, então, perguntar se Pedro, depois de ter se jogado na água para se encontrar com o Senhor, sempre ficou na água, ou foi para a praia, e depois mergulhou outra vez na água para alcançar o barco. No texto, há outra incongruência36: Pedro poderia conseguir, sozinho, arrastar para a terra uma rede com 153 grandes peixes, sem a ajuda dos companheiros? Essas imprecisões mostram que, ao redigir seu texto, o evangelista procurou juntar artificialmente a cena da pesca com a da refeição, aquilo que na tradição estava separado37. Com essa montagem, João quer dar destaque à figura de Pedro. Levando em conta que a narrativa da pesca foi preservada de forma mais completa e orgânica do que a da refeição, parece lógico afir36. Na segunda parte do capítulo 21 as incongruências são menores do que na perícope da pesca. 37. Com a frase “Tendes algo para comer?” (v. 5), pronunciada por Jesus durante a pesca, o redator prepara o episódio da refeição, apontando para ele desde o início da perícope. 126

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

mar que a aparição aconteceu durante a pesca e não durante uma refeição38, embora nem todos os exegetas estejam de acordo com essa perspectiva39. O fato de os dois episódios terem acontecido no lago de Tiberíades poderia ter facilitado a ligação40. É bastante evidente que no relato originário o autor introduziu a figura do discípulo amado, que não oferece nenhuma contribuição ao trabalho da pesca, nem é explicitamente mencionado entre os sete discípulos que vão pescar41. Considerando esse pormenor, alguns exegetas acreditam que antes da redação joanina Pedro era o personagem principal do relato da pesca milagrosa, como testifica a tradição lucana que relata o mesmo episódio, fazendo de Pedro o protagonista. Cabia provavelmente a Pedro a tarefa de reconhecer Jesus ressuscitado, não ao discípulo amado. A questão é delicada e antes de tomar posição a respeito desse assunto é preciso analisar as relações literárias do episódio com o texto paralelo de Lucas.

6.2. Relação entre João 21,1-8 e Lucas 5,1-11 O relato da pesca milagrosa de João tem muitos detalhes em comum com a narrativa lucana do episódio, no qual ocorre o chamado de Pedro e dos primeiros discípulos (Lc 5,1-11). Em ambos os trechos, Pedro tem um papel de destaque na cena que se desenvolve de manhã, depois da pesca noturna, durante a qual os discípulos nada pescaram42. Ele é indicado com o nome completo de “Simão Pedro” tanto em João (Jo 21,2.3.7.11) como em Lucas (Lc 5,8), embora essa identificação falte em todo o terceiro evangelho. Em ambos os relatos Jesus convida Pedro e os seus companheiros a lançar a rede; eles obedecem e apanham uma extraordinária quantidade de peixes. Nas duas narrativas, realça-se a presença de companheiros que colaboram na pesca, sem dar-lhes um destaque particular; lembra-se da presença dos filhos de Zebe38. R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 1383. 39. R. SCHNACKENBURG (Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 573) pensa que a aparição aconteceu durante uma refeição na Galileia. Da mesma opinião é R. PESCH, Der reiche Fischfang (Lk 5,1-11 – Jo 21,1-14). Wundergeschichte-Berufungsgeschichte-Erscheinungsbericht, Düsseldorf, Patmos, 1969. 40. Somente os episódios narrados em João 21 e João 6 são localizados na margem do lago da Galileia. Em João 6,49-58 o pão do céu é interpretado como a eucaristia. Cf. M. MARCHESELLI, Avete qualcosa da mangiare? Un pasto, il Risorto, la comunità, Bologna, EDB, 2006, 94-110.128-140. 41. P. S. MINEAR, The original functions of John 21, Journal of Biblical Literature 102 (1983) 85-98; F. F. SEGOVIA, The final farewell of Jesus: a reading of John 20,30–21,25, Semeia 53 (1991) 167-190; W. S. VORSTER, The Growth and Making of John 21, in The Four Gospels, op. cit., 2207-2221. 42. Cf. R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 1361-1391; J. FITZMYER, The Gospel According to Luke, Garden City/New York, Doubleday, 1983, I, 559-564. 127

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

deu, em posição secundária; presta-se atenção às redes que não se romperam (Jo 21,11; Lc 5,6) e qualifica-se Jesus como “o Senhor” (Jo 21,7; Lc 5,8). A diferença entre as duas redações da pesca milagrosa consiste no fato de que em João ocorre depois da Páscoa, em Lucas, antes da Páscoa. Tratase, então, de um episódio pré ou pós-pascal? Por óbvios motivos, deve-se descartar que o evento aconteceu duas vezes, seja na vida pública de Jesus, seja após sua ressurreição, porque a cena é a mesma, apesar das pequenas diferenças entre os dois relatos43. A questão básica é, pois, determinar a colocação originária do episódio. É provável que se trate de um episódio pós-pascal, antecipado por Lucas na vida pública de Jesus, como destacam Raymond Brown44, Joseph Fitzmyer45, Yves Simoens46 e John Paul Meier47, embora outros autores não concordem com essa opinião48. De fato, nos evangelhos, em alguns casos, ocorre a retroprojeção de elementos pós-pascais para a vida pública de Jesus, mas nunca o oposto. As palavras dirigidas a Pedro em Cesareia de Felipe, por exemplo: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt 16,1819), representam provavelmente a compreensão pós-pascal da tarefa de Pedro na comunidade eclesial49. Da mesma forma devem ser consideradas as palavras, 43. Em Lucas 5,4 a ordem de fazer-se ao largo e lançar as redes é dada a Pedro, enquanto em João é dirigida aos sete discípulos. No quarto evangelho fala-se de rede no singular e de um só barco, à diferença de Lucas, que faz menção a redes no plural e a dois barcos. Lucas afirma que as redes corriam o risco de romper-se; mais positivamente, João destaca que “a rede não se rompeu”, apesar da tamanha quantidade de peixes. Em João os peixes ficam sempre na rede, ao passo que em Lucas são colocados nos dois barcos, “a ponto de quase afundarem”. Pode-se acrescentar que, no relato de João, Pedro e os seus companheiros estão próximos da beira, enquanto em Lucas, estão longe (Lc 5,4). Esses diferentes pormenores indicam que as narrações são duas variantes de um mesmo episódio. 44. R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 1371-1383. 45. J. FITZMYER, The Gospel According to Luke, op. cit,, 559-564. 46. Y. SIMOENS, Secondo Giovanni, op. cit., 823. 47. J. P. MEIER, Un ebreo marginale. Ripensare il Gesù storico, Brescia, Queriniana, 2002, II, 1082-1099 (1089). 48. R. BULTMANN (Die Geschichte der synoptischen Tradition, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1921, 232, e Das Evangelium des Johannes, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 191968, 545-546) inicialmente pensa que João 21 seja uma variante arcaica de Lucas 5,1-11; em seguida, muda de opinião. M. Dibelius, E. Haenchen e H. Schürmann e outros autores estão convencidos de que João 21 depende de Lucas 5,1-11, que seria mais primitivo. Cf. H. SCHÜRMANN, Il vangelo di Luca, Brescia, Paideia, 1983, 451-466. W. DIETRICH, Das Petrusbild der Lukanischen Schriften, Stuttgart, Verlag W. Kohlhammer, 1972, 23-81. 49. A confrontação da perícope com a redação de Marcos e Lucas mostra, com bastante evidência, que o texto de Mateus é um acréscimo literário, feito à luz da Páscoa. A correspondência entre a função de ligar ou desligar entregue a Pedro e à comunidade, destacada por Mateus, e o 128

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

dirigidas à comunidade, relativas ao poder doutrinário e disciplinar que lhe é confiado em favor dos cristãos (Mt 18,15-18)50. Fortalece a convicção de que o evento da pesca milagrosa é pós-pascal o fato de que na perícope da vocação dos primeiros discípulos, relatada em Marcos 1,16-20 e Mateus 4,18-22, não se faz menção ao evento da pesca, lembrado no texto lucano. À luz desses elementos, é plausível pensar que a pesca milagrosa aconteceu após a ressurreição de Jesus. Aponta também para essa conclusão a junção, no relato joanino, do episódio da pesca com o da refeição, que é, sem dúvida, pós-pascal51. É provável, portanto, que o quarto evangelista preserve a tradição primitiva do relato. Pode-se acrescentar que na perícope lucana há pormenores que se tornam mais lógicos se referidos a uma aparição depois da Páscoa. Pedro se autodefine “pecador” (Lc 5,8), sem que haja um motivo específico para isso52, pois o termo se refere provavelmente à traição durante a paixão (Lc 22,34.61-62). Além disso, Pedro atira-se aos pés de Jesus quando está no barco, um pormenor mais razoável para uma aparição pascal na terra firme. Da mesma forma, o pedido para Jesus de afastar-se dele tem mais sentido se se refere à experiência de Jesus glorioso53. A frase lucana dirigida a Pedro: “Não tenhas medo”, é mais lógica se relacionada com o temor reverencial perante o Ressuscitado que caracteriza as aparições pascais54. O nome “Simão Pedro”, característico da redação joanina, que em Lucas se encontra somente nesse texto, contribui para confirmar a dependência do relato lucano do joanino. mandato de perdoar os pecados ou de retê-los, que se encontra em João, indicam a possibilidade de que a palavra de Jesus seja pós-pascal. Devem ser pós-pascais também as palavras referidas a Pedro: “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo! Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te converteres, fortalece os teus irmãos” (Lc 22,31-32). 50. Alguns autores pensam que também o episódio de Jesus que anda sobre as águas e a transfiguração são relatos que correspondem melhor à experiência pós-pascal dos discípulos e foram antecipados na vida histórica de Jesus, embora essa perspectiva seja somente uma conjectura. Cf. J. P. MEIER, Un ebreo, op. cit., 1090-1091. Cf. R. H. STEIN, It is Transfiguration (Mark 9,2-8) a Misplaced Resurrection-account?, Journal of Biblical Literature 95 (1976) 79-96. 51. Lucas não podia relatar o episódio da pesca respeitando sua colocação pós-pascal porque situa todos os relatos pascais em Jerusalém (Lc 24,1-53), sem deixar espaço para as aparições na Galileia. O terceiro evangelista pôde transpor o episódio da pesca para a cena da vocação dos discípulos porque ambos os eventos ocorreram no lago da Galileia. 52. Nos evangelhos os pecadores que se aproximam de Jesus fazem a experiência do amor gratuito que perdoa, mais do que a de seu pecado (Mc 1,18; 2,9.14). 53. Cf. Lucas 4,42; 8,33; 10,10; 22,39. 54. Lucas 5,10; Marcos 16,8; Mateus 28,4.5.8.10; cf. Lucas 24,37-38. O temor é a atitude dos discípulos diante de Jesus que anda sobre a água (Mt 14,27; Jo 6,19.20) ou que se transfigura (Mt 17,6; Lc 9,34.45), manifestando sua dimensão transcendente. 129

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Assim sendo, todos esses elementos parecem realçar que o relato originário da pesca milagrosa é pós-pascal.

6.3. Aparição a Pedro? À luz das considerações feitas, é possível pensar, embora de forma hipotética, que na narrativa originária o beneficiário da aparição de Jesus no lago de Tiberíades era Pedro. O quarto evangelista faria, então, menção à aparição de Jesus a Pedro, várias vezes indicada no Novo Testamento (Mc 16,7; Lc 24,34; 1Cor 15,5), mas nunca relatada em detalhes. Provavelmente a aparição de Jesus teve lugar na Galileia, como indica Marcos 16,7: “Ide dizer a seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia e lá o vereis”; aconteceu durante a pesca, depois de os discípulos terem voltado de Jerusalém para sua terra e retomado seu trabalho costumeiro de pescadores55. Não há motivos certos para descartar essa hipótese. Pedro, de fato, é o personagem fundamental da narrativa originária, e não o discípulo amado, que foi acrescentado pelo quarto evangelista. Lucas também evidencia a centralidade de Pedro, fazendo referência aos filhos de Zebedeu somente no final da perícope56. É provável, portanto, que no relato originário tenha sido Pedro quem reconheceu Jesus que se lhe manifestou durante a pesca no lago da Galileia.

7. Jesus e Pedro Na narrativa, é confiado a Pedro o ministério de apascentar o rebanho, logo após Jesus ter perguntado por três vezes se o amava, recebendo sempre uma resposta afirmativa (Jo 21,15-17). É evidente que a tríplice confissão de fé de Pedro está em relação com sua tríplice negação durante a paixão, apresentando dessa forma sua reabilitação. A reabilitação de Pedro passa para o segundo plano quando se trata de sua investidura, porque o intuito da narrativa é destacar o papel do discípulo na Igreja e não a questão de sua fraqueza pessoal, agora superada57. Relaciona-se, portanto, de forma fictícia, o episódio

55. Paulo, que menciona a aparição a Pedro como primeira na lista em 1 Coríntios 15,5, não faz referência a um lugar preciso. Lucas coloca a aparição a Pedro em Jerusalém (Lc 24,12.34), tirando-a de seu contexto original, obedecendo ao esquema teológico de sua narração. 56. O pormenor indica que o personagem principal da narrativa original era Pedro e somente ele. No relato lucano desaparece a figura de Andreas, mencionada em Marcos no episódio da vocação dos primeiros dois discípulos. 57. S. BARBAGLIA, Darai la tua vita per me? Uma rilettura della triplice domanda di Gesù a Simone di Giovanni (Gv 21,15-19), Rivista Biblica 51 (2003) 149-191. 130

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

com o relato anterior por meio da frase “depois de comer” (v. 15)58 e fixa-se a atenção só na figura de Pedro, enquanto os outros discípulos desaparecem. O texto não tem valor historiográfico, mas explicita a compreensão pós-pascal da Igreja joanina a respeito da tarefa de Pedro. Nota-se que no texto há vários termos correspondentes tanto para indicar o amor de Pedro por Jesus (amar, ter afeto) quanto para qualificar sua futura tarefa apostólica (apascentar, tomar conta), como também para designar os destinatários de sua missão (cordeiros, ovelhas). O texto, traduzido ao pé da letra do grego para a língua portuguesa, é o seguinte: Depois de comerem, Jesus diz a Simão Pedro: “Simão, filho de João, tu me amas (agapâs) mais do que estes?” “Sim, Senhor, lhe diz, tu sabes (oîdas) que tenho afeto por ti (philô)”. Diz-lhe: “Apascenta (bóske) os meus cordeiros (arnía)”. Uma segunda vez lhe diz: “Simão, filho de João, tu me amas (agapâs)?” Diz-lhe: “Sim, Senhor, tu sabes (oîdas) que tenho afeto por ti (philô)”. Diz-lhe: “Toma conta (poímaine) das minhas ovelhas (próbata)”. Pela terceira vez lhe diz: “Simão, filho de João, tu tens afeto por mim (phileîs)?” Entristeceu-se Pedro porque pela terceira vez lhe disse: “tens afeto por mim” (phileîs) e lhe diz: “Senhor, tu sabes (oîdas) tudo. Tu conheces (ginôskeis) que tenho afeto por ti (philô)”. Jesus lhe diz: “Apascenta (bóske) as minhas ovelhas (próbata)”.

7.1. O amor de Pedro por Jesus Os verbos com que Jesus interroga Pedro a respeito de seu amor por ele são diferentes e exigem uma explicação. Nas primeiras duas perguntas aparece o verbo agapân, que corresponde a “amar”; na terceira, phileîn, traduzido por “ter afeto”. Especulou-se muito sobre essa mudança de termos. Os padres da Igreja os consideraram como uma simples variação estilística do autor. Vários exegetas, a começar por Orígenes, sustentaram que o termo agapân representa o amor generoso e altruísta, característico do superior para o inferior, um tipo de amor espiritual mais elevado do que indica o verbo phileîn; este destacaria o amor paritário entre dois amigos que se respeitam e se apreciam, sem excluir certa vantagem pessoal59. Nas primeiras duas perguntas, Jesus interrogaria a 58. No texto há outros elementos de conexão: a conjunção “portanto” (oûn), a menção à “refeição” apenas acontecida (aristeîn), a presença, na cena, de Pedro e do “discípulo amado” (cf. 21,7.20). 59. Cf. C. SPICQ, Agape dans le Nouveau Testament. Analyse des textes, Paris, Gabalda, 1959, III, 219-245 (230-237). 131

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Pedro se é capaz de amá-lo com amor desinteressado e generoso, característico dos verdadeiros discípulos (14,15.23). Pedro responde “Sim, Senhor, tu sabes que eu tenho afeto por ti”. Quando Jesus o interpela pela terceira vez, usa, ao contrário, o verbo phileîn, que o próprio Pedro sempre utilizou em suas respostas60. Isso indicaria que Jesus não o considera capaz de amá-lo da forma mais nobre de amor, mas somente com um amor humano, mutável e egoísta, fazendo provavelmente menção à sua traição. Por isso, Pedro se entristece, porque pela terceira vez Jesus lhe disse “tens afeto por mim”. Essa interpretação que se impôs na Igreja do passado61 não é aceitável, e a exegese atual a recusa, porque a tristeza do discípulo depende somente do fato de que Jesus o interroga “pela terceira vez”, circunstância que no texto recebe certa ênfase, e não da mudança do termo na pergunta. De fato, essa interpretação representaria uma reprovação do discípulo e estaria em contraste com o fato de que Jesus, de forma direta ou indireta, nunca humilhou nem desanimou seus interlocutores, embora pecadores62. O desejo de Jesus é fazer que as pessoas possam sempre responder aos seus apelos, a partir de situações às vezes críticas e pouco exemplares (4,7). No texto não há, pois, uma dinâmica decrescente que se adapta à fragilidade do discípulo incapaz de um amor generoso. Este não fica satisfeito por amar a Jesus com um amor meramente humano. Com efeito, no quarto evangelho o verbo phileîn indica também o amor oblativo e tem o mesmo sentido de agapân, como mostra a frase “o Pai ama o Filho”, que aparece duas vezes no quarto evangelho, tanto com o verbo agapân (3,35) como com o verbo phileîn (5,20), sem mudar o seu sentido. Da mesma forma, as expressões “o Pai vos ama (phileî) porque me amastes (pephilêkate)” (16,27) e “Deus amou (agápe-sen) tanto o mundo que entregou o seu Filho único” (3,16a), indicam, com verbos diferentes, o amor gratuito e generoso de Deus63. Por essa razão o evangelista pode apresentar “o discípulo a quem Jesus amava” tanto com o verbo agapân (21,7), como com o verbo phileîn (20,2)64. 60. Em suas primeiras duas respostas, Pedro declara seu amor por Jesus antepondo ao verbo o advérbio “sim” (nai), que falta na terceira resposta. O termo pode ser traduzido por “decerto” (cf. Mt 15,27). 61. Cf. AGOSTINHO, Comentário ao Evangelho de São João 123,5 (cf. AGOSTINO, Commento al Vangelo di San Giovanni, Col. Nuova Biblioteca Agostiniana 24, op. cit., 1603). 62. Y. SIMOENS, Secondo Giovanni, op. cit, 835-845. 63. Somente em João 12,25 e 15,19 o verbo phileîn tem um sentido negativo e significa amor egoístico e instintivo. 64. O amor que Jesus tem por Lázaro é indicado com o verbo phileîn (11,3.36) e com o verbo agapân (11,5). 132

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

Dirigindo-se a Pedro, Jesus sempre pergunta se seu amor é generoso porque o amor caracterizado pelo termo phileîn é da mesma ordem daquele qualificado de ágape. Pode-se acrescentar que quando Jesus usa o verbo phileîn está interrogando o discípulo sobre a qualidade de seu amor, se esse amor é terno e possui calor humano, capaz de estabelecer relações personalizadas65. Quando, então, pela terceira vez, Jesus pergunta a Pedro “tens amor por mim?”, usando o verbo phileîn, ele não está se colocando ao nível de Pedro, reconhecendo somente a capacidade de um amor menor. Ao contrário, Jesus valoriza o amor generoso do discípulo. Depois da ressurreição, Jesus não ficaria satisfeito de encontrar em Pedro um amor menos puro e menos universal do que esperava; reconhece, ao contrário, que o discípulo o ama com um amor solidário e fiel. É esse amor que constitui a base do ministério entregue a Pedro e que o levará até o martírio (21,19)66. As palavras de Jesus mostram, assim, que Pedro realmente se converteu, sendo sua morte a máxima prova da sinceridade desse amor. Por sua vez, Pedro, declarando seu amor a Jesus utilizando sempre o verbo phileîn, não está manifestando uma devoção simplesmente humana, mas está indicando sua entrega completa, gratuita e generosa, capaz de oblação.

7.2. Mais do que estes Na primeira pergunta, Jesus interroga a Pedro “Me amas tu mais do que estes?” (21,15). A frase “mais do que estes” chama a atenção porque parece afirmar que Pedro ama Jesus mais do que os outros discípulos, sem, porém, dizer por que motivo. A fraqueza, manifestada durante a paixão, indica logo que Pedro não ama Jesus mais do que seus companheiros. Aliás, deve-se lembrar que no quarto evangelho quem é amado por Jesus e, em consequência, ama Jesus é o discípulo amado. Além disso, como Pedro poderia avaliar o amor de seus companheiros por Jesus? Por isso a frase não pode ser explicada fazendo referência à generosidade que Pedro manifestou em diferentes circunstâncias da vida pública de Jesus (13,8.37; 18,10). Tampouco se pode apelar para a pesca milagrosa, alegando que Pedro foi o primeiro que se jogou na água, depois de o discípulo amado ter reconhecido o Ressuscitado. A frase que aparece no evangelho não está relacionada com sua tarefa de responsável pelo rebanho que o levará ao martírio (v. 19). Todas essas possibilidades de interpretação

65. Y. SIMOENS, Secondo Giovanni, op. cit., 840. 66. S. BARBAGLIA, Darai la tua vita per me?, op. cit., 161-162. 133

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

favoreceriam a competição ou, pior, a rivalidade entre os discípulos, coisa que Jesus nunca permitiu. Alguns exegetas resolveram o problema da pergunta de Jesus a Pedro supondo que lhe questionasse se o amava mais do que “essas coisas” (toutôn). Entenderam, dessa forma, o emprego do pronome demonstrativo não em sentido pessoal, mas em relação aos objetos da pesca, como o barco, os peixes e a rede67. Essa interpretação, possível em nível linguístico, diminui a figura de Pedro, que, apesar de sua traição, ficou fascinado pela pessoa de Jesus, procurando segui-lo com fidelidade ao longo da vida pública, deixando tudo (cf. Lc 5,11). Subestima também a figura de Jesus, porque o amor por uma pessoa não pode ser comparado ao amor por uma coisa, apesar de seu valor (cf. Jo 12,43)68. É improvável, embora literariamente possível, que a frase de Jesus queira fazer uma comparação entre o amor que Pedro tem por ele e o afeto que Pedro manifesta pelos outros companheiros, colocando Pedro na alternativa de escolher entre Jesus e os colegas. Essa perspectiva vai contra a dinâmica do evangelho, que reconhece Jesus como o Mestre e o Senhor (13,13), nunca colocando-o no nível dos discípulos. Vários autores pensam que não se deve dar grande importância à frase “mais do que estes”, porque ela desempenha no texto só “uma função literária”69, sendo — como opina Rudolf Bultmann — um meio de ligação com a perícope anterior na qual são mencionados os discípulos70, não mais lembrados após a pesca. De fato, em sua resposta, Pedro está longe de comparar-se aos outros discípulos, remetendo-se confiante ao conhecimento que Jesus tem dele. É interessante a interpretação proposta por Xavier Léon-Dufour, que estabelece uma relação entre o texto joanino e a parábola lucana dos dois devedores, na qual Jesus mostra ao fariseu, que o convidou à sua casa, que quem amará mais o seu patrão é aquele ao qual foi perdoada a dívida maior — a de quinhentos denários e não a de cinquenta (Lc 7,40-43)71. Pedro, que renegou Jesus e foi perdoado por ele, lhe é devedor de um amor mais intenso do que

67. Na língua grega essa interpretação é possível. Cf. T. WIARDA, John 21,1-23: Narrative Unity and Its Implications, Journal for the Study of the New Testament 46 (1992) 53-71 (60-65); S. BARBAGLIA, Darai la tua vita per me?, op. cit., 155-156. 68. Em Mateus 10,37 lê-se: “Aquele que ama pai e mãe mais do que a mim não é digno de mim”. 69. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 599. 70. R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 1396. 71. X. LÉON-DUFOUR, Leitura, IV, op. cit., 206. 134

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

os outros discípulos. Em toda sua vida deve mostrar seu reconhecimento por Jesus e por sua misericórdia. Também nessa interpretação não se faz nenhuma comparação entre Pedro e os outros discípulos.

7.3. Tu sabes tudo Respondendo às perguntas de Jesus, Pedro, com toda a humildade, apela para o conhecimento íntimo, intuitivo e imediato que Jesus tem dele, como vem indicado pelo verbo oîda: “Sim, Senhor, tu sabes (oîdas) que tenho afeto por ti”72. A frase se repete na terceira interrogação, porém com um pequeno detalhe que nas traduções para o português não é valorizado. Pedro responde: “Senhor, tu sabes (oîdas) tudo. Tu conheces (ginôskeis) que tenho afeto por ti”, empregando dois verbos que não são equivalentes entre si. À diferença de oîda, o verbo ginôskein indica o conhecimento que Jesus foi tendo de seus discípulos ao longo de sua existência terrena, convivendo com eles, fazendo uma experiência progressiva de seu modo concreto de proceder. Pedro, portanto, depois de ter reconhecido a onisciência divina de Jesus, que, enquanto Filho, “tudo” conhece sem necessidade de intermediários (8,14; 16,30b)73, recorre ao conhecimento humano que Jesus tem dele (2,25). Com uma atitude de entrega total, mostra confiar plenamente no Senhor de quem foi fiel seguidor, sabendo que Jesus não esqueceu o amor e a fidelidade que lhe manifestou ao longo dos anos de seu discipulado, apesar de sua fragilidade (18,17.2527). É essa atitude de abandono que permite o completo restabelecimento de sua comunhão com Jesus antes de receber dele o encargo de pastor.

7.4. A tarefa pastoral de Pedro Após ter verificado a autenticidade do amor de Pedro, Jesus lhe entrega o ministério de cuidar do rebanho, qualificado com as palavras arnía (21,15)74 e próbata (v. 16.17)75, termos que já se encontram no Antigo Testamento para 72. I. DE LA POTTERIE, Oida e ginôsko-. I due modi di conoscere nel quarto vangelo, in Studi di cristologia giovannea, Genova, Marietti, 1992, 303-315. 73. O termo “tudo” está em posição enfática. 74. Arníon significa jovem cordeiro e é o diminutivo de árnê (cf. Lc 10,3). Encontra-se no Apocalipse, referido a Jesus. No quarto evangelho usa-se também o termo amnós para dizer que Jesus é o “cordeiro de Deus” (Jo 1,29.36), de acordo com a profecia de Isaías, referente ao servo sofredor (Is 53,7). 75. Em alguns manuscritos encontra-se no versículo 17 a palavra probátia, que é um diminutivo, com o sentido de “ovelhinhas”. Há códices em que o termo probátia aparece no versículo 16 e próbata no versículo 17. 135

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

indicar o povo de Israel76. Entre os dois termos não há diferença, porque ambos se referem à totalidade dos discípulos de Jesus, simbolizada anteriormente pelos 153 peixes da pesca milagrosa77. Mais interessante é que Jesus usa o verbo bóskein e o verbo poimaínein para caracterizar a tarefa de Pedro. Na linguagem corriqueira, bóskein significa providenciar a comida para os animais, nutri-los, sustentá-los78, enquanto poimaínein indica o cuidado que o pastor deve ter para com o rebanho, conduzindo-o às pastagens, governando-o e defendendo-o dos ladrões. Fora da metáfora, poimaínein aponta para a responsabilidade do pastor pela comunidade e indica sua autoridade, como no caso de Davi, escolhido para ser pastor de Israel (2Sm 5,2; 1Cr 11,2; 17,6)79. No quarto evangelho, toda a Igreja é confiada a Pedro, tanto os judeus como os pagãos que se convertem, os quais são denominados ovelhas pertencentes a outro redil (Jo 10,16). O mandato de Pedro tem, pois, um alcance universal, superando os limites da comunidade de Jerusalém, e sua missão é específica e diferente da dos outros discípulos (Jo 20,21; 17,18). O contato literário com a perícope do Bom-pastor explicita que o ministério de Pedro continua o de Jesus, que é por excelência o pastor do rebanho (10,11.14)80. Pedro nunca é chamado de “pastor”, mas somente recebe o ofício de pastorear as ovelhas, que continuam sendo propriedade de Jesus — “minhas ovelhas”81. A autoridade outorgada a Pedro é, pois, delegada. Por isso, o distintivo básico que deve caracterizar o discípulo é o amor a Jesus e aos membros da Igreja. Esse amor, que se torna concreto no serviço pastoral, implica ternura, sabedoria, inteligência, gratuidade, espírito de sacrifício, familiaridade com a grei, banindo toda tentação de autoritarismo ou de aproveitamento egoísta das situações. Essa função não deve ser exercida por coação, nem por torpe ganância ou espírito de domínio, mas de livre vontade e por devoção, com o ideal de tornar-se modelo do rebanho (1Pd 5,1-4; cf. Ef 4,11; At 20,2876. No Salmo 113,4 (LXX) fala-se de “cordeiros das ovelhas” (arnía probátôn). Cf. Jr 27(50),45. 77. Ambrósio e alguns padres supõem que os dois termos possam indicar diversas categorias de cristãos: arnía, os responsáveis pela Igreja; próbata, o povo de Deus. 78. Cf. Gênesis 37,12.16; Isaías 11,6; 14,30; 65,25. 79. Na literatura do Oriente Médio o pastor tem a tarefa da direção da comunidade, usando sua autoridade. Trata-se de uma autoridade que vem de Deus (Ez 34,23-24) e deve ser exercida em nome de Deus, que é o supremo pastor de Israel (Is 40,11; Jr 31,10; Os 4,16; Sl 80,2). 80. Cf. I. DE LA POTTERIE, Il Buon Pastore, in ID., Gesù verità. Studi di cristologia giovannea, Torino, Marietti, 1973, 54-84. Também o Pai zela pela salvação do rebanho (Jo 6,37-40; 17,6.12). 81. Também em Mateus 16,17-19 realça-se que a Igreja, que Pedro deve dirigir, continua pertencendo a Jesus, sendo qualificada como “minha Igreja”. 136

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

29), lembrando que Jesus continua sendo o “supremo pastor” das ovelhas82. Pedro viveu de modo exemplar a tarefa que lhe foi entregue, alimentando a comunidade com a palavra e os sacramentos, atendendo às necessidades do rebanho, como mostra sua fidelidade até o martírio83.

7.5. O futuro de Pedro Após a entrega do mandato de apascentar o rebanho, Jesus profetiza a morte do discípulo. É muito provável que os versículos 18-19, assim como os que se referem ao destino do discípulo amado (v. 20-23), sejam obra redacional do evangelista, porque nos sinópticos e na tradição primitiva nunca se fala da morte de Pedro. A expressão “Quando eras jovem, tu te cingias e andavas por onde querias; quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te conduzirá aonde não queres” (v. 18) remete a uma tradição antiga referente à morte de Pedro, crucificado no ano 64 d.C. em Roma, durante a perseguição de Nero. Não depende, portanto, somente do trabalho redacional do evangelista. Introduzida pela frase: “Amém, amém”, dá autoridade às palavras de Jesus, destacando sua onisciência84. O texto é marcado pelas oposições: jovem/velho, cingir-se/ser cingido, ir por onde se quer/ser conduzido por outro aonde não se quer. O termo “outro”, no singular, pode indicar o próprio Ressuscitado ou Deus que atua por meio das mediações humanas, indicando que os eventos históricos são dirigidos por uma providência particular85. Cingir-se, quando jovem, significa arregaçar as vestes para movimentar-se melhor e agir com rapidez (At 12,8), em oposição a estender as mãos e ser cingido ou conduzido por outro aonde não se quer ir, que indica a situação de velhice. Pedro — como cada ser humano — com o tempo perderá sua autossuficiência e a possibilidade de decidir por si mesmo, passando a depender dos outros86. O verbo “cingir” (zônnymi) pode apontar também para a prisão de Pedro. De fato, em Atos 21,11-12, o profeta itinerante Ágabo amarra 82. Em 1 Pedro 2,25 Jesus é qualificado de “pastor (poimên) e supervisor (epíscopos) das vossas almas”. 83. É interessante notar que a morte de Pedro é mencionada logo após ele ter recebido a tarefa de pastor. 84. Cf. João 6,26.32.47.53; 13,38. 85. Em alguns códices, no versículo 18 encontra-se o plural: “outros te cingirão e te levarão”, apontando para um sujeito humano específico, embora não identificado (S, C2, D, W, 33, 565, syhmg, pbo). 86. Alguns autores pensam que se trata de um ditado da sabedoria popular, formado por duas frases antitéticas (cf. Ecl 11,9–12,7; Sl 37,25). 137

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

suas mãos e seus pés com o cinto (zône-) de Paulo, profetizando a próxima captura do apóstolo em Jerusalém. Na comunidade joanina, a palavra de Jesus foi entendida como profecia da morte do discípulo (v. 19) e como anúncio de seu futuro martírio: “Disse isto para significar com que morte havia de dar glória a Deus”. A frase é semelhante à expressão “significando de que morte estava para morrer”, referida a Jesus, condenado à morte de cruz (cf. Jo 12,33; 18,32). A relação literária talvez permita supor que a comunidade pensasse que o destino de Pedro seria morrer crucificado, realizando uma plena identificação com Jesus87, embora seja provável que Jesus tenha anunciado de forma genérica a morte do discípulo88. A última palavra que Jesus dirige a Pedro: “Segue-me” (v. 19b), repetida também no versículo 22, representa um convite a enfrentar todas as consequências da opção de fé. No contexto imediato, trata-se do seguimento de Jesus na morte, não do seguimento em geral. Realiza-se, assim, a profecia que Jesus fez de Pedro durante a ceia: “Para onde vou, não me podes seguir agora; mais tarde, porém, me seguirás” (13,36b)89. À luz de todo o capítulo 21 de João, parece claro que o reconhecimento do papel central de Pedro na comunidade é um dado firme da tradição, tanto que não se pode falar de Igreja sem mencionar a figura de Pedro (cf. Lc 22,31-32). A morte gloriosa do discípulo contribuiu, sem dúvida, para que a comunidade joanina desse um realce especial à sua pessoa.

8. O destino do discípulo amado Finalizando o capítulo, o evangelista destaca o futuro do discípulo amado, mencionado com um toque que lhe é característico: “aquele que na ceia se reclinara sobre o seu [de Jesus] peito e perguntara: Senhor, quem é que vai te entregar?” (21,20; cf. 13,23-25). O intuito do autor é fazer uma comparação entre o discípulo amado e Pedro, juntando as duas cenas de forma artificial por meio da frase “Pedro, voltando-se, viu que o seguia o discípulo que Jesus 87. Pensam no martírio de Pedro em geral: 1 Clemente 5,4 (cf. Padres apostólicos, São Paulo, Paulus, 1997, 27). Supõem o martírio na cruz: TERTULLIANUS, Scorpiace 15,2-3 (cf. Corpus Christianorum II, 1097). Cf. EUSÉBIO DE CESAREIA, História eclesiástica 2,25,5; 3,1,2, op. cit., 110.113. 88. Na frase, a presença de termos nunca usados pelo quarto evangelista indica que as palavras de Jesus provavelmente não representam uma profecia ex eventu. Cf. R. E. BROWN, K. P. DONFRIED, J. REUMANN, Pietro nel Nuovo Testamento. Un’indagine ricognitiva fatta in collaborazione da studiosi protestanti e cattolici, Roma, Borla,1988, 151-171. 89. Em João 1,43, Marcos 1,17; 2,14, Mateus 9,9 e Lucas 5,27 trata-se do seguimento na missão, não na morte. 138

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

amava”, na qual não está claro se o discípulo amado seguia Pedro ou Jesus, embora seja lógica a segunda opção90. À palavra de Pedro, que interroga Jesus sobre o destino do discípulo amado, “Senhor, e este?” (v. 21)91, segue-se a palavra enigmática de Jesus: “Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te importa? Segue-me tu”. A frase foi objeto de interpretações erradas, como reconhece o próprio evangelista: “divulgou-se entre os irmãos a notícia de que aquele discípulo não morreria” (v. 23)92. Qual é a causa dessa incompreensão? A comunidade joanina interpretou o verbo “permanecer” (ménein) como “permanecer em vida” (cf. Fl 1,25), portanto com um sentido diferente da acepção corriqueira no quarto evangelho. O texto, porém, não especifica o modo com que o discípulo amado permanece, deixando em aberto a questão. Ele vai continuar vivendo fisicamente entre os seus até a consumação dos tempos ou ficará presente na comunidade de outra forma, através do prestígio da sua teologia e da sua palavra (Jo 6,63b.68)?93. A segunda possibilidade de interpretação é mais aceitável e mostra como foi infundado o boato que surgiu na comunidade dos “irmãos” de que aquele discípulo não morreria. De fato, “Jesus não disse que ele não morreria” (21,23)94. Aliás, o discípulo amado provavelmente já havia morrido quando foi composto João 21 e sua morte ajudou a Igreja joanina a entender de forma correta a misteriosa expressão de Jesus. A segunda conclusão do evangelho (21,24-25), apresentando o discípulo amado como o escritor e a testemunha por excelência do Ressuscitado, parece confirmar essa interpretação. Por

90. Se o discípulo amado seguisse Pedro, ficaria numa situação de subordinação em relação a ele. R. SCHNACKENBURG (Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 611) pensa que a frase “que o seguia” tem “valor cênico”. 91. Pedro, solicitando a resposta de Jesus a respeito do discípulo amado (v. 20), manifesta sua função ativa também nesse momento do capítulo; isso mostra sua centralidade no relato. 92. O redator pode ter mencionado dois ditos que circulavam na Igreja joanina: o primeiro referente a Pedro e o segundo ao discípulo amado. Esses ditos expressam a reflexão feita pela comunidade depois da morte destes dois personagens. Cf. É. DELEBECQUE, La mission de Pierre e celle de Jean: note philologique sur Jean 21, Biblica 67 (1986) 335-342; I. DE LA POTTERIE, Le témoin que demeure: le disciple que Jésus aimait, Biblica 67 (1986) 343-359. A frase enigmática, referida ao destino do discípulo amado, se alicerça na tradição da comunidade joanina; exclui-se que seja obra exclusiva do redator. 93. F. MANNS (Jean 21, in La parola, op. cit., 206) considera o discípulo amado como o protótipo de todos os discípulos e afirma que a palavra de Jesus que lhe é dirigida significa que haverá discípulos até a parusia. 94. A morte do discípulo amado confirma sua existência histórica. 139

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

causa da excelência de suas perspectivas teológicas, ele não pode, pois, ser considerado inferior a Pedro, embora não tenha recebido a palma do martírio, nem alguma autoridade especial na comunidade. O texto de João 21,22-23 não representa somente o elogio do fundador da comunidade joanina, mas fala também do advento da parusia, que deve ser esperada para um futuro longínquo, após a morte do discípulo amado: “até que eu venha”95. Sabe-se que no quarto evangelho privilegia-se mais a escatologia que se realiza na história, pelo fato de se crer em Jesus ressuscitado, que a escatologia futura. De fato, João destaca que com o evento pascal o cristão já vive numa dimensão escatológica e participa, de forma misteriosa e real, das realidades futuras96. Apesar do valor dado à salvação presente, a comunidade joanina vive projetada para o futuro, na espera da vinda escatológica de Jesus (Jo 6,40b.44b.54b)97, tendo consciência de sua responsabilidade de anunciar o evangelho ao mundo (17,23).

9. Situação histórica da Igreja joanina Qual era a situação da comunidade joanina quando o redator final do quarto evangelho acrescentou o capítulo 21? Por que a redação desse capítulo ocorreu depois de o discípulo amado ter escrito os primeiros vinte capítulos de sua obra? Além disso, por que o autor realça a tarefa eclesial de Pedro se este já havia morrido? Responder a essas questões pressupõe passar da página escrita para a história, o que exige muita cautela98. O relato não representa uma mera lembrança histórica do que aconteceu no tempo de Jesus, mas tem um sentido particular para o momento em que o evangelista vive. Nesse tempo, verifica-se uma divisão na comunidade, porque vários membros, simpatizantes das ideias docetistas99, saem dela, abalando sua estabilidade (1Jo 2,19). Como reação a essa situação crítica, inicia-se um processo de hierarquização e torna-se urgente estabelecer quem representa a autoridade central que deve dirigir a Igreja, ajudando-a a superar a conjuntura em que se encontra. De acordo com as Igrejas dos sinópticos e das comunidades paulinas, quem detém essa autoridade é Pedro. 95. O verbo “vir” (érchesthai), para indicar a vinda escatológica de Jesus, se encontra em João 14,3.28, Marcos 9,1 e Mateus 16,28. 96. O autor realça que quem crê em Jesus já passou da morte para a vida (Jo 5,24) e ainda que morra viverá (11,25), sendo, de verdade, desde já “filho” no Filho (1,12). 97. Cf. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 613-615. 98. M. MARCHESELLI, Gv 21, op. cit., 352-355; J. ZUMSTEIN, La rédaction, op. cit., 354. 99. Não há elementos claros para estabelecer um relacionamento entre João 21 e 1 João. 140

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

Somente no capítulo 21 de João a autoridade do discípulo é realçada, porque nos primeiros vinte capítulos do evangelho Pedro representa só o porta-voz dos que seguem Jesus (Jo 6,69), sem ter o papel de responsável pela comunidade (cf. Mt 16,13-20). Nem o discípulo amado exerce a tarefa da direção da Igreja, embora seja seu fundador, pois no quarto evangelho ele sobressai apenas pelo carisma da lucidez interior e da intuição espiritual que o levam a interpretar os eventos antes dos outros discípulos (Jo 20,8; 21,7). Sua autoridade é, pois, essencialmente a de testemunha. Nos primeiros vinte capítulos do evangelho, quem tem autoridade na Igreja não é um ser humano, mas o Espírito Santo que dirige a comunidade, fazendo-a compreender, paulatinamente, os ensinamentos de Jesus, até levá-la à plenitude da verdade. Este é quem defende Jesus, acusado de blasfêmia pelos judeus. A comunidade joanina se apresenta, assim, como eminentemente carismática. A necessidade de uma autoridade humana se impõe com as primeiras heresias que consideram a humanidade de Jesus e sua encarnação como mera aparência ou, menos drasticamente, desvalorizam a existência de Jesus na carne e, por conseguinte, a importância de sua morte e sua ressurreição, esvaziando assim o evento salvífico (1Jo 4,2). Perante essas forças desagregadoras, fruto da influência dos primeiros fermentos da gnose, sente-se a necessidade de um guia estável e bem definido que possa dirigir com segurança a comunidade, ajudando-a a viver em plena conformidade com as indicações do Espírito. Com a finalidade de evidenciar a tarefa central de Pedro dentro da comunidade foi redigido o capítulo 21 de João, quando os primeiros vinte já estavam escritos, como mostram as duas conclusões do evangelho100. A comunidade joanina não descobriu a importância da figura de Pedro só por causa do perigo da heresia, pois desde o início do evangelho sabe-se que este discípulo tem uma função específica na Igreja, comprovada pela mudança do nome (1,42). No começo, provavelmente por causa de sua estrutura basicamente carismática, a comunidade não deu a Pedro a relevância necessária, como aconteceu nas comunidades sinópticas, embora sua figura seja lembrada nos momentos importantes da vida de Jesus. Somente quando as ameaças dos hereges se abateram sobre a comunidade levou-se a sério a necessidade de se ter uma pessoa investida de uma autoridade plena. Essa pessoa foi Pedro. Dessa forma, a comunidade joanina tornou-se mais próxima das comunidades sinópticas no que diz respeito à sua organização interna, estabelecendo com elas laços mais profundos de comunhão. 100. Provavelmente João 21 foi redigido na situação de crise, depois da morte do discípulo amado, logo após a redação da terceira carta de João. 141

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

A terceira carta de João mostra que quando o redator final do evangelho está redigindo João 21 a comunidade joanina está enfrentando o problema da autoridade. O contexto é a situação de crise em que se encontra a Igreja na região de Éfeso. No bilhete, escrito pelo Ancião, apresenta-se Diótrefes, que “ambiciona o primeiro lugar”, discordando da linha carismática da tradição joanina primitiva (3Jo 9)101. Com toda a probabilidade, Diótrefes pensa que a linha carismática deve integrar-se com a linha institucional, sendo as duas perspectivas perfeitamente compatíveis entre si, como mostram as comunidades lucanas. Por isso propõe-se como líder da comunidade local (e talvez já o seja). O fato de o evangelista lembrar à comunidade joanina a tarefa de Pedro quando este já havia morrido indica que a autoridade pastoral que lhe foi entregue não acabou com sua morte, mas continua através de seus sucessores. Não se trata, portanto, só de uma prerrogativa pessoal, embora no texto não se fale dos sucessores de Pedro. Seu serviço deve continuar, orientando a Igreja e favorecendo a união das comunidades102. É interessante notar que no relato o reconhecimento da autoridade de Pedro, a quem cabe dirigir a Igreja, não representa uma solução humana ocasional, encontrada num momento de dificuldade, mas depende exclusivamente de Jesus, que ordena: “Apascenta os meus cordeiros”. O ministério apostólico de Pedro é, pois, uma instituição que vem do alto, de acordo com o plano de Deus.

10. Em síntese Em João 21 não se encontram perspectivas novas no que diz respeito ao evento da ressurreição. Como no capítulo 20, destaca-se que o reconhecimento de Jesus glorioso por parte dos discípulos não é imediato, mas precisa de certo tempo para ser assimilado, porque Jesus se encontra numa esfera transcendente que não é a nossa. A atenção da narrativa se fixa mais nas consequências para a vida da Igreja decorrentes do evento da ressurreição. O quarto evangelista realça que a missão pós-pascal da Igreja no mundo terá êxito, apesar das dificuldades que serão encontradas. Como o grão de mostarda que cresce e se torna maior que todas as hortaliças da terra, assim acontecerá com o evangelho, confiado à pregação da comunidade cristã e destinado a transformar o mundo. 101. O desentendimento entre Diótrefes e o Ancião se manifesta com a recusa por parte de Diótrefes a acolher os missionários itinerantes enviados pelo Ancião. Além disso, Diótrefes profere palavras injuriosas contra o Ancião e, não satisfeito com isso, impede os que querem receber os irmãos, expulsando da Igreja os que foram enviados (v. 10). 102. X. LÉON-DUFOUR (Leitura, IV, op. cit., 208) destaca que no texto não são indicadas as prerrogativas de Pedro, mas suas obrigações. 142

Capítulo 7 – A aparição no Lago de Tiberíades

A comunidade não pode esquecer que a eucaristia é um momento básico da vida eclesial e o ponto de chegada de toda a missão da Igreja. João destaca também as respectivas funções de Pedro e do discípulo amado, necessárias para o bem da comunidade de todos os tempos. A Pedro cabe a direção da comunidade, garantindo a fidelidade à tradição apostólica; ao discípulo amado, a tarefa do testemunho e de intérprete perspicaz da palavra de Deus. Ambas as funções se integram e se complementam, porque o ministério pastoral precisa constantemente da reflexão teológica e esta deve ser mantida íntegra por quem tem a responsabilidade da condução da Igreja103. O capítulo 21 de João representa, então, uma reflexão muito rica sobre as consequências do evento da ressurreição na história. Esta não é mais a mesma porque o Ressuscitado, por meio de sua comunidade, age continuamente na vida dos seres humanos, transformando os corações e proporcionando novos horizontes e esperanças.

103. F. MANNS, Jean 21, in La parola, op. cit., 213. 143

Capítulo 8

A experiência dos discípulos

Sabemos que o intuito dos evangelistas na apresentação das aparições de Jesus é destacar o sentido da ressurreição, com uma linguagem sóbria e discreta, baseando-se no testemunho dos discípulos, e não fazer uma descrição pormenorizada dos fatos, como se fossem historiadores. Por isso é necessário distinguir o evento histórico em si, em sua realidade concreta, da narração desse evento, obra de um redator que apresenta o acontecido, a saber, entre history e story, como se diz na linguagem técnica1. O que procuraram, então, destacar os autores sagrados nas narrativas das aparições?

1. O limite da linguagem humana Os evangelistas destacam que nas aparições os discípulos tiveram a consciência de estar na presença do Jesus vivo e recusaram interpretar a experiência como ilusão, fantasia ou alucinação, determinadas pelo desejo de rever Jesus. Nos textos, insiste-se sempre na iniciativa de Jesus, que se manifesta de forma 1. O termo history (história) se refere aos acontecimentos extratextuais, assim como se desenvolveram na realidade, isto é, ao que verdadeiramente aconteceu. Story indica a história narrada, redigida por um narrador que dá um realce diferente aos vários momentos da história real, sintetizando alguns eventos e desenvolvendo outros. Uma ficção televisiva representa uma story (estória), sempre diferente do acontecido, embora de certa forma fiel. 145

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

repentina e inesperada. A consideração vai, pois, de Jesus aos discípulos e não, ao contrário, dos discípulos a Jesus2. Também na síntese da fé pascal anterior a Paulo, em que se proclama “apareceu a Cefas e depois aos doze”, afirma-se que as aparições representam uma experiência oferecida que mudou profundamente a vida dos discípulos (1Cor 15,3b-5)3. Na apresentação dos eventos, os evangelistas usaram categorias humanas, relacionadas com o espaço e o tempo, pouco aptas para falar com propriedade do Ressuscitado, que, entrando na esfera divina, não pertence mais à história humana4. A intenção deles não foi fazer afirmações sobre a realidade de Jesus glorioso, descrevendo as características de sua natureza transcendente5, mas comunicar a experiência feita pelos discípulos, impossível de ser traduzida em palavras. Deve-se, então, evitar fixar a atenção aos pormenores maravilhosos do texto, como o fato de Jesus entrar pelas portas trancadas, pedir para ser tocado e para comer, tirando em seguida conclusões erradas sobre o corpo do Ressuscitado. Jesus em sua glória é transformado totalmente pelo Espírito Santo e seu corpo é moldado pela força que vem do alto; portanto, não pode ser pensado com as categorias físicas, nem é possível supor que seu corpo glorioso seja um corpo sutil, leve, ágil, com o poder de penetrar através da matéria (1Cor 15,44.50). De fato, as narrativas das aparições não são fotos tiradas no momento dos acontecimentos, nem gravações ao vivo, como mostra Marcos 16,12, dizendo que Jesus se manifestou “de outra forma”6. É preciso, portanto, ler as narrações com uma atitude de realismo crítico para não reduzir a ressurreição a uma simples reanimação de um cadáver7. Dizendo que os discípulos viram, procuraram tocar no corpo de Jesus, os auto2. Não é possível fazer uma cronologia das aparições, apesar de nos relatos aparecerem personagens, tempos e lugares diferentes. Esses elementos correspondem mais às exigências teológicas dos evangelistas do que às lembranças históricas da comunidade primitiva. 3. O verbo “aparecer” (ôphthe-), no aoristo passivo, é intransitivo. 4. Somente no evangelho apócrifo de Pedro 9,35-43 descreve-se com realismo grotesco o evento da ressurreição, como se Jesus fosse uma borboleta que sai do casulo. 5. X. LÉON-DUFOUR, Apparitions du Ressuscité et herméneutique, in La résurrection du Christ et l’exégèse moderne, Paris, Cerf, 1969, 153-173. 6. Se, por absurdo, no lugar em que Jesus apareceu tivesse havido uma câmera, nada teria filmado, sendo o objeto da filmagem uma realidade que não pertence a este mundo. J. DELORME, Résurrection et tombeau de Jésus. Marc 16,1-8 dans la tradition évangélique, in La résurrection du Christ, op. cit., 105-151. 7. Uma leitura literal dos textos é um absurdo. A respeito de Lucas 24,42-43, o leitor deveria se perguntar se o Ressuscitado, comendo o peixe assado, tem um sistema digestivo; da mesma forma, os discípulos de Emaús deveriam ter reconhecido logo Jesus ressuscitado, vendo suas chagas. Cf. G. O’COLLINS, Gesù risorto. Un’indagine biblica, storica e teologica sulla resurrezione di Cristo, Brescia, Queriniana, 1989, 130-140. 146

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

res sagrados usam uma linguagem antropomórfica que procura expressar em termos humanos uma experiência transcendente e em si indescritível. Também as palavras pronunciadas por Jesus por ocasião de suas manifestações devem ser entendidas com perspicácia. A diferença entre elas nos vários evangelhos é evidente e permite concluir que não são autênticas. Isso não significa que não sejam verídicas, mas simplesmente que não saíram da boca do próprio Jesus (ipsissima verba)8. Oferecem o sentido genuíno do evento pascal e de suas consequências para a vida da Igreja, de acordo com o pensamento de Jesus, sendo palavras dos autores sagrados que, iluminados pelo Espírito Santo, compreenderam em profundidade o significado da ressurreição de Jesus9. À luz dessas afirmações, deve-se reconhecer que as representações pictóricas ilustres, como as sequências dos filmes referentes a Jesus ressuscitado, não ajudam a compreender o sentido dos relatos evangélicos; aliás, com seu realismo exagerado, podem afastar o homem da fé, favorecendo sua descrença. Nos relatos das aparições, encontra-se um equilíbrio bem acertado de elementos, com que se procura destacar seja a continuidade do Cristo ressuscitado com o Jesus histórico (mostra as mãos e os pés, o lado, pede para comer e para ser tocado etc.), seja sua descontinuidade (aparece de repente no meio dos discípulos, passa pelas portas trancadas). Recusa-se a ideia helenística de uma ressurreição puramente espiritual, juntamente com uma visão negativa do corpo. Cabe ao leitor, à luz das narrativas, reconhecer que o Ressuscitado é o próprio Jesus crucificado, porém transformado pela ação de Deus10.

2. Diferentes tipos de narrativas Os relatos de aparição não são todos equivalentes, porque cada autor, à luz de seu projeto redacional específico, insiste em temas particulares, procurando responder às diferentes questões levantadas pelas comunidades a respeito da ressurreição de Jesus. Charles Harold Dodd11, com um amplo consentimento entre os exegetas, distingue três tipos de narrações.

8. É difícil determinar as palavras exatas que Jesus pronunciou em sua vida pública. A esse respeito há critérios específicos. 9. O estilo das palavras do Ressuscitado é o mesmo que o do evangelista. 10. Paulo, falando da ressurreição, usa a comparação do grão semeado na terra que, ao crescer, se transforma numa planta (1Cor 15,36-38). A diferença entre o grão e a planta é grande; porém, a cada semente corresponde uma planta determinada. Isso significa que Jesus é sempre o mesmo, embora radicalmente transformado. 11. C. H. DODD, The appearances of the Risen Christ. An Essay in Form-criticism of the Gospels, in R. LIGHTFOOT, Studies in the Fourth Gospel, Oxford, Blackwell, 1957, 9-35. 147

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

2.1. Narrativas sucintas Como indica a expressão, trata-se de relatos reduzidos ao essencial, sóbrios, com o mínimo de pormenores. Neles, após a indicação do tempo e do espaço, afirma-se que Jesus apareceu aos seus discípulos: à sua palavra de saudação e de paz segue-se o reconhecimento por parte dos beneficiários da aparição e, logo em seguida, a ordem da missão, que é parte integrante desse tipo de narração. Toda a narrativa é orientada para o mandato missionário, destacando que a obra evangelizadora da Igreja representa a plena realização do projeto salvífico de Deus. Provavelmente, já na tradição anterior aos evangelhos relacionava-se a missão com as aparições, de acordo com Paulo, que estabelece um nexo entre a revelação de Jesus recebida no caminho de Damasco e a pregação aos gentios (cf. Gl 1,15-16). Pertence a esse tipo de relato a aparição aos discípulos reunidos que se encontra em João 20,19-25 e em Mateus 28,16-20. Também o episódio da aparição às mulheres, que ocorre na manhã de Páscoa, relatado por Mateus 28,9-10, pode ser qualificado de narrativa sucinta, embora a missão delas seja limitada aos discípulos.

2.2. Narrativas circunstanciais Trata-se de narrativas em que falta a ordem da missão, nas quais o evangelista procura esclarecer problemáticas teológicas e apologéticas debatidas por sua comunidade. De fato, os cristãos da primeira geração se questionavam sobre o evento da ressurreição, perguntando-se se Jesus ressuscitado era o mesmo Jesus de Nazaré, se sua pessoa pertencia ao mundo dos fantasmas, se ele ainda podia entrar em contato com seus amigos. Interrogavam-se também a respeito do como o Ressuscitado podia ser encontrado na vida eclesial e, além disso, estavam em dúvida se a mensagem da vitória sobre a morte seria acolhida no mundo, produzindo fruto. Os autores sagrados oferecem uma resposta a esses assuntos, não com discursos teóricos, mas por meio de pormenores significativos no conjunto das narrativas das aparições, orientando os membros das comunidades a encontrar uma solução. Pertence a esse grupo de relatos a aparição aos discípulos no lago de Tiberíades, redigida com a finalidade de dar segurança aos cristãos da época do evangelista a respeito do êxito da missão (Jo 21,1-14). Acrescenta-se a perícope dos discípulos de Emaús, na qual o evangelista destaca a necessidade do escândalo da cruz e realça que Jesus ressuscitado se revela no caminho da vida por meio da palavra e da eucaristia (Lc 24,13-35). 148

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

2.3. Narrativas mistas As narrativas mistas são aquelas que fusionam elementos que pertencem às narrativas sucintas e elementos próprios das circunstanciais. Além de destacar os motivos básicos presentes nos relatos sucintos (manifestação repentina de Jesus, reação dos discípulos, envio em missão), o evangelista procura esclarecer alguns aspectos da fé pascal referentes à identidade de Jesus ou à vida eclesial. O relato joanino de Tomé, no qual se discute sobre a possibilidade de tocar no corpo do Ressuscitado (Jo 20,26-29), pertence, provavelmente, a esse tipo de narrativas, embora falte a ordem da missão, que se encontra, porém, na perícope anterior (Jo 20,19-25), da qual o relato em questão depende estreitamente. Da mesma forma, pode ser qualificada de narração mista o relato em Lucas 24,36-49, que, além de apresentar o esquema fundamental das narrações sucintas, se interessa pela realidade do corpo de Jesus, chegando a dizer que Jesus come um pedaço de peixe assado. Entra nessa categoria também a aparição aos Onze no “final canônico” do evangelho de Marcos, onde o autor realça a ordem da missão, lembrando a necessidade do batismo e os sinais que acompanham a pregação da Igreja (Mc 16,14-18). Também a aparição a Maria Madalena, relatada por João, parece pertencer a esse grupo de relatos, embora a missão que a mulher deve desempenhar não seja universal, mas se refira somente aos irmãos, aos quais anuncia: “Vi o Senhor” (Jo 20,11-18). Em particular, com a frase “Não me toques” (20,17), o evangelista mostra seu interesse pela identidade de Jesus ressuscitado, frisando a nova dimensão em que ele vive. No relato destaca-se também que a ressurreição de Jesus corresponde à sua glorificação junto do Pai. A dificuldade encontrada pelos exegetas na classificação dessa perícope mostra que o esquema proposto para qualificar as aparições é provisório e sem pretensão de ser aceito por todos12.

3. O que os discípulos “viram” Nos relatos joaninos das aparições, realça-se que os discípulos viram o Senhor e também o ouviram. Sabemos que a linguagem do Novo Testamento é

12. P. BENOIT (Marie Madeleine, op. cit., 281) pensa somente em dois tipos de narrativas de aparição: os relatos de reconhecimento e os relatos de missão. Na redação definitiva dos evangelhos esses dois modelos se sobrepõem; alguns versículos manifestam a sutura (Jo 20,21; Lc 24,44; Mt 28,17). 149

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

fluida e não rigorosa, com finalidade catequética de anunciar quem é Jesus13. Nela, usa-se a lembrança do Jesus histórico para falar do Ressuscitado, procurando evitar possíveis desvios espiritualistas, característicos da cultura do tempo. Os verbos “ver” e “ouvir” devem, portanto, ser interpretados com cautela. Além disso, nos capítulos do quarto evangelho referentes à ressurreição nota-se o uso de vários verbos de visão que têm sentidos diferentes, embora sejam traduzidos para o português sempre com o verbo “ver”. Pode ser útil resumir sinteticamente o tema que já conhecemos14.

3.1. O vocabulário joanino da visão O verbo grego blépein, que indica a simples percepção física de um objeto externo, isto é, a gravação de uma imagem visual na memória, tem pouco interesse em nossa análise. Aparece na perícope do túmulo vazio15 e em relação às brasas acesas que os discípulos veem na beira do lago de Tiberíades, depois da aparição de Jesus (21,9; cf. v. 20). Também o verbo “observar” (theo-reîn), que designa um olhar atento que analisa uma percepção visual recebida16, não merece muita atenção, sendo usado só para descrever a atitude de Pedro, que, ao chegar ao túmulo, observa os panos de linho por terra e o sudário (20,6), e em relação a Madalena, que, inclinando-se para o sepulcro, vê “dois anjos, vestidos de branco” (20,12.14). Mais interessante para o nosso estudo é o verbo oîda, que indica a visão que compreende. Há, contudo, uma diferença: quando é utilizado no tempo aoristo, significa uma compreensão ainda embrionária, como no caso do discípulo amado que ao chegar ao túmulo “viu e creu” (eîden kaì epísteusen, v. 8)17; quando se encontra no tempo perfeito, tomado do verbo horân, indica não somente o começo do processo de conhecimento, mas uma visão clara e esclarecida dos eventos, um entendimento pleno. Madalena, que após a experiência do Ressuscitado diz aos discípulos: “Vi o Senhor” (heôraka tòn 13. O intuito principal dos relatos é proclamar que Jesus ressuscitou e ajudar os cristãos a entender o sentido da ressurreição. 14. C. TRAETS, Voir Jesus et le Père en lui selon l’Évangile de Saint Jean, Roma, Gregoriana, 1967, 37-52; D. SMITH, Seeing pneuma(tic body): the apologetic interests of Luke 24,36-43, Catholic Biblical Quarterly 72/4 (2010) 752-772. 15. Madalena, na madrugada da Páscoa, “vê” a pedra retirada do sepulcro, assim como o discípulo amado, os panos de linho no sepulcro (20,1.5). Cf. João 1,29; 11,9; 13,22. 16. Cf. João 6,2.19; 9,8. 17. O evangelista destaca que os primeiros discípulos “foram e viram (eîdan) onde Jesus morava” (Jo 1,39), afirmando que se deram conta das condições da vida de Jesus e também que tiveram um primeiro conhecimento da identidade dele (cf. 1,46b). 150

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

Kýrion, v. 18), manifesta uma compreensão aprofundada da realidade da ressurreição, assim como os discípulos que comunicam a Tomé: “Vimos o Senhor” (heo-rákamen tòn Kýrion, v. 25). Vale notar que em João 20 os verbos de visão são colocados em crescendo18. Na perícope do sepulcro vazio, passa-se de uma visão genérica do túmulo e de seu conteúdo (v. 1.5) a uma observação específica dele (v. 6), para chegar a uma compreensão clara, embora fragmentária, do que verdadeiramente aconteceu com Jesus (v. 8). Na segunda cena, há uma passagem da observação atenta do sepulcro por parte de Madalena (vv. 12.14) ao reconhecimento do próprio Jesus que se mostra à mulher, à qual confessa que ele é o Senhor (v. 18). No terceiro relato, o Ressuscitado faz que os discípulos passem de uma compreensão limitada do evento pascal (v. 20) a uma intelecção plena dele (v. 25). Também Tomé, que começa sua experiência duvidando, chega a um reconhecimento completo e penetrante do Ressuscitado (v. 28). No texto, entre ver e crer há um nexo bastante estreito. Quando perante o túmulo vazio o discípulo amado “viu e creu” (no tempo aoristo, v. 8) ou quando Tomé exige “ver” para “crer”, querendo fazer uma experiência particular que possa levá-lo à fé (v. 25), os dois momentos não se identificam e cada um mantém sua autonomia, embora estejam relacionados entre si em continuidade dinâmica (cf. 9,37.38). O “ver” tem a função de impulsionar o processo dinâmico da descoberta da identidade de Jesus até levar a acreditar nele, exatamente como ocorre quando os discípulos veem os sinais que Jesus realiza em sua vida pública e acreditam nele (6,26-29). Passa-se, pois, do primeiro ao segundo momento por meio de uma opção pessoal19. Quando, porém, Maria Madalena e os discípulos reconhecem: “Vi/Vimos o Senhor” (heôraka/heo-rákamen), com o verbo horân no perfeito, pressupõese que no ato de ver essa opção pessoal já ocorreu. Nesse caso, o “ver” se sobrepõe ao “crer”; aliás, corresponde ao “crer”. Não é, porém, somente o tempo do verbo, mas também o contexto que manifesta o que o autor quer comunicar ao leitor20. 18. D. MOLLAT, La foi pascal, in Resurrexit, op. cit., 317. Cf. I. DE LA POTTERIE, Genesi della fede pasquale, op. cit., 193-194; F. MANNS, En marge des récits de la résurrection dans l’évangile de Jean: le verbe voir, Revue des Sciences Religieuses 57 (1983) 10-28. 19. A opção pessoal é necessária, como demonstram os fariseus que, embora vendo o que Jesus fez, não acreditaram nele (Jo 9,41; 12,39-40). 20. No quarto evangelho não se encontra somente a progressão “ver/crer”; destaca-se também a necessidade de “crer” para “ver”, embora essa formulação corresponda mais ou menos à anterior e ocorra com frequência menor. Dessa forma, realça-se que a fé embrionária dos discípulos chegará à maturidade com a visão dos sinais realizados por Jesus (cf. 1,50; 11,40). 151

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3.2. O encontro com o Senhor Levantam-se as questões: O que os discípulos “viram” de verdade? O que os impulsionou a crer em Jesus ressuscitado? O que aconteceu neles?

3.2.1. Opiniões dos exegetas Alguns autores negam qualquer tipo de “ver” por parte dos discípulos e supõem que a fé na ressurreição seja a consequência direta da interpretação da morte de Jesus feita por eles à luz do Antigo Testamento. Aí, Deus não deixa o justo ao arbítrio de seus agressores, mas o liberta e o reabilita. De fato, a aparente derrota da cruz não apagou a fé dos discípulos, mas a fez desabrochar, ajudando-os a compreender, além das aparências, que Jesus não foi abandonado ao poder da morte, mas foi ressuscitado por Deus. A cruz se tornou, assim, o lugar da manifestação de Deus, o último grande momento da revelação do amor de Deus que começou com a vida pública de Jesus. Deus, reconhecido por Jesus no Getsêmani como Pai (Abbá), foi obrigado a intervir21, por causa de sua fidelidade a seu Filho, sem com isso negar que a ressurreição de Jesus foi uma verdadeira descoberta por parte dos discípulos e não a simples projeção subjetiva de sua esperança no triunfo da vida. Eles não criaram a realidade da ressurreição, mas a descobriram aos poucos, à luz da palavra de Deus22. Segundo esses autores, também a consideração da existência de Jesus, relatada nos evangelhos, leva à mesma conclusão. Em sua vida pública, Jesus manifestou ser o Messias e anunciou o advento do Reino, mostrando que seu sofrimento estava previsto no plano de Deus para a salvação de Israel e de todas as nações. Sua ressurreição foi a lógica consequência da afirmação de sua messianidade, confirmando dessa forma o valor escatológico e definitivo de sua pessoa. Propondo essa interpretação da ressurreição de Jesus, a intenção desses exegetas foi evitar considerar Deus como interferindo na causalidade humana com uma ação específica, vinda de fora e feita num momento determinado da história, porque isso, de certa forma, significaria rebaixá-lo a uma causa mundana. Esforçam-se também para superar a tendência de objetivar o trans21. A. TORRES QUEIRUGA, Repensar a ressurreição. A diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura, São Paulo, Paulinas, 2004, 80.168. Cf. P. SEQUERI, Il Dio affidabile: saggio di teologia fondamentale, Brescia, Queriniana, 1996, 209. 22. A consideração do Antigo Testamento em relação à morte de Jesus deve ser atribuída aos evangelistas e não tanto aos discípulos históricos de Jesus. 152

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

cendente, como faz o Novo Testamento quando representa Jesus ressuscitado como uma pessoa física que se manifesta. As aparições representariam, então, somente um recurso literário, mítico e pré-crítico, por meio do qual os discípulos procuraram comunicar aos seus contemporâneos que sua fé no Ressuscitado não era uma quimera, mas uma realidade. Essa interpretação não convence, porque a fé na ressurreição seria o simples fruto de uma reflexão retroativa, uma dedução iluminada pela Escritura a partir do evento da cruz e da vida histórica de Jesus que encontrou aceitação na comunidade. Ainda menos persuasivas são as explicações do passado que consideram as aparições como fruto da consciência alterada dos discípulos, num clima de exaltação psicológica e emotiva depois do drama do calvário. Tampouco merecem crédito as tentativas de resolver o contraste entre a derrota na cruz e a fé em Jesus Messias pensando que o Ressuscitado seja um mito23. Tampouco é aceitável a explicação de Rudolf Bultmann, que, negando qualquer valor às aparições, pensa que o evento da ressurreição limita a causalidade ultraterrena e eterna de Deus, transformando-a numa ação histórica, circunscrita no tempo. Para ele, o anúncio da ressurreição não passa de um mito que deve ser reinterpretado. Com o desejo de desmitologizar o relato bíblico, afirma que a fé na ressurreição se identifica com a “fé na cruz como evento de salvação”24; com isso, recusa oferecer ao anúncio do Ressuscitado qualquer base histórica, movido pela preocupação luterana de basear a fé somente na palavra de Deus. Declara, portanto, que Jesus ressuscitou “no querigma”, isto é, na pregação da comunidade, e não na realidade. Consequência disso é que a Páscoa não representa a ação de Deus em relação a Jesus, mas a transformação dos discípulos que começaram a anunciar a ressurreição de Jesus. Também deve ser recusada a teoria de Willi Marxsen, segundo a qual a ressurreição se esgota numa simples “interpretação” (Interpretament) da comunidade, que está convencida de que “a causa de Jesus continua”. A teoria se interessa mais pela missão e pela futura pregação da Igreja do que pelo 23. O platônico Celso e o neoplatônico Porfírio consideravam as aparições invenções ou fantasias. Da mesma forma pensa H. S. Reimarus. 24. R. BULTMANN (Nuovo Testamento e mitologia. Il manifesto della demitizzazione, Brescia, Queriniana, 1970, 169) afirma: “A fé na ressurreição de Jesus corresponde à fé na cruz como evento de salvação”. Portanto, acreditar na ressurreição corresponde a acreditar na eficácia salvífica da cruz, ou seja, na cruz como evento escatológico. Para Bultmann, a cruz é um mero símbolo que realça a transitoriedade dos valores humanos, declarando que o único valor é a caridade, em força da qual é oferecida a todos a possibilidade de uma vida autêntica. A cruz não é salvadora por causa do sacrifício de Cristo, porque ele é um simples rabi desconhecido e não o Filho de Deus. 153

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

evento da ressurreição em si. O texto do evangelho não oferece, pois, nenhuma certeza de que Jesus está vivo de verdade25. Da mesma forma deve-se recusar a perspectiva que considera o pranto das mulheres como o lugar em que foram elaborados os relatos da ressurreição, na convicção de que os entes queridos, já falecidos, continuam presentes na vida dos que ficam, porque esse raciocínio não passa de uma projeção de desejos subjetivos26. Tampouco a conversão dos discípulos e o nascimento da comunidade, juntamente com a experiência do perdão, a começar por Pedro, são motivos suficientes para chegar à fé na ressurreição de Jesus, porque o evento da ressurreição e as aparições antecipam a conversão27. Por maior razão, não se pode pensar que a causa da fé no Ressuscitado foi a culpabilidade reprimida de Pedro que contagiou os Doze, levando-os a confessar que Jesus está vivo28. Todas essas tentativas de explicação ignoram o elemento mais importante, que é a experiência do próprio Jesus ressuscitado feita pelos discípulos, realçada nos relatos de aparição. Destacam-se, assim, as consequências das aparições, não sua causa. Os pormenores dos textos não devem ser tomados ao pé da letra, mas é problemático negar que o Ressuscitado se manifestou de verdade, pois isso constitui a base da fé dos discípulos. Sem essa experiência básica que veio de fora, o anúncio de fé da comunidade primitiva não teria um alicerce sério e confiável29.

3.2.2. Encontro com o Ressuscitado e fé pascal Hans Kessler realça que para acreditar na ressurreição de Jesus os discípulos precisaram de um “impulso qualitativamente novo”, realizado por Deus e mediado por Jesus glorificado. Foi necessário o autotestemunho do Ressuscitado, anterior aos próprios “ver” e “ouvir” dos discípulos que os relatos bíblicos procuram descrever de forma humana, correndo o risco de 25. W. MARXSEN, Die Auferstehung Jesu von Nazareth, Gütersloh, Gütersloher Verlagshaus, 1972. 26. J. D. CROSSAN, Will the real Jesus Please Stand Up?, Grand Rapids, Baker Book House, 1998. 27. E. SCHILLEBEECKX, Gesù, la storia di un vivente, Brescia, Queriniana, 1974, 399-418. O mesmo autor, em La questione cristologica. Un bilancio (Brescia, Queriniana, 1980, 96), reconhece, porém, que a experiência dos discípulos é fruto de um encontro objetivo, inesperado e totalmente gratuito. 28. Cf. G. LÜDEMANN, The Resurrection of Jesus: History, Experience, Theology, London, SCM, 1994. 29. Cf. G. O’COLLINS, Gesù risorto, op. cit., 130-140; W. KASPER, Gesù il Cristo, Brescia, Queriniana, 1974; F. G. BRAMBILLA, Il crocifisso risorto, Brescia, Queriniana, 1999; J. MOLTMANN, O caminho de Jesus Cristo. Cristologia em dimensões messiânicas, Petrópolis, Vozes, 1994. 154

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

mitificar o evento30. Nesse encontro misterioso, que está além das possibilidades imaginativas humanas, Jesus mudou o coração dos discípulos, sua sensibilidade e suas perspectivas, ajudando-os a entender o valor definitivo da sua pessoa para a história da humanidade. O alicerce da fé pascal foi, pois, o próprio Jesus ressuscitado, que objetivamente se mostrou vivo no meio dos seus, garantindo-lhes que a comunhão instaurada com eles em sua existência terrena não tinha acabado, mas continuava de outra forma. Sem essa intervenção originária, qualitativamente nova e, portanto, diferente dos fenômenos humanos, o evento da ressurreição de Jesus, que representa um início novo, comparável ao ato da criação, teria ficado em silêncio; tampouco teria explicação o testemunho corajoso dos discípulos até o martírio31. Dificilmente um membro do povo judeu, desiludido pelo escândalo do Messias crucificado, teria acreditado. Comenta Walter Kasper: “Não é a fé que fundamenta a ressurreição, mas a mesma realidade do Ressuscitado que aparece aos discípulos que legitima o crer deles”32. As aparições são, portanto, algo a mais do que uma visão33; são a irrupção do Deus invisível na esfera do visível. Isso não significa que Deus, abusando de sua autoridade, interveio na ordem das causas mundanas que ele mesmo estabeleceu, nem que ele se intrometeu na situação humana, porque a ação de Deus se situa num plano diferente do das causas naturais. O homem contemporâneo, atribuindo um valor absoluto ao discurso científico e recusando qualquer reflexão metafísica, não entende essa perspectiva. Ninguém nega que as ciências, por causa de seu estatuto metodológico, devem prescindir da existência e da ação de Deus. Não se pode, porém, reduzir a realidade ao que o ser humano pode compreender, verificar, medir e pesar, porque essa visão é limitada.

30. A apresentação do Ressuscitado em forma humana feita pelos evangelistas é uma operação indispensável para tornar acessível aos homens de todos os tempos o anúncio básico da fé cristã, fixando-o no imaginário coletivo. 31. H. KESSLER, La resurrezione di Gesù Cristo, op. cit., 245-255; 435-436. C. H. DODD (Il fondatore del cristianesimo, Torino/Leumann, EllediCi, 1975, 175-176) afirma a respeito da ressurreição que os evangelistas racionalizaram “o que para as testemunhas oculares constituía uma certeza imediata e intuitiva, que não precisava de justificações. Estavam plenamente seguros de terem encontrado Jesus e não tinham nada para acrescentar”. “Algo” operou neles uma transformação, cuja natureza é difícil de ser determinada e cuja interpretação nos é transmitida pelos relatos evangélicos. Tratou-se do início de uma nova série de eventos dos quais o mundo foi testemunha. 32. W. KASPER, Gesù, op. cit., 193. 33. As aparições de Jesus ressuscitado são diferentes das visões que se encontram na história das religiões e também na mística cristã, que poderiam se esgotar em simples produções da fantasia ou do subconsciente. Fala-se de visões em Atos 2,16; 7,55, 2 Coríntios 12,1, Apocalipse 1,10; 4,2. A fé dos primeiros cristãos não se baseou em elementos visionários. 155

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

A Bíblia oferece uma compreensão histórico-salvífica da realidade, como história na qual Deus opera junto às causas humanas, não se substituindo às leis da natureza ou permitindo arbitrárias exceções34; opera não só em momentos cruciais, mas com uma ação constante e transcendente que abrange toda a realidade e sustenta todo o ser da criação. De fato, a criação não é um evento do passado, mas um acontecimento em contínua realização, porque deixadas a si mesmas e sem o sustento de Deus as coisas cairiam no nada, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28). Além disso, é preciso realçar que Deus age não somente por meio das causas naturais, mas em particular por seu amor, atraindo, interpelando, fazendo que a criatura, iluminada pela graça, se torne disponível a entender seu mistério. Isso aconteceu nas aparições, nas quais houve uma intervenção de Deus que, com o poder de seu amor, manifestou aos discípulos que Jesus ressuscitara, mostrando-lhes que a cruz não representava uma derrota, mas uma vitória (cf. Gl 1,16). Não houve, então, nenhuma ingerência na situação humana, porque a ação de Deus se realiza em outro nível. Por isso, é preciso especificar o que se quer dizer quando se afirma que o Ressuscitado “está acima de toda possível percepção fisicamente constatável ou manipulável” e também quando se destaca que ele se torna “por necessidade intrínseca inacessível à captação sensível” por parte do ser humano que vive no tempo e no espaço35. Esta afirmação corresponde à verdade somente se significa que nas aparições o próprio Jesus deu certeza aos discípulos de que voltou para a vida. É difícil dizer como isso aconteceu, sem oferecer provas de tipo diretamente empírico a respeito de sua realidade transcendente. De fato, os discípulos não creram antes de ver o Cristo36; sua fé foi um dom do Ressuscitado, como destaca João, que faz depender dele a formação da comunidade e a missão37.

3.2.3. A fé dos discípulos As aparições representam a experiência originária, necessária para o nascimento da fé pascal. Por isso, é preciso afirmar que os discípulos acreditaram 34. M. BORDONI, Gesù di Nazaret. Signore e Cristo. Saggio di cristologia sistematica, Roma, Herder/ Università Lateranense, 1982, II, 519-606 (530); H. KESSLER, La resurrezione, op. cit., 263-275. 35. A. TORRES QUEIRUGA, Repensar, op. cit., 86.89.172-173. 36. W. KASPER, Gesù, op. cit., 197-198. 37. Algo de semelhante aconteceu com Paulo no caminho de Damasco, em que Deus se comprouve revelar nele — “em mim” — o seu Filho ressuscitado (Gl 1,16). O texto realça a força de penetração que teve o encontro com Jesus. Nos discípulos não houve uma conversão como em Paulo. 156

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

porque “viram” o Ressuscitado. Só por esse motivo o discípulo amado, Pedro, Madalena e os outros discípulos manifestaram sua viva consciência de estar na presença daquele que conheceram na Palestina e que foi morto pelos adversários. Nem a morte ignominiosa na cruz, nem a vida histórica de Jesus, iluminadas pela palavra de Deus, foram suficientes para crerem no Ressuscitado. Para expressar a experiência feita pelos discípulos nas aparições, foram necessárias várias mediações: a lembrança do Jesus histórico, a espera judaica da ressurreição, a constatação do túmulo vazio, a convergência das experiências dos membros da comunidade, a concórdia básica na explicação dessa experiência, a solução das dúvidas, a consideração da Escritura, o entusiasmo que acompanhou o envio em missão38. Nas aparições, a revelação do Ressuscitado aconteceu, portanto, “na forma de algo imediato, porém mediado”, isto é, esclarecido à luz dos fatores supracitados, porque sem essas mediações ninguém poderia falar de Jesus glorificado39. Essa experiência concreta e indescritível do Ressuscitado estimulou todas as faculdades interiores dos discípulos: o ver, o ouvir, o tocar, o gostar, assim como o maravilhar-se e o alegrar-se, levando-as a um nível superior à dimensão sensível. Por isso é possível falar dessa experiência originária dos discípulos só em sentido analógico, porque viram e não viram, tocaram e não tocaram, reparando que no encontro com Jesus houve descontinuidade na continuidade. Tiveram a consciência de estar diante do mesmo Jesus que conheceram, mas que se lhes manifestou de forma diferente. Sua descoberta foi progressiva, até reconhecerem em Jesus o seu Senhor e o seu Deus, sendo fiéis até o martírio. Kessler procura aprofundar mais esse encontro dos discípulos com o Senhor40, afirmando que Jesus ressuscitado é ao mesmo tempo objeto da fé pascal e alicerce da mesma fé. O objeto é algo de real que se manifesta a um sujeito. Não necessariamente é algo de externo, embora nossa imaginação nos leve a pensar nisso e os evangelistas, usando a linguagem comum, apresentem a experiência de Jesus que se manifesta como externa aos discípulos. De fato, nem tudo o que é interior é puramente subjetivo, embora toda percepção seja uma elaboração do sujeito, como nos ensina a filosofia. Foi, pois, a experiên38. Na perícope de Madalena destaca-se também a necessidade da purificação interior. 39. C. GRECO, La resurrezione di Gesù Cristo e le origini della chiesa, in E. CATTANEO, A. TERRACCIANO (Ed.), Credo ecclesiam. Studi in onore di Antonio Barruffo SI, Napoli, D’Auria, 2000, 381-391 (382). Cf. A. C. G. PILLAI, The two Aspects of the Resurrection, in Studia Evangelica, Berlin, Akademie Verlag, 1973, VI, 417-428. 40. H. KESSLER, La resurrezione, op. cit., 217-243 (226). 157

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

cia objetiva de Jesus ressuscitado que se tornou nos discípulos o alicerce de sua fé. Isto significa que eles descobriram o Ressuscitado no ato de fé41. Com efeito, é impossível experimentar o encontro com o Ressuscitado, ficando numa posição neutral, e somente depois disso fazer a opção de fé. Esse raciocínio pode criar certa dificuldade ao homem de hoje, acostumado a tratar com objetos experimentáveis. A realidade da ressurreição é, porém, algo totalmente diferente e pode ser percebida só por meio de um ato que eleva a pessoa acima de sua existência terrena, introduzindo-a na nova realidade realizada por Deus; e esse ato é a fé. Portanto, os discípulos viram com os olhos da fé e de repente foram transformados em criaturas novas. Compreenderam, então, a realidade objetiva do Ressuscitado no ato subjetivo de fé. Responderam a Jesus ressuscitado, que se lhes manifestou de modo único e, de certa forma, irresistível, fazendo uma opção livre, em que graça e liberdade se encontraram. Apesar das dúvidas, deixaram-se conquistar por Jesus vivo, chegando a “ver” de modo correto e a entender o que ocorreu na Páscoa. Por isso, também para os primeiros cristãos foi necessária a fé. Se as primeiras testemunhas não precisassem “crer” em Jesus vivo como devem crer os outros fiéis, elas teriam simplesmente “constatado” a ressurreição, rebaixando-a a um evento deste mundo. A fé dos cristãos de todas as gerações tem a mesma dinâmica que a das primeiras testemunhas. Há, porém, uma diferença: se cada cristão faz um encontro pessoal com o Ressuscitado, sua experiência é análoga a respeito daquela feita pelos discípulos, porque as aparições representam algo de extraordinário que não pode ser repetido. Para os fiéis das gerações que vieram depois da primeira, as mediações são outras: em primeiro lugar, o testemunho da primeira comunidade e a convicção de que o Ressuscitado, por meio do Espírito, age no íntimo de cada pessoa; em seguida, a vida cristã vivida na comunidade que confessa que Jesus venceu a morte; além disso, a presença de Jesus glorificado nos sacramentos e nos irmãos, em particular nos mais necessitados. É, portanto, necessário distinguir entre a experiência pascal originária do Ressuscitado, feita pelos discípulos, e a experiência sucessiva dos cristãos de todas as épocas. Levanta-se a questão: os primeiros discípulos podem ser considerados privilegiados? De certa forma sim, por causa da experiência direta e única do Ressuscitado. Como os outros cristãos, porém, eles aderiram ao evento 41. Os discípulos tiveram consciência de estar diante de alguém que não era o produto da fantasia, nem um símbolo mitológico, nem o arquétipo das esperanças humanas. 158

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

inesperado da Páscoa com uma decisão de fé pessoal. Além disso, tiveram uma grande responsabilidade por serem os primeiros a acreditar no evento da ressurreição, abrindo o caminho para os cristãos dos tempos ulteriores42. Advém daí outra questão: a experiência dos discípulos pode ser comparada às experiências místicas dos santos ou às aparições de Nossa Senhora que aconteceram em vários lugares (Lourdes, Fátima etc.)? De certa forma sim, porque em ambos os casos houve uma experiência do transcendente. Há, porém, uma diferença gritante: só os discípulos experimentaram que quem lhes apareceu era o mesmo que tinham conhecido durante sua vida na Galileia. A experiência da identidade entre o Ressuscitado e Jesus de Nazaré constitui a diferença; esse elemento não faz parte das outras aparições.

3.2.4. Ressurreição, evento histórico e supra-histórico Se a ressurreição não pode ser provada porque sai do âmbito da constatação, implica, porém, vários elementos que são historicamente verificáveis43: Jesus existiu e pregou o evangelho do reino de Deus, foi crucificado, pouco antes de sua execução todos os discípulos fugiram; contudo, logo depois anunciaram sua ressurreição, reconstituíram a comunidade dispersa, enfrentando as hostilidades dos adversários, até a morte. O evento da ressurreição se alicerça, assim, na história, a respeito seja de seus pressupostos, seja de suas consequências. Dessa forma, o Ressuscitado entra no campo da experiência humana; em si, porém, ultrapassa a história e deve ser pensado como um evento que está no limite entre a realidade constatável e a que transcende este mundo, pertencendo a outra dimensão do real, de tipo não científico, que não pode ser excluída a priori, porque nem todo o real é objeto de verificação44. Com uma imagem plástica, a ressurreição poderia ser colocada no ponto em que a tangente toca na circunferência. Se alguns autores consideram a ressurreição um “evento histórico” é só para afirmar que ela aconteceu em um determinado momento da história e se refere ao homem Jesus45. Trata-se, porém, de uma historicidade indireta, deduzida dos acontecimentos lembrados, sendo a ressurreição a obra escato42. Para H. Kessler é preciso distinguir entre realidade constituinte da fé cristã — o Ressuscitado que aparece — e realidade constituída — a Igreja, na qual o Ressuscitado vive e se manifesta por meio do Espírito. 43. H. KESSLER, La resurrezione, op. cit., 121-216. 44. W. KASPER, Gesù, op., cit., 129. 45. W. PANNENBERG, Cristologia. Lineamenti fondamentali, Brescia, Morcelliana, 1974, 98-122; J. DANIELOU, La Résurrection, Paris, Seuil, 1969, 47-50. 159

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

lógica de Deus e a revelação definitiva de sua fidelidade ao mundo criado. É, portanto, mais correto qualificar a ressurreição como evento objetivo suprahistórico e supratemporal, que mantém uma relação com a história e que é sinal do amor benevolente que Deus manifesta ao ser humano por meio de Jesus. Consequência disso é que, se o Ressuscitado pertence a uma situação supratemporal, pode tornar-se contemporâneo a todos os seres que vivem no tempo, apesar da época em que aparecem na história. É preciso, então, evitar dois excessos: considerar a ressurreição a partir de uma perspectiva meramente positivista e historicista; e pensar que ela é puro mistério, sem ligações com a história. Neste mundo, a única verificação possível do anúncio de Jesus ressuscitado é mediada pela fé dos discípulos; no momento escatológico, porém, o evento se tornará experiência imediata de todos.

3.2.5. A fixação da experiência As narrativas das aparições de Jesus dependem da redação dos evangelistas, que ocorreu dezenas de anos depois da experiência básica das primeiras testemunhas. Foram eles que introduziram nos relatos os pormenores necessários para a eficácia da catequese e da pregação, sem com isso serem infiéis à experiência básica primitiva. Os relatos representam, assim, uma elaboração posterior que se esforça por representar em termos humanos o que os discípulos experimentaram na Páscoa, e devem ser considerados como o fruto secundário da ação de Deus na sensibilidade e na estrutura psicofísica dos evangelistas, à luz das recordações da vida histórica de Jesus. Ele age como em sua existência terrena, chamando Madalena pelo nome, desejando a paz aos discípulos, convidando-os a continuar a pesca46. Sabemos que, embora não sejam “reportagens”, as narrativas não são fruto da criação arbitrária da comunidade, mas anúncio, compreensível a todos, de que Deus se manifestou aos discípulos por meio de Jesus ressuscitado. O que, de fato, se verificou não é mais conhecível historicamente, nem pode ser reconstruído a posteriori por nós, intérpretes do século XXI, com o risco de fazermos uma leitura arbitrária e indevida do evento, de acordo com nossa sensibilidade e nossa cultura47. São suficientes os relatos evangélicos que, sendo inspirados, nos testificam a experiência da comunidade primitiva. 46. P. SEQUERI, Il Dio, op. cit., 201-211. 47. K. RAHNER (La cristologia tra esegesi e dogmatica, in Nuovi Saggi, Roma, Paoline, 1973, IV, 253-291) convida os exegetas modernos a livrar-se da presunção de entender os eventos narrados pelos evangelhos melhor do que os antigos. 160

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

4. A linguagem da ressurreição Os autores sagrados, conscientes de que a ressurreição não pode ser representada de forma adequada, mas somente indicada como uma realidade que sobrepuja a realidade humana, usaram uma linguagem simbólica, a única capaz de atingir o transcendente, sendo os conceitos humanos sempre inadequados48. Trata-se de uma linguagem humilde que, falando das realidades escatológicas, não pretende ter a clareza da linguagem científica; sua função é apontar para o além, ao qual esses eventos pertencem49. As expressões usadas para falar do Ressuscitado são várias.

4.1. Despertar e levantar(-se) No Novo Testamento, para falar da ressurreição de Jesus, usa-se o verbo egeírein, que significa “despertar/acordar” do sono, de um estado de inconsciência ou letargia; hoje poder-se-ia dizer do coma profundo. Trata-se do verbo da tradição, usado nos sinópticos (Lc 24,6.34; Mc 16,6; Mt 28,6) e no primeiro sermão de Pedro após o Pentecostes (At 3,15), que na forma passiva indica a ação de Deus que acorda Jesus da rigidez da morte. João o emprega nos episódios da purificação do templo e da pesca milagrosa para indicar a vitória de Jesus sobre a morte (Jo 2,22; 21,14). Trata-se do mesmo verbo que indica o repouso físico referido a Jesus que está dormindo no barco no episódio da tempestade acalmada (Mt 8,25), embora seja usado, em sentido metafórico, na perícope da filha de Jairo que volta para a vida terrena, porque “não está morta, mas dorme” (Mc 5,39.41). Paulo considera os finados como aqueles que dormem e devem ser acordados (1Ts 4,15). Vem daí a palavra “cemitério”, que significa “dormitório”50. Os evangelistas se referem à ressurreição também com o verbo anistánai, que significa “levantar(-se)”, pôr(-se) em pé, endireitar a partir de uma posição deitada ou sentada, e que pode ser usado tanto no modo transitivo (At 2,22; 9,41) como no intransitivo (Mc 9,10.31)51. Jesus ressurgindo da morte, como 48. Cf. A. NITROLA, Trattato di escatologia. Spunti per un pensare escatologico, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2001, I, 173-251. 49. J. DELORME, La résurrection de Jésus dans le langage do Nouveau Testament, in Le langage de la foi dans l’Écriture et dans le monde actuel. Exégèse et catéchèse, Paris, Cerf, 101-182. Cf. H. KESSLER, La resurrezione, op. cit., 255-261. 50. Também no Antigo Testamento, com a imagem do “acordar” realça-se a volta para a vida (2Rs 4,31; Is 26,19; cf. Dn 12,2). 51. O verbo egeírein é usado também no sentido ativo de “levantar”: Jesus toma pela mão a sogra de Pedro “e levanta-a” (êgeiren, Mc 1,31); na forma reflexiva, Maria se levanta para ir ao encontro 161

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

os outros falecidos que ele chamou para a vida (Mt 9,25; Lc 7,14; At 9,4041), põe-se de pé, levanta-se, como destaca João no relato do túmulo vazio (Jo 20,9)52. Tanto a imagem do “despertar” como a do “levantar” são metáforas que transpõem termos usados na vida corriqueira para uma situação que supera os horizontes deste mundo53.

4.2. Viver Em seu esforço hermenêutico, os evangelistas falam do evento da ressurreição também com a categoria da “vida” (zo-ê), termo menos frequente do que os verbos “despertar” e “levantar”, mas não raro54. Preferido por Lucas (Lc 24,5.23; At 1,3; 3,15; 25,5.19), é presente também no quarto evangelho quando Jesus, dizendo “eu vivo”, conforta os discípulos, apontando para a sua situação gloriosa (Jo 6,57; 14,19; cf. 5,26). Também o verbo “vivificar” (zo-opoieîn), que tem o mesmo valor semântico de viver (5,21), expressa a vitória sobre a morte. Por isso, no Apocalipse a comunidade joanina apresenta o Ressuscitado como “o vivente” que foi morto mas está vivo para sempre (Ap 1,17-18; 2,8)55. O termo “vida” é, então, outro modo figurado para falar da ressurreição a partir da realidade da existência biológico-natural56, indicando uma vida radicalmente renovada, divina, que exclui a morte (Hb 7,24; 1Cor 15,45; de Jesus (Jo 11,31; cf. Lc 11,8; At 3,7). Equivale, então, ao verbo anistánai (Mc 8,31; 9,9; 10,34; cf. At 2,24.32; 17.32). A correspondência entre os dois verbos é destacada em Atos 10,40-41: “A este ressuscitou (êgeiren) Deus ao terceiro dia, e fez que se manifestasse, não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido de antemão; a nós, que comemos e bebemos juntamente com ele após seu ressuscitar (anastênai) dentre os mortos”. 52. Para indicar o tipo particular de levantamento os autores sagrados acrescentam “dentre os mortos” (At 3,15; 10,41). O verbo é usado também para a reanimação de Lázaro (11,23.24). 53. A imagem do levantamento (anistánai) é usada no Antigo Testamento para falar da restauração do povo exilado (Os 6,2: Ez 37,10) ou da ressurreição dos falecidos (Is 26,19; Dn 12,2). Cf. L. COENEN, Resurrezione, in Dizionario dei concetti biblici del Nuovo Testamento, a cura di L. Coenen, E. Beyreuther, H. Bietenhard, Bologna, EDB, 1976, 1579-1588. 54. H. G. LINK, Vita, in Dizionario dei concetti biblici, op. cit., 2008-2018. 55. O quarto evangelista usa a categoria “vida” (Jo 5,25.29) também para a futura ressurreição do cristão (cf. 11,25). 56. Como as outras categorias referentes à ressurreição, o termo “vida” tem sua base no Antigo Testamento. Em Sabedoria 5,15 lê-se: “Os justos vivem para sempre”, referindo-se ao seu destino glorioso; em Daniel 12,2: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno”. Cf. 2 Macabeus 7,9.14.23.36. Cf. C. A. BLANCO, Hipótesis principales sobre el origen de la idea de resurrección. Los muertos en el judaísmo, Estudios Bíblicos 68/4 (2010) 429-472. 162

Capítulo 8 – A experiência dos discípulos

Ap 1,7). Para caracterizá-la melhor, João e os outros evangelistas falam de vida “eterna” (Jo 3,16.36; 6,27.40.47.54; Mt 25,46), conscientes de que com o simples termo “vida” não é possível expressar adequadamente o objeto da esperança cristã. É preciso destacar que os termos acordar, levantar e viver realçam mais a continuidade entre o Jesus terreno e o Ressuscitado, fazendo apenas entrever a mudança profunda que ocorre nele por causa da ressurreição. Indicam somente uma modificação de atitude ou de posição por meio de um contraste. Situam-se, assim, no eixo antes/depois, descrevendo uma situação posterior que se opõe à anterior: do sono Jesus é acordado, da posição horizontal é levantado, da morte passa para a vida. No Novo Testamento há, porém, outras categorias para falar do estado vitorioso de Jesus.

4.3. Elevar, glorificar A categoria da elevação (hypso-thênai), referente ao evento pascal em sua globalidade, é usada por João nas três predições da paixão (Jo 3,14; 8,28; 12,32). Os três trechos correspondem aos três anúncios da paixão característicos dos sinópticos, nos quais, porém, nunca se fala de levantamento. O termo tem em si certa ambiguidade, apontando tanto para o levantamento físico na cruz como para a elevação de Jesus à glória, após a paixão (12,32-33). Tanto a paixão como a ressurreição podem, assim, ser consideradas uma elevação. Também Lucas e Paulo utilizam essa categoria. Em particular, no hino da carta aos Filipenses, provavelmente anterior a Paulo, sem recorrer ao vocabulário clássico da ressurreição, fala-se dela como da “superexaltação” de Jesus (hypery´pso-sen), operada por Deus, que “o exaltou soberanamente”. O uso do verbo “elevar” é tão originário e primitivo quanto “acordar” ou “levantar”, o que indica que desde o início se recorreu a vários registros para falar da ressurreição. O esquema linguístico presente no termo “elevar” é diferente daquele relativo às categorias acordar, levantar ou viver. Não se utiliza o eixo antes/ depois, mas descreve-se o evento da ressurreição como um movimento espacial do baixo para o alto. No Novo Testamento usa-se, assim, seja o esquema temporal, seja o esquema espacial para falar do mistério do Ressuscitado, obrigando o leitor a passar de um plano de significação para outro. É bastante evidente que com o esquema baixo/alto, favorecido pela visão cosmológica da Bíblia, que imagina simbolicamente a esfera divina acima do nosso mundo e o inferno na profundidade da terra (cf. Sr 44,16; 48,9), 163

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

os autores sagrados realçam mais a descontinuidade entre Jesus terreno e o Ressuscitado, apresentando provavelmente menos riscos de desvios na interpretação do evento pascal57. Pertence ao esquema vertical também o verbo “glorificar” (doxázein), usado muitas vezes pelo quarto evangelista a respeito de Jesus ressuscitado (Jo 7,39; 11,4; 12,16.23; 13,31)58. Como sabemos, o termo não indica o ato que acontece depois da ressurreição, mas identifica-se com a própria ressurreição, destacando o renome, o prestígio e o esplendor que Jesus alcançou no evento pascal59. A categoria, que tem um valor semântico quase igual ao termo “elevar”, é muito apta para destacar a transformação qualitativa que ocorre em Jesus que vence a morte, mostrando ainda mais a riqueza do vocabulário bíblico para caracterizar o evento da ressurreição60.

4.4. Em síntese A análise da linguagem da ressurreição realça, então, que se pode falar do evento somente por meio de símbolos e de metáforas e não com a linguagem técnico-científica. A variedade dos termos empregados pelos evangelistas mostra que eles souberam usar sua inventividade, multiplicando as perspectivas, criando fórmulas novas de acordo com as necessidades, nunca satisfeitos com um único termo. Isso aconteceu desde o começo da pregação da Igreja. Segue-se que a categoria da ressurreição, com que normalmente nos expressamos, deve ser decodificada, sem pensar que seja a única privilegiada; não deve, pois, ser repetida de forma fixa, engessada e vazia. Vale a pena lembrar que as categorias neotestamentárias usadas para falar da ressurreição são inspiradas e têm em si um valor vinculador, representando a interpretação originária do evento pascal por parte das primeiras testemunhas, embora sua função seja somente mediar o sentido de um evento em si indescritível.

57. Também o verbo “subir” (anabaínein) referido a Jesus que entra na glória pressupõe o esquema baixo/alto (cf. Jo 6,62; 20,17b). 58. O verbo “glorificar” se encontra também no querigma primitivo (At 3,13). 59. A palavra “glória” (kabôd) na língua hebraica significa “peso”. 60. João fala da ressurreição também por meio da imagem do semear e brotar, tirada da agricultura (Jo 12,24), e por meio do símbolo do parto (16,21). 164

Capítulo 9

A teologia joanina dos relatos de aparição

Depois de ter refletido sobre a diversidade dos relatos de aparição, tendo em vista uma classificação, e depois de ter precisado qual foi a experiência feita pelos discípulos, mostrando a variedade da linguagem relativa à ressurreição, é útil sintetizar as perspectivas teológicas joaninas presentes nos capítulos 20 e 21.

1. Vitória sobre a morte Dizendo que Jesus mostrou aos discípulos suas mãos, as marcas dos pregos e seu lado transpassado, João destaca que o Ressuscitado é o próprio crucificado que entrou na plenitude da vida divina. Trata-se do mesmo Jesus que viveu e atuou entre os seus contemporâneos, como realça também o relato do túmulo vazio, que aponta para a continuidade entre Jesus morto na cruz e Jesus glorificado pelo Pai. Com a ressurreição de Jesus, Deus manifesta, então, sua fidelidade à terra e à criação, salvando os seres humanos, e com eles todo o universo, em sua realidade concreta. Trata-se de um anúncio novo que supera as perspectivas do Antigo Testamento, segundo as quais com a morte se desce ao sheol 1, imaginado como 1. No Novo Testamento, o termo sheol, característico da cultura hebraica, corresponde à palavra hades, que na primitiva mitologia grega indicava o deus do mundo inferior, passando a significar também o reino dos mortos (cf. Mt 11,23; 16,18; At 2,27.31; Ap 1,18). 165

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

uma fossa subterrânea para a qual são destinados todos os finados (Jó 30,23; Sl 88,11-13), reduzidos à condição de “sombras” (refa’îm, Sl 88,11; Is 14,9). Para eles não há nenhuma possibilidade de ação, nem esperança, porque “no além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma” (Ecl 9,10). Nesse estado de abandono absoluto, semelhante ao caos primordial das mitologias antigas, a comunhão com Deus e com os entes queridos é definitivamente interrompida (Jó 7,9)2. Nem Deus tem o poder de entrar no reino da morte para mudar as sortes dos seres humanos. Antes da revelação cristã procurou-se superar essa visão trágica do destino humano3, característica dos estágios mais antigos da tradição bíblica; o caminho foi cumprido e ocorreu aos poucos no âmbito da história de Israel. Refletiuse inicialmente sobre a questão da retribuição, que nem sempre se realiza nesta vida, e que Deus justo não pode negar a quem opera o bem (Ex 20,5-6; Dt 5,9-10); aprofundou-se o tema da responsabilidade pessoal (Jr 31,29-30; Ez 18,19-20); compreendeu-se que Deus deve exercer seu poder também no sheol (Am 9,2-4; Sl 16,10-11; 73,24-25; 139,7-8)4, sendo o Senhor da vida e da morte (1Sm 2,6; Dt 32,39), cujo amor para os seus eleitos é mais forte do que a morte5. Chegou-se, assim, a compreender que Deus, enquanto criador, “não fez a morte, nem tem prazer em destruir os viventes” (Sb 1,13), porque “foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 2,24)6. Depois de um processo bastante longo, esse resultado foi alcançado no século II a.C., quando a fé na ressurreição amadureceu de forma clara; isso ocorreu na época dos Macabeus, em particular sob o influxo do helenismo, durante o reinado de Antíoco Epífanes, que procurou acabar com a religião

2. Os falecidos não são reduzidos ao nada, porque a ideia de aniquilação não se encontra na Bíblia. Cf. Th. J. LEWIS, Dead, abode of the, in The Anchor Bible Dictionary, New York, Doubleday, 1992, II, 101-105. 3. A. NITROLA, Trattato di escatologia, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2010, II, 138-150. 4. Ibid., 150-188. 5. No Antigo Testamento afirma-se que Deus “tomou para si” o patriarca Henoc, que sempre andou com ele (Gn 5,24), e que o profeta Elias desapareceu, arrebatado por Deus num carro de fogo, com cavalos de fogo (2Rs 2,3.11). Em particular no judaísmo helenístico manifesta-se a convicção de que “a vida dos justos está nas mãos de Deus e nenhum tormento os atingirá”, especialmente quando a morte é a consequência da opção de fé (Sb 3,1). Em Eclesiastes 3,19, porém, nega-se que após a morte haja qualquer tipo de vida, e em Sirácida 41,11-13 pensa-se que permaneça somente a imortalidade da lembrança. 6. L. MAZZINGHI, Morte, in R. PENNA, G. PEREGO, G. RAVASI (a cura di), Temi teologici della Bibbia, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2010, 881-887; ID., Dio non ha creato la morte (Sap 1,13). Il tema della morte nel libro della Sapienza, Parole, Spirito e Vita 32 (1995) 63-75. Cf. X. LÉONDUFOUR, Di fronte alla morte. Gesù e Paolo, Leumann/Torino, EllediCi, 1982. 166

Capítulo 9 – A teologia joanina dos relatos de aparição

judaica. Quer no livro de Daniel7, quer no segundo livro dos Macabeus, destacando o poder criador de Deus, manifesta-se a certeza de que Deus ressuscitará os membros fiéis do povo de Israel (2Mc 7,9.14.23). Trata-se da ressurreição escatológica, já vislumbrada, no século V a.C., no dito “grande apocalipse” de Isaías8. O anúncio da ressurreição de Jesus representa, pois, o ponto de chegada de toda a longa caminhada do Antigo Testamento, determinando uma reviravolta na história da salvação. Com efeito, a ressurreição não é mais esperada no futuro escatológico, mas é um evento que pertence ao passado. O eschaton está no coração da história, exercendo sua influência em todos os momentos dela e produzindo frutos que se tornarão manifestos na consumação final. Por isso, o anúncio cristão da ressurreição de Jesus representa uma perspectiva nova, ausente no judaísmo. Consequência disso é que depois da vitória de Jesus a morte perde seu aspecto dramático, porque, como especifica o quarto evangelista, consiste positivamente em ir para o Pai. Isso se torna possível porque Jesus — e somente ele — declarou ser “a ressurreição e a vida” (Jo 11,25), prometendo que quem crê nele, “ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente” (v. 26). Se a morte é a única certeza do ser humano desde seu nascimento (13,36; 14,2; 16,2; 21,19), ela não pode apagar o projeto de Deus, que chama o ser humano para a vida por meio de Jesus Cristo. A afirmação não banaliza o ato de morrer, que nunca pode ser considerado um simples fato natural, nem procura remover a morte da consciência coletiva, porque, apesar da revelação cristã, ela continua sendo um momento muito sério da existência humana9. Ajudando a descobrir o verdadeiro sentido da morte, o anúncio da ressurreição permite valorizar a vida vivida de acordo com certos valores, isto é, no amor solidário (15,12-13), no serviço desinteressado (13,14-15) e na entrega generosa de si mesmo em favor dos outros (13,1), segundo o exemplo de Jesus.

7. Em Daniel 12,2-3 lê-se: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. 8. Cf. Isaías 24–27. É de difícil interpretação a expressão de Isaías 26,19: “Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho, ó Deus, será como o orvalho de vida, e a terra dará à luz os seus mortos”. 9. J. SOBRINO, Cristología desde América Latina. Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico, Mexico, Ediciones CRT, 1976, 310-318. 167

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

2. Unidade do evento pascal Por meio das palavras que Jesus dirige a Maria Madalena, “subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus”, o evangelista declara que a ressurreição se identifica com a glorificação de Jesus junto ao Pai (20,17); serve-se da apresentação simultânea dos dois eventos que são convergentes, aliás, correspondentes entre si, para fazer um discurso teológico com que aprofunda o sentido da ressurreição10. À diferença de Lucas, que, servindo-se da imagem da levitação, interpreta a ascensão como o fim das aparições, distinguindo-a da Páscoa, o quarto evangelista considera ressurreição e ascensão como a realização plena da “hora” de Jesus, em que ele passa deste mundo para o Pai e é glorificado por ele (13,1)11. Jesus está continuamente projetado para essa hora, porque João, de modo progressivo, afirma que a hora ainda não chegou, que está se aproximando e que, afinal, chegou12. É com o evento pascal que essa hora se realiza, porque na Páscoa Jesus entra na glória de Deus, subindo ao Pai. Para João, ressurreição e ascensão são, então, duas faces da mesma moeda: Jesus, vencendo a morte, sobe ao Pai, tornando-se “o Senhor” da história e da criação, enaltecido ao nível de Deus (20,18.25.28)13. Afirmando que Jesus ressuscitado está junto ao Pai, o evangelista não quer dizer que ele se encontra em um lugar celeste, inacessível ao ser humano. Como Deus abrange o universo e está presente em todo tempo e espaço, assim acontece com o Ressuscitado, que vive na intimidade do Pai. De fato, Paulo destaca que Jesus foi elevado acima de todos os céus, para “encher” todas as coisas (Ef 4,10). No dia da Páscoa, o quarto evangelista menciona também o dom do Espírito que Jesus entrega aos discípulos reunidos, depois de tê-los enviado em missão, dizendo: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22). Trata-se da efusão do Espírito que João, em sua perspicácia teológica, interpreta como fruto imediato do evento pascal, do qual Lucas descreve uma manifestação carismática particular que ocorre cinquenta dias depois da Páscoa, colocando-se de um ponto de vista eclesiológico. Se no relato joanino, por meio da categoria da ascensão, o evangelista explica a realidade da ressurreição de Jesus, não se pode estabelecer uma 10. Cf. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 524-525. 11. A hora é uma categoria básica do quarto evangelho que se refere ao evento pascal em sua globalidade, interpretado como uma glorificação (12,32-33). Cf. R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 1273. 12. J. BEUTLER, Die Stunde Jesu im Johannesevangelium, Bibel und Kirche 52/1 (1997) 25-27. 13. Sabe-se que, apesar da teologia dos Atos, Lucas é consciente de que ressurreição e ascensão representam dois aspectos complementares do triunfo de Jesus. Somente no século IV, na liturgia, distinguiu-se Páscoa e ascensão. 168

Capítulo 9 – A teologia joanina dos relatos de aparição

equivalência entre o evento da Páscoa e o da entrega do Espírito Santo, afirmando que Páscoa coincide com Pentecostes, apesar de os eventos ocorrerem no mesmo dia. De fato, entre Páscoa e Pentecostes há um nexo de causa e efeito, porque o dom do Espírito é fruto e consequência da vitória pascal e da glorificação de Jesus. Por isso, deve verificar-se primeiro a ressurreição de Jesus a fim de que o Espírito possa ser entregue à Igreja, como realça o texto apresentando a glorificação de Jesus na perícope de Madalena e mencionando o dom do Espírito Santo na aparição aos discípulos que logo se segue14. Fazendo as devidas distinções, João 20 mostra que o quarto evangelista tem uma visão sintética do evento pascal, apresentando-o como um único e indivisível mistério de vida e de glória, do qual brotam os bens salvíficos para a humanidade. Manifesta, assim, sua qualidade de grande teólogo15.

3. Ressurreição, sinal da vitória da cruz No evangelho de João, o evento da ressurreição está relacionado, de forma particular, com o acontecimento da cruz. O autor destaca isso dizendo que, ao aparecer, Jesus mostra aos discípulos as mãos, os pés e o lado, realçando a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado, e também afirmando que a paixão é um evento glorioso, porque já transfigurado pelo fulgor da ressurreição. Aliás, ele relaciona a glória mais com a paixão e a morte de Jesus do que com a ressurreição. Com efeito, utilizando uma hermenêutica diferente dos sinópticos, João tira de seu relato da paixão todos os elementos humilhantes referentes a Jesus, tais como a angústia e a tristeza no horto das Oliveiras, o beijo de Judas, os insultos e ultrajes por parte dos soldados judeus e romanos, assim como as provocações debaixo da cruz. Tampouco menciona os fenômenos apocalípticos do terremoto e das trevas na hora da morte de Jesus, nem relata o grito do crucificado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Destaca, ao contrário, que Jesus conhece de antemão os eventos que estão para acontecer (13,1.3; 18,4; 19,28), evidenciando seu constante domínio sobre eles16. 14. H. KESSLER (La resurrezione di Gesù Cristo, op. cit., 338-382) realça que as aparições são limitadas no tempo e se referem a pessoas particulares, enquanto o dom do Espírito é entregue a todos os que são disponíveis a entrar no mistério de Deus. 15. W. KASPER, Gesù il Cristo, Brescia, Queriniana, 1975, 202. 16. M. LACONI (La morte di Gesù nel quarto vangelo (Gv 19,17-37), in Atti della XXVII Settimana Biblica, Brescia, Paideia, 1984, 97-127) afirma que no centro da teologia do quarto evangelho está a vida histórica de Jesus e o evento de sua paixão e morte, não a ressurreição. A morte, porém, não seria evento de salvação sem a ressurreição, por isso a paixão está sob o sinal da ressurreição. 169

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Essa releitura da paixão depende do fato de que quem sofre é o Filho único de Deus, que tem uma relação única e exclusiva com o Pai (14,9-10); portanto, não pode ser abalado por nenhuma das provações que ele deve enfrentar. Outro motivo da apresentação gloriosa da paixão é que ela representa a máxima manifestação do amor de Jesus ao Pai (14,31) e à humanidade, entregando-se por ela até o sacrifício supremo (13,1), realizando assim o plano de salvação (4,34; 6,39)17. A cruz deve, então, ser inevitavelmente radiante e luminosa, porque revela a caridade imensa do coração de Deus. Essa estreita ligação entre paixão, morte e ressurreição de Jesus mostra que no quarto evangelho a ressurreição não representa a reviravolta inesperada de uma situação dramática, um feliz happy end, porque dessa forma se desligaria a ressurreição da morte de Jesus, quando, ao contrário, constitui o pleno cumprimento dela18. Para João, a ressurreição é a manifestação da vitória alcançada na cruz por meio da entrega generosa de Jesus19. Não coloca em segundo plano a cruz, mas a confirma. Consequência disso é que os eventos finais da vida de Jesus devem ser lidos com uma perspectiva diferente da óptica humana. Se depois de uma situação de aperto e de sofrimento procura-se não pensar mais no que aconteceu, regozijando-se do perigo superado e tirando todos os sinais da provação padecida, no âmbito da fé cristã ocorre exatamente o contrário: a ressurreição valoriza a paixão, em que se encontra a fonte de toda salvação e de toda graça. O próprio João convida a contemplar o transpassado pendurado na cruz, do qual brotam rios de água viva (19,37), frisando que a sabedoria da cruz, iluminada pela ressurreição, deve moldar toda vida cristã. Seria, pois, um absurdo esquecer as feridas do corpo de Jesus para levar em consideração somente sua glória, porque a morte e a ressurreição de Jesus constituem um único evento salvífico. Também nesse caso manifesta-se a perspectiva sintética do evangelista. Com sua elevação, Jesus atrai todos a si (12,32), tornando-se o “Salvador do mundo” (4,42; cf. 1,29; 1Jo 2,2). A glória que tinha na eternidade (Jo 17,5.24) lhe é restituída, aliás acrescida, porque, vencendo a morte por meio da cruz, Jesus entra na casa do Pai juntamente com o universo inteiro, sendo ele o Verbo de Deus em que toda a criação encontra seu alicerce (1,3). 17. No evento pascal não somente o Filho, mas também o Pai é glorificado por parte do Filho (12,28; 13,31.32; 17,1). 18. H. KESSLER, La resurrezione, op. cit., 300-313. 19. O quarto evangelista não elimina a theologia crucis em favor da theologia gloriae. Interpreta os sofrimentos de Jesus à luz de seus frutos, sem negar a realidade das tribulações que ele teve de aguentar. Dessa forma, destaca que a cruz leva à ressurreição. 170

Capítulo 9 – A teologia joanina dos relatos de aparição

4. Ressurreição, perfeita revelação de Jesus e de Deus À diferença dos evangelhos sinópticos, em que Jesus raramente fala de si mesmo, no quarto evangelho ele é o principal intérprete de sua identidade, não os personagens da narrativa ou o redator. De forma sistemática, caracteriza-se como o pão da vida, a luz do mundo, o bom-pastor, o caminho, a verdade e a vida, definindo-se também com a fórmula misteriosa “Eu sou”, em absoluto (8,24.28.58; 13,19), que evoca a expressão com que Deus manifesta sua realidade transcendente no Antigo Testamento (cf. Is 43,10; 43,25; 45,18c; 51,12). Em particular, Jesus se apresenta como o enviado do Pai e seu revelador, comunicando aos discípulos, por meio de sua própria vida, o que “viu” (Jo 3,32a; 8,38) e “ouviu” junto do Pai (3,32b; 5,30; 15,15), o que o Pai lhe ensinou (8,27). Os discípulos não entendem suas palavras (10,6), sua compreensão é superficial, porque eles julgam “segundo a aparência” e não “pela reta justiça” (7,24). Se em algum momento pensam ter compreendido quem é Jesus, este, com realismo, os confronta com a própria ignorância: “Credes agora? Eis que vem a hora e já é chegada em que sereis dispersos, cada um para sua casa, e me deixareis só” (16,31-32). Perante essa situação, Jesus destaca que eles compreenderão em seguida, apontando para a Páscoa, em que as dificuldades serão superadas e eles entenderão melhor o que Jesus lhes falou a respeito de si mesmo e de sua relação com o Pai20. Isso acontece com a Páscoa, como reconhece o próprio evangelista nas duas notas redacionais após os episódios da expulsão dos vendilhões do templo e da entrada em Jerusalém (2,22; 12,16)21. Com a vitória de Jesus sobre a morte, os discípulos compreendem a identidade de Jesus, bem como a revelação trazida por ele, iluminados como são pelo Espírito da verdade que os guia à verdade plena (16,13). À luz da ressurreição torna-se mais transparente também a identidade de Deus, porque Jesus representa o rosto humano do Pai, sendo o ícone de Deus. Por isso, quando Filipe pergunta: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos 20. A Pedro, que não entende o porquê do lava-pés, Jesus responde: “O que eu faço, não o sabes agora; compreendê-lo-ás depois” (13,7). Também aos judeus que o recusam Jesus declara: “Quando elevardes o Filho do homem, então sabereis que Eu sou e que nada faço por mim mesmo; mas falo como o Pai me ensinou” (8,28), referindo-se ao evento pascal. 21. Em João 2,22 lê-se: “Quando Jesus ressuscitou dentre os mortos, os seus discípulos lembraram-se de que dissera isto; e creram na Escritura e na palavra dita por Jesus”; em 12,16 o evangelista afirma: “Os discípulos a princípio não compreenderam isto; mas quando Jesus foi glorificado lembraram-se de que estas coisas estavam escritas a respeito dele e de que isso lhe fizeram”. 171

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

basta”, Jesus responde: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai” (14,8-9). Olhando para Jesus, que no evento pascal manifesta seu amor à humanidade até a medida extrema (13,1), compreende-se que Deus é benevolência gratuita e absoluta. Por isso, Jesus convida os discípulos a dirigir-se a ele chamando-o de Pai (20,17c), participando desde já da comunhão de amor que existe entre ele e o Pai (14,11.23). Na ressurreição dá-se a conhecer também o amor que o Pai tem pelo Filho, chamando-o da morte para a vida, reabilitando, assim, todos os sofredores de todos os tempos. A Páscoa é, portanto, o momento mais elevado da compreensão da bondade ilimitada de Deus que se revela por meio de Jesus.

5. O dom do Espírito Santo O Espírito Santo, entregue à comunidade na tarde da Páscoa, é o dom por excelência do Ressuscitado. Sua vinda, anunciada na festa das Tendas quando Jesus exclama: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim; como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (7,37-39)22, se realiza no dia da Páscoa, depois de Jesus ter explicado aos discípulos, nos discursos após a ceia, o papel dele na vida da Igreja23. Na Páscoa, dando o Espírito “não por medida” (3,34), Jesus mergulha o mundo no Espírito Santo24, realizando um batismo universal (1,33b), de acordo com as profecias do Antigo Testamento (Is 32,15; 44,3; Jl 3,1-5). Isso indica que o Espírito, entregue por Jesus, não é somente uma realidade eclesial, mas preenche o universo inteiro, atuando também fora dos limites da Igreja25. De fato, é como o vento que “sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai” (Jo 3,8). Sua efusão corresponde à realização de uma nova criação, fruto da ressurreição de Jesus, que representa um início novo na existência dos homens. Nessa obra de renovação, a comunidade é chamada a desenvolver um papel básico, tornando-se o sinal visível da presença do Ressuscitado na terra. Sua ação missionária está relacionada com o dom do Espírito26. 22. A referência ao Espírito, comparado com a água, símbolo dos bens escatológicos (Ez 47,1-12; Zc 14,8; cf. Jo 4,13-14), no quarto evangelho ocorre quando, na liturgia da festa, a água da piscina de Siloé é derramada no altar do templo, pedindo a Deus a chuva para que a terra frutifique. 23. O Espírito proporciona a plena compreensão da palavra de Jesus e o defende na polêmica com os judeus incrédulos (14,15-17.25-26; 15,26-27; 16,7-15). 24. “Batizar” significa mergulhar, imergir. 25. H. KESSLER, La resurrezione, op. cit., 338-382. 26. B. LAURET, Cristologia dogmatica, op. cit., 420-438. 172

Capítulo 9 – A teologia joanina dos relatos de aparição

6. A nova Aliança A palavra de Jesus que Maria Madalena deve comunicar aos discípulos: “Subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus” (20,17b), representa uma nova formulação da Aliança veterotestamentária, que na conclusão da Lei da santidade é indicada com a frase “Andarei entre vós e serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo” (Lv 26,12)27. Aliança indica a relação íntima e gratuita que Deus instaura com o seu povo e, por meio dele, com a humanidade toda, de acordo com os pactos de vassalagem no Oriente Médio antigo. Trata-se da declaração da fidelidade de Deus ao seu povo, que exige uma resposta, apesar dos desvios e das traições humanos. Para João, a plena realização da Aliança se verifica no evento pascal. Se o homem é pecador e seu modo de proceder não satisfaz as exigências de Deus, Jesus na cruz, como representante da humanidade, é fiel até a entrega total de si mesmo, permitindo que se realize o projeto do amor de Deus e que se instaure a comunhão entre o Pai e os seres humanos (14,21.23). A qualificação de “irmãos” com que Jesus chama os discípulos mostra os novos laços que, por meio dele, os relacionam com Deus. A profissão de fé de Tomé: “Senhor meu e Deus meu”, no final do capítulo, tem o valor da ratificação do Pacto firmado pela Igreja joanina que confessa sua fé em Jesus (20,28). Dessa forma, o autor explicita, no final do evangelho, um tema que está presente de forma implícita ao longo de toda a narrativa joanina28. No relato das bodas de Caná (2,1-11), Jesus declara que com sua vinda se realiza a Nova Aliança que leva à plenitude a antiga, simbolizada pela água contida nas talhas de pedra que é transformada em vinho. Essa não perde nada do que era, mas começa a ser o que não era29. Também a frase que, no mesmo relato, a mãe de Jesus dirige aos servos: “Fazei tudo o que ele vos disser” (2,5), evoca as palavras pronunciadas por Israel no momento da estipulação do Pacto (Ex 19,8) e na hora de sua renovação (Js 24,24)30. Da mesma forma, a expressão pronunciada por João Batista: “O que tem a noiva é o noivo; o amigo do noivo que está

27. A fórmula comparece com frequência nos profetas (Jr 31,33; Ez 36,28). 28. O termo grego diathêke- se encontra somente em Apocalipse 11,19, por ocasião da abertura do santuário de Deus em que aparece a Arca da Aliança. Cf. R. FABRIS, L’alleanza negli scritti del Nuovo Testamento, in Dizionario di spiritualità biblico-patristica, Roma, Borla, 1992; 2: Alleanza, Patto, Testamento, 93-156 (117-128). 29. No Antigo Testamento o dom do vinho aponta para os tempos escatológicos e o advento do Messias (Am 9,13; Jl 4,18; Is 25,6-8). 30. Em Êxodo 19,8 a assembleia proclama: “Tudo o que o Senhor falou faremos”, e em Siquém: “Ao Senhor, nosso Deus, serviremos e obedeceremos à sua voz” (Js 24,24). 173

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

presente e o ouve muito se regozija por causa da voz do noivo” (Jo 3,29), refere-se a um contexto nupcial que caracteriza também a perícope das bodas de Caná e aponta para a Aliança31. Também o mandamento do amor (13,34-35) faz referência ao Pacto realizado por Jesus, porque na revelação veterotestamentária, para indicar a mútua fidelidade entre o senhor e seu vassalo que se empenha em respeitar as cláusulas da aliança, usa-se o termo “amor”. Com efeito, em Deuteronômio 10,12-13 lê-se: “Agora, ó Israel, que é que o Senhor requer de ti? Não é que temas o Senhor, teu Deus, e andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e de toda a tua alma, para guardares os mandamentos do Senhor e os seus estatutos que hoje te ordeno, para o teu bem?”. Além disso, referem-se ao Pacto, que exige uma contínua comunhão de amor, as temáticas da habitação de Deus no coração do fiel (Jo 17,23.26; 6,57), da relação íntima entre o Pai, Jesus e os fiéis (14,7-9) e da paz que se apodera dos cristãos (14,27; 20,19.21), juntamente ao convite a permanecer em Jesus e em Deus (15,4.6.7; 17,21), pormenores bastante frequentes no evangelho de João32. Para o quarto evangelista, que reinterpreta a categoria bíblica da aliança à luz do Cristo, a Páscoa se torna o novo e definitivo evento fundador da aliança de Deus com a humanidade, levando à plenitude o Pacto com Israel. É por causa da Aliança realizada por e em Jesus que se torna possível “reunir em um só corpo os filhos de Deus, que andavam dispersos” (11,52).

7. A Igreja, dom pascal para a humanidade O evento pascal tem relação evidente com a formação da Igreja: Pedro, o discípulo amado, Maria Madalena, os discípulos reunidos em Jerusalém na tarde da Páscoa, os companheiros que juntamente com Pedro vão pescar, todos são representantes da Igreja. Jesus se lhes manifesta para que possam ter a convicção de que sua morte não foi a última palavra, mas que ele vive junto de Deus. Sua ausência é uma realidade que deve ser compreendida paulatinamente, porque esconde um grande mistério que vai além dos parâmetros humanos. À medida que a compreensão de fé dos discípulos amadurece, as dúvidas desaparecem. A Igreja é, portanto, o lugar em que Jesus se revela, ajudando os discípulos a compreender sua identidade divina. Ela tem o seu começo na

31. Cf. Jeremias 2,2; 3,1.4; Isaías 54,5-7.10; 61,10; Ezequiel 16,8; Oseias 2,18-25. 32. Cf. R. E. BROWN, Giovanni, op. cit., 736-737. 174

Capítulo 9 – A teologia joanina dos relatos de aparição

vida histórica de Jesus, mas, de fato, nasce na Páscoa, sendo formada por todos os que creem na vitória da cruz e na ressurreição dentre os mortos. João realça que a Igreja representa o fruto do sacrifício pascal de Jesus e indica isso na cena da entrega do discípulo à mãe e da mãe ao discípulo (19,25-27). As duas figuras são simbólicas: a mãe de Jesus, chamada de “mulher”, é comparada a Eva, a mãe dos viventes, ou à filha de Sião, a representante do povo de Israel. Enquanto mulher, é símbolo da Igreja em sua dimensão geradora. Por sua vez, o discípulo amado, que deve zelar pela mãe de Jesus, representa a comunidade cristã em sua dimensão de discipulado. Unidos, por força do sacrifício de Jesus, formam a primeira célula da Igreja que nasce ao pé da cruz. Com as aparições, a comunidade recém-formada sai do anonimato e compreende que seu mandato é anunciar ao mundo o triunfo da vida, renovando a esperança da humanidade. Sendo a mediadora da revelação definitiva de Deus, a Igreja participa do caráter definitivo da nova história que começa com a ressurreição de Jesus, apesar de sua ligação com o mundo que passa. Seu caráter indefectível depende do Cristo morto e ressuscitado que vive nela, ajudando-a a superar todas as provações e hostilidades (5,18; 10,36; 16,2-3)33. Se ao longo do evangelho a missão entre os judeus fracassa, como o evangelista lamenta (12,37-40; cf. Is 6,9-10)34, a perspectiva é mais rósea no relato da pesca milagrosa, em que Jesus anima os discípulos anunciando-lhes que seus esforços missionários terão êxito, além das expectativas, porque eles são os ceifeiros da messe semeada por Jesus (Jo 4,38), que como o grão de trigo já caiu na terra e morreu (12,24)35. João especifica que a Escritura, compreendida à luz do Ressuscitado (20,9), e a eucaristia (21,9-13) são elementos constitutivos da vida da Igreja e dons do Senhor que venceu a morte. Em particular a eucaristia, mencionada após o trabalho da pesca, realça que todo esforço apostólico deve terminar na ação de graça dirigida ao Pai, do qual procede toda missão (20,21a). Fundamentada nesses dois alicerces, a comunidade cristã cresce e se constrói unitariamente (21,11; cf. 10,16; 17,21-26), ao redor de Pedro, pastor do rebanho, e do discípulo amado, intérprete fiel da figura de Jesus.

33. H. URS VON BALTHASAR, Mysterium pascale, in Mysterium salutis, Brescia, Queriniana, VI, 393-394. 34. João não fala explicitamente de missão aos pagãos (cf. 12,20). 35. Em João 4,38 lê-se: “Eu vos enviei para ceifar o que não semeastes; outros trabalharam, e vós entrastes no seu trabalho”. 175

Capítulo 10

A ressurreição do cristão

O evento da ressurreição de Jesus, com suas profundas raízes na história humana, constitui uma força transformadora que faz desabrochar frutos de vida nova em todos os seres. O cristão é o primeiro a ser chamado a partilhar a vitória de Jesus sobre a morte, vivendo numa situação de ressurreição a partir de sua existência presente. O relato de Lázaro, colocado quase no final da primeira parte do evangelho, com a função de introduzir a narrativa da paixão, reflete sobre o desfecho da existência humana dos que acreditam em Jesus, reconhecendo-o como Senhor.

1. Jesus, ressurreição e vida 1.1. Lázaro volta à vida A unidade literária é complexa: à declaração da doença e ao atraso propositado de Jesus, o qual não impede a morte do amigo (11,1-6), seguem-se a decisão de Jesus de ir a Betânia (v. 7-16), seu encontro com as duas irmãs (v. 17-27; 28-37), a ida ao túmulo e sua intervenção poderosa, na qual restitui a vida ao falecido (v. 38-44). O pormenor de que Lázaro estava “no túmulo” havia “quatro dias” (v. 17) indica que a situação é sem saída, de acordo com

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“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

o pensamento judaico, que exclui toda esperança de voltar para esta vida após esse tempo1. Jesus não é insensível à angústia humana, representada pelas duas irmãs de Lázaro, descritas com elementos estereotipados2, que se tornam símbolos de duas modalidades opostas de enfrentar a morte de um ente querido. Marta é a mulher forte e dinâmica que, apesar da dor, vive projetada para o futuro; Maria é a pessoa sossegada que fica sentada no piso da casa e se lamenta pelo falecimento do irmão, presa emotivamente ao passado. Jesus intervém nessa situação dolorosa. A frase de 11,33, geralmente traduzida por “compadeceu-se interiormente e ficou comovido”, na realidade não indica a emoção interior de Jesus que participa espiritualmente da irreversível circunstância de luto que se lhe apresenta, porque João quase nunca fala dos sentimentos de Jesus (2,24a). O verbo traduzido por “compadecer-se” (enebrimêsato), seguido pela expressão “no espírito” (tô pneúmati), significa provavelmente que Jesus se agitou, bradando contra o espírito do mal e da morte que continua fazendo suas vítimas também no âmbito de seus próprios conhecidos (11,33.38). Protesta contra a obra da morte, que ele derrota no lugar onde ela reina soberana, na sepultura do amigo. Restitui a Lázaro a vida, depois de ter manifestado na oração sua confiança absoluta no Pai. Obedecendo à ordem de Jesus: “Lázaro, vem aqui para fora!” (v. 43), o finado “sai do túmulo” e é introduzido outra vez num espaço de liberdade, depois que os presentes desatam seus pés e suas mãos das ataduras e tiram o lenço de seu rosto (v. 44). Perto de Jesus, fonte da vida, Lázaro recupera a vida. Levando em conta as tensões da narrativa e suas pequenas incongruên3 cias , assim como a falta de reações por parte de Lázaro, das irmãs e dos judeus presentes4, discute-se entre os exegetas se o relato representa um 1. M. W. G. STIBBE, Tomb with a View: John 11,1-44 in Narrative-critical Perspective, New Testament Studies 40 (1994) 38-54. No judaísmo pensava-se que a alma do falecido permanecesse três dias perto do corpo. Cf. H. STRACK, P. BILLERBECK, Das Evangelium nach Markus, Lukas und Johannes, op. cit., II, 544-545. 2. Ambas as mulheres, dirigindo-se a Jesus, usam a mesma expressão: “Senhor, se estiveras aqui, não teria morrido meu irmão” (11,21.32), relacionando a morte do irmão com a ausência de Jesus, talvez considerado um taumaturgo (11,37). 3. No texto os nomes das duas irmãs são mencionados em ordem diferente; na segunda parte do relato não se faz mais menção aos discípulos; além disso, Marta manifesta sua fé em Jesus no versículo 27, mas no versículo 39 parece duvidar do poder dele. O pormenor de que Lázaro morreu “há quatro dias”, lembrado no final, parece ser um elemento didático e teórico, que cria problemas a respeito da historicidade do evento. 4. A narrativa poderia inspirar-se na perícope lucana de Lázaro e do rico avarento, em que o pobre é levado pelos anjos para o seio de Abraão (Lc 16,22); ou poderia ser uma representação 178

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

acontecimento histórico ou é uma composição do evangelista para frisar que Jesus tem o poder de ressuscitar os mortos. Aponta para a segunda possibilidade o fato de que o evento ocorre quatro dias depois da morte de Lázaro, diferenciando-se do que acontece nas outras narrativas sinópticas, em que a ressurreição ocorre logo após a morte (Lc 7,12; 8,49)5; além disso, é um absurdo a volta para a vida de um homem que já foi julgado por Deus. Os personagens da narração, porém, são históricos e lembrados também na tradição lucana, assim como o lugar em que o episódio acontece. Sem tomar uma posição clara a respeito da historicidade da narrativa, é mais prudente afirmar que o evangelista se serviu de um relato pré-joanino, referente à ressurreição de Lázaro e transmitido no âmbito judaico-cristão, semelhante ao da viúva de Naim ou da filha de Jairo, em que apresentou sua concepção da ressurreição dos mortos. Nos versículos 25-27, de forma especial, concentra-se a teologia do evangelista; portanto, devem ser analisados em pormenores.

1.2. Ressurreição futura e ressurreição presente Depois da morte do irmão, Marta mostra sua plena confiança em Jesus dizendo: “Mas também sei que, mesmo agora, tudo quanto pedires a Deus, Deus to concederá” (v. 22). A frase “mesmo agora” significa que ela está segura de que Jesus pode encontrar uma solução diante de uma situação irremediável. Ela sabe (“eu sei”, oîda, v. 22) que Deus escutará Jesus em tudo o que ele pedir; ela mostra sua convicção de que a cura do irmão é um dom da benevolência de Deus e não um ato mágico. Jesus retruca com uma frase ambígua: “Teu irmão há de ressurgir” (Jo 11,23), sem precisar quando a ressurreição acontecerá6, oferecendo à mulher uma segurança e ao mesmo tempo desafiando-a. A mulher pensa espontaneamente na ressurreição escatológica: “Eu sei que ele há de ressurgir na ressurreição no último dia”7 (v. 24), de acordo literária, com teor fortemente realístico, de que Jesus é o garantidor da ressurreição dos mortos. Poderia ser também um comentário de João 11,25-27, em que Jesus declara ser “a ressurreição e a vida”, versículos nos quais se expressa a teologia do evangelista. 5. J. WAGNER, Die Erweckung des Lazarus. Ein Paradigma johannischer Theologiegeschichte, in Theologie im Werden. Studien zu den theologischen Konzeptionen im Neuen Testament. Festschrift O. Kuss, Paderborn, Schöningh, 1992, 199-217. As narrativas sinópticas são qualificadas com a frase “ressurreição-cura”. Cf. G. ROCHAIS, Les récits de résurrection des morts dans le Nouveau Testament, Cambridge, Cambridge University Press, 1981, 113-146. 6. O verbo anistánai é usado também em João 5,29; 6,39-45 e referido à ressurreição de pessoas humanas. É aplicado a Jesus só em 20,9. 7. A expressão “o último dia” encontra-se em João 6,39.40.44.54; 12,48. Cf. Daniel 12,1-3; 2 Macabeus 7,14.23; 12,44; Mateus 22,28; Marcos 12,23; Lucas 20,33. 179

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

com a esperança judaica que aguarda “o dia do Senhor” em que será levada a cumprimento a história humana (Am 5,18; cf. 1Jo 4,17)8. Com a frase “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25) Jesus destaca que ele mesmo é a ressurreição e a vida que já estão ao alcance do ser humano, e não somente que ele será quem realizará a ressurreição no último dia. Não é, portanto, preciso esperar os tempos escatológicos, porque por meio dele a vida e a ressurreição começam a irradiar-se na história9. Os dois termos usados por Jesus indicam, pois, que ele é a fonte da verdadeira vida, da vida da ressurreição, da vida em plenitude que o autor qualifica com a expressão “vida eterna” (6,40) e que consiste na participação da mesma vida do Pai, comunicada ao ser humano por meio do Filho, no Espírito Santo (5,26; 6,57), diferente, então, da vida biológica, que é precária e frágil10. Por meio das duas expressões que se seguem, construídas em paralelismo: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá, e todo o que vive e crê em mim não morrerá eternamente” (11,25b-26a), Jesus especifica o sentido de sua afirmação para o cristão. Na primeira frase, afirma que a morte física pode ser superada pela fé, porque se trata de uma morte provisória e não eterna. Na segunda, destaca que a condição para escapar da perdição e da morte eterna é viver e crer nele11. Jesus recomenda, pois, ao cristão fazer que sua fé transforme sua existência humana de forma concreta12. De fato, fé significa comunhão com Jesus na concretude da existência terrena, abertura para a ação de Deus, fidelidade ao evangelho, compromisso em favor do próximo; somente dessa forma torna-se possível a vitória sobre a morte a partir da existência presente. Segue-se que, apesar da morte natural, a fé permite ao crente alcançar uma situação de vida destinada a durar para sempre, de acordo com as palavras de Jesus: “Em verdade, 8. A frase do versículo 24 parece ser um elemento redacional que prepara a palavra de Jesus. Cf. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni, II, op. cit., 548. Cf. ID., Il pensiero escatologico nel vangelo di Giovanni, in Il vangelo di Giovanni, op. cit., II, 699-717 (702-704). 9. Na expressão “a ressurreição e a vida” o termo “vida” falta em alguns papiros e versões e não é mencionado por alguns Padres da Igreja. A frase, porém, é aceita pela maioria das edições críticas. R. E. Brown nota que é mais difícil explicar a omissão do termo “vida” do que seu acréscimo. 10. Para indicar a qualidade nova da vida que se apodera do crente usa-se o termo zôe-, e não psyché ou bíos, que se referem à existência física e terrena. 11. Na primeira frase o autor fala da morte física, na segunda, da morte eterna. Os dois usos do verbo “morrer” encontram-se também em João 6,49-50. 12. J. L. RUIZ DE LA PEÑA (La otra dimensión. Escatologia cristiana, Roma, Borla, 1988, 247-249) nota que a vida nova oferecida por Jesus pode ser perdida por falta da fé e do amor (1Jo 3,14-15; 5,16). A plenitude da vida transcende a morte (Jo 6,50.51.58; 8,51; 10,28); consiste, desde já, em conhecer a Deus (17,3), em viver em comunhão com ele na perfeição do amor (17,26), amando os irmãos (1Jo 4,12). 180

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não é julgado, mas passou da morte para a vida” (5,24). O próprio evangelho mostra que não é fácil entender a palavra de Jesus. Por isso, à pergunta dele: “Crês isto?”, Marta não responde, limitando-se a fazer sua confissão de fé: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus que deve vir ao mundo” (v. 27). Ajuda, assim, o leitor a entender que a questão escatológica está relacionada com a compreensão da pessoa de Jesus. Provavelmente a mulher ainda não reconheceu de verdade quem é Jesus, nem que ele tem o poder de ressuscitar os mortos e tampouco que a vida nova que ele promete começa a manifestar-se no presente. Contenta-se em considerar Jesus como um homem de Deus, qualificando-o com os títulos messiânicos tradicionais que outros personagens do quarto evangelho já lhe atribuíram (cf. 1,41.49; 6,14). Somente com o evento pascal ela compreenderá a verdadeira identidade de Jesus e o sentido da palavra pronunciada por ele.

1.3. A escatologia realizada Qualificando-se como “a ressurreição e a vida”, Jesus declara que com o evento pascal a vida definitiva está ao alcance de todos e que o momento escatológico, esperado no futuro na perspectiva judaica, já está presente13. Ficando em comunhão com ele, vive-se desde já na dimensão escatológica que encontrará sua realização plena no encontro com Deus14. Realçando a dimensão escatológica da existência cristã, o evangelista destaca não somente que a vida ressuscitada decorre da fé, mas também que a condenação é antecipada nesta vida com a recusa a crer em Jesus: “O que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” (3,17-18). A frase representa o avesso do ato escatológico de Deus que oferece a todos gratuitamente a salvação, lembrando a seriedade com que deve ser encarada a existência humana, da qual depende a futura. Em João destaca-se, assim, a escatologia realizada, sem negar a escatologia final, característica dos sinópticos, da primeira carta de João e do Apocalipse (1Jo 2,28; 3,2; 4,17; Ap 21,5.22-5). Esta perspectiva não foi acrescentada

13. No cristianismo helenístico “vida eterna” corresponde a vida futura (1Tm 1,16; 6,12; Tt 1,2; 3,7; Jd 21). P. RICCA (Die Eschatologie des vierten Evangeliums, Zürich/Frankfurt, Gotthelf Verlag, 1966, 179) fala de “escatologia personalizada”. 14. O alicerce da escatologia joanina é a cristologia. Cf. J. BLANK, Krisis. Untersuchungen zur johanneischen Christologie und Eschatologie, Freiburg im Breisgau, Lambertus-Verlag, 1964, 120182. Cf. Romanos 8,23-24; Colossenses 3,1; 1 Pedro 1,3. 181

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

no final da redação do quarto evangelho, desfigurando a primitiva visão escatológica do autor, como pretenderam alguns exegetas15. Com efeito, a perspectiva escatológica futura encontra-se não somente nos textos em que se fala de último dia (6,39.40.44.54; 11,24), mas em todo o evangelho, como indicam as expressões “Se alguém me serve, siga-me, e, onde eu estou, ali estará também o meu servo” (12,26) ou “se alguém guardar a minha palavra, não verá a morte, eternamente” (8,51), que se referem à realidade escatológica final. As palavras de Jesus a Marta não negam esse tipo de escatologia, embora por meio delas João insista na escatologia presente. O quarto evangelista afirma, assim, que os cristãos, renovados pelo batismo (3,5), alimentados pela eucaristia (6,54), vivificados pelo Espírito (6,63; 7,38-39), já ressuscitaram com Cristo, embora ainda vivam numa situação de insegurança e de tribulação (14,1.27; 15,18; 16,1-4.33). Para eles, a vida eterna (3,16), a ressurreição dos mortos (5,25), o julgamento (3,18; 12,31), a comunhão com Deus (14,23) — dons tradicionalmente esperados para o futuro — começam a realizar-se no momento da opção de fé em Jesus, para chegar à plenitude no final da história (17,24)16. Essa visão escatológica joanina não é a consequência do enfraquecimento da tensão escatológica primitiva (cf. 1Ts 4,15; 1Cor 15,52), nem o fruto da influência da gnose, que prega uma plenitude interior, alcançada no presente, sem necessidade de esperar o futuro. Depende da certeza de que Jesus é o Filho de Deus que, com sua morte e ressurreição, venceu todos os inimigos do homem e realizou a salvação do mundo. Por isso, a relação estabelecida com ele na terra por parte do cristão não se desgasta, mas continua além da morte, relativizando o tempo que passa. Estar com Cristo nesta vida (14,23) constitui então, desde já, a realidade final (17,21.23). O resultado é que a morte, encarada na fé, não assusta mais, porque representa o momento da verdade do ser humano, em que se rompe o véu que lhe impede ver as realidades eternas. A perspectiva escatológica do quarto evangelista é, portanto, vertical, não horizontal17. A realidade futura irrompe desde já no mundo segundo um 15. R. Bultmann supõe que o redator eclesiástico, no estágio final da composição do quarto evangelho, com uma operação de disfarce, acrescentou a escatologia final para conformá-lo aos sinópticos. 16. R. SCHNACKENBURG (Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 580-586) destaca que o ambiente cultural, marcado pelo influxo pré-gnóstico, estimulou João a fixar sua atenção no tema da vida para falar da ressurreição. 17. M. PAMMENT, Eschatology and the Fourth Gospel, Journal for the Study of the New Testament 15 (1982) 81-85. Em Marcos 9,1; 13,30-32, Mateus 10,23; 26,64 e Lucas 17,22 há uma perspectiva escatológica futura, portanto horizontal. 182

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

esquema alto/baixo18. Os discípulos não são tirados do mundo, mas, vivendo em relação com Jesus (3,36), já participam da vida dele, que é vida renovada, vida eterna (3,16-21; 17,2-3). Essa vida transcendente coexiste, então, com a realidade da história humana que se desenvolve no tempo e é projetada para o cumprimento final (cf. 12,26; 13,36; 14,2). Não vem depois da existência terrena. É plausível que, no início de sua reflexão, a comunidade joanina, de acordo com a perspectiva sinóptica, tenha fixado sua atenção na escatologia futura19. À luz do evento definitivo da Páscoa, aos poucos, porém, compreendeu que, à medida que o cristão vive em Jesus, já participa da vida nova que brota dele, reconhecendo que a ressurreição é uma realidade presente20.

2. Jesus, doador da vida Jesus se manifesta como o senhor da vida não somente no relato de Lázaro, mas também no sermão que ocorre em Jerusalém, provavelmente na festa de Pentecostes, em que se revela como quem tem o poder de doar a vida, renovando a existência histórica do ser humano (5,19-30). Sua afirmação: “Meu Pai trabalha e eu também trabalho” (5,17), com que procura justificar a cura do paralítico no dia de sábado, suscita o protesto dos judeus, que o acusam de blasfêmia. Eles sabem que, apesar da afirmação de Gênesis 2,2 (cf. Ex 20,11), o preceito do repouso sabático não vale para Deus, que também no sábado continua regendo o mundo, dando a vida e acolhendo os 18. L. MARTIGNANI (“Il mio giorno”. Indagine esegetico-teologica sull’uso del termine hêméra nel quarto vangelo, Roma, PUG, 1998, 393) usa a expressão “escatologia vertical”, que irrompe do alto. 19. R. E. BROWN (Giovanni, op. cit., cxli-cxlviii) nota que também na comunidade de Qumran se esperava uma intervenção final de Deus, embora os membros da comunidade tivessem consciência de participar dos dons escatológicos já na vida terrena. M.-E. BOISMARD (L’évolution du thème eschatologique dans les traditions johanniques, Revue Biblique 68 (1961) 507-52) pensa que a escatologia atualizada seja uma releitura da escatologia final. R. Schnackenburg é da mesma opinião. Cf. G. RICHTER, Präsentische und futurische Eschatologie im 4. Evangelium, in P. FIEDLER, D. ZELLER (Hrsg.), Gegenwart und kommendes Reich, Stuttgart, Verlag Katholisches Bibelwerk, 1975, 125. Destacam a anterioridade da escatologia presente: E. STAUFFER, Ágnostos Christos, in W. D. DAVIES, D. DAUBE (Ed.), The Background of the New Testament and its Eschatology. In honor of C. H. Dodd, Cambridge, Cambridge University Press, 1956, 281-299; J. A. T. ROBINSON, Jesus and Its Coming. The Emergence of a Doctrine, London, SCM Press, 1957, 81. 20. Cf. A. CASALEGNO, Tempo e momento escatologico nel vangelo di Giovanni, in Tempo ed eternità. In dialogo con Ugo Vanni S.I., Cinisello Balsamo, San Paolo, 2002, 165-194; E. RUCKSTUHL, Die Literarische Einheit des Johannesevangeliums. Der gegenwärtige Stand der einschlägigen Forschungen, Freiburg in der Schweiz, Paulusverlag, 1951, 159-169; L. VAN HARTINGSVELD, Die Eschatologie des Johannesevangelium: eine Auseinandersetzung mit R. Bultmann, Assen, van Gorcum, 1962, 200. 183

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

mortos21. A frase pronunciada por Jesus indica, assim, que ele se faz igual a Deus, agindo como atua o Pai. Reintegra, portanto, o doente à sua dignidade, depois de anos de sofrimento, como no caso do paralítico (7,23), não abolindo o sábado, mas restituindo-lhe o seu sentido originário, que é o de restabelecer a harmonia na criação. Embora se faça igual ao Pai, Jesus especifica que sua relação com Deus é basicamente uma relação de dependência, como a de um filho que tudo aprende do pai, fazendo o que o pai lhe manda fazer. Por isso, nada, absolutamente nada é seu (5,19). Sua autoridade é a do enviado que atua em plena dependência e submissão àquele que o enviou. Contudo, o Pai transfere ao Filho todo poder, concedendo-lhe exercer funções que ele somente cumpre, querendo que a honra que lhe é devida seja dada ao Filho, e isso por causa do amor que ele tem pelo Filho (5,20). É nesse ponto do sermão que Jesus declara ser o Senhor da vida, realçando que a primeira missão que o Pai lhe entregou é a da vivificação (zo-opoieîn) dos que reconhecem nele o representante de Deus. Depois se segue a missão do julgamento (krínein) dos que não creem nele e o recusam. As duas obras escatológicas da vivificação e do julgamento, que na fé hebraica somente Deus pode realizar, são entregues ao Filho, que se torna o enviado do Pai que goza de todo poder, com uma função central na história de salvação22. No texto, o termo “vivificação” tem um sentido amplo; refere-se, em primeiro lugar, à saúde recuperada pelo paralítico, ao qual Jesus pede não mais pecar (5,14); mas corresponde também à vida de ressurreição que se apodera de quem crê, seja na vida presente como na futura. De fato, dizendo “Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e é agora, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão” (v. 25), Jesus se apresenta como quem pode dar a vida espiritual aos que vivem afastados de Deus, ajudando-os a passar da morte para a vida que procede do seio do Pai (5,24b; 1Jo 3,14). Neste versículo insiste-se, então, na convicção joanina de que já nesta existência o cristão pode participar da vida nova que Jesus quer dar aos que se aproximam dele. Nos versículos 28-29, a perspectiva muda, reiterando que a escatologia presente está orientada para a futura: “Não vos maravilheis disto, porque vem 21. Cf. 2 Reis 5,7; 2 Macabeus 7,22-23. Os autores notam que no Talmude de Babilônia, no tratado Taanith 2A, são mencionadas as três chaves que Deus usa também no dia de sábado: a da chuva, a do nascimento e a da ressurreição dos mortos. 22. O termo Filho referido a Jesus encontra-se nesse texto oito vezes, e em todo o evangelho somente dezoito vezes. A concentração cristológica é evidente. 184

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo”. Não se trata mais da vivificação espiritual oferecida por Jesus nesta vida, mas da própria ressurreição dos que estão nos sepulcros, da ressurreição escatológica, sempre em virtude da Páscoa em que a morte foi vencida. Também neste trecho do evangelho João destaca que o cristão encontra em Jesus ressuscitado o manancial da vida, seja para a existência presente, seja para a futura.

3. Batismo, início da vida ressuscitada A vida nova toma posse do cristão a partir do batismo. João faz referência ao sacramento da iniciação cristã no diálogo de Jesus com Nicodemos (Jo 3,3.5). O expoente do grupo farisaico não compreende as palavras de Jesus que o convidam a renascer: “Em verdade, em verdade te digo: se alguém não nascer do alto, não pode ver o reino de Deus”23. O termo grego áno-then é ambíguo e pode significar seja “do alto”, seja “de novo”. Nicodemos interpreta a palavra de Jesus como um convite a entrar outra vez no seio da mãe. Jesus retruca dizendo: “Quem não for gerado da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus” (3,5), apontando para uma geração espiritual que depende da ação divina24. Nessa geração misteriosa, água e Espírito representam dois princípios coordenados, relacionados com a fé da pessoa que é necessária, porque o dom gratuito de Deus produz fruto à medida da livre aceitação do ser humano. A nova existência se verifica, então, por meio do banho na água, recebido com fé, e pelo poder transformador do Espírito Santo25. No catecúmeno não ocorre nenhuma mudança externa, mas na realidade sua identidade profunda é transformada, porque se torna filho de Deus (1,12) e filho da luz (12,36). Acontece nele algo que pode ser comparado a uma nova criação, se o Espírito é o sopro vital que está na origem da nova existência (Gn 2,7)26.

23. O termo “reino” deve ser entendido em relação a Jesus; “entrar no Reino” significa conhecer e seguir Jesus. 24. A ação divina é indicada pelo verbo “gerar” em sua forma passiva (genne-thê). 25. M. COSTA, Simbolismo battesimale in Giov. 7,37-39; 19,31-37, Rivista Biblica 13(1965) 347383 (374). Cf. I. DE LA POTTERIE, Nascere dall’acqua e dallo Spirito, in La vita secondo lo Spirito, condizione del cristiano, Roma, AVE, 1967, 35-74. 26. No texto realça-se a transformação interior do cristão, fruto do batismo, mais do que o ato sacramental externo. 185

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Com o batismo, o catecúmeno começa a viver a vida que vem de Deus e que só ele proporciona. No sermão que se segue ao encontro com Nicodemos, Jesus aprofunda as palavras dirigidas ao chefe dos judeus, afirmando que o poder regenerador do batismo e a vida ressuscitada do cristão são fruto do sacrifício da cruz: “É necessário que o Filho do homem seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna” (3,15). Nicodemos (e com ele todos os cristãos) deve deixar que a vida que brota da Páscoa se apodere dele; só dessa forma pode ver o reino de Deus, isto é, estabelecer uma relação firme com Jesus, que renova a existência27. O poder transformador de Deus que se manifesta no batismo é indicado também pela frase “o que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito”; nela afirma-se que a carne pode somente gerar carne, a saber, seres terrenos, não renovados pela ação vivificadora de Deus; ao contrário, o Espírito gera criaturas novas, animadas pelo Espírito, que, como escreve paradoxalmente o evangelista, se tornam “espírito” (v. 6). Nesta expressão destaca-se que a ação do Espírito, que começa no batismo, acompanha o cristão ao longo de toda a sua existência, até a ressurreição no último dia28. Por isso, a vida cristã deve ser considerada como uma contínua vivificação pelo Espírito.

4. Palavra e Eucaristia, fontes de vida Se no cristão a vida nova começa com o batismo, é alimentada constantemente por meio da palavra e da eucaristia. João destaca isso no sermão na sinagoga de Cafarnaum, após a multiplicação dos pães. À multidão que pede um sinal semelhante ao do maná, Jesus retruca dizendo que não foi Moisés que deu ao povo o verdadeiro pão do céu, mas o Pai, focalizando a atenção no dom que Deus está prestes a fazer por meio dele29. A expressão usada para definir esse pão que desce do céu (6,33) é ambígua, porque na língua grega pode significar que o pão dado por Deus é “o” que desce do céu, ou “quem” desce do céu30. A dúvida é esclarecida pelo próprio Jesus, que declara: “Eu sou o 27. Também na primeira carta de João o autor usa o tema da geração de Deus para indicar a nova vida que se apodera do cristão: “Todo aquele que nasceu de Deus não comete pecado; porque a sua semente permanece nele e não pode pecar, porque nasceu de Deus” (1Jo 3,9; 5,18). 28. O verbo “nascer” no tempo perfeito (gegenne-ménos) indica essa perspectiva. 29. O autor procura esclarecer a questão debatida entre os judeus de sua época acerca do verdadeiro alimento que vem do céu, dizendo que esse não se identifica com o maná, mas com o dom escatológico, dado por Jesus. 30. Na frase “o que desce” (ho katabaíno-n) o particípio nominativo é masculino. 186

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

pão da vida”, identificando o alimento que dá a vida ao mundo com sua pessoa, enquanto Verbo encarnado e mediador de salvação em favor de todos. Se a frase se refere à pessoa de Jesus em geral, nos versículos 35-48 o evangelista destaca que Jesus dá a vida por meio da sua palavra, e nos versículos 49-58, por meio da eucaristia. Jesus é, pois, o pão da vida enquanto pão que é a palavra e pão eucarístico. Com efeito, na primeira parte do sermão insiste-se no tema da revelação e da fé, que proporcionam a vida, e não se fala do “comer” e do “beber”, referidos à eucaristia, que são característicos da segunda parte.

4.1. Jesus, palavra que vivifica (6,35-48) A expressão com que se inicia a seção, “o que vem a mim jamais terá fome e o que crê em mim jamais terá sede” (6,35), tem uma relação com a expressão típica da literatura sapiencial: “Vinde a mim todos os que me desejais, fartai-vos com os meus frutos […], os que me comem terão ainda fome, os que me bebem terão ainda sede”. Esta representa uma exortação a viver de acordo com os preceitos da Lei de Moisés que indicam o caminho certo para chegar à sabedoria e alcançar a verdadeira vida (Sr 24,20; cf. Pr 9,5-6)31. À luz dessa referência sapiencial, é possível supor que o pão da vida oferecido por Jesus seja interpretado pelo autor como o pão que é a palavra do evangelho, que oferece à humanidade uma nova sabedoria. De fato, é por meio da palavra que o cristão entra em contato com Jesus, que transforma sua vida. Outros elementos favorecem a interpretação sapiencial. Na cultura hebraica, o dom do maná era considerado símbolo da revelação de Deus que Moisés transmitiu ao povo. Fazendo uma comparação entre o maná e o pão entregue por Jesus, o quarto evangelista pode apontar para a nova revelação que Jesus proporciona aos seus discípulos. Xavier Léon-Dufour nota que o verbo “descer”, referido ao pão que desce do céu (v. 33.42), se encontra no Antigo Testamento em relação à palavra de Deus que, saindo da boca do Altíssimo, não volta para ele vazia, sem fazer o que lhe apraz (Is 55,10-11)32. À luz desses pormenores, é razoável pensar que no texto o autor afirme que Jesus é a palavra definitiva dirigida ao homem, a sabedoria verdadeira e genuína que leva ao cumprimento a revelação antiga, saciando a fome e a sede da huma31. Nos textos veterotestamentários afirma-se que os dons de Deus são inesgotáveis, enquanto em João se salienta que Jesus apaga toda fome e toda sede. 32. No Antigo Testamento usa-se o verbo “dar” a respeito do maná, não “descer”. Cf. X. LÉONDUFOUR, Leitura do evangelho segundo João, II, São Paulo, Loyola, 1996, 110. 187

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

nidade e oferecendo-lhe a salvação. Pode-se acrescentar que João, destacando no sermão que as palavras de Jesus “são espírito e são vida” (6,63), a saber, repletas de Espírito Santo (são “palavras de vida eterna”, 6,68), confirma a interpretação de que Jesus é fonte da vida, enquanto palavra que alimenta. Trata-se da vida nova que desemboca na ressurreição final, como declara Jesus: “A vontade de quem me enviou é esta: que eu não perca nenhum dos que ele me deu, mas os ressuscite no último dia. Sim, esta é a vontade de meu Pai: quem vê o Filho e nele crê tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (v. 39.40)33.

4.2. Jesus, pão eucarístico que dá a vida (6,49-58) Em quase todos os versículos da segunda parte do sermão o pão vivo se identifica com a carne e o sangue de Jesus, isto é, com a eucaristia, qualificada por Jesus como “a minha carne para a vida do mundo” (v. 51)34. O termo “carne” evoca o evento da encarnação (1,14); por sua vez, a expressão “para a vida do mundo” aponta para a cruz, na qual Jesus oferece sua vida em holocausto. O evangelista relaciona, então, encarnação, cruz e eucaristia, destacando que na eucaristia está presente o Verbo que pôs sua tenda entre nós e que se ofereceu totalmente pela salvação de todos35. Por essa razão, a eucaristia, enquanto encontro com o Cristo pascal, se torna fonte de vida para os batizados: “Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (v. 53). A qualificação “Filho do homem”, referida a Jesus em João 6,62, não destaca, vista à luz do texto de Daniel 7,13 e da literatura judaica apócrifa, sua humanidade, mas sua dimensão celeste em virtude da qual ele é mediador de salvação para o mundo (1,51). A eucaristia, então, é a carne e o sangue do Senhor glorificado que já pertence ao mundo divino e se torna alimento do cristão36. Identifica-se com a própria pessoa de Jesus vivo, como indica a 33. No versículo 40 “ver o Filho” corresponde a “crer nele” (cf. 3,16). Trata-se de uma visão interior que permite compreender a identidade de Jesus, em sua situação de glorificado, aderindo a ele com responsabilidade e convicção (cf. 9,37.38). Na frase “eu o ressuscitarei no último dia” o sujeito “eu” realça que o próprio Jesus se torna o garantidor da promessa. 34. Os versículos representam uma nova reflexão da comunidade acerca do pão oferecido por Jesus. 35. Em cada celebração o cristão é colocado em contato com o evento do Calvário, não com a ceia pascal. 36. Com muito realismo, João não fala somente de “comer” (phágein) e de “beber” (pínein), mas também de “mastigar” (trôgein) o corpo de Jesus, talvez com a intenção de opor-se a uma visão docetista da fé cristã. 188

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

frase: “Quem de mim se alimenta viverá por mim” (v. 57), em que o pronome pessoal, na forma de complemento direto “me”, corresponde aos termos “carne” e “sangue”37. Em sua situação de ressuscitado, Jesus comunica, pois, a vida a quem dele se aproxima (cf. 6,27.53). No relato, especifica-se que se trata da vida que procede do seio do Pai, que é participação da vida que o Pai transmite ao Filho e que, a partir dele, alcança os discípulos: “Como o Pai, que vive, me enviou, e igualmente eu vivo pelo Pai, também quem de mim se alimenta viverá por mim” (v. 57). Muito propriamente, Santo Inácio de Antioquia fala da eucaristia como do “único pão que é remédio de imortalidade, antídoto para não morrer, mas para sempre viver em Jesus”38. Compreende-se, portanto, por que a eucaristia é definida como “verdadeira comida” e “verdadeira bebida” (Jo 6,55). Seu fruto é a ressurreição do cristão “no último dia” (v. 54). No sermão de Cafarnaum, o evangelista realça, assim, que tanto a palavra como a eucaristia, dons exclusivos de Jesus, proporcionam aos fiéis a vida que permanece para sempre e que é fruto do Filho do homem ressuscitado39. Trata-se das “duas mesas” às quais o cristão é convidado a alimentar-se cada dia na esperança de entrar na glória futura (6,39.40.44.54)40.

5. A espera da morada definitiva Se a vida ressuscitada começa desde o presente, à medida que o cristão vive no Espírito e se alimenta da palavra e da eucaristia, ela tem um desfecho final, destacado pelo próprio Jesus, quando diz aos discípulos desconfortados por sua partida próxima: “Não se perturbe o vosso coração; crede em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar um lugar para vós. E, quando eu for e vos preparar um lugar, virei novamente e vos levarei para junto de mim, para que, onde eu estou, estejais vós também” (14,1-2). Analisemos o texto.

37. A carne e o sangue não indicam partes diferentes de uma oferenda cultual, de acordo com os sacrifícios antigos, nos quais a carne do animal era separada do sangue, derramado sobre o altar, e comida pelos participantes do banquete sagrado (Lv 7,1-10; Dt 12,27). Em João, o sangue é bebido, não aspergido no altar. 38. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Efésios, 20,2 (cf. Padres apostólicos, op. cit., 89). 39. Não fazendo menção à instituição da eucaristia, mas apresentando Jesus que oferece seu corpo e seu sangue pela vida do mundo, o autor indica que Jesus continua alimentando diretamente seus fiéis por meio da eucaristia. 40. Imitação de Cristo IV,11,4. 189

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

5.1. A casa e as moradas Para falar da habitação escatológica, o autor usa a palavra “casa”, que é símbolo de estabilidade e de segurança (cf. 8,35) e evoca a dimensão da intimidade e da acolhida que reina entre os membros da família (cf. 4,53). No fim de sua vida terrena, o cristão entrará na grande família de Deus, na qual os laços de amor que caracterizaram sua vida serão ampliados e estendidos a todos os seres. “Casa”, em João, designa também o santuário em que Deus está presente e que Jesus qualifica como “a casa de meu Pai” (2,16)41. A imagem da casa pode, então, apontar para o templo celeste em que Deus acolherá os eleitos e manifestará sua santidade (cf. Sl 41,5)42. Todos os santos constituirão esse templo edificado sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, cuja pedra angular é o próprio Cristo Jesus (Ef 2,20). O texto pode ter outro matiz. Na perícope da purificação do templo, com a frase “Destruí esse templo e em três dias o levantarei”, o evangelista especifica que esse templo é o próprio corpo de Jesus ressuscitado, porque com sua frase Jesus aponta para “o santuário (naós) do seu corpo” (Jo 2,19.21)43. A casa do Pai, na qual Jesus introduz os fiéis, se identifica, então, com a sua pessoa glorificada, ao redor da qual se reúnem os redimidos44. O texto continua dizendo que nesse templo se encontram muitas “moradas” (monaí), referindo-se às residências celestes dos justos, ao lugar de descanso dos santos, de acordo com a literatura judaica apócrifa que descreve a corte celeste de Deus45. Dessa forma, João imagina o santuário celeste constituído por vários lugares de habitação. O simbolismo não tem o intuito de aludir a uma hierarquia de moradias existentes no céu, de acordo com os méritos dos santos ou com seus graus de perfeição. Mas, por meio de uma linguagem corriqueira, destaca a variedade e a riqueza que caracterizarão a reunião de 41. Em 14,2, a palavra oikía substitui o termo oikós. Cf. J. McCAFFREY, The House with Many Rooms. The Temple Theme of Jn. 14,2-3, Roma, PIB, 1988, 29-46. 42. No Salmo 41,5 (LXX) lê-se: “Fui com eles à casa de Deus, com voz de alegria e louvor, com a multidão em festa”. Também em Fílon encontra-se a terminologia da “casa paterna” para indicar o lugar da bem-aventurança dos justos (De somniis I, 256; De confusione linguarum 78). 43. O quarto evangelista usa o termo hierón para falar do templo em geral (Jo 2,2,14.15), mas qualifica o corpo ressuscitado de Jesus de naós, que corresponde à parte mais sagrada do templo, o sacrário (2,19.21). 44. Pronunciando essas palavras Jesus se manifesta implicitamente como o Messias a quem a tradição judaica atribui a construção do templo escatológico. 45. 1 Henoc 22; 39,4-5; 41,2; 71,16; cf. Livro dos segredos de Henoc 61,2-3. Cf. R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni, III, op. cit., 101-102. Em 4 Esdras 7,80 fala-se dos “quartos de repouso” dos santos (cf. At 3,20-21). Provavelmente a ideia das moradas celestes está presente em Lucas 16,9, em que se fala de “tabernáculos (skênaí) eternos”. 190

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

todos os que são salvos na casa do Pai. Dizendo que as moradas são “muitas”, o autor afirma que o templo preparado por Jesus é para todos, porque a salvação tem dimensões universais. Realça-se, assim, que todos os justos viverão em comunhão entre si e terão uma relação particular com Jesus, que venceu a morte e, por meio dele, com Deus, porque onde está Jesus glorificado lá está o Pai. A perspectiva futura que o quarto evangelho oferece ao cristão está cheia de esperança.

5.2. A partida e a volta de Jesus Com as palavras “Quando eu for e vos preparar um lugar, virei novamente e vos levarei para junto de mim, para que, onde eu estou, estejais vós também”, Jesus fala de sua morte com a metáfora da viagem. Indo para a casa do Pai, realiza seu êxodo: anda à frente de seu povo, conduzindo-o para a terra prometida, assim como Deus abriu o caminho no deserto para Israel, procurando-lhe “o lugar para acampar” (Dt 1,33). Jesus promete, porém, retornar — “virei novamente” (pálin érchomai) —, para tomar consigo os discípulos e introduzi-los na vida definitiva (Jo 14,3). O verbo “tomar consigo” (paralambánein), raro em João (1,11; 19,16), tem sempre o sentido de receber algo que é oferecido, indicando que os crentes representam o dom que o Pai faz a Jesus (6,39; 17,24) para que os leve até o santuário escatológico46. Também os discípulos devem fazer uma viagem semelhante à de Jesus, depois de ele ter-lhes preparado o lugar, atravessando a mesma distância que separa Jesus do Pai. O abismo da morte é, porém, atravessado junto com Jesus — “comigo” (pròs emautón) —, tirando todo o medo, porque a meta final é o encontro com o Pai. O texto não destaca as modalidades do retorno de Jesus, nem oferece indicações temporais a respeito, permitindo pensar que a frase não indica somente a vinda final de Jesus (que acontece com a morte de cada pessoa), mas também suas visitas no decorrer da história. Essas visitas ocorrem por meio do Espírito Santo que continua a obra de Jesus no tempo da Igreja (16,8), fazendo que o próprio Jesus glorificado venha morar no coração dos discípulos, junto com o Pai (14,23). De fato, no texto, a vinda de Jesus no momento escatológico está relacionada com suas vindas na história, porque o evangelista declara que o Pai e o Filho colocam sua “morada” entre os fiéis desde sua existência terrena, usando o mesmo termo, monê, que usa para indicar as moradas 46. J. McCAFFREY, The House with Many Rooms, op. cit., 116-120. 191

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

eternas que Jesus vai preparar (monaí). A vinda escatológica de Jesus é, pois, a conclusão de suas inúmeras visitas ao longo da história com que, depois da Páscoa, conforta os fiéis, preparando-os para a grande viagem47. Demonstra-se assim que as intervenções salvíficas de Jesus, no tempo da Igreja, em favor dos que o amam e guardam suas palavras, encontrarão sua plenitude no encontro final. O que vai acontecer no momento escatológico está já acontecendo nesta vida, à medida que os cristãos reconhecem as visitas que Jesus e o Pai lhes proporcionam. Embora de forma misteriosa, têm a possibilidade de morar na casa do Pai já antes de Jesus voltar para levá-los consigo. Não se trata de utopia, mas de certeza de fé. A partir do tempo presente, realizam-se, de fato, o desejo de Jesus: “onde eu estou, ali estará também o meu servo” (12,26; 17,24), e seu pedido: “que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós” (17,21). A reunião escatológica na casa do Pai é, pois, antecipada na comunidade eclesial ao redor de Jesus, que reconcilia a humanidade com Deus.

5.3. Jesus, caminho para o encontro com Deus Após ter apresentado o objetivo derradeiro: a casa do Pai, Jesus indica o caminho para chegar até ela (14,4). Esse caminho é ele mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (v. 6). Na frase, os termos não são equivalentes. Jesus é o caminho porque proclama a verdade, isto é, a revelação definitiva que vem do Pai, permitindo a todos chegar à vida que dura para sempre. O caminho é o meio, a verdade é o primeiro resultado que o discípulo alcança permanecendo fiel a Jesus, a vida é a finalidade última da “aventura” cristã. Em outros termos, Jesus, revelando a verdade que conduz à vida e comunicando essa vida aos que acreditam nele, se torna o caminho seguro que leva ao Pai, cujo encontro representa a perfeita realização da existência humana. Agostinho comenta: “Ouve o Senhor dizer-te em primeiro lugar: ‘Eu sou o caminho’. Antes de dizer aonde deves ir, mostrou por onde deves seguir. ‘Eu sou’, diz ele, ‘o caminho’. O caminho para onde? ‘Eu sou a verdade e a vida’. Disse primeiro por onde deves seguir e só depois disse aonde deves ir. Eu sou o caminho, eu sou a verdade, eu sou a vida. Permanecendo junto do Pai, era verdade e vida; revestindo-se de nossa carne, tornou-se o caminho”48. 47. As aparições, apresentadas como “vinda” de Jesus no meio dos seus — “veio Jesus” (20,19.24.26; 21,13) — representam um exemplo dessas visitas. 48. AGOSTINHO, Comentário ao Evangelho de São João 34,9 (cf. AGOSTINO, Commento al Vangelo di San Giovanni, Col. Nuova Biblioteca Agostiniana 24, op. cit., 725). 192

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

Os santos padres lembram que é melhor manquejar no caminho do que andar com passo rápido fora da rota. Quem manqueja no caminho, embora avance pouco, contudo se aproxima da meta. Quem, ao contrário, anda fora do caminho, quanto mais corre rapidamente, tanto mais se afasta da meta49.

6. Seriedade da vida cristã À luz do seu desfecho escatológico, torna-se evidente que a vida humana é coisa muito séria, como Jesus lembra no sermão após a cura do paralítico: “Vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; e os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de condenação” (5,28-29). No momento final é possível, então, receber o abraço amoroso do Pai que chama para a vida ou escutar uma palavra de reprovação.

6.1. A responsabilidade humana João destaca que o ser humano será julgado pelas obras, de acordo com a perspectiva bíblica50, e que sua sorte final depende da graça de Deus, mas também de sua responsabilidade. A todos apresentam-se, de fato, duas possibilidades: “ressurreição de vida” ou “ressurreição de condenação”. A expressão, constituída por um binômio opositivo, corresponde à de Daniel 12,2: “Muitos dos que já dormem no pó da terra acordarão novamente, uns para a vida eterna, enquanto outros para a vergonha e para a desgraça eterna”; e é conforme ao “dualismo joanino”, que se refere à situação humana dividida em duas esferas contrapostas: luz e trevas. Expressando-se dessa forma, o autor não quer dizer que também os maus vão participar da ressurreição, porque esta não pode ser relacionada com a condenação, como mostra, no texto, a equivalência entre os termos “ressurreição” e “vida”, realçando que a ressurreição consiste na vida (Jo 5,21). Por sua vez, o binômio “fazer o bem” e “fazer o mal” não indica somente um comportamento moral positivo ou negativo; na teologia joanina, corresponde a levar a sério a pessoa de Jesus, reconhecendo nele o Redentor e não simplesmente um personagem histórico importante, sem, porém, particular influência na vida de cada ser. Dessa forma, uma vez mais o evangelista destaca a cen49. Cf. TOMÁS DE AQUINO, Super evangelium S. Joannis, Lectura 14, lectio 2. 50. Cf. Mateus 25,31-46; Atos 17,31; Romanos 2,6; 1 Coríntios 3,8.13-15; 5,10; Efésios 6,8; 2 Timóteo 4,1. 193

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

tralidade de Jesus na economia da salvação e lembra que a sorte dos homens é a consequência da adesão a ele ou da sua recusa. É importante acrescentar que tanto a aceitação como a recusa podem ser implícitas no comportamento concreto de cada pessoa, porque nem todos chegam a conhecer historicamente Jesus e sua mensagem. De fato, será Jesus que, como “Filho do homem”, avaliará cada existência, fazendo o julgamento em nome de Deus. Para essa tarefa, ele tem uma “autoridade” particular (exousía, v. 27a) em relação a “todos” os que indistintamente estão nos túmulos (v. 28), incluindo também as gerações que viveram antes dele e que conheceram o plano salvador somente pela criação e pela Lei de Moisés (1,9.11), sem nunca terem um contato direto com a sua pessoa. Isso mostra que os caminhos da graça são imprevisíveis51. Se em 5,29 fala-se de ressurreição de vida e de ressurreição de condenação, isso não significa que a possibilidade de ser reprovado é igual à de alcançar a vida. O fiel da balança se inclina para o lado da vida, porque Deus quer salvar o homem e não condená-lo, como João destaca desde o início de seu evangelho: “De tal forma Deus amou o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (3,16; cf. 4,42; 6,38; 12,47)52. No quarto evangelho a possibilidade de condenação é interpretada como uma autocondenação, porque “Se alguém ouvir as minhas palavras e não as guardar, eu não o julgo; porque eu não vim para julgar o mundo, e sim para salvá-lo”. Com efeito, a tarefa de Jesus é resgatar o mundo pecador, não condená-lo (4,42). Quem, no último dia, julgará aquele que rejeita Jesus e seu evangelho é a própria palavra que Jesus proferiu (12,47-48). A condenação e a morte se tornarão, assim, a confirmação trágica da recusa humana do único redentor.

51. No desempenho da função escatológica, Jesus atua de forma dependente do Pai, em perfeita comunhão com ele (5,30). Como escuta, assim julga, procurando somente a vontade de Deus, que ama a todos e que quer a redenção de todos os viventes (4,34; 6,38; 7,18; 8,50a). 52. A consideração da bondade de Deus não impede o autor de usar a imagem antropológica da “ira de Deus” (3,36), que aponta para o julgamento punitivo de Deus, de acordo com a tradição (Mt 3,7; Lc 3,7; cf. 1Ts 1,10; 2Ts 1,5; Rm 2,8). À luz do Novo Testamento, que declara que “Deus é amor” (1Jo 4,8.16), o termo deve ser interpretado como decepção por parte de Deus pela criatura que se autodestrói, representando, de certa forma, outro aspecto de sua misericórdia. 194

Capítulo 10 – A ressurreição do cristão

6.2. Viver na fé e no amor Se o destino final de cada ser depende da graça de Deus, juntamente com a qualidade de sua existência terrena, para que essa se realize em plenitude o quarto evangelista lembra a importância da fé e do amor (13,34; 14,1). “Fé” significa opção por Jesus, reconhecido como palavra definitiva de Deus e salvador da humanidade. Fé inclui a conversão e exige “caminhar na luz” com fidelidade, até o último dia da vida, superando a tentação dos ídolos (8,12; 11,9-10; 12,35). “Amor” denota entrega generosa em favor dos outros, na concretude do serviço aos irmãos (13,13-17). Não se trata de algo romântico ou abstrato, porque no quarto evangelho o amor está relacionado com a observância dos mandamentos de Jesus, o que permite permanecer na Aliança com Deus (14,21). Não há fé autêntica sem amor, porque a fé necessariamente atua pelo amor (Gl 5,6). Para João, fé e amor representam, então, as dimensões básicas do caminho cristão que garantem aos batizados uma vida de ressurreição, desde a existência terrena, tirando o medo da condenação. O evangelista acrescenta que a fé é uma resposta a um chamado que vem do Pai (Jo 6,44). Também o amor é um dom que procede de Deus, porque “todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4,7). A possibilidade de crer e de amar depende, pois, de uma graça oferecida a todos os seres dos quais Deus quer a salvação. Essa graça, porém, pode ser recusada. Se aceita, transforma a vida, ampliando os horizontes e oferecendo o sentido genuíno da existência; se rejeitada, abre-se o caminho da perdição.

6.3. A ressurreição de vida Por meio da expressão “ressurreição de vida” (5,29) João especifica o termo “ressurreição” com o termo “vida”, dizendo que o destino futuro de todos os salvos será uma vida renovada, uma explosão de vida, uma plenitude da vida que não pode ser imaginada nem descrita com parâmetros terrestres (1Cor 2,9). Essa vida corresponde à vida “em abundância” que o cristão já experimenta na existência terrena à medida que está aberto a receber a ação transformadora de Jesus ressuscitado (Jo 10,10). Desabrocha em plenitude na comunhão universal de todos os seres no templo celeste, em que as riquezas interiores de cada um enriquecerão a todos, como sugere a imagem joanina da grande família de Deus na casa do Pai, em que há muitas moradas (14,2)53. 53. Para indicar a realidade escatológica, o Apocalipse fala das núpcias do Cordeiro (Ap 19,7.9) e usa a imagem da cidade nova, construída com material precioso (21,9–22,5). 195

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Nessa comunhão de amor realizar-se-á o “cumprimento” pleno da existência humana, que inclui em si novidade, transformação e crescimento, numa relação sempre nova com todos os eleitos e com Deus. As características de cada ser humano não serão apagadas, mas potencializadas e purificadas, como declara Inácio de Antioquia, dizendo que ele se tornará verdadeiramente “homem” somente no encontro com o Senhor e inserido na comunidade glorificada dos eleitos54: verdadeiramente homem, porque liberto do aviltamento do pecado e inserido no Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Se é verdade que a vida do além, esperada pelos cristãos, permanece um mistério, fruto exclusivo da benevolência de Deus, ela é, porém, oferecida a todo batizado desde já na eucaristia, na qual se faz memória da Páscoa do Senhor. É interessante notar que os mártires em Abitene, na África, perante seus carrascos, não tiveram medo de dizer que não podiam viver sem a celebração eucarística do domingo: “Sine dominico non possumus”, convencidos de que na eucaristia se prenuncia a comunhão futura de todos os santos, se robustece a esperança, permitindo já nesta vida a realização de uma convivência reconciliada e aberta aos outros.

54. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Romanos 6,2 (cf. Padres apostólicos, op. cit., 106). 196

Capítulo 11

O corpo da ressurreição

Depois de ter destacado que no quarto evangelho a ressurreição do cristão começa na vida presente e está intimamente relacionada com a ressurreição de Jesus, é preciso fixar a atenção sobre o desfecho da história da salvação: a ressurreição dos mortos. A esse respeito multiplicam-se as questões. No ser humano existe a alma? A alma é verdadeiramente imortal? Também o corpo participará da ressurreição? No momento final, a alma e o corpo reunir-se-ão novamente? A ressurreição ocorrerá logo após a morte, no encontro com Deus, ou no final dos tempos? Haverá dois juízos: um particular, outro universal? Para compreender melhor o anúncio do Novo Testamento, em primeiro lugar é preciso livrar-se da visão simplória e popular, ainda espalhada na cultura ocidental, que considera o ser humano um composto de duas entidades distintas, alma e corpo. Estas são chamadas a juntar-se novamente no momento escatológico, depois da separação determinada pela morte. Trata-se da herança da filosofia grega que imaginava o corpo como a prisão da alma e a morte como a libertação da matéria, permitindo à alma entrar no mundo da eternidade1. A fé cristã recusa essa perspectiva que menospreza o corpo, 1. No Fédon de Platão, 66B-D, lê-se: “Até quando possuirmos um corpo, e nossa alma ficar atrelada a esse mal, nunca alcançaremos de forma adequada o que ardentemente desejamos, a saber, a verdade. Com efeito, o corpo nos procura inúmeras preocupações por causa da necessidade da 197

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

mas que é aceita, com pequenas variações, por vários movimentos religiosos e filosóficos como o gnosticismo e o idealismo.

1. A visão antropológica da Bíblia Na antropologia bíblica o ser humano é uma realidade unitária, embora os autores sagrados utilizem vários termos para qualificá-lo tanto no Antigo como no Novo Testamento.

1.1. Corpo (ba-sa-r, sôma) “Corpo” caracteriza todo o ser humano a partir de seu aspecto físico, de sua estrutura orgânica e material, de sua concretude existencial que faz que ele seja este homem e não outro2. Deste, o termo destaca a caducidade, a dimensão transitória e passageira. “Corpo” tem uma relação com o termo “carne” que indica também a fragilidade constitutiva do ser humano, sua fraqueza moral que se manifesta, de forma especial, em sua inclinação para o pecado que o avilta, afastando-o de Deus, que é o santo por excelência e permanece para sempre (Sl 65,2-3; 1Jo 2,26)3. Por isso, o salmo destaca: “Passa o homem como uma sombra” (Sl 39,6), e cada ser humano deve confessar com Davi: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe” (51,5). Se tanto “corpo” como “carne” evidenciam a precariedade do ser humano, indicam também o que permite o relacionamento e a solidariedade entre os seres, fazendo que o homem possa crescer, aprender, desenvolver-se, chegando a ser uma pessoa madura, formada por recíprocas influências. Essa dimensão solidária, determinada pela “carne”, é realçada por Adão, que diante de Eva declara: “Esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2,23; 37,27)4. “Corpo” e “carne” se referem, assim, ao homem em sua integridade, frágil, pecador e solidário com seus semelhantes. Reconhecendo que o ser nutrição; as doenças, quando nos alcançam, nos impedem a procura do ser. Além disso, o corpo nos enche de amores, de paixões, de medos, de fantasmas de todo tipo, de muitas vaidades […] Se queremos ver as coisas na sua pureza, devemo-nos afastar do corpo e olhar somente com a alma as coisas em si mesmas”. 2. Em alguns textos o termo “corpo” indica a pele, os músculos, os ossos, os tendões do ser humano, igualando-o ao animal (Jó 2,5; 10,11; Ez 37,6). 3. O salmista nota que “os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos” (Sl 90,10). Cf. Josué 23,14; 1 Reis 2,2. 4. H. KESSLER, La resurrezione, op. cit., 298-313; J. B. ÉDART, Corpo, corporeità, in Temi teologici della Bibbia, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2010, 231-236. 198

Capítulo 11 – O corpo da ressurreição

humano é corpo e carne, a revelação bíblica não exclui sua dimensão inteligente e livre, embora essa não seja afirmada explicitamente, mas pressuposta e indicada obliquamente a partir de sua caducidade existencial. Pedro, na festa do Pentecostes, citando a profecia de Joel: “Derramarei do meu Espírito sobre toda a carne” (At 2,17), reconhece que o dom de Deus atinge a todos os seres, em todas as suas dimensões: físicas e espirituais5.

1.2. Alma (néfesh, psychê) Para os autores bíblicos, o termo “alma” é outra forma para falar do ser humano em sua totalidade, apontando para sua dimensão psíquica e para sua personalidade emocional. No Salmo 103,1, em que se lê: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim bendiga ao seu santo nome”, “alma” se torna uma definição de homem. Também quando Jesus diz: “Quem quiser salvar a sua alma (psychê) perdê-la-á; e quem perder a alma por causa de mim e do evangelho salvá-la-á”, refere-se ao ser humano em sua completude e não somente à parte espiritual do homem6. Não se pode, portanto, afirmar que o homem tem uma alma distinta do corpo, que existe de modo independente, como costumamos dizer. Em sua totalidade, ele é corpo, tirado da argila, e alma espiritual; melhor, é corpo animado mais do que alma encarnada, sendo uma unidade indissolúvel. Na Bíblia, a alma é a sede dos sentimentos e das aspirações, como o amor (Gn 34,3; Ct 1,7), o ódio (2Sm 5,8), a amargura (1Sm 1,10) e a tristeza (Mc 14,34). Também a compaixão (Jó 30,25), o desejo de Deus (Sl 42,2; Dt 6,5) e o júbilo (Lc 1,46) procedem da alma. Ela é, outrossim, símbolo da penúria e da avidez, porque em alguns textos corresponde à goela que experimenta a fome e a sede e do ser humano (Ecle 6,7)7, indicando a carência radical do homem e sua necessidade contínua de aperfeiçoamento.

1.3. Espírito (rûah., pneûma) Na antropologia bíblica a pessoa humana é caracterizada também pelo termo “espírito”, que em alguns casos está relacionado com as moções naturais e as paixões humanas, correspondendo de certa forma à alma (Sl 51,12b; 5. H. W. WOLFF, Antropologia dell’Antico Testamento, Brescia, Queriniana, 1975,40-47; cf. A. MARcorpo, in Dizionario teologico interdisciplinare, Torino, Marietti, 1977, I, 364-378. 6. H. W. WOLFF, Antropologia, op. cit., 18-39. 7. “A alma (néfesh) farta pisa o favo de mel, mas à alma faminta todo amargo é doce” (Pr 27,7). Cf. J. B. ÉDART, Anima, in Temi teologici della Bibbia, op. cit., 45-50.

RANZINI, Anima,

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Pr 18,14; At 17,16). O espírito, porém, conota basicamente a sede da vontade (Jr 51,11); é o sopro vital que Deus infundiu ao homem na criação8, uma força divina que lhe permite superar a fraqueza endêmica que o caracteriza, proporcionando-lhe inteligência e conhecimento (Ex 31,3) para exercer as funções necessárias para a vida da comunidade, por exemplo dirigir o povo (Jz 3,10; 1Sm 10,6) e falar em nome de Deus (Is 42,1). Sem o espírito, nada disso estaria a seu alcance. Na maioria das vezes o termo indica, então, todo o ser humano provido da força que vem do alto, aberto a Deus e dependente dele, com o papel de ser no mundo seu representante. Segue-se que o homem não é somente corpo, mas também alma e espírito. Como a alma (néfesh) e o corpo (ba-sa-r), também o espírito (rûah.) é caduco e transitório. A imortalidade pertence só a Deus e não está à disposição do homem, feito de barro (Ecl 3,19), sem com isso negar que Deus possa fazer que o ser humano supere sua morte física. A concepção bíblica do homem é, pois, tripartite, como realça a exortação paulina: “O vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5,23). O espírito é mencionado em primeiro lugar, sendo a dimensão mais nobre do ser humano; em seguida faz-se referência à alma e ao corpo9, sem que nenhum desses termos indique uma parte do homem, porque todos o qualificam em sua globalidade, embora segundo perspectivas diferentes.

1.4. Coração (leb, kardía) Também o termo “coração” indica na Bíblia o ser humano em sua integridade, referindo-se, de forma particular, às disposições íntimas da pessoa, realçando, como o termo “espírito”, suas funções intelectivas e volitivas10. Trata-se de uma categoria sintética, sinônimo da personalidade do homem que vive no mundo de forma consciente e responsável11. Não aponta — como em nossa cultura — para sua dimensão afetiva, mas para o raciocínio12. Por isso, um homem “sem coração” significa sem inteligência e sem a capacidade de compreender a realidade (Os 7,11), assim como “falta de coração” indica 8. Ibid., 48-57. 9. No Novo Testamento, com o termo pneûma os autores sagrados se referem normalmente ao Espírito Santo. 10. Cf. Deuteronômio 29,4; 1 Reis 3,9. O coração se regozija no Senhor (1Sm 2,1), fica agitado (Is 7,2), manifesta seus desejos (Sl 21,2), experimenta o medo, a timidez (Dt 20,8) e as emoções em geral (1Sm 24,6). 11. H. W. WOLFF, Antropologia, op. cit., 58-83. 12. Na Bíblia, a sede dos afetos são os rins. 200

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falta de bom senso (Pr 24,30)13. Enquanto órgão central do corpo, o coração corresponde ao centro da pessoa e representa a sede da sabedoria (Sl 90,12), como diz a Escritura: “o coração sábio procura o conhecimento, mas a boca dos insensatos se apascenta de estultícia” (Pr 15,14; cf. 16,23; 18,15).

1.5. Linguagem a ser preservada A rápida análise das categorias antropológicas bíblicas mostra que o ser humano é sempre considerado uma totalidade, uma unidade psicossomática, embora sob aspectos diferentes. Quando, portanto, os autores sagrados falam de corpo, pensam sempre no homem como um todo, incluindo, em sua dimensão física, a sensibilidade e a afetividade, o intelecto, a vontade e a liberdade, a faculdade de compreender, a capacidade de decidir e a abertura para o infinito14. Apesar disso, a distinção entre corpo e alma continua tendo seu valor. De fato, é sempre necessário usar o termo “alma” para salvaguardar a concepção espiritual da pessoa humana, cuja característica é não ficar presa na dimensão orgânica. O ser humano tem a capacidade de projetar-se para o futuro, de construir-se de acordo com sua vocação, desenvolvendo sua identidade pessoal ao longo do tempo, superando seus limites físicos. É possível dizer, então, que entre alma e corpo há uma dualidade, não um dualismo, sendo ambos momentos da única e indivisível realidade que é o “eu”15. Por isso, a perspectiva antropológica judaica que realça a unidade do corpo e da alma não deve ser considerada de forma monolítica, nem totalmente oposta à visão helenística16, seja porque no livro da Sabedoria se fala de alma e de imortalidade (Sb 3,4; 4,1; 8,13.17; 15,3), seja porque nem na cultura grega houve uma visão do ser humano exclusivamente platônica, como facilmente se supõe17. À luz desses elementos, fica claro que não tem sentido falar da sobrevivência de uma “parte” do ser humano. A ressurreição consiste na restituição da

13. E. BIANCHI, Cuore, in Temi teologici della Bibbia, op. cit., 288-294. 14. J. MOINGT, Immortalité de l’âme et/ou résurrection, Lumière et Vie, 107 (1972) 65-78 (75). 15. R. LUCAS LUCAS, Orizzonte verticale. Senso e significato della persona umana, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2007, 95-118. Cf. TH. G. CASEY, Il ritorno dell’anima, La Civiltà Cattolica 162 (2011) 339-350. O “eu” corresponde ao “self ” da psicologia analítica de C. G. Jung. 16. C. MARUCCI, Resurrezione nella morte? Esposizione e critica di una recente proposta, in G. LORIZIO, Morte e sopravvivenza, Roma, AVE, 1995, 289-316. 17. K. RAHNER (A proposito dello stato intermedio, in Teologia dell’esperienza dello Spirito, Roma, Paoline, 1977, 557-570 [567]) afirma que a distinção entre imortalidade e ressurreição deve ser considerada de forma unitária. 201

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vida ao homem em sua totalidade, embora de forma que escapa à nossa compreensão18. É preciso reconhecer que a reflexão contemporânea, valorizando a corporeidade, favoreceu a visão unitária do homem, característica da Escritura, ajudando a deixar de lado certo dualismo antropológico do passado.

2. A realidade da morte 2.1. Condição mortal do ser humano e fidelidade de Deus À luz da perspectiva bíblica referente ao ser humano, levantam-se outras questões: o que permanece do ser humano que faleceu? É ainda possível um “sujeito” após a morte, ou não existe mais nada? A resposta negativa dada a essas perguntas por certa mentalidade relativista moderna não deve assustar. Algumas experiências, ao alcance de todos, nos convidam à prudência. Em sua complexidade, cada ser humano é uma personalidade determinada e única. Ele é consciente de que sua alma e seu espírito estão relacionados com sua dimensão física e corpórea e dependem dela; repara, porém, que, sendo um ser livre, sua interioridade difere profundamente da mera dimensão sensitiva e do puro elemento psicológico que caracterizam os animais. Sua dignidade se expressa na capacidade de viver de acordo com princípios morais que são alheios aos seres inferiores19. Além disso, tem em si uma abertura constitutiva para o transcendente, como demonstra o fato de nunca estar satisfeito com o que alcançou, projetando-se continuamente para fora de si e para o futuro, sendo capaz de superar os limites de sua existência e todos os objetivos já atingidos. É possível dizer que está aberto para a totalidade do ser, a saber, para Deus, com quem pode entrar em diálogo, escutar sua palavra, responder aos seus apelos e tomar decisões adequadas. Sua existência não se esgota, pois, no mundo material, efêmero e transitório, mas transcende esse mundo. Também a capacidade de perceber que a felicidade pela qual anseia não se realiza nesta vida permite-lhe entender que sem uma perspectiva transcendente seu ser ficaria frustrado, experimentando uma relação com o absoluto que nunca pode ser alcançada. Esses sinais que o homem descobre em si, à medida da sua capacidade de refletir, apontam para a possibilidade da superação da morte. Isso não significa que a vitória sobre a morte dependa dele, mas que no núcleo mais profundo

18. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, L’altra dimensione, op. cit., 214-216. 19. M. KEHL, E cosa viene dopo la fine? Sulla fine del mondo e sul compimento finale, sulla reincarnazione e sulla resurrezione, Brescia, Queriniana, 2001, 150-162. 202

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de sua personalidade há uma disponibilidade para receber a vida que vem de Deus, levando à plenitude seu ser. Na filosofia tomista, essa dimensão é chamada de “potência obediencial”, que consiste na capacidade concreta e natural do ser humano de acolher os dons de Deus. Em outras palavras, consiste num “poder ser” que não é algo de fictício ou mera especulação teórica, mas uma realidade que faz que ele possa receber a vida e a imortalidade que Deus lhe oferece. A imortalidade não deve, pois, ser entendida como uma qualidade natural da alma, uma substância espiritual que permanece no momento do falecimento, mas como um dom de Deus que preserva, na morte, a identidade de cada ser20. Justamente foi afirmado que a imortalidade tem um caráter dialógico, porque a vida após a morte depende basicamente da recíproca relação de Deus com o ser humano e do ser humano com Deus21. No ato do falecer, Deus, com o seu “sim” incondicionado e irrevogável à sua criatura, chama para a vida o ser humano em sua integridade e não somente a parte espiritual dele, mostrando-lhe que sua fidelidade e seu amor são mais fortes do que a morte22. No primeiro documento do Novo Testamento, Paulo destaca que os falecidos estarão para sempre com o Senhor, sem fazer distinção entre corpo corruptível e faculdades superiores (1Ts 4,14.17). A esperança da ressurreição não depende, portanto, de uma característica pessoal e interior do ser humano, mas de Deus, que age por meio de Jesus ressuscitado, com o qual o cristão desde o batismo tem laços particulares (1Cor 15,16-17). Essa relação com Cristo interessa a todos os homens porque o Verbo, encarnando-se, se tornou irmão de todos.

2.2. Lado positivo da morte Normalmente define-se a morte em oposição à vida. À luz da perda irreversível das funções vitais e da separação definitiva dos entes queridos, pensa-se que a morte corresponda a “não ser mais”. Por isso, a morte evoca o nada e a escuridão total e definitiva. Daí as tentativas da cultura contemporânea de exorcizar a morte com o trabalho, a geração de filhos, a produção

20. Cf. J. MOINGT, Immortalité, op. cit. 76. 21. J. AUER, J. RATZINGER, Escatologia: morte e vita eterna, Assisi, Cittadella, 31996, 162-165.169170. A doutrina da imortalidade se espalha no âmbito cristão por influência do helenismo. Os Padres da Igreja do século II afirmam que a imortalidade pertence a Deus e que o ser humano recebe de Deus a capacidade de perseverar no ser por meio do dom do Espírito Santo. 22. O inferno consiste na recusa a receber a plenificação da existência por parte de Deus. 203

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técnica e cultural, marginalizando os doentes nos hospitais, disfarçando os cadáveres dos falecidos no velório e apressando a sepultura deles para não se deparar com a realidade da morte. Essa consideração da morte e esse modo de proceder não são corretos e dependem da situação aviltada do homem, que, por causa do pecado, pensa que o falecer seja algo de horroroso e hediondo. A verdade é que a morte faz parte da existência humana desde o seu começo e nos ajuda a viver e a refletir sobre os valores da vida. Não vem de fora, mas se manifesta na fase terminal da vida humana23. A comparação com a personagem que tem a foice na mão, pronta para ceifar a messe madura, não está certa. A imagem é o fruto da angústia do ser humano, consciente de que a morte é “o caminho de todos os da terra” (Js 23,14), cuja chegada é repentina, obrigando a deixar muitos projetos inacabados (Gn 3,19)24. Como justamente declara Martin Heidegger, o homem é um ser “para a morte”, e a morte constitui sua única certeza25. Se o único dado seguro na existência humana é a morte, ela não é somente uma realidade negativa que nos acompanha na viagem da vida. Na condição atual, tem a grande vantagem de favorecer a capacidade de decisão do ser humano, permitindo sua realização26. De fato, a experiência do tempo que passa, juntamente com a do limite da vida humana, estimula cada ser a fazer escolhas contínuas e a exercer sua liberdade. Sem essa ajuda, o homem talvez nunca tivesse a coragem de tomar decisões e, então, nunca se tornaria uma pessoa completa, porque seu crescimento interior é o fruto de suas opções. Isso não elimina o drama da morte, porque a experiência de que nossa habitação será arrancada para longe de nós, como a tenda de um pastor (cf. Is 38,12), representa algo de doloroso. A morte é, portanto, uma realidade ambígua: ajuda o ser humano a viver e ao mesmo tempo determina o fim de sua peregrinação terrestre com uma ruptura definitiva27.

23. A. NITROLA, Trattato di escatologia, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2010; II: Pensare la venuta del Signore, 67-97. Cf. G. URÚBARRI, Sentido cristiano de la muerte. Apuntes pastorales, Estudios Eclesiásticos 82/1 (2007) 85-118. 24. E. CORTESE, La morte che viene dalla colpa, Parola, Spirito e Vita 32 (1995) 77-93. 25. K. RAHNER, Sulla teologia della morte, Brescia, Morcelliana, 1965; ID., Il morire cristiano, in Mysterium salutis 5,1, Brescia, Queriniana, 1978, 557-594. 26. E. FIZZOTTI (Morte e immortalità. Loro significato nella società contemporanea, in L. GENTILE [a cura di], Morte ed eternità alla luce della fede e della ragione, Pescara, Sigraf Editrice, 2005, 63-72) nota que cada evolução do ser humano implica sempre algo que morre. Por isso a dialética morte-vida faz parte da existência humana. 27. M. KOLARCIK, The Ambiguity of Death in the Book of Wisdom, Roma, PIB, 1991; J. L. RUIZ DE LA PEÑA, L’altra dimensione, op. cit., 309-317. 204

Capítulo 11 – O corpo da ressurreição

Perante essa situação dramática, à qual muitas correntes filosóficas e religiosas procuraram dar uma resposta, Jesus oferece uma palavra iluminadora e sumamente digna de respeito. Tira toda ideia de derrota e de desgraça irreparável, qualificando a morte de passagem para o Pai (Jo 13,1). Declara que, considerada a partir de Deus, a morte é uma oferenda de graça e salvação que permite a cada pessoa encontrar sua autenticidade, uma vez liberta da situação de pecado que caracteriza a existência humana (8,23-24)28. Por isso o aspecto externo da morte leva ao engano, não deixando transparecer o cumprimento interior do ser que se realiza por meio dela. Isso vale em particular na teologia de João, na qual a vida definitiva da graça e a ressurreição já começam na existência terrena. Se na morte o ser humano termina sua vida neste mundo, isso não significa que ele não existe mais em absoluto, porque sua abertura estrutural para o infinito não pode ser destruída. Não é ilógico, pois, de um ponto de vista meramente racional que com a morte o homem entre no âmbito transcendente que constitui o horizonte de sua vida histórica e para o qual está constantemente projetado. Essa possibilidade se torna ainda mais plausível porque somente no falecer o ser humano alcança sua identidade específico-pessoal. Acrescenta-se que a morte não deve ser considerada unicamente como um ato passivo que deve ser aceito sem dramas, à luz da contingência do ser humano29. Trata-se de um ato eminentemente ativo, o momento recapitulador da existência humana em que cada um é chamado a confirmar as opções anteriormente feitas, embora não se possa afirmar que só na hora da morte o homem pode tomar, com total lucidez, uma decisão em favor de Deus30. De fato, nesse caso tirar-se-ia o valor que as escolhas terrenas têm na formação da identidade da pessoa, que é histórica e se constrói lentamente no tempo.

28. Paulo escreve que a morte é “o salário do pecado” (Rm 6,23). A conexão morte-pecado se encontra também em Atos 5,1-11; 12,20-23. 29. G. MARTELET, L’aldilà ritrovato. Una cristologia dei novissimi, Brescia, Queriniana, 1977, 115-132; Cf. M. SCHMAUS, I novissimi di ogni uomo, Alba, Paoline, 21970. 30. Cf. L. BOROS (Mysterium mortis. L’uomo nella decisione ultima, Brescia, Queriniana, 1969, 30) escreve: “Na morte abre-se para o homem a possibilidade de um primeiro ato plenamente pessoal; ela constitui, então, o lugar verdadeiramente privilegiado do amadurecer da consciência, da liberdade, do encontro com Deus e da decisão a respeito do seu destino eterno”. Da mesma opinião é R. TROISFONTAINES, Non morrò…, Roma, Paoline, 1963, 121-133. J. L. RUIZ DE LA PEÑA (L’altra dimensione, op. cit., 324) qualifica essa perspectiva com a expressão “ativismo espiritualista, concentrado no instante pontual da morte”. Também J. AUER e J. RATZINGER (Escatologia, op. cit., 217-218) são críticos a respeito. 205

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

3. Morte e ressurreição A morte representa o limite da experiência humana. As realidades da vida nova e da ressurreição devem ser cridas, porque falta toda possibilidade de representação. A respeito delas, como sabemos, o Novo Testamento usa metáforas e imagens que devem ser decodificadas. Põem-se novas interrogações: que relação há entre morte e ressurreição? É possível pensar que a ressurreição aconteça na morte? Haverá uma ressurreição final dos mortos na qual cada um retomará suas cinzas? Vários autores enfrentam a questão, embora isso corresponda a escalar “uma rocha resvaladiça, escorregadia, íngreme, que não oferece em si nenhum ponto de apoio ou suporte para os conceitos da nossa inteligência”31. Todos estão de acordo em afirmar que a ressurreição se refere à globalidade da pessoa. Todos destacam que a relação com a terra que marcou profundamente o ser humano tanto no corpo como no espírito continuará na vida do além. O corpo, então, não deve ser pensado como um invólucro que a alma pode mudar arbitrariamente, mas como uma dimensão constitutiva e intrínseca do ser, porque, como se sabe, o homem não tem um corpo, mas é um corpo. Esses autores reconhecem também que a ressurreição de cada pessoa depende da ressurreição de Jesus que redimiu toda a humanidade. A concórdia nesses pontos básicos não impede posições diferentes seja a respeito do que acontece na morte, seja em relação ao dito “estado intermediário” ou ao modo de explicar o nexo entre escatologia pessoal e final32. Analisemos as várias posições.

3.1. Morte completa ou sono da alma? Paul Althaus e outros teólogos sustentam a teoria da morte total, afirmando que no ato de falecer há a aniquilação do ser humano, quer em seu corpo quer em sua alma, em vista de uma nova criação que ocorre na ressurreição final33. A perspectiva é marcada pelo pessimismo protestante, que tira todo valor à natureza humana, destacando que a salvação é obra exclusiva de Deus sem concurso humano, buscando dessa forma abolir toda vanglória. Além disso, nega que no ser humano haja uma disponibilidade para receber o dom da 31. GREGÓRIO DE NISSA, Homilias sobre as bem-aventuranças 6,1 (cf. GREGORIO DI NISSA, Omelie sulle beatitudini, ed. C. Moreschini, Torino, UTET, 1992, 635). 32. As posições dos teólogos são bem resumidas no texto de E. CASTELLUCCI, La vita trasformata. Saggio di escatologia, Assisi, Cittadella, 2010, 260-280. 33. P. ALTHAUS, Die letzten Dingen, Gütersloh, Bertelsmann-Verlag, 1949, 83. 206

Capítulo 11 – O corpo da ressurreição

vida por parte de Deus. A teoria não pode ser aceita, porque coloca em perigo a continuidade da identidade pessoal, à diferença da Bíblia, que sustenta a persistência do ser, também no caso dos refaim que vivem num estado larval (Sl 49,16; 72,23-24). De fato, para garantir a continuidade da pessoa, não é suficiente que Deus mantenha sua relação com a criatura após a morte se no homem falta qualquer dimensão que assegura sua permanência no ser, embora isso seja fruto da graça. Além disso, haveria uma dupla criação e isso seria um absurdo, porque se o ser humano é criado do nada não é recriado a partir do nada, mas é ressuscitado dos mortos. Althaus sustenta, outrossim, que no ato de morrer cada pessoa chega imediatamente ao final da história, porque no além não existe mais o tempo, pensando dessa forma superar a tensão entre escatologia individual e escatologia final. Também a teoria do “sono da alma”, que, em estado de imperfeição, deve ser acordada com o seu corpo no último dia, conjecturada por Lutero e outros teólogos protestantes34, deve ser rejeitada, porque a imagem do sono que se encontra nas cartas paulinas é um simples eufemismo que não pode ser tomado ao pé da letra (1Ts 4,13–5,11). A intenção desses exegetas é superar a questão do estado intermediário, negando a escatologia imediata em favor da escatologia final, sem dar-se conta de que dessa forma os problemas talvez fiquem simplificados, mas não resolvidos.

3.2. Ressurreição na morte Insistindo na unidade do ser humano que impede pensar que a alma se separe do corpo, vários exegetas afirmam que a ressurreição ocorre no momento da morte. De fato, não teria sentido a felicidade da alma, logo após o falecimento, sem a participação do corpo que com ela forma uma unidade indissociável. Com efeito, o ser humano entra na eternidade não somente com sua alma, por assim dizer “nua”, mas com todas as experiências feitas durante a vida que dependem do corpo. Além disso, a ressurreição final dos corpos seria algo de puramente adicional que não aumentaria o gozo que a alma já experimenta na visão beatífica. Os que apoiam essa perspectiva acrescentam que a visão clássica da separação da alma e do corpo na morte e de sua junção no momento escatológico foi favorecida pelo movimento gnóstico, que negava

34. O. CULLMANN, Immortalitá dell’anima o resurrezione dei morti? La testimonianza del Nuovo Testamento, Brescia, Paideia, 1970. 207

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

o valor da matéria35, e pelo milenarismo36, que pensava num período de mil anos antes da parusia, criando uma perigosa visão dicotômica do ser humano, até levar a pensar que corpo e alma constituíam duas substâncias diferentes e separáveis no momento da morte, contra toda perspectiva bíblica37. Esses autores acrescentam que depois da morte não existe mais tempo. Por isso, se o momento histórico da morte é diferente para todos, o dia da ressurreição, que pertence à eternidade de Deus, necessariamente coincide, sendo impossível pensar qualquer intervalo de tempo no além, porque para Deus mil anos são como um dia só. Todos ressuscitam, assim, no mesmo dia que corresponde ao dia do fim do mundo e, ao mesmo tempo, ao dia da ressurreição de Jesus, na manhã de Páscoa, que é a causa da renovação de todas as coisas38. Elimina-se dessa forma o julgamento particular logo após a morte, que, segundo a teologia tradicional, fixa o destino da alma, na espera do julgamento final em que a alma retoma seu corpo. Aconteceria então que, ao terminar sua história, o homem realizaria seu pleno cumprimento, entrando na dimensão definitiva do último dia. Não teria, então, sentido que a parte espiritual do homem já glorificada estivesse na espera de unir-se com o corpo, porque o ser humano, em sua identidade profunda, participa de forma plena da ressurreição, desde sua entrada na glória. Os partidários dessa visão, entre os quais Leonardo Boff e vários outros teólogos39, se dão conta de que na hora da morte de cada ser o mundo criado, com o qual ele tem uma relação essencial, não é ainda transfigurado. Afirmam, portanto, que a ressurreição, embora já plena na morte do indivíduo, alcançará sua dimensão completa e radical só no fim do mundo com a ressurreição de todos os seres, deixando aberta a porta para a escatologia futura, embora seu interesse vá para a escatologia presente. 35. O gnosticismo é um movimento religioso, originário da Pérsia, que se formou no início da época cristã, que pensa que as almas dos seres humanos foram aprisionadas em corpos pela ação de um deus inferior: o demiurgo criador. A salvação é possível mediante a libertação do corpo, que é uma realidade negativa, e por meio de conhecimentos secretos, isto é, da gnose, juntamente com práticas esotéricas. 36. O milenarismo designa a doutrina, baseada em Apocalipse 20,3-4, segundo a qual no final da história haverá o reino do Messias, que durará mil anos, durante os quais Satanás ficará inofensivo. Após esse período, o diabo será liberto por pouco tempo, para ser definitivamente derrotado com a instauração do reino celeste. 37. X. LÉON-DUFOUR, Face à la mort. Jésus et Paul, Paris, Seuil, 1978, 291-305. 38. Cf. L. BOROS, Ha un senso alla vita?, Concilium 6 (1970) 1775-1786. 39. L. BOFF, A ressurreição de Cristo: a nossa ressurreição na morte, Petrópolis, Vozes, 31973, 65-78.101-107. Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La otra dimensión, op. cit., 382; G. BIFFI, Alla destra del Padre, Milano, Vita e Pensiero, 1970, 224-225; E. BRUNNER, L’eternità come futuro e tempo presente: teologia della speranza, Bologna, EDB, 1973, 206. 208

Capítulo 11 – O corpo da ressurreição

A perspectiva é interessante, porém duvidosa pela asserção da equidistância de Deus de todo momento histórico, que faz que todos ressuscitem no mesmo instante. Além disso, a ressurreição é um evento supratemporal que depende da iniciativa do Pai e que ocorre no seio trinitário, depois de a pessoa ter feito a experiência da morte; por isso é perigoso usar categorias temporais a respeito do momento da ressurreição. Falar de ressurreição na hora da morte pode ser também uma forma consoladora que relativiza o drama do próprio falecer. É bom lembrar também que, nos relatos evangélicos, entre a morte de Jesus e sua ressurreição há o dia de sábado. Pode-se acrescentar que a convicção bíblica de que a salvação se verificará no final dos tempos não pode ser colocada em dúvida com facilidade, dizendo que a escatologia final faz parte da roupagem literária veterotestamentária40. Nenhum autor sagrado fala de ressurreição logo após o óbito.

3.3. Coincidência entre morte, ressurreição e parusia Há autores que consideram de forma ainda mais sintética o que acontece na hora da morte, apagando qualquer distância entre o falecimento da pessoa e o fim do mundo, sustentando que o eschaton individual se identifica com o eschaton coletivo. Dessa forma, levam às extremas consequências a perspectiva da “ressurreição na morte”, na qual, pelo menos do ponto de vista humano, permanece a distinção real entre o momento escatológico pessoal e o comunitário. A teoria é sustentada pelo teólogo sistemático Gisbert Greshake e pelo exegeta alemão Gerhard Lohfink, num livro bastante discutido e que se apresenta como uma coletânea de artigos41. Os dois estudiosos criticam asperamente o pressuposto da alma separada que se juntaria ao corpo no final dos tempos, declarando que na ressurreição o importante não é o corpo orgânico, mas a vivência interior que moldou cada ser ao longo de sua vida. De fato, em cada existência particular ocorre um processo de “interiorização da matéria” que se torna um momento permanente da realização do espírito. As experiências ficam para sempre gravadas no espírito, formando a subjetividade da pessoa e caracterizando-a para sempre. Não se pode dizer, portanto, que a matéria, representada pelas células do cadáver, será plenificada no final da história, entrando na vida definitiva. 40. De um ponto de vista teológico, a perspectiva coloca em perigo a doutrina do Purgatório e da intercessão pelos defuntos. 41. G. GRESHAKE, G. LOHFINK, Naherwartung, Auferstehung, Unsterblichkeit, Freiburg/Basel/ Wien, Herder, 1982. 209

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Acrescentam que o fim do mundo não acontece na consumação da história, mas na morte de cada ser humano que, ressuscitando na hora de seu falecimento, chega ao final da história e ao juízo universal, pois no além não existe mais tempo. O encontro definitivo com Deus se realiza, então, para todos simultaneamente, e a escatologia final se manifesta na escatologia pessoal, com a consequência de que o julgamento será, ao mesmo tempo, imediato e escatológico, porque a história pessoal e a história universal terminam no mesmo momento42. Deve-se passar, portanto, de uma perspectiva que considera o eschaton de forma horizontal, colocado no final dos tempos, para uma consideração vertical dele, reconhecendo que, quando Deus vem, vem contemporaneamente em cada momento da história humana, fazendo que na morte de cada pessoa se realize o cumprimento do mundo. Por isso é possível afirmar a concomitância entre parusia, ressurreição dos mortos e morte pessoal. Com esses pressupostos, os autores pensam recuperar o tema da proximidade da parusia para cada geração, como os evangelhos parecem destacar. Reconhecem também que a história após a morte das pessoas pode continuar até o infinito, sem influir em seu processo de glorificação, porque com a morte de cada ser um fragmento do mundo entra na glória43. Para qualificar a situação do falecido que já está na glória, Lohfink propõe usar o termo “evo” (empregado na Idade Média a respeito dos anjos), distinto dos termos “tempo” e “eternidade”. Por meio desse termo torna-se claro que o falecido mantém certa ligação com a realidade do mundo, inscrita em seu ser, e ao mesmo tempo já vive na superação do tempo. A interpretação do evento escatológico proposta por Greshake e Lohfink é lógica e teoricamente clara, porém moldada pelo individualismo, que desconhece que a pessoa é uma realidade que vive em comunhão e existe em face dos outros. Nela prevalece a sistematização racional dos dados bíblicos, procurando tirar as aparentes tensões que aparecem na apresentação escatológica tradicional. A afirmação de que o término da história humana ocorre na morte do indivíduo se torna incompreensível porque equivale, como reconhece Juan Luis Ruiz de la Peña, a uma “privatização” do eschaton. A história que continua, após o falecimento das pessoas, tem um valor que não pode ser 42. Também W. BREUNING (Giudizio e resurrezione dei morti come gesti che qualificano l’attività di compimento per mezzo di Gesù Cristo, Mysterium Salutis, 5, II, 371-428 [420-421]) sustenta a “coincidência” do aspecto individual e coletivo da escatologia. 43. Esses exegetas não se pronunciam a respeito da destruição total do cosmo, pensando que os relatos escatológicos dos sinópticos são moldados pela roupagem literária da apocalíptica judaica. 210

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ignorado, porque o próprio Verbo se encarnou na história, valorizando todos os momentos dela. Além disso, com a morte, a história de cada ser ainda não se concluiu porque, por meio de suas decisões positivas e negativas, continua influenciando os outros.

4. Pressupostos para compreender a ressurreição 4.1. Corpo e corporeidade Sabe-se que o ser humano não tem um corpo, mas é um corpo. É preciso, porém, distinguir o corpo-objeto, pelo qual se interessam a medicina, a biologia, a educação física, e o corpo-sujeito, expressão da identidade do ser, de sua história pessoal e de suas qualidades morais44. De fato, à diferença de qualquer corpo do mundo animal, vegetal ou mineral, no corpo humano há uma interioridade que se manifesta por meio do corpo físico. A mímica, os gestos, o modo de falar, o jeito de ser têm uma evidente referência à dimensão interior da pessoa, mostrando que o aspecto externo é só um elemento de sua personalidade45. Sua alegria, seu carinho acolhedor, sua sinceridade ou, ao contrário, sua incapacidade de amar, sua tristeza, seu pessimismo são o que verdadeiramente a caracterizam. Essas dimensões não se identificam com a realidade orgânica e biológica da pessoa, mas a pressupõem. Portanto, se o homem é corpo, é em primeiro lugar pessoa, isto é, sujeito individual de natureza espiritual46. Seu corpo é o seu ser, embora seja preciso falar também de alma e de espírito, que constituem o centro de gravidade da pessoa, o que permite a cada um viver sua identidade de modo autônomo. À luz dessa perspectiva, os teólogos destacam que na morte o ser humano entra na glória com toda a sua vivência anterior, qualificando-a de “corporeidade” e distinguindo-a do corpo físico. Dificilmente usam a expressão corpo-sujeito, preferindo recorrer à língua alemã, afirmando que na morte é glorificada a Leiblichkeit da pessoa e não sua Körperlichkeit.

44. A distinção é bem indicada na língua alemã, na qual existem os dois termos: Körper e Leib, para indicar o corpo. 45. R. LUCAS LUCAS, Orizzonte verticale, op. cit., 250-257.257-290. Para indicar a grandeza do ser humano, o autor cita B. PASCAL, Pensamentos 347, op. cit, 123: “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo. Um vapor, uma gota d’água, é o bastante para matá-lo. Mas, quando o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque sabe que morre; e a vantagem que o universo tem sobre ele, o universo a ignora”. 46. M. KEHL, E cosa viene dopo, op. cit., 163-173. 211

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4.2. Alma separada ou incorporada? À luz da concepção unitária e ao mesmo tempo complexa do ser humano, não faz sentido pensar que na morte a alma permanece separada do corpo, embora não se possa confundir o corpo ressuscitado com o corpo orgânico e biológico. Este precisa de uma renovação contínua, por causa do metabolismo ao qual é submetido e que é destinado à decomposição irreversível47. O que vai ressuscitar é o sujeito espiritual livre, no qual ficam para sempre os rastros da terra, o “eu” com sua corporeidade, a saber, com a experiência humana que o moldou ao longo da vida, permitindo-lhe ser a pessoa única e irrepetível que chegou a ser48. O aspecto físico e as feições externas não constituem elementos primários de identidade, porque também nesta vida são percebidos pelo sujeito só depois de ter feito a experiência de ser pessoa. De fato, para a ciência atual, o conceito científico de “matéria” é um dos menos claros, embora se pense que corresponde ao que resiste, ao que é pesado e ligado à extensão. O pensamento de Albert Einstein mudou essa perspectiva, demonstrando que a matéria é energia condensada e equivale à massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado (e = mc²); assim, ajudou o homem a livrar-se de uma visão estática da matéria e a considerá-la em contínua transformação49. Quando a pessoa morre, então, morre levando consigo sua corporeidade, que é constitutiva de sua personalidade, apresentando-se a Deus com a história de sua liberdade, que tem uma profunda relação com a terra. Após a morte, como pensa Karl Rahner, essa relação pode estender-se a todo o universo, porque a pessoa, tendo realizado plenamente sua identidade, não fica mais presa às limitações da existência corpórea. O cadáver é somente o sinal da ausência do ser, um vestígio para os que permanecem neste mundo, tendo uma relação puramente extrínseca com a realidade nova do finado, cuja experiência de vida, purificada do mal, é glorificada por Deus, eternizada num momento de plenitude perene, além do

47. Sabe-se que cada dia morrem milhões de células e todas se renovam integralmente a cada sete anos, exceto as do cérebro. De acordo com a pesquisa de J. Watson, no corpo humano há cerca de 70.000 bilhões de células, das quais 35 bilhões mudam a cada dia, com um ritmo de renovação de 0,05% por dia. 48. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, L’altra dimensione, op. cit. 221-226. 49. Essa perspectiva talvez permita conjecturar a possibilidade de uma mudança ainda mais radical da matéria, operada pelo Espírito no evento da ressurreição. 212

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tempo que passa50. De fato, “O corruptível não pode herdar a vida eterna” (1Cor 15,50)51.

4.3. Perigo do gnosticismo É suficiente afirmar que a dimensão física do ser humano corresponde a um “momento” de seu espírito, constituindo a identidade do sujeito em todas as fases de sua existência e também quando o finado entra na vida eterna52? Sustentando isso, não há o perigo de favorecer as tendências hostis ao corpo, características do helenismo, sem encarar a árdua questão da glorificação da matéria? A Igreja sempre lutou contra perspectivas desse tipo, opondo-se ao docetismo53, ao gnosticismo, ao maniqueísmo54, assim como a todas as visões espiritualistas, na convicção de que a salvação de Deus se refere ao homem todo. A esse respeito Ireneu sustenta que a ressurreição se realizará “nos próprios corpos falecidos, porque, se não fosse nos mesmos, os que morreram não ressuscitariam”55. Também Tertulliano destaca que a carne constitui a base da

50. Destaca isso X. LÉON-DUFOUR, La morte e la resurrezione di Gesù, in G. LANGEVIN (a cura di), Gesù il Cristo nell’attuale ricerca esegetica, Assisi, Cittadella, 1985, 345-359. Cf. P. J. LABARRIÈRE, Le discours do corps, Esprit 41 (1973) 901-912; A. DARTIGUES, La chair phénoménologique et la chair spirituelle, in Recherches et tradition, Paris, Beauchesne, 1992, 77-101. 51. A visão materialista dos ressuscitados se encontra nas discussões rabínicas a respeito do corpo com que os finados ressuscitarão, se com o corpo da juventude ou da velhice; nesses textos, consideram-se também os casos de pessoas mutiladas ou de canibalismo. Na teologia escolástica levantava-se a questão da parte do corpo que devia permanecer na pessoa ressuscitada para dar continuidade ao ser. Todas essas considerações carecem de sentido, porque Deus não somente ressuscita a vida que faleceu, mas a conduz à plenitude. Cf. Ph. SEIDENSTICKER, Testi contemporanei al messaggio pasquale dei vangeli, Brescia, Paideia, 1978, 38-48. 52. J. B. LIBANIO, M. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, Petrópolis, Vozes, 31996, 208-213. 53. O docetismo é a doutrina que nega o valor da encarnação, chegando a sustentar que o corpo de Jesus era aparente, tirando assim todo valor ao sacrifício da cruz. O movimento representa um grave perigo para as comunidades joaninas (1Jo 2,19; 4,2; 2Jo 7). C. GRECO, Vita mutatur non tollitur. La resurrezione del corpo in prospettiva teologico-fondamentale, in G. LORIZIO (a cura di), Morte e sopravvivenza, Roma, AVE, 1995, 333-354. Cf. Ch. DUQUOC, Cristologia. Saggio teologico, Brescia, Queriniana, 1972, 396. 54. O maniqueísmo é uma filosofia religiosa dualista que afirma a existência de um princípio do bem e de um princípio do mal, destacando que a matéria é radicalmente má. A respeito do gnosticismo, cf. nota 35 deste capítulo. 55. Ireneu escreve: “Se a carne não foi salva, o Senhor não nos redimiu com o seu sangue, nem o cálice da eucaristia é a comunhão com o seu sangue, nem o pão que partilhamos é a comunhão com o seu corpo. Com efeito, o sangue não vem senão das veias e da carne e de toda a substância do ser humano na qual, de verdade, o Verbo de Deus se encarnou” (Contra as heresias, 5,2,2 e 5,13,1; cf. Sources Chrétiennes 153, 33-32.162-165). 213

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salvação: caro salutis est cardo56. A própria expressão “ressurreição da carne” do Símbolo apostólico romano foi formulada para combater a visão gnóstica em que só o espírito é redimido57. Na mesma linha pronunciaram-se o Símbolo do pseudo-Atanásio do século IV, o Concílio de Toledo, no ano 675, e o Concílio Lateranense IV contra os cátaros58, sempre sustentando que na ressurreição escatológica a existência humana é glorificada em sua integridade59. Por isso Johann Auer e Joseph Ratzinger se perguntam até que ponto se pode “excluir o elemento temporal e cósmico, sem negar o conteúdo realístico da promessa”. Há o risco de não superar o dualismo gnóstico60, sendo que o reino de Deus se realiza na própria criação, renovada pelo evento pascal. A questão é importante e deve ser enfrentada sem cair num realismo ingênuo ou numa visão pré-científica da realidade, embora o conceito de corpo seja pouco claro, apesar de cada um saber o que é.

4.4. Realismo pneumático A respeito do corpo da ressurreição, vários autores usam a expressão “realismo pneumático”, à luz do pensamento de Paulo, que, opondo-se à orientação espiritualista da comunidade de Corinto, afirma: “Semeia-se o corpo na corrupção, ressuscita na incorrupção. Semeia-se em desonra, ressuscita em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscita com poder. Semeiase corpo natural, ressuscita corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual” (1Cor 15,42-44); dessa forma, aponta para a dimensão somática da ressurreição61. Por meio de oposições, nega, porém, que o corpo

56. Cf. capítulo 3, nota 62. 57. J. AUER e J. RATZINGER (Escatologia, op. cit., 181-185) notam que no Símbolo apostólico a expressão “ressurreição da carne” corresponde à ressurreição do ser humano em sua condição mortal. No Símbolo niceno-constantinopolitano proclama-se: “Espero a ressurreição dos mortos”. Neste contexto, tanto o termo “carne” como o termo “mortos” têm o mesmo sentido. 58. O catarismo, que se difundiu no sul da França e no norte da Itália entre o final do século XI e meados do século XIV, foi um movimento cristão herético, moldado pelo gnosticismo e pelo maniqueísmo, que considerava a matéria como fruto do espírito do mal e o corpo como algo de impuro. Condenavam a maternidade, considerando cada mulher grávida possuída pelo diabo. Cf. H. DENZINGER, Enchiridion symbolorum, op. cit., 76.540.801. 59. Cf. Documento da Sagrada Congregação pela Doutrina da fé: Algumas questões referentes à escatologia, do dia 17 de maio de 1979, apud Il Regno Doc 37 (1992) 684, 324. 60. J. AUER, J. RATZINGER, Escatologia, op. cit., 145-146, 161. 61. M. TEANI, Corporeità e resurrezione. L’interpretazione di 1Cor 15,35-49 nel Novecento, Brescia, Morcelliana, 1994, 281-285; G. ROSSÉ, La resurrezione corporea. Una riflessione biblicoteologica a partire da Paolo, Nuova Umanità 28/3 (2006) 343-365; cf. C. M. MARTINI, Resurrezione, in Nuovo dizionario di teologia biblica, Cinisello Balsamo, Paoline, 1988, 1315-1316. 214

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glorioso é semelhante ao terrestre, destacando que esse corpo será um “corpo espiritual” (sôma pneumatikón), isto é, moldado pelo Espírito Santo e radicalmente transformado, como o simples grão, semeado no terreno, é diferente do vegetal que dele brota (1Cor 15,37-38). É evidente que com o termo “corpo” Paulo entende a pessoa toda, renovada pela força de Deus, sem porém nunca explicar em que consiste esse corpo espiritual62. Sendo ele um judeu, que não pode imaginar a pessoa que ressuscita sem o seu corpo, provavelmente pensa na glorificação da matéria. À luz do texto, essa perspectiva não pode ser excluída a priori, apesar da dificuldade de fazer afirmações claras sobre esse tema, porque ninguém tem a experiência do que acontecerá no fim63. A esse respeito, o magistério da Igreja nunca frisou o que é necessário para garantir a identidade particular da pessoa ressuscitada. Hoje, prefere-se falar de identidade pessoal de tipo formal e não material, fixando a atenção nas experiências feitas na vida64. É verdade, porém, que esquecendo o que representa o substrato que possibilitou a experiência interior do ser humano que entra na glória coloca-se em dúvida a fidelidade de Deus à criação em sua totalidade, cuja realização plena não pode excluir a transformação da matéria, operada por Jesus. Ele, na parusia, se manifestará o senhor da criação e da história65.

4.5. Estado intermediário Os partidários da teoria da ressurreição na morte ou da simultaneidade entre morte, ressurreição e parusia negam o estado intermediário. No Novo Testamento, não é simples encontrar afirmações explícitas a esse respeito, porque o termo alma (psyché) é referido normalmente ao ser humano em sua vida terrena e não à alma separada, de acordo com Marcos 8,35: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a causar dano 62. J. AUER, J. RATZINGER, Escatologia, op. cit., 179. 63. P. BENOIT (La resurrezione di Gesù, in G. LANGEVIN [a cura di], Gesù il Cristo nell’attuale ricerca esegetica, op. cit., 360-373) pensa que os relatos das aparições, destacando que o próprio crucificado está vivo, se referem também à dimensão física e psicossomática de Jesus, de acordo com a cultura hebraica. Segundo W. KASPER (Gesù il Cristo, op. cit., 188), apesar das dificuldades hermenêuticas, o túmulo vazio representa um sinal eloquente, que exclui todo docetismo. Cf. C. H. DODD, Il fondatore del cristianesimo, Torino/Leumann, EllediCi, 1975, 175-176. 64. C. GRECO, Vita mutatur, op. cit., 344-346. 65. A comunidade primitiva, em sua luta contra as perspectivas dos saduceus (cf. Mc 12,1827; At 23,8) e do mundo helenístico (cf. At 17,30; 1Cor 15,12), anunciou a ressurreição do corpo, embora isso fosse um escândalo para a razão. 215

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

à sua vida (psyché)”. O pronome reflexivo, usado por Lucas no texto paralelo, tira toda dúvida a respeito da interpretação do termo (Lc 9,25; cf. 12,19)66. Um pouco mais difícil é a explicação da frase: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10,28), embora pareça bastante claro que a diferença entre corpo e alma tem a finalidade de realçar o poder de Deus, que resgata a totalidade da pessoa no momento escatológico, e não de levantar a questão da alma separada. Também no livro da Sabedoria, apesar da linguagem helenística, não se fala de almas separadas, porque o autor sagrado interpreta normalmente o termo “alma” (psyché) à luz da perspectiva bíblica, identificando a “alma” com a pessoa, com o “eu” que é glorificado ou reprovado por Deus, de acordo com o seu comportamento na vida, sem dizer se isso vai acontecer “no corpo ou fora do corpo” (2Cor 12,2), isto é, na totalidade de sua identidade reconstituída ou não67. A realidade do estado intermediário é afirmada na literatura apócrifa judaica, que reinterpreta a imagem clássica do sheol referindo-a ao lugar em que moram os espíritos dos finados antes do julgamento final. Em 1 Henoc 22 fala-se das belas regiões em que se reúnem as almas dos filhos dos homens na espera do juízo definitivo. Também os essênios de Qumran pensam que as almas imortais, libertas dos corpos corruptíveis, vivem “além do oceano num lugar não atingido por chuvas, neve ou quentura, mas recriado por um vento suave”68. É bastante provável que esta perspectiva popular tenha influído no mundo do Novo Testamento, como indica a menção ao “seio de Abraão” para o qual é levado o pobre Lázaro (Lc 16,22)69. O autor que permite pressupor com maior evidência o estado intermediário é Paulo, que na situação de apuro em que se encontra em Éfeso expressa

66. Em Lucas 9,25 lê-se: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo?”. Também em Mateus 6,25, Marcos 3,4 e Lucas 12,22-23 o termo psyché indica vida humana. 67. J. L. RUIZ DE LA PEÑA (L’altra dimensione, op. cit., 349-360) nota que em Sabedoria 2,22 se fala de almas e em 2,23, do “homem” em sua globalidade. Da mesma forma, em 3,1 mencionam-se “as almas dos justos”, mas em 3,10, “os ímpios”, sem o termo “alma”. Em Sabedoria 4,10 a perspectiva é claramente judaica. Provavelmente, o termo “imortalidade”, no livro, indica a ressurreição (Sb 2,22; 3,4), embora o autor nunca use o verbo “ressuscitar” (egeírein). Está claro que no texto o autor não pensa na imortalidade natural da alma, segundo o pensamento platônico. 68. Cf. FLÁVIO JOSEFO, Guerra judaica, 2,8,11. Cf. J. AUER, J. RATZINGER, Escatologia, op. cit., 133-143. 69. Cf. R. MEYER, kólpos, in Grande lessico del Nuovo Testamento, op. cit., V, 763-768. 216

Capítulo 11 – O corpo da ressurreição

seu desejo “de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (Fl 1,23; cf. 2Cor 5,1-10), referindo-se à escatologia imediata. Na mesma carta, manifesta a certeza de que o Senhor Jesus “transformará seu corpo de humilhação, moldando-o à imagem do seu corpo de glória”, pensando na escatologia final (Fl 3,21; cf. 1Ts 4,16-17; 1Cor 15,24.28). Esses detalhes podem apontar para o estado intermediário, embora vários autores reconheçam certa tensão na apresentação da perspectiva escatológica paulina, notando que na carta os diferentes aspectos não são bem coordenados entre si. Se na Escritura não se fala claramente do estado intermediário, este não pode ser excluído com facilidade, embora a expressão “estado intermediário” seja ambígua, levando a pensar que há um antes e depois na vida eterna e que a ressurreição pessoal antecipa a ressurreição escatológica final. É verdade que na eternidade não haverá nem tempo, nem espaço conforme a experiência humana; é preciso, porém, admitir que no além o ser humano gozará da plenitude de Deus paulatinamente, com um crescimento contínuo, sendo uma criatura limitada70. Por isso, na morte, o ser humano entra numa situação de plenitude nunca plenamente saciada, que deve ser sempre renovada, em que haverá um desenvolvimento constante de suas relações com Deus, com todos os seres redimidos e com o universo criado71. Para ele o tempo não termina totalmente, como sustentam os autores que procuram identificar a escatologia pessoal com a final, embora esse tempo deva ser entendido em sentido analógico. Sem pressupor após a morte certa temporalidade, equivaleria igualar a criatura a Deus, porque a eternidade das criaturas é diferente da eternidade de Deus, tratando-se de uma eternidade participada. Tendo o seu início, a nossa eternidade não pode propriamente ser qualificada de eternidade72. A própria perspectiva joanina, que destaca a escatologia realizada, segundo um esquema vertical, não está em contraste com a perspectiva de um estado intermediário, entendido de forma correta.

70. A falta de possibilidade de ulteriores opções por parte do falecido não impede seu contínuo crescimento interior, porque se trata de outro tipo de crescimento, que corresponde à entrada progressiva no mistério de Deus. 71. K. Rahner realça que na morte o ser humano não se torna acósmico. J. L. RUIZ DE LA PEÑA (L’altra dimensione, op. cit., 395) afirma que a existência de um tipo de duração, diferente do nosso tempo e da eternidade, está ligada ao mundo misterioso dos espíritos criados. Na teologia clássica falava-se de “evo”, distinto do tempo. 72. Alguns autores consideram o dito “tempo” após a morte como um tempo circular, em espiral, que cresce em intensidade e corresponde a uma vida redimida sempre mais profunda. Cf. B. FORTE, Teologia della storia: saggio sulla rivelazione, l’inizio e il compimento, Cinisello Balsamo, Paoline, 1991, 351-354. 217

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

É verdade que o tempo intermediário, referente à criatura já glorificada, constitui apenas “um modelo de representação”73, sendo impossível falar de forma adequada da situação transcendente. Deve-se afirmar, porém, que o tempo molda interiormente o homem e o caracteriza sempre, não podendo ele ser totalmente atemporal. Consequência disso é que o ser humano com sua morte conclui sua história pessoal, sai da convivência humana sem perder o relacionamento com o mundo criado, seja por causa das relações que o constituem, seja pelo influxo de seu comportamento nos outros. Entrando no mundo de Deus, vai fazer parte do corpo de Jesus glorificado, vivendo também na vida eterna uma situação de novidade e crescimento contínuos74.

5. Ressurreição como processo em desenvolvimento Nem a Escritura, nem a reflexão teológica permitem uma apresentação adequada da vida futura. Por isso, há várias possibilidades de interpretação que, embora diferentes, nem sempre devem ser consideradas erradas75. Privilegiamos a perspectiva da ressurreição como um processo em desenvolvimento.

5.1. Morte, início da ressurreição É universalmente aceito que quando a pessoa morre leva consigo a experiência terrena que a identifica, entrando na glória de Deus como um ser incorporado, rico de todas as relações existenciais, não como alma separada, desprovida de sua identidade humana. Vivificado por Jesus ressuscitado a partir de sua existência histórica, o ser humano recebe o dom da vida divina no momento da morte, e a própria morte pode ser considerada o início da ressurreição. Goza, então, da bem-aventurança dos justos no seio da Trindade e para ele se realiza a palavra de Santo Agostinho: “Fizeste-nos para ti, ó Senhor, e inquieto está nosso coração enquanto não repousa em ti”76. A nosso ver, essa situação não se identifica com a ressurreição final que representa a meta do processo salvífico de Deus, em que acontecerá a

73. K. RAHNER (A proposito dello “stato intermedio”, op. cit., 570) realça que a doutrina do estado intermediário não é um dogma e pode ser discutida pelos teólogos. 74. G. BARBAGLIO, Cristo risuscitato “primula” di partecipata resurrezione, Concilium 42/5 (2006) 66-76 (754-764); P. LARGO DOMÍNGUEZ, El cuerpo glorioso del Cristo resucitado, Burgense 47/2 (2006) 375-441. 75. C. RUINI, Immortalità e resurrezione nel Magistero e nella Teologia oggi, Rassegna di Teologia (1980) 102-115.189-206. 76. AGOSTINHO, Confissões, São Paulo, Paulus, 1997, 1, 19. 218

Capítulo 11 – O corpo da ressurreição

glorificação de toda a história humana. De fato, cada ser vive em uma rede de relações, e sua bem-aventurança plena verificar-se-á com a bem-aventurança de todos os seres77. Nesse evento final, como declara Santo Anselmo em Proslógio 26, os beatos gozarão de “uma alegria plena e mais que plena. Pleno o coração, plena a mente, plena a alma, pleno completamente o homem dessa alegria, e já outra alegria haverá ainda para ele, sem medida. Essa alegria, portanto, não caberá inteira naqueles que a desfrutam, mas estes caberão inteiramente nela”78. Na morte de cada pessoa não se realizam ainda a plenitude da história humana e o fim do mundo. Afirmar isso seria não levar a sério o valor da história que se desenvolve no tempo, que é redimida pelo Verbo. Por isso, ressurreição e estado intermediário não se excluem, mas estão relacionados entre si. De fato, nem na vida eterna a temporalidade será totalmente abolida, embora essa não deva ser pensada como extensa, contínua e mensurável como a nossa. É lógico, então, concluir que a qualidade da retribuição que o ser humano recebe na hora da morte não pode ser considerada ainda plena, porque ainda não foi revelada a contribuição que cada pessoa deu à realização do plano de salvação79.

5.2. Ressurreição no último dia Levando em conta que no Novo Testamento para falar da ressurreição usam-se tanto categorias verticais como horizontais, é possível afirmar que o encontro com o Ressuscitado após a morte constitui somente o aspecto vertical da salvação, sem que sua dimensão horizontal seja ainda realizada. Essa se verificará com a redenção de todos os salvos no final dos tempos, quando Jesus oferecerá ao Pai o mundo transfigurado e “se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28; cf. 1Ts 4,13; 1Cor 15,20; Fl 3,20-21)80. De fato, não é possível imaginar a

77. J. KREMER, Essi vivranno. Sei capitoli su morte, resurrezione, vita nuova, Brescia, Queriniana, 1978, 69-70.199-200. B. P. PRUSAK, Bodly Resurrection in Catholic Perspectives, Theological Studies 61 (2000), 64-105; P. SCHOONENBERG, Credo nella vita eterna, Concilium 1 (1969) 112-127; G. FROSINI, Aspettando l’aurora. Saggio di escatologia cristiana, Bologna, EDB, 1994, 173-189. 78. SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIA, Monológio, Proslógio, A verdade, O gramático, São Paulo, Victor Civita, 21979, 122. 79. Cf. X. LÉON-DUFOUR, La morte e la resurrezione di Gesù, op. cit., 356-358; C. POZO, Teologia dell’aldilà, Roma, Paoline, 1970, 115-268. 80. Cf. ORÍGENES, A oração 25,1-3 (cf. ORIGENE, La preghiera, Roma, Città Nuova, 1997, 120123). 219

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

felicidade pessoal sem referência à felicidade universal, porque ressurreição e salvação são realidades eminentemente sociais e não somente individuais81. A parusia não se esgotará, portanto, na salvação de cada ser, mas consistirá na participação de toda a criação e de toda a história na glória de Deus. No “dia do Senhor”, então, a felicidade de cada pessoa particular se relacionará com a bem-aventurança universal e comunitária de todos os redimidos, já que a macrohistória do mundo é maior do que a micro-história de cada ser82. “Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como é”, declara João em sua primeira carta (1Jo 3,2). O cumprimento pleno da história humana será cristocêntrico e consistirá na extensão da ressurreição de Jesus a todos os seres, porque Jesus é o primeiro dos ressuscitados e todos ressuscitam nele (1Cor 15,20; Cl 1,18). Em seu corpo glorificado toda a humanidade encontrará o seu lugar no seio da Trindade. Por meio dele formar-se-á o templo celeste na casa do Pai. Cada um amará o outro como a si mesmo e, portanto, gozará do bem do outro como se fosse o seu. A meta será a circulação universal de todos os bens salvíficos, em favor dos santos, que começa já a partir da existência terrena. O ser humano, purificado dos pecados, viverá numa harmonia até então desconhecida e inesperada, em íntima relação com Deus e com todos os seres83. A perfeição que ele alcançará não dependerá somente do que ele fez em vida, mas da ação de Deus que transfigurará o seu ser, elevando-o a uma dimensão imprevisível, no respeito de sua identidade humana. Para que se possa falar de plena e completa ressurreição é preciso que toda a realidade passe pelo domínio vivificador de Cristo e seja recapitulada nele, assim também a matéria. A frase “céus novos e nova terra”, com que o Apocalipse joanino apresenta a realidade final, destaca que a parusia consistirá na transfiguração desta criação. Acontecerá, então, que a matéria pertencerá ao espírito de forma nova e definitiva e ela também receberá seu cumprimento84. 81. F. J. NOCKE, Escatologia, Brescia, Queriniana, 1984, 79-96; G. SILVESTRI, Credo la resurrezione della carne: corruzione/trasformazione. Prospettiva antropo-culturale, Ricerche Teologiche 22 (2011) 115-155. 82. N. CIOLA, I contenuti della speranza cristiana riguardo alla vita eterna, in L. GENTILE (a cura di), Morte ed eternità, op. cit, 103-135. 83. G. MARTELET, L’aldilà ritrovato, op. cit., 148-154. 84. Cf. M. B. STEPHENS, Annihilation or Renewal? The Meaning and Function of New Creation in the Book of Revelation, Tübingen, Mohr, 2011, 258-263; G. ANCONA, Escatologia cristiana, Brescia, Queriniana, 22007, 352-360; J. AUER, J. RATZINGER, Escatologia, op. cit., 200-204. O papa São Leão Magno, em seu Sermão sobre as bem-aventuranças, 95,5, destaca que o corpo “não será 220

Capítulo 11 – O corpo da ressurreição

Só quando matéria e espírito forem outra vez unidos de modo definitivo a dinâmica do universo chegará ao fim. É esse o conteúdo concreto da profissão de fé na ressurreição da carne. Ultrapassa as possibilidades humanas dizer qual será a relação entre o mundo criado e a matéria transfigurada, ou, de forma mais circunscrita, entre o corpo terreno e o corpo ressuscitado. O Espírito que atua na vida do cristão agirá de modo especial também na transfiguração final, de maneira indizível, até a plena restauração da pessoa que viveu na história, até o resgate total do ser humano. Trata-se de uma declaração de fé, não do fruto de especulação humana. Só uma revelação que vem do alto pode desvendar o sentido da história e do universo. A palavra de Deus que não seca como a erva, nem fenece como a flor do campo, mas permanece para sempre, nos ajuda nesse íngreme caminho (Is 40,8). Consola-nos pensar que quando se deixa um estágio, entrando em outro mais elevado, no mais elevado já está o melhor e o essencial do anterior, aliás algo muito maior. Também na ressurreição final, após uma ruptura, a história humana encontrará uma plenitude inesperada, na qual será espeitada sua dimensão terrena.

mais em contraste com o espírito, mas será perfeitamente conformado e unido ao querer da alma. O homem exterior se tornará, então, uma posse santa e pacífica do homem interior” (cf. Patrologia latina 54,463 B). 221

Capítulo 12

O desafio da reencarnação

O pluralismo caracteriza a sociedade e a cultura ocidentais. Também a respeito do mundo do além há várias posições. Os ateus negam que haja um futuro além da morte; os agnósticos são indiferentes, considerando todas as perspectivas ultraterrenas como sonhos e utopias; algumas pessoas, de forma genérica, declaram que após a morte o ser humano entrará na eternidade ou na imensidão, sem saber se manterá sua individualidade1. Há também tentativas de interpretar o sentido da existência conjugando a convicção de que existe uma vida futura com especulações de sabor pseudocientífico discutíveis. Refiro-me à doutrina da reencarnação, professada pelos espíritas, e às várias formas de esoterismo que estão na base do movimento Nova Era e da doutrina da tanatologia, que estuda os aspectos psíquicos e sociais do falecer. Trata-se de crenças que procuram amenizar o drama da morte, sustentando a possibilidade de comunicar-se com os falecidos e de conhecer, pelo menos parcialmente, a realidade do além. O contraste com a fé cristã é evidente, porque os textos bíblicos, com sua linguagem simbólica, apontam sobriamente para as realidades futuras que pertencem ao secreto de Deus, evitando toda curiosidade e todo otimismo superficiais.

1. M. KEHL, E cosa viene dopo?, op. cit., 15-29.30-47. 223

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1. História e doutrina do espiritismo 1.1. Espíritos e reencarnação na Antiguidade A crença espírita afirma que a parte mais nobre do ser humano, seja ela a alma, o espírito ou a consciência, subsiste após a morte do corpo e é destinada a reencarnar-se para completar seu processo de autoaperfeiçoamento2. Trata-se de uma doutrina antiga, característica do hinduísmo, do budismo e do jainismo, que desde o Oriente se espalhou pelo mundo afora. Elementos que podem sugerir a ideia da reencarnação se encontram também nas religiões dos primitivos, nas crenças do Antigo Egito e no mundo grego. Segundo o historiador Heródoto, Pitágoras e os pitagóricos, baseando-se nos cultos órficos, eram partidários da doutrina da reencarnação3, que, porém, foi considerada um “mito” por parte do grande filósofo Aristóteles, negando a relação essencial que existe entre a alma de cada ser e seu corpo do qual é a “forma”. Também o poeta satírico Luciano zomba da visão reencarnacionista de Pitágoras4. Sabe-se que na época pós-cristã os maniqueus, os neoplatônicos, os gnósticos valentinianos, assim como Plotino e Porfírio aceitaram a reencarnação como meio de purificação para as almas que na vida terrena não souberam afastar-se completamente do mal, vencendo as paixões. No esoterismo ocidental, partilham essa perspectiva a Fraternidade Rosacruz, os movimentos teosóficos5 ou antroposóficos modernos6, juntamente com o fenômeno da Nova Era. No mundo cultural judaico, a reencarnação nunca foi aceita por parte do judaísmo ortodoxo palestinense, nem por parte dos judeus da diáspora que 2. A doutrina espírita difere da metempsicose ou da transmigração das almas, que conjectura a possibilidade de tomar outro corpo também em animais, plantas ou minerais, de acordo com a conduta das existências passadas. Nesse caso, colocar-se-ia em perigo a perspectiva de uma evolução por meio de vidas sucessivas. 3. Aceita a reencarnação também o filósofo e poeta grego Empédocles. Hipólito Romano destaca que Pitágoras se considerava a quinta reencarnação, sendo ele Ethalides antes da guerra de Troia, Euforbo durante esta guerra, Ermotimo de Samos após a guerra e Pirro de Delos (Refutação de todas as heresias 1,2,11). 4. Citado por Ch. SCHÖNBORN, Resurrezione e reincarnazione, Casale Monferrato, Piemme, 1990, 40. 5. A teosofia, que significa “saber divino”, procura relacionar filosofia, religião e ciência; identifica-se com a sabedoria universal e eterna que está na base de todas as religiões e filosofias do mundo. 6. A antroposofia, cujo sentido é “conhecimento do ser humano”, é o movimento filosófico e prático fundado pelo austríaco Rudolf Steiner, no começo do século XX, que procura ajudar o homem a conhecer a si mesmo e ao universo com métodos diferentes e mais abrangentes do que os usados pela ciência, com a finalidade de torná-lo um ser espiritualmente livre e mais humano. 224

Capítulo 12 – O desafio da reencarnação

viviam mais em relação com a cultura helenística7. Os Padres da Igreja sempre recusaram essa doutrina e nunca falaram de migração das almas, nem Orígenes, reprovado por suas perspectivas teológicas pelo Sínodo de Constantinopla, que conjecturou a encarnação de almas preexistentes nos seres humanos e aderiu à doutrina da apocatástase8, afirmando a redenção definitiva também dos réprobos e dos demônios. De fato, em sua obra Contra Celso, qualifica a reencarnação de loucura pagã, que tira a ideia de castigo e enfraquece a moral9. Igualmente Tertulliano, Lactâncio, Agostinho, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo se opõem à doutrina, mostrando que os trechos do Novo Testamento usados pelos hereges para provar a existência do ciclo das renascenças têm outro sentido.

1.2. Reencarnação no Oriente e no Ocidente Os estudiosos notam que o conceito de reencarnação é bastante diferente no Oriente e no Ocidente10. No mundo do sol crescente, a reencarnação é o sinal de que todas as ações do ser humano, quer físicas, quer mentais, têm suas consequências, exigindo que o mal praticado na vida seja purificado. Determinam, assim, o destino da pessoa, submetida a contínuos novos nascimentos, até chegar à libertação definitiva da lei universal e inflexível do carma, que tem poder também sobre a morte. É essa lei que determina o fluxo incessante de mortes e renascenças (samsara), que deve ser superado extinguindo o carma e permitindo que o “eu” verdadeiro (atman) volte para o espírito supremo e para a alma cósmica (brahman)11. O ciclo nascimento–morte–renascimento é, pois, uma condenação da qual o ser humano deve libertar-se. No Ocidente, talvez por influxo da espiritualidade cristã que destaca o valor da pessoa, houve uma transformação da doutrina oriental do carma,

7. Fílon de Alexandria, o grande filósofo judeu, sustentou que o mundo — na variedade de seus astros e de seus elementos — é mantido vivo por almas preexistentes, mas nunca foi defensor da reencarnação. A doutrina tampouco foi aceita pelos essênios de Qumran. 8. A apocatástase é a doutrina sustentada por Orígenes de Alexandria que julga que no fim dos tempos haverá a salvação universal de todos os seres, também dos que foram condenados ao inferno. 9. Cf. ORÍGENES, Contra Celso 3,75, São Paulo, Paulus, 2004, 270-272 (cf. Sources chrétiennes 136, 171) e também Comentário ao evangelho de Mateus 17,30 (cf. Commento al Vangelo di Matteo, Roma, Città Nuova, 2001, 228-231). A respeito de Orígenes, ver Ch. SCHÖNBORN, Resurrezione, op. cit., 60-76, e P. A. GRAMAGLIA, Altre vite dopo la morte? La reincarnazione, Casale Monferrato, Piemme, 21996, 439-455. 10. KEHL, E cosa viene dopo?, op. cit., 53-90. Cf. Ch. SCHÖNBORN, Resurrezione, op. cit., 38. 11. A Bhagavad Gita 2,23 afirma: “Como uma pessoa veste roupas novas e joga fora as roupas antigas e rasgadas, assim uma alma encarnada entra em novos corpos materiais, abandonando os antigos”. 225

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interpretando-a como a ocasião de um contínuo aperfeiçoamento espiritual e moral, até o alcance da perfeição, levando em conta que o ser humano é limitado e precisa de um tempo mais longo do que o terrestre para chegar à sua plena realização. Essa perspectiva se baseia no pressuposto de que a pessoa, com suas forças, pode alcançar níveis sempre mais elevados de perfeição, desfrutando as possibilidades positivas de seu ser, com uma espécie de autorredenção, sem precisar da salvação que lhe é oferecida por outro.

1.3. O espiritismo de Allan Kardec A finalidade de Allan Kardec, que considera a reencarnação um dado indiscutível, foi criar uma religião universal, não baseada nos dogmas ou na fé tradicional, mas na relação com o mundo dos espíritos e das almas separadas dos corpos. Essa comunicação pode ser provocada por técnicas humanas, recebendo notícias sobre o além e ajudas para a vida terrena12. A mistura de ciência e crença oferecida por ele depois de inúmeros estudos sobre os fenômenos do espiritismo teve grande êxito seja entre o povo simples, seja entre os intelectuais do século XIX, imbuídos por uma mentalidade laicista e secularizada, como documenta a difusão de sua obra O livro dos espíritos, publicada na França em 1854, editada várias vezes com oportunas revisões, à luz da experiência de numerosos grupos espíritas13. Foi a primeira síntese da doutrina do espiritismo na forma de perguntas e respostas, à qual se seguiram outros quatro livros14. A epígrafe gravada no túmulo de Kardec, no cemitério Pierre Lachaise em Paris: “Nascer, morrer, renascer e sempre progredir: essa é a lei”, destaca a firme convicção do pesquisador de que a verdade da reencarnação está relacionada com o progresso da humanidade. No Brasil, a doutrina de Allan Kardec teve bastante sucesso. Isso ocorreu por obra do médico Adolfo Bezerra de Menezes (1831-1900), que transmitiu o kardecismo à luz das perspectivas da maçonaria. Em 1884 foi criada a

12. Por meio do espírito Zéfiro, através da médium Celine Japhet, foi revelado ao cientista e educador francês Léon Hippolyte Denizart Rivail (1804-1869) ser a encarnação de um druida celta: Allan Kardec. 13. O subtítulo da primeira edição da obra era: “Princípios da doutrina espírita sobre a imortalidade da alma, a natureza dos espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da humanidade — segundo os ensinos dados por espíritos superiores com o concurso de diversos médiuns — recebidos e coordenados por Allan Kardec”. 14. F. DERMINE, Lo spiritismo tra parapsicologia e scienza: apertura persuasiva per l’aldilà?, in A. LAMBERTINO (a cura di), Homo moriens. Saggi sull’aldilà e sul destino ultimo dell’uomo, Parma, Monte Università Parma, 2004, 233-249. 226

Capítulo 12 – O desafio da reencarnação

Federação Espírita Brasileira (FEB), que em 1952 qualificou sua doutrina de religião, fazendo que os agrupamentos racionalistas e de cunho mais filosóficos, como o Racionalismo Cristão (1910), saíssem da federação15. O movimento cresceu e, com criatividade, soube adaptar-se às situações. O encontro entre o kardecismo e os ritos afro-brasileiros da macumba e do candomblé determinou, em Niterói, a criação da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, que foi considerada por muitos o primeiro terreiro umbandista, recusada porém por muitos kardecistas, que duvidavam que os espíritos dos negros pudessem dar uma verdadeira contribuição ao progresso da humanidade. No mesmo eixo formaram-se a Tenda Espírita Mirim, que se comunicava com o caboclo Mirim, chefe índio falecido, e a Umbanda Embranquecida, embora o kardecismo genuíno sempre tenha olhado de alto para baixo o movimento umbandista, criticando sua falta de reflexão filosófica e de sistematização racional16. Uma atenção particular merece o espiritualismo cristão, fruto da separação da viúva Tia Neiva de Maria de Oliveira, fundadora em Brasília do grupo União Espírita Seta Branca, ao qual pertenceu também o médium Cândido Chico Xavier17. Em 1964, Tia Neiva deu origem à Ordem Espírita Cristã e construiu uma cidade espírita perto de Taguatinga (Brasília). Foi fundamental para essa mulher, motorista de caminhões, o encontro com Mário Sassi, católico e fundador, em São Paulo, da Juventude Operária Cristã (JOC), que deixou o catolicismo, se separou da esposa, tornando-se espírita, após uma crise existencial. O grupo se transferiu para uma fazenda perto de Planaltina (Brasília) e formou a comunidade do Vale do Amanhecer, cuja doutrina combina elementos kardecistas com princípios cristãos e afro-brasileiros, dando realce a Jesus Cristo, a Maria, a São Francisco e também aos mestres tibetanos e aos extraterrestres, supondo a existência do mítico planeta Capela, considerado o reino dos espíritos da luz.

1.4. Os princípios do espiritismo kardecista Para o espiritismo, a existência de Deus, inteligência suprema, criador do universo e do mundo dos espíritos, puro espírito em oposição à matéria, é 15. M. INTROVIGNE, Il cappello del mago. I nuovi movimenti magici dallo spiritismo al satanismo, Gallarate, Sugarco Edizioni, 1995, 59-65. 16. O movimento espírita, em sua complexidade, constitui um desafio para a comunidade cristã. Frei Boaventura Kloppenburg procurou mostrar as discrepâncias entre a doutrina espírita e a doutrina cristã; o padre jesuíta Oscar González Quevedo enfrentou o espiritismo por meio da parapsicologia. 17. “Seta Branca” é um espírito conhecido na umbanda. 227

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uma afirmação evidente18. O ser humano é um espírito encarnado num corpo material, e o elo de ligação entre esse corpo e o espírito é um corpo semimaterial, um intermediário fluido, leve e imponderável chamado “perispírito”. As almas, criadas por Deus numa condição de simplicidade e de falta de conhecimento, se encarnaram várias vezes em outros planetas antes de se tornarem inteligentes e antes de serem enviadas para a terra e receberem um corpo. Este corpo é uma espécie de roupagem temporária, a ser deixada de lado na hora da morte. Afirmando que os espíritos mais evoluídos se encarnam nas estirpes melhores e que as almas mais inteligentes são as europeias, enquanto as dos negros são menos dotadas, Kardec mostra sua visão discriminatória da humanidade à luz da doutrina darwiniana da evolução. Aqui aparece sua tendência racista e classista, que caracterizou o espiritismo europeu da sua época. Apesar dessas declarações, Kardec frisa que todos os seres humanos são dotados de energia inteligente de tipo superior, à diferença dos animais e, com maior razão, dos vegetais. Na morte, a alma que é imortal se separa do corpo em que morava e se prepara para entrar num outro, dando início a um processo ininterrupto de reencarnações que lhe oferece a possibilidade de um contínuo aperfeiçoamento. É possível comunicar-se com essas almas separadas, que podem ser boas ou más, precavendo-se dos possíveis efeitos negativos por meio de um médium que tem a faculdade, inata e aperfeiçoada pela teoria kardecista, de relacionar o mundo dos viventes com o mundo dos espíritos. Em nome do progresso e contra o suposto obscurantismo do cristianismo, imaginou-se, então, ser ao alcance do homem entrar em contato com o mundo do além e receber respostas, considerando os eventos paranormais, hoje estudados pela parapsicologia, como efeitos da ação de almas de falecidos, pertencentes à atmosfera terrestre ou a outros planetas. A Revue Spirite, fundada por Kardec em 1858, ajudou na divulgação dessa perspectiva no mundo ocidental, dando-lhe grande prestígio, fazendo que ele fosse reconhecido como o líder do espiritismo europeu19. Na doutrina espírita valoriza-se também a figura de 18. P. A. GRAMAGLIA, Altre vite, op. cit., 44-65.65-90. 19. O caminho aberto por Allan Kardec foi aprofundado por Léon DENIS (1846-1927), que em seu livro Após a morte. Exposição da doutrina dos espíritos, procurou demonstrar que o espiritismo representa a religião universal do futuro. Por sua vez, Edouard SCHURÉ (1841-1929), em sua obra Os grandes iniciados. História secreta das religiões, ofereceu uma espécie de esoterismo comparado, analisando os personagens de Rama Krishna, Hermes, Moisés, Orfeu, Pitágoras, Platão e Jesus, procurando encontrar nos evangelhos elementos que justificam que Jesus era um médium reencarnado que revelou aos discípulos os segredos esotéricos da Índia, entre os quais a doutrina da reencarnação. Cf. P. A. GRAMAGLIA, Altre vite, op. cit., 420-439 (438). 228

Capítulo 12 – O desafio da reencarnação

Jesus, mas de forma totalmente contrária à revelação do Novo Testamento. Jesus é considerado simplesmente guia e modelo de toda a humanidade, o anunciador da verdadeira lei de Deus, desfigurada pelas Igrejas cristãs, mas reinterpretada em sua pureza por meio da ajuda dos espíritos.

2. Espiritismo e suas experiências básicas À luz desses elementos básicos, está claro que o movimento espírita rejeita a fé na ressurreição dentre os mortos, anunciada nos evangelhos, em favor da doutrina da reencarnação, baseada numa pluralidade de experiências. Os fatos em que a doutrina espírita se apoia são conhecidos.

2.1. Lembranças de vidas passadas Crianças com menos de 5 anos lembram de eventos acontecidos quando viviam em outro lugar, com outro nome e com outra família, e suas afirmações correspondem à verdade, podendo ser verificadas. Adultos mostram capacidades fora do comum, como proclamar textos sagrados de religiões desconhecidas ou falar em línguas estrangeiras, desaparecidas há muitos anos, sem com isso levantar a suspeita de falta de sinceridade20. Mesmo aceitando esses dados como confiáveis, é arriscado interpretar esses fenômenos à luz de existências anteriores nas quais as pessoas interessadas adquiriram conhecimentos e habilidades humanamente inexplicáveis. É preciso fazer um estudo dessas personalidades fora do comum, analisando como as experiências da infância ficaram nas faixas subliminares do inconsciente. É necessário verificar também sua individualidade bioquímica, sua herança genética, a morfologia específica de seu sistema nervoso, sua estrutura cerebral, sua natureza emotiva, além do ambiente cultural em que tais pessoas viveram. Hoje a telepatia e a parapsicologia podem explicar muitos desses fenômenos.

2.2. Viagens fora do corpo Algumas pessoas relatam experiências de viagens extracorpóreas, de duplicação, de superação de barreiras, num estado de bem-estar generalizado,

20. J. VERNETTE (Reincarnazione, resurrezione, comunicare con l’aldilà, Torino-Leumann, EllediCi, 1991, 39-50) nota que as lembranças das crianças fora da norma desaparecem com o desenvolvimento e elas voltam para a normalidade. Ch. SCHÖNBORN (Reincarnazione e fede cristiana, op. cit., 76) relata o caso de um menino capaz de terminar o desenho complicado de um bordado deixado inacabado. 229

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com a possibilidade de encontrar pessoas vivas ou entes queridos já falecidos. Depois das ditas “viagens”, retomaram (nem sempre com satisfação) o seu corpo físico, tendo a consciência de nunca tê-lo abandonado totalmente por causa do seu corpo sutil que sempre ficou em conexão com ele por meio de um “cordão umbilical” luminoso21. Essas experiências, cuja autenticidade é difícil de avaliar, não constituem a prova da sobrevivência da alma, nem que o corpo representa somente o invólucro da pessoa. Tampouco revelam que a passagem da vida corpórea para a outra vida é algo de simplório e fácil de provocar por meio de recursos científicos. Pensar logo num corpo astral, isto é, no perispírito, distinto do corpo físico, que constitui uma espécie de condensação de energia luminosa, com uma função intermediária entre o mundo terreno e o espiritual, é pagar um tributo pesado a uma concepção predefinida da realidade. As viagens fora do corpo podem ser explicadas mais plausivelmente pela desconexão entre os circuitos cerebrais que elaboram as informações sensoriais, dando ao doente a impressão de ver o seu corpo de um ponto de observação externo. Devem ser levados em conta também os distúrbios da consciência causados por alterações orgânicas ou pelas drogas.

2.3. Experiências de pré-morte A doutrina espírita valoriza também a experiência feita por várias pessoas que confessaram ter voltado para esta vida depois de terem chegado, por causas diferentes, às portas da morte, tanto que foram declarados clinicamente mortos22. Nessa situação, vendo seu corpo no leito do hospital ou na sala operatória, tiveram a experiência de flutuar sem peso no ar, fazendo uma revisão global da sua existência, para depois passar por um “túnel” obscuro e ser envolvidos por uma luz quente, semelhante a um mel luminoso, na qual fizeram o encontro com outros seres, até chegarem na presença de uma entidade espiritual, repleta de amor, sentindo uma inefável alegria e paz interior23. Obrigadas a voltar para a vida por causa de um obstáculo misterioso, ficaram sem medo da morte e com desejo de viver melhor. Trata-se de experiências críveis por causa da concordância básica dos testemunhos e da seriedade das pessoas que as relataram, independentemen21. J. VERNETTE, Reincarnazione, op. cit., 95-99. 22. As causas podem ser parada cardíaca, falta prolongada de respiração, ausência de pressão corpórea ou outras, até determinar o encefalograma plano. 23. KEHL, E cosa viene dopo?, op. cit., 91-100; cf. J. VERNETTE, Reincarnazione, op. cit., 107-122. 230

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te da profissão religiosa, da cultura ou do âmbito social, e também à luz da investigação metódica e rigorosa dos pesquisadores24. Essas experiências não representam, porém, uma demonstração da existência de outra vida, nem da possibilidade de se ter informações a respeito dela por parte do ser humano, porque têm a ver com a pré-morte e não com a morte verdadeira; além disso, as interpretações dependem muitas vezes das convicções dos pesquisadores e não da pesquisa em si25.

2.4. Comunicação com os finados Outro elemento que, aos olhos dos espíritas, justifica a doutrina da reencarnação é a possibilidade de comunicação com os finados, baseada no invólucro semimaterial do espírito que não desaparece logo após a morte, podendo materializar-se e oferecer respostas aos vivos por meio de um sistema combinado de sinais. Isso pode acontecer animando objetos, transmitindo mensagens com golpes de copos e de vasilhas, com mesas e cadeiras que pulam, revelando a sorte dos finados e, ao mesmo tempo, curando doenças dos que participam da sessão espírita ou ajudando-os a superar conflitos26. Evidentemente, nem os copos que começam a dar toques, nem as mesas que pulam são provas da comunicação com os falecidos, porque isso pode depender da telepatia e do psiquismo dos participantes ou de outras causas naturais. A respeito desses fenômenos, alguns estudiosos realçam que muitos médiuns têm personalidades sensitivas e nervosamente frágeis, com que sabem ler no consciente e no inconsciente das pessoas presentes nas sessões espíritas, atribuindo aos entes evocados os desejos delas. Trata-se, às vezes, de meros fenômenos de parapsicologia, de simulações interpretadas como materializações de corpos astrais, de respostas fictícias à luz de critérios de discernimento

24. As estatísticas mostram que nos Estados Unidos 35% das pessoas que fizeram essa experiência deram um testemunho unânime, modificando pequenos pormenores ou a ordem dos eventos. Também o filme de Clint Eastwood Hereafter procura aliviar o drama da morte, à luz desses fenômenos. Cf. R. MOODY, La vita oltre la vita. Nuove ipotesi sulla vita oltre la vita, Milano, Mondadori, 1982; E. KÜBLER-ROSS, La morte e il morire, Assisi, Cittadella, 1982; G. MARTINETTI, La vita fuori del corpo, Torino-Leumann, Elle di Ci, 1988. 25. Cf. E. KÜBLER-ROSS, Sobre a morte e o morrer, São Paulo, Martins Fontes, 41969. Os cientistas da Universidade da Califórnia destacaram que o encefalograma dos que estão prestes a morrer é semelhante ao das pessoas que estão em estado de meditação profunda. A experiência de paz depende das reações fisiológicas, determinadas pelos neuromediadores, que agem como drogas na pessoa na hora do falecer. Trata-se de simples experiências emotivas, não necessariamente espirituais, que não dizem nada a respeito da outra vida. Cf. J. VERNETTE, Reincarnazione, op. cit., 114-121. 26. Ibid., 123-146. 231

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

subjetivos, cuja autenticidade não é verificável27. Por isso, a veridicidade de alguns elementos pode coexistir com a fraude.

2.5. Recusa da ressurreição É bastante evidente que o espiritismo exclui toda perspectiva de ressurreição. Aliás, expoentes ilustres da doutrina espírita negaram expressamente a ressurreição de Jesus, chegando a afirmar que o corpo dele foi queimado pelos discípulos que queriam subtraí-lo aos inimigos. Se Jesus se manifestou, dependeu de seu corpo sideral, com fosforescências luminosas, cópia do corpo humano que desapareceu na morte. Foi a alma desencarnada de Jesus que deu momentaneamente ao corpo etéreo e fluídico uma aparência visível, por meio do dinamismo particular que o espírito exerce na matéria. Essas afirmações mostram que o anúncio evangélico foi totalmente falsificado.

3. Crítica à doutrina da reencarnação O homem de hoje medianamente culto, que verifica o valor de suas convicções religiosas à luz da razão, se dá facilmente conta de que a visão do cosmo e do ser humano proposta pelo espiritismo é pré-científica, arcaica, apta para pessoas crédulas e sem estudos, embora partilhe com o cristianismo a convicção de que Deus existe, de que a existência humana alcança sua plenitude na vida ultraterrena, de que as ações positivas e negativas têm uma influência determinante na existência de cada ser e da humanidade toda. Os erros principais são bastante evidentes.

3.1. Visão dicotômica da pessoa Para o espiritismo há somente um nexo extrínseco entre a alma e o corpo, porque considera a dimensão espiritual do homem como uma faísca de energia divina, presa na matéria. Ignora-se, assim, que o ser humano é uma unidade indivisível, cuja autoconsciência depende do sistema cerebral que pertence ao corpo. Este não representa só um invólucro que pode ser depositado como uma roupa velha, mas é parte essencial da pessoa, contribuindo para formar sua individualidade, sem nenhuma dissociação.

27. Compreende-se a importância da proibição bíblica: “Não vos voltareis para os que consultam os mortos nem para os feiticeiros; não os busqueis para não ficardes contaminados por eles. Eu sou o Senhor vosso Deus” (Lv 19,31). 232

Capítulo 12 – O desafio da reencarnação

Segue-se que a doutrina da reencarnação, ao não valorizar o corpo, abre a porta para a evasão do real e para o enfraquecimento da responsabilidade pessoal, com o álibi de outras existências. Pode também paralisar as possibilidades de realização do indivíduo, na esperança de que o que não foi possível atingir nesta vida será alcançável na outra28. Além disso, o espiritismo esquece a perspectiva comunitária da existência, frisando que cada um alcança sua purificação e realiza seu destino sozinho, sem levar em conta os laços que o unem a todos.

3.2. Banalização da morte e do mal Para os espíritas, a morte representa somente a destruição do corpo físico, que é momentâneo e passageiro, na grande parábola da vida que passa por sucessivas reencarnações. Não é, pois, o momento final e conclusivo da existência da qual Deus nos vai pedir conta, mas a simples transição para outro corpo que permite ao ser humano continuar seu processo de crescimento, apesar da dor da separação dos entes queridos. Trata-se de uma interpretação da morte muito pragmática, autorreferencial e egoísta, que esquece que com ela termina a possibilidade de fazer novas opções em relação à salvação. De certa forma, brinca-se com a morte, com o risco de brincar também com a vida. Tampouco o espiritismo dá uma resposta adequada à questão do mal do mundo, quer físico, quer moral. Reconhecendo que Deus, criador do mundo, não pode ser o princípio do mal, destaca que todo tipo de calamidade e de sofrimento depende da responsabilidade humana e é fruto de opções erradas, feitas nas existências passadas, interpretando os padecimentos atuais como um chicote providencial que estimula os indivíduos a melhorar sua vida. O mal, então, faria parte da realização progressiva de cada ser. À luz dessa visão, como se pode oferecer a um deficiente físico um alívio, impondo-lhe aceitar que seu estado é o resultado de pecados cometidos nas vidas anteriores, das quais não tem memória? Isso não desresponsabilizaria totalmente a pessoa? Kehl se questiona se a crueldade da Shoah pode encontrar uma solução razoável à luz de supostos crimes pré-natais dos seis milhões de judeus que foram mortos.

3.3. Salvação como autorrealização A convicção de uma progressiva purificação do ser humano por meio de sucessivas reencarnações leva a uma visão otimista da existência humana, de 28. P. A. GRAMAGLIA, Altre vite, op. cit., 475-485; M. KEHL, E cosa viene dopo?, op. cit., 53-90. 233

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acordo com a utopia do progresso científico, técnico e social do século XIX, em que o movimento espírita nasceu. Afirmando isso, o espiritismo considera a pessoa totalmente responsável por seu destino, sem necessidade de receber de outro a salvação. Nem consegue explicar por que a vida humana se torna perfeita através de ciclos de nascimentos, embora ninguém seja consciente das vivências anteriores, nem saiba o que, no presente, pode proporcionar-lhe a libertação total. Além disso, cai-se no ingênuo otimismo de pensar que cada ser mantenha sua personalidade, apesar das múltiplas e misteriosas reencarnações, e esteja sempre disposto a autoconstruir-se com energia e boa vontade.

3.4. Homogeneidade da realidade A doutrina kardecista pressupõe uma visão homogênea da realidade, sem descontinuidade entre o mundo terrestre e o mundo dos espíritos. Nem a morte determina uma ruptura, porque a comunicação com os que já se foram é sempre possível e pode ser realizada por meio de técnicas particulares29. O mundo do além se torna, assim, a prolongação de nosso mundo. Uma vez mais esse detalhe revela a mentalidade positivista da época em que se formou a doutrina espírita e sua visão grosseira da realidade, imaginando as almas, dotadas de energia fluídica, como a quintessência dos seres encarnados. De fato, ninguém pode descrever o mundo do além, mas somente falar dele por meio da linguagem simbólica.

3.5. Falta de cientificidade e confusões Alguns estudiosos, que já foram partidários da teoria da reencarnação, admitem a falta de cientificidade da doutrina clássica do espiritismo, que substituiu a fé religiosa com um saber confuso30. Depois de ter saído do movimento, pensam que o avanço das ciências psicológicas e dos fenômenos de telepatia e de percepção extrassensorial, ainda não bem conhecidos, poderá explicar muitos fatos enigmáticos sem recorrer à doutrina esotérica da reencarnação.

29. F. DERMINE, Lo spiritismo tra parapsicologia e scienza, op. cit., 235. Cf. J. VERNETTE, Reincarnazione, op. cit., 99-103. 30. M. Kehl menciona Thorwald Dethlefsen, psicólogo e psicoterapeuta alemão, o americano Brian Weiss, psiquiatra e experto de hipnose regressiva e de reencarnação, e Ian Stevenson, canadense, bioquímico, professor de psiquiatria e investigador do paranormal. 234

Capítulo 12 – O desafio da reencarnação

4. Reencarnação e ressurreição A perspectiva cristã é muito diferente da visão espírita. A plena realização da existência humana é dom gratuito de Deus e não uma conquista pessoal, embora seja preciso responder sempre com lealdade à graça oferecida. Além disso, a perfeição moral não consiste no acúmulo de virtudes e de boas obras, mas na relação com Deus31. A questão não é, pois, a autorrealização do ser humano, em si sempre limitada, mas a confiança no amor de Deus Pai que purifica e salva32. Segue-se que para o espiritismo o homem não precisa de Jesus para alcançar a salvação, mas apenas de si mesmo e das ações positivas que consegue realizar nas sucessivas reencarnações33. Além disso, Jesus não é o Filho de Deus encarnado que, morrendo na cruz e ressuscitando, resgatou a humanidade, mas somente um espírito muito evoluído; tampouco é o intercessor junto do Pai que oferece seu perdão a quem está arrependido, porque seu primado fica comprometido pelas entidades intermediárias dos espíritos que exercem um influxo decisivo nos homens34. Considerada com atenção, a doutrina espírita não precisa nem de Deus, identificado por seus adeptos como o grande relojoeiro do deísmo britânico. Ele apenas daria o primeiro impulso à criação, retirando-se em seguida e deixando o homem à sua mercê, em contradição com a perspectiva bíblica, em que Deus sustenta a realidade em todo momento da sua existência. Em relação à necessária purificação após a morte, o cristianismo fala de purgatório, não de sucessivas existências nas quais é possível superar o mal por meio de novas escolhas. O termo purgatório não indica um lugar, mas aponta para a ação vertical de Deus que livra o ser humano de seus pecados. Essa ação purificadora pode acontecer no momento da morte, em que cada pessoa faz a experiência do amor transcendente de Deus que queima a maldade, não estando mais ao alcance do homem, após seu falecimento, uma ação horizontal que o livre das impurezas, como pensa o espiritismo35.

31. P. CANTONI, Reincarnazione, persona umana e visione cristiana, in Homo moriens, op. cit., 143-170. 32. Se os operários, enviados a trabalhar na vinha do patrão em horas diferentes, recebem a mesma paga, isso significa que o salário depende da relação de amor com Deus e não da mera produção. 33. Esse talvez é o mais grave erro das pessoas que pensam conjugar a visão espírita com a fé cristã. 34. M. BRAGA em: . 35. P. CANTONI (Reincarnazione, op. cit, 163) faz referência à teologia de K. RAHNER, Corso fondamentale sulla fede. Introduzione al concetto di cristianesimo, Alba, Paoline, 1977, 561. 235

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

À perspectiva eficientista e individualista da doutrina espírita, que fixa sua atenção na perfeição egocêntrica de cada ser, a fé cristã opõe a unidade de todos os que estão em Cristo, vivos e falecidos, chamados a partilhar os bens salvíficos, fazendo que as boas obras de cada um sejam proveitosas a todos. Em primeiro lugar, Jesus glorificado, em sua função de salvador do corpo que é a Igreja, partilha com os salvos os dons da redenção, formando uma única família de todos os resgatados, entre os quais reina o amor. A eucaristia é o sinal mais expressivo dessa comunicação sobrenatural dos bens salvíficos, que alcançará sua plenitude no reino de Deus. Pensar que somente por meio do esforço pessoal é possível chegar à salvação e ao resgate de si mesmo é profundamente contrário à fé cristã.

236

À guisa de conclusão

O quarto evangelista oferece ao leitor um relato pormenorizado dos acontecimentos pascais. Depois da narração do túmulo vazio, interpretado pelo discípulo amado, que chega a crer em Jesus ressuscitado vendo os panos mortuários, João apresenta algumas das aparições mais significativas, pertencentes à tradição primitiva. Sua finalidade é fazer que os membros de sua comunidade acreditem que por meio de Jesus a morte foi vencida e a vida triunfou. Acrescenta o capítulo 21, que representa outra tradição antiga relativa à aparição aos discípulos, em que realça o êxito da futura missão da Igreja e, ao mesmo tempo, a função de pastoreá-la, entregue a Pedro, e o papel do discípulo amado. Nessas perícopes João destaca que os discípulos compreenderam aos poucos que Jesus tinha sido ressuscitado pelo Pai, e isso aconteceu por meio de um conjunto de sinais que se lhes apresentaram e que eles interpretaram impulsionados pela força do Espírito Santo. De fato, Jesus não se lhes manifestou no ato de ressuscitar, mas os ensinou a reconhecê-lo ressuscitado. Isso aconteceu, em particular, por meio das aparições, em que os discípulos tiveram a certeza de que Jesus estava diante deles e os interpelava com poder. A ressurreição não se lhes impôs como um prodígio evidente, nem como um acontecimento espetacular que exige necessariamente um assentimento, recusável somente por pessoas ignorantes ou de má-fé. Isso significaria rebaixar o evento ao nível de um mito pagão, em particular se interpretado 237

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

como uma revanche de Jesus contra os seus perseguidores. Descobrir Jesus ressuscitado foi o ponto de chegada de uma caminhada silenciosa, sustentada pela força de Deus, na consciência de que ele sempre se revela de forma sóbria e discreta, respeitando a liberdade do ser humano. Portanto, também os discípulos precisaram fazer uma opção de fé, à luz dos sinais recebidos, para reconhecer a vitória de Jesus sobre a morte e sua glorificação. Foi-lhes recusada toda constatação. O que pôde ser constatado de forma inequívoca foi somente o túmulo vazio. A fé dos discípulos nasceu, portanto, de uma experiência oferecida e não programada por eles que, aceita livremente, se tornou incontestável, na firme convicção de que Deus estava atuando gratuitamente neles por meio do próprio Jesus ressuscitado, embora não se possa determinar com exatidão a localização ou o momento preciso em que aconteceram as aparições, porque cada evangelista as apresenta na moldura geográfica e cronológica característica de seu relato. O que os levou a crer não foi, então, o simples raciocínio humano, iluminado pelo Antigo Testamento, em que Deus reabilita o justo perseguido; tampouco foi apenas a proclamação do reino de Deus, feita por Jesus, cuja consequência é a irrupção neste mundo da vida e da salvação. Aconteceu aos discípulos o que ocorre na dinâmica interior de cada crente, chamado a dar sua resposta de fé à palavra do evangelho que lhe anuncia Jesus ressuscitado: tiveram uma experiência toda particular de Jesus glorioso, duvidaram de sua genuinidade, procuraram entender melhor, acolheram, afinal, essa experiência, entendendo seu sentido à luz do desígnio de Deus contido na história da salvação. Os relatos joaninos expressam essa experiência dos discípulos por meio de uma linguagem simbólica, a única possível para falar das coisas divinas. Esse tipo de linguagem remete a uma realidade que transcende o ser humano e não pode ser apresentada de modo exaustivo, porque isso equivaleria a apoderar-se dela e, ao mesmo tempo, negá-la em sua realidade transcendente. Esse modo de falar não significa que a realidade indicada não exista ou que seja mera fantasia. Trata-se de algo real, mas passível de ser evocado e tratado só tangencialmente, porque as realidades da revelação estão acima da possibilidade de representação ou de averiguação humana. Por isso, não é possível uma demonstração inapelável, não há garantia matemática da ressurreição de Jesus, como desejaria o homem que confia unicamente em seu raciocínio, porque nesta vida o ser humano fica sempre no umbral, percebe a luz e experimenta ainda as trevas, andando constantemente na neblina1. 1. F. GENTILONI, R. ROSSANDA, La vita breve. Morte, resurrezione, immortalità, Parma, Nuova Pratiche Editrice, 1996, 91-92. 238

À guisa de conclusão

Ao dizer que os discípulos “viram” Jesus que se lhes manifestou e “escutaram” sua palavra, o evangelista não pretende que isso aconteceu por meio dos sentidos físicos. Com um conjunto equilibrado de detalhes que realçam quer a continuidade, quer a descontinuidade entre o Jesus terreno e o Jesus glorioso, deixa entender que a realidade da ressurreição está situada para além deste mundo terreno. Para chegar a isso, foi necessária toda a capacidade de percepção dos discípulos, toda sua inteligência espiritual, para compreenderem a realidade do evento da Páscoa, que mudou suas pessoas, seus sentimentos e suas emoções, abrindo um novo horizonte de sentido2. Tornaram-se, assim, testemunhas oculares do acontecimento que revolucionou a história. Nas narrativas do quarto evangelista, como nos relatos sinópticos, encontram-se vários elementos catequéticos, teológicos e apologéticos. Sua finalidade é dar uma resposta às principais questões referentes à ressurreição levantadas pelos cristãos da comunidade primitiva. Por meio deles, João mostra que o evento pascal constitui o centro da fé cristã. É o momento mais elevado em que Deus manifesta seu amor para a humanidade, em que é renovada a Aliança, em que os pecados do mundo são lavados no sangue do Cordeiro. Destaca ainda que com a Páscoa nasce a Igreja, por meio da qual Jesus glorificado continua atuando na humanidade, garantindo o sucesso da missão cristã, apesar das dificuldades que sempre deve enfrentar. Dessa forma, João faz uma operação hermenêutica importante, ajudando sua comunidade, juntamente com os batizados de todos os tempos, a ter uma visão completa e aprofundada do evento básico da fé cristã. Esforça-se, em particular, por mostrar que a ressurreição não constitui a feliz conclusão da vida do Nazareno, depois de muitos sofrimentos e provações, como nos contos infantis, mas é a revelação do valor da oferenda sacrifical de Jesus na cruz, que faz novas todas as coisas e vivifica os seres. Refletindo sobre a ressurreição do cristão, o quarto evangelista oferece um aprofundamento, desconhecido dos sinópticos, ao destacar que cada batizado, por causa de sua união com Jesus, goza, desde o momento do sacramento da iniciação cristã, de uma especial intimidade com Deus e da vida eterna. Embora de modo misterioso, mas real, ele já participa da ressurreição de Jesus, que se manifestará de forma plena no último dia. Sem negar a dramaticidade da morte, João a interpreta como a entrada na casa de Deus, quando, ao rasgar-se

2. P. A. SEQUERI (Il Dio affidabile, op. cit., 476) realça que a linguagem simbólica dos relatos evangélicos não deixa o cristão inativo, mas o estimula a agir de acordo com o anúncio recebido, tendo um valor performativo e operacional. 239

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

o véu representado pelo corpo terreno, se revelará a identidade verdadeira de cada redimido e sua contribuição na realização do plano salvífico de Deus. Cada um encontrará seu lugar no corpo de Jesus ressuscitado em que habita toda a plenitude da divindade, vivendo em comunhão com todos os salvos e com Deus, porque, também na glória, somente por meio do Verbo encarnado cada ser humano pode entrar em relação com o Altíssimo. Com a morte haverá, então, a plena realização da vida humana, que atingirá seu cume no cumprimento final de todas as coisas, na perfeita comunhão de todos os remidos e na transfiguração de toda a realidade. É, portanto, lógico supor, usando uma linguagem temporal que deve ser entendida em sentido analógico, que a ressurreição corresponda a um processo em desenvolvimento. Esse processo começa no momento em que cada falecido, com sua corporeidade glorificada, entra no reino de Deus, e se conclui no final dos tempos, com a própria glorificação da matéria, liberta das limitações terrenas, quando Deus se tornar tudo em todos. De fato, só no último dia a bem-aventurança de cada pessoa pode coincidir com a de todos os eleitos. Não se trata de utopia ou de consolação superficial, útil para superar as provações da vida, mas de um anúncio de fé que sobrepuja todo pensamento humano e corresponde à revelação do plano misterioso de Deus. Esse plano não é reservado a um pequeno grupo de escolhidos, mas a todos os seres humanos que, em sua providência, Deus dirige a fim de que alcancem a meta definitiva para a qual foram criados. Aceita-o quem tem a certeza de que há um Deus que, em seu mistério transcendente, é fiel a todos, também na situação dramática da morte, e ama cada ser humano muito mais do que seus entes queridos que alegram sua existência com afeto e carinho. Para encontrar no anúncio do evangelho uma verdadeira luz orientadora, acredito que o homem moderno deve recuperar o sentido da transcendência, livrando-se da visão materialista da existência, pensando que a realidade é mais rica do que a mente limitada pode imaginar. Se as ciências humanas conseguem desvendar os segredos da natureza, somente a revelação que vem de Deus pode oferecer uma compreensão exaustiva e completa da existência humana. Esse homem moderno, audacioso e ao mesmo tempo frágil, deve também defender-se da presunção de considerar tudo como propriedade pessoal, pretendendo dispor da existência de forma completa, sem a necessidade de confiar nos outros e ainda menos em Deus. A supraestima do “eu” leva, aos poucos, à autocondenação e à solidão3. Da mesma forma, deve livrar-se 3. F. GENTILONI, R. ROSSANDA, La vita breve, op. cit., 49-52. 240

À guisa de conclusão

do falso pressuposto de que a “vida eterna” prometida por Deus seja sinônimo de vida monótona, uniforme e tediosa, sem atividade e crescimento pessoal4. Entendida em seu sentido genuíno e liberta dos equívocos incrustados ao longo dos séculos, a expressão joanina, à luz de toda a teologia do evangelista, quer comunicar um conceito exatamente oposto. Afirma que a contemplação perene de Deus, que é Trindade de amor, é constante novidade, perfeita comunhão de amor com todos e, portanto, gozo sem limites5. Terminando este estudo, parece-me útil lembrar que na vida o importante é procurar constantemente o sentido da existência humana. Esse sentido brota das convicções alcançadas, sem renunciar ao duro trabalho da interpretação da realidade lida à luz da palavra de Deus, sem nunca ficar satisfeito com os logros adquiridos, nunca dando muito peso às distinções humanas de crentes ou de descrentes que podem corresponder somente a uma realidade superficial. Concluo fazendo referência a um texto muito penetrante de Hans Urs von Balthasar, em que o teólogo alemão coloca nos lábios de Jesus as seguintes palavras6: “Eu sou a ressurreição e a vida. […] Todo o viver e morrer do mundo é, no seu conjunto, uma grande morte; e essa morte, eu a acordo à vida. […] Tudo o que dobra na direção da morte cai no colo da minha vida. […] Tudo o que perece e vai na direção do outono termina, no naufrágio, na praia da minha primavera. […] Eu não sou um dos ressuscitados; sou a ressurreição. Quem vive em mim, quem está inserido em mim é acolhido no prodígio do ressuscitar. Eu sou a metamorfose. Como se transformam pão e vinho, assim transforma-se o mundo em mim. Minúsculo é o grão de mostarda, mas sua força íntima não encontra descanso até quando não jogar sua sombra sobre todos os vegetais da terra. Assim, minha ressurreição não repousará até quando não for quebrado o túmulo do último ser e as minhas forças não chegarem aos pequenos ramos mais distantes da criação. Vós vedes a morte, experimentais a descida em direção do fim; mas a própria morte é vida, é a profundidade tenebrosa da minha vida, e o fim, ele mesmo, é o princípio; a descida, ela mesma, é o ímpeto da elevação. Que significa ainda morte, depois da minha morte? Não tem doravante todo falecer o sentido e o selo do meu? Seu sentido não é o dos braços que se abrem e de uma oferenda perfeita no colo do meu Pai? Na morte caem as barreiras, na morte quebram-se as fechaduras 4. Cf. João 3,15.16.36; 4,14.36; 5,24.39; 6,27.40.47.54.68; 10,28; 12,25.50; 17,2.3. A expressão corriqueira “descanso eterno” não é bíblica e deve ser evitada. 5. H. KESSLER, La resurrezione, op. cit., 372-382. Cf. M. KEHL, E cosa viene dopo la fine?, op. cit., 191-196. 6. H. URS VON BALTHASAR, Il cuore del mondo, Brescia, Morcelliana, 1964, 63-65. 241

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

do castelo desde sempre travadas e recusadas, rompe-se a barragem e as águas escorrem livres. Todos os medos que a cercam de modo impenetrável são como neblina da manhã que some e deixa livre o aparecer do azul. […] Não tenhais medo da morte! A morte é a chama libertadora do sacrifício e o sacrifício é transformação. A transubstanciação, por sua vez, é a comunhão à minha vida eterna. Eu sou a vida. Quem crê em mim, quem come e bebe de mim tem em si a vida, já aqui e já agora, e eu o ressuscitarei no último dia. Compreendeis esse mistério?”.

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245

Índice dos autores

Agostinho 51, 64, 72, 74, 122, 123, 132, 192, 218, 225

Bezerra de Menezes, A. 226

Althaus, P. 206, 207

Bietenhard, H. 162

Amigues, M. 61

Biffi, G. 208

Ancona, G. 220

Billerbeck, P. 46, 96, 178

Anselmo de Cantuária 219

Bingemer, M. C. L. 213

Auer, J. 203, 205, 214-216, 220

Blanco, C. A. 162

Bianchi, E. 201

Blank, J. 181 Balagué, M. 47, 49

Blass, F. 46

Balthasar, H. Urs Von 175, 241

Blomberg, C. L. 93

Barbaglia, S. 130, 133, 134

Boff, L. 208

Barbaglio, G. 218

Boismard, M.-E. 101, 183

Barrett, C. H. 109

Bonnard, P. 96

Barruffo, A. 157

Bordoni, M. 156

Belle, G. van 103

Boros, L. 205, 208

Benoit, P. 35, 56, 68, 69, 74, 76, 149, 215

Braga, M. 235

Beutler, J. 168

Brambilla, F. G. 154

Beyreuther, E. 162

Brändles, M. 60 247

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Breuning, W. 210

Dethlefsen, T. 234

Brown, R. E. 33, 35, 50, 58, 77, 109, 122, 127, 128, 134, 138, 168, 174, 180, 183

Dibelius, M. 128

Brunner, E. 208

Dinechin, O. de 90

Büchsel, F. 96

Dodd, C. H. 57, 96, 147, 155, 183, 215

Bultmann, R. 57, 116, 128, 134, 153, 182, 183

Domiciano 106

Byrne, B. 50

Dupont, J. 109

Dietrich, W. 128

Donfried, K. P. 138 Dupont, L. 68

Cambe, M. 67

Duquoc, Ch. 213

Cantoni, P. 235 Casalegno, A. 16, 69, 183

Eastwood, C. 231

Casey, Th. G. 201

Édart, J. B. 198, 199

Castellucci, E. 206

Einstein, A. 212

Cattaneo, E. 157

Eusébio de Cesareia 49, 138

Chico Xavier, C. 227

Evdokimov, P. 68

Ciola, N. 220 Coenen, L. 162

Fabris, R. 86, 109, 122, 173

Cortese, E. 204

Ferraro, G. 88

Costa, M. 185

Feuillet, A. 37, 58, 64, 67, 77, 84, 94

Crisóstomo, J. D. 94

Fiedler, P. 183

Crossan, J. D. 154

Fitzmyer, J. 127, 128

Cullmann, O. 106, 207

Fizzotti, E. 204 Flávio Josefo 216

Danielou, J. 159

Forte, B. 217

Dartigues, A. 213

Frosini, G. 219

Daube, D. 183 Dauer, A. 45

Gentile, L. 204, 220

Davies, W. D. 183

Gentiloni, F. 238, 240

Debrunner, A. 46

Gerhardsson, B. 27

Delebecque, É. 139

Ghiberti, G. 28, 65, 86

Delorme, J. 58, 146, 161

Gramaglia, P. A. 225, 228, 233

Denis, L. 228

Greco, C. 157, 213, 215

Denzinger, H. 98, 214

Gregório de Nazianzo 225

Dermine, F. 226, 234

Gregório de Nissa 206, 225 248

Índice dos autores

Gregório, o Grande 73, 111

Lambertino, A. 226

Greshake, G. 209, 210

Langevin, G. 213, 215 Largo Domínguez, P. 218

Haenchen, E. 128

Larraya, J. A. G. 70

Hahn, F. 106

Lash, Ch. 68

Hartingsveld, L. van 183

Lauret, B. 61, 172 Leão Magno 107, 220

Inácio de Antioquia 26, 189, 196

Léon-Dufour, X. 27, 35, 40, 42, 49, 56, 83, 88, 134, 142, 146, 166, 187, 208, 213, 219

Introvigne, M. 227 Ireneu 76, 213

Levesque, G. 68 Jeremias, J. 78, 96, 107, 174

Lewis, Th. J. 166

Jonge, M. de 35

Libanio, J. B. 213

Judge, P. J. 109

Lightfoot, R. 147

Jung, C. G. 201

Link, H. G. 162 Lohfink, G. 209, 210

Kaestli, J. D. 115

Lorizio, G. 201, 213

Kardec, A. 226, 228

Lucas Lucas, R. 201, 211

Kasper, W. 154-156, 159, 169, 215

Lüdemann, G. 154

Kehl, M. 202, 211, 223, 225, 230, 233, 234, 241

Manns, F. 79, 80, 85, 91, 94, 122, 123, 139, 143, 151

Kessler, H. 58, 154-157, 159, 161, 169, 170, 172, 198, 241

Marcheselli, M. 115, 116, 127, 140

Kloppenburg, B. 227

Marin, L. 60

Koch, G. 58

Marranzini, A. 199

Kolarcik, M. 204

Martelet, G. 205, 220

Kremer, J. 58, 94, 103, 219

Martignani, L. 183

Kübler-Ross, E. 231

Martinetti, G. 231

Künneth, W. 61

Martini, C. M. 122, 214

Kuss, O. 179

Marucci, C. 201 Marxsen, W. 57, 153, 154

Labarrière, P. J. 213

Mazzinghi, L. 166

Laconi, M. 169

McCaffrey, J. 190, 191

Lactâncio 225

McEleney, N. J. 123

Lagrange, M.-J. 53, 94, 119, 122

Meier, J. P. 128, 129 249

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

Meyer, R. 216

Rahner, K. 160, 201, 204, 212, 217, 218, 235

Minear, P. S. 127

Ratzinger, J. 203, 205, 214-216, 220

Moingt, J. 201, 203

Ravasi, G. 166

Mollat, D. 52, 84-86, 94, 109, 151

Refoulé, F. 61

Moltmann, J. 154

Reumann, J. 138

Moody, R. 231

Ricca, P. 181

Mussner, F. 60

Richter, G. 183 Rinaldi, G. 42

Neirynck, F. 35, 103

Robinson, J. A. T. 183

Nicolaci, M. 86

Rochais, G. 179

Nitrola, A. 161, 166, 204

Romeo, J. A. 123

Nocke, F. J. 220

Rossanda, R. 238, 240 Rossé, G. 214

O’Collins, G. 146, 154

Rucksthul, E. 56

Oliveira, F. 45

Ruini, C. 218

Oliveira, M. de 227

Ruiz de la Peña, J. L. 180, 202, 204, 205, 208, 210, 212, 216, 217

Orígenes 49, 131, 219, 225

Sabugal, S. 45 Pamment, M. 182

Sartre, J.-P. 14

Pannenberg, W. 159

Sassi, M. 227

Pascal, B. 52, 211

Schillebeeckx, E. 154

Penna, R. 19, 166

Schmaus, M. 205

Perego, G. 166

Schmitt, J. 58

Pesch, R. 59, 127

Pillai, A. C. G. 157

Schnackenburg, R. 33, 81, 95, 98, 103, 109, 127, 134, 139, 140, 168, 180, 182, 183, 190

Pitágoras 224, 228

Schneiders, S. M. 49

Poffet, J. M. 115

Schönborn, Ch. 224, 225, 229

Potterie, I. de la 33, 94, 135, 136, 139, 151, 185

Schoonenberg, P. 219

Pozo, C. 219

Schürmann, H. 128

Prusak, B. P. 219

Segalla, G. 115, 121

Pfammatter, J. 56

Schuré, E. 228

Segbroeck, F. Van 103 Quevedo, O. G. 227

Segovia, F. F. 127 250

Índice dos autores

Seidensticker, Ph. 213

Torres Queiruga, A. 57, 152, 156

Sequeri, P. 152, 160, 239

Traets, C. 150

Silvestri, G. 220

Troisfontaines, R. 205

Simoens, Y. 41, 68, 104, 109, 119, 120, 128, 132, 133

Tuckett, C. M. 103

Smith, D. 150

Urbach, E. 81

Sobrino, J. 167

Urúbarri, G. 204

Spicq, C. 131 Stauffer, E. 183

Verheyden, J. 103

Stein, R. H. 129

Vernette, J. 229-231, 234

Stephens, M. B. 220

Vidal, S. 21, 24, 25, 28

Stevenson, I. 234

Vorster, W. S. 127

Stibbe, M. W. G. 178 Strack, H. 46, 96, 178

Wagner, J. 179

Strecker, G. 109

Watson, J. 212

Suétone 106

Weiss, B. 234 Teani, M. 214

Wiarda, T. 134

Teodoro de Mopsuéstia 94

Wolff, H. W. 199, 200

Terracciano, A. 157 Tertulliano 60, 80, 213, 225

Zeller, D. 183

Tia Neiva 227

Zerwick, M. 105

Tomás de Aquino 94, 193

Zumstein, J. 115, 140

251

Índice dos textos

Apócrifos

Taanith 184

Ascensão de Isaías 76

Fílon 190

Pistis Sophia 76

De somniis 190

1 Henoc 79, 190, 216

De confusione linguarum 190

Livro dos segredos de Henoc 79, 190

Literatura cristã Literatura grega

Instrução dos doze apóstolos (Didaqué) 104

Platão 197 s.

Imitação de Cristo 189

Literatura rabínica

Literatura oriental

Dezoito Bênçãos 22 Tosefta, Bera-kôt 22

Bhagavad Gita 225

Talmude de Babilônia: Bera-kôt 22

Documentos do Concílio Vaticano II Gaudium et spes 14

253

Índice analítico

Alegria 36, 66, 84, 86-89, 101, 190, 211, 219, 230 Aliança 54, 61, 68, 70, 78, 80, 94, 107, 108, 173-195, 239 Alma 78, 92, 137, 174, 178, 197-203, 206209, 211, 212, 215, 216, 218, 219, 221, 224-226, 228, 230, 232, 234 Aloé 49 Anjo do Senhor 41, 44, 55, 56 Anjos 34, 35, 41, 43, 44, 55, 56, 61, 63-65, 68, 69, 78, 123, 150, 178, 210 Apascentar 113, 121, 130, 131, 137 Ascensão 74-78, 94, 99, 107, 168 Atrair 71 Autoridade 136, 137, 140-142, 155, 184, 194

Confissão de fé 15, 18, 19, 21-25, 27, 34, 52, 72, 85, 105, 107, 108, 130, 181 Conhecimento 107, 134, 135, 150, 166, 200, 201, 208, 224, 228, 229 Conversão 24, 65, 66, 89, 154, 156, 195 Coração 13, 18, 23, 43, 52, 63, 64, 66, 70-73, 78, 86, 88, 92, 105, 109, 143, 155, 167, 170, 174, 189, 191, 200, 201, 218, 219 Corporeidade 202, 211, 212, 240 Cosmológica 75, 163, 232 Crer 23, 30, 33, 44, 50, 51, 56, 58, 60, 70, 71, 74, 102-104, 107-110, 140, 151, 152, 155, 158, 180, 181, 188, 195, 237, 238 Cruz 19, 20, 37, 40, 48, 61, 66, 80, 86-88, 93, 97, 123, 124, 138, 148, 152, 153, 156, 157, 163, 165, 169, 170, 173, 175, 186, 188, 213, 235, 239

Batismo 19, 98, 123, 149, 172, 182, 185, 186, 203 Bem-aventurança 37, 109-111, 123, 190, 206, 218-220, 240

Cumprimento 18, 90, 170, 180, 183, 187, 196, 205, 208, 210, 220, 240 Discípulo amado 15, 29-32, 34, 39, 43-45, 50-53, 56, 69, 93, 113-117, 120, 121,

Carne 13, 19, 54, 60, 141, 186, 188, 189, 192, 198, 199, 213, 214, 220, 221 255

“É o Senhor!” (Jo 21,7) – Estudo dos relatos da ressurreição no evangelho de João

127, 130, 131, 133, 137-141, 143, 150, 151, 157, 174, 175, 237

Lázaro 43, 46, 48-50, 53, 60, 102, 132, 162, 177-179, 183, 216 Linguagem 51, 57, 77, 136, 145, 147, 149, 157, 161, 164, 165, 190, 201, 216, 223, 234, 238-240

Elevar 163, 164 Escatologia 140, 161, 166, 180-184, 203210, 213-217, 219, 220, 243-245 Escritura 20, 26, 34, 51-54, 153, 157, 171, 172, 175, 201, 202, 217, 218

Mais do que 75, 111, 129, 131, 133, 134, 155, 185, 199, 240

Espiritismo 224, 226-229, 232-235

Mar 72, 118, 119, 121-123

Espírito Santo 17, 19, 20, 36, 44, 61, 74, 76, 84, 87, 89, 92-95, 123, 141, 146, 147, 168, 169, 172, 180, 185, 188, 191, 200, 203, 215, 237

Medo 47, 56, 85-87, 129, 191, 195, 196, 198, 200, 230, 242 Mirra 49 Missão 36, 67, 76, 86, 89-95, 97-100, 102, 114, 115, 123, 125, 131, 136, 138, 142, 143, 148, 149, 153, 156, 157, 168, 175, 184, 237, 239

Estado intermediário 206, 207, 215-219 Eucaristia 33, 59, 104, 115, 124, 125, 127, 143, 148, 175, 182, 186-189, 196, 213, 236

Mulheres ao túmulo 33, 35, 39, 45

Exaltação 76, 153 Natanael 108, 110, 111, 113, 114, 116 Fórmulas primitivas 21, 24, 25

Nova criação 92, 99, 118, 172, 185, 206 Nudez 46, 121, 122

Gematria 123, 256 Glorificar 163, 164

Onisciência 104, 135, 137

Gnosticismo 198, 208, 213, 214

Onze 43, 84, 85, 126, 149

Guardas ao túmulo 56 Paixão 14, 26, 29, 36, 37, 48, 59, 79, 85, 88, 91, 114, 118, 119, 124, 129, 130, 133, 163, 169, 170, 177, 198, 199, 224

Igreja 15, 18, 24, 25, 27, 33, 43-45, 50, 51, 54, 56-59, 65-67, 75, 77, 85, 89-91, 9398, 100, 108, 110, 111, 114-116, 118, 119, 123-125, 130-132, 136, 138-143, 147-149, 153, 159, 164, 169, 172-175, 180, 191, 192, 203, 213, 215, 225, 229, 236, 237, 239

Palavra 186 Panos mortuários 34, 43, 46, 47, 49, 237 Pão 53, 71, 84, 115, 116, 120, 124-127, 171, 186-189, 213, 241 Parusia 118, 139, 140, 208-210, 215, 220

Imortalidade 166, 189, 200, 201, 203, 216, 226

Paz 19, 35, 36, 84, 86, 87, 89, 148, 160, 174, 230, 231

Inferno 20, 75, 163, 203, 216, 225 Ipsissima verba 147

Pecado 17, 26, 36, 54, 79, 89, 94-98, 129, 186, 196, 198, 204, 205, 220, 233, 235, 239

Jardim 36, 41, 79, 80, 81

Peixe 117, 119-128, 134, 136, 146, 149

Lado direito 55

Pentecostes 16, 76, 93-95, 161, 169, 183, 199, 256

Iniciativa de Jesus 86, 145

Pedra 39, 41, 42, 55, 87, 150, 173, 190

256

Índice analítico

Perdão 84, 94-99, 154, 235

Sudário 48-50, 150

Periodização 77 Promessa 18, 70, 76, 84, 86, 88, 93, 94, 188, 214

Tarefas femininas 67 Telepatia 229, 231, 234 Terceiro dia 26, 54, 162

Reconhecimento 34, 42, 69, 70, 89, 106, 110, 120, 135, 138, 142, 148, 149, 151

Terremoto 55, 169

Rede 117, 120-124, 126-128, 134, 219

Tiberíades 15, 45, 113, 116-118, 127, 130, 148, 150

Reencarnação 15, 223-226, 228, 229, 231235

Tocar 73, 74, 107, 146, 149, 157 Torah 81

Refeição 84, 117, 120, 124-127, 129, 131

Tradição 19, 22, 23, 25-28, 33-35, 37, 39, 41-45, 49, 52, 54, 56-60, 68, 69, 84, 85, 89, 96, 99, 100, 102, 103, 113-118, 121, 124-127, 129, 137-139, 142, 143, 148, 161, 166, 179, 190, 194, 237

Revelação 15, 18, 20, 31, 44, 53, 54, 79, 88, 92, 103, 105, 116, 118, 148, 152, 157, 160, 166, 167, 171, 174, 175, 187, 192, 199, 221, 229, 238, 239, 240

Túmulo de Jesus 41, 44, 54-56 Salvação 15, 21, 52, 53, 60, 68, 70, 75, 78, 79, 90, 96, 136, 140, 152, 153, 167, 169, 170, 181, 182, 184, 187, 188, 191, 194, 195, 197, 205, 206, 208, 209, 213, 214, 219, 220, 225, 226, 233-236, 238

Unidade 19, 29, 30, 80, 95, 106, 115, 117, 123, 124, 168, 177, 199, 201, 207, 232, 236

Senhor 13, 15, 18, 19, 21-25, 27, 30, 32, 33, 35, 41, 44, 46, 51, 54-56, 63, 64, 68, 70, 72-74, 78-80, 83, 86, 88, 89, 102-111, 115, 116, 118, 120, 126, 128, 131, 132, 134, 135, 138, 139, 149-152, 157, 166, 168, 171, 173-175, 177, 178, 180, 184, 188, 192, 196, 199, 200, 203, 213, 217, 218, 220, 232

Viver 14, 19, 37, 109, 141, 162, 163, 180, 186, 187, 189, 195, 196, 202, 204, 211, 230, 241

Sheol 165, 166, 216

Voltar-se 64, 65, 69, 117

Ver 30, 31, 35, 40, 50, 51, 56, 70, 73, 78, 81, 101, 103, 106, 107, 109, 110, 123, 150-152, 154, 156-158, 182, 185, 186, 188, 198, 218, 225, 230, 231

257
É o Senhor! Estudo dos relatos - Alberto Casalegno

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