@BEbooks Floresta dos Corvos - Andrew Peters

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ANDREW PETERS

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ara minha mulher, Polly, que tanto ajudou na estruturação, edição e criação deste mundo, e que é minha companheira constante nas viagens mais profundas; para meus amados filhos, Roz e Asa, que foram meus primeiros leitores; para Eugene, que me estimulou a prosseguir quando eu estava prestes a desistir; para Uli, por lutar por uma boa causa; para Rachel Hawes, que me deu tantos conselhos úteis sobre roupas no alto das árvores; para Barry, que acreditou em mim e no meu trabalho e assumiu o risco; para a equipe da Chicken House, que me apoiou o tempo todo, e, finalmente, para Imogen, minha brilhante editora.

“Árvores são relíquias. Quem sabe como falar-lhes, ouvi-las, esse conhece a verdade. Elas não pregam ensinamentos e receitas, pregam isoladamente a primária lei da vida.” HERMAN HESSE

A perseguição Permaneça na madeira, assim deve ser. Se deixares a árvore, logo vais morrer. Provérbio dendriano

Ilha de Arborium Cinco de outubro, início da noite, uma semana antes do Festival da Colheita

A flecha zuniu acima de seu ombro e cravou, com um baque surdo, direto em uma estaca de madeira. Por pouco! Se ele não houvesse tropeçado, saindo do caminho, a haste agora estaria cravada em algum lugar perto do seu coração. Imaginou o sangue desabrochando como uma flor na camisa, o corpo, sem vida, despencando da borda do galho até o solo, quase dois quilômetros abaixo. Ark estava exausto. O suor escorria por suas costas e os músculos das panturrilhas doíam. Ele olhou para trás de repente: estavam a apenas cem metros dele. Essa parte da alta-estrada era ampla e reta. Não só o imenso galho original fora cortado para ficar com a face plana, assim como todos os galhos-via menores, mas também fora ampliado lateralmente com vigas e andaimes. Agora tinha seis metros de largura nos lugares de passagem. Àquela hora do dia, antes da hora do rush, o caminho estava deserto. Ark

corria a toda velocidade, sentindo cada nó e depressão da madeira. Ocultas em algum lugar lá no alto, nuvens escuras despejavam seu aguaceiro, enchendo as florestas com o eco das gotas. O tamborilar constante instava-o a prosseguir, e Ark corria desesperadamente em meio a uma massa de sombras indistintas. O peso de seu cinto com o equipamento hidráulico o atrasava. Chaves-inglesas contra bestas? Esqueça. Mas não havia tempo para livrar-se dele. Outra flecha passou assoviando e desapareceu, inofensiva, nas profundezas das folhas verdes.

*** Seu perseguidor parou, enxugando a chuva dos olhos, apontando com cuidado antes de outro disparo. As roupas encharcadas do garoto fugitivo, da touca de couro marrom e do feio jaleco castanho à bermuda justa e às meias gastas, revelavam que se tratava apenas de um trabalhador dos esgotos. Na verdade, sua presa assemelhava-se a uma grande e desprezível mancha em meio às árvores. O guarda tentava acompanhá-lo, forçando os olhos no aguaceiro. O garoto disparava em seus sapatos com sola de borracha e aderência extra, o calçado padrão para aquelas alturas. Ninguém queria escorregar lá de cima, principalmente com o mau tempo. Quanto a matar um garoto de quatorze anos? Aquilo não era um problema, era a solução.

***

Mais adiante, a alta-estrada seguia na direção de um tronco imenso e oco. Ark disparou para dentro dele, onde hesitou, recuperando o fôlego. Uma ave gritou a distância, e um ruído farfalhante ecoou pela madeira, fazendo

com que Ark olhasse para as sombras no alto. A árvore morta era uma encruzilhada. Seu tronco maciço suportava o cruzamento com galhos-via que levavam em três direções, passando por arcos esculpidos. Ele olhou para cada uma. Em um canto escuro, degraus antigos, cobertos de musgo, desciam para as profundezas ocas. Estava desesperado, mas descer para o solo? Estremeceu só de pensar naquilo. Qual caminho? Ark repassou o dia em sua mente. Apenas mais um cano de esgoto entupido, dissera seu patrão, sem querer sujar as mãos brancas e limpas. Você pode resolver isso, Arktorious Malikum. É um trabalho. Na verdade, é um “grande trabalho”! E, convenhamos, você já é marrom... então, enfiar a mão em uma grande pilha daquilo não vai fazer muita diferença! O homem riu da própria piada. Era o que sempre fazia. Mas aquilo não era motivo de riso. Bem diante dele, um esquilo vermelho se abaixou no ramo-via, mordiscando uma avelã. Fitou Ark por um segundo antes de mergulhar escada abaixo. — Por aqui… Ark olhou à sua volta. A voz era tão baixa que ele se perguntou se estaria imaginando coisas. Esquilos falantes? Estava ficando maluco! Sem pensar, Ark seguiu o animal, atirando-se no buraco e sendo engolido pela escuridão, que o envolveu. Por um momento, pôde recuperar o fôlego fora da vista dos guardas. Tinha de aproveitar ao máximo. Um ronco vindo de cima o assustou. Movendo-se lentamente em sua direção, saída das sombras, vinha uma carroça de lavanderia, com pilhas enormes de roupa limpa, sendo puxada por um pônei branco com manchas marrons. Quando a carroça passou por ele, as rodas de madeira atingiram um nó nos sulcos profundos no tronco e o arnês de bronze retiniu, emitindo estranhas notas por entre as folhas. Aquilo significava saia do caminho, pois pôneis de carga desacompanhados não alteravam sua rota por causa de ninguém. Um cavalo dado! Ark sorriu melancolicamente e saltou na traseira da

carroça. Subiu com esforço e mergulhou nos montes de roupas arrumados com esmero sob o encerado impermeável. Contorcendo-se ali debaixo, cobriu-se com anáguas limpas e cruzou os dedos, rezando para que Diana o protegesse. — Para onde foi o fiapo de gente? — Tava aqui há um segundo… As vozes soavam abafadas à medida que se aproximavam. — A gente quase pegou ele! Ark prendeu a respiração, esperando que as roupas passadas e os calções limpos fossem arrancados de cima de seu corpo. A mãe sempre o advertira em relação a ir sozinho à floresta, pois os Corvos poderiam pegá-lo e sugar sua alma. Aquilo ali era muito mais perigoso. — Dá uma olhada aí por cima. A carroça estremeceu quando pés escalaram até o topo da pilha de roupas. O peso de um guarda adulto e robusto caiu sobre Ark, expulsando o que restava de ar em seus pulmões. Eles ouviriam suas costelas quebrando ou seu coração martelando como o bico de um pica-pau. Um versinho da infância veio à mente de Ark: Segure a pena, arrebate a hora Ai de mim, me esconda, Senhora! Era uma cantilena sem sentido dita de um só fôlego por velhos e repetida com alegria pelas crianças. Mas ele ficava feliz com qualquer coisa em que pudesse acreditar naquele momento. — Santo Broto! — praguejou o guarda. — Não tô vendo ele em lugar nenhum! Talvez o graveto danado tenha enganado a gente, fingindo que virou à esquerda. — Grasp vai matar a gente se não encontrarmos o garoto! — sibilou o outro. — Vamos nos separar. Ele não deve ter ido longe… O peso no peito de Ark sumiu, e as vozes foram se tornando mais

distantes. Será que a velha cantilena tinha funcionado? Ark respirou fundo, enchendo os pulmões, e contou até duzentos, embora suas pernas estivessem coçando para sair dali. Quem sabe ele poderia ficar na carroça e esperar até que a carga fosse entregue… Sentiu-se quase ninado pelo suave balanço do veículo. Não! Ele se repreendeu. Ouvira demais. Grasp espalharia a notícia. A partir de agora, ele era madeira morta. A primeira coisa a fazer era se distanciar dos capangas do Sumo Conselheiro. Com cuidado, Ark afastou um par de meias-calças e várias camadas de protetores masculinos de couro para criar uma abertura por onde olhar, evitando pensar no lugar em que aquelas peças de vestuário haviam estado. Ele espiou lá fora. Tudo limpo. Ark deslizou e escorregou com cautela pela traseira da carroça. Desejou ter uma maçã para oferecer ao pônei que trabalhava imperturbável. — Obrigado, amigão! — sussurrou ele. — Fico lhe devendo uma! Os olhos do pônei, cobertos por antolhos, voltaram-se para ele, como se o animal aceitasse seu agradecimento, e a carroça seguiu em frente, deixando Ark sozinho na alta-estrada. Com cuidado, ele olhou o mundo em volta com novos olhos. Tudo que sempre considerara corriqueiro não oferecia mais nenhuma segurança. Uma névoa úmida borrava os contornos das folhas imensas, cada uma do tamanho de um homem adulto. Acima, abaixo, atrás e na frente, galhos-via e altas-estradas se entrelaçavam e projetavam-se no ar com cordas, andaimes e um milhão de pregos de madeira. Troncos com uma circunferência imensa, grandes o bastante para sustentar centenas de casas, lojas e hospedarias esculpidas em suas profundezas ocas, pontilhavam uma vasta paisagem de árvores. Ark sempre pensara que, apesar da história turbulenta, a vasta ilha de Arborium era o lugar mais seguro na Terra, estendendo-se pelas copas das árvores, a mais de um quilômetro e meio do solo. Não acreditava mais naquilo. — Ei! O grito agudo interrompeu bruscamente seus pensamentos. Ali! A

poucos metros dele um de seus perseguidores lançava-se direto em sua direção. O emblema no casaco o denunciava: o falcão de bico cruel da casa do conselheiro. É claro, os guardas não eram tão estúpidos assim. É só esperar com paciência que qualquer camundongo sai do buraco. Ark praguejou quando o homem deu um bote, tentando agarrar seu pulso. Ark deu um salto para trás e tentou se desvencilhar, mas não foi rápido o bastante. A mão do homem acertou o alvo e apertou o seu braço. Embora fosse quase tão magro quanto o garoto, seus músculos eram fortes como carvalho. — Me solte! — gritou Ark. — Nem pense nisso, seu sujismundo. — Os dedos, que mais pareciam tornos, apertaram ainda mais, enchendo os olhos do garoto com lágrimas de dor. — Você vale o bônus de um mês, ah, se vale! Ele sorriu, ameaçador, revelando um conjunto de dentes verdes como fungos podres e um hálito que lhes fazia jus. Ark parou de lutar à medida que uma fúria fria foi tomando conta dele. Que direito eles tinham? Seu pai sempre lhe dissera que ele podia sair de qualquer situação usando o cérebro. Mas de que valia a lógica contra a força bruta? Enquanto sua mente tentava se concentrar, o instinto puro entrou em ação: após a fuga vem a luta. Era como assistir a si mesmo de fora do corpo… Sua mão direita ainda estava livre. Em um perfeito movimento curvo, Ark tirou a pesada chave-inglesa do cinto de encanador e a ergueu em um arco, baixando-a com toda a força. O guarda esperava um garoto acovardado, mas o que encontrou foi uma arma bem-manejada, com um ruído repugnante como resultado. Os olhos do homem se arregalaram e ele lentamente escorregou até o chão. Ark não esperou. Já estava correndo antes mesmo de ouvir o baque do corpo na madeira. O grito do perseguidor teria o efeito de um alarme e, onde havia um guarda, certamente surgiriam outros. Pelo menos, pensou o garoto, saboreando a adrenalina da fuga, ele havia ganhado algum tempo. Mas o galho-via por onde seguia era comprido e reto e parecia estender-se

até o infinito. Ele sabia que a próxima saída ficava a quase meio quilômetro dali, e começava a sentir cãibras nas pernas finas por causa do esforço da corrida. Esquadrinhou o caminho à frente e derrapou ao parar de repente na pista traiçoeira. Seu pior pesadelo já vinha avançando a distância: outro guarda, duas vezes maior que o primeiro, vinha na direção de Ark, seus passos fazendo a madeira ranger. O homem segurava deliberadamente um punhal, a lâmina afiada tremeluzindo na chuva. O garoto podia distinguir uma cicatriz ziguezagueando como um relâmpago pela cabeça raspada do homem. Ark deu meia-volta. Teria de voltar por onde viera. A que distância estaria o próximo cruzamento de galhos e, ainda que conseguisse chegar até lá, para onde iria depois? Ele olhou por cima do ombro e viu que o guarda começara a correr, gritando e apontando. Quando tornou a se virar, entendeu o porquê. Mais adiante, o primeiro guarda — o que ele pensara ter tirado do páreo — já estava se sentando. Será que as coisas podiam piorar ainda mais? Dessa vez, não havia cruzamentos oportunos, rotas alternativas, nada. Ark estava encurralado.

A chuva encharcava a floresta, tornando mais densa a névoa que agora pairava no ar como retalhos. A alta-estrada estava mergulhada nas sombras e os dois guardas mal conseguiam distinguir a figura do garoto, já bastante camuflado com as roupas marrons e manchadas. Não importava. Aonde ele poderia ir? Os grandalhões foram se aproximando devagar, certos de que tinham a presa nas mãos, certos de qual seria o resultado. Não precisavam correr: estava tudo acabado. O garoto pareceu ajoelhar-se, como se rezasse. Então se levantou, olhou pela beira da via e deu um único passo para trás. Antes que os homens pudessem ter qualquer reação, o garoto saltou da alta-estrada,

quebrando a grande lei não escrita dos dendrianos. Permaneça na madeira, assim deve ser. Se deixares a árvore, logo vais morrer.

Quando o garoto mergulhou no espaço, o guarda da frente estremeceu. Saltar por vontade própria, afastando-se de tudo que era conhecido, para a terra repelente e envenenada tantos metros lá embaixo… era loucura! Correram o mais rápido possível em meio à névoa, mas era tarde demais. No momento em que os guardas finalmente chegaram ao ponto de onde ele havia saltado, o garoto já desaparecera. Um deles engatinhou até a beira do galho-via e ergueu as cordas de segurança para espiar, nervoso. Mas, embora forçasse a vista cada vez mais, olhando lá para baixo, tudo que pôde ver foi o cinto de encanador do garoto preso em um velho pedaço de andaime em um tronco morto, centenas de metros abaixo. — Nada sobreviveria a essa queda — murmurou, voltando a ficar de pé. Indicou o cinto de encanador para o outro guarda. Tudo estava acabado, então. Depois de uma breve discussão, o guarda mais velho pigarreou e, da beira do caminho, lançou uma bela e encorpada cusparada. A gravidade fez o seu trabalho e ela caiu, exatamente como o garoto. — Bah! Já vai tarde! — Está desabando um aguaceiro. Vamos embora daqui. Se o garoto estava morto, seus problemas tinham sido resolvidos. Ainda melhor: o patrão talvez pudesse ser persuadido a lhes dar um bônus e um barril de cerveja. — Como está sua cabeça, Alno? — E por acaso você se importa? O guarda menor cerrou os punhos.

— Nocauteado por um simples garoto! É preciso talento para isso, ah, é. Havia um brilho desagradável no olhar de Sálix. Ele estava achando tudo aquilo muito divertido. — É, bem, pelo menos eu peguei o garoto primeiro! Agora iriam zombar dele durante meses. — E deixou que fugisse! Você deve ter a cabeça mais dura do pedaço, com esses miolos de madeira! — Ah, salve, Sálix. Agradeço sua preocupação… Ele podia sentir o galo se formando. Por que não fora ele quem empurrou o garoto? O sujismundo estúpido o privara da vingança. Bem, pelo menos agora estava tudo decidido e, assim que estivessem secos e aquecidos, uma boa noite bebendo poderia resolver a questão da dor que fazia sua cabeça latejar.

Uma hora antes

Petrônio estava desesperado por um bom charuto. Na Escola de Cirurgiões, os mestres haviam naturalmente feito dezenas de sermões sobre os perigos do fumo. Ora! O que um bando de velhos enrijecidos e encarquilhados sabia? Afinal, pensou impaciente, ainda pediam a ele e a seus colegas estudantes que dissecassem patéticos esquilinhos. Pelo amor de Diana! Quando os mestres lhe dariam a chance de abrir um cadáver de verdade? No entanto, agora que as aulas do dia haviam acabado, ele estava livre para ignorar as terríveis advertências e entregar-se a um pequeno e insignificante furto para satisfazer seu desejo. Parou para ouvir com cuidado antes de abrir bem devagar a porta do estúdio do pai. O conselheiro Grasp estava ocupado recebendo convidados no andar de baixo, e não havia mais ninguém por ali. O olhar de Petrônio vagou pela sala. A mesa estava arrumada com pastas empilhadas em uma fileira perfeita na extrema direita. As paredes eram recobertas por tapeçarias, representando o pai derrotando sozinho lobos dos pinhais e bandos inteiros de javalis. Um sorriso criou covinhas no rosto de Petrônio enquanto ele acariciava as mechas postiças de sua barba.

O mais perto que seu pai já chegara de matar um animal selvagem fora espetá-lo… com o garfo, quando o bicho se encontrava diante dele em uma travessa de ouro, servido por um criado submisso. Ainda assim, aquilo impressionava os que vinham fazer negócios com o conselheiro, e “negócios” eram o que lhes proporcionava aquela casa luxuosa bem no topo da árvore. Grandes janelas do chão ao teto impediram a chuva forte de entrar. Além delas, uma varanda onde os visitantes podiam ficar nos dias claros e se impressionar como deveriam ao olhar por sobre a copa das árvores para o Palácio de Barkingham, a residência do rei Quercus, a pouco mais de quinze quilômetros dali. Por que o povo de Arborium ainda amava seu regente? Distribuir moedas aos pobres no Dia de Diana dificilmente mudaria a situação daquela região. O pai de Petrônio tinha razão sobre a alienação em que o rei vivia. Petrônio, porém, não estava interessado em opiniões, fossem sobre política ou qualquer outra coisa. Ele foi silenciosamente até a mesa, ajoelhou-se e abriu a gaveta de baixo, de onde tirou uma caixa de madeira entalhada. Com certeza, o pai não sentiria falta de unzinho… Quando se levantou, viu o próprio reflexo no espelho. Um jovem robusto o olhava. Outros talvez pudessem zombar, chamando-o de balofo pelas costas, mas seu peso não o incomodava. Os cabelos negros encaracolados eram lustrosos e perfumados; os olhos cor de avelã, cheios de falsa cordialidade. Um pedaço considerável de hematita brilhante extraída pelos Exploradores das Raízes nas profundezas das árvores pendia da orelha esquerda. O branco era a última moda na corte, mas aquilo significava que sua roupa tinha de ser repetidamente mergulhada em urina para depois secar ao sol. O preço era um leve fedor, mas o resultado deslumbrante valia a pena, completado por um gibão de seda amarelo-vivo, calções vermelhos seguros por ligas enroladas nos joelhos, todo o conjunto finalizado com uma braguilha de grandes dimensões. O espelho dava sua aprovação. Era um belo visual.

Alguns segundos depois, ele já estava fora do estúdio, deslizando pelo corredor dos criados na direção da área de serviço. Uma vez lá, suspirou aliviado. O pessoal da limpeza já tinha ido embora. Estava seguro. A sala entulhada e fechada era uma confusão de encanamento de gás, calhas de lixo e tanques de roupa. Estava quase escuro, com exceção do clarão do único lampião a gás. Ele desviou com cuidado de uma série de pás de lixo e esfregões e seguiu até a caldeira central, acendendo o charuto com um fósforo no caminho. Abriu uma portinhola de ventilação e deu uma tragada profunda, desfrutando o sabor suave, antes de se inclinar para a frente e soprar a fumaça direto no cilindro da caldeira, deixando que subisse numa espiral e saísse pelo sistema de chaminé lá no alto. De repente, ouviu o som de passos. Rápidos e determinados, eles pararam repentinamente do outro lado da porta. — Mas que madeira podre! Petrônio apagou o charuto e o atirou pelo tubo da caldeira. Que desperdício! Quando a porta da área de serviço se abriu e a luz jorrou para dentro, ele correu até o canto mais afastado e escondeu-se atrás de uma pilha de caixas. Quem quer que tivesse acabado de entrar não pareceu notar o cheiro de fumaça. O intruso cantarolava, muito mal. O canto parou, seguido por um momento de silêncio e então por sons retinidos acompanhados por uma interessante variedade de palavrões abafados. Um cheiro nojento e por demais familiar de esgoto aos poucos tomou conta do lugar. Houve mais murmúrios seguidos por um suspiro e então: — Arrá! É claro! A mãe de Petrônio vinha reclamando do encanamento havia semanas. Ser rico não fazia a menor diferença — os encanadores estavam sempre ocupados. No entanto, parecia que um exemplar daquela espécie tinha finalmente se dado o trabalho de aparecer. Em um péssimo momento, só isso. Petrônio pensou em sair do esconderijo e dar um susto no trabalhador. Seria bem-feito para ele, por estragar seu momento com o

charuto. Mas Petrônio se perguntou o que um reles encanador pensaria do filho do Sumo Conselheiro espreitando na área de serviço. Não, não poderia fazer aquilo. Então se recostou e quase desabou sobre as caixas quando a inconfundível voz do pai ecoou de repente pela área. Que raios o pai estava fazendo na área de serviço, falando com alguém mergulhado até o pescoço no nojento número dois? — Precisamos agir com cautela. Quercus é velho, mas não é estúpido. A voz soava abafada e um pouco distorcida. Petrônio estava confuso. Somente uma pessoa entrara na área de serviço. Outra voz, mais aguda e feminina, respondeu: — Precisamos? Não se atreva a falar por nós, conselheiro! — Naturalmente, minha senhora. Um ato falho. Eu lhe imploro que aceite as minhas desculpas… Petrônio obrigou-se a respirar devagar à medida que compreendia o que acontecia. Não era de admirar que a voz dos interlocutores estivesse estranha: eles estavam distantes. O encanador devia ter aberto um dos canos do sistema de ar-condicionado, e as vozes vinham pela ventilação da sala de visitas no andar de baixo. A mulher continuou, como se seu pai nem sequer tivesse falado. Petrônio podia detectar um sotaque estranho nela, sua pronúncia da língua dendriana soando afetada e formal. — Nós lhe pagamos por informações. Como expliquei, o Império do Maw está ficando sem espaço e matérias-primas. É impressionante que seu pequeno e insignificante reino florestal tenha conseguido desviar todos os pedidos de informação e tentativas de comunicação durante milhares de anos: Arborium é realmente a última fronteira em potencial. O gás que suas árvores exsudam para deter visitantes indesejados foi um truque evolutivo muito inteligente. — Sim — ponderou a voz de Grasp. — A natureza é bastante

engenhosa. No entanto, como a senhora se encontra aqui, presumo que a ciência de seu império pôde lhe garantir alguma proteção… Não houve resposta. Petrônio se perguntou se a mulher estaria assentindo ou ignorando seu pai. E, pelas cascas das árvores, quem era ela? O conselheiro Grasp preencheu o silêncio. — Somos muito discretos. Mas acredito fervorosamente que logo chegará o momento de nosso pequeno país atender a uma necessidade maior. Minha senhora, eu me coloco à sua disposição. O som de uma cadeira sendo arrastada pelo chão subiu pelo respiradouro. — Ah, sente-se, seu homenzinho estúpido. Petrônio sentiu uma onda de raiva. Ninguém chamava seu pai de estúpido e escapava impune! Os homens de negócios que se punham no caminho do Sumo Conselheiro tinham o hábito de desaparecer pela borda em acidentes tristes e inesperados. — Em nosso país — a mulher prosseguiu —, a quantidade de madeira nesta única sala faria de alguém um bilionário! Esta ilha será uma fazenda diferente de todas as outras, e seu povo dará excelentes trabalhadores! É claro que, assim que tivermos derrubado árvores suficientes e restabelecido nossa economia com estoques controlados de madeira preciosa, poderemos explorar suas imensas reservas subterrâneas de gás natural… e você evidentemente receberá uma bela fatia! Petrônio sorriu. Quem quer que fosse aquela mulher, ela com certeza havia compreendido seu pai. O tom de Grasp tornou-se adulador. — Bem, minha senhora… um pequeno depósito pecuniário ajudará a suavizar o maquinário das mudanças. E… creio que a senhora mencionou o cargo de presidente de Arborium para alguém que se mantenha, hã, leal até o fim, não foi? — Você quer cada vez mais. Acho que nos entendemos muito bem, conselheiro. Nossos planos estão avançando, mas o tempo é curto. Creio

que vocês vão realizar em sete dias uma estranha celebração chamada Festival da Colheita. — Sim. O que tem ela? — Será o momento em que vamos agir! A mente de Petrônio disparou. O que seu pai estava aprontando? Presidente? Petrônio experimentou o título em sua mente: Meu pai, presidente de Arborium. Aquilo soava bem — mais do que bem. O dever dele era denunciar traidores, mas o dever que se danasse! E o que ela queria dizer sobre o festival, realizado na primeira lua cheia do outono? Era uma perda de tempo, um bando de plebeus pobres atravancando a capital com suas lanternas estúpidas e fofocando sobre o tempo! O que ela pretendia com aquilo? Suas reflexões foram interrompidas por um espirro. Petrônio estava espantado. Como podia ter esquecido a presença do encanador? O mais importante: ele, Petrônio, não era a única testemunha da alta traição que se desenrolava lá embaixo. — O que foi isso? — indagou a voz da mulher, aguda e alerta. Fez-se um silêncio breve e chocado. Petrônio quase podia ouvir os conspiradores pensando. Quando Grasp falou, sua voz revelava nervosismo. — A casa range e geme. É da natureza da madeira, diferentemente de suas… hã… cidades de vidro e aço… — Você é mesmo tão estúpido quanto parece, conselheiro? — sibilou a mulher. — Tetos… não… espirram! Petrônio podia perceber a tensão na voz dela. — Sim… claro. Acho… que é possível… um espião! — deduziu Grasp. — Tem alguma ideia do que isso significa? Faça alguma coisa. Agora! Em algum lugar da casa uma campainha soou de imediato, chamando os seguranças. Na área de serviço, Petrônio enfiou a mão na jaqueta. Maldição! Sua leal faca estava naquele momento debaixo do colchão no quarto.

Totalmente inútil! Talvez fosse melhor esperar pelos profissionais. Ele não sabia muito bem como enfrentar um homem adulto, principalmente um que estaria armado tanto com músculos quanto com uma variedade de ferramentas pesadas, mas ele poderia tentar. Afinal, era bem conhecido por seus sucessos nada nobres nas aulas de combate. E ainda contaria com o elemento surpresa. Respirou fundo e saltou do esconderijo com um grito estridente. O encanador girou em sua direção, com uma ameaçadora chave-inglesa de ferro erguida. Um rosto moreno com maçãs salientes pairava atrás dela, encimado pela costumeira touca de couro. E os olhos arregalados, alarmados, eram de um tom de verde vívido, quase de pedra preciosa. Aquela não era a surpresa que Petrônio havia planejado. — Você! — gritou Petrônio. O rosto encarou-o de volta, reconhecendo-o instantaneamente. Em Arborium, as crianças de todas as classes frequentavam a creche e a préescola juntas, até os sete anos, ricos e pobres misturados como adubo. Depois, a educação custava caro; somente quem tinha recursos podia custeá-la. O rei gostava de usar palavras como “igualdade”, mas a realidade era muito diferente. Abrigado dentro das muralhas de seu palácio, o velho não fazia a menor ideia de que o adubo estava totalmente podre. Quando Petrônio cresceu e se tornou ciente de que seu excompanheiro de brincadeiras, Ark Malikum, era filho de um trabalhador dos esgotos, ele torceu o nariz e na mesma hora se juntou às outras crianças para menosprezá-lo. Ark sempre foi magricela e levemente malcheiroso: uma presa fácil. Petrônio lembrava-se de como seu constrangimento com a ligação com o garoto dera lugar a ameaças casuais e intimidação sempre que o caminho dele e dos novos amigos cruzava com o do infeliz Ark. Suas vidas haviam seguido vias bem separadas, como o nascimento pretendera — até aquele momento. O susto momentâneo retardou Petrônio por uma fração de segundo. Foi o suficiente para Ark disparar em direção à porta, derrubando uma

pilha de caixas. Tudo que lhe faltava em força era compensado em velocidade. A fuga sempre fora sua melhor saída numa encrenca, e ele ainda estava mais perto da porta. Quando Petrônio se recuperou o suficiente para passar por cima das caixas e sair correndo pela porta aberta, foi recebido e agarrado por dois pares de braços fortes. — O que temos aqui? Uma toupeira gorducha num buraco! — Vocês pegaram a pessoa errada! — gritou Petrônio, totalmente ciente das consequências do erro. — Rápido, ele está fugindo! — Ah, puxa, puxa, puxa! Sempre inocentes, não são? Os guardas eram obviamente recém-contratados e, para piorar, sorriam de forma um pouquinho ávida demais enquanto o jovem robusto se contorcia, tentando se soltar. — Vocês não sabem quem eu sou? — perguntou Petrônio. Ele pensou em tentar atacar pelo menos um deles, mas desistiu na mesma hora. Um tinha a constituição de um forno a lenha e o outro possuía uma cicatriz na cabeça que parecia gritar: Não mexa comigo! A encrenca em que Petrônio se metera já era bem grande, mas ainda assim ele protestou: — Amanhã vocês vão limpar caca com a pá por me tratarem assim! — Aah! Escute só ele, se achando o tal, mesmo apanhado em flagrante! Que que você acha, Sálix? — Tem a imaginação bastante fértil, isso sim! Acho que a gente pegou um espertinho aqui, Alno! Os guardas não queriam correr riscos. O maior mantinha o intruso imobilizado em uma gravata enquanto o arrastava escada abaixo. — Eis o seu espião, senhor! Talvez, se estivesse de dieta, ele pudesse ter escapado. A gente tem que agradecer a Diana por tantas tortas de cabrito! — disse Sálix, empurrando-o para dentro da sala antes de recuar. Petrônio cambaleou para a frente e viu-se olhando para um par de olhos estranhos, quase violeta. A mulher o fitou e então voltou-se para ler a expressão explosiva no

rosto do conselheiro Grasp. Ela ergueu uma sobrancelha. — Ah, deixe-me adivinhar. A semelhança familiar diz tudo. Seu filho, não é? Ela circulou Petrônio lentamente. Ele estava paralisado. Era do conhecimento de todos que os dendrianos vinham em todas as formas, tamanhos e cores. A única característica que os distinguia era o comprimento extra dos dedos, mais eficazes para agarrar galhos ou ramos. Mas aquela mulher era diferente de qualquer dendriano que ele já vira. Suas sobrancelhas eram esculpidas como luas crescentes gêmeas, os lábios pintados de vermelho feito frutinhos de aroeira e o cabelo negro preso com firmeza em um coque trançado. Seu manto, com o capuz para trás, era como o de um Lenhador Sagrado — embora não se ouvisse mais falar de sacerdotisas naqueles dias. — O que isso significa? — trovejou o conselheiro Grasp, dirigindo-se tanto ao filho quanto aos guardas agora pouco à vontade. — Pai. Peço humildemente que me perdoe. — Petrônio falava com rapidez, tentando avaliar quanto tempo já fora perdido. — Mas, por favor, ouça. Havia outra pessoa na área de serviço. Um garoto. Arktorious Malikum. Ele sentiu o suor se acumulando em suas axilas enquanto tentava não respirar na direção do pai. Ser apanhado fumando desviaria a atenção do problema. — O garoto encanador? — Sim. E a essa altura já deve estar fora da casa! — O quê? — Grasp tremia de raiva. — Você quer dizer que deixou que ele escapasse? — O conselheiro bateu na testa com a palma da mão. — Eles não ensinam porcaria nenhuma para vocês na escola? Petrônio estava chocado. Era culpa dos guardas! Se eles não tivessem obstruído o caminho... Quanto aos insultos, ele se vingaria mais tarde. O pai abaixou a voz: — Você ouviu tudo?

Petrônio era um mentiroso nato. Tal pai, tal filho. Mas dessa vez abriria uma exceção. Então assentiu e respondeu: — Nós dois… ouvimos. Ele se encolhia ainda mais a cada palavra. — Vou deixar uma coisa bem clara, garoto: se disser a alguém uma só palavra do que ouviu, não vou tratá-lo como filho, mas como um traidor. Você entendeu? Os últimos quinze minutos da sua vida nunca aconteceram. Agora saia! — Grasp acenou com a mão, dispensando Petrônio como se fosse um floco de caspa. Então voltou-se para os guardas: — Então parece que temos mais de um vazamento no encanamento. Há outra pequena goteira que precisa ser detida… de uma vez por todas! Não sejam tão incompetentes quanto meu assim chamado filho! E apresentem-se imediatamente a mim no momento em que a questão estiver resolvida — rosnou Grasp. — Façam o que for preciso. O encanador que deixaram entrar hoje é um risco. Agora andem! Os guardas fizeram o que lhes foi ordenado, deixando às pressas a casa e seguindo para a alta-estrada. A perseguição havia começado.

Um minuto antes de Ark saltar A névoa fizera um imenso favor a Ark. Naquele nível, algumas centenas de metros abaixo da copa das árvores, a floresta se transformava em um cenário de formas indistintas. Ele agora não era mais que uma silhueta agachada entre os guardas que avançavam em sua direção. Ark tinha apenas segundos. Sua mente disparava. O que ele ouvira na área de serviço era uma sentença de morte. Precisava fazer alguma coisa, mas o quê? Olhou em desespero para o cinto de encanador: chaves-inglesas, chaves de fenda, alicates, soquetes e corda, fina mas forte, para rastejar por canos escuros e fedorentos… Corda! Era isso! As folhas tremiam na escuridão, como se sussurrassem, quando Ark espiou rapidamente por cima dos pilares de segurança na margem da altaestrada. Por que esperar para ser empurrado? Tudo que tinha de fazer era soltar a corda do cinto, passá-la por um dos pilares e então amarrar as extremidades com firmeza em um de seus pulsos. Abaixando-se ainda mais por um momento, amarrou a corda com dedos nervosos. Era agora ou nunca. Ele ficou de pé, correu e saltou da borda da

estrada. Em sua mente só havia uma coisa: fé cega. Se o pilar estivesse podre, então… crec! Ark iria mergulhar de verdade: um pássaro sem asas. Morto. Todos os seus instintos gritavam para que parasse. Tarde demais. Ele voou em um grande arco. A corda desenrolou-se e depois se esticou. O puxão foi tão brusco que Ark achou que tivesse deslocado o ombro, mas, sob o galho-via onde agora oscilava com violência, ele respirava, ainda vivo. A Terra não o devorara — por enquanto. Rapidamente, com a mão livre, ele soltou o cinto, que fora passado de pai para filho durante gerações. Seu pai o dera para ele apenas no ano passado, quando ficara doente demais para trabalhar. Ark, porém, não tinha escolha. Avistou seu alvo, um pedaço de andaime que se projetava de um tronco velho e seco, e atirou o cinto naquela direção. Tinha boa pontaria. Mesmo antes que o cinto aterrissasse, Ark começou a subir de volta pela corda dupla. Ele era ágil como uma aranha, e logo alcançou a parte inferior do andaime. Sob todos os galhos-via e altas-estradas, estruturas desordenadas de andaimes de madeira sustentavam a infraestrutura de Arborium. Havia tubos dos correios e canos de gás e miniaquedutos que transportavam os suprimentos de água bombeados através das raízes das árvores desde as profundezas do subsolo. Ark precisava se mover rapidamente em meio àquele emaranhado. Ele se arrastou com dificuldade até encontrar uma posição bem embaixo do galho-via. Então soltou a corda do pulso e puxou com força. Ela escorregou, desprendendo-se do pilar de segurança, e Ark a enrolou de novo. No exato instante em que a corda por fim deslizava para suas mãos, passos reverberaram ao longo das tábuas acima dele e gritos de alarme se perderam nas folhas. Os passos por fim pararam. Houve um ruído de algo sendo arranhado, seguido por uma imprecação. Tão perto. Ark abraçou os joelhos, tentando se encolher o máximo possível, e passou a respirar superficialmente. Será que eles teriam avistado o fino fio

de corda no crepúsculo que ia se tornando mais denso? Se tivessem, estava tudo acabado. Ele esperou que um rosto surgisse acima da borda, olhando direto para ele, ou o ruído seco da flecha de uma balestra de curto alcance. — Nada sobreviveria a essa queda — murmurou uma voz que só podia estar a menos de um metro de distância. — Não exatamente “nada”. O que é aquilo lá? — Outra voz. — Onde? — Lá embaixo! Ferramentas de encanador. Você é cego, além de estúpido? Silêncio. Ark contou até três. Seria melhor ser apanhado ou pular de verdade? — Aha-ha! — Uma risada breve e áspera. — Dá um novo significado para apertar o cinto, não é? — Quase me faz ter pena dele! — Houve mais risadas cruéis, seguidas por tosse e então o estrépito de um escarro sendo expelido. — Bah! Já vai tarde!

***

Pronto! O plano tinha funcionado. Os guardas idiotas tinham visto o que ele queria que vissem. Agora, segundo as zombarias que iam se extinguindo lá em cima, ele estava morto, se encaminhando para o rio Estio para se juntar às outras almas miseráveis que haviam se matado. Ele ouviu o estrondo distante de um trovão, mas o tamborilar das gotas na madeira acima dele havia cessado. Um pombo arrulhou suavemente em algum lugar à sua esquerda. Os homens deviam ter ido embora. Mas ainda assim Ark não se movia, enroscado em meio à confusão de canos e tubos. Não tinha certeza se podia e não sentia a menor satisfação em ter enganado seus perseguidores. Afinal, a partir de agora, daria na mesma se estivesse

morto. Sua garganta estava seca e ele tinha a sensação de ter sido virado pelo avesso. Se alguém estivesse observando, teria visto o que parecia uma trouxa de farrapos enrolada no andaime. Dez minutos arrastaram-se lentamente antes que a trouxa aos poucos começasse a se desmembrar em partes móveis. Ark desdobrou-se e, trêmulo, pôs-se de pé. Tinha de se inclinar para evitar bater a cabeça em algum cano. Na altura de sua cintura, um aqueduto revestido de zinco corria de ambos os lados na parte inferior do galho. Água. Ele se aproximou, mergulhou as mãos em concha no líquido claro e levou-as aos lábios. Quando se endireitou, dois pares de olhos idênticos o fitavam. — Santos fungos fedorentos! — praguejou baixinho; justamente o que ele precisava! Tinha de admitir: aquele era o lugar perfeito — escondido, com um suprimento abundante de água, a estrada de madeira acima servindo como um conveniente teto à prova d’água. Ele deveria ter notado a pilha casual de galhos à sua frente, habilmente tecidos em torno dos canos, mas sua mente estivera meio concentrada em outras questões. Os dois bebês Corvos continuaram olhando para Ark enquanto abriam o bico e gritavam. Mas a palavra “bebê” de maneira nenhuma descrevia as criaturas, suas garras já aptas a cortar com um só golpe até o osso, e o bico capaz de quebrar o crânio de um pobre dendriano como se fosse uma noz. Cada uma das avezinhas tinha metade do tamanho de Ark, e se esses eram os pequenos… Ele estremeceu ao pensar nos pais. Ark verificou o braço. A corda tinha queimado a pele e agora começava a latejar. Havia um pequeno filete de sangue: era só o que bastava como isca para um caçador ávido. Péssimo. Ele mais parecia um espetinho de Ark. — Olá, passarinhos… — murmurou Ark. — Não precisam chorar. Mas Ark sabia que, para eles, era só uma presa apetitosa a poucos centímetros de seu ninho. Eles não queriam palavras tranquilizadoras, queriam a Mamãe. Agora! Principalmente porque a Mamãe podia

transformar o intruso em papá! — Fiquem quietos! — tentou Ark, mas era o mesmo que dizer ao sol que não surgisse naquela manhã. Freneticamente, começou a tentar lamber o sangue do braço enquanto procurava uma maneira de voltar para o galho-via. Poderia correr o risco? Tinha alguma escolha? Os gritos dos Corvos ficavam cada vez mais intensos, e haviam começado a bater as asas, agitados. Uma vez que tinham sentido o cheiro de ferimento e fraqueza, era quase inútil sequer pensar em escapar. Ark ouviu o som de bater de asas antes que pudesse ver qualquer coisa. Estava no pior lugar possível. Sabia que Corvos fêmeas faziam de tudo para proteger sua prole. Na penumbra sob o bosque, uma sombra bloqueou-lhe a visão. Ao se encolher instintivamente, Ark forçou-se a olhar para cima e viu os olhos imensos e escuros engolindo-o, as garras — cada uma do tamanho de uma espada — avançando para rasgá-lo para o jantar, e as asas amplas prestes a se fecharem e lançarem um manto sobre sua vida. Naquele mesmo momento a névoa de repente se abriu e o último raio de sol do dia lançou um raro feixe de luz para a escuridão, penetrando em suas retinas e fazendo-o gritar de dor, um som ecoado pelo grito do Corvo. Acabou!, ele pensou, fechando os olhos. Sua mente encheu-se com imagens de casa: o pai encurvado e artrítico como uma folha seca junto ao fogo, a mãe cantarolando baixinho enquanto mexia a comida na panela, a irmã, Shiv, criando mundos minúsculos, completos com galhos e cascas de nozes, os galhos que os sustentavam no alto curvados. Cada uma dessas imagens esvaiu-se até que restou apenas a imagem de um sol negro surgindo a sua frente. Acabou-se tudo. Tudo…

Um encontro inesperado A dor que o cegou desapareceu tão rapidamente quanto viera, e o grito esmoreceu nos lábios de Ark. Hesitante, ele arriscou um olhar, e então arregalou os olhos, surpreso. Os bebês Corvos ainda o olhavam, mas estavam mudos. A mãe, com suas garras vorazes, não estava em nenhum lugar à vista. Dez segundos antes, ele era um pedaço de carne na bandeja. Agora nem mesmo sentia medo dos filhotes. Pelas cascas das árvores, o que havia acontecido? Nada fazia sentido. Ark sentiu-se enjoado. O Corvo do mito e da história havia se afastado em vez de engoli-lo. Duas vidas a menos. Quantas lhe restavam? Mas, quando se acalmou, uma fúria gelada tomou conta dele. Não era culpa sua ter ouvido a conversa sobre uma revolução e ameaças a Arborium! Ele era um simples encanador. O trabalho era uma porcaria, mas era a vida que tinha. Ark sentiu as lágrimas queimarem nos olhos. Tudo o que ele mais amava poderia ser roubado. Quando seu pai adoecera, Ark se viu uma noite socando o teto de madeira fina acima da cama com tanta força que os nós dos dedos começaram a sangrar. A escola era para crianças pequenas ou para garotos ricos. Ele não se encaixava em nenhum desses grupos. E era assim que as coisas funcionavam em Arborium. Ark era um aprendiz e agora seria o chefe da casa também. Lembrou-se do medo que sentira no primeiro dia de

trabalho ao pegar todas as ferramentas do pai, assumindo o lugar dele, e então pensou em todas as piadas e zombarias que ouvira. Como ele sobreviveria na escuridão dos esgotos, longe da luz do sol que passava pelas folhas e da chuva que castigava os galhos? De alguma forma ele conseguiu sobreviver, embora o patrão fizesse questão de dar ao novato as tarefas mais sujas. Ele sobreviveu, perseverou em suas metas e ainda ganhou o relutante respeito de trabalhadores que tinham duas vezes o seu tamanho. Agora tudo aquilo parecia ter sido em vão. Era hora de ir. Ark olhou uma última vez para os bebês Corvos. Eles não se moviam, apenas o fitavam. Um estranho instinto o fez querer estender a mão e acariciar a plumagem. Eram aves de mitos e lendas. Ele nunca estivera tão perto delas. Esqueça! Ele saiu de sob o andaime, escalou vários pilares de sustentação e espiou sobre a borda do galho-via. Com toda aquela correria, ele não ouvira os sinos que anunciavam o fim do turno de trabalho. A alta-estrada vazia começava a ficar cheia de operários cansados, que se afastavam da corte e dos negócios que cercavam o trono do rei Quercus. Ark escolheu um ponto bem denso e sombreado a uma pequena distância de onde estava e, no momento perfeito, deslizou pela borda e subiu na via. A tempestade passara e levara com ela a névoa, deixando os troncos reluzentes como se tivessem sido polidos. Ninguém sequer notou o encanador imundo surgindo por baixo de suas botas, e ele deixou que as multidões o levassem ao longo do galho-via na direção do tronco mais próximo. Aquela era a coisa mais interessante em Arborium: aquele era um lugar que nunca ficava imóvel. Os prédios rangiam, os pisos vibravam, altas-estradas de madeira se arqueavam e flexionavam por causa do vento e do peso. Era incrível pensar que a cidade de Heléboro, com o palácio no centro, era quase tudo que sobrara dos grandes condados de Arborium, antes de a antiga praga da cólera reduzir a população a uma pequena fração do que costumava ser. A grande floresta era mesmo um lugar de ecos abandonados.

Os portões do tronco estavam escancarados. Lá dentro, além da passagem, uma escada cavernosa serpenteava subindo para a esquerda e descendo para a direita. Ela havia sido entalhada em torno do núcleo vivo e central da árvore e estava gasta pelos passos de gerações de dendrianos que se esforçavam para subir e descer por ali. O cheiro de tortas quentes flutuava no poço da escada ao seu lado, lembrando a Ark que ele não tinha comido nada o dia todo. É claro que não podia voltar ao local de trabalho agora e pedir seu pagamento. Pelo que sabia, fantasmas não costumavam ser pagos. De qualquer forma, Ark se consolou pensando que sempre duvidara de que o anunciado recheio cem por cento carne de cabrito fosse lá muito honesto. O mais provável era de que fosse cinquenta por cento carne de cachorro e o restante, de outras coisas desagradáveis. Ele ignorou o quiosque de lanches enfiado em um canto escuro do tronco e prosseguiu, exausto, descendo os degraus na direção dos níveis inferiores. Aquele caminho o levou a passar diante das portas e janelas de apartamentos escavados no coração da árvore: propriedade básica para os ricos, mas muito além das possibilidades de um encanador. A escada continuava, espiralando infinitamente para baixo pelo tronco central, e a multidão por fim começou a rarear enquanto ele descia aos níveis mais baixos. Por fim, um portão malremendado abriu-se, revelando o galho-via que levava à sua casa. Ele adentrou uma terra de sombras. O crepúsculo tinha dificuldades em chegar até ali. A noite chegava mais cedo para os pobres. Na escuridão, porém, Ark sentiu-se em segurança pela primeira vez naquele dia. Lar era o único pensamento em sua mente. Ao longe, ele podia ver o acendedor de lampiões estendendo a vara para acender os primeiros lampiões noturnos. — Que que você tá fazendo aqui? A voz trovejou em seu ouvido no momento em que mãos carnudas o agarraram com firmeza em uma gravata. O coração de Ark vacilou. Tão perto de casa e fora apanhado. Por que havia voltado? É claro que iriam procurar por ele ali.

— Me largue! E, por incrível que parecesse, em vez de estrangulá-lo, as mãos fizeram o que ele pediu e o soltaram. Então, mesmo antes de se voltar, a verdade lhe ocorreu. A voz. — Mucum, seu grandalhão estúpido! — sibilou Ark, ficando de frente para o colega de trabalho. O garoto diante dele encaixava-se perfeitamente na descrição: o desleixado colete de pelo de ovelha mal conseguia conter a barriga, e era como se as pernas e os braços fossem troncos sólidos de carvalho saídos da roupa cor de lama. Os olhos, sob as sobrancelhas cor de laranja, olhavamno, divertidos. — E fala baixo. Eu deveria estar morto! — É, sei. Aquele banheiro devia tá de matar mesmo, hein? Parece que você caiu lá dentro! Tá encharcado! Não se afogou, né? Ark olhou à volta febrilmente. — Não é piada. Estou em perigo. Não posso ir para casa, não posso voltar para o trabalho, não posso fazer nada. Ark caiu no choro, a tensão da última hora vindo finalmente à tona. — Para de bancar a menininha! — disse Mucum. Ark teve vontade de dar um chute nele, mas tudo que conseguia fazer era soluçar. — Aqui… Mucum pegou um lenço que parecia manchado de limo e o estendeu na direção de Ark. Ark estremeceu. — Obrigado, mas não precisa. Ele enxugou as lágrimas com a mão imunda. — Como quiser. Ark ponderou se podia confiar em Mucum. Trabalhar na mesma estação de esgoto não os tornava exatamente melhores amigos. Na verdade, ele mal conhecia o garoto, exceto para fazer comentários casuais sobre o

tempo. Depois de um segundo de indecisão, ele puxou Mucum pela manga e o arrastou para fora da passagem principal, longe de qualquer um que pudesse estar por ali. — Aqui! Sente-se! Fique quieto… por favor! Ele apontou para um espaço entre duas pilhas de estrados de pinheiro prontas para a reciclagem. Mucum não estava acostumado a receber ordens. Ele franziu a testa. Podia sentar-se em cima de Ark e esmagá-lo ou agachar-se como um bom garoto em uma pilha de lixo. Ele deu de ombros. — Sou todo ouvidos. Mas vou dizer que, se você conseguiu inundar o porão do Senhor Todo-Poderoso Grasp com caca e agora vai ficar aí choramingando, não quero saber! — É pior do que isso! — disse Ark, esquadrinhando o caminho, inquieto. — Muito pior. Ele se espremeu ao lado de Mucum e finalmente contou-lhe os acontecimentos que haviam começado quando ele tentara desobstruir o vaso sanitário. Quando Ark terminou de falar, Mucum sacudiu a cabeça, espantado. — Nunca ouvi você falar tanto! — Ele olhava o garoto encanador que em geral era tão quieto. — Ou você perdeu completamente o juízo e inventou essa coisa toda ou… — Desde quando eu sou um especialista em mentiras? Esse é o seu departamento. Mucum sorriu. Era verdade. Suas desculpas por chegar atrasado ao trabalho eram lendárias. A única razão por que seu patrão, Jobby Jones, o tolerava era que, de vez em quando, problemas de encanamento só podiam ser resolvidos com força bruta. E quando a questão eram parafusos que se recusavam a afrouxar ou canos tão pesados que esmagariam dendrianos normais, Mucum era a pessoa certa para o trabalho. — Certo. Sempre achei que Grasp era muito metido, andando de um lado para o outro com aqueles capangas, como se fosse o dono de todos os

galhos-via! Mas de idiota a traidor… é um pulo e tanto. Você tem certeza disso? — Ouvi muito bem — respondeu Ark. — Maw vindo aqui roubar tudo? Ark assentiu. O lugar parecia pertencer a um conto de horrores. Uma terra sem árvores? Aquilo, sim, era uma versão dos Lenhadores Sagrados para o inferno. Palácios grandiosos de vidro espelhado e máquinas de metal que voavam. Para a maioria dos dendrianos, o império distante era mais como um rumor, uma história que espreitava em seus sonhos. Agora esses sonhos, esses pesadelos, estavam prestes a ganhar vida. Pelo que ele ouvira mais cedo, Maw mais parecia um monstro horrível e guloso, ávido por engolir sua pequena ilha e cuspir os pedaços. Mucum pegou um pequeno galho quebrado e pôs-se a mastigá-lo. — Cada lasca de madeira vale seu peso em ouro por aquelas bandas? Faz a gente pensar… Ele observou os galhos mergulhados em sombras ao redor enquanto os últimos retardatários vindos do trabalho seguiam para casa e os lampiões a gás eram acesos. — Talvez eles tenham razão. Este lugar é precioso — murmurou Ark, estremecendo ao pensar no futuro. Mucum já estava entediado com aquela conversa de fim da floresta. — E eles atiraram mesmo em você com as bestas? Ark assentiu, abatido. — E você acertou um com a chave-inglesa! Até eu tenho de admitir que isso foi impressionante. Ark tentou não sorrir, mas, na verdade, escapar de guardas assassinos era mesmo um feito e tanto. — Assim está melhor. Você está se animando. Quanto a fingir que se matou… muito incrível! Quem pensaria que nosso ratinho aprendiz seria esperto assim? — Mucum ficou em silêncio por um segundo. — E os Corvos? — O garoto estremeceu com aquele pensamento. Ele enfrentaria

qualquer um. Mas os Corvos? — Coisas de pesadelo… não que eu tenha medo nem nada, certo? Ark sabia que era uma boa ideia concordar. — Mas desde quando eles deixam que uma refeição grátis saia por aí viva? E assim tão perto do ninho. Era o mesmo que ter um alvo pintado na cabeça! Tô perdendo alguma coisa aqui? — Não. Também não entendi. É estranho. E era ainda mais estranho que ele tivesse vontade de brincar com filhotes de Corvo. — Seja como for, seus problemas são maiores que um bando de bebês monstros. — Obrigado, Mucum. Isso ajuda muito. Ark de repente sentiu o corpo pesado, exausto da corrida e de tudo mais. Ele poderia se enroscar nessas caixas e deixar tudo aquilo para trás. — Ei, dorminhoco. É melhor ir pra casa. Aproveite que tá morto! Isso é uma vantagem, certo? Eles num devem sair por aí procurando por você! Apesar das aparências, Mucum não era tão estúpido assim. — Sim. É claro, você tem razão. — Eu sempre tenho razão. Quando foi que você disse que isso ia começar? Ark tentou lembrar o que a mulher tinha dito. — Festival da Colheita. — Na mosca. Temos sete dias. Você pode salvar Arborium quando sua cabeça estiver mais tranquila. Tenho que ir pra casa pro chá, ou meu pai me mata. Encontre a gente fora do trabalho. Vou arranjar uma desculpa e sair uma hora antes do almoço. Vamos pensar num plano. E prometo que, se eu encontrar aquele Petrônio, vou cuidar dele. Mucum bateu no ombro de Ark, quase o derrubando, então se afastou, os pés enormes fazendo todo o ramo-via vibrar. Era hora de Ark ir para casa.

Morto e vivo Apesar de tudo, Ark conseguiu sorrir. Pelo menos não estava sozinho, embora descrever Mucum como amigo talvez fosse um pouco demais. Estava quase chegando. Ali embaixo, entre os galhos, mil choupanas haviam sido erguidas, construídas a partir de restos do dossel superior. Ali havia pinos de madeira, pranchas de casca de árvores e lonas vegetais e pedaços de placas de resina barata usados como janelas. Ferro reciclado brotava e sustentava mil chaminés, agora lançando fumaça como se cada casa estivesse secretamente fumando um charuto. O cintilante subassentamento nas cercanias de Heléboro pendurava-se em uma rede precária de cordas puídas e trepadeiras. A paisagem era feia para alguns, mas, aos olhos de Ark, a luz do fim do dia revelava um colar reluzente e vibrante de beleza. Quem precisava de estrelas no céu quando podia ter aquilo? Ark quase se arrastava ao longo do galho, tentando decidir o que poderia dizer aos pais. A verdade? Certo: então ele ouvira uma conspiração que iria destruir seu país, quase tinha sido assassinado e, em seguida, quase devorado por uma ave que vinha diretamente da Floresta dos Corvos, e agora achavam que estava morto… Ah, e, por falar nisso, não trouxera nenhum dinheiro para comida ou aluguel e não teria condições de ganhar mais nem um centavo no futuro próximo. Sim, aquela história faria muito sucesso.

Ele serpenteou por um beco de madeira, descendo entre as casas densamente povoadas. A fumaça espiralava em torno dos galhos, seu aroma misturando-se às folhas verdejantes e à resina das cascas. Ark inspirou o aroma familiar. — Epa! Seu pé parou em pleno ar. Ali, no meio do ramo-via, havia um aglomerado de cerdas. O minúsculo ouriço enroscou-se em uma bola espinhenta, determinado a defender seu território. Desviando-se da criatura com cuidado, Ark franziu a testa. Se o Império conseguisse o que planejava, os animais de Arborium não seriam mais do que pestes a serem erradicadas. Um minuto depois ele dobrou a esquina, e seu coração se iluminou. Uma garotinha de cabelos cacheados e um tanto suja, presa a uma corda, brincava com uma pilha de gravetos, deixando cair um, depois outro, da borda do galho. Ela exibia uma expressão de admiração encantada enquanto os gravetos mergulhavam rodopiando na insondável escuridão. Embora já tivesse quatro anos, sua imaginação ainda vivia na floresta selvagem. — Olá, Shiv! — Arky-Parky! — gritou sua irmãzinha. O sorriso dela era ainda maior do que o dele. Ark começou a inspecionar a corda. — Não queremos que você caia daqui de cima, hein! Hoje caí do galho e fingi que estava morto! — Arky não está morto! Não vou deixar isso acontecer, nunca! — disse ela, franzindo a testa. — Que bom para você! Ele a levantou nos braços e deu um beijo na testa da menina. Shiv deu um gritinho de alegria. — Me joga da árvore? Por favooooor! Ark podia sentir o peso dela. — Você, minha lindinha, está crescendo rápido demais. — Ark ainda

gostava de fazer a velha brincadeira de pendurar a irmã de cabeça para baixo para fora do galho e fingir que a deixava cair, mas agora se viu pensando melhor. A quase queda ainda era muito recente, e, além disso, ocorreu-lhe que ele devia entrar antes que fosse visto por algum vizinho que estivesse passando. Ele tornou a colocá-la cuidadosamente no galho. — Desculpe, Shiv. Outra hora. Tenho de entrar para falar com papai. O lábio inferior dela curvou-se para baixo e um choro ameaçou sair de seus lábios. Ark tentou afastar a choradeira. — Mais tarde. Prometo. Seja boazinha agora. — Humpf! — murmurou Shiv, e virou as costas para ele a fim de brincar com um dos gravetos. Ark respirou fundo. Pelo menos estava de volta. A casa em forma de domo aninhava-se em um berço de cordas, como um ovo gigante. Ele deixou o galho-via pelo caminho estreito e oscilante que balançou levemente. O rangido era familiar, acolhedor. — Alguém em casa? Ark ergueu a borda da lona vegetal, feita de folhas costuradas juntas para proporcionar impermeabilidade e proteção. Quando as folhas caíam durante o outono, os dendrianos penduravam redes entre as árvores. As folhas eram fortes e flexíveis; uma vez curtidas, se tornavam muito mais duradouras que couro de vaca. Ark abaixou-se, deixando as sombras. O único cômodo redondo era dividido por grossos cobertores comidos por traças. Lampiões a gás, fixos nas paredes, bruxuleavam na brisa que fazia toda a casa tremer em seu frágil berço de corda. Ark se firmou quando o calor abafado aqueceu seu corpo úmido. — Aqui, filho — falou uma voz fraca. Seu pai estava enroscado em uma grande cesta perto da lareira. Os olhos opacos voltaram-se na direção de Ark. — Teve um bom dia? — Foi tudo bem — mentiu Ark.

Ele estava molhado, cansado, e seu mundo inteiro havia virado de pernas para o ar. Tudo bem não estava nem um pouco perto da verdade. — Sua mãe está fora, pechinchando alguns legumes. Vai voltar daqui a pouco. Ark sentiu-se culpado. As últimas moedas deles se perderiam com algumas batatas esquisitas e cenouras enrugadas. — Pai. Estou em uma enrascada. — Hã? Mas ele não teve chance de explicar. Ambos se viraram ao som de botas pesadas retinindo pelo caminho. Ark voltou os olhos arregalados para o pai, que, rápido como um raio, fez sinal para que o filho se abaixasse atrás de um dos lençóis que serviam como divisória. Antes que o Sr. Malikum Sênior pudesse dizer Entre, a borda da lona foi puxada para um lado de forma brusca, deixando entrar o ar frio da noite. — Quem é? O Sr. Malikum ergueu os olhos para ver dois homens vestidos em casacos de couro marcados com a imagem de um falcão-peregrino. As facas embainhadas em seus cintos não estavam ali por cerimônia. O guarda maior, com uma cicatriz que corria de um lado ao outro do crânio, também exibia um sorriso malicioso que mal conseguia esconder. — O senhor é o Sr. Malikum, pai de Arktorious, o garoto encanador? — Sim, sou eu. Do que se trata? O pai de Ark tentou sentar-se em seu catre para encarar os visitantes indesejados, mas o esforço foi demais para ele, que desabou de volta. — Trazemos notícias desafortunadas — disse o primeiro homem, como se estivesse lendo um roteiro. — Parece que seu filho sofreu um acidente — disse o segundo. — Ele tropeçou e… caiu da borda. O Sr. Malikum desempenhou bem seu papel. — Oh, não. Não! Vocês estão dizendo que ele…? — Receio que sim, senhor.

O “senhor” foi dito com um esgar e, para aumentar ainda mais a afronta, o outro guarda apanhou algumas moedas de bronze e as lançou casualmente na cama. — É claro que vai haver um inquérito. Mas tudo muito simples. Parece que o estresse do trabalho foi demais. Ele pulou! E, para enfatizar suas palavras, o guarda deu um pulo súbito, batendo os pés com força nas tábuas finas. O Sr. Malikum não decepcionou. Seus ombros se sacudiram quando ele se dobrou para a frente, agarrando o lençol que cobria suas pernas para enxugar lágrimas inexistentes. — O conselheiro Grasp sente muito por sua perda. Terminado o discurso, os guardas deram meia-volta e marcharam para fora da casa sem nem mesmo olhar para trás, para o homem que se lamuriava. Lá fora, quase tropeçaram em uma garotinha brincando com um boneco feito de gravetos. Ela amarrara um pedaço de corda nele e o puxava ao longo da borda do galho. — Obaaa! — repetia, empurrando a figura da borda e então puxando-a de volta. — Pobre criança — disse Alno, o mais jovem dos guardas, esfregando o bigode. — Que me emporcalhem! Alno ficando todo sentimental por causa de um rato de esgoto! E agora? Temos questões mais urgentes para cuidar… — Como o quê? — Como beber até cair! — É. Suponho que sim. — Nada de “suponho”. Vamos! Vamos embora desse monte de barracos esquecidos por Diana. Missão cumprida. Os guardas acertaram o passo e se foram, adentrando a escuridão que se tornava mais densa.

***

— Pai. Eu sinto muito. Ark levantou-se lentamente de trás das cortinas gastas. — Sente muito? Por quê? Você está vivo. É isso que importa. Agora vá trocar de roupa e ponha a chaleira no fogo. Quando estivermos aquecidos com um chá, você pode me contar como morreu! Havia um lampejo do velho espírito nos olhos do pai. Depois de vestir roupas secas, Ark colocou a chaleira de volta na placa de ferro quente sobre o fogão a lenha e esperou até que ela chiasse. Chá era um raro prazer, mesmo quando comprado de segunda mão. Arborium não era completamente isolada do mundo exterior. Suas fronteiras eram porosas como uma peneira quando se tratava de oferta e procura. Os piratas da lama que viviam no mundo crepuscular a um quilômetro e meio abaixo, na base das árvores, ficavam muito felizes em fazer o contrabando. Eles interceptavam especiarias e café de Maw e os entregavam aos mensageiros que eram o único meio de acesso ao país tão acima do solo. As duas colheres de folhas secas agora cobertas com água fervente haviam vindo de longe, exatamente como a mulher que participou da conversa que Ark entreouvira. A diferença era que um pote de chá não representava uma ameaça real ao modo de vida de Arborium. A xícara de madeira toscamente entalhada aqueceu-lhe as mãos e, ao se agachar, Ark deu-se conta do quanto estava cansado. Era hora da verdade. E, pela segunda vez naquele dia, ele contou sua história. Quando terminou, o pai permaneceu em silêncio por um tempo, contemplando as folhas no fundo da xícara vazia como se pudessem revelar o futuro. — E agora, filho? — O que você quer dizer com “e agora”? — Ark viu-se novamente à

beira das lágrimas enquanto o desespero se aproximava. — Não posso voltar ao trabalho. Não posso ganhar dinheiro. Não posso alimentar o senhor, Shiv e mamãe. Considerando o que posso fazer por nossa família, seria melhor se eu fosse banido para a Floresta dos Corvos. — Shhh. Há sempre alguma coisa que se pode fazer. Seu pai podia estar aleijado e confinado ao seu cesto, mas havia um forte tom de certeza em sua voz. — O quê? No momento em que eu sair daqui, vai haver um prêmio pela minha cabeça. Eu falhei com vocês. Sou só uma… — Você é apenas uma criança. Eu sei. — O pai sacudiu a cabeça e, com delicadeza, empurrou os cabelos pretos de Ark para o lado, a fim de observar o rosto do garoto. — E, no entanto, sempre houve alguma coisa diferente em você. Lá ia eu escalando um galho para descobrir por que os ramos estavam sempre entupindo um ralo, com o vento tentando me arrancar da árvore como uma pena! Ark ouvira aquela história uma centena de vezes. Costumava achá-la reconfortante. Agora, porém, ela o encheu de perguntas sem respostas. — E lá estavam vocês dois, enrolados em um ninho coberto de penas, sorrindo para mim com seus estranhos olhos verdes. No redemoinho daquela tarde quatorze anos atrás, o Sr. Malikum, o encanador, havia saído de casa com uma chave-inglesa e voltara com dois bebês. Sua mulher ficara perplexa, e em seguida encantada. Quem eram eles para recusar um presente das árvores? — Você foi um milagre. Mas por que alguém deixou vocês lá naquele frio somente Diana sabe. E sua pobre irmã Victoria pegou a febre, que a levou tão rápido… Ele sacudiu a cabeça, perdido em memórias. Depois de um dia de luto e da bênção da Guardiã Goodwoody, eles haviam colocado o corpo do bebê nos galhos, vestido em farrapos, alimento sacrificial para os Corvos. Ao que parecia, Ark havia gritado durante toda a cerimônia, só ficando em silêncio quando a primeira ave surgiu, descendo

do céu. Em vez de reivindicar seu pedaço de carne, o Corvo havia arrebatado o corpo da menina e decolado enquanto seus companheiros voavam em círculos e crocitavam com ferocidade. Às vezes Ark tentava lembrar-se da última vez em que vira sua gêmea perdida, mas a imagem em sua mente estava para sempre cheia de um redemoinho de penas negras e indistintas. — Você sabe que sempre o amamos como nosso filho? Ark assentiu. O Sr. e a Sra. Malikum eram seu pai e sua mãe. E Shiv era sua irmã de verdade, e estava viva. Quase bastava. Mas o pai tinha razão. Quem os abandonaria no meio do nada? Aquela pergunta o incomodara durante toda a sua breve vida. Mas a resposta era óbvia. Era alguém que evidentemente não se importava. Aquilo era tudo que ele precisava saber. — Sempre conseguimos nos virar e vamos continuar conseguindo. Por esta noite, não há nada que possamos fazer, exceto deixar nas mãos de Diana. — Ele fechou os olhos brevemente. O assunto estava encerrado. — Você comeu alguma coisa hoje? Ark sacudiu a cabeça em silêncio. A fuga o havia esgotado. Estava faminto.

Gás venenoso Petrônio não teve a menor dificuldade em se manter fora do caminho do pai na manhã seguinte. Escapou após o café da manhã e misturou-se às pessoas nos movimentados galhos-via, sua própria cabeça abarrotada com os acontecimentos do dia anterior. Quando os guardas tinham retornado com a notícia da morte de Ark, Petrônio ficara levemente surpreso com a própria reação. Ele procurou algum pesar, mas não encontrou. Na verdade, estava bem mais aborrecido com o tratamento que recebera por parte dos dois novos guardas. Ser arrastado diante de seu pai como um garoto travesso era uma afronta ao seu orgulho. Não esqueceria aquele momento, de modo algum. Quando chegasse a hora, ele os faria pagar caro. Petrônio abria caminho pela multidão, espremendo-se em meio a vários cavaleiros frustrados, uma carroça lotada de cebolas vinda das lavouras suspensas e um rebanho de ovelhas balindo, preso naquele mar de rostos. Ele estava impressionado que mais pessoas não caíssem dos galhos no correcorre para o trabalho. As cordas de segurança ajudavam, mas os programas de alargamento das vias propostos pelo conselho não diminuíam o enorme número de pessoas que usavam os galhos principais. Por que alguns desses plebeus não podiam sair de Heléboro e repovoar os antigos assentamentos assolados pela praga nas áreas mais remotas? A

doença já desaparecera havia muito tempo, com exceção de surtos esporádicos e isolados, mas os dendrianos eram um bando de supersticiosos. E na capital havia trabalho a fazer, então eles se aglomeravam como moscas. Petrônio rangeu os dentes e forçou passagem pela multidão. Se seu pai assumisse o posto de presidente da nova república, talvez pudesse começar com uma ligeira redução forçada da população. Petrônio olhou para cima, observando a pouca luz que se infiltrava pelas folhas. As nuvens estavam densas e cinzentas hoje, ameaçando repetir a tempestade de ontem. Lá embaixo, vários níveis abaixo da copa, a falta de luz transformava as passarelas e estradas em uma terra de sombras que o silvo e o reflexo dos lampiões a gás pouco faziam para dissipar. A Escola de Cirurgiões erguia-se imponente a distância. Amplas janelas gritavam sua importância e seu status. A estrutura de madeira tinha seis lados, erigindo-se em uma plataforma impressionante, apoiada entre quatro troncos robustos. As salas de cirurgia ocupavam o andar superior, com claraboias capturando a maior parte de luz do dia. Aprendizes como ele tinham de se contentar com as salas de aula mais escuras no primeiro andar. Quando Petrônio abriu a porta externa, o cheiro familiar de formaldeído o envolveu. Lá dentro, o garoto cumprimentou com um aceno de cabeça alguns conhecidos enquanto se acomodava em seu lugar nas fileiras que subiam em semicírculos em torno do pódio principal. Se ele ao menos pudesse dizer a seus companheiros o que ouvira. Eles ficariam mais do que impressionados. Mas “companheiros” era uma palavra muito forte. Todos os rapazes ali agiam com cuidado com Petrônio, conhecendo muito bem a reputação de seu pai. Ele nunca admitiria aquilo publicamente, mas gostava da maneira como o tratavam. O medo era uma arma útil. Naquela manhã a aula era de Estudos Gerais, e o professor idoso, que mais parecia uma águia de cabeça branca, tagarelava sem parar sobre um monte de coisas que Petrônio já sabia. — A evolução da floresta e da sociedade dendriana que dela depende

merece ser examinada — dizia o professor em tom monótono com sua voz de folha seca. — Viemos das árvores e, estranhamente, depois de muitos milhares de anos, voltamos a elas. A explicação por trás dessa nova direção devemos a nosso grande filósofo Darvim. — O professor bateu em uma foto em seu quadro de cortiça, mostrando um homem fazendo algo maçante em uma biblioteca. Petrônio não se deu o trabalho de disfarçar o bocejo. — … naquele tempo, a terra estava envenenada por aqueles que vieram antes. Como poderiam as árvores e nossos ancestrais viverem da água de rios mortos havia muito e solos poluídos pelas cidades? Tempos de desespero geraram medidas drásticas e inspiração! As árvores sempre lutaram por seu quinhão de luz. Como disse Darvim, somente os fortes triunfam. Petrônio assentiu. O velho chato estava finalmente falando algo sensato. O professor fez uma pausa, apontando para outra imagem, uma árvore nova que pareceria insignificante não fosse a diminuta figura de um homem adulto ao lado dela. — Os supersticiosos dizem que as árvores têm consciência. Elas sabiam que a terra estava poluída e que, para sobreviver, teriam de enterrar suas raízes mais profundamente. Enquanto o resto do mundo se transformava em uma imensa cidade, algo diferente acontecia em Arborium. Os alunos mais aplicados tomavam notas, mas a mente de Petrônio vagava entre a ideia de crescer cada vez mais e a de cair. Ele tentou imaginar o estranho salto de Ark para o desconhecido. Que pensamentos naquela fração de segundo o impulsionaram da borda? Era um grande salto: de um joão-ninguém humilhado a alguém que tira a própria vida. Seria mesmo? As mãos de Petrônio instintivamente fizeram o sinal da Cruz do Mateiro: Sobre a Terra, Sob o Céu, Folhas a Leste e Oeste. Mas então parou e cruzou os braços com determinação. Qual era o sentido em manter hábitos antigos e inúteis? Orações eram para os fracos. Agora tinha de

pensar no futuro. — O filósofo chamou de “evolução” esse fascinante processo em que as árvores que desenvolveram raízes mais profundas e troncos mais altos sobreviveram, assim como os dendrianos, quando se afastaram da terra imunda e passaram a viver neste berço de galhos e ramos. Poderíamos dizer que as árvores que ousam, vencem! Ninguém riu com a animação do professor. Ele prosseguiu, como se nada houvesse acontecido. — Os religiosos contam outras histórias, colocando os fatos em uma fantasia de deusas e árvores que pensam por si mesmas. E algumas famílias ainda seguem as velhas superstições. É puro barbarismo sacrificar um javali para satisfazer a Rainha-Corvo! Aqueles Corvos não são de fato “aves da morte”, mas simples subprodutos da natureza! — Seu sorriso afetado finalmente foi recompensado por algumas gargalhadas intelectuais de sua plateia. — Exato. Os dendrianos podem acreditar no que quiserem, mas minha tarefa é lidar com a realidade. Portanto, qualquer que seja a opinião de vocês sobre a origem das espécies, o fato é que uma mudança extraordinária ocorreu. Era como se esse novo gênero de árvore trouxesse embutido um código para a autopreservação. O gambá expele um cheiro repugnante por uma glândula em seu traseiro para afastar os predadores, correto? Aquilo provocou risadas abafadas nos rapazes mais grosseiros na turma. — E o porco-espinho se torna uma falange impenetrável de arpões. O mesmo acontece com nossas árvores híbridas. À medida que foram se tornando cada vez mais altas e os humanos originais abandonaram seus antigos hábitos terrestres, percebeu-se que os viajantes que passavam pelo litoral de Arborium adoeciam de imediato assim que punham os pés em terra. E qual a razão disso? Ele apontou sua caneta diretamente para Petrônio. O rosto de cada aluno virou-se para o garoto, à espera da resposta inteligente e sarcástica de sempre.

— Gás… senhor. A maneira como Petrônio se dirigiu ao professor não escondia seu desprezo. E ele não teria nenhum problema por aquilo. Ninguém dava advertências ao filho do Sumo Conselheiro. — Isso mesmo, jovem Grasp. As raízes dessas novas espécies aprofundaram-se ainda mais na crosta terrestre, perfurando abaixo dos aterros imundos de nossos antepassados, buscando fontes limpas de água e minerais. As raízes, porém, quase com mentes próprias, fizeram outra descoberta. Elas finalmente perfuraram reservas de gás desconhecidas. Para os habitantes das árvores, esse foi um momento decisivo, com infinitas possibilidades. As árvores em si não tiveram nenhum uso para ele, mas para os parasitas humanos que viviam nas copas o gás foi a alavanca que precisavam para deixar o solo: uma fonte independente de calor e energia! As árvores ofereciam calor, hábitat e água limpa para todas as criaturas que viviam no alto das copas. Em troca, nós, dendrianos em recente evolução, podíamos defender a floresta de interferências externas. Dar e receber. A natureza é verdadeiramente extraordinária, embora possamos deixar o reino das árvores falantes para as histórias infantis. O velho sorriu e coçou uma ferida na careca brilhante. — Mas a parte mais engenhosa do quebra-cabeça ainda estava por vir. Em algum ponto da constituição biológica das árvores, as raízes que extraíam o gás também instituíram um processo de filtragem. O gás era limpo, por assim dizer, os resíduos eram escoados e liberados pelas folhas com um cheiro inofensivo. Inofensivo para os dendrianos e outros habitantes das árvores. E, assim, essa relação vem dando certo há gerações, e aqueles forasteiros que procuram se infiltrar em nosso país agora pagam o preço final… da asfixia! Alguns dos garotos fizeram ruídos deliberados de estrangulamento, agarrando os próprios pescoços. — Sim, sim. Muito divertido, tenho certeza. Mas talvez não achassem minhas palavras tão hilárias se nossa pequena nação estivesse sob ataque,

não é? Se o professor soubesse da missa a metade, pensou Petrônio. Uma campainha soou e todos começaram a arrumar os livros. — Os trabalhos são para amanhã, por favor — falou o professor acima do burburinho. — Lembrem-se: vocês devem debater a diferença entre a assim chamada criação religiosa dos mitos de Diana e sua sombria companheira, Corvena, e os fatos concretos da cronologia evolucionária dendriana. Os alunos ignoraram o professor, debandando para o intervalo. Um dos rapazes ofereceu um charuto a Petrônio, que não fazia nenhuma objeção a um pouco de falsa amizade, em especial se envolvesse fumar de graça. Ele juntou-se ao pequeno grupo de garotos que iam dar suas baforadas secretas do lado de fora e seguiu com eles até a esquina de uma praça pública. Em um dos lados, as mesas estavam postas, preparadas para o comércio da hora do almoço. Um garçom, varrendo a sujeira dos pombos e os gravetos do chão, fechou a cara para os alunos, deixando claro que eles não eram o tipo de cliente que ele esperava. Petrônio recostou-se em uma coluna sem tomar parte nas brincadeiras. Observava o fluxo constante de dendrianos que jorrava pela plataforma de tábuas e cuidadosamente apagou o charuto. Dar início a um incêndio na floresta não era do interesse de ninguém. Petrônio pensava se suportaria permanecer ali mais um pouco quando uma figura chamou sua atenção. Era um Mateiro Sagrado com o capuz na cabeça e arrastando o manto, cruzando a praça com decisão. Nada de incomum — exceto que havia alguma coisa diferente na maneira como o Mateiro se locomovia, parecendo quase deslizar em vez de andar. Então os olhos de Petrônio percorreram a figura de cima a baixo, e viram não sandálias rústicas, mas botas caras e elegantes, forradas com pele. — Com licença, pessoal. Preciso ir. Petrônio não se deu o trabalho de dizer obrigado. Nunca o fazia. A figura já havia desaparecido. Ele atravessou a praça correndo, não sabendo

exatamente por que queria segui-la. Era só instinto. Depois de uma esquina, o galho se dividia. Esquerda ou direita? Petrônio farejou como um caçador. Um cheiro pairava no ar. Parecia familiar. Ele tomou a direita e seguiu o sinuoso galho-via, tentando não correr. Mais adiante, o Mateiro reapareceu, deslocando-se com o mesmo ritmo decidido. A cada bifurcação, o Mateiro tomava o caminho que parecia afastar-se ainda mais da trilha mais comum, e até mesmo Petrônio começou a se perguntar onde estavam. Uma velha placa, castigada pelo tempo, advertia que o caminho à frente estava fechado para reparos. O Mateiro a ignorou, saltou-a com agilidade e prosseguiu pelo galho-via interditado. Petrônio fez uma pausa, os olhos examinando nervosamente a área. Se continuasse a seguir a figura agora, seu propósito seria mais do que óbvio. Lá em cima um casal de cabras-das-árvores selvagens empoleirava-se em galhos altos que pareciam incapazes de suportar um pardal, quanto mais mamíferos daquele tamanho. Nem se deram o trabalho de olhar para o estranho lá embaixo, de tão ocupadas que estavam pastando as florescências dos fungos que cobriam a casca da árvore. Um grito súbito vindo de mais adiante interrompeu a indecisão de Petrônio, seguido por um baque. Ladrões? Ele duvidava. Seu pai conduzia os esquemas de proteção com mão de ferro. A livre iniciativa criminal havia sido reprimida. Talvez fossem os Corvos. Mas quem já ouvira falar de um Corvo atacando um sacerdote? Outro grito, dessa vez mais perto. — Socorro! Novamente o instinto. Petrônio saltou sobre a placa de advertência e correu em disparada pelo caminho. A figura havia caído no chão. Um horrível som abafado vinha da garganta do Mateiro. Somente quando se aproximou Petrônio lembrou-se da primeira vez em que sentira aquele cheiro. — Minha… senhora? — Socorro… preciso…

Os dedos finos e elegantes com unhas vermelhas tateavam na direção de uma bolsa de couro ao seu lado. O capuz havia caído e ele podia ver o rosto da mulher, coberto por um leve brilho de suor, enquanto a outra mão agarrava a garganta. — O quê? Não entendo o que a senhora… Mas Petrônio apanhou a bolsa assim mesmo. — Rápido… gás… É claro! Talvez a aula daquela manhã não tivesse sido tão irrelevante, afinal. Petrônio esvaziou a bolsa rapidamente. Vários objetos de metal de formato estranho caíram no chão. Para um aprendiz de cirurgião, um deles era bem conhecido, embora bem menor e mais elaborado que sua versão dendriana: uma seringa hipodérmica. O tempo estava se esgotando; a mulher mal conseguia aspirar, quanto mais falar. Com o que lhe restava de força, ela apontou fracamente na direção do próprio braço. A primeira emergência de verdade de Petrônio! Ele apanhou a seringa e rapidamente subiu a manga de lã rústica, revelando um braço liso e sem pelos. O toque da pele dela o fez estremecer. Clinicamente, os dedos dele procuraram o lugar certo. Ele tirou a proteção da agulha e a cravou na carne, abaixando o êmbolo lentamente. Os olhos da mulher reviraram, e seus braços agitaram-se uma vez, então caíram pesadamente ao lado do corpo. Ela estava morta! Ele a matara! Mas as mãos dele começaram a trabalhar por vontade própria, fazendo o que haviam sido treinadas para fazer: agarrou-lhe a mão e procurou o pulso. Nada. Não. Espere. Ele sentiu alguma coisa, leve como uma brisa entre as folhas. O alívio foi enorme. Petrônio apanhou a bolsa de couro e a colocou sob a cabeça dela. Então virou-lhe o corpo de lado, na posição de recuperação. Tudo que podia fazer agora era esperar e ver se o que havia na seringa faria seu trabalho. Alguns minutos se passaram. A floresta estava atipicamente silenciosa. Nenhum canto de aves. Nenhuma fuga apressada de esquilos. Era como se

as árvores estivessem prendendo a respiração para ver se a evolução poderia ser enganada de forma tão fácil. As pálpebras da mulher começaram a tremular. Petrônio debruçou-se sobre ela e tornou a verificar seus sinais vitais. Alguns momentos depois ela abriu os olhos, pousando-os em seu salvador. Embora a mulher houvesse quase morrido, um sorriso fino vincoulhe os lábios. — Você salvou minha vida. Petrônio ficou vermelho-vivo. Estava surpreso com as próprias ações. — Fico feliz em… hã… ajudar. — Sim. Acho que sim. Aqui… Ela tentou sentar-se. Petrônio inclinou-se para ajudar, agarrando-lhe os pulsos para puxá-la. Ele novamente teve consciência de seu cheiro, a pele macia demais, sua qualidade de diferente. — Suas árvores inteligentes tentaram me matar. Vou esperar ansiosamente devolver o favor, um dia! Petrônio de repente se sentiu próximo demais para ficar à vontade. Ele se levantou, inseguro sobre o que fazer ou dizer. — Estou, hã, estudando para ser cirurgião. — Ele ergueu a seringa. — Isso deve ser algum tipo de antídoto de ação rápida… — Bom garoto. Estão lhe ensinando direitinho. Outra vez aquele sorriso. Ela o deixava desorientado. Ele assentiu. — Tenho uma filha que tem a mesma idade que você, se chama Randall. — Por um momento, seu tom de voz ficou distante. — Nós costumávamos nos dar bem. Petrônio se perguntou como seria a vida em Maw. Aquele pensamento lhe pareceu excitante, cheio de possibilidades. Oculto entre as folhas acima, um pombo arrulhou. Como se fosse um sinal, a mulher se recuperou. Ela voltou-se lentamente para estudá-lo, os olhos negros como as penas de um Corvo parecendo fagulhas de vidro

enterrando-se em cada fresta secreta da alma de Petrônio. — Acredito, filho do conselheiro Grasp, que você pode vir a ser muito útil para mim. Talvez eu tenha uma tarefa para você, se estiver disposto. É perigoso, mas haveria… recompensas. O que diz? Alguns minutos atrás a mulher estava quase morta. Agora ela o convidava a juntar-se a ela. A excitação corria como clorofila pelas veias de Petrônio. — Meu nome, senhora, é Petrônio. O que pedir, eu farei! Ela riu. — Que galante! E eu sou lady Fenestra, enviada secreta de Maw. Fico feliz que tenhamos sido propriamente apresentados. Um futuro brilhante nos aguarda. Tudo que precisamos fazer é nos apoderarmos dele!

A jornada começa Ark teve um sono agitado, seus sonhos pontuados por imensos Corvos que cruzavam o ar, mergulhando em sua direção. Ao longo da noite, cada pequeno estalo e gemido faziam seus olhos se abrirem de repente, convencido de que os guardas haviam descoberto que ele ainda estava muito, muito vivo, e em posse de informações perigosas. Ao raiar daquele dia, como em todos os outros, a mãe o abraçou e beijou, o que ele em geral achava constrangedor. Só que dessa vez ela não o soltou. — Sei que não há outra maneira — disse ela. — Você tem razão quando diz que o rei precisa ser avisado, e logo, antes do festival que se aproxima. Se ele for destronado, o caos vai tomar conta de Arborium e Maw já terá vencido. Ele precisa ver que seus conselheiros cravaram um prego enferrujado no coração dessa madeira boa. Mas odeio pensar em você enfrentando perigos. Talvez seu amigo possa ajudar. — Ele não é um amigo! — protestou Ark. — Eu mal o conheço. No trabalho, Ark sempre achara melhor manter-se fora do caminho de Mucum. — Ele está do seu lado… Achamos que você deve confiar nele. Seja como for, papai e eu ficamos horas discutindo o assunto. É você quem terá de ir. Como pode ver, ele não está bem para a viagem hoje.

O pai estava sentado no catre, olhando para o fogo. Nem em nenhum outro dia, pensou Ark. Olhou para a mãe. A tintura avermelhada de sorveira-brava fazia o melhor que podia para disfarçar as raízes grisalhas dos cabelos, mas os anos haviam desgastado sua juventude, deixando sulcos que lhe marcavam a testa, mais profundos que os de um arado nas lavouras suspensas. O vestido, de segunda ou talvez até de terceira mão, estava comido pelas traças. Como poderiam comprar tecido novo com seu magro salário? E agora até aquilo tinha acabado. — E não dariam ouvidos a mim, uma simples mulher. — Como pode dizer isso? Você é mais forte do que qualquer um deles! A mãe sacudiu a cabeça. — Essa é a lei da floresta hoje em dia. Mas bendito seja seu coração por acreditar nisso. Agora vamos dar uma olhada em você! — Os calções de Ark estavam puídos de tanto escalar os galhos. Pelo menos ela conseguira cerzir os rasgos nas meias. — Vai ter de servir. — Não estou indo para uma festa a rigor, Mãe. Ark queria que ela parasse de se preocupar com aquelas miudezas. — Não há nada de errado com o uniforme de um encanador, meu querido, mas você deve apresentar-se bem diante do rei! — Ela enfiou um pacote de comida em uma bolsa de couro. — Que Diana ponha asas em seus pés! Aqui está uma moeda para o santuário. Ela colocou uma moeda de cobre reluzente na palma da mão dele. — Mas, Mãe, não podemos nos dar esse luxo! Aquilo era suficiente para dois pães e meia dúzia de ovos, pelo menos. — Luxo? Que preço tem uma oração? Agora vá, antes que sua velha mãe comece a chorar. E tome cuidado. Ark fora encontrado fazia muito tempo, um presente das árvores. Ela não queria perdê-lo agora. O menino guardou a moeda no bolso e espiou rapidamente atrás da cortina, dando uma última olhada na irmã adormecida. Ela segurava o boneco de gravetos com força e tirara o polegar da boca. Era quase demais

para ele. Ark voltou para o espaço principal e ajoelhou-se ao lado do catre do pai. — Até logo, filho. Não deixe os Abutres acabarem com você, hein? O Sr. Malikum tentou sorrir, mas Ark pôde ver os olhos do pai marejando. Ark assentiu, e antes que seu rosto pudesse trair sua emoção afastou-se pelo galho-via. Parou uma vez e olhou para trás. A floresta enchia-se do canto dos pássaros — papos-roxos, peitos-verdes, melros e tordos disputando para cumprimentar o novo dia. Sua casa já estava perdida entre as sombras que se moviam. Ninguém acenou um adeus. Ele sentiu um aperto no peito, tentando não pensar em todos aqueles que deixava. Sentia-se como um fantasma ao se dirigir para a estação local de esgoto, seguindo lentamente pelas sombras a fim de evitar os poucos dendrianos que estavam acordados tão cedo. Mas nem tomavam conhecimento dele, apressados em suas próprias ocupações. E qual era o seu propósito? Tinha de chegar até o rei, e rápido, mas como? Talvez Mucum tivesse alguma ideia. Ark começou a descer pelo interior de um dos troncos próximos, seus passos ecoando nas profundezas ocas. Após alguns minutos, chegou a um patamar com duas saídas. O galho-via que levava ao local do encontro ficava à esquerda. Ele fez uma pausa, pensando na moeda em seu bolso. O ofício matinal já teria terminado e não haveria ninguém por perto. O que tinha a perder? Pegou a direita, e dez minutos depois a passagem o deixava em seu destino. A grande árvore da qual ele se aproximou por um fino e oscilante passadiço era diferente de todas as outras em um aspecto. A casca lisa era guarnecida com portinholas com vitrais, encimada por um teto de sapê que se agarrava às bordas do tronco maciço e oco. Mesmo naquele lugar sombrio, muito abaixo da copa da árvore, a luz coada pelos vitrais perfurava os infinitos matizes de verde, fazendo com que as folhas circundantes parecessem ter sido tingidas para serem expostas em um deslumbrante quiosque no mercado. Aquele era o efeito que o Templo deveria causar. A

porta, sempre aberta, oferecia um refúgio àquela vida monótona. Além dela havia um reino de cores, o palácio de Diana. Ark parou diante da entrada. Um fio de água escorria de um buraco na casca da árvore e abria caminho até um cintilante vaso de cobre, forjado no formato de penas de Corvos e preso ao tronco. A água era um presente das raízes lá embaixo, sugadas pela própria árvore para ser derramada na fonte sagrada. Ark cruzou as mãos sobre o peito. Sobre a Terra, Sob o Céu, Folhas a Leste e Oeste. Ele fez uma rápida prece pela alma de sua irmã gêmea, morta havia muito, então pegou a moeda no bolso e a deixou cair no vaso, observando as ondas provocadas na água enquanto ela afundava, indo juntar-se às outras oferendas. Uma quase fortuna de ouro e prata tremeluzia uns trinta centímetros abaixo da superfície, suficiente para alimentar sua família por anos. Mas ninguém, nem mesmo o Conselheiro Grasp, roubava Diana. Pronto. Fizera o que a mãe havia lhe pedido. Talvez devesse ir embora agora. Mas a porta aberta o convidava a entrar, como sempre. Entrar implicava a possibilidade de encontrar um Mateiro Sagrado. Ele teria de arriscar. Antes que pudesse pensar, seus pés o levaram até o pórtico, onde empurrou suavemente a próxima porta. A principal parte do Templo era uma sala com cerca de quinze metros de circunferência, com o teto entalhado e abobadado perdido nas sombras acima. Muitos vinham se ajoelhar em silêncio no chão de madeira polida. O ar era denso por causa do incenso, uma neblina interna de resina de pinho queimado. Ark amava o Templo, a maneira como a luz se filtrava nos vitrais, realçando a estátua de madeira da Mãe, embalando a primeira bolota de carvalho modificada. Ele se sentia seduzido pelo mistério dos Mateiros Sagrados, os rostos ocultos nos capuzes, enquanto repetiam palavras e expressões de um milênio atrás, erguendo a xícara prateada feita de bolota de carvalho para beber da água da árvore e partilhá-la em comunhão com seu rebanho. Mas ele também experimentava a sensação de confinamento, como se a força das árvores não se concentrasse naquela

câmara de adoração, mas lá fora, em toda a floresta. A uns cinco metros de onde ele estava, uma figura envolta em um manto negro e agachada, arrumava flores para a colheita vindoura: crisântemos, ásteres e amores-perfeitos. A figura assoviava para si mesma, e Ark esperava que, se pudesse passar furtivamente, o som poderia cobrir seus… — Eu conheço esses passos! — A voz ecoou pelo salão sagrado. Ark parou de supetão. Tinha sido descoberto. — Aonde pensa que está indo, meu Ark? A figura virou-se, desajeitada, revelando um rosto tão enrugado quanto uma maçã guardada durante o inverno. O cabelo estava amarrado em um rabo de cavalo bagunçado. Somente os olhos, sem pupilas, pareciam perdidos, os globos brancos vagando sem rumo. Ark não tinha escolha. — Guardiã Goodwoody. Ele se curvou. — Foi o que pensei. Por mais delicados que sejam seus passos, meus ouvidos os captam! O rosto abriu-se em um sorriso. Ark aproximou-se, arrastando-se, verificando com nervosismo as capelas laterais. — Por que está preocupado? O que foi? Uma das mãos se estendeu, varrendo o chão como uma vassoura, até que os dedos encontraram o que procuravam. A guardiã usou o cajado de olmo para se levantar, pairando acima de Ark. — Nada. Eu entrei. Queria… Ele não sabia o que queria, por que estava ali. — Pegar uma nuvem, é? Bem, não se preocupe comigo. — Ela fez um gesto com a cabeça, indicando um lance de escadas nos fundos do Templo, oculto em um recesso escuro. — Vá em frente, então. Ark queria parar e conversar, mas agora fora tomado por uma sensação

de urgência. — Obrigado — disse ele. — E se encontrar a Deusa lá em cima, mande lembranças minhas! A mulher suspirou e inclinou-se de novo para continuar sua tarefa. Ark parou junto à escada, experimentando de repente a sensação de estar sendo observado. Ele virou-se, incerto. Dois olhos o fitavam da escuridão. Ark quase caiu para trás de medo. — Os dendrianos ignoram a Rainha Corvo por sua conta e risco! Como Goodwoody poderia ter percebido para o que ele estava olhando? Os olhos pareciam vivos, fitando-o de um vitral empoeirado oculto por uma confusão de cadeiras velhas e quebradas e tapetes enrolados. A figura estava vestida de preto. Ark espiou mais de perto. Não. Não vestida de preto, mas usando um manto de penas negras que se agitava acima de um trono sombrio. — Nossos homens devotos esqueceram os costumes antigos — prosseguiu a guardiã —, mas Corvena é a verdadeira face da natureza. Alguns dizem que é a outra face de Diana. Não se pode ter a luz sem que hajam as trevas… Ark não tinha a menor ideia do que ela queria dizer. Perturbado, correu para a escada dos fundos e subiu os degraus de dois em dois, atraído por seu lugar preferido. A subida era muito mais estreita que qualquer tronco principal, os degraus pouco mais que lascas horizontais. Ali em cima não havia vidros caros, somente o ocasional olho do nó da madeira atravessando a casca da árvore, deixando entrar o vento e cada vez mais luz, à medida que ele galgava a rota familiar. Logo havia deixado bem para trás a estrutura principal do edifício, espremendo o corpo já magro em uma espiral decrescente, os degraus triangulares agora tão pequenos que seus dedões dos pés mal conseguiam encontrar apoio. O galho no qual subia começou a balançar de um lado para outro. Ali em cima, ele e a árvore eram os brinquedos do vento. Aquela jornada jamais seria para os medrosos. Uma rajada mais forte e a madeira poderia facilmente quebrar-se com o peso de

Ark, encerrando-o em um caixão de casca de árvore, levando-o para a morte certa. Mas Ark sentia o oposto de medo. Ele era uma criança enjeitada da floresta. As árvores não o abandonariam agora. Às vezes se perguntava quem seria sua mãe verdadeira. Como ela poderia ter abandonado a irmã e ele no frio? Talvez fosse o filho secreto de um duque e um dia alguém bateria à sua porta anunciando uma herança. Ark sacudiu a cabeça. Sonhos inúteis. Quanto mais perto chegava do céu, mais os acontecimentos do dia e da noite anterior iam se dissipando. O movimento para trás e para a frente acalmava sua mente de fugitivo. Mais alguns passos e lá estava ela: uma minúscula porta, engastada feito uma pedra em um anel. Ele a empurrou, e com um único movimento deixou para trás um mundo de escuridão. A vista da pequenina plataforma circular, bem acima da coroa da árvore, era imensa. A floresta onde se localizava o país de Arborium estendia-se diante dele, em todas as direções. Era um cobertor verde infinito e ondulante, crepitando com folhas e vidas ocultas. Aquele ninho raquítico, que agora somente as crianças podiam alcançar, era antigo, sua utilidade original perdida ao longo dos séculos. Ark o imaginava como um posto de vigia de uma batalha de muito tempo atrás, ou talvez o local das oferendas a Diana. Não havia nada de errado com os ofícios do Templo, mas era ali, onde o único telhado abobadado era entalhado nas nuvens e no ar, que ele sentia encontrar seu lugar. Não muito distante, a oeste, Ark via o grande palácio de Quercus despontando acima das árvores. Ainda estava a alguns quilômetros de distância, suas ameias reluzindo com cobre batido e polido. Ele nunca fora lá a trabalho, embora tivesse estado nas terras adjacentes, assim como todo o povo, para o Festival da Colheita anual. No entanto, o filho de um encanador dificilmente era bem-vindo na corte. Aqueles esnobes iriam desaprová-lo enquanto todo o país queimava na fogueira da traição. A sensação de bem-estar que normalmente o recebia ali hoje estava ausente. Ele não se sentia mais calmo ao se balançar de um lado para outro

acima do mundo… Sua cabeça estava cheia: a expressão de surpresa de Petrônio; a perseguição que terminara em sua pretensa morte; a imagem de Arborium derrubada e queimada. O tempo pressentia seu estado de espírito, o vento forte puxando-lhe as roupas, fazendo seus olhos lacrimejarem com a promessa de inverno. O sol ainda estava baixo, escondido atrás das nuvens, como se envergonhado da traição prestes a acontecer lá embaixo. Ark circulou a plataforma, segurando-se cuidadosamente em um corrimão na altura da cintura, que circundava o tronco. Aquilo era estúpido. Ele precisava ir em frente, encontrar Mucum, elaborar um… Um lampejo negro chamou sua atenção. Por um breve momento as nuvens se abriram e o sol captou um reflexo da borda da plataforma. — O que é isso? — murmurou Ark para si mesmo. A borda da plataforma era ridiculamente baixa. Ao se debruçar sobre ela, o garoto tentou não olhar para baixo. A plataforma erguia-se na floresta como um dedo meio torto. Ele estava a centenas de metros acima de Arborium. Em geral sentia-se à vontade nas árvores, mas talvez elas não sentissem o mesmo em relação a ele. A cintilação capturou seu olhar de novo, descansando na curva de um galho, fora de alcance. Ark tentou enroscar o pé em torno do batente da porta e inclinar-se sobre a beira da plataforma, confiando que a antiga carpintaria sustentaria seu peso. Era enlouquecedor! Seus dedos roçaram a ponta do objeto. Com o vento agora soprando muito forte, seus olhos encheram-se de lágrimas e ele mal conseguia distinguir o que havia diante dele. Só mais um pouquinho. Um pouquinho mais e… Enquanto Ark se esticava na direção do que parecia um reluzente tesouro negro, inclinado sobre a borda da plataforma, a moldura de madeira da porta começou a estalar e gemer. O vento aumentou, uivando com uma força invisível ao curvar o galho para a frente, até que Ark não estava mais na horizontal, mas quase de cabeça para baixo. Uma voz chamou: — Ark!

Sua cabeça girou na direção da voz. Ninguém. Um truque do vento que uivava. — Ai… droga — gemeu Ark. A moldura, devorada havia séculos por cupins, estalou e lascou, soltando-se dos pés de Ark e lançando-o de cabeça, como uma pedra, na direção da floresta.

Caindo em desgraça

Dessa vez não havia corda, nem plano B. Ao despencar para a floresta, Ark perguntava-se vagamente o que aconteceria primeiro. Se tivesse sorte, seu pescoço se quebraria ao passar por um galho. Se atingisse um ramo-via, cada osso de seu frágil corpo seria esmagado. Aquele pensamento deveria tê-lo deixado apavorado, mas ele se sentia estranhamente calmo enquanto a floresta, cada vez mais próxima, estendia os braços verdes, pronta para envolvê-lo. A velocidade era impressionante. Suas bochechas eram puxadas para trás como borracha e os olhos gotejavam como uma fonte. Ele sentia dedos invisíveis tentando arrancar suas roupas à medida que disparava cada vez mais rápido na direção da terra. Talvez fosse assim para um Corvo, abrindo as asas e mergulhando direto pelo ar, uma seta emplumada voando por nenhum outro motivo senão a simples alegria da caçada. Mas Ark não era um Corvo. Sem asas e sem controle, ele não era um caçador, mas a vítima de uma emboscada da morte, prestes a reclamar seu prêmio. Ark fechou os olhos enquanto o telhado abobadado do Templo erguiase ao seu encontro. Então é assim que termina. UUUF! Ouviu-se um estrondo e Ark sentiu o ar deixar seu corpo. Milissegundos depois houve um crac ensurdecedor. Ark aspirou por um

segundo o bafejo de um estranho perfume, e tudo escureceu.

***

Estava tudo bem. Ark deixou-se levar, experimentando uma deliciosa quentura cobri-lo e envolvê-lo. A sensação infiltrava-se nele. Se aquilo era a morte, por que os dendrianos se preocupavam tanto com ela? Ele lembrouse de cair das nuvens, algo a ver com um rei. Agora não tinha importância. Podia só ficar flutuando ali para sempre. Os Mateiros Sagrados estavam certíssimos. Seu espírito com certeza estava abrindo caminho em direção ao rio Estio. Por fim, Ark acabaria passando para o outro lado e percorreria os ramos-via da Região Distante. Bem, aquela era uma viagem que valia a pena fazer. Ele tentou abrir os olhos, mas pareciam colados. Não importava. A escuridão era bem-vinda. Ark fungou. Um cheiro delicioso invadiu suas narinas. Aquilo não era incenso? — Meu Ark. Meu anjo caído! — A voz tinha um quê de histeria. — Volte. Por Diana, por Corvena, por tudo que é sagrado, volte! — Ai! — A voz coincidiu com uma súbita dor atravessando seu traseiro. Espere um segundo: os mortos não deveriam sentir o traseiro dolorido. — Ai! — repetiu. Tinha a sensação de que um diabinho de fogo o espetava nas regiões baixas com um tridente. — Louvada seja a Mãe! Você está vivo! Ark reconheceu a voz. E gemeu de dor quando por fim conseguiu erguer as pálpebras. Uma figura familiar preencheu seu campo de visão. — Sim, estou. Acho — murmurou ele finalmente. — Mas de onde você veio? Ouvi um estrondo, como se o Templo estivesse sendo atacado, e então alguma coisa caiu no chão. — Hã, Guardiã Goodwoody. Essa alguma coisa era… eu.

Ark olhou para o alto e viu no telhado o buraco que fora sua porta de entrada. Mas aquilo não explicava como ele ainda estava respirando. — Ah! — ela disse, os dedos apalpando o corpo de Ark. — Consegue se mexer? Não lhe ocorrera que sobreviver à queda poderia significar ossos quebrados. Ele apressou-se a flexionar os braços e as pernas. — Acho que está tudo bem. — É um milagre! — suspirou a guardiã. Seus dedos se afastaram dele carregando um punhado de juncos. Ark não tinha muita certeza sobre o lado milagroso da coisa. Ele olhou ao redor e viu que estava deitado no meio de um berço de palha. Ao atravessar o telhado, o teto de folhas também se soltara, amortecendo sua queda. — Eu estava tentando pegar… Agora se lembrava de tudo. Sua mão esquerda se abriu, revelando um objeto escuro brilhando à luz das velas. Uma pena. Uma pena de Corvo, uma pena da asa ou da cauda, malignamente afiada. — O quê? — perguntou a guardiã. — Nada. Como Ark poderia explicar que uma pena quase o matara? Não fazia o menor sentido. Segure a pena, arrebate a hora, ai de mim, me esconda, Senhora! A cantilena lhe veio à mente. Era o que ele estava fazendo. Segurando uma pena. Antes que pudesse escondê-la, a mão da guardiã disparou na direção da dele, os dedos tocando a pena. — Que o céu nos proteja! — Ela estremeceu, recuando com o choque. — Isso não é possível. — O quê? — perguntou Ark. — Um presente. E cá estava eu começando a perder a fé. Mas isso é uma questão sombria de fato. — Rugas surgiram na testa da sacerdotisa. — Há perigo e morte guardados em sua maciez.

Ark apalpou a pena. Era afiada, mas não exatamente capaz de matá-lo! — Se é um presente, quem o enviou? A sacerdotisa ignorou a pergunta e ficou em silêncio, as órbitas brancas e cegas tentando enxergar algo além da visão. — Assim como você é invisível para mim, quando chegar a hora, a escuridão ajudará a escondê-lo. — Certo… — replicou Ark. Sua cabeça doía. Goodwoody estava falando por meio de enigmas outra vez. — Você está com problemas, meu garoto? Ark percebeu o forro de seda vermelho-brilhante projetando-se sob o manto da guardiã. Para os Mateiros Sagrados, uma cor tão forte usada dentro do Templo era quase uma heresia. Mas quem mais manteria os altares impecáveis, as estatuetas enceradas e polidas, as velas aparadas e acesas? O que ele poderia dizer a ela? Ele já contara a Mucum, colocando-o em perigo. — Estou bem — mentiu, continuando rapidamente: — Exceto por alguns arranhões. Acho que vou estar um pouco dolorido amanhã de manhã. — Era o melhor que podia fazer. — Por favor. A senhora não me viu. Não posso explicar agora. A reverenda sorriu com tristeza. — Mas a pena falou comigo! Você deve acreditar em seus instintos. E saiba que não está sozinho. Aquilo não era uma resposta. Ele deslizou a pena silenciosamente para dentro da bolsa, sentindo-se frustrado. — Lamento que haja um buraco em seu telhado. A senhora vai ter problemas. — Nunca! Vou só dizer que uma ave… talvez um Corvo… deixou cair uma noz ao tentar quebrá-la. Uma noz bem grande, que foi destinada a alimentar os pobres na hora da colheita. — A guardiã sorriu com sua mentira criativa. — Agora, se ainda está na terra dos vivos, pegue uma vassoura e me ajude a arrumar esta bagunça!

Aquilo era loucura! Um minuto atrás, Ark estava prestes a morrer, e agora seguia mancando em direção ao armário para ajudar a varrer uma pilha de palha. Ele se encolheu quando os diabinhos lhe deram mais algumas espetadas no traseiro para completar. Ark voltou e começou a varrer a palha, sentindo uma rajada de ar frio vinda do buraco no telhado. A Guardiã Goodwoody apoiou-se em seu cajado, teimosa como uma estátua, instando Ark a falar. Ele precisava lhe dizer alguma coisa. — Eu já deveria estar morto. A senhora ouvirá as notícias. São um tanto exageradas. — Fico feliz em saber disso! — O rosto da guardiã enrugou-se de deleite. — Sentiria muita falta da sua companhia. Ah, não me entenda mal. Eu adoro os hinos e as preces, mas a ideia de você correndo na direção do céu sempre me alegra. Às vezes acho que você está mais próximo do espírito das florestas que meus mais estimados colegas. Esse seu presente confirma isso. Um relógio soou a distância e Ark de repente se deu conta de que estava atrasado. — Tenho que ir. Desculpe. — Ele rapidamente empurrou a palha para um canto. — Minha família… Não vou poder ir para casa por algum tempo. — Ele retorceu as mãos, odiando-se por pedir. — Por favor, a senhora poderia visitá-los se tiver alguma comida sobrando? — É para isso que serve a colheita. — A Guardiã Goodwoody abriu os braços, indicando as várias prateleiras repletas de maçãs, abóboras, abobrinhas e mais, tudo cultivado nas lavouras suspensas. — Agora vá. Antes que ele pudesse se afastar, porém, a guardiã agarrou-lhe o rosto com as mãos grandes e rapidamente beijou-lhe o topo da cabeça. Quando Ark estava saindo, um raro raio de sol encontrou o caminho do teto até o rosto da Guardiã Goodwoody, voltado para cima. O garoto estava em suas preces. O que mais uma velha cega poderia fazer?

Correndo, Ark quase deu um encontrão em uma fila de Mateiros Sagrados, os rostos perdidos no interior dos capuzes, os corpos envoltos em tecidos negros como penas de Corvos, enquanto se arrastavam em uma longa e ondulante fila, murmurando suas preces por proteção. O som que produziam era como o zumbido de abelhas, assombroso e hipnótico. Ark logo puxou o chapéu sobre o rosto, curvando-se quando os sacerdotes passaram por ele e entraram no Templo. Ninguém ergueu os olhos. Ninguém estava interessado. Ele esperava que a guardiã conseguisse convencê-los de sua história. Ark saiu correndo, ciente da hora, sua queda da plataforma ficando para trás à medida que ele descia intermináveis lances de escada, mergulhando nas sombras da floresta. Talvez ele tivesse imaginado tudo. Como podia ter caído daquela altura e escapado apenas com arranhões? Mas a pena era bastante real. Quando ele disparava pelos ramos-via, ela abriu caminho pela costura da bolsa e arranhou sua pele. Finalmente ele alcançou, sem fôlego, o local do encontro, empurrando a pena de novo para dentro da bolsa. No dia anterior, haviam combinado de se encontrar naquele canto sossegado da via principal. Estava atrasado, mas Mucum, como sempre, estava ainda mais. Seu local de trabalho encontravase aninhado entre as folhas a uns cem metros dali. Aquela estação de esgoto era uma das muitas espalhadas pelo país. Era um submundo de Arborium, escondida no subdossel, como roupa suja no fundo do cesto. onde há dendrianos, há caca, e onde há caca, há negócios!, dizia o lema da empresa. Os lucros obviamente não haviam sido gastos no comprido galpão caindo aos pedaços ou na plataforma em que ele se equilibrava. O prédio era feito de sobras de tábuas e ferro, emendados, abraçados à lateral do tronco. O esgoto cru de toda a vizinhança, canalizado pela gravidade, jorrava na estação, vindo de vários canos e canais de madeira. O péssimo estado da construção dava-lhe pelo menos uma vantagem: o vento que assoviava em todos os cantos proporcionava a tão necessária ventilação e levava embora o pior dos cheiros. Não que Ark

ainda percebesse o fedor. Com o tempo, você se acostuma a qualquer coisa. — Psssiu! Ark quase despencou da borda. — Não tem graça nenhuma. Você sempre pula em cima das pessoas assim? — Só dos mortos! Quem podia imaginar que um dia eu ia assustar um fantasma? — Apesar do corpanzil, Mucum podia movimentar-se tão silenciosamente quanto uma cabra das árvores. — Dormiu bem? — O que você acha? — Ark não falou nada sobre sua visita ao Templo. Mucum não tinha tempo para a ladainha dos Mateiros Sagrados. E se visse a pena do Corvo, provavelmente correria por quilômetros. — Precisamos ver o rei. — É isso aí, amigão. E já pensei nisso. Mucum correu os olhos pela floresta, apreensivo. — E pare de agir como um vilão! — Mas é o que eu sou! — protestou Mucum. — Ótimo. Pode roubar algumas ferramentas para mim, então? Perdi as minhas, lembra? Sem seu equipamento, Ark era como um Corvo sem bico. Anormal. — Está bem. De qualquer forma, Jobby Jones está fora de combate. Venha e pegue algumas você mesmo. O chefe deles, o Sr. Jones, estava sempre dormindo. Era um dos benefícios do emprego. Ark seguiu Mucum por uma ponte de cordas que balançava perigosamente. Mucum olhou para trás. — Acho que você está um pouco trêmulo. Está tudo bem, tem certeza? — A ponte está balançando. E eu também! Ark se encolheu. Quando chegaram à outra extremidade, Mucum levou o dedo aos lábios. Mesmo do lado de fora, eles podiam ouvir os roncos. Lia-se em uma placa entalhada na madeira em marrom e branco:

ESTAÇÃO EXECUTIVA DE ESGOTOS Além deste ponto, acesso restrito aos funcionários Sob a placa, alguém rabiscara: Que ponto? É tudo um monte de… A última palavra fora riscada com uma faca. Ark franziu a testa. — Tem certeza? Por que você não entra? — Você se preocupa demais, amigão! O som de passos leves não acordará o velho, eu garanto. Mucum puxou a maçaneta, e eles entraram. A sala que se estendia adiante parecia uma cozinha enorme e malcheirosa, embora não fosse comida o que o cardápio oferecia ali. Vários canos e miniaquedutos serpenteavam pelo telhado e pelas paredes e descarregavam em dois cochos enormes que corriam por toda a extensão do galpão. Estes borbulhavam, liberando seus gases nocivos no primeiro estágio da compostagem. Grandes pás de madeira reviravam os dejetos lentamente, acionadas por guinchos e uma série de engrenagens e correntes que subiam até velas lá no alto da árvore. Os cochos tinham níveis de profundidade codificados por cores marcadas na lateral. Se o nível estivesse alto demais — por exemplo, quando havia um surto de diarreia —, um alarme era disparado. Jobby Jones, o gerente de linha, então sairia correndo e gritando: “Chegando! Chegando!” e, feliz, deixaria para os encanadores o trabalho de liberar os cochos no que era chamado de “descarga” — um grande buraco no chão. O que sobrava, uma vez finalizado o processo de compostagem, era enviado por meio de canos pela floresta até as lavouras suspensas, para as plantações das quais os dendrianos dependiam. Não era o melhor sistema do mundo, mas funcionava e dava a todos um meio de vida. Jobby Jones governava aquele império subterrâneo com punho de madeira maciça quando necessário. Hoje, pelo menos, seu corpo

volumoso estava alegremente acomodado no sofá-cama no canto, o nariz se contraindo, com certeza sonhando com perfumes que somente os ricos podiam pagar. Esguicho estava enroscado no chão perto do cocho mais próximo, aproveitando um momento de descanso. Era sua tarefa resolver quaisquer entupimentos e cuidar do fluxo geral. Ser um desentupidor de caca não era o melhor emprego do mundo, mas alguém tinha de fazê-lo. — Ei! — sussurrou Mucum. — Aqui! Ele apontou para o armário de ferramentas, mas Ark havia sido atraído para um velho mapa preso à parede, coberto por manchas familiares. O castelo do Rei Quercus estava no centro, um H floreado indicando a capital, Heléboro. Seus olhos, porém, desviaram-se para leste, oeste, norte e sul, identificando os poucos povoados ainda habitados espalhados por áreas distantes da capital: os sindicatos de carroceiros de Cowley, os Arsenais da Zona do Musgo, os padeiros de Travessa do Pudim. E entre essas colmeias de atividades cuidadosamente ilustradas, o mapa tinha apenas nomes impressos para indicar cidades e vilarejos havia muito desaparecidos, restando apenas ramos-via apodrecidos e buracos cobertos de teias de aranha — Ulm, Bronco, Fel, Gangrena e as cidades assoladas pela peste ao norte. Esses eram lugares aos quais nenhum dendriano ia por vontade própria. Quem iria querer entrar em contato com fantasmas ancestrais? Ark traçou com o dedo um trajeto para a esquerda, na direção oeste da cadeia de montanhas além da qual se supunha que houvesse uma floresta intocada: a Floresta dos Corvos — árvores vazias, livres de dendrianos, áreas verdes repletas de caminhos sombrios e histórias sobre o que acontecia se você descesse até a floresta. O que Goodwoody quisera dizer sobre a pena ser um presente Dela? Certamente a Floresta dos Corvos, com sua ameaçadora rainha banqueteando-se com as entranhas de qualquer dendriano estúpido o bastante para ser apanhado lá, era um mito, não? Mucum enfiou um cinto de encanador nas mãos de Ark. — Vai ficar sonhando acordado? Venha, vamos sair desse buraco cheio

de caca antes que seja tarde demais — cochichou ele, agarrando o amigo pela mão e o empurrando na direção da porta. Mucum tinha razão. O que havia com ele? Começou a afivelar o novo cinto, mas seus dedos se atrapalharam e as ferramentas caíram com um estrondo no chão. Que desastre! O nariz de Jobby Jones fez mais do que se contrair quando um par de olhos pequenos e brilhantes se abriram de repente e esquadrinharam o entorno. Jones estava acordado. E pior: olhava diretamente para os garotos. — Sinos de Olmos! Se você não estava morto antes, agora vai estar! — sussurrou Mucum.

Jobby Jones tentava entender o que seus olhos lhe mostravam. Naquela manhã mesmo eles haviam feito uma parca coleta de moedas para a família Malikum. Então, o que aquilo significava? Ark e Mucum ficaram paralisados. Como podiam explicar aquilo? O garoto morto estava vivo. Não havia dúvida de que seu chefe puxa-saco iria farejar qualquer possível recompensa por informar aos guardas de Grasp aquele fato fascinante. A cama de Jones ficava perto da porta e ele já ia se levantando, bloqueando-lhes a fuga. Mucum teve uma ideia repentina. — Comece a gemer! — sibilou ele pelo canto da boca. Não só Ark estava encurralado, como seu companheiro havia enlouquecido. — É o quê? Os lábios de Mucum desenharam uma única e silenciosa palavra: morto! Uma fração de segundo de hesitação, e então Ark compreendeu. Embora nunca tivesse sido reconhecido por suas habilidades teatrais, o que tinha a perder? Ark levantou os braços e gemeu alto: — Erghhhhh! Para melhor efeito dramático, deixou a língua pender e ficou vesgo. Mucum reforçou com a voz trêmula: — Aaaah, Diana! É o… fantasma de Ark! Ele veio nos assombrar por

tratá-lo mal! Os olhos do chefe se esbugalharam. Nada fazia sentido, então aquilo não podia ser real. Sua voz aguda guinchou: — Deixe de ser idiota e volte para… Ark não ia desistir de estar morto assim tão fácil. Ele seguiu lentamente na direção de seu odiado chefe valentão. A dor na perna, causada pela queda mais cedo e que o fazia mancar, de repente veio bem a calhar. — Jobby Jo-ones! Jobby Jo-ones! — uivou. — Eu venho do Bosque dos Mortos Adormecidos e cruzei o rio Estio para me vingar de vocêêêêê! Ark acrescentou um sonoro e final “Uahhhhhhh!” para dar efeito. Àquela altura Esguicho estava sentado no chão, chupando um polegar de aspecto desagradável, observando a diversão se desenrolar. Ele não tinha muita certeza se os vapores fedorentos não estavam lhe causando alucinações. Quando Ark deixou uma trilha de saliva escorrer dos lábios, a parte mais burra do cérebro de Jobby Jones tomou uma decisão. Hora de desligar. O chefe desmaiou, desabando não muito graciosamente no chão. Mucum e Ark dispararam na direção da porta. — Esguicho! Mais tarde eu explico! Faz um favor pra gente e diz pra Jobby Jones que ele imaginou tudo isso — gritou Mucum quando mergulharam para a liberdade. Enquanto corriam, afastando-se da estação de esgotos, Ark não conseguia parar de sorrir. — Essa foi… — Brilhante! Esquece essa história de encanamento, você devia estar nos palcos! Você ia acabar com eles… todo dia! — Os olhos dele quase explodiram! — Ark podia sentir a risadinha crescendo em seu peito. Aquilo tinha superado atravessar o telhado do Templo. — Uahhhh! — tornou a gemer sem se importar com quem ouvia, por um segundo sem se importar com nada. Mas de repente parou. — Acha que escapamos dessa?

— Ouça, Malikum. O velho Jones não vai denunciar um fantasma, vai? Ele viraria a piada da cidade. E Esguicho vai contar uma boa história pra ele. Vamos! — É, acho que sim. — Por falar nisso, por que tá mancando? — Não sei do que você está falando — disse Ark, embora seu traseiro latejasse como se tivesse vida própria. Não era de surpreender depois de uma queda de cem metros. Talvez a Guardiã Goodwoody tivesse razão em relação a milagres, e Ark não estivesse se iludindo. — Espere um segundo. — O garoto habilmente mudou de assunto. — É melhor você ficar com isso. Ark tirou o chapéu e o passou para ele. — Olha, sei que quer agradecer por eu tirar você daquela situação, mas… — Mucum inspecionou o boné seboso e cheio de manchas. Ark revirou os olhos. — Seu cabelo se sobressai como papoulas em uma pilha de caca. Ponha isso — disse. — Tem razão! — Quando Mucum cobriu a cabeleira ruiva, passou de um brutamontes alto e desajeitado que podia ser visto a mais de um quilômetro de distância para apenas um brutamontes alto e desajeitado. — Então, estou digno de uma audiência com o rei?

***

Vinte minutos mais tarde, e depois de vários lances de escada tronco acima, viram-se diante de uma porta simples e bamba, emoldurada por luz e cercada por um muro alto de tábuas que se estendia em ambas as direções. Mucum inclinou-se para examinar a fechadura. — Tem uma chave?

— Não. — Foi o que pensei. Vou ter de usar minhas outras habilidades. — O quê? Você vai arrombar a fechadura? Mucum e arames delicados, por alguma razão, não combinavam. — Não, idiota. Diana me deu esse corpo por alguma razão, certo? Ele se virou até que seu traseiro estivesse de lado para a porta e empurrou com força. A fechadura enferrujada não era páreo e a porta se abriu. Ark olhou à volta, os olhos arregalados. — Você poderia ser preso por isso! — Ora, por ter um traseiro que poderia lutar por Arborium? Esse é o menor dos nossos problemas, amigão! Se ele não voltasse para casa aquela noite, seu pai o esperaria acordado, preocupado. Mas o que poderia fazer? Quando Mucum puxou Ark pelo vão da porta, eles por fim se viram livres das sombras do subdossel. Em vez de madeira sob os pés, havia grama. Ark rapidamente fechou a porta atrás dele, então voltou-se para apreciar a vista. As nuvens também haviam desaparecido, deslizando no céu, indo incomodar outra parte de Arborium. Ele havia esquecido que o sol ainda brilhava acima da copa das árvores. Pelo menos o lugar estava vazio. Estavam seguros, por ora, mas quanto mais se aproximavam do castelo, mais nervoso Ark ficava. — Que maravilha! Mucum afastou-se do muro e deslizou, descansando as costas em uma macieira carregada de frutas maduras. O pomar orlava a borda de uma gigantesca lavoura suspensa, uma das muitas que circundavam as áreas de agricultura, seus hectares suspensos bem alto, acima da terra. Essas plataformas enormes e muradas inclinavam-se em um ligeiro ângulo para captar o sol, e nelas havia plantações de trigo, cevada e milho. Ark sempre se maravilhava com a estupenda engenharia necessária para apoiar o peso do solo, cuja espessura era de pelo menos três metros no topo das plataformas.

A colheita já estava sendo feita, deixando um campo de tocos que mais parecia a barba malfeita de um gigante. Dali a uma semana os dendrianos se reuniriam no palácio para celebrar a colheita do ano, com um festival de fogos de artifício para encobrir a traição que crescia lá embaixo. Mucum pegou uma maçã e a mordeu. — Nada supera o sabor de uma Mary Pippins! — Você não devia roubar. Ark franziu a testa em desaprovação. — Ah, pelo amor de Diana. Você tá começando a falar como a minha mãe. Dá um tempo. Ei! — Mucum se animou. — A cara do velho! Aquilo não tem preço! Ark esfarelou um pouco de terra entre os dedos. Algumas ovelhas pontilhavam a grama. A distância, espigas douradas de cevada curvavam-se a uma leve brisa. — Você não entende, não é? É mais do que uma questão de fugir do trabalho. Isso tudo vai ser derrubado, destruído! — Espere aí! Só porque demos umas risadas não quer dizer que eu não tenha pensado nisso. — Preciso falar com o rei. O tempo está se esgotando. — Ah, certo. Arktorious Malikum, quatorze anos, trabalhador dos esgotos, apresentando-se para revelar uma trama maligna… hã… — Mucum franziu os lábios, concentrando-se — … já sei! para… matar o rei! Me levem ao seu líder! Isso vai funcionar mesmo, vai sim! — Fico feliz que esteja se divertindo tanto. Tem alguma ideia melhor? — Na verdade, tenho. Você ficaria surpreso com o que tenho escondido aqui! Mucum bateu na lateral da cabeça como se uma sabedoria milenar estivesse guardada ali. — Bem, espero que seja melhor que seus modos. — Vamos comer um pouco daquele queijo e talvez eu conte meu plano brilhante.

***

Enquanto se aproximavam dos limites da corte, o sol de outubro descia pela floresta. A plataforma por debaixo a casa do rei Quercus era a maior do país. Algumas das vigas que sustentavam as fundações tinham mais de trinta metros de espessura e mais de um quilômetro de comprimento. O Palácio de Barkingham propriamente dito era maciço, uma gigantesca cabine de madeira com ameias. Àquela hora da tarde os agradáveis jardins paisagísticos estavam cheios de casais namorando. O aroma de madressilva pairava no ar, e famílias de nobres se reuniam para cear, fazendo piqueniques na grama, sob cerejeiras ornamentais plantadas em canteiros elevados. Famílias felizes. Ark ansiava em fazer parte daquilo, mastigando uma coxa de frango e batendo papo ao cair da noite, sem nenhuma preocupação. Apesar da injustiça, aquele ainda era seu país, ainda digno de ser salvo. Talvez um dia todos fossem bemvindos ali. Um sonho louco. — É assim que a outra metade vive, hein? — murmurou Mucum. — Seja como for, a gente tem um trabalho pra fazer. Tá vendo? Ark focou os olhos. Uma tampa de bueiro padrão encontrava-se engastada entre as tábuas do piso, a apenas poucos metros do muro externo. Ele já vira centenas delas em sua curta vida. Aquele poderia ser o tíquete de entrada deles. — Agora lembre-se do que eu disse. Encontro você em um minuto. Mucum começou a andar casualmente na direção do bueiro. Ark estudou o cenário. Ainda bem que os casais tinham olhos apenas um para o outro, e as crianças robustas da corte estavam ocupadas demais se empanturrando. Um encanador fazendo seu trabalho não era motivo de preocupação. Com o guarda, a história era outra. Só de pensar naquilo a testa de Ark começou a suar.

Ele não tinha escolha. Era hora de agir. A escada diante do castelo era ampla e decorada com ouro. Os espelhos dos degraus exibiam entalhes de alces, javalis, águias e Corvos, todos curvando-se diante do rei. No alto, uma imensa porta dupla de carvalho erguia-se na direção do céu. O sol, agora alaranjado ao mergulhar no horizonte, iluminava lá em cima a bandeira de Arborium: uma folha de carvalho retorcida no formato de uma coroa. As portas guarnecidas de tachões estavam firmemente fechadas. O guarda que montava sentinela, com seu chapéu cerimonial no formato de uma bolota de carvalho gigante, fechou a cara ao ver um garoto sujando seus metais recentemente polidos. — Sim? — perguntou, ameaçador. O homem já devia ter sido uma montanha de músculos, mas suas feições agora despencavam, graças a um excesso de tortas e muito tempo passado de pé por ali, entediado até a raiz dos cabelos. Ark estava por conta própria. — Eu gostaria de… quer dizer… o rei. Bem… — Bastava de discursos. — Ele corre perigo! Ouvi uma conspiração, sabe… Suas palavras foram interrompidas. — Sei. Estou entendendo. E o que estou vendo é um zé-povinho! Ótimo. O homem tinha sido distraído. Pelo canto do olho, Ark viu Mucum soltando o primeiro parafuso do bueiro. O encanador estava em plena vista. Ark engoliu o medo. — Seus amigos o desafiaram a vir aqui me dizer isso? O guarda inclinou-se e Ark sentiu um cheiro de cerveja choca. — Não! Não era um desafio. Era um plano. Um plano idiota e impossível. Se o guarda se virasse alguns centímetros… — Bem, não estou vendo nenhuma conspiração aqui, a menos que você tenha sido enviado para assassinar nosso amado líder… — O guarda tornou a se endireitar e seus ombros sacudiram ao rir da própria piada. Mas

de repente ele avançou, agarrou Ark com força e o ergueu até que os olhos de ambos estivessem no mesmo nível. — Já nos divertimos um pouco, você e eu. Agora volte para o buraco miserável de onde saiu e me deixe fazer meu trabalho em paz, protegendo o rei de perigos de verdade, certo? Ele o soltou, e Ark desabou, desconjuntado, no chão. O garoto se permitiu deslizar os olhos por um segundo na direção do amigo, que travava uma batalha com o último parafuso. Ark sabia que aquele iria ranger. Instinto de encanador. A ferrugem nunca era silenciosa. Ele precisava fazer alguma coisa! Ark levantou-se de um salto e gritou o mais alto que pôde para o guarda: — Você verá! Problemas estão se aproximando! Em vez de correr na direção do som do parafuso se soltando, o guarda pôs a mão no punho da espada. — Vão estar mesmo se você não der o fora daqui, seu maluco! — sibilou ele. O coração de Ark martelava no peito quando ele se retirou, descendo os degraus, bem a tempo de ver a cabeça de Mucum desaparecer sob a passagem. Ele estava lá dentro! Tinha funcionado! Agora seu único problema era como desaparecer também, pois os olhos do guarda seguiam cada movimento seu. — Eiê! Ark e o guarda viraram a cabeça na direção do som. Era uma invasão que não podia ter acontecido em melhor hora. Num momento, o guarda olhava furioso para o garoto que claramente havia perdido o juízo, e no seguinte, via-se cercado por uma algazarra de garotas gritando, desesperadas por um autógrafo dele. Devo-lhe uma, Diana! Não era a melhor prece em Arborium, mas Ark estava grato de verdade. Ele correu para o bueiro, deslizando as pernas pelas bordas do buraco. — Não temos a noite toda! — disse Mucum, na escuridão abaixo.

— Me dê um desconto! Nosso amigo está muito ocupado sendo adorado por algumas turistas. Se Ark não estivesse tão aterrorizado, teria rido. Estavam dentro. Próxima parada, o rei. No momento exato em que Ark ia puxar a tampa do bueiro sobre sua cabeça, uma voz o fez parar. — Ei! O que acham que estão fazendo? Ele ficou paralisado. Tinham chegado tão perto. Agora estava tudo acabado.

Perigo ao norte Mais uma vez, Petrônio teve a sensação de estar no lugar errado, na hora errada. — O que o garoto está fazendo aqui? Grasp nem ao menos se referia a ele pelo nome. O Sumo Conselheiro atravessou o piso cheio de tapetes, claramente pouco à vontade. — Acalme-se. Não é melhor do que tê-lo escondido na área de serviço? Lady Fenestra estava sentada diante da lareira em uma cadeira alta de carvalho, fitando as próprias unhas. Seus lábios curvavam-se para cima, divertidos. — Essa é a sua ideia de piada? Grasp olhou brevemente para o filho desobediente. Petrônio encolheu-se na direção da porta. Fora sugestão da senhora têlo presente na reunião, mas agora ele não tinha certeza de ter feito a coisa certa. — O garoto é… especial. — Em que aspecto? Com exceção de ser especialmente capaz de deixar um espião escapar e fazer meus homens tomarem parte em uma louca perseguição? Sorte dele que o garoto encanador decidiu pôr um ponto final em tudo. — Ele voltou-se para Fenestra. — Fora essa pequena falha, talvez a senhora tenha descoberto talentos que ainda não percebi. Reconheço que

ele é impiedoso de uma forma pouco comum em um simples jovem. Mesmo seus elogios eram ferinos. — Fico feliz que compreenda. Agora, vamos ao que interessa. — A voz de Fenestra assumiu um tom que exigia total atenção. — Preciso ter certeza de que daqui a poucos dias seus associados vão segui-lo ao se insurgir contra o rei. — É claro que vão! O homem não tem pulso firme e Arborium está podre. Ele começou com força e determinação, mas essas qualidades se extinguiram, deixando apenas uma casca seca do líder que ele foi um dia. É hora de podar essa árvore. — Grasp fazia discursos novamente. — Mas não tenho os homens necessários para o trabalho! Petrônio viu os perdigotos pontilhando a barba do pai e se deu conta de que o Sumo Conselheiro era, afinal, apenas um homenzinho. Também percebeu pela primeira vez que, depois de anos de humilhações públicas e surras não tão públicas, ele desprezava o pai. — Nosso grande império tem exércitos que inundariam esse pequeno remanso. — Ela estalou os dedos como se aquilo fosse tudo de que precisasse. — Mas, infelizmente, existe o problema de certo gás mortal. Ela olhou significativamente para Petrônio. Estranho pensar que havia apenas algumas horas ela mesma estivera à beira da morte. — Conseguimos produzir uma minúscula quantidade de vacina, mas não o suficiente para prover uma invasão. Portanto, o uso da força necessária deve vir de outro lugar. De dentro. Proponho que usemos seu filho para uma pequena tarefa ao norte, na direção dos Arsenais. Existe um comandante lá que, digamos, pode ser simpático à nossa causa. O coração de Petrônio começou a bater mais rápido. Então era aquilo que Fenestra tinha em mente! — Isso é absurdo! O garoto indo sozinho para a Zona do Musgo? Vão transformá-lo em carne moída! O problema não era o que aconteceria a ele, mas sim o dano à reputação do Sumo Conselheiro.

— Ai, será que tenho de explicar tudo? Sua bem conhecida presença por lá pode despertar suspeitas, não concorda? Ao passo que um garoto pode viajar como um fantasma, e a mensagem que ele carrega pode ser transmitida com facilidade. Também acredito que esse jovem aqui seja mais do que capaz de cuidar de si mesmo. Se Petrônio pudesse ronronar, ele o teria feito. — Por que não vai a senhora? — indagou Grasp. — Parece ter a capacidade de se deslocar por nosso reino sem ser vista! — O quê? Uma mulher no mundo das espadas, bestas e outras armas primitivas que sua cultura tanto aprecia? Eu chamaria atenção, como vocês dizem, como uma flor no inverno! Grasp não estava convencido. Ele sacudiu a cabeça, a mente tomada por tudo que poderia dar errado. Lady Fenestra não tinha dúvidas. — Venha, jovem Petrônio. Estou certa de que seu pai pode lhe ceder seu melhor cavalo. Petrônio se viu apreciando a guerra de vontades que se iniciava, principalmente porque seu pai estava perdendo. O conselheiro parecia prestes a explodir, mas pensou melhor. Fez-se um silêncio tenso. — Fale com meu cavalariço nos estábulos. Ele pode levar Mercúrio. Terei de me virar com um dos velhos pangarés. — Puxou as janelas que iam do teto ao chão, abrindo-as com violência, como se o ar fresco pudesse soprar para longe toda aquela loucura. A oeste, o sol começava a mergulhar sob o velho país. Quando tornasse a se levantar, o que eles teriam colocado em andamento? — Daqui a pouco tenho uma reunião com Quercus sobre as medidas de segurança para o Festival da Colheita — continuou Grasp, a linha de seu maxilar rígida. — Vou representar meu papel e assegurar a nosso sábio rei que tudo está bem. Ele saiu para a sacada. No que lhe dizia respeito, ambos estavam dispensados. Lady Fenestra sorriu maliciosamente para Petrônio.

— Está resolvido. Há muito que fazer e pouco tempo. Siga-me! — Hã… sim. Enquanto Petrônio deixava o pai de mau humor em seu escritório, Lady Fenestra retirava-se para as sombras do corredor e cochichava para ele: — Espere! Podemos confiar nos guardas, mas meu rosto será motivo de fofocas se visto por outros criados. Ouça com atenção. O homem que você procura chama-se Flint. — Julius Flint? Petrônio parecia devidamente impressionado. Quem não ouvira falar dele? Lady Fenestra arqueou as sobrancelhas. — Eu estava certa em relação a você. Petrônio estava desesperado para impressioná-la. — Quando eu era criança, na hora de dormir, minha babá costumava me dizer que, se eu não fechasse os olhos, Flint iria arrancá-los. Sempre achei que isso fosse um conto de fadas até que meu pai me contou como o jovem Julius Flint, o segundo em comando dos Arsenais, aos vinte e poucos anos, abafou uma revolta civil quando Quercus teve seu trono ameaçado. — Sim? — Assim que os manifestantes foram cercados, ele agarrou um no meio da multidão e o pendurou sobre a borda do galho, avisando que iria jogá-lo dali a menos que ele informasse quem eram os líderes da revolta. O homem ficou mais do que feliz em satisfazê-lo. Como agradecimento, Flint o jogou lá embaixo. — Violento, mas eficaz! — observou Lady Fenestra. Petrônio agora havia soltado a língua. — Isso é apenas metade da história — prosseguiu ele. — Os líderes foram despachados da mesma maneira, um a um. O restante da multidão ficou à espera de sua punição, pensando em deduções salariais, multas talvez. Adivinhe o que ele fez? — Não é muito difícil.

— Ordenou que seus homens empurrassem todo o grupo, dizendo mais tarde que cada um deles… homens, mulheres e crianças… havia resistido à prisão e que o resultado fora muitíssimo infeliz. Ao que parece, Quercus ficou tão furioso com o que havia sido feito em seu nome e sem sua aprovação que mandou todos eles para o norte. Longe dos olhos, longe do coração. Mas, na verdade, dizem que, no fim, o esmagamento da revolta trouxe a paz duradoura a Arborium. Esse foi o último levante. Todos os dendrianos conhecem essa história. Depois que o velho Ponticus teve o ataque cardíaco, Flint foi nomeado comandante-chefe… — Petrônio de repente empalideceu. — E esse é o homem que a senhora quer que eu encontre? — Exatamente! — Ela enfiou a mão nas dobras do manto e puxou uma bolsa que tilintou ao ser entregue a ele. — Os velhos métodos são os melhores quando o assunto é persuasão. E, pelo que você diz sobre seu rei, talvez seja mais fácil lidar com ele do que pensei. Agora, quero que entregue essa mensagem e reforce o fato de que só temos alguns dias para nos preparar. Quando Lady Fenestra terminou de sussurrar suas instruções precisas, deu meia-volta e desapareceu por uma porta lateral. Petrônio estava por conta própria. Ainda naquela manhã morrera de tédio em uma sala de aula abafada. Agora estava bem melhor! Tinha uma missão. A confiança de alguém poderoso. Ele ordenou ao cavalariço que selasse o cavalo e partiu pelo galho-via, os cascos cobertos de borracha agarrando-se à madeira enquanto ele galopava na direção do pôr do sol. Cinco minutos depois, seu pai também estava a caminho, ladeado por dois guarda-costas. Seguia na direção da corte de Quercus. O velho cavalo Shire que montava mal conseguia acompanhar os dois guardas. Grasp amaldiçoou Maw, Lady Fenestra e principalmente seu filho enquanto o cavalo trotava devagar, sem pressa, pelos atalhos. Naquele ritmo, só chegaria à meia-noite. A viagem de Petrônio seria mais rápida. Mercúrio, um garanhão cinza-

prateado, fazia jus ao nome. Eles voavam ao longo dos amplos galhos-via, marcando um ritmo abafado à medida que o sol lentamente mergulhava no horizonte e os bosques se enchiam de sombras que se alongavam. Petrônio não se importava com os detalhes do Código da Alta-estrada. Os pedestres dendrianos eram um incômodo. Felizmente, a maioria ouvia o cavalo antes que ele estivesse em cima deles e saía do caminho com um pulo, dedicando ao condutor vários gestos que certamente não eram nada corteses. As áreas habitadas logo foram deixadas para trás e Petrônio se viu sozinho, seguindo para o norte, para o território desconhecido. Ele nunca antes estivera tão distante, nunca vira por si mesmo como todo o país era na verdade uma grande floresta entrecruzada. Parou um momento para deixar que o cavalo bebesse água em um cocho de madeira encostado a um tronco velho e abandonado. Dos dois lados da alta-estrada deserta as árvores se rendiam à escuridão. Sua mente pôs-se a divagar, fixando-se por um momento em uma figura de madeira castigada pelo tempo, representando um Corvo, coberta com fitas pretas esfarrapadas. O velho santuário no acostamento da estrada estava quase oculto pela hera, mas fez Petrônio estremecer. Os atalhos desertos ainda eram pontilhados com esses símbolos da antiga religião. Quando menino, ao acordar chamando pela mãe que não estava mais lá, nas sombras de seu quarto a babá inventava histórias. Sua principal intenção parecia ter menos a ver com confortá-lo do que com matá-lo de medo. Uma das favoritas dela era a história de Chapeuzinho Verde, que se afastou demais da segurança de casa até que a Rainha-Corvo, disfarçada de vovozinha, convidou-a para entrar em um pequeno chalé no meio do nada. Um caldeirão com um cheiro delicioso estava no fogo e só precisava de mais um ingrediente… Naquele ponto da história, a babá sempre o agarrava e gritava: Para a panela com você! Corvena vai dar uma festa, Açúcar, condimentos, e nervos também têm vez

Duas pernas e uma cabeça, e de você nada mais resta Vamos servir o ensopado, aah, que eu já sou freguês! Madeira podre! Um monte de histórias da carochinha. Ele ajeitou a capa em torno do corpo e puxou a rédea com força, apertando o freio na boca de Mercúrio. — Já chega. Você não é uma garrafa d’água, é? Ele cravou os calcanhares nos flancos do animal e partiu a galope pela trilha. Gralhas empoleiradas alçaram voo grasnando, assustadas com o estrépito dos cascos. Uma luz cinzenta, derramando-se de uma lua crescente, transformava em morros e vales a floresta que ladeava a altaestrada. A principal rota Norte-Sul era relativamente reta. Sob as folhas mais altas, ela seguia ao longo dos galhos maciços e aplainados com pontes reforçadas que os unia. À medida que a alta-estrada transpunha o espaço entre as árvores distantes, andaimes projetavam-se para abraçar os gigantescos troncos curvos. Petrônio passava em disparada por esses caminhos solitários, instando o corcel adiante, ao som do vento que assobiava em meio às folhas. À medida que cavalgava, Petrônio pensava em Fenestra. Ela era tão estranha, tão diferente, especialmente se comparada aos colegas maçantes da faculdade. E como seria Maw? A mulher fazia com que parecesse tão exótico. Depois de ajudar Fenestra a se levantar, enquanto faziam o caminho de volta após a dramática quase morte dela naquela tarde, a mulher lhe falara de maravilhas que ele mal podia imaginar. Cidades de vidro e metal que deslumbravam os olhos, máquinas voadoras e torres que espetavam o céu e abrigavam milhares de pessoas! Ele não sabia, mas sua mente tinha sede. Sua vida até então fora limitada por uma casca. Agora, porém, o que aquela estrangeira oferecia… Petrônio cochilou. Ou, pelo menos, pensou ter cochilado. Teriam se passado horas ou minutos? Tudo que ele sabia era que havia uma diferença no ritmo. Seus olhos se abriram bruscamente e logo ele estava alerta. Para

começar, fazia mais frio, como se ele houvesse cavalgado até a estação seguinte. Uma névoa adiantada de outono havia baixado de repente, suavizando a paisagem e reduzindo a visibilidade a apenas vinte metros de distância. Seu manto de cavalgar já estava úmido por causa do orvalho. A estrada não parecia diferente, um pouco mais rústica talvez. Então ele se deu conta do que havia mudado. O caminho à frente encontrava-se ladeado por lampiões a gás, criando halos na neblina. A maior parte deles, porém, fora estilhaçado, de modo que apenas um em cada dez emitia seu brilho débil. Além disso, as laterais do galho estavam repletas de lixo — restos de comida, roupas velhas, cestas de vime retorcidas. Por que um lixeiro não as havia jogado lá embaixo? As próprias árvores eram entalhadas e cinzeladas com estranhas marcas que pareciam rabiscos. Ao observar mais de perto, ele percebeu que algumas das inscrições continham imprecações que nem mesmo ele conhecia. O local era um depósito de lixo. Enquanto absorvia o novo cenário, Petrônio começou a se dar conta de que alguns dos espaços sombrios espreitando nas laterais do galho-via não eram na verdade sombras. Ele puxou as rédeas e o cavalo passou do meiogalope ao trote e daí à imobilidade. Petrônio virou-se na sela. Atrás dele, figuras se destacavam da densa escuridão e começavam a se mover em sua direção. Ao mesmo tempo, diante dele, pôde ver outra pessoa movendo-se, indo recostar-se em um dos postes com o lampião intacto, limpando as unhas da mão esquerda com uma faca, como se esperasse descobrir algum tesouro debaixo da sujeira. A cabeça do garoto era raspada, exceto por três tranças esfiapadas na parte posterior, entretecidas com sinos de prata. Aquilo o destacava da outra dezena de garotos, todos totalmente carecas, que agora cercava Mercúrio. O garoto ergueu os olhos preguiçosamente. — Tudo certo? — perguntou com a voz arrastada. Petrônio tentou permanecer calmo. — É. Tudo certo. Aquela foi a resposta mais calma que conseguiu dar, cercado por um

bando de delinquentes armados de facas. Todos se vestiam com roupas largas que combinavam com o ambiente desordenado: túnicas grandes demais, com muitos bolsos, capas que não lhes serviam e botinas, tudo em preto. O garoto se descolou do poste do lampião e apontou a faca para Petrônio. — Não parece nem um pouco a sua mansão, parece? Você não está perdido, certo? — Não — disse Petrônio, olhando à sua volta. — Acho que estou no lugar certo. Mas, à medida que a gangue se aproximava, ele pensou duas vezes, lembrando-se das palavras de aviso de seu pai sobre carne moída.

Os esgotos são o melhor amigo do homem — Ei! O que você pensa que está fazendo? — a voz tornou a gritar. Ark mais que depressa deslizou a tampa do bueiro para o lugar. Podia sentir as tábuas vibrando. A qualquer momento agora, a tampa seria arrancada de suas mãos e ele seria espetado pela espada do guarda. A voz agora estava mais próxima, cuspindo de raiva. — Você está muito encrencado! Até Mucum, que enfrentaria feliz uma vespa assassina munido com nada mais que uma chave de fenda, tremia na escuridão. De repente, o som desviou-se. — Desça dessa árvore, seu magricela! Essas cerejas pertencem ao rei! Uma segunda voz, agora feminina, soou. — Estou dizendo, Gerald, faça como o cavalheiro está pedindo. — Fezse uma pausa. — Peço desculpas pelo meu filho rebelde, guarda. — Tudo bem. Fique de olho nele, senhora. Ou posso me ver em apuros. — É claro! Gerald, venha pedir desculpas ao jovem e sábio rapaz! — Eu tenho meeeesmo? — gemeu outra voz. Mucum podia facilmente visualizar o pestinha com nariz melequento. Em qualquer outro momento, ele teria lhe dado um tapa bem dado. Mas, no que lhe dizia respeito, aquele garoto era o melhor amigo deles em toda a

Arborium. A mãe fazia de tudo para argumentar com a criança. — Sim, ou Mâmi vai ficar muito aborrecida! Ouviu-se um movimento de pés e então um nada convincente: — Descuuuulpa… Alguns centímetros abaixo, Mucum bufou, incrédulo. — Obrigado, Diana, por pestinhas mimados e estragados! — murmurou ele enquanto descia na escuridão, seguido por Ark, cujos dedos trêmulos quase escorregavam dos degraus. Em poucos metros, o eixo vertical alcançou a principal artéria que servia ao castelo. Felizmente, os engenheiros que construíram aquele mundo subterrâneo tinham, como eles, pouco desejo de se chafurdar no rio de imundície. De ambos os lados do túnel revestido de chumbo uma plataforma elevada oferecia acesso enquanto os dejetos humanos eram despejados lá embaixo. Entre poços de sombra viam-se lampiões de orientação rente ao piso, alimentados por metano natural. — Então! — falou Mucum com a voz arrastada, fazendo sua melhor imitação da voz da mãe. — Você acha que, talvez, se dobrássemos novamente à esquerda, iríamos dar sob as paredes internas do castelo, hein, hein? — De acordo! — disse Ark, entrando na brincadeira. — Acredito que o velho camarada possa estar muitíssimo certo! Então seria uma simples questão de localizar a escotilha de acesso mais próxima. Ark riu. Apesar do medo, estava se divertindo. Eles tinham vindo ver o rei. Nada os impediria! — O que é aquilo? — Mucum deteve-se, e Ark deu um encontrão nele. Ark podia ouvir o gotejar constante de estalactites do teto e o ocasional borbulhar do lodo ao liberar mais gases nocivos. E então, no túnel à frente deles, um som de correria. E não estava recuando, mas se aproximando, e rápido. — Ah! — disse Ark. — Aquilo…

Três pares de olhos vermelhos surgiram na escuridão. Os olhos aproximavam-se lentamente, sem medo. A pelagem asquerosa das criaturas era malhada de marrom. Eles assemelhavam-se àquilo de que se alimentavam. Um sozinho não seria problema. E, contando com Mucum, os dois poderiam, se tivessem sorte, enfrentar dois deles. Mas as histórias no trabalho não haviam explicado como sobreviver a um ataque de três ratos de esgoto famintos, cada um do tamanho de um cão de caça adulto. Seus dentes, acostumados a animais de estimação mortos lançados no sistema, não teriam problema em quebrar os ossos de uma perna ou duas. — Jobby Jones acertou pelo menos uma vez — disse Mucum. — Como? — Toda aquela bobagem sobre saúde e segurança e carregar uma besta todas as vezes que você desce. Quem dera eu tivesse escutado o que ele disse. — Obrigado, Mucum. Ajudou muito. Os ratos, pressentindo seu medo, começaram a avançar. Mucum reagiu recuando, arrastando um pé de cada vez, Ark escondido atrás dele. Uma dança em câmera lenta em direção à morte certa. — Sabe aquela coisa que você fez com os Corvos? Agora seria uma boa hora de repetir o truque. Que que você acha? Mucum sendo educado não era um bom sinal. Ark esperou a luz ofuscante. Mas o que quer que fosse, havia acabado. O fato de a mãe-Corvo ter se desviado foi pura sorte. Ele era apenas um garoto dos esgotos, de volta ao seu lugar, o lodo encharcando seus ombros enquanto ele deslizava ao longo da parede. Pensou brevemente na pena em sua bolsa. Devia haver uma razão para ela. Haveria magia oculta em seu negrume? Ele duvidava. Talvez pudesse apunhalar um deles com a pena. Ele tornou a olhar. Couro de rato era mais grosso que casca de árvore. Ideia estúpida. Os ratos trouxeram com eles um fedor que fez com que os garotos quase

vomitassem, como se todo o sistema de esgotos estivesse concentrado nessas três máquinas de devorar restos. A intenção deles atingiu Ark em cheio. Era hora do banquete! — Corra para a escada! — gritou ele, prestes a virar as costas e sair em disparada. Os ratos eram conhecidos por sua inteligência, mas a evolução ainda não os havia ensinado a subir uma série de degraus de ferro verticais. Pelo menos era o que Ark esperava. — Não dá tempo! — replicou Mucum. A qualquer segundo agora os monstros abomináveis atacariam. Ele considerou a possibilidade de pular no rio de caca que corria aos seus pés, puxando o companheiro assustado com ele. Talvez não. Os ratos nasceram para nadar. Um banho de caca dos dendrianos era o equivalente ao paraíso para eles. — Sabe, Ratazana — anunciou Mucum de repente, ficando imóvel —, já chega! Ao som de sua voz elevada ecoando pelas paredes circulares, os ratos pararam. Mucum dirigiu suas palavras à maior e de aspecto mais cruel das criaturas, olhando-a fixamente. — Afinal, justiça é justiça. Vocês passam todo esse tempo perambulando na escuridão, comendo sabe Diana o quê, quando lá vem o almoço andando em sua direção, é? Enquanto falava, Mucum, ignorando seus instintos, mudou de direção, caminhando lentamente, muito lentamente, na direção do aparente líder. Os ratos estavam fascinados. As presas normalmente fugiam depressa. — O que está fazendo? — sussurrou Ark, horrorizado, escondendo-se atrás do corpo volumoso de Mucum. — Cala a boca e me passa seu martelo! — sibilou Mucum. Ark não fazia a menor ideia do que uma ferramenta minúscula poderia fazer contra cinquenta quilos de músculos, garras e dentes. No entanto, qualquer coisa era melhor do que virar jantar. Enquanto Mucum

continuava falando, Ark deslizou a mão até a lateral do corpo e tirou o martelo da bolsa de encanador antes de passá-lo para uma mão estendida. A conversa prosseguia, o rio de palavras confundindo os ratos. — Temos coisas mais importantes pra fazer do que ser comidos, sabe? Como salvar o país, pra começar. — Mucum continuou se aproximando, até estar a um metro do líder, e abaixou-se, ficando quase cara a cara com ele. — Isso é o começo e o fim de tudo. Eu não tenho escolha. Ninguém nunca viu o velho Mucum fugir. De qualquer forma, tô fazendo um favor e tanto pra vocês. Se Maw puser as mãos nessas árvores, acredite em mim, não vai mais ter belos esgotos pra brincar. Portanto… Mucum lançou-se para a frente, erguendo o braço e baixando-o em um movimento direto. Antes que o líder dos ratos pudesse sequer se mover, a extremidade do martelo fez uma aterrissagem perfeita bem no topo emaranhado da cabeça. Quando o rato finalmente reagiu, tentando estender as garras para rasgar a garganta daquele intruso, o martelo atravessou seu crânio fino, indo direto ao cérebro. Ouviu-se um horrível ruído molhado e o rato tombou morto, o conteúdo de seu crânio vazando na plataforma. Os outros dois ficaram completamente imóveis, a vingança brilhando em seus olhos de contas. Um momento depois, ouviu-se um súbito ruído quando os inimigos peludos dispararam, acelerando na direção deles em um borrão frenético. Mucum manteve-se firme e Ark rezou para que o fim fosse rápido. No entanto, em vez de cravar as garras na pele macia dos dendrianos, os ratos tomaram uma decisão em uma fração de segundo. Em vez de dar o bote, passaram direto por eles e desapareceram nas profundezas do túnel, esperando encontrar um jantar que não lutasse tanto para se defender. — Um simples dia de trabalho! — disse Mucum com uma expressão ridiculamente alegre no rosto. Limpou o martelo ensanguentado na perna e o devolveu. — Queria que meus colegas tivessem visto. Imagino que teriam me pagado muitas rodadas de bebida. Me ajude aqui com isso. — Mucum

pôs a palma sobre o corpo ainda quente do rato e empurrou. — Preciso fazer isso? — Não tá ficando cheio de frescuras, tá? Ark suspirou. Vasos entupidos eram uma coisa, mas pelo sebento e sujo de sangue e o exército aéreo de moscas que saltava do cadáver com o intuito de provar sua pele não era o que ele chamava de diversão. Finalmente levaram o rato morto até a extremidade da plataforma. Um último empurrão e o corpo caiu da borda com um plop, sendo carregado pela corrente. Mucum fez uma reverência. — Estudei na sua cartilha, pequeno Ark. Se um minúsculo aprendiz pode nocautear um guarda com uma chave-inglesa, então o que impede o velho Mucum de liquidar uns vermes? Nunca pensei que fosse me sentir agradecido por algumas ferramentas de encanador velhas e sebosas! — Você salvou a minha vida. Ark olhava para Mucum de uma maneira nova e diferente. Até ontem, aquele grandalhão mal o cumprimentava com um grunhido ao passarem um pelo outro na estação de esgotos. Parecia estranho, mas reconfortante. Em geral ninguém se preocupava muito com ele. Mucum ficou confuso por um segundo. Confrontar-se com criaturas raivosas era uma coisa, mas um agradecimento? — Se começar a dividir seus sentimentos comigo, vou ter que matar você. Mas, antes disso, será que dá pra me passar um pouco desse lanche? Matar me deixa com fome. Ark abriu as fivelas de sua bolsa, as pernas ainda trêmulas ao sentar-se. — Tem linguiça seca de cabra ou… — … linguiça seca de cabra — interrompeu-o Mucum. — Escolha difícil, essa. Enquanto Mucum mastigava, Ark tomou um gole da garrafa que a mãe havia lhe dado. Licor de amora, sua doçura atravessando o mau cheiro que enchia o túnel. Ele estendeu a bebida.

— É hora de eu ir ver o rei. — Como assim? — cuspiu Mucum. — Estamos juntos nessa! — Ouça. Ninguém sabe que você está envolvido ainda. Você e sua família estão seguros. Agora é por minha conta. Os lábios de Ark estavam retos como uma tábua. — Arktorious Malikum, o grande guerreiro? — Não preciso ser. Já entendi onde estamos e são apenas umas poucas centenas de metros até os aposentos do rei. — Você está se tornando vidente? Mucum olhou o amigo, os olhos semicerrados. — Não, bobo. Olhe! Um pequeno ralo abrindo-se aos seus pés exibia um brasão real sujo na extremidade do tubo. Mucum limpou a boca ao devolver a garrafa. Pôs-se de pé e deu alguns passos. De fato, o ralo seguinte não tinha nenhum brasão. — Ah, muito inteligente. Ark estava orgulhoso de seu trabalho de detetive. — Esse fluxo de saída é composto de nada além da mais fina produção real! Mucum fungou. — É. Bem, o cheiro é o mesmo. — Vou seguir o encanamento e ir direto para a residência privada dele explicar o que está acontecendo. O rei vai mandar prender Grasp e… — Você faz com que pareça muito fácil — resmungou Mucum. — Mas não vejo porque não posso fazer a parte do guarda-costas. Ark estava desesperado para não meter o amigo em mais encrenca. — Mucum, se der errado, se eu for preso, quem vai espalhar a notícia? Precisamos de um plano B. — Acho que seu argumento é bom. Por falar nisso, qual é o plano B? — Não tenho a menor ideia. Vejo você mais tarde. Vá para casa. Mucum cruzou os braços.

— De jeito nenhum. Não vou fazer isso. Encontre Quercus. Esclareça tudo. Mas juro que não vou a lugar nenhum até saber que você tá bem. Vou lhe dar uma hora e então vou atrás de você! — Ele ficou lá parado como se estivesse criando raízes. — E deixe o restante das linguiças aqui. Um homem precisa comer. Ark ficava quase sempre sozinho no trabalho. Não era do tipo que tinha um melhor amigo. Sentiu as lágrimas formando-se no canto dos olhos e virou-se de costas, não querendo que Mucum visse. — Obrigado… por tudo.

***

Cinco minutos depois, Ark tinha certeza de que estava sob os aposentos reais. Ele rapidamente localizou uma escotilha de manutenção em um túnel lateral. Subiu a escada e pressionou o ouvido contra a escotilha no piso, tentando identificar passos. Tudo livre. Ele abriu a trava dupla e empurrou a portinhola. O corredor em que saiu superava de longe, em opulência e luxo, a casa de Grasp. Todas as paredes eram pintadas com murais que engenhosamente ocultavam as molduras das portas em arcos de folhas douradas. Os lampiões a gás eram de prata polida, suas chamas desprendendo aromas perfumados, e as tábuas do piso eram cobertas com tapetes de seda. A esperança acendeu-se como um desses lampiões em seu coração pela primeira vez desde que tudo começara. Fora mesmo apenas no dia anterior? Um dia atrás, ele era Arktorious Malikum, cansado, miserável e faminto. Agora, ainda estava cansado, pobre e com fome, mas, de certa forma, estava no centro dos acontecimentos que se desenrolavam. Ele encontraria o rei e o avisaria. Vai dar tudo certo!, pensou enquanto caminhava direto para os guardas

armados diante dos aposentos do rei. Os olhos do soldado se arregalaram. Quem raios era aquele garoto mirrado, sujo de sangue e de olhos alucinados? Pior ainda, como ele conseguira burlar toda a segurança e chegar a poucos metros do rei? Ark ficou atônito. Se ao menos tivesse escolhido a escotilha seguinte. Ter saído a alguns metros do local certo podia ser um erro fatal. Ele estava tão perto! O que poderia fazer agora? Se não fossem homens de Grasp, talvez lhe dessem ouvidos. Talvez… — Graças a Diana encontrei alguém! — anunciou. — O rei está em grande perigo. Ele vai ser traído no Festival da Colheita! O conselheiro… Antes que pudesse dizer outra palavra, um soco lançou a cabeça de Ark para trás. Ele desabou no chão antes de ser atirado como um tapete no ombro do segundo soldado e levado dali.

Confronto

Petrônio avaliou a situação. Estava sozinho, exceto pelo cavalo do pai, em um território desconhecido, no meio da noite, cercado por uma gangue de delinquentes armados com facas. A bolsa que carregava era o motivo perfeito para um assassinato. Não era um bom começo. — Qual de vocês quer ser o primeiro a ser pisoteado até a morte sob os cascos do meu cavalo? Petrônio manteve o olhar firme enquanto observava os bandidos reunidos à sua volta. O líder falou. — Isto aqui está engraçado, não é, amigão? Isso é bom, se é! — Ele sorriu, o que permitiu que o restante da gangue se juntasse ao deboche. — Na verdade, nunca senti tanto medo em minha vida! Assovios seguiram-se ao sarcasmo. Petrônio respondeu puxando as rédeas subitamente e com força e inclinando-se para trás com todo o seu considerável peso. Vira seu pai fazer aquilo uma vez e não tinha a menor ideia se Mercúrio obedeceria. Rápido como um relâmpago, o poderoso garanhão empinou nas patas traseiras, os cascos dianteiros arranhando o ar e errando o líder por poucos centímetros. A menos que quisesse a cabeça esmagada até virar purê, o garoto não

tinha escolha. Ele recuou, saindo da bruxuleante claridade do lampião a gás, os sinos nas tranças tilintando na escuridão, a cara fechada tentando esconder o medo. O cavalo bateu os cascos com força no galho, fazendo a estrada inteira vibrar e as folhas farfalharem, agitadas. O movimento seguinte mais óbvio teria sido partir a galope, pisoteando os membros da gangue a torto e a direito. O cavalo bufou, os cascos arranhando o chão em expectativa. Petrônio lambeu os lábios. A neblina em torno deles havia se tornado mais densa, como um cobertor úmido. Se ele cravasse as esporas e Mercúrio partisse pela estrada de madeira, poderiam não enxergar com clareza a rota sob o crepitante arco de lampiões, tampouco o balançar da corda de segurança baixa, antes que fosse tarde demais. O garoto, Malikum, podia cometer suicídio se quisesse. Para Petrônio, porém, um salto sobre a borda para a eternidade não era uma opção. Ele segurou as rédeas com força, acariciando o pescoço do cavalo. — Calma, garoto, calma! — sussurrou. De volta à estaca zero. Um beco sem saída. O líder se recobrou e voltou à luz. — Tô fazendo umas contas aqui. Doze de nós. Um de você e um cavalo maluco. — Ele apontou a faca. — Só que, quando meus rapazes acabarem, seu bichinho de estimação não vai servir pra nada, a não ser pra torta de carne. Quanto a você, sulista molenga, a gente fica satisfeito de cortar alguns quilos, se é que você me entende! Petrônio entendia. Ele tirou um pé do estribo e passou a perna sobre a cela, desmontando e pulando suavemente para o chão. Continuou a sustentar o olhar do líder, não deixando os olhos baixarem nem por um segundo. Aquilo era um jogo, e a aposta era alta. — Tenho uma opinião sobre você — respondeu Petrônio. — Sem esse bando para protegê-lo, você estaria se borrando neste momento. — Ele voltou-se, dirigindo-se ao restante da gangue. — Não é isso que os covardes fazem? Cercam-se de acólitos bajuladores?

Eles não entenderam aquelas palavras difíceis, mas a essência era bem clara. O líder não estava gostando daquilo. Um estranho falando-lhe com insolência, humilhando-o diante de seus companheiros. Ele não poderia aturar aquilo, poderia? Seria motivo de riso até a Zona do Musgo. Gravar obscenidades na madeira era uma coisa. Mas agora era hora de gravar seu nome na cara daquele pomposo idiota. — Manda ver, Flinty! — Pega ele de jeito! — Fura ele! O bando estava ávido para que seu líder pusesse o estranho em seu devido lugar. Com um uivo de raiva, o garoto atacou Petrônio, a mão com a faca cortando o ar. Era exatamente o que o aprendiz de cirurgião esperava. Afinal de contas, ele era filho de seu pai. Os bisturis não eram sua única especialidade. Em vez de brinquedos, os capangas de seu pai tinham lhe dado, desde muito cedo, pequenas facas para brincar, ensinando-lhe todos os clássicos movimentos de rua: fazer finta, desviar-se, fazer um blefe duplo. Era como um jogo de pôquer, só que um pouquinho mais físico. Faça o adversário pensar que você tem uma mão fraca, e então bam! O instinto entrou em ação. Quando a faca veio em sua direção, na mão esquerda do inimigo, Petrônio viu e instantaneamente analisou o erro clássico de seu adversário. O outro garoto estava tão ávido para atacar que esqueceu que esticar um lado do corpo deixava o outro totalmente vulnerável. Quando o garoto se esticou ao máximo, quase perdendo o equilíbrio, Petrônio desviou-se do caminho com facilidade e então empurrou-o com força com os quadris. O impacto foi instantâneo, desequilibrando seu atacante por completo. — O quê? — guinchou o líder, em choque, quando sua faca retiniu, inofensiva, caindo pela borda do galho.

No momento exato em que as palavras saíam de sua boca, Petrônio completou a manobra, puxando o cabelo do garoto violentamente, de modo que sua cabeça foi forçada para trás, expondo-lhe o pescoço à lâmina curta, porém letal, que agora zumbia, como uma seta, direto para a carne macia. Em algum ponto ali perto um lampião a gás tremeluziu e se apagou. Ninguém ousava sequer respirar, esperando o sangue jorrar. A mentalidade de bando já estava assumindo o controle. O estranho podia matar um deles, mas assim que o restante se juntasse, ele não teria a menor chance. Dois dos garotos mais velhos já calculavam quem assumiria o comando, quem seria o próximo líder. O rei Flinty estava prestes a morrer. Vida longa ao rei. Petrônio não era bobo. Matar o garoto seria o equivalente a cometer suicídio. A faca deteve-se de repente, espetando a parte inferior do queixo do inimigo. — Ora! Ora! Ora! — anunciou Petrônio no silêncio atônito. — Quem é molenga agora, Flinty? O líder não era inteiramente estúpido. — Você já provou o que quis dizer, afetadinho. Que que você quer? E foi então que Petrônio apresentou a maior surpresa de todas. Ele soltou o garoto e guardou a faca. — Vim falar com seu pai. Então vamos logo com isso. Os olhos de Flinty se arregalaram. — Como é que você sabe quem é meu velho? — Ah, por favor. Pense um pouco. Seus colegas aqui chamam você de Flinty. Flinty se deteve. Não estava gostando daquilo. — E que que meu pai tem com isso? Petrônio segurou as rédeas de Mercúrio. — Muita coisa. Vamos? Sabia que Flinty achava que ele era maluco. Num segundo o estranho estava prestes a matá-lo; no outro, queria falar com seu pai. Com a faca fora do caminho, tudo de que precisava era um simples olhar para que o restante

da gangue acabasse com ele. — … e tenho a sensação de que se eu sofrer qualquer espécie de dano, seu pai, Julius Flint, comandante dos Arsenais Arborianos, não vai ficar nada satisfeito. As palavras de Petrônio eram mais afiadas que qualquer faca. — Por que não disse antes? — murmurou Flinty. — Como você disse — respondeu Petrônio, sensato —, lá no sul eles são moles como caca. Agora, estou cavalgando há horas e gostaria de uma bebida… Flinty tirou um frasco de dentro da túnica e entregou a ele. — Enfia isso goela abaixo! — debochou. A bebida caseira, forte e incandescente, logo faria o garoto cuspir as entranhas. Em vez disso, porém, Petrônio entornou a bebida alegremente. — Não tem muito sabor, embora sirva a seu propósito. Feita com batatas das lavouras suspensas, creio eu… Limpou a boca com satisfação. — Acho que sim… — resmungou Flinty. Até mesmo aquela pequena vitória lhe fora negada. — Pode seguir à frente! — disse Petrônio, apontando para dentro da névoa.

A verdade escorregadia Cinco minutos depois Ark acordou, a cabeça latejando com uma dor dessa vez mais do que real. Ele havia estragado tudo. Por acaso parecia capaz de matar um rei? Eles obviamente achavam que sim. Devia ter levado Mucum com ele. Ark tentou não abrir os olhos. Tinha consciência de que estava esparramado no chão, mas não fazia a menor ideia de onde. Podia sentir o cheiro de… amônia. Melhor fingir por mais um tempo. — Por tudo que é mais verde, vamos ter encrenca das grandes. O soldado que falou cutucou Ark com o pé, como se o garoto não passasse de um rato do esgoto. Ark queria tentar explicar, mas eles não iriam acreditar em nada do que ele dissesse. — Olhe, não foi a gente que o deixou entrar. Não vai ser a gente que vai perder o emprego. Deixe isso por conta do chefe da segurança. Ele está lá dentro com o velho caca agora. — Se o rei o ouvisse falando dele desse jeito, você estaria acabado. — Não. Ele, não. Ele é mole feito um fungo. Mas eu não ia querer me colocar no caminho do outro. Ele pode fazer o interrogatório. O conselheiro Grasp é famoso por seus métodos de extrair informação! Haviam decidido. Uma porta se abriu e bateu, ao fechar, uma chave girando na fechadura. À menção do nome de Grasp, toda a esperança no coração de Ark

morreu. Tinha mesmo chegado tarde demais. Procurou examinar o lugar em que se encontrava. Seu olho direito havia inchado tanto que mal podia enxergar. Com o outro, fez um inventário: um balde cheio de amônia; vários esfregões; um aquecedor a gás; um imundo vaso sanitário para criados e uma porta que parecia sólida o bastante para resistir a um cerco. Obviamente fora o primeiro lugar que os guardas haviam encontrado com uma tranca. Era um círculo sem-fim. Tudo havia começado em uma área de serviço não muito diferente daquela. Na primeira vez, ele conseguira fugir. E agora? Se o conselheiro o encontrasse, Ark seria calado para sempre, e o rei não saberia de nada. Nem mesmo Mucum poderia ajudá-lo agora. Alguma coisa afiada espetou suas costelas. Aquela estúpida pena novamente, aninhada entre as ferramentas soltas que não cabiam em seu cinto de encanador. Espere um pouco… ele ainda tinha as ferramentas! Fez uma pequena prece de agradecimento a Diana e arrastou-se até o vaso sanitário. Ark nunca pensou que um dia sentiria afeto por um lugar onde as pessoas se aliviavam, mas ele quase poderia ter beijado aquele assento. O aviso ao rei teria de esperar; sobreviver aos próximos dez minutos era sua prioridade. Aquela era uma tarefa banal para um trabalhador dos esgotos. Ele rapidamente fechou o registro, puxou a descarga para drenar o líquido restante e então começou a soltar o parafuso na base. Em questão de segundos o vaso tinha sido puxado para o lado, revelando um bem-vindo buraco no chão. Era pequeno, mas Ark também. Ignorando o fedor crescente, ele pendurou os pés na abertura no momento em que ouvia passos se detendo diante da porta e uma voz. — E onde vocês o pegaram? Era agora ou nunca. Ele ergueu as mãos bem acima da cabeça e caiu. Seus pés e suas pernas desapareceram no buraco, mas o cinto prendeu-se na borda irregular, impedindo a descida. Ele estava entalado! A chave começou a virar. Não! Ark atrapalhou-se com seu cinto,

tentando abrir a fivela, os dedos escorregando por causa do pânico enquanto as pernas se contorciam como minhocas. A porta se abriu, deixando ver não só os dois soldados, mas uma figura obesa vestida em cores berrantes, como um papagaio inchado. O homem cuja voz ele ouvira tramando uma traição apenas no dia antes. Grasp! E, ladeando o conselheiro, dois guardas cujo rosto Ark conhecia muito bem. — O quê? — Os olhos de Sálix quase saltaram das órbitas. — Mas você está morto! E estaria mesmo, se não andasse logo. Sálix instintivamente esfregou a cabeça, onde um belo galo havia se formado graças a uma chave-inglesa que pertencia ao garoto vivíssimo à sua frente. — Ora, seu pequeno…! O insulto perdeu-se sob o ruído de suas botas com pregos nas solas ressoando em direção ao centro do quarto, seu corpo inteiro ávido por fazer o espiãozinho em pedaços ainda menores. Mas exatamente quando os dedos carnudos estendiam-se para puxar Ark como se puxa uma lesma de sua concha, o cinto por fim se soltou. Com um som gorgolejante e um uivo de medo, Ark escorregou de repente e desapareceu de vista. Sálix debruçou-se na borda e espiou na escuridão, tentando não inspirar o fedor, agitando os punhos em frustração. O garoto havia escapado outra vez, descendo por um buraco pelo qual nenhum adulto jamais teria chance de entrar. Grasp estava furioso. — Vocês o perderam duas vezes! Para que eu pago vocês? — bufou ele. — Descubram aonde este encanamento vai dar, seus imbecis. Levem alguns homens e vasculhem os esgotos. — Ele voltou-se para os soldados enquanto seus homens saíam em disparada pelo corredor. — Quanto a vocês dois, se dão valor a seu ganha-pão e a sua reputação, não… eu repito… não perturbem o rei com a notícia de que vocês quase permitiram que ele fosse assassinado! — rosnou. — Voltem a seus postos diante das portas e façam o

que se espera. GUARDEM-NAS! Vamos cuidar do aspirante a assassino e deixar sua majestade concentrar sua grandiosa mente em questões mais importantes. Ambos os soldados puseram-se em posição de sentido. — Sim, senhor! Como quiser, senhor! — E é assim que quero. Agora vão. A incompetência de vocês me deixou exausto. Os soldados se afastaram, felizes por ainda terem salários no fim da semana. No entanto, Grasp estava preocupado. Poderia um simples garoto interpor-se entre ele e o poder? É claro que não. Havia um número limitado de saídas de esgoto. Seus homens não falhariam — não podiam falhar. Era hora de retornar à reunião tardia com Quercus. O Festival da Colheita aconteceria em apenas seis dias, e o rei queria repassar cada detalhe maçante, como se não fosse sempre a mesma coisa, ano após ano. De fato, já estava na hora de a seiva ineficaz ser cortada pela raiz, de modo que aqueles com ambição pudessem se erguer em seu lugar. Aquela era uma parte dos planos de celebração que Grasp manteria em segredo: a morte súbita e inexplicável de sua majestade.

***

Ark teve apenas uma fração de segundo para contemplar o olhar atônito no rosto do guarda antes de se ver escorregando por um cano mais usado pelo esgoto do que por dendrianos miúdos. Agora estou mesmo na caca! Quanto tempo ainda tinha antes que os homens de Grasp o encontrassem? Mucum não teria a menor chance. E então o quê? Despencar no vazio estava se tornando um hábito perigoso. Seus pés arranhavam o cano, procurando um ponto de apoio na estrutura lisa, quase vertical, mas não havia nada em que se segurar. Ele deslizava

cada vez mais rápido, sem nenhuma escolha a não ser apontar os dedos dos pés para baixo e manter os braços unidos acima da cabeça, como uma seta, rezar e seguir com o fluxo. Lembrou-se de um livro que a mãe costumava ler para ele quando era pequeno, sobre uma garota que caía por um tronco oco em um mundo mágico: Alice no país subterrâneo. Ele havia achado aquilo bobagem, um absurdo. Agora, não tinha tanta certeza assim. Ele esticou os dedos para tentar se segurar nas laterais do cano, mas era impossível. O tubo de repente ziguezagueou, jogando-o de um lado para outro até Ark não ter ideia de onde ficava para cima. O vento assoviando em seus ouvidos lhe dizia que estava indo rápido demais. O cano de repente se alargou e, antes que Ark tivesse tempo de sequer pensar, mergulhou em algo líquido, a queda amortecida por algo em que ele mal conseguia pensar. Aquilo não era nenhum berço de palha acolhedor. Tampouco seu nariz encheu-se com o aroma de incenso. Em vez disso, imergiu brevemente e, pegando um impulso desesperado, voltou à superfície, limpando uma camada de um líquido indescritível do rosto e dos olhos, feliz apenas por estar vivo. O rio da imundície real no qual ele se debatia havia acabado de salvar sua vida. Os Mateiros Sagrados diziam que os caminhos da deusa às vezes eram misteriosos. Aquele com toda a certeza era um desses casos. Ark deixou que a corrente o levasse, flutuando como um tronco, técnica que todo trabalhador dos esgotos aprendia antes de adquirir o Certificado de Segurança Básica. A qualquer momento ele esperava ouvir o som áspero de uma escotilha de inspeção sendo aberta e o barulho de botas ressoando no chão. Os guardas podiam relutar em enfiar as mãos na sujeira, mas ele era um alvo fácil. Uma flecha iria poupá-los do trabalho, e então Ark acabaria como parte daquele composto, seus ossos indo fertilizar as lavouras suspensas. — Tem lugares melhores para começar a praticar natação! — Mucum! — arquejou Ark, em êxtase ao ver um rosto familiar e amigo.

— Quer uma mãozinha? — Mucum debruçou-se sobre a borda e agarrou o antebraço de Ark. — Aarghhh! — A mão dele escapou e Ark afundou brevemente. — Ark! Uma cabeça coberta pelo lodo ergueu-se acima da superfície. — Ainda… não… morto! — cuspiu Ark. Dessa vez, quando Ark se aproximou nadando, Mucum se ajoelhou e estendeu os braços para agarrar o corpo do amigo. A substância escorregadia não estava disposta a abrir mão de seu convidado tão facilmente. Era como puxar uma cenoura teimosa do chão, mas, por fim, com um último ruído de sucção, Ark foi içado para a borda. — Vamos dar uma olhada nisso, que que temos aqui? Mucum espiou o olho inchado de Ark. — Muito engraçado — disse Ark, tentando recuperar o fôlego. — Acho que sua missão não deu muito certo… Mucum limpou as mãos nas calças, como se aquilo fosse livrá-lo do cheiro. O corpo de Ark começou a tremer por inteiro. — Pior do que isso. Agora estamos mesmo na caca. Os guardas estão vindo para cá. Temos de correr! — O quê? Faz só meia hora que chegamos e você já quer ir embora? Que que são uns guardinhas? Posso dar um jeito neles fácil. Mucum estalou os dedos para mostrar que falava sério. — Mucum, deixe de ser estúpido! Não são uns ratinhos que temos de enfrentar, mas a guarda do rei inteira, armada com espadas. O rosto de Mucum ficou vermelho. Ninguém o chamava de burro, muito menos aquele inseto fedorento e pegajoso. Ele devia ter visto que Ark lhe traria problemas no momento em que o garoto começou a choramingar em cima dele. Sem pensar, seu punho disparou, pronto para arroxear o outro olho de Ark. — Não faça isso! — guinchou Ark, abaixando-se. — Sangue de Diana! — praguejou Mucum quando seu soco atingiu

uma parede bem sólida. Ele ficou pulando no mesmo lugar, a agonia na mão finalmente trazendo-o à razão. — Sem pensar… — murmurou. — Eu também — admitiu Ark. Brigar não iria salvá-los. — Enfim, esqueça. Precisamos desaparecer. Seus pensamentos giravam como um redemoinho. Eles estavam exatamente no lugar em que os guardas esperavam que estivessem, nos esgotos sob o castelo. Precisava confundi-los, fazê-los perder seu rastro. De repente seu olho bom iluminou-se como um vaga-lume embriagado de seiva. Aquele país subterrâneo era o lugar onde os engenheiros punham todos os elementos que permitiam o funcionamento de um edifício — esgotos, encanamento de gás, tubos para a correspondência e… o sistema hidráulico. Ark sacudiu-se como um cachorro molhado. — Temos de encontrar uma porta com uma portinhola! — Você se importa? — disse Mucum, ao ser coberto pelos respingos. Agora ele sabia como as miniárvores no parque se sentiam sendo incessantemente visitadas pelos cães desesperados para ir ao banheiro. — Nem um pouco! — Ark sorriu. Ele correu, ou melhor, chapinhou em seus sapatos encharcados, pelo túnel, seguindo o fluxo do esgoto, procurando pistas. Alguém hábil havia construído aquele lugar — espremendo todos os serviços públicos no mesmo cano, mas cobrando uma taxa por cada um. Ele esperava estar certo ao correr ruidosamente ao longo do piso de tela de ferro. Os passos pesados de Mucum seguiam-no. O túnel se curvava e retorcia à medida que mais saídas de esgoto transformavam a corrente rápida em um rio turbulento. Pelo menos dessa vez não encontraram ratos. Ark desacelerou e se deteve. Embutida na lateral do túnel havia uma porta com um painel de visualização e uma roda de travamento. Ele espiou lá dentro com o olho esquerdo, incapaz de acreditar em sua sorte. Lá estava uma pequena câmara seguida por uma segunda porta. O sistema duplo era destinado a evitar infecção. O esgoto dendriano e a água potável não

deveriam se misturar, mas aquela não era a hora de se preocupar com saúde e segurança. Ele agarrou a roda com as mãos e fez força para abrir a porta. Nada bom. Estava emperrada. Olhou nervoso para um lado e para o outro da passagem enquanto tentava outra vez. Mucum o empurrou, tirando-o do caminho. — Acha que eu sou estúpido, né? Mucum agarrou a roda, firmou as pernas e fez força. Ark podia ver as veias se avolumando nos braços do amigo. É claro! Ele havia forçado no sentido horário, apertando-a ainda mais. Mucum soltou um último gemido e a roda finalmente começou a girar. — Está vendo? — grunhiu ele. Em alguns segundos, a roda girou. O selo estava rompido. Com um silvo, a porta cedeu, relutante, um guincho estrondoso ecoando na escuridão. Ark verificou o túnel. Livre. Os dois entraram, Ark fechando a porta às suas costas e girando a roda de travamento o mais rápido que podia. Na hora H. Quando se recostou na parede curva para recuperar o fôlego, sentiu os tremores reveladores. Passos. Vindo em sua direção. Estavam aprisionados em um minúsculo espaço encapsulado entre duas portas, como aranhas em um jarro. Era tarde demais para sequer pensar em girar a segunda roda. O cheiro de suas roupas concentrado no local confinado lhe dava ânsias de vômito. Ele puxou os ombros de Mucum, indicando-lhe que se acocorasse nas sombras. — Mantenha a cabeça abaixada! — sussurrou. — Tá bem! — murmurou Mucum. Não foi o apelo de Ark, mas a imagem de todas aquelas espadas afiadas que o convenceu. Segundos depois, quando Ark ergueu os olhos, um rosto se espremia contra o vidro, um rosto que ele reconhecia. Um homem de Grasp. Decerto, se Ark podia ver o guarda, então o guarda podia vê-lo, não era assim? Do que a visão precisava? De reflexo. No instante em que Sálix olhasse para

baixo, veria Ark fitando-o de volta.

Para baixo Imediatamente Ark fechou o olho bom. Era como Shiv fechando os olhos e fingindo ser invisível. Como se aquilo pudesse ajudar! Eles eram duas raposas em um buraco, e Sálix os havia encurralado. Enquanto se encolhiam no canto, o pensamento de Ark voltou àquela manhã. As palavras de Goodwoody subitamente fizeram sentido. Talvez o que quase o havia matado agora os salvaria. Valia a pena tentar. Ark levou furtivamente os dedos atrapalhados à bolsa, procurando. Onde estava? Suas mãos se fecharam em torno de uma coisa macia. Arrepios percorreram seus braços. O que uma pena seria capaz de fazer? A guardiã havia falado algo sobre a escuridão ajudando-o a esconder-se. É claro! Os Corvos lançam uma sombra que se sobrepõe a todas as cores quando se escondem nas árvores, imóveis como estátuas. No mesmo instante, seu pânico se afastou, flutuando, como penas caindo. Eles não eram nada, ele e Mucum. Era o que Jobby Jones pensava deles, enquanto os mandava de um lado para o outro o dia inteiro. Ótimo, então. Era o que eles se tornariam no momento em que os olhos de Sálix penetrassem a escuridão como punhais. — Ark! Ark! A voz sussurrada deveria tê-lo assustado. Ark virou-se, lembrando-se do que pensara ser um truque do vento na copa da árvore. Ninguém. Novamente. A voz, porém, o embalou como uma canção de ninar. Ai de

mim, me esconda, Senhora! Inspirando e expirando, a respiração de Ark esticava-se como um fio de seda de aranha, o ar que seus pulmões expeliam um incenso soporífero que foi tecendo sua teia, preenchendo cada fibra de seu amigo. A cabeça de Mucum também parecia pesada, seu corpo um pedaço de carvalho-dopântano enquanto ele mergulhava silenciosamente no chão. Eles eram pedacinhos de escuridão, o manto de trevas apagando-os como um par de velas cujo pavio se aperta com os dedos. O nada se transforma em nada… O nada reflete o nada de volta. A uma grande distância, Ark ouviu vozes abafadas. Ele esperou calmamente que a roda girasse, revelando seu esconderijo. Em vez disso, os passos por fim se afastaram. Tudo que restou foi o silêncio. — Estou me sentindo bêbado! — soou uma voz embriagada. — Tem certeza de que não tinha nada naquela coisa de amora? — Nada — disse Ark, deixando escapar um suspiro de alívio. Ainda apertava a pena com força, mas naquele momento relaxou e afastou a mão da bolsa. Não tinha sido a bebida que a mãe havia fervido e filtrado, feita com as amoras silvestres que invadiam os ramos-via, que os salvara. Ele piscou, ciente da luz tênue dos lampiões a gás nos esgotos, ciente de que, na ordem natural das coisas, eles estavam tão visíveis quanto papoulas em um campo de cevada. — Sorte ele não ter visto a gente, hein? Mucum cutucou Ark nas costelas. — Talvez. Ark se pôs de pé. — Espere um segundo! Isso não foi um truque de ilusão, foi? Até ali, Mucum havia pensado que o encontro de Ark com os Corvos tinha sido um tanto exagerado, nada mais que um golpe de sorte. Agora não tinha tanta certeza. Ark não respondeu, ainda perplexo com seu sucesso. Fora a pena ou ele fizera aquilo sozinho? E como a guardiã soubera? Ele ainda não conseguia

acreditar. Arktorious Malikum, filho adotivo de um trabalhador dos esgotos, invisível por segundos! — Estranho… Parecia que eu tava enroscado no colo da minha vó. — Mucum sacudiu a cabeça, como se quisesse se livrar de um sentimentalismo persistente. — Nunca conta pra ninguém que eu falei isso, tá? — Como quiser. Ark de repente pensou em sua irmã, Shiv, jogando gravetos pela borda do caminho. A imagem de seu rostinho sujo era quase demais para ele. Será que tornaria a vê-la? Mas a brincadeira lhe dera uma ideia. Só havia um lugar seguro onde se esconder. Um lugar onde nunca pensariam em procurá-los. Lá embaixo. Ark se levantou e passou espremido pelo corpanzil de Mucum para alcançar a outra vigia. Aquele momento único de silêncio havia enchido Ark de certeza. Ele já girava a roda. A segunda válvula estava bem lubrificada, e a porta abriu com facilidade. O cheiro os atingiu primeiro. Era o oposto de seu trabalho — doce, fresco, sugerindo campinas nas copas e as centenas de piscinas, poços quentes naturais, fontes e sinuosos afluentes que corriam sobre os galhos, alimentavam as residências dendrianas no alto do dossel e enchiam as folhas com vida líquida. Mucum postou-se ao lado de Ark para admirar o imenso e escuro poço, com pelo menos dez metros de largura, que desaparecia nas profundezas ocas do tronco, iluminado por um fio de bruxuleantes lampiões a gás. — Você deve estar brincando, Malikum! Isto não é lugar pra gente como a gente! Abaixo deles, degraus de metal enferrujados desciam em direção às sombras. — Vamos ficar bem… — Não, não vamos! — Mucum se benzeu inconscientemente. — Lá embaixo é outro país! — Exatamente. Os guardas nunca vão seguir a gente. — Livrai-nos dos loucos de pau! Os guardas não vão seguir a gente

porque ainda querem estar vivos amanhã de manhã, ao contrário de você, Sr. Todo-Poderoso! Mucum esticou o pescoço, tentando distinguir as várias saídas do poço principal, vazio no momento, esperando que a maré virasse. — Temos bastante tempo — disse Ark. Mas já não tinha mais tanta certeza assim. — Ah, então de repente você agora é um especialista, hein? Não tô vendo suas tabelas de maré! — Sei o que estou fazendo. — Da mesma forma que sabia com o rei? Aquele mergulho deixou seu cérebro cheio de caca! Esqueceu seu treinamento básico! Abra a torneira e o que que você vê? Água! De onde ela vem? — No dia em que você me ensinar alguma coisa… — disse Ark ao agarrar o primeiro degrau e passar as pernas sobre a lateral. Mucum explodiu: — Você não tá entendendo, né? As raízes têm sede, elas sugam a água lá do fundo, muito fundo, e quando esta coisinha explode — Mucum apontou para o poço em que Ark estava entrando —, passa dos cem em segundos. Vai ser lançado para o alto como uma rolha numa garrafa. Quando esse seu corpinho grudento bater naquele teto… SPLAT! Não quero ter que varrer os pedaços das suas entranhas pros esgotos. — Então não faça isso — disse Ark, desaparecendo pela borda. — Ninguém viu você. Você não está encrencado. Vá para casa. — Por que eu, Diana? — resmungou Mucum, perguntando-se se a Deusa sequer sabia da existência de um insignificante trabalhador dos esgotos. — Eu tinha um trabalhinho bom, um emprego pro resto da vida, até que Malikum apareceu e estragou tudo! Não é justo! — vociferou ele. Mas, apesar das queixas, de ter enfrentado roedores homicidas e de ter sido perseguido por soldados brandindo espadas, para ser franco, ele estava se divertindo mais do que nunca na vida! Mucum alcançou o primeiro degrau. — Espere por mim! — gritou, a voz ecoando nas profundezas.

Os degraus eram bastante sólidos, embora estalassem devido à oxidação e fossem escorregadios por causa da constante umidade. Depois dos primeiros passos, Ark entrou no ritmo, ignorando a respiração pesada acima de si. Se Mucum quisesse segui-lo, era problema dele. — Você não tá chateado? — arquejou Mucum após alguns minutos. — Não. Ark sentia-se secretamente feliz por não estar sozinho, mas não ia falar nada. Os ecos dos resmungos dos dois reverberavam nas paredes úmidas. Mucum avançava devagar, com a preocupação de que a qualquer momento os degraus estreitos fossem quebrar sob seu peso. — Dá pra esperar um pouco? Ark estava mais de cinco metros abaixo dele, descendo pela escada, rápido como uma aranha. Ele parou e olhou para cima, os olhos captando o reflexo cada vez mais obscuro dos lampiões a gás. — Era você que estava preocupado com a maré! — Não banque o espertinho comigo! Ark esperou, permitindo que Mucum o alcançasse. Havia uma razão para ele ter parado. Passar para o poço já tinha sido difícil, mas pelo menos eles tinham luz para enxergar o caminho. Agora, porém, o poço descia em direção ao vazio, a escada desaparecendo, como se fosse um desenho meio apagado em uma das extremidades. — Não consigo descer mais — disse Ark. Seus braços e pernas estavam grudados à escada. Em Arborium, sempre havia luz, fosse da lua, do sol, de gás, de velas ou de lampiões. Era um mundo de sombras, constantemente se deslocando e se movendo. Aquela escuridão abaixo deles estendia-se como uma piscina infinita. — Consegue, sim! — A voz de Mucum era surpreendentemente gentil. — Feche os olhos, amigão, e só escute o que digo, tá bem? É um degrau de cada vez. Pense em Shiv, ela ia adorar isto aqui! Ark manteve os olhos bem fechados, imaginando o sorriso radiante da

irmã. Para ela, seria a melhor aventura do mundo. Seu pé se mexeu, descongelando. Mucum deixou escapar um suspiro de alívio. — É isso aí. Sua irmãzinha tá aqui com você, neste momento, se acabando de rir! Ele seguiu Ark, descendo, enquanto a luz acima diminuía até se tornar um ponto, depois uma ponta de alfinete, depois… Estremeceu. Seus olhos agora eram inúteis. Se caísse, poderia cair até o centro da Terra. — Estamos chegando lá, amigão! Você tá indo bem. — O truque era preencher aquele vazio com palavras, caso contrário a escuridão tomaria seus olhos, entupiria seus pulmões e… — Como está? Ark deu um sorriso invisível. — Bem. As pernas doem um pouco. O sangue fluía dos cortes nos dedos à medida que o metal enferrujado mordia-lhe a pele. Mão, pé. Mão, pé. Os pensamentos de Ark vagueavam enquanto os garotos desciam, afastando-se cada vez mais de tudo que conheciam. O que eles eram? Minúsculos insetos, descendo por um poço de água, em uma entre milhões de árvores. — A que profundidade você acha que isso chega? Arrepios na pele de Mucum lhe diziam que estava esfriando. Sua voz soava diferente, como se houvesse sido engolido pelo eco. A voz trouxe Ark de volta. — Um quilômetro e meio de árvore, mas as raízes podem ir muito além. — Suas pálpebras pareciam estranhas. Alguma coisa forçou-as a se abrir. — Olhe! A palavra finalmente tinha um significado. Mucum olhou. Seus olhos, tendo se acostumado à interminável escuridão, de repente se arregalaram. A luz surgia por debaixo deles. E os degraus haviam adquirido um feitio diferente. Não estavam mais enferrujados, eram lisos e frios ao toque. — Não falei?! — exclamou ele. O poço havia se alargado significativamente. — Devemos estar perto do fundo!

A visibilidade aumentava, embora não pudessem ver de onde vinha a luz. As paredes eram forradas com um exuberante tapete de vida vegetal que estalava e deslizava com besouros quase transparentes. — Olhe! — repetiu Ark. Presos às samambaias, eles viram milhões de pares de conchas ovais de um preto reluzente que exalavam um cheiro picante, fazendo a barriga de Mucum contrair-se de fome. A prece silenciosa de agradecimento de Ark foi interrompida por um estrondo sinistro, seguido por uma rajada de ar que encheu seus pulmões com o aroma do céu. Como se em resposta, cada uma das conchas se abriu, revelando um casulo amarelado e brilhante no centro. Era como assistir a uma nuvem de borboletas iluminadas abrindo as asas. — Haja luz! — ele sussurrou. Com uma das mãos enganchada no degrau e as pernas firmes, Ark estendeu a mão livre entre a folhagem de uma planta para tocar um dos casulos. Era macio e vivo, tremendo sob seus dedos. No momento em que retirou a mão, a concha se fechou. — Enquanto você brinca com seu novo bichinho, já entendeu que que tá acontecendo? A expressão no rosto de Mucum era de puro terror. — O quê? — disse Ark, em transe. O poço agora ecoava com o som das conchas deslizando umas contra as outras. A voz de Mucum tremia. — Se essas criaturas viscosas tão acordando, deve ser porque tão com sede! — Não entendi. — As pernas e os braços de Ark latejavam com o esforço da descida. Do que Mucum estava falando? Mas naquele momento a escada começou a vibrar e a compreensão chocou-se contra o cérebro de Ark. — Ah… — choramingou. — Estamos na caca! — gritou Mucum.

Ambos se agarraram nos finos degraus. Não que fizesse alguma diferença. A maré estava virando, e dois insignificantes trabalhadores dos esgotos encontravam-se empoleirados exatamente no seu caminho.

Suborno ou execução — Já não passou da hora de você ir para a cama? Petrônio não pôde resistir à zombaria. Ele lambeu o frio orvalho da meia-noite que havia se formado sobre seu lábio superior, enxugando o rosto com a manga enquanto Mercúrio seguia devagar. Flinty o ignorou à medida que seus garotos guiavam cavalo e cavaleiro pelo ramo-via coberto de lixo. As roupas pretas da gangue se misturavam com a neblina, transformando-os em espectros flutuantes. Depois de meia hora, Petrônio pressentiu uma série de formas embaçadas pela névoa atrás das árvores à direita. Lâmpadas fixadas nos troncos intercalados e nos postes a espaços regulares ao longo do ramo-via mostravam uma série de edifícios baixos e atarracados com retângulos escurecidos como janelas, as bordas retas em nítido contraste com as curvas dos galhos e das folhas. Seguindo em frente com a gangue, Petrônio viu que aquele povoado era muito superior à corte do rei Quercus. Fenestra tinha razão: aquela missão poderia ser o momento decisivo. Eles contornaram o quartel por mais uns vinte minutos antes de finalmente se deterem perto de um tronco na esquina. O caminho que levava até lá funcionava como uma ponte levadiça, aberta no momento, com as cordas frouxas dos dois lados. Os portões duplos adiante eram revestidos de ferro e estavam bem fechados. Entalhada no arco via-se a figura de um urso marrom, de músculos exuberantes, com mandíbulas

imensas fechadas em torno de um cão selvagem moribundo. Eles finalmente haviam chegado a seu destino: os Arsenais da Zona do Musgo. O garanhão estava nervoso, os cascos deslizando na madeira à medida que Petrônio puxava gentilmente as rédeas. De repente, as fendas ocas dos dois lados foram preenchidas por flechas apontadas para ele. Uma voz ecoou na escuridão. — Quem vem lá? Flinty não ia aceitar aquilo. Apesar de não ter nenhum escudo, ele marchou direto pela ponte levadiça, indo até a fenda da direita, até que as pontas das flechas estivessem quase tocando seu peito. — Quem vem lá? Quem, cascas de árvore, vem lá? Eu, amigo! A voz vinda de trás da fenda falhou, mas apenas por um momento. — Que assunto o traz aqui? Diga antes que eu encha você de mais espinhos que um ouriço! — Olhe para o meu rosto! — ordenou Flinty, sem o menor indício de medo. — Reconhece a semelhança, por acaso? Ouviu-se uma discussão sussurrada, como se os soldados escondidos estivessem fazendo uma conferência. Uma segunda voz logo soou. — Mestre Flinty. Peço desculpas. Nosso oficial de serviço aqui, Tomo, é novo no serviço e não tinha a menor ideia de que o filho de nosso estimado comandante decidiria fazer uma visita… às duas e meia da manhã. — É, é, é. Tenho um convidado. Ele quer ver meu velho. Pode dizer que é urgente. As flechas de repente sumiram das fendas. Ouviu-se um rangido de engrenagens ocultas enquanto as portas se abriam lentamente, puxadas por correntes pesadas. — É todo seu agora. — Flinty encarou Petrônio, com ódio no olhar. — Até mais tarde. Ou era uma promessa ou uma ameaça. Ele afastou-se, descendo o caminho, sua gangue fundindo-se com as sombras.

— Venha, garoto! — sussurrou Petrônio, acariciando o pescoço de Mercúrio. — Talvez haja um pouco de aveia para você! Ele conduziu o cavalo pela ponte levadiça e abaixou a cabeça sob o arco de entrada. Os portões fecharam-se atrás de si com um clangor sinistro. Agora não havia mais volta. O soldado parado no pátio para recebê-lo exibia uma carranca em lugar do sorriso de boas-vindas. Petrônio surpreendeu-se com a saia de cota de malha. Enrolada nos quadris, podia até proteger as partes, mas era feminina demais para seu gosto. A espada presa ao lado do corpo do homem era outra coisa. Certamente não estava ali para enfeitar. Os olhos do homem se arregalaram, observando o gibão ridiculamente cortado e as meias de ligas cruzadas de Petrônio. — Que brincadeira é essa com esse garoto fantasiado? Seu jogo de cartas havia sido interrompido por um adolescente! Uma mão perfeita: ás de espátulas e rei de castanhas. Galho e escangalho! O salário de uma semana dependia do resultado. Petrônio forçou-se a manter a própria respiração calma. — Não estou vendo nenhuma brincadeira, senhor! — Seu bebezão insolente e gorducho! Será que quer que meus homens pratiquem um pouquinho com você? — ele rosnou. — Quem sabe tiro ao alvo? Petrônio deslizou do cavalo e encarou o soldado, que se avultava acima dele. — Ou talvez possa me levar até Julius Flint. Tenho uma mensagem para ele. Alguns dos outros soldados saíram da guarita, prontos para um pouco de diversão. — Pelo sotaque, dá pra ver que você veio de longe. Vou dizer uma coisa! — O soldado deu a volta em torno de Petrônio, como se estivesse inspecionando um corte de carne. — Vamos ficar com seu cavalo, que, tenho que admitir, é um belo dum espécime. Depois vamos dar uma boa

surra em você e então, quando tiver entendido a mensagem, talvez a gente deixe você voltar pro buraco esnobe de onde saiu! Um bando de arruaceiros era uma coisa. Soldados altamente treinados eram outra. Aqui seria necessário outro tipo de persuasão. Petrônio gostaria de usar seu trunfo. O filho do Sumo Conselheiro Grasp seria tratado com deferência instantânea. No entanto, sua missão tinha de permanecer secreta. Qualquer um daqueles homens poderia ter uma boca maior que o cérebro. Ele precisava ter cuidado ao lidar com o sargento. — Sabe, acho que seu superior ficaria muito desapontado ao saber que seu convidado foi tratado de maneira tão rude. De fato, se o comandante Flint descobrisse mais tarde que perdera certa oportunidade porque — ele fez uma pausa e fitou diretamente o rosto bexiguento do homem — um oficial inferior decidiu agir por conta própria… Bem, eu odiaria estar no seu lugar, senhor. O sargento deteve-se diante de Petrônio, a dúvida lançando uma sombra em seu rosto. Era o bastante. A semente havia sido plantada. — Metido que você é, né? — Não, mas sugiro que você o acorde, só por razões de segurança. Sua, não minha. O sargento havia espetado alegremente alguns radicais com a ponta de sua espada ao longo dos anos. Agora um garoto de quatorze anos estava lhe dando ordens! Onde essa floresta iria parar? — Muito bem. Vamos acordar o General Flint em seu merecido descanso e ver o que que ele vai fazer com você! — O sargento olhou à sua volta. — E não sei que que cês aí tão pensando que é isso aqui. Voltem pras suas posições! — vociferou. Os outros soldados resmungaram ao voltar para a guarita. A luta estava em seu sangue. Todo aquele período de paz era muitíssimo ruim para a saúde deles. — Antes que eu leve você pra ver meu mestre, precisamos fazer uma revistinha! Você pode facilitar entregando as armas, sabe, estilingues e

outros brinquedos. Não gostaríamos que o mestre fosse atacado por um assassinozinho treinado, né? O sargento tinha de ter seu momento de satisfação. — De maneira alguma! — disse Petrônio. Em um segundo ele estava desarmado; no outro, havia em sua mão uma faca que não tinha nada de brinquedo. O movimento foi tão súbito que forçou o sargento a recuar. — É claro que entendo. Nenhum cuidado é demais nos dias de hoje! Girou a faca até que o cabo de osso entalhado fosse oferecido ao sargento. — Sim. Certo. Muito bem. Mais alguma coisa? Petrônio detestava a ideia de andar por aquele lugar perigoso sem nenhuma proteção, mas não lhe agradava a possibilidade das mãos ensebadas do sargento sujarem suas roupas elegantes. Depois de um minuto, o sargento segurava uma pilha pequena porém letal — facas de atirar, um estilingue e dois bastões presos por uma corrente que haviam garroteado alguns gatos quando Petrônio praticava. O sargento desapareceu brevemente na guarita com o saque. — Pra que visitar o Arsenal? Você é um arsenal! Não se deve deixar essas coisas nas mãos dum garoto! O veterano endurecido por muitas batalhas sacudiu a cabeça, embora parte dele estivesse pensando que seria bom se seus cadetes fossem durões assim. Petrônio ignorou os comentários. Até onde podia deduzir, o que ele carregava era bem comum na Zona do Musgo. — E meu cavalo? — perguntou ele. — Pode deixar. Cuidarão dele. O sargento não havia se alistado para bancar o criado, mas era o que fazia agora ao conduzir o garoto pelo assoalho da área de desfile. Petrônio esforçava-se para acompanhar o sargento ao adentrar a névoa. Um minuto depois, um tronco liso ergueu-se acima deles, saído do vazio cinzento. Um lance de escadas primitivo levava a uma porta na casca da

árvore. Era a única passagem — para entrar ou sair. Não havia nem janelas. Cada passo fazia o piso ranger. Era o sistema de alerta de Flint. O homem era obviamente paranoico, e devia ter razões para aquilo. Antes mesmo que chegassem ao topo, a porta se abriu. Petrônio arquejou. De pé diante dele estava uma lenda viva. O comandante Flint, líder do Arsenal do norte, preenchia o vão da porta. A couraça de bronze cintilava sob a luz do lampião a gás, cobrindo seu peito largo. A túnica era de veludo cinza com lapelas bordadas, e as botas na altura dos joelhos eram de couro preto macio. O rosto era bem barbeado e quase bonito, não fosse o nariz torto. Dizia-se que havia sido quebrado em brigas de rua, quando o jovem Flint subia pela hierarquia da gangue. Quando foi incorporado, já era bem versado na arte da guerra. O cabelo do comandante era encaracolado, com um corte quase feminino. E os olhos, intensos, mais escuros que os da maioria dos dendrianos, absorviam a visão do jovem aprendiz sem nenhuma surpresa. — Senhor. Visitante para o senhor — anunciou o sargento. — Garoto, senhor. Diz que tem uma mensagem, senhor. Falei para onde ir, senhor. Mas ele insistiu! — Obrigado, sargento. — A voz era culta, todos os indícios de suas raízes do norte aplainadas e suavizadas como um galho-via. — Agora pode voltar para seu jogo de cartas muito importante, certo? — Sim, senhor. Nada de cartas, senhor. Em vigilância, é claro! — Eu não duvidaria nem um só segundo! O sargento hesitou, querendo ver o que aconteceria com o jovem repugnante. Flint limitou-se a manter o olhar fixo, até que o sargento, relutante, se retirou, descendo a escada. O comandante voltou-se para Petrônio. — Lamento muito essa rude recepção em nosso quartel. Por favor, entre. Sua cortesia ao fazer sinal com a mão para que o garoto avançasse era surpreendente.

Toda aquela gentileza era enervante. O apartamento em que Petrônio entrou era espartano, mas confortável. Havia uma cama de campanha, aparentemente sem uso, no canto mais distante. Do outro lado, debaixo de um mapa de toda a ilha de Arborium, via-se uma mesa coberta por papéis. O fogo a gás estava baixo, estalando ao fundo. No centro havia um sofácama e várias cadeiras em torno de uma robusta mesa de madeira. — Venha, você deve estar com fome e com sede. Antes que Petrônio pudesse objetar, um vinho tinto foi servido em uma taça de haste fina e entregue a ele, que bebeu, agradecido, mastigando, com avidez, as nozes em conserva que Flint deslizou sobre a mesa quando se sentaram. — É tão difícil encontrar essas nozes de primeira floração. Mas elas são mais tenras quando colhidas cedo. Petrônio achou aquela conversa mais difícil do que todas as ameaças anteriores. O charme de Flint era desconcertante, embora sob aquela superfície houvesse aço. — Eu poderia acordar o cozinheiro e pedir que preparasse algo quente — sugeriu Flint. — Não, não. O senhor é muito gentil. — Petrônio vira o pai em ação. O jogo da diplomacia poderia ser jogado por ambos. — Já comi e bebi o suficiente. — Talvez queira descansar então. Poderíamos conversar pela manhã… E permitir que seus pertences fossem revistados? Quem sabe o que poderia lhe acontecer na madrugada. — Obrigado pela oferta, mas o sono pode esperar. Flint recostou-se. O garoto era precoce, com certeza. Ele esperou. Se havia uma mensagem, ela poderia ser transmitida agora. — O senhor já ouviu falar de Maw? — Ah! Muito bem! — Flint deu uma gargalhada ruidosa. — Nossa pequena ilha é cercada por um mundo inteiro de vidro e aço e você me pergunta se já ouvi falar de seu império? Não sou um ignorante completo!

— Não foi isso que eu quis dizer, senhor. — Petrônio tomava o cuidado de manter um tom de respeito na voz. Esse era o comandante Flint, não um garoto chamado Flinty. — É seu propósito defender a soberania de nosso reino contra tais usurpadores? Ele tinha a sensação de que estava lendo em um livro. Mas, por alguma razão, a linguagem, cuidadosamente vigiada como a fortaleza em que se encontrava agora, parecia adequada à ocasião. — Mas é claro. Meu dever é para com o rei. Mesmo que ele trate suas amadas tropas quase como exilados, estacionadas aqui em cima. Em seu reino imutável, agora parece haver pouco que se queira de nós. No entanto, jurei sobre esta espada, há muito tempo. Flint acariciou a lâmina na bainha, como se fosse um bichinho de estimação querido, e não um instrumento de morte. Petrônio tinha uma carta na manga. Ele a colocou na mesa, na forma de uma bolsa cujo conteúdo se derramou pela superfície lisa. Os objetos retangulares refletiram a luz, reluzindo, amarelos, enquanto retiniam uns contra os outros. Os olhos de Flint foram forçados a contemplá-los, incapazes de esconder seu fascínio. — Se isto é ouro, são moedas que nunca vi antes! Em vez da insígnia da coroa e da folha estampadas em todas as moedas de Arborium, cada um dos lingotes apresentava um conjunto de janelas entalhadas, uma dentro da outra, como bolotas de carvalho em uma xícara. — Tem mais. Muito, muito mais. Pronto. Petrônio havia falado. Havia duas respostas possíveis. Uma oferta para subornar o comandante do Arsenal era a mais alta traição. Ou as negociações teriam início ou ele, como traidor de Quercus, seria enforcado como um Corvo, em um galho. Petrônio aguardou a resposta.

Encontrando suas raízes

— Socorro! Estou me afogando… Não consigo respirar… Ark estava cercado pela mais absoluta escuridão, que ia se fechando sobre ele rápido demais. Até sua voz fora engolida, reduzida a um coaxar sussurrante. — Silêncio agora, garoto. Não precisar fazer escândalo. Você dormir por horas, mas agora estar em segurança! A voz era profunda, quase feminina, com um sotaque melodioso que Ark não conseguia identificar. Espere um pouco! Aquilo significava que ele estava vivo! Lentamente, Ark foi emergindo de seu sonho. As mãos doloridas, envoltas em um tecido macio, tatearam à sua volta e encontraram superfícies ásperas, mas confortáveis. Ele abriu os olhos. Os dois. Que estranho. O inchaço no olho direito havia quase desaparecido. — Onde estou? O lugar parecia quente e úmido. — Mais importante: de onde você vir? O homem estava sentado na beira do que deveria ser uma cama elevada feita de musgo e, por ora, era o santuário de Ark. Pelo menos o garoto pensava que era um homem, embora tivesse as feições mais estranhas que ele já havia visto. A pele sem pelos era muito pálida, quase translúcida,

revelando um mapa de veias azuladas correndo sob a pele. Ele usava uma túnica branca folgada e calças de linho largas, como se sua figura esquelética tivesse sido enrolada em um lençol. Seus pés ossudos estavam descalços, mais brancos que qualquer cogumelo. Os olhos, cujas pupilas dilatadas os faziam parecer desenhados por uma criança, fitavam Ark com ar preocupado. — Eu estava sendo perseguido. — Ark sabia que havia algo mais importante que contar sua história. Tentou pensar, e então de repente sentou-se, em pânico. — Mucum. Meu amigo. Ele está…? Temia o pior. — O sujeito grandão, com cabelo que parecer fogo? Aahhh! — Um sorriso abriu-se no rosto do homem. — Estar roncando no sono dos justos! Deixar ele descansar! — O homem de repente inclinou-se para a frente, como uma criança ávida por uma história. — Continuar então. Você ir dizendo… A última coisa de que Ark se lembrava era do grito de Mucum e das conchas tremendo como um milhão de tênues lampiões a gás. — Eu estava sendo perseguido por guardas armados com espadas… Tentei avisar o rei, mas eles me encontraram e… Ark finalmente examinou o ambiente. O quarto devia ficar no coração da árvore. As paredes e a cúpula curva do teto eram retorcidas e exibiam fendas das quais bruxuleavam luzes a gás, enchendo o espaço com um calor aconchegante. Ark conseguia ouvir um zumbido constante ao fundo e um estranho ruído vindo de trás da única porta. — O rei? Bem, a gente aqui embaixo não ter muito a ver com ele. — O homem falava sobre Quercus como se a corte fosse em outro país. — De qualquer maneira, eu estar verificando as válvulas antes de ir para cama quando ouvir um grito. Bem, Joe, eu dizer para mim mesmo… Ah, por falar nisso, esse ser o meu nome! Joe debruçou-se sobre a cama e estendeu um braço magro e comprido. — Arktorious Malikum. Prazer em conhecê-lo.

Ark hesitou em apertar a mão fina e de aspecto quebradiço, mas descobriu que o aperto era forte e a pele, tranquilizadoramente fria ao toque. — Aahhh… — continuou Joe, retirando a mão. — Esse barulho não me parecer de rato, eu dizer. O que você achar, Flô? Ark pareceu perplexo por um segundo. — Perdão. Flô ser minha filha. Você conhecer ela logo, logo. Ela sair correndo comigo e colocar nossa velha cabeça pela portinhola. Lá estar vocês. Uma dupla de garotos um tanto fedidos, eu admitir, agarrados à escada… com a maré prestes a virar. O que fazer, hein? Ark olhou fascinado para aquela criatura alta e amistosa. — Não poder deixar vocês ali! Eu dizer para Flô: Melhor a gente se mexer. Ela me dar um sorriso de derreter cogumelo e nos apressar para arrancar vocês dois como um pedaço de minério de ferro da rocha. Ser uma questão de segundos! — Joe estremeceu, fechando os olhos por um segundo. — Seu companheiro ser um pouquinho pesado, mas não ser nada se comparado a um carregamento de pedra. Nossa Flozinha estar bufando como um motor quando finalmente largar ele no chão. Vocês dois estar apagados a essa altura. Ter muito gás por aqui, dever ter desacordado vocês! Aahhh! Joe era um contador de histórias nato, fazendo com que a quase morte pela maré soasse como uma divertida aventura. Ark sorriu ao pensar em Mucum sendo carregado no ombro por uma dessas criaturas esguias. — Quando eu tornar a fechar a portinhola e largar vocês no chão, sua majestade — e o homem fez um gesto na direção da árvore dentro da qual se encontravam — decidir explodir. Um segundo a mais e todos nós ter virado mingau. — Obrigado! — disse Ark, lembranças turvas de ser carregado no colo por aquele gigante magro voltando-lhe à mente. — Devemos nossas vidas a você.

Joe recostou-se, um sorriso inocente cruzando-lhe o rosto enquanto ele remexia timidamente as mãos. — Não! Não dizer isso! Não ter visitantes todos os dias! Você estar um pouquinho arranhado. Mas nossa Flô cuidar de você com um pouco de unguento. Os arranhões nas mãos estar bem ruins e seu olho parecer uma lesma! — Estes últimos dias têm sido difíceis — disse Ark, usando o eufemismo do ano. Suas pernas doíam da longa descida, os dedos pareciam ter sido passados em uma lixa e o traseiro estava dolorido por causa da queda do teto do Templo. Ele olhou à volta, procurando suas roupas. Estavam ali, em uma cadeira, limpas e secas. A bolsa encontrava-se pendurada no encosto junto com o cinto. Ark esperava que a pena estivesse lá dentro em segurança. — Hora de comer — anunciou Joe. Ele se levantou, e Ark esticou o pescoço, assombrado, calculando que Joe deveria ter uns dois metros e meio. Joe fechou a porta, deixando Ark sozinho para que trocasse de roupa. Um minuto depois, uma segunda porta que Ark não havia notado abriu-se bruscamente, e Mucum, despenteado, parou diante dele coçando a axila, meio adormecido. — Tudo bem? — Acho que sim. Eles nos salvaram, você sabe. Mucum assentiu. — Você sabia sobre eles? Ark apontou o dedo para a porta, como se Joe pudesse voltar a qualquer instante. — Um bando de bichos-paus carecas? Eles me dão calafrios! — Mucum estremeceu, recordando as histórias que o pai havia lhe contado sobre as tribos de mineradores que vivem nas raízes escavando o subterrâneo. — Mas acho que o gás e o ferro têm que vir de algum lugar. Bem, se tiver um

bom fogo quando eu chegar em casa à noite e alguma coisa na panela, não me importo. Ark olhou à sua volta. — Casa… — Até mesmo a palavra parecia-lhe estranha. Ele sentiu uma súbita dor por dentro. — Sinto falta da minha mãe… Mucum de repente desviou o olhar. Ark teve vontade de se socar. — Sinto muito. Eu esqueci. Mucum mal assentiu. — É passado — murmurou. Então cerrou os lábios. Seguiu-se um silêncio constrangido durante o qual Ark tentou lembrarse do que Esguicho havia lhe contado confidencialmente um dia no trabalho. Onze anos antes ocorrera um pequeno e último surto da peste. A mãe de Mucum fora uma das infelizes vítimas, embora boatos dissessem que ela estava melhorando antes de ser levada pelos Mateiros Sagrados. Ark tentou mudar de assunto. — Os guardas ainda devem estar procurando a gente. — Eles não vão descer até aqui, vão? — replicou Mucum. E estamos mais longe do rei que nunca, pensou Ark ao desenrolar as ataduras que lhe envolviam as mãos. Esperava encontrar pelo menos cascas de ferida, mas havia apenas marcas vermelhas. Mucum andou pela sala, espiando os cantos e cutucando a cama de musgo. — Ainda assim, não deixam de ser feios… Foram educadamente interrompidos por uma tosse. — Vocês dever estar com fome — disse uma voz bem atrás dele. Mucum virou-se, o rosto pegando fogo de vergonha. A figura que segurava uma bandeja trazendo comida era uma versão menor, e muito obviamente feminina, de Joe, usando uma camisola solta que flutuava sobre sua pele branca perolada.

— O… obrigado! — gaguejou Mucum. — Eu ser Flô! E você ser aquele garoto bem lá de cima que eu carregar nos braços! Mucum não sabia onde se enfiar. O sorriso dela era mais forte que qualquer soco. Careca, sim. Mas feia? Dois pares de cílios tremulando exerciam um estranho efeito nele. — Obrigado… Agradeço muito. — O prazer ser meu! Eu dizer: Pai, não poder deixar a maré carregar os dois garotos daqui! Eu que lavar vocês… todos! — Ela fitava Mucum. Mucum ficou ainda mais vermelho, como se seu rosto fosse um fogo de artifício prestes a explodir. — Quantos anos você ter? — Hã… — A habitual autoconfiança de Mucum de repente desapareceu. Que estúpido, esquecer a própria idade. — Ah! Quatorze. Flô fez uma expressão de felicidade inimaginável. — Ora, essa ser minha idade também. Nós ser um belo e jovem par! — É… Mesma idade, mas Flô tinha uns trinta centímetros de altura a mais. Aquela conversa estava preocupando Mucum. Flô finalmente apontou para a bandeja. — Ensopado e pão de cogumelo. Talvez não ser o que vocês costumar comer, mas isto ser a coisa mais fresca, das raízes mais fundas, que jamais passar pelos lábios de vocês! Mucum queria que a garota parasse de olhar para ele, mas foi distraído por um cheiro salgado e bastante sedutor. — Vocês lá de cima ser um pouco pequenos. Vocês precisar de boa comida. Então talvez crescer um pouco, e me alcançar, hein? Mucum nunca havia sido chamado de pequeno, mas, quando a garota alta finalmente inclinou-se para pousar a bandeja, ele teve a sensação de que estava de volta à creche. — Eu deixar vocês comer!

Flô curvou-se e retirou-se, os olhos ainda cheios de curiosidade diante dos dois pequenos dendrianos, de um deles em especial. Um piscar de seus olhos hipnotizantes e ela se foi. — Acho que ela gosta de você — disse Ark, declarando o óbvio. — É, acho que é melhor do que matar o tempo nos esgotos. — Mucum não ia admitir coisa nenhuma. Ele se empoleirou na borda da cama e pegou uma das tigelas fumegantes. — Mas eu não sei que que são estes caroços! — Ele retirou um do caldo com a colher e o examinou. — Olhos? Ou coisa pior… — A boca de Mucum curvou-se de nojo. — Podem ser… — Já sei! — disse Ark. — Parece músculo, mas… — Claro! — disse Mucum, dobrando o braço livre para flexionar o bíceps. — Não posso fazer nada se sou bonitão! — Não me referi a esse músculo! — suspirou Ark. — São uns mexilhões de água doce, que brilham no escuro! Lembrou-se das conchas, abrindo e fechando como um milhão de pares de mãos no fundo do poço. Diana sempre provê, mesmo ali embaixo. — Então eles existem aqui embaixo, é? — Sim, é claro! — disse Ark, sentando-se ao lado de Mucum e começando a comer avidamente. Mucum pareceu hesitar por um segundo, até que o estômago o venceu. Depois da primeira colherada do líquido doce com um leve sabor de nozes, ele foi conquistado, forçando-se até mesmo a mastigar os caroços borrachudos. — Até que é meio gostoso! — finalmente conseguiu dizer, mergulhando um pedaço do pão escuro na tigela para aproveitar o molho. — Na verdade, tô quase começando a me sentir um dendriano de novo! Hora do plano B. — Os homens do conselheiro sabem que estou vivo — disse Ark. — Isso faz de mim um alvo. Mas eles nunca viram você. — O quê? Então você quer ficar aqui vivendo essa vida fácil enquanto eu volto lá pra cima e levo umas flechas na barriga? Muito obrigado,

amigão! Ouviu-se uma batida na porta externa e Joe entrou agitado. — Então, vocês gostar do ensopado da nossa Flô? — Muito bom. Obrigado — disse Ark. — Joe… — Ark não sabia por onde começar. Mucum em nada ajudou, evitando seu olhar. Ark tentou novamente. — Estamos encrencados. Ou melhor, Arborium está correndo perigo. Traidores vão derrubar o rei no Festival da Colheita e destruir a ilha. E nós somos os únicos que sabemos. Joe franziu a testa por um segundo. Mas seu rosto branquíssimo não podia permanecer infeliz por muito tempo. — Sim! Coisas estranhas sempre acontecer lá em cima. Nunca se preocupar com a gente aqui embaixo que ter trabalho a fazer! — Ele tornou a sorrir, como se todos os pensamentos de revolução houvessem sumido. — Eu vir rezando por ajudantes por muito tempo e aqui estar vocês, caindo direto para nós! Vocês me ajudar hoje. — Mas temos de ir embora. — Ir embora? Ir embora? Você estar brincando! Vocês ser um presente, um milagre, hein, garotos? — O assunto estava encerrado. Joe manteve a porta aberta. — Vocês vir ou não? Mucum deu de ombros. Se uma das adolescentes deles podia erguê-lo facilmente como um saco de batatas, não era ele quem iria discutir. Ark não sabia o que fazer. Os adultos ou queriam matá-lo por causa do que ele sabia ou riam de suas preocupações. A floresta inteira estava enlouquecendo e aparentemente os dois agora eram prisioneiros das criaturas mais estranhas e educadas que ele já conhecera.

Indo mais fundo Joe curvou-se e fez um floreio com as mãos ao conduzir os garotos para fora. — Bem-vindos à Estação de Mergulho do Joe! A palavra martelou no cérebro de Ark. Mergulho? Ele sempre gostara de nadar nas piscinas remotas escondidas no alto da copa; havia um lugar perfeito onde a água era fria e os peixes beliscavam seus dedos dos pés. Ele gostava de se aventurar lá sozinho para espiar os martins-pescadores mergulhando e dividir seu almoço com os esquilos. Mas aqueles dias, cheios de um sol preguiçoso infiltrando-se pelas folhas verdes, haviam ficado para trás. Ele tinha a sensação de que aquele mergulho era bem diferente. Mucum estava quieto e Ark olhou ao redor, assombrado. A estação era uma imensa caverna oca com quase um quilômetro de largura, as paredes inclinando-se na direção do teto. Deviam estar perto da base do tronco, no coração da árvore. A luz vinha de vários tanques cheios de algo que parecia água, mas só podia ser gás líquido. Chamas dançavam e se retorciam em sua superfície tremulante, enchendo a caverna com um cheiro acre. E por toda parte um emaranhado de tubos enormes e retorcidos saía do piso da caverna e subia até o teto, ultrapassando-o. Uma floresta dentro de uma árvore. Ark fitava o líquido, hipnotizado. — Nós… não vamos nadar aí, vamos? — Ah, não. — Joe deu uma risadinha. — Isso ser gás líquido! Nós

descer pelos tubos. Nós chamar de Xilema. Eu encontrar vocês em um deles… — Ele apontou para os garotos, depois para os tubos, como se Ark e Mucum fossem simplesmente outro produto da mãe natureza. — Eles fazer parte de seu sistema de encanamento! Água e gás! A matéria da vida! Vocês lá em cima receber tudo fácil. Sem a gente, vocês não viver com tanto conforto. Mucum ainda olhava sem piscar. Aquele era um lugar muito assustador. Do outro lado do salão, parcialmente obscurecido pela floresta de Xilema e pela coluna única e imensa de cerne que sustentava o teto e a árvore acima, eles podiam ver e ouvir correias transportadoras. Joe explicou o processo que começava com seus colegas mineiros indo até as profundezas da terra, levados pelas raízes vivas da árvore, para escavar ricos veios de cobre, chumbo e ferro. Uma vez transportados até a estação, os minérios eram separados, com a ajuda de ímãs gigantes, antes de sua longa viagem de elevador e barca para as propriedades dos metalúrgicos no sul. — Não é terra — Ark quase sussurrou a palavra — que fica logo do outro lado destas paredes? Seus olhos escanearam a caverna sem encontrar nenhuma porta. Em sua mente, visualizou um pântano coberto pela névoa e pontilhado pelos troncos lisos e afiados que se projetavam do solo. — Poder ser! — disse Joe. — A gente não se meter com o lado de fora e o lado de fora não se meter com a gente! Ter mexilhões, Mãe-água, peixinhos e todo tipo de fungos e musgo para comer. O que mais um velho garoto como o Joe aqui poder querer? De qualquer forma, ter muito o que fazer. Aqueles lá em cima precisar de panelas para cozinhar a comida, e de facas e espadas para saber lá o quê. Nós, Exploradores das Raízes, ser os garotos e garotas para o trabalho! Enquanto Joe falava, seus trabalhadores se reuniram na luz esverdeada para ver os dois visitantes. Eram tão altos quanto Joe, esticados como as raízes da árvore dentro da qual trabalhavam, e todos com a mesma pele

pálida, embranquecida pela falta de luz solar. Com seus trajes brancos soltos, poderiam passar por uma assembleia de fantasmas. Alguns usavam óculos que ampliavam os olhos já aumentados. — Quem ser você? — perguntou um deles. Ark disse seu nome. — E o que vocês ser? Foi uma mulher quem falou, curiosa, como se os garotos fossem de uma espécie inteiramente nova. — Encanadores — disse Mucum. Já era ruim o bastante quando Flô o olhava de cima. Agora estavam cercados por adultos ainda mais altos. — Ahhh! — Ela riu. — Vocês ser um de nós então! Parecia que haviam passado no teste. Várias campainhas soaram ao mesmo tempo. — Ser hora de nos equipar! — anunciou Joe, assumindo de repente uma atitude profissional. — Ter algumas do tamanho de criança que talvez servir! — Ele saiu por um minuto, reaparecendo em um traje preto justo sobre o corpo esguio. Os outros Exploradores das Raízes também trocavam de roupa. — Poder distribuir, garota! Flô deu um passo à frente para entregar a cada um deles um traje de borracha que parecia um balão murcho. — Você precisa mesmo da nossa ajuda? Mucum pegou o traje com relutância. Até onde ele sabia, o plano B não incluía sair por aí explorando com um bando de enguias vestidas de borracha. — Sim! — disse Joe. Mucum ergueu a roupa justa e curta demais. — De jeito nenhum eu vou vestir isso aqui! — Eu ajudar você — disse Flô, dando um passo em sua direção. — Não. Não se preocupe com isso. Mucum enrubesceu enquanto virava de costas e tentava espremer-se na

roupa. Cinco minutos depois os dois estavam dentro do traje colante, acompanhando Joe na direção de uma escada portátil apoiada na lateral de um dos maiores Xilemas. — Você estar lindo! Um pouco pequeno talvez, mas não importar! — disse Flô para Mucum, com um olhar de admiração. Seus braços e suas pernas projetavam-se como galhos nus. — É muito confortável, obrigado. Mucum tinha a sensação de que a borracha estava tentando estrangular seu corpo inteiro. — Querer poder ir com vocês! Tomar cuidado, porque, se você se machucar, meu coração se partir! Flô juntou as duas mãos ossudas, como em uma prece. O restante dos Exploradores das Raízes murmurou um “Aahhh” em uníssono. Mucum estava mais do que preocupado enquanto tentava evitar os olhos sonhadores de Flô. — Sim. Certo. Ele torcia para que Joe começasse logo. — Você estar lindo! — imitou Ark com um sussurro. Mucum tentou dar uma cotovelada no braço de Ark, mas o garoto menor não teve dificuldades em sair de seu alcance, com um sorriso travesso no rosto. Antes que subissem a escada, Joe pegou dois longos tubos de borracha, conectando-os a buracos na parte posterior dos trajes de borracha. O olhar de Ark seguia a linha dos tubos até o outro lado do Xilema, onde uma máquina que se assemelhava a um fole rústico era manejada por duas enormes criaturas parecidas com insetos dando a volta por um círculo gasto. No brilho tênue do gás líquido, lembravam a ele alguma coisa que vira antes, mas em um lugar muito diferente e em uma escala muito menor. Não podia acreditar! Com certeza não podiam ser besouros aquáticos gigantes,

como aqueles que deslizavam pelas piscinas lá no alto da copa… Assim que Joe se viu conectado, apontou para a boca, fazendo movimentos circulares. Suprimento de ar. Ele subiu a escada e os garotos o seguiram. No topo, havia uma pequena abertura no tubo. Joe inclinou-se para o interior do buraco e espiou dentro do Xilema, antes de passar para o outro lado e desaparecer de vista. Ark sentiu um puxão em seu tubo de ar, e Flô fez sinal para que eles seguissem Joe. Enquanto se espremiam pelo buraco, parando em uma pequena saliência dentro do tubo frio e escorregadio do Xilema, um cheiro úmido de chuva e céu subiu pela escuridão que despencava abruptamente abaixo deles. Ark engoliu em seco. Não havia nenhuma escada de segurança, nenhum lampião a gás para ajudá-los na jornada. Só de pensar em todo aquele espaço vazio a cabeça de Ark rodava. Assim que Mucum juntou-se a eles, Joe prendeu um escudo de bronze à abertura. O mundo fechou-se em torno deles, exceto por um pequeno buraco para seus tubos de suprimento de ar. — Vocês poder precisar destes. — Joe entregou-lhes dois longos pedaços de tubos finos e multicoloridos com um gatilho na extremidade. — Dois para a gente dever bastar! — Incrível! — exclamou Ark, admirando a maneira como os estranhos objetos tremeluziam como pequenos arco-íris. — Eles ser forjados de opalas de fogo garimpadas nas profundezas! Mucum deu uma olhada no buraco de um dos tubos. — Você querer explodir a cabeça? — gritou Joe, afastando-o da ponta do tubo. — Isso ser arpão a gás! — Não precisa arrancar os cabelos! — disse Mucum, antes de se lembrar de que aquela provavelmente não era a melhor maneira de se dirigir a um Explorador das Raízes careca. — Para que serve? Joe apontou acima da borda do buraco para a escuridão lá embaixo. — Larvas! Mucum riu.

— Ah, sei. Claro! Houve tardes ensolaradas em que ele matara trabalho nas lavouras suspensas, observando os fazendeiros escavando o solo. Aquelas pequenas contorcionistas que apareciam sob as pás não eram exatamente da variedade assassina. Joe agarrou o ombro de Mucum até o garoto quase se encolher. — Larvas! Se encontrar uma, mirar na boca e rezar à sua Piedosa Diana para viver e contar a história! Os dois garotos fitaram os olhos de peixe de Joe para ver se estava brincando. Não estava. Um membro do grupo pegou um relógio e comparou a hora com a tabela da maré impressa perto da vigia. Joe apoiou a mão contra a superfície externa ligeiramente peluda do Xilema. — Nunca esquecer, a Árvore estar viva, guri. E Ela gostar de beber, como você e eu. E funcionar que nem tique-taque do relógio. A maré agora estar baixa. Se cometer um erro… Bem, eu perder alguns dos meus melhores homens assim. Vocês ter muita sorte da última vez. Ark lembrou-se da noite anterior, agarrado na escada, sentindo o corpo de Mucum tremendo acima dele, ouvindo o clique das conchas dos mexilhões entre a folhagem sussurrante, e, atrás dela, um sinistro gemido vindo das profundezas, como se a própria árvore estivesse respirando fundo antes que o caos se instalasse. Muita sorte mesmo. O colega de Joe fez o sinal de positivo com o polegar. Era hora. — Iupiiii! — Joe gritou e desapareceu nas profundezas. Embora estivesse apavorado, Mucum não ia deixar transparecer. — Certo, Malikum. Você foi o primeiro da última vez. Agora sou eu. Ele tomou impulso da borda e imediatamente desapareceu. Ark voltou-se para Flô. — Na verdade, não estou me sentindo muito bem. Talvez eu possa ficar aqui e…

Flô sorriu, solidária. — Você ficar bem, pequenino! Agora você ir! Sem aviso, Ark sentiu um empurrão nas costas e mergulhou também, tentando manter os pés para baixo, mas sem ter a menor ideia, naquela queda livre no breu total, de qual direção era para cima e qual era para baixo.

Um caminho engenhoso O ouro era um metal interessante. Petrônio deu-se conta de que Maw devia ter sua própria versão dos Exploradores das Raízes. No entanto, ouro era ouro, independentemente de quem o extraísse da terra. E fora o ouro que refletira o brilho nos olhos do comandante na noite anterior. A palavra “mais” também tivera um apelo mágico. A neblina finalmente se dissipara e a luz do sol brilhava no elevado ramo-via. Mercúrio, influenciado pelo humor de Petrônio, galopava para o sul ao longo das tábuas que reverberavam, devorando as milhas com puro prazer. A mente de Petrônio ainda se detinha em seu extraordinário encontro com Flint. Aquilo havia mesmo acontecido? O homem mais poderoso do Norte discutindo o futuro do país com um garoto de quatorze anos? O silêncio fora torturante, os lingotes de ouro sobre a mesa com a insígnia de Maw estampada, uma evidência indiscutível de traição. Os olhos de Petrônio haviam percorrido a sala, tentando analisar o homem por seu ambiente. A parede de livros sugeria que ele lia tão bem quanto falava. Enquanto esperava, Petrônio percebeu pela primeira vez que as outras paredes eram recobertas com espadas e armaduras de todos os tamanhos: facas, bestas, socos-ingleses de bronze cuidadosamente polidos, chicotes e cassetetes cravejados com pontas afiadas. Aquela não era uma exposição de antiguidades. A arte de ferir era o negócio de Flint.

O comandante poderia ter convocado o sargento e mandado levar o garoto para as masmorras — para onde pudesse sofrer uma leve tortura seguida de um belo enforcamento público para começar bem o dia. Em vez disso, ele estendeu as mãos como quem dissesse: “E então?” A tensão na sala diminuiu. Petrônio deu-se conta de que estivera prendendo a respiração. Agora ele via que a leitura de Fenestra da política era precisa. Embora o rei falasse muito sobre lealdade, as recompensas não eram tão fáceis de definir. Sem o exército, a paz de tantos anos não teria sido alcançada. Quercus parecia ter esquecido aqueles que lhe juraram fidelidade — talvez não de propósito, mas os resultados eram os mesmos: o salário era péssimo e a ração para os soldados não era digna nem de ser transformada em adubo. Além disso, estava claro que o comandante tinha uma fraqueza pelos luxos da vida. A traição era menos um risco e mais uma certeza. Petrônio foi então convidado a falar, a preencher as lacunas em torno de todo aquele ouro reluzente. Suas palavras haviam sido confiadas à memória. Mensagens de papel teriam sido um perigo. Fenestra havia apenas lhe contado os pontos básicos do plano. Ela dissera que informações demais eram perigosas. Para quem? Ela não confiava nele? Tudo que Petrônio sabia era que Flint deveria ter um grupo de seus melhores homens pronto para a noite do Festival da Colheita, dali a cinco dias. Desde que seguissem o comandante e não o rei, tudo estaria bem. Os detalhes poderiam ser combinados quando Flint fosse ao sul. — Não é muito tempo — disse Flint. — É tempo suficiente — respondeu Petrônio. — Tenho de decidir em quais dos meus homens posso confiar. Alguns permanecerão leais ao país, embora salários baixos e moral ainda pior possam acabar com qualquer senso de dever. Meu velho amigo Quercus esqueceu a quem deve os felizes anos de paz. Petrônio podia ver aonde aquilo estava indo. — E assim — prosseguiu Flint —, vou precisar de mais fundos para

facilitar os procedimentos. — É claro. Lady Fenestra me instruiu a fazer tudo que for possível para ajudar. Com um floreio, uma segunda bolsa foi apresentada e jogada na direção de Flint, que a pegou habilmente no ar, com uma só mão. — Não sei que mágica você faz, garoto. Mas, contanto que pague, não me importo que você tenha sido criado pela própria Rainha-Corvo. Então, ambos sorriram. Grasp Sênior teria recebido as palavras do comandante como um elogio. Petrônio já não era apenas um menino-mensageiro. Flint lhe ofereceu outra bebida, recolheu os lingotes da mesa e os trancou cuidadosamente em um baú. O sargento foi chamado para dar a Petrônio uma cama decente pelo que restava da noite. De alguma forma, aquele garoto havia conseguido a boa vontade do comandante. O instinto dizia ao sargento que, qualquer que fosse a mensagem que o jovem trouxera, nenhum bem resultaria dela. Seu humor piorou quando foi instruído a devolver as armas do garoto. Agora, enquanto disparava para o sul montado no garanhão prateado, Petrônio sentia uma quase vertigem com tudo aquilo, esperando secretamente que Fenestra ficasse impressionada com seu sucesso.

***

Era noite quando chegou em casa, os lampiões a gás já compensando a luz cada vez mais fraca do crepúsculo. Petrônio estava faminto. Mas, primeiro, aos negócios. Ao entregar as rédeas ao cavalariço, ele avistou Sálix atravessando o quintal. — Onde está meu pai?

Sálix o fuzilou com os olhos. Podia estar em falta com o conselheiro, mas não com seu filho inútil. — Ocupado. Não deve ser perturbado. — Sabe, você seria esperto se me tratasse melhor… Sálix fazia uma boa ideia de que tipo de tratamento gostaria de dispensar ao sapinho pretensioso. Para início de conversa, era culpa do garoto que o encanador tivesse escapado. Agora Sálix estava sendo culpado por outra fuga. Melhor guardar os pensamentos para si. Afastou-se, indo ao encontro de Alno e dos outros. A busca ainda não havia acabado. A falta de boas-vindas diminuiu o humor de Petrônio, mas ele não iria ser dispensado assim. Correu para o estúdio do pai e entrou intempestivamente. — Boas notícias, pai! Talvez, pelo menos dessa vez, merecesse um elogio. Um olhar para o rosto do homem informou-lhe que não. — Boas notícias? Fico feliz que as suas sejam. — Grasp soava amargo e exausto. — O garoto está à solta outra vez e foi você quem o deixou escapar! Petrônio estava confuso. — Que garoto? — Ele pensou em Flinty e sua gangue… mas certamente seu pai não se importava com o destino de um idiota nortista… — Malikum, seu idiota! Como foi que sua mãe conseguiu produzir tamanho imbecil… Grasp estava sentado à mesa, o lápis apunhalando uma folha de papel como se ela fosse um prisioneiro sob interrogatório. Petrônio continuava sem entender. — Mas ele não está…? — Morto? Não da última vez em que o vi, escorregando por um buraco de encanamento, como o rato que é. E, enquanto ele estiver vivo, nossos planos, independentemente das boas notícias que você possa trazer, correm perigo.

A ponta do lápis se quebrou. Petrônio notou os olhos injetados de sangue e o rosto sem barbear do pai. Perguntou-se por um momento se o conselheiro não estaria perdendo a razão. Como Ark poderia estar vivo? Sálix e Alno o viram saltar da borda do galho. Ninguém jamais havia caído de Arborium e sobrevivido para contar a história. Se fora um truque, então Petrônio estava quase impressionado. Talvez o nanico tivesse alguns neurônios, afinal. Petrônio ainda estava ansioso para contar ao pai sobre o comandante, mas refreou-se. — E agora? — Agora mandei alguns dos meus homens para proteger o rei e vigiar os esgotos dos quais o garoto parece gostar tanto. A última coisa de que precisamos é que ele apareça e encha os ouvidos do nosso monarca com um alarme desnecessário. Enquanto isso, espalhei a notícia de uma recompensa pecuniária considerável para qualquer nobre cidadão que denunciasse o paradeiro desse perigoso radical. O dinheiro é sempre uma ferramenta útil! Petrônio concordava. Flint fora convencido em parte pelo ressentimento contra o exílio no Norte, mas principalmente pela fria realidade do ouro. Grasp deixou de lado o lápis quebrado e começou a folhear alguns papéis. — Já estão cuidando desse assunto, portanto você pode muito bem ir fazer alguma coisa útil, como o dever de casa, por exemplo. Deixe-nos lidar com as consequências de sua inércia. O tom de desprezo era um sinal para que ele saísse. Petrônio sentiu o rosto ficar vermelho. Ele viajara mais longe do que nunca antes em sua vida, enfrentara uma gangue de adolescentes sanguinários, usara de muita esperteza para conseguir entrar nos Arsenais da Zona do Musgo e convencera um dos soldados mais implacáveis do país a apoiar sua causa… e agora estava sendo dispensado? — Pai, eu…!

Grasp nem sequer ergueu os olhos de seus papéis. — O quê? Você quer me dizer que pode encontrar o garoto e trazê-lo para mim? Se é isso, então ficarei satisfeito. Senão, pode ir. Petrônio virou-se para as portas da sacada, não querendo que o pai visse seu rosto vermelho de vergonha. Mas outra pessoa viu. Ali no vidro, do outro lado, um rosto misturava-se a seu próprio reflexo. A porta se abriu. Grasp ergueu a cabeça, chocado, e levou as mãos instintivamente para baixo da mesa, em busca da faca que escondia ali caso intrusos aparecessem. — Considera-me assim tão perigosa, conselheiro? A voz, embora baixa, era bastante forte em seu propósito. Grasp recolheu a mão. — Minha senhora, como…? — Ah, eu não quis perturbar seus guardas, vendo como estão cansados de seus afazeres. Pensei que seria melhor entrar sozinha. O conselheiro tentou se recuperar. — A senhora é sempre bem-vinda. A mulher o enervava. — E você parece ter esquecido questões mais importantes em sua perseguição a um mero pedaço de esgoto. Seu filho fez uma longa viagem e, se não estou enganada, teve sucesso em sua missão. Estou certa? Petrônio sentiu-se aliviado. Finalmente alguém para defender sua causa. — Minha senhora. Fiz como me pediu. Ele rapidamente relatou os eventos da noite anterior, deixando de fora seu encontro com Flinty, mas enfatizando como as negociações foram bemconduzidas. Quando terminou, Fenestra voltou-se para Grasp e esperou. — Acho que devo lhe dar os parabéns. As palavras saíram com relutância, de má vontade. — Seria bom se você elogiasse seu filho com mais veemência! — sibilou

Fenestra. — Ele apostou, a nosso favor, com um homem que ficaria feliz em esfolar o garoto vivo se não gostasse de sua roupa! Acredite em mim, sei como Julius Flint é! Petrônio sentiu o calor do elogio dela. Assim estava melhor. Lady Fenestra prosseguiu: — Lançamos nossa isca na forma de um tesouro reluzente, e seu comandante caiu no laço. Agora ele é nosso! O plano será bem-sucedido. Em cinco dias seu pequeno país-ilha estará completamente transformado. Toda a sensação de fome deixou Petrônio quando uma ideia se formou em sua mente. — Posso falar mais uma coisa? — Ele não esperou resposta. — Deve haver uma forma de tirar nossa sujeira de esgoto do buraco de rato infectado em que está escondido. Pronto. Agora tinha a atenção deles. Nem mesmo o pai pôde deixar de olhar para ele. Petrônio surpreendeu-se com a perfeição daquela solução. — Minha senhora mencionou a palavra isca. O garoto tem uma irmã mais nova, a quem adora. Seus homens podem prendê-la. — Uma garotinha? — protestou Grasp, sem nenhuma ideia da direção que a mente do filho estava tomando. Mas Fenestra bateu palmas. — Minha nossa, jovem Petrônio! Isto é… — Viável! — interrompeu-a Petrônio. — Em primeiro lugar, vai manter a família calada. Não vai haver boatos sobre tramas contra o rei. — Ele fez uma pausa, agora seguro da atenção de ambos. — Então colocamos a garotinha nas celas debaixo desta casa e esperamos que o verme saia de seu buraco. Quando isso acontecer, quero que me prometa uma coisa, pai! — Era ele quem estava no controle agora, não pedindo, mas fazendo uma declaração irrevogável. — Eu o deixei escapar antes. Dessa vez, porém, quando o pedaço de caca escorregadia se contorcer no anzol, Ark será todo meu!

Lá no fundo Não havia sentido em lutar contra a gravidade. À medida que despencava no espaço, Ark podia distinguir vagamente as formas de Mucum e de Joe à frente, mergulhando como bebês indefesos, apenas com finos cordões umbilicais conectando-os ao mundo real. Tentando dominar a onda crescente de náusea e pânico, ele pensou na família. Shiv, a mãe e o pai se encontravam mais distantes do que nunca. Ele estava indo aonde poucos dendrianos haviam ousado se aventurar. E não era lá que deveria estar! Tinha esperado permanecer na escuridão, mas o tubo ao seu redor agora cintilava com um verde suave, com faíscas piscando enquanto ele passava à toda. Joe havia mencionado um fungo fosforescente que crescia mais abaixo, ao longo das paredes dessas imensas raízes ocas. Ark sentia-se grato até mesmo por aquele simulacro distante do sol. O fungo se espalhava acima dele em linhas amarelas riscando as sombras. Quem teria pensado que a iluminação poderia ser cultivada? — Isso é sério! — gritou Mucum enquanto zunia, descendo a encosta polida pelo desgaste de muitas descidas. Ele rapidamente deduziu que seu traje fora projetado tendo aquela exata jornada em mente. O truque era soltar-se na descida, moldando o corpo às curvas, quicando nas voltas e usando o traseiro para ricochetear e acelerar ainda mais.

Houve um ruidoso splash e, de repente, os três se viram submersos. Ark foi o último a cair no poço cintilante. Cada nervo de seu corpo se retesou e seus pulmões começaram a trabalhar em dobro, agarrando-se ao ar. Ele estava se afogando, aprisionado em uma engenhoca inventada por loucos do subterrâneo. O visor no capacete embaçou quando ele começou a hiperventilar. — Socorro! — gritou, e o som foi abafado pelo traje. Joe flutuou até ele e o agarrou pelos ombros. Então moveu a mão direita para cima e para baixo na água, em câmera lenta, os olhos por trás dos óculos tentando fazer com que Ark olhasse para ele. Ark entendeu a mensagem. Tentou acalmar a respiração. Confiar nos besouros aquáticos trabalhando nos foles lá em cima. Lentamente, a névoa em seu visor foi desaparecendo. Ark experimentou mover a mão. O traje de borracha funcionava como gordura quente, fazendo-o deslizar facilmente pelas profundezas geladas. Era como estar em um enorme poço. Ele se deu conta de que aquele era o lençol freático de onde a árvore sorvia sua cota de água e a natureza bombeava o líquido da vida para as pessoas lá no alto. Começando a relaxar, Ark observou um cardume de peixes vermelhos reluzentes passarem por ele, finos como folhas de papel e com olhos dos lados da cabeça. Joe sinalizou para que os garotos o seguissem e nadassem na direção do que parecia ser a abertura de um túnel. Eles passaram por ela, indo parar em um poço mais raso, com lodo pela metade.

***

Acima da cabeça do trio, um milhão de folhagens pendiam do teto como frágeis cortinas. Estavam agora muito abaixo da terra, em um lugar de contos de fada. Um brilho ocasional piscava para ele do teto de raízes

gigantescas — evidência da presença de minério, segundo Joe. Ouviram um silvo, como um escapamento de ar, quando Joe tirou o lacre de seu capacete. Ark copiava os movimentos do Explorador das Raízes, feliz por poder voltar a respirar normalmente. Ele ouvia as ondas agitadas das águas profundas e o constante gotejar das paredes. — A gente ficar seguros por cerca de uma hora. Deixar os capacetes e tubos de respiração aqui e me seguir. Sim? Joe, agora à vontade, agia todo profissional. Mucum sorria, cheio de si, ao largar o capacete. — Mas que clorofila! Sabe, eu trocaria de emprego com vocês a qualquer hora. Ark sacudiu a cabeça, incrédulo. — Que bom que está se divertindo tanto. — Se sobrou alguma memória nessa sua cachola, você deve lembrar que foi ideia sua descer aquela escada esquecida por Diana. — A gente não tinha escolha. De qualquer forma, não estamos exatamente salvando o país aqui embaixo! — Às vezes você parece uma velha rabugenta. Se anime! — Por falar nisso — interrompeu Joe —, isto aqui ser para vocês. — Ele entregou a cada um dos garotos um frasco de vidro turvo. — Agitar com força, mas só se precisar. Já ter o bastante para ver por ora. — Joe partiu pela passagem revestida de fósforo. — Me seguir de perto e se manter no centro. O lodo macio lembrou a Ark o… O que era mesmo? Ah, sim… A substância com que trabalhavam todos os dias. Ele fungou. O cheiro era diferente, com um toque de argila. E o fez pensar em folhas caídas e na pilha de compostagem do ano anterior no canto das lavouras suspensas. Estavam muito distantes do pôr do sol. Seus olhos captaram o brilho cada vez mais intenso do teto e do piso. Cobre? Estanho? Ferro? Ark não fazia a menor ideia. Joe havia explicado sobre os veios naturais que as raízes de todas as

árvores procuravam. Tudo que os mineiros precisavam fazer era segui-las. — Mas este é o sistema de uma única raiz? — Sim! Mucum começou a ficar confuso, tentando entender tudo aquilo. — E existem, tipo… milhares de árvores! — Sim! — Então… existem outros como vocês? A ideia de infinitas Exploradoras das Raízes batendo os cílios em sua direção deixou Mucum apavorado. — Sim! — Um sorriso abriu-se lentamente no rosto de Joe. — Este aqui ser apenas um caminho de muitos. As raízes estar emaranhadas como tubos de respiração, como se árvores ser todas uma grande família! Se quiser, vocês poder cruzar todo o país sem jamais subir numa estação de mergulho, muito menos ir até lá em cima! Ora, eu ter parentes no oeste e no sul, todos trabalhando em sistemas diferentes! Assim acima, como embaixo, pensou Ark. Arborium tinha acabado de ficar muito maior. Eles continuaram a descer a raiz principal. As plantas acima de suas cabeças gotejavam com vida, choques de um verde vibrante nos fungos iluminados. De vez em quando, passagens laterais levavam tanto para a direita quanto para a esquerda, trazendo com elas um ar frio que fazia a pele dos garotos se arrepiar. — Não se mover — cochichou Joe de repente, seu corpo se imobilizando. Os garotos quase colidiram com ele. O que era agora? — Mais à frente… — sussurrou Joe. — Devagar agora. Voltar, em silêncio. Não achar que vamos extrair nenhum minério hoje… Ark ouviu um ruído leve e áspero vindo diretamente da frente e se movendo na direção deles. Fez sinal para Mucum. Ambos seguiram a sugestão de Joe e recuaram um passo, depois outro, torcendo para não tropeçar, tentando compreender a origem do barulho.

— Pode ser um pequeno. Se ter chance, mirar na boca. Joe tinha o arpão erguido. — Isso não é nenhum tipo de jogo dos Exploradores das Raízes, é? — perguntou Mucum, esperançoso. Joe virou-se para trás e lhe lançou um olhar afiado, toda a amabilidade e animação desaparecendo em um instante. — Não. Tá bom. Só pra saber. Eles recuaram para a passagem lateral mais próxima enquanto o movimento se tornava mais ruidoso e as paredes da raiz começavam a sacudir. Alguma coisa grande estava vindo na direção deles. A mente de Ark disparou. Talvez Joe estivesse errado. Parecia mais um telhado desabando ou mesmo uma árvore tombando. Acontecia de vez em quando, apesar de toda a engenharia de emergência. As árvores eram seres vivos. Elas envelheciam e morriam. E quando o tronco maciço desabava na floresta, que Diana ajudasse quem não tivesse conseguido se proteger a tempo. Bairros inteiros podiam sumir em segundos, deixando uma lacuna no mapa, uma parte de Arborium desaparecida para sempre. Se aquela árvore caísse, ergueria as raízes e qualquer um preso ali dentro. Eles seriam revirados como peixes em uma piscina. Joe abaixou, entrando na primeira passagem lateral, fazendo sinal para que os garotos se agachassem. O som agora enchia o túnel principal, estrondeando em seus ouvidos, triturando, serpenteando, deslizando. — Não ser dos pequenos — suspirou Joe. — Ser problema, na certa! Ele pegou um dos frascos de vidro turvo, sacudiu-o e o lançou na passagem principal. Ouviram o ruído tilintante do vidro se quebrando. A tênue luz fosforescente e as sombras deram lugar a um reluzente enxame de luz intensa, como se milhares de vaga-lumes aproveitassem sua curta liberdade. Ark mordeu a língua com o choque, sentindo o sangue fluir em sua boca. Tanto ele quanto Mucum olharam para o alto, e mais alto ainda,

tentando avaliar a escala do que viam enquanto seus pés se fixavam como líquen onde estavam. Um monstro segmentado, com a pele pulsante no tom arroxeado de um hematoma, espremia-se, preenchendo cada centímetro do túnel, contorcendo-se e avançando na direção deles em grande velocidade. Na extremidade do que só podia ser a cabeça havia uma boca cheia de dentes que não pareceriam fora de lugar em uma serralheria. Aquilo tinha tanta semelhança com uma minhoca comedora de adubo quanto uma montanha com uma pedrinha. O monstro parou brevemente, erguendo-se acima das três minúsculas figuras, pressentindo vibrações. Qualquer coisa que se movesse aqui embaixo em seu território estava viva. Se o monstro tivesse lábios, ele os teria lambido em expectativa. A larva gigante estava faminta. — Esperar que vocês saber boas preces, garotos — sussurrou Joe com os dentes batendo —, porque, se não, a gente estar realmente lascado!

Comunhão Vovó Malikum, quando ainda estava viva, adorava falar sobre a morte. — Quando você se vai, o que os Corvos não levam, os vermes pegam. Ah, se pegam! O que resta de você é enterrado nas lavouras suspensas e que belo adubo seus pobres ossos dão! E quando ela ria, o rosto se enrugava como uma folha de papel amassado, e Ark, ainda pequeno, estremecia ao lado da lareira, a mente cheia de abomináveis criaturas segmentadas e serpenteantes. Não era nada engraçado agora. Os vaga-lumes iluminavam cada detalhe do túnel com uma clareza terrível, do zigue-zague do minério metálico atravessando as paredes às folhagens das raízes que pendiam do teto como plantas aquáticas. E lá, diante deles, a larva gigantesca, espremendo-se pelo tubo de mais de cinco metros de altura, um monstro pulsátil com dentes afiados prestes a pulverizar um trio de migalhas bem saborosas. Joe murmurava consigo mesmo na fração de segundo que lhe restava antes que a morte chegasse. Mucum ficou ali parado, com os olhos esbugalhados. Uma arma. Era daquilo que precisava. Uma vaga lembrança de repente o fez levar a mão à bolsa no lado esquerdo de seu traje. Fungos fedorentos! Suas mãos voltaram vazias. A descida até ali deveria ter afrouxado a aba da bolsa. Ele voltou-se

para Ark. Joe tivera a mesma ideia. — Me dar aqui, guri! — gritou. Ark obedeceu, arrancando a arma da bolsa e entregando-a a ele. Mucum perguntou-se se não seria tarde demais. O monstro estava tão perto que ele podia ver o lodo escorrendo dos dentes. Mas Joe era rápido e sua visão, precisa. Ele ergueu o tubo brilhante, apoiando-o no ombro enquanto os dedos se fechavam em torno do gatilho. — Aqui, seu grande babão! Poder vir provar uma coisa afiada! Eu esperar que grudar nas suas entranhas! E, concentrando-se, puxou o gatilho com firmeza. Nada. Ou melhor, somente um clique. — Hum! — disse Joe, como se diante de um mero problema técnico. — Poder ser a umidade aqui embaixo. Ah, bem! Então ser o fim! — Como? — gritou Mucum. Ele não podia acreditar no que ouvia. Sua última chance perdida, e Joe dava de ombros. A morte como uma inconveniência. Ele sentiu-se tentado a socar a criatura. Talvez não. Seus punhos seriam simplesmente engolidos por aquela mandíbula gigante. Hora de bater em retirada. Usar as pernas muito, muito rápido. Gritar também era uma opção, embora Mucum não recorresse aos gritos como regra. Dessa vez, ele abriria uma exceção. O único problema era que suas pernas o desapontavam, fixando-o ao chão como uma estátua. Ark pensou em sua família. Ele os havia desapontado. Desapontara o país inteiro, preso ali debaixo da terra enquanto uma lesma gigante acabava com eles. Ark podia sentir o cheiro da coisa — um fedor de terra, podridão e rato morto. Subitamente ele se lembrou da pena, mas ela estava perto de sua cama de musgo quentinha na casa dos Exploradores das Raízes. Será que conseguiria sem ela? Conseguiria torná-los todos invisíveis, de alguma forma? A imagem de uma figura no vitral empoeirado surgiu em sua mente.

Dessa vez, os olhos da Rainha-Corvo pareciam vivos, incentivando-o a pensar no impossível. À medida que o pensamento deslizava, serpenteante, por sua mente, uma porta parecia ir se abrindo para uma luz brilhante e incandescente. Pela lógica, fugir pelo túnel era a melhor opção. Ark, porém, fez o oposto. Ele se pôs a andar na direção do monstro, lentamente, erguendo os braços. Para a larva, aquela era uma reação nova. Um par de olhos globulares, na extremidade de hastes compridas e finas presas à lateral da cabeça, girou para estudar a criatura de duas pernas que vinha em sua direção. O garoto estendeu as mãos, palmas para cima, indicando que estava desarmado. — O que estar fazendo? — sussurrou Joe, tentando puxar Ark de volta. O garoto ia ser devorado! — Ark! — gritou Mucum, sabendo que devia agarrar seu amigo estúpido, mas incapaz até mesmo de se mexer. As mãos de Ark se aproximavam. A qualquer momento agora. Pronto! Ark!, chamou uma voz. Embora dessa vez ele tivesse achado que não a tinha ouvido em voz alta. Ele estremeceu quando seus dedos fizeram contato. A pele da larva era escorregadia, úmida, fria. O garoto, porém, não se encolheu de repulsa. Tampouco a boca gigante se arreganhou para sugálo. O tempo desacelerou, passando para um rastejar escorregadio, até finalmente parar. O garoto e a fera agora estavam unidos, e um novo som emanava da larva gigante, enchendo o túnel, reverberando na escuridão. Joe estava para lá de surpreso. — Ora, garoto! Isso não poder ronronar! Ark respondeu mecanicamente, mesmo com a cabeça enevoada e latejante. — Eu sei. — E sabia. Ele estava sob a pele da larva, podia sentir seu infinito arrastar-se pelas passagens escuras, seus dias e noites solitários, sua dieta sem graça de terra e mineral e o sofrimento constante provocado pelos parasitas que viviam debaixo de sua pele, sugando seu sangue até que só lhe

restasse ranger os dentes de dor e fúria. — Eu sei! — repetiu, num tom tranquilizador, compreendendo todo aquele sofrimento monstruoso. Os olhos nas hastes momentaneamente ficaram mais suaves, revelando em suas profundezas escuras uma inteligência oculta. Os dois dendrianos e seu guia Explorador das Raízes já não eram seus inimigos. Ark afastou as mãos. Enquanto os vaga-lumes dançavam até esgotar suas últimas energias e as sombras no túnel se tornavam mais densas, o monstro recuou lentamente, arrastando-se para trás, desajeitado, como um convidado que tivesse aparecido para jantar no dia errado. Tinha acabado. Eles estavam salvos. — Extrair minério ser entediante comparado com o que você acabar de fazer! Joe deu um tapinha nas costas de Ark. — Você viu, Mucum? Eu consegui! Os pés do garoto pulavam no lugar como se seu corpo estivesse cheio de vaga-lumes. — Muito boa essa — disse Mucum, sem muita certeza sobre o que acabara de ver. — Você… tocou aquela coisa? — Sim, e… eu senti! Senti tudo! Cada túnel mapeado naquele cérebro magnífico. Mas era escuro. E solitário. — O rosto de Ark era uma curiosa mistura de riso e lágrimas. Ele falava sem parar. — Estamos quites agora, não é? Hein? Você com os ratos e eu falando com uma larva gigante! Bem, pensando, pelo menos. E funcionou! Bem… — Ark fez uma pausa, sem saber se fora mesmo tudo obra sua. — Vamos embora, sim? Estou morrendo de fome! Joe, com suas pernas compridas, teve de apressar o passo para acompanhar o novo herói enquanto Ark quase saltitava de volta pela passagem sob o brilho tênue dos fungos. — O que deu em você? — Mucum bufava, tentando acompanhá-lo. — Não faço a menor ideia! — Os olhos de Ark brilhavam. — Eu só relaxei!

— Humpf! — resmungou Mucum. — A gente ia virar comida de minhoca! Obrigado. Parte dele sentia gratidão; outra parte, ciúme. Ark estava eufórico. — Eu falei antes, ela gosta de você de verdade! Posso garantir isso graças aos meus poderes mágicos! Seus olhos brilhavam, travessos. — Ela o quê? De quem você tá falando? — Flô! — Dá um tempo, tá? — grunhiu Mucum. — Nem em um milhão de anos. Um belo e jovem par!, foi o que ela disse. Sinto que o amorrrrr está no ar! — Pensar nos olhos grandes e fixos de Flô provocou-lhe um súbito ataque de riso. — Eu o desafio a dar um beijo nela! Assim que voltarmos! Mucum estava furioso. — Olhe, tá certo. Tudo bem que você salvou minha vida e tudo mais. Mas esquece esse assunto antes que eu arranque esse cérebro de noz da sua cabeça de uma vez só! Este novo Ark, tagarela e saltitante, estava começando a lhe dar nos nervos. — Olhem aqui. É aqui que elas crescem! Joe apontou para o fim de uma passagem. A luz suave e fosforescente revelava um túnel de terra, o chão coberto com formas bulbosas brancas. Mucum estava horrorizado. Ele sabia que os Exploradores das Raízes eram estranhos. E aquilo explicava tudo. Ele imaginou crianças com os pés enraizados no subsolo, como mudas de monstros magricelas. — Aaarghhh! — exclamou. Joe franziu a testa diante da reação de Mucum. — Por que a cara engraçada? Elas ser muito gostosas! Querer experimentar uma? Mucum recuou, quase derrrubando Ark. Ele queria sussurrar para o

amigo, mandá-lo correr. — Eles são canibais! Comem as próprias crianças! — cochichou, esperando que Joe não ouvisse. Mas Mucum perdeu o equilíbrio e caiu com um baque surdo diretamente sobre aquelas… coisas brancas e brilhantes. — Socorro! — gritou. — Elas têm dentes afiados. Estou sendo mordido! Ark já tinha entendido o que estava acontecendo e quase rolava de rir. — Isso não são dentes! São espinhos! — Sim! — disse Joe. — Não poder haver sombroesas sem espinhos! Vamos colher algumas para a viagem de volta. Elas ser sempre muito doces. — Quer dizer que… não são bebês? — disse Mucum, pondo-se de pé, seu cérebro demorando um pouco a entender. — Bebês? Vocês lá em cima crescer assim? Eu sempre me perguntar para que servir aqueles campos suspensos! Joe e Ark agora dividiam a piada, suas risadas ecoando pela passagem. — Ah, rá-rá! Muito engraçado! Como eu ia saber? — Mucum arrancou uma das frutas e a enfiou na boca para mostrar que não tinha medo. O sabor era doce e terroso, como mel. — Nada mau, acho… — Nada mau? — Joe estava chocado. — Isto ser um tesouro, meus guris, e esperar até provar o licor delas!

***

No momento em que chegaram à estação de mergulho e tiraram os capacetes, o assovio de Joe atravessou a caverna. O som foi como uma vela atraindo mariposas. Em segundos parecia que todos os Exploradores das Raízes que viviam no imenso tronco estavam ali reunidos, acotovelando-se em um círculo, cheios de expectativa, ao redor do trio. Joe esperou pacientemente, as mãos nos ombros de Ark. — Vocês não acreditar nisto! — declarou ele aos companheiros. —

Este garoto… — indicou o menino com a cabeça — fazer amizade com uma… esperar só para ouvir esta… larva! A multidão inteira fez “Oooh!”, deleitada, enquanto Joe prosseguia, contando-lhes o acontecido. Quando sua longa narrativa alcançou o momento em que Ark tocou a grande larva, cada Explorador das Raízes ali presente fechou os olhos e balançou-se suavemente, como um bosque de mudas magricelas em uma brisa. O breve silêncio foi cortado por Joe, que continuou a pintar Ark como o herói da vez. Ark ficou ali parado, no centro de tudo, iluminado por todos aqueles olhares. De repente, sentiu-se cansado. Será que ele tinha mesmo feito alguma coisa? Talvez fosse apenas simpatia. Uma percepção do que outros, inclusive outras criaturas, sentem. O entusiasmo dos Exploradores das Raízes era esmagador. Parado a um lado, Mucum sentia-se como uma chave-inglesa sobressalente pendendo de um cinto. Os constantes olhares palpitantes de Flô em nada ajudavam. Ele lembrou-se das palavras de Ark e desviou os olhos, nervoso. Depois de engolir uns quatro litros de sopa quente, Ark sentiu a exaustão infiltrar-se em seu corpo. As pernas ameaçavam ceder, e Joe na mesma hora fez sinal para que dois dos Exploradores das Raízes o levassem de volta ao quarto. Ele foi deitado na cama de musgo e coberto por mantas, onde resvalou para o sono. Teria ele ouvido mesmo aquela criatura sombria? Por um segundo, sentira que havia outro ser naquele túnel. Não Mucum nem Joe. Alguém ou alguma coisa diferente. Muito mais tarde ele acordou ao som da música, sentindo-se renovado e surpreso com a algazarra. Os Exploradores das Raízes celebravam, com Joe arranhando o violino e os outros acompanhando com suas vozes guturais. Um dos mineiros, a pele branca riscada com círculos e manchas de carvão, pôs um galho comprido e oco nos lábios. O zumbido ressonante ecoou pela caverna, fazendo as paredes vibrarem, à medida que suas bochechas inflavam e desinflavam. Até mesmo Mucum, o rosto afogueado pela bebida,

batia em um tambor enquanto os novos amigos dançavam e cantavam, transformando a história do garoto e da larva gigante em mitos e lendas. Quando viram Ark de pé, hesitante, à porta, deram mais vivas e lhe ofereceram um copo de licor. — Você agora ser um de nós! — gritou Joe acima do alarido. — Você salvar minha vida e isso fazer de você meu irmão. Eu estar às suas ordens até o dia da minha morte, guri! Ark sentiu-se constrangido, mas entendeu a mensagem. Ele era seu mascote da sorte. Se era capaz de manter as larvas afastadas, então o principal predador deles era um problema resolvido. Mas ignorava o fato de que um predador muito mais perigoso espreitava o país inteiro. Ele precisava ir embora; tinha se dado conta disso no momento em que acordara. O tempo estava se esgotando. — Não posso ficar! — disse Ark, mas Joe não o ouviu em meio ao barulho da celebração. Essa era uma noite para festejar. Afinal, o que poderia dar errado agora?

Terrorismo infantil — Pela presente corte, sua filha é acusada de… hum… atividade terrorista! Petrônio mantinha-se nas sombras enquanto Alno comunicava a prisão. O aprendiz de cirurgião não sabia com o que estava se divertindo mais: se com o evidente desconforto do guarda em prender uma menina de quatro anos ou se com a expressão no rosto da mãe de Ark quando compreendeu a verdade. — Você está louco? — disse a Sra. Malikum, barrando a porta de sua cabana com uma vassoura. — Ela é só uma criança! — Me perdoe, senhora! — Alno estava sendo sincero dessa vez. — Estou apenas cumprindo ordens. — Ordens! Você vai ver as ordens que vou lhe dar! Ela partiu para cima do guarda magricela com o cabo de vassoura, brandindo-o como uma lança, fazendo o homem perder o equilíbrio. Foi Sálix quem salvou o colega de tombar sobre a corda de segurança na borda do caminho, agarrando-lhe o braço e inclinando-se para trás com todo o seu peso. Assim que verificou que Alno não havia tentado voar de verdade, Sálix desarmou facilmente a mãe aturdida, atirando a vassoura além do galho-via, de onde ela despencou, rodopiando, estalando e ecoando ao ir batendo no tronco até desaparecer de vista. Ele forçou a entrada,

passando pela mulher, até a escuridão do casebre de um cômodo, e pegou a criança, que na mesma hora começou a gritar a plenos pulmões enquanto o Sr. Malikum fazia débeis tentativas de se levantar do catre. — Cale esta matraca, garota! — rosnou Sálix, e a criança instintivamente soube que aquilo não era nenhuma brincadeira, mas perigo real. E a pequena Shiv fez o que lhe mandavam. — E quanto à senhora… — Sálix inclinou-se na direção da Sra. Malikum até que ela pôde sentir o cheiro de cerveja azeda em seu hálito. — Chame isso de medida de segurança. Enquanto tivermos sua filha, vocês não sairão por aí dando com a língua nos dentes sobre loucos esquemas de conspiração que nem sequer existem. — Ele fez uma pausa, atravessando-a com o brilho de seus olhos. — Isto é, se quiserem ver a menina viva outra vez! Shiv estendeu um braço e agarrou a blusa da mãe. — Mamãe! — choramingou ela, num misto de soluço e sussurro. — Solte-a! Pareciam travar um cabo de guerra enquanto a Sra. Malikum tentava arrancar a filha do aperto dos braços fortes do soldado. Os braços de Sálix fecharam-se sobre a garota com a rigidez de uma rocha. Um sorriso de zombaria formou-se em seus lábios ao se inclinar lentamente para trás a fim de separar mãe e filha. — Você é uma desonra! — sibilou a Sra. Malikum por entre os lábios apertados. — Usando minha filha dessa maneira vergonhosa. — A mão da filha agora se agarrava ao vazio à medida que Sálix se afastava. — Como pode? — implorou. — Não cabe a mim. Sálix deu de ombros, sentindo-se constrangido mesmo sem querer. Os ombros da Sra. Malikum curvaram-se visivelmente. Sálix proferiu sua fala. — Assim está melhor! Confie em nós, ela será bem-alimentada em uma cela na casa do conselheiro Grasp. Tudo que vocês têm a fazer caso lhes perguntem é dizer que sua filha está com uma doença contagiosa, de

quarentena. De acordo? Ela não tinha escolha a não ser assentir, como um servo humilde. A dor em seu coração era demais para suportar. Somente Diana sabia o que fora feito de seu filho. Agora isso. — Está resolvido então. Missão cumprida. Com seus braços de urso em torno da criança, Sálix se afastou, sem nem mesmo esperar o colega. Alno estava perturbado. Uma coisa era perseguir um adolescente rebelde que dispunha de informações perigosas. Mas encarcerar uma criança inocente? Ele se retirou, deixando a mãe aos soluços e o pai enroscado em um catre de vime, impotente com sua fúria e raiva. Ótimo! Exatamente como Petrônio havia planejado. Ele se misturou de volta à folhagem enquanto a mãe gemia e desabava no chão do casebre. A vida era uma caca, mas a mulher iria superar aquilo. Além do mais, o aprendiz de encanador havia lhes causado uma infinidade de problemas. Era hora de pagar na mesma moeda, de fazê-los provar do próprio veneno. E a garotinha, uma minhoca se contorcendo, era a isca perfeita com a qual ele esperava atrair a pequena gangrena, fazendo-a sair do buraco onde havia se enfiado. Quando Ark voltasse para casa, a honradez do garoto iria fazê-lo tentar resgatar a irmãzinha. O caráter era algo superestimado, mas dessa vez podia ter ajudado no resultado. Talvez Grasp Sênior finalmente visse seu mérito e aprovasse as atitudes do filho. Mas isso não tinha importância. O jogo agora era dele. Era hora de sentar e esperar.

***

Grasp tinha outros assuntos e, mais importante, seu rei para cuidar. A reunião corria bem, como esperado. A sala, no coração do palácio, não era

exageradamente grande e tinha uma mobília simples, com boas peças de carvalho: uma mesa coberta com pergaminhos e mapas e as duas cadeiras em que se encontravam sentados. As paredes eram de tábuas, sem adorno, e não havia um só tapete à vista. As taças simples de madeira em que bebiam contrastavam com a versão folheada a ouro de Grasp. Ele é o rei, pelo amor de Diana. Toda aquela assim chamada humildade e bobagens do tipo “servo do povo” estavam muitíssimo ultrapassadas! Ele de fato ignorava o que se passava fora dos portões do palácio. A verdade era que a sociedade consistia em líderes e servos. Era a lei da floresta. Oferecer um banquete aos pobres uma vez ao ano na Colheita não iria mudar aquilo. Grasp e seus conselheiros já controlavam a maior parte dos salários no país, reservando a nata para si mesmos. Quercus não fazia a menor ideia de que efetivamente vinha governando o país apenas no nome. O golpe poria um fim a essas ideias absurdas de uma vez por todas. O lampião a gás bruxuleante revelava um homem de idade já avançada, de compleição forte, com a barba grisalha aparada, testa ampla e olhos cor de mel que fitavam Grasp com firmeza. A bata verde do rei era larga na cintura, exibindo uma faixa de ombro bordada com folhas de carvalho em fios de ouro. O gibão de seda em seu peito e as finas botas de camurça eram ambos tingidos de azul-escuro, uma cor que ninguém além do rei deveria usar. A tinta, produzida a partir de poligonáceas fermentadas, representava a única coroa que as árvores usavam: o céu azul. De ambos os lados da cadeira postavam-se os dois guardas reais obrigatórios, os olhos impassíveis fixos à frente, os músculos reluzindo à luz do gás. Grasp sentia-se seguro de si mesmo agora, observando a sala e pensando em como iria redecorá-la assim que estivesse no poder. O rei prosseguia com sua ladainha, como de hábito, e então fez uma pausa, como se esperasse. De repente Grasp compreendeu que uma resposta se fazia necessária. Ele arriscou: — É algo a se considerar. — Mas e quanto a nossas fronteiras? Temo por nossa pequena ilha.

Você acha que Maw está recorrendo novamente a seus velhos truques? Grasp se amaldiçoou por atiçar o fervor do velho, mas estava preparado para aquilo. — As patrulhas do comandante Flint não encontraram nenhuma incursão. O gás que as árvores desprendem há gerações ainda está cumprindo seu dever. O rei coçou a barba, como se esperasse receber uma resposta diferente. — Sim, creio que você tem razão. Grasp sorriu, apaziguador. Era a frase preferida do rei ultimamente, e ele não se cansava de ouvi-la. — É com a tecnologia que estou preocupado — continuou o rei. — Somos a última fronteira, um minúsculo reino resistindo contra todas as probabilidades… — E se saindo muito bem nessa tarefa, meu senhor! — interrompeu Grasp. — Sim, sim. Estou ciente dos artigos de luxo que entram em nosso território por contrabando. Os piratas da lama que vivem lá embaixo devem ser tolerados enquanto ainda podem trazer mercadorias que não podemos fabricar aqui. Nossas lavouras suspensas ainda não conseguiram produzir uma cultura de chá aproveitável, e uma xícara de algo quente não é nenhuma ameaça. — De fato. Se Grasp assentisse mais uma só vez que fosse, sua cabeça cairia. O velho não tinha chegado nem à metade. — Mas o que mais pode entrar furtivamente, não é? O rei fez uma pausa, seus olhos pousando no conselheiro. Por um segundo o conselheiro entrou em pânico, à medida que o silêncio se aprofundava. Ele não pôde impedir que um rubor se espalhasse por seu rosto, como uma urticária. Os dois guarda-costas ainda olhavam para a frente, mas seria aquilo um súbito aperto nas mãos que seguravam as armas? Teria ele sido descoberto? Seria uma armadilha?

— Meu s-senhor! — gaguejou ele. — Nada… hã… isto é, nada passaria por Flint. Ele é o melhor. O rei Quercus esperou antes de responder. Talvez fosse a hora. Grasp esperou a qualquer momento a mão pesada em seu ombro, a acusação, os guarda-costas ganhando vida como duas máquinas mortíferas. Por fim o rei suspirou. — É claro. Você tem razão. Cresci com ele, você sabe. Em uma batalha, ele é a pessoa que eu gostaria de ter ao meu lado. Ainda me pergunto: será que a Zona do Musgo foi mesmo o melhor lugar para mandar os Arsenais? O jovem Grasp soubera muito bem como Flint havia posto fim ao levante. A vergonha do rei diante de tais atitudes tomadas em seu nome foi um estímulo para uma súbita inspiração. Com o apoio dos outros conselheiros, Grasp havia sugerido que a população talvez se sentisse menos ameaçada, após os anos de agitação, se o exército estivesse posicionado fora de sua vista. O que também trouxera outro benefício, já que dera a Grasp mais poder na capital. Aquele era seu segredo, e a razão por que prosperara enquanto o rei fora gradualmente enfraquecendo. Esperava que Flint jamais descobrisse. A pergunta significava que Quercus não estava prestes a mandar que o prendessem. Grasp puxou um lenço para enxugar o súbito suor da testa. — Eles podem ser convocados rapidamente se houver perigo… — Ele mudou de assunto. — Bem, quero crer que os preparativos para o Festival da Colheita estejam a seu contento… — Ah, por favor, Ambrosius, menos formalidade. Está tudo bem com os preparativos. Parece que você tem tudo sob controle, como sempre: música, comida, segurança. Se ele soubesse… — Não se preocupe, meu senhor, meus homens são os melhores. — Ótimo, ótimo. Talvez nessa noite que possamos celebrar o que nos é caro neste nosso pequeno reino. Quem ousaria nos atacar em uma ocasião

tão sagrada, hein? — Seria bom para seus súditos ter uma noite de folga: cabra das árvores recém-assada e quem sabe até o raro porco selvagem do fundo da floresta no espeto, acompanhados por um pouquinho a mais de bebida. — Fico feliz em ter homens como você sob meu comando. Venha, vamos deixar essas questões de lado e partilhar uma dose de algo mais forte! As vinhas das lavouras suspensas do Sul foram um grande sucesso no ano passado. Nosso vinho arboriano está amadurecendo bem. Grasp quase soltou um suspiro de alívio ao esvaziar a taça. Uma hora mais ou menos de conversa fiada maçante era um preço pequeno a pagar. Estava se aproximando o dia em que o velho finalmente sairia de seu caminho. Várias taças mais tarde, Grasp teve de ser erguido até o cavalo. À medida que a bebida fora fluindo, as piadas de Quercus haviam se tornado ruidosas e bastante hilárias. Por um segundo Grasp quase sentiu uma fisgada em sua consciência. Mas então ela desapareceu, dissolvida na lembrança das promessas de Fenestra. Aquele rei antes visionário havia construído pouco mais que castelos no ar. Era hora de algo mais substancial. Enquanto o cavalo, com seu trote firme, cobria o caminho nos últimos resquícios da luz do entardecer, Grasp teve a sensação de que a história tinha um lugar reservado para ele. Em alguns dias, a lua indiferente que subia pálida no céu estaria brilhando sobre um país muito diferente. O cavalo de repente empinou quando uma figura sombria plantou-se na estrada. Quem ousaria meter-se na frente do Sumo Conselheiro? Mas seu orgulho encobria um medo mais profundo. Sálix e Alno sem dúvida estariam jogando dados em uma sala de guardas na casa que ficava logo após a esquina. Estavam perto, mas não perto o bastante. Se fosse um ladrão, a bolsa de Grasp estava pesada, e a queda para a terra fedorenta lá embaixo era longa. — Quem bloqueia meu caminho? Ele tentou evitar que a voz tremesse. Uma massa de nuvens deslizou pelo céu, clareando por um segundo o

suficiente para revelar um rosto animado, pálido como a própria lua. — Sou eu, pai. — E por que meu filho precisa rastejar por aí na noite como uma cobra? O alívio deu lugar à fúria. Mas seu filho ignorou a raiva e a pergunta. — Ouça! Tivemos êxito! Estou com a garota! Por um momento a cabeça de Grasp, desorientada pela bebida, pensou que Petrônio estivesse falando de Fenestra. Mas então sua mente clareou. Aquela era uma notícia bem-vinda. — Ótimo… ótimo. — E para onde a garota for o irmão certamente a seguirá. Grasp quase sorriu. As pontas soltas estavam sendo atadas. — Leve meu cavalo e peça aos criados que me tragam comida. Agora. Petrônio pensou em várias respostas às ordens do pai que poderiam têlo metido imediatamente em encrenca. Por que se importar com os criados quando ele, o filho, não recebia melhor tratamento? Mas aquela noite era dele. Não deixaria que a arruinassem. Manteve a boca fechada e levou o cavalo embora. Grasp de repente sentiu-se mais sóbrio que nunca. Providenciou para que uma criada fosse mandada para fazer companhia à criança, alimentá-la e acalmá-la até que dormisse. Não seria nada bom ter sua noite interrompida pelos gritos de uma plebeia. Sálix e Alno foram convocados para manter cuidadosa vigilância e prender o garoto se ele aparecesse. Não deveriam matá-lo, pelo menos não até ele ter respondido a várias perguntas. Então poderiam fazer o que quisessem. Quando o pai subiu a escada, Petrônio voltou pelo pátio com cuidado, abraçando as sombras e evitando com facilidade os dois guardas. Entrou sorrateiramente na cozinha para fazer uma garrafa de café de chicória. A noite à frente seria fria. Ele afastou-se da casa, ao longo do ramo-via pelo qual qualquer visitante inesperado teria de passar. Aquela era uma parte do plano que ele não tinha a menor intenção de partilhar com o pai, muito

menos com aqueles dois guardas imbecis. Petrônio escolheu seu posto, onde o galho tinha uma dobra natural e sua curva criava um vazio onde a escuridão era mais profunda. Sentou-se com cuidado nas sombras, puxando uma faca do cinto e afiando-a numa pequena pedra de amolar. Pingos de chuva leve começaram a tamborilar no caminho. Perfeito. Se Ark aparecesse — quando Ark aparecesse —, Petrônio cuidaria para que dessa vez não escapasse.

Fuga e luta A festa estava a pleno vapor. — Coisa boa, né? Despeje na goela, amigão! — Mucum empurrou uma caneca de pedra para Ark, quase derramando o líquido em cima dele. — Nada mau aqui embaixo, de verdade. Seus olhos já estavam vidrados e suas palavras se arrastavam com a bebida. Ark segurou a taça sem beber. — São boas pessoas — respondeu somente. — As melhores! Mucum se viu espremido ao lado de Flô em uma cama de musgo seco. Sentados, pareciam quase do mesmo tamanho. Ela trocara de roupa, e agora usava uma saia vermelha esvoaçante e um corpete de veludo verde bordado com um desenho de raízes enroscadas, amarrado na frente. O efeito era notável. Mucum cutucou Ark nas costelas e agarrou a cabeça do amigo para sussurrar em seu ouvido: — Eu gosto mesmo dela, sabe? Ark lutou para se soltar. — É. Já entendi isso. — Não, é de verdade mesmo — disse Mucum com a voz arrastada, os olhos voltando-se nervosamente para Flô, cujo sorriso agora se erguia acima

da algazarra da festa. — Segredo, tá bem?, só entre nós dois, que somos amigos. — É claro. Ark tentou desesperadamente recuar, mas os dedos rechonchudos de Mucum seguravam-no ainda com mais força. — Eu queria dar um beijo nela, mas nunca beijei ninguém antes! Foi a vez de Ark ficar vermelho. Ele não era nenhum especialista naquela área. — Certo. Ótimo. Vá em frente. — Acha mesmo? Não conta pra ninguém. Eles acham que eu já beijei montes de garotas! Tenho uma reputação a manter, você sabe. Mucum soltou o amigo, criou coragem e deslizou o braço em torno de Flô. Ela reagiu, aconchegando-se mais a ele. Ark olhou os novos amigos à sua volta. Ali havia boa comida, música animada e, acima de tudo, camaradagem. Mas um pensamento mais sombrio que qualquer larva continuava a incomodá-lo. Maw não iria explorar aquela terra com gentileza. Suas máquinas imensas poderiam arrancar as próprias raízes de onde estavam fixadas. Joe e seus companheiros se tornariam mão de obra escrava, se é que sobreviveriam ao ataque. Ark foi se afastando lentamente da festa até se perder nas sombras da caverna. Era hora de ir. Ele pensou em Mucum e nas aventuras que haviam tido até ali. Mas Mucum estava seguro ali embaixo. Se Ark podia enfrentar uma larva-monstro, então certamente poderia encontrar um caminho até o rei. Estava outra vez sozinho, como sempre. — Aonde você estar indo? Joe surgiu das sombras como em um sonho. Ark quase caiu de susto. — Eu dar uma volta… explorar. — Loucura. Ele já começava a falar como eles. — Quer dizer, estou indo dar uma volta para explorar. A explicação parecia pouco convincente. Ele esperou que Joe o impedisse.

— Bom para você! — O ar inquisitivo desapareceu dos seus imensos olhos redondos. — Se continuar nessa direção, você encontrar os vagões de minério! Muito para ver, e ficar feliz de você gostar de nossa humilde casa. Agora você ser parte dela! Ele deu tapinhas nas costas de Ark e voltou apressado na direção da música com passos saltitantes. Ark sentiu-se péssimo. Ninguém mentia ali embaixo. Era um lugar em que as pessoas confiavam umas nas outras. Mas, se ele falasse a verdade, Joe não o deixaria ir, jamais. — Obrigado — sussurrou para a figura que se afastava — por tudo. Ark dirigiu-se rápida e sorrateiramente ao quarto onde dormira para pegar sua bolsa e o cinto de encanador. Mantendo-se nos cantos mais escuros, afastou-se da música, tomando o caminho em direção aos vagões de minério. Todo aquele minério britado tinha de ir a algum lugar. Dali debaixo, nas raízes, só podia subir. Ele avistou um trilho de trem e alguns vagões arrastando-se lentamente, sem nenhum maquinista à vista. O trem parecia seguir na direção de um túnel na extremidade oposta da caverna. Ark correu na direção do último vagão e saltou para o expresso mineral. Agora não tinha mais volta. Em questão de segundos viu-se envolto na escuridão total. As trevas logo se dissiparam quando chegaram a uma estação de descarga. Cada vagão era equilibrado em ambas as extremidades sobre um eixo imenso. Os vagões à frente começaram lentamente a tombar para a esquerda, puxados por um ímã gigante na lateral, para derramar sua carga em uma caixa enorme ao lado do trilho. Aquele contêiner era preso em cada um dos cantos por uma espécie de guindaste. Quando a caixa estava cheia, as cordas se retesavam e a carga começava a ser levantada. Caixa após caixa deslizava em um ritmo suave e era engolida pela escuridão acima. Embora Ark forçasse os olhos, não conseguia enxergar além das sombras. Não tinha importância. Era uma carona e o poupava de ter de subir os cinco mil degraus. Suas pernas nunca se sentiram tão agradecidas. O único

problema era como evitar ser esmagado por algumas centenas de toneladas de minério industrial. Ark conseguiu subir pelo lado direito do vagão e segurou-se firme na borda quando ele começou a se inclinar. Logo, enquanto se agarrava com força, suas pernas ficaram soltas no ar e seu nariz encheu-se de poeira. Ele tentou desesperadamente não espirrar, para o caso de haver algum Explorador das Raízes por perto. No último instante, e com uma rápida prece a Diana, fechou os olhos e soltou as mãos. Houve um choque e Ark sentiu um pedaço de pedra bater em sua canela, com força. Ele tentou não gritar quando ousou abrir os olhos. Tinha conseguido; estava empoleirado no topo do monte de minério, dentro da caixa, enquanto ela lentamente subia para o teto. Então ouviu um ruído horrível e estridente e o teto dividiu-se em dois, como um par de alçapões gigantes de portas articuladas, enchendo a caverna com os cheiros da… terra. À medida que a caixa oscilava ligeiramente de um lado para outro e deslizava devagar para fora da segurança da caverna, Ark arrastou-se até a borda e espiou por cima dela. — Fungos fedorentos! O familiar tronco da árvore à sua esquerda não era a razão por que ele quase caiu, em estado de choque. Ficou horrorizado, e em seguida fascinado, ao ver o chão propriamente dito, menos de dez metros abaixo dele, estendendo-se a partir das raízes como uma lavoura suspensa marrom e terrosa. Os Mateiros Sagrados diziam que a terra era impura. Ninguém que deixara Arborium para descer até ali jamais retornara para contar a história. E no entanto aquele lugar não parecia perigoso. O cheiro era argiloso, profundo e agradável. Um animal mordiscando a vegetação ergueu a cabeça e viu um rosto marrom fitando-o de volta. Ark teria esperado criaturas deformadas, nascidas da poluição antiga, não aquela belezinha de nariz arrebitado e olhos arregalados, assustando-se e desaparecendo com pernas ágeis floresta adentro, à luz do crepúsculo. Ark sentiu-se ávido para ver aquele mundo, encantado por um exército de

troncos gigantescos desaparecendo ao longo. Entre eles, a terra parecia exuberante e saudável. Raios de luz do fim da tarde filtravam-se lá de cima, como dedos que a explorassem. E lá adiante, enfiado como um ninho de pássaro na imensa curva de uma raiz, havia um chalé, construído com pedra e musgo. Uma espiral única de fumaça subia da chaminé inclinada. A qualquer instante agora, a porta se abriria. Mas não abriu. Seria aquela uma das casas dos piratas da lama? Como podiam viver tão longe do céu? Se ao menos a curiosidade pudesse bater à porta e entrar, mas a caixa subiu rápido demais, roubando-lhe a visão. Gradualmente ele foi sendo levado cada vez mais para longe do chão. O movimento o deixou enjoado. Fazia mesmo apenas um dia desde que fugira do palácio, escorregando como uma lesma das garras dos guardas? O problema sobre o que fazer se avultava. À medida que a caixa subia, as saudades de seu país começaram a diminuir. A um quilômetro e meio de altura, os galhos começaram a serpentear horizontalmente a partir do tronco, adornados com o acréscimo familiar de teleféricos, andaimes, tubos de encanamento e as estruturas confusas da civilização dendriana, unidos com o ferro que era fundido depois de extraído da pilha de material debaixo dele. Era familiar, seguro. À medida que a caixa subia mais, oscilava perigosamente próximo a um galho-via vazio. Ark não teve tempo nem de pensar ao dobrar as pernas e saltar. — Benditos galhos! Seus lábios formaram as palavras quando ele aterrissou sobre a madeira sólida novamente. Ark rolou numa cambalhota e se levantou, olhando ao redor para se certificar de que não estava sendo observado. Sentir a madeira sob os pés outra vez encheu-o de esperança. E, quando se deu conta de onde estava, sentiu que a Deusa com certeza estava com ele. A jornada do minério de ferro o levara não só para cima, como também para oeste, à medida que a série de engrenagens e rodas gigantescas impeliam as pedras

trituradas e o contêiner de Ark cada vez para mais perto dos distritos de fundição. Sua casa ficava a apenas meia hora de caminhada. Ele teve vontade de se ajoelhar e beijar a casca da árvore de tanta gratidão. Enquanto o crepúsculo caía e as sombras se estendiam sobre os galhosvia, sua sensação de liberdade foi desaparecendo. Nada havia mudado. Sua casa provavelmente estava sendo vigiada. E o que ele tinha para dizer à mãe? Que fracassara em chegar até o rei? Talvez devesse seguir direto para o castelo. Os sinos anunciando o fim do expediente de trabalho ressoavam pela floresta, e os ramos-via logo estariam cheios de dendrianos cansados, apressados para chegar em casa. Eles achavam que estava tudo bem. Casa significava um fogo a gás acolhedor e um prato fumegante de comida. Mas, para Ark, não havia mais aquela opção. Ele passou para um galho-via menor e se afastou das multidões. Cinco minutos depois sua cabeça espiava pela porta do Templo. O santuário parecia vazio. Ele dirigiu-se furtivamente para a capela lateral. Velas bruxuleavam em recessos de argila e o assoalho polido captava seus reflexos. No altar, a figura familiar encontrava-se ajoelhada no chão. O silêncio se espalhava, inquebrável. Ark não tinha escolha. — Arrã — pigarreou. A figura permaneceu imóvel. — Veio rezar, meu Malikum? Que bem aquilo faria agora? — Ouço sua dúvida. Sente-se aqui comigo um pouco. — A Guardiã Goodwoody ergueu a cabeça e fez sinal para que Ark se acomodasse em um banco ali perto. Ela farejou o ar. — Esse cheiro que você traz… Acho que lembro dele. Quando eu era jovem e ainda enxergava, costumava explorar todos os tipos de lugares proibidos… — Sua voz falhou. — Mas fale comigo, Ark. Disseram que você estava morto. Depois, não estava, e agora tem uma comoção e tanto por sua causa por aí.

Ark percebeu que tremia ao empoleirar-se na cadeira. — Eu quase morri… Algumas vezes. E o que mais fizera? Desaparecera em um manto de escuridão e tocara uma larva gigante. Não sabia se era graças a uma habilidade dele ou uma simples coincidência. Mas sabia que não era mais o mesmo garoto que viera ver a guardiã, buscando orientação, dois dias atrás. Coisas demais tinham acontecido desde então. Era ridículo, mas ele se sentia mais velho, mais determinado que nunca. — Sim, e tenho a sensação de que as árvores estão com você o tempo todo. Este é um lugar de coisas surpreendentes, mas a maioria dos dendrianos esqueceu-se disso. Mas não você… Ark assentiu, e então se deu conta de que ela não podia ver que ele concordava. Havia mais coisas ocultas na floresta do que ele jamais sonhara. — A pena… — … vem guiando você, sim. Mas você ainda não chegou lá. Há muito o que fazer. Demais, talvez. Goodwoody suspirou. Ela estava certa, e ele era um tolo. O rei continuava tão inacessível quanto antes. — Como ficou o telhado? — perguntou ele, mudando de assunto por fim. — Ah, sim! — A guardiã sorriu com ironia. — Os Mateiros ficaram muito desconfiados da minha história, mas dificilmente eu poderia ter subido até lá e feito eu mesma o buraco. — Minha família está bem? A guardiã fez uma pausa. — Sua mãe e seu pai estão bem. Consegui contrabandear para eles um pouco de comida que teria apodrecido neste Templo. Mas não sei como lhe contar uma coisa… — O quê? — Sua irmãzinha.

Ark sentiu o coração disparar. — Ela está doente? Ela caiu? Eu não deveria ter ido embora! — Não, meu Ark. Sua mãe veio até mim faz algumas horas. Estava muito triste. Os homens do conselheiro prenderam sua irmã sob a acusação de terrorismo. — Ela sacudiu a cabeça. — A floresta enlouqueceu. Ark deu um pulo. Aquilo era dez vezes pior que uma simples larva gigante. — Não podem ter feito isso! Como ousaram? — Ele deu um soco na cadeira. — E está errado! — Ark desatou a chorar. — Ouvi uma conspiração que irá destruir toda a Arborium. Fugi e eles tentaram me matar, tentei avisar o rei, mas não consegui. — Ele soluçava. — A pena só me ajudou a fugir, embora eu continuasse ouvindo uma voz. E, então, estávamos lá embaixo, nas raízes, mas eu sabia que tinha de voltar e… — Uma voz? — interrompeu-o a guardiã. — Sim. Ela fica repetindo o meu nome. — É Ela! É Ela de verdade! — Uma expressão de perplexidade cruzou o rosto de Goodwoody. — Ela está chamando você e a sua hora está chegando. — O que quer dizer? A guardiã estava usando palavras misteriosas outra vez. — Diana sabe o que faz. Tudo vai ficar bem, embora a jornada seja cheia de perigos. Naquele momento, porém, tudo em que Ark conseguia pensar era em Shiv. Ele enxugou as lágrimas com a manga e pôs-se de pé abruptamente. — Tenho de ir. A guardiã percebeu a mudança em seu tom de voz. — Diana certa vez também ficou enfurecida. O Livro da Madeira fala sobre como ela pôs abaixo o templo dos Financiadores de Mel! Confie no que está dentro de você! — Seja lá o que for… — gritou Ark. A porta bateu, e ele se foi.

— Que a Deusa o apresse! — Goodwoody gritou para a capela vazia. Seus joelhos doíam no chão duro e ela sentia a larva da dúvida dentro dela. Capturar uma criança, destruir Arborium! Teriam suas preces algum valor diante de tamanho mal? E a voz que Ark mencionara? Poderia mesmo ser verdade? Ark saiu em disparada do Templo. Sabia aonde estava indo, mas nada além disso. Ele havia enfrentado uma larva gigante. A guardiã tinha razão. Hora de parar de duvidar de si mesmo. A raiva corria por suas veias como ferro derretido.

Um amigo em apuros Mucum nunca soube que uma garota poderia ter aquele efeito sobre ele. Uma coisa era se gabar com os colegas, outra era ter uma Flô de carne e osso aconchegada junto a ele, seus corpos balançando no ritmo da música. Ele virou-se a fim de olhar para ela. Um pouco de cabelo até que seria bom, mas, por outro lado, seu cabelo, cortado rente, não era muito diferente. Na verdade, afora a altura, a cor da pele e o sotaque engraçado, eles tinham muito em comum. E quando ela sorria, ah, puxa, seu estômago se contraía. Se ele ao menos criasse coragem para beijá-la! Estava correndo um sério risco de se tornar sentimental. Mucum examinou o círculo de rostos ao redor do fogo. Eram um bom grupo, esses Exploradores das Raízes. Ele tornou a correr os olhos pela roda. Faltava alguma coisa. Um rosto. De quem? Ele se lembraria em um minuto. Joe voltou para o círculo e se sentou. Mucum rapidamente afastou-se da nova namorada. — Estar tudo bem, rapaz! — Os olhos de Joe não tinham perdido nada. — Ser bom ver nossa Flô tão feliz! Mucum se remexeu sob o escrutínio daqueles olhos grandes. — Não pensar que eu não ver! Joe bateu em seu nariz, um pai cheio de orgulho. Mucum remexeu-se novamente e procurou um novo assunto. Sua mente voltou a trabalhar.

— Cadê Ark? — Ah, não se preocupar com ele. Ele ir explorar, ele dizer! Mucum sentou-se ereto, a mente clareando em um instante. — Não, ele não foi! Como pude ser tão estúpido? — Ele havia tirado os olhos do baile. — Preciso ir. Desculpem. Suas palavras caíram no meio da multidão. A música falhou, em seguida parou de vez quando os outros Exploradores das Raízes voltaram-se para ele. Joe quebrou o silêncio. — O que você querer dizer? — Ele não tá explorando. Ele foi embora. Vazou! Fugiu! — Mucum gritava as palavras, furioso consigo mesmo. — E eu deveria ter ido com ele. — Embora, você dizer? Mas ele me falar… — Ele mentiu, Joe! A multidão inteira deixou escapar um suspiro, e Flô segurou seu braço. — Por que ele fazer uma coisa dessas? Mucum sentiu-se acuado em um canto. — Ark tentou explicar. Vocês não ouviram o que ele queria dizer. A gente não é um milagre. Nós dois não chegamos aqui por um artifício divino. A gente tava fugindo. — Ele esperou que Joe agitasse a mão no ar, como antes, num gesto de dispensa, mas o olhar do estranho homem permaneceu sério. — Nosso rei, nosso país… seu país. Está com problemas. Isso tudo vai ser destruído se o golpe contra o rei der certo. Se vocês amam as árvores e seu lar, deviam me ouvir! Alguns dos mineiros começaram a murmurar que as questões lá de cima não tinham o menor interesse para eles, mas Joe ergueu o braço e eles fizeram silêncio. — Jovem Mucum, contar tudo para nós. Assim ele fez, desde o começo, quando esbarrara com um Ark em pânico no ramo-via naquela primeira tarde que parecia ter sido tanto tempo atrás. Seria mesmo possível que tivessem se passado apenas dois dias?

Aquela era uma história que superava todas as histórias. Os mineiros exclamavam “Oohs” e “Aahs” a cada acontecimento, chocados ao ouvir que dendrianos podiam encher suas mentes com traição e mentiras. Quando Mucum descreveu o encontro com os ratos do esgoto, o coração de Flô quase explodiu de admiração. — Assim, quando cês nos tiraram daquele tubo de água, a gente era um par de covardes, fugindo de homens adultos com espadas — Mucum finalizou, deixando pender a cabeça, incapaz de olhar para os amigos. Foi Flô quem se inclinou e delicadamente ergueu seu queixo. — Estar vendo a minha gente aqui? Eu poder prometer a você que cada um deles considerar vocês dois heróis! Eu estar certa ou não? Ninguém falou por um segundo, e Mucum soube que eles o haviam abandonado. — Eu estar certa ou não? — repetiu Flô, e dessa vez havia um toque de dureza em sua voz, inflexível, exigindo uma resposta. — Sim! — disse um dos Exploradores das Raízes. — Sim! — respondeu outro, e em questão de segundos toda a multidão gritava e dava vivas. Joe apontou um dedo ossudo para o teto da caverna muito acima, e um a um seus companheiros mineiros foram se calando. — Minha filha estar certa. O velho Joe aqui ser um pateta. O que subir — e com isso ele ergueu os olhos na direção do dedo — dever descer. Eu ainda achar que vocês ser enviados. Sua Diana não ser conhecida por cometer erros. Agora, jovem Mucum, o que querer da gente? Mucum não podia acreditar. — Preciso encontrar Ark rápido, e então precisamos chegar até o rei. O Festival da Colheita é daqui a poucos dias e é quando a caca vai atingir o ventilador, a menos que a gente faça alguma coisa a respeito. — Muito bem. Primeiro, ter que descobrir como ele sair daqui. Jacko, George, andar logo! Dois dos Exploradores das Raízes mais altos saíram correndo, seus

passos enormes engolindo a distância enquanto eles desapareciam na escuridão. Menos de um minuto depois eles voltaram, o fôlego praticamente inalterado. — Ele sair com o minério, mestre Joe! — informou Jacko. — Direto pelo alçapão, eu crer! — completou George. — Aahh! O garoto ser esperto! — respondeu Joe, com um aceno aprovador da cabeça. Ele pensou por um segundo. — Ser um bom modo de sair, mas lento. Se querer alcançá-lo, melhor pegar o elevador. Mucum viu sua bolsa ser largada em seu colo, e Flô puxá-lo pela mão, levando-o na direção de um dos Xilemas no centro da caverna. Diferentemente das outras raízes ocas, aquela seguia para o telhado direto, como uma flecha. Uma porta dupla estava escancarada e o negrume acenava além. Flô soltou sua mão e manipulou uma polia ao lado da porta. Lentamente, um pequeno compartimento de lateral aberta subiu deslizando, vindo de baixo, até aquele espaço. Joe agora agia todo profissional, consultando o relógio e alguns números entalhados na moldura de madeira. — Alguns minutos, é o que você ter. O aspecto do espaço fechado não agradou Mucum. — Você quer que eu entre nisso aí? — Sim! — Mas o que é isso? — O elevador, querido! — disse Flô, tristonha. — Ele ser muito rápido. Você não achar que a gente usar a escada o tempo todo. — Podiam ter dito isso ontem. Levamos horas pra chegar até aqui embaixo. Minhas pernas ainda tão doloridas! — Eu adorar quando você reclamar! Ser muito doce, eu achar! Mucum se contorceu. Mais uma gentileza e ele explodiria. — Agora, estar vendo aquele cinto? — Ela apontou para um assento no interior do compartimento com uma espécie de arnês de couro. — Ele precisar ser apertado bastante. Aqui!

Ela o conduziu delicadamente até o compartimento, o fez sentar-se e começou a prendê-lo. Mucum a olhou. Havia lágrimas nos olhos dela. — Ei. Não se preocupe. Eu vou voltar! Outra mentira. Ele não sabia se voltaria. Ouviu-se um estrondo surdo a distância. A caverna inteira começou a vibrar. — Sair, nossa Flô! — gritou Joe. Mucum sentiu uma brisa fria assoviar pelas fendas entre as tábuas. — Tem certeza de que isso é seguro? — Sim! — disse Flô, inclinando-se. No momento em que estava prestes a beijá-lo, uma rajada de vento chocalhou a gaiola e os separou. O momento havia passado. Ela o olhou com tristeza. — Segurar firme. Ele tentou desviar o olhar ao ver Flô recuar, saindo da cabine, mas não conseguiu. — Até mais! — disse ele, tentando parecer casual, enquanto estranhos sentimentos borbulhavam dentro de si. As vibrações foram se tornando mais intensas e a cabine começou a sacudir-se inteira. — Quando vocês precisar de nós, nós estar lá! Mucum sabia que as palavras de Joe eram sinceras. Quando as portas se fechavam, ele teve um último vislumbre do rosto de Flô. E então a escuridão. — Muito bem, Diana. Não tenho muita certeza se você existe — sussurrou Mucum —, mas, se existe, posso pedir um favor? Não morrer até que seria bom… Por favor? Suas últimas palavras foram abafadas no momento em que a maré virava e a árvore sedenta decidia beber um gole. A água subiu em um jato vindo das profundezas da terra, como uma flecha líquida, chocou-se contra a frágil cabine de madeira e levou um aterrorizado Mucum de zero a cento a sessenta quilômetros por hora em questão de segundos.

Ele estava caindo, só que para cima. Uma estrela cadente. Agarrou-se à cabine com todas as forças. Cada pulo e solavanco ameaçava fazer o elevador em pedacinhos, e os dentes de Mucum estalavam na boca como um conjunto de colheres de madeira. Se era aquela a maneira pela qual os Exploradores das Raízes visitavam a floresta, eles que ficassem à vontade. Por alguns segundos Mucum esqueceu-se de como respirar, até que ouviu um estrondo de madeira se quebrando! Bastante apertado, dissera Flô. Ela estava certa, embora o cinto de couro apertasse sua pele ao ser quase catapultado pelo teto frágil. Em algum lugar um sino soou de leve. Do lado de fora do elevador um par de portas deslizou, abrindo-se suavemente. Lá de baixo até ali em cima em sessenta segundos! Mucum abriu o arnês e tentou ficar de pé, apesar da vertigem e de estar encharcado com a água que havia vazado por cada minúscula fresta no elevador. A porta aberta revelava uma cortina de trepadeira, pontilhada por estilhaços dispersos de luz de uma noite nebulosa. Ele transpôs a abertura do poço, abrindo caminho em meio à barreira de folhas até o bom e sólido ramo-via. Conseguira! Um sorriso largo e lunático cruzou seu rosto até ele lembrar do que deixara para trás. Então Mucum virou-se para ver a entrada do elevador quase engolida pela vegetação, em uma tranquila ramificação do galho-via principal. Lembrou-se de quando era menor, de uma excursão da escola para fora da cidade. Um dos alunos gritara de repente: “Cabeça de ovo!” Todos olharam para a estranha figura que passava por eles. As roupas eram obviamente diferentes: esvoaçantes, brancas, elegantes se comparadas às peças práticas que usavam na floresta. Enquanto o Explorador das Raízes se afastava, o restante da turma apontava o dedo e explodia em gargalhadas. Qualquer um que não fosse dendriano era um alvo fácil. Mucum sentiu o rosto quente de vergonha. Não era de admirar que se mantivessem isolados. Não havia tempo a perder. Joe tinha lhe dito onde era mais provável que Ark saísse. Mucum partiu, tentando esquecer aquele último olhar de Flô. Seu principal problema agora era Arktorious Malikum, e sua pequena

questão que era salvar sua ilha. Ah, a vida fácil… Marchando pelas pranchas de madeira, tentando calcular se conseguiria interceptar o amigo a tempo, um rosto em prantos desviou sua atenção. Era uma mulher caminhando sozinha, o rosto riscado de lágrimas. — Sra. Malikum? O rosto se ergueu, os olhos esgotados, a boca parecendo que nunca mais voltaria a sorrir. — É você, jovem Mestre Gladíolo? Mucum encolheu-se. No trabalho, seu segundo nome era território proibido. Ele não era nenhuma flor. Dessa vez, abriria uma exceção. — Você está molhado. Andou nadando? — Na realidade, não. — Não havia como lhe contar a verdade. — A senhora tá bem? — Eu estou… bem. Acabo de ir ao Templo. — A senhora viu Ark… Arktorious? — Não. Sim. Quer dizer, deixe para lá. Vá para casa. Salve-se. A voz dela soava aguda, quase histérica. — Eu não entendo. — Nem eu. Mas é o melhor. Até logo! Ela adiantou-se, na intenção de passar por ele. — Mas, peraí. A senhora não quer saber sobre o rei e tudo mais, e o que a gente tentou fazer? A Sra. Malikum nem sequer reagiu. — Tem alguma coisa errada. Cadê Ark? Me conta! Ela fez uma pausa, mordendo o lábio inferior. — Me mandaram não falar nada. Mas eu precisava falar. Fui ver a guardiã e contei tudo para ela. Ela disse que Ark ficaria bem e que eu não devia me preocupar com Shiv, mas… A minha garotinha… — A mulher tagarelava como um papagaio. — Peraí! Shiv? Que que ela tem a ver com isso? A Sra. Malikum espiou por trás das costas largas de Mucum,

esquadrinhando as árvores, como se o perigo espreitasse em cada buraco na madeira. — Me mandaram falar que ela estava doente. Mas você estava com Ark, posso confiar em você… Eles levaram a minha filha. Os homens de Grasp. Por traição, disseram. Então ela se desmanchou, quase desabando nos braços do garoto. Estava tudo errado. Esperava-se que as mães consolassem as crianças, não o contrário. A cabeça de Mucum se iluminou como um relâmpago. Não era nenhuma surpresa que tivessem levado Shiv. Muito esperto, também. O estúpido senso de honra de Ark o levaria como uma cabra das árvores ao fungo. — Vá para casa! Você é apenas um menino! Nunca deveria ter participado disso — soluçou ela. — Mas agora sou parte disso, e Ark precisa da minha ajuda. Eles haviam chegado até ali juntos. Mucum não ia decepcionar o magrelo estúpido agora. — Mas a guardiã disse que Diana protege! — Que bom para ela. Acho que vou só dar uma mãozinha, né? Talvez a senhora devesse voltar para casa, pro seu marido. Ele é um bom coroa, pelo que Ark me contou. Vou cuidar do seu garoto, mas preciso ir agora. A Sra. Malikum parecia perdida e insegura, uma pequena figura na floresta sombria, enquanto Mucum se afastava. Então ele se virou e correu, na esperança de alcançar Ark antes que ele fizesse algo totalmente pirado.

Isca O sol havia muito se fora, deixando apenas garoa e escuridão. Petrônio precisava ficar atento, agachado atrás de um arbusto que havia brotado na lateral do ramo-via. A garrafa de café ajudava: quente e doce, do jeito que ele gostava. À medida que o frio da noite caía, ele puxava o manto à sua volta e bebericava sem fazer barulho, depois se recostava, satisfeito, nas sombras. Aquele era o lugar perfeito para uma emboscada. O garoto viria. Petrônio não tinha a menor necessidade de fazer preces, seus planos eram feitos simplesmente para dar certo. Quando Petrônio sentiu as vibrações reveladoras na madeira, soube que não se tratava de um porco selvagem saindo para uma caçada no meio da noite, mas de um garoto guiado por um senso de honra. — Boa noite, Malikum. Para um filho de encanador, você causa um bocado de problemas! A voz que vinha de trás do loureiro era inconfundível. — Petrônio! — disse Ark. — Pensei que sua família fosse baixa, mas raptar minha irmã realmente é o fundo do poço! — Ah, é? Mas trouxe você aqui, não foi? Ouviu-se um som agudo quando Petrônio acendeu uma vela-lanterna e a colocou sobre o galho. Foi quando Ark se deu conta de quem havia sido o alvo. Sua irmã era a minhoca, usada para fisgar o peixe.

— Se é a mim que você quer, então deixe-a ir! — Com sinceridade, era exatamente esse tipo de bobagem piegas que eu esperava de você. É claro que é você que eu quero! — A lâmina que deslizou das sombras deu às suas palavras um tom ameaçador. — Quanto à sua irmã, ela pode ficar aqui para manter sua família calada. — Onde ela está? Se você a machucou, pode acreditar, vai pagar por isso! Uma larva gigante tinha motivos melhores do que aquela besta escorregadia e superalimentada. Ele enfrentara uma; agora iria acabar com a outra. — Ah! Ouça só você, garoto dos esgotos. De repente adquiriu poderes mágicos, é? Ark não sabia. Talvez tivesse mesmo. Talvez, se agarrasse Petrônio, o garoto ficaria imóvel. — Responda a minha pergunta. Onde… ela… está? Cada palavra foi desferida como uma arma, a força por trás de sua voz deixou Petrônio desconfortável por um segundo. Mas somente por um segundo. — Acha que pode me dar ordens, rato dos esgotos? — A faca reluzia à luz bruxuleante. — Não se preocupe. Matar garotinhas não está na ordem do dia, por enquanto! — Você venderia sua própria família por dinheiro! — sibilou Ark, lançando-se sobre Petrônio. Fez-se um súbito silêncio na floresta, como se cada árvore aguardasse o resultado daquilo. Ark viu seu punho atravessar o ar voando. A questão ali não eram penas ou poderes mágicos, mas vingança. O que quer que ele houvesse sentido lá no fundo da terra, havia muito desaparecera. Petrônio havia sido treinado para defender-se contra oponentes habilidosos, não adolescentes bonzinhos dominados pela fúria. Antes que se desse conta do que estava acontecendo, Ark havia lhe acertado um soco que arranhou a lateral de seu rosto. A faca de Petrônio voou de sua mão,

rodopiando pela madeira. Ele fez menção de pegá-la, mas Ark agarrava-se a ele como uma trepadeira. — Saia de cima de mim, seu sujeitinho de caca! A garoa havia se transformado em chuva forte. Ark continuava a martelar com os punhos, derrubando Petrônio, tentando conter o braço grosso do oponente enquanto ele apalpava o chão procurando a faca que caíra. Estava apenas a centímetros de sua mão. Se Petrônio a recuperasse, Ark estaria tão morto quanto se pulasse do galho. Não se ouviam gritos, apenas grunhidos. Não era uma luta de brincadeira. Petrônio esticou-se ao máximo, a madeira áspera arranhando seus joelhos. Ele podia sentir as unhas de Ark cortando seu rosto feito farpas. Era como lutar com um espinheiro. Vamos lá! A faca estava muito perto agora. Com um último e imenso esforço, Petrônio ergueu-se e saltou na direção da lâmina, derrubando Ark de suas costas. Ele agarrou o cabo, virando-se como uma cobra na hora do bote. A faca fez aquilo para que havia sido forjada, subindo e atravessando o gibão de couro de Ark e a fina túnica debaixo dele, abrindo um sulco sangrento em seu peito. A dor intensa fez com que Ark desse um salto para trás, seu corpo chocando-se contra o chão molhado, quase escorregando pela borda. Sua mão instintivamente voou para verificar o ferimento. A túnica que usava colou-se ao corte e a umidade se espalhava pelo tecido. Pelo menos suas entranhas não estavam saindo… ainda. — Vai ter de fazer melhor do que isso, cérebro de caca! — provocou Petrônio. Ao martelar constante da chuva, agora juntava-se o gotejar do sangue de Ark na estrada quando ele tentou se levantar. Ark sentiu a confiança se esvair. Ele havia chegado até ali para ser morto por um valentão superalimentado. — Eu vou… — Você vai o quê? Desentupir minha privada? Petrônio finalmente tinha o controle. Os guardas que se danassem. Não

haveria nenhuma masmorra para aquele garoto. Porém, quando Petrônio curvou-se para a frente, a faca ávida para enterrar-se no pescoço de Ark, ele ouviu um som vibrante encher o ar da noite. Petrônio parou, analisando os ruídos, aspirando o cheiro de ferro do sangue de Ark. — Ah! Parece que não vou precisar acabar com você com minhas próprias mãos! É muito raro alguém ter mais fome que eu, mas, diante desses caçadores, eu respeitosamente me retiro. Tenha uma boa jornada, Malikum. Acho que não voltaremos a nos ver, nunca mais! Petrônio recuou, um sorriso de vitória no rosto. Ark tentou mover-se, mas seu corpo, pesado como madeira morta, lutava consigo mesmo. Pensou ouvir trovões lá em cima. Estava enganado. Aquela era uma tempestade diferente, muito mais perigosa. Com uma envergadura ampla como um telhado e olhos que brilhavam como diamantes, um imenso Corvo surgiu da escuridão, atraído pelo perfume de sangue vivo, as garras prontas para agarrar a presa ferida, que jazia ali derrotada e indefesa.

***

Tudo que Mucum pôde fazer foi olhar a distância enquanto a ave descia em um mergulho. Ele nunca havia corrido tanto em sua vida, os pés quase escorregando nos ramos-via molhados, derrapando nas curvas e disparando por encruzilhadas, ciente de que cada segundo contava. E agora aquilo. Mucum havia escutado o revelador bater de asas no momento em que avistara as duas figuras adiante, só uma de pé, pairando sobre a outra. Naquele momento ele soube que Ark não iria morrer como um guerreiro. Para os Corvos, atraídos pelo cheiro de sangue, seu amigo era um pedaço de carne. Nada mais. Os Mateiros Sagrados chamariam aquilo de sacrifício,

reverenciando a ave negra. Superstição estúpida! À luz tênue da vela, as duas figuras pareciam recortadas, como silhuetas em uma pintura, congeladas no tempo. E então a sombra do Corvo engoliu a cena inteira. Um momento depois uma figura reapareceu, a figura errada. Um rugido subiu pelos pulmões de Mucum e saiu de sua boca, estilhaçando o ar noturno. — Você vai pagar por isso! Ele correu na direção de Petrônio como um aríete, sem se importar se as aves o levariam, sem dar a mínima para o próprio medo. Elas podiam tentar! Talvez aquele fosse finalmente o plano B — derrubar o garoto cirurgião, tirando-o do caminho, pegar Ark e correr para um abrigo. Petrônio ergueu os olhos, sua arrogância natural apagada pelo susto quando Mucum mergulhou no ar, pronto para derrubá-lo com um golpe único e fácil. A faca havia sido limpa em uma conveniente moita de musgo e guardada. Não havia tempo para tirá-la da bainha. Seus olhos encontraram os de Mucum, captaram o ódio muito mais claro que a débil lamparina que iluminava a cena. O soco, tão próximo e cheio de intenção, não chegou a atingir o nariz de Petrônio. Em vez do ruído de cartilagem se rompendo e do jorro espumante de sangue, houve uma súbita rajada de vento que derrubou tanto Petrônio quanto Mucum. As asas do Corvo batiam como um furacão e um único grito quase explodiu seus tímpanos. — Mucum! — gritou Ark, indefeso no olho da tempestade. Para horror de Mucum, um par de garras desceu do céu e arrancou Ark da floresta, de seu lar, de tudo que lhe era familiar. Um segundo depois, garoto e ave haviam desaparecido, deixando apenas dois adolescentes perplexos caídos no caminho. Mucum deixou-se ficar deitado por um instante, a raiva ardendo dentro dele. Então respirou fundo e levantou-se. Quem se recuperasse mais rápido venceria. — Seu projeto de abutre! Causou a morte do meu amigo. Vou acabar

com você! Vou… Antes que Petrônio sequer tivesse chance de se erguer, Mucum estava em cima dele, todo seu peso em um só pé, pisando com força o pescoço de Petrônio. — Por favor! — arquejou Petrônio. — Não foi minha intenção… Foi um acidente. Mas Mucum havia ultrapassado qualquer ponto de retorno. — Eu vi seu sorriso quando a ave levou Ark. Já tinha falado o bastante. Alguns segundos e o pescoço do garoto iria quebrar como gelo fino. Ele nunca havia matado ninguém. Como seria? Estava prestes a descobrir.

Apenas um garoto Os olhos de Petrônio se esbugalhavam à medida que a pressão em seu pescoço aumentava. Pela primeira — e possivelmente a última — vez na vida ele estava prestes a chorar. Que patético! Quando o rosto de Petrônio começou a ficar azul, Mucum sentiu de repente um braço forte prender seu pescoço por trás e uma ponta afiada espetar suas costelas. — Vamos com calma! Tire o pé, senhor. Agora. Eu não ia querer que minha faca resvalasse, ia? A voz era mais velha e cheia de autoridade. Mucum pensou em ignorar a ordem. Estava acabado, de qualquer jeito. E talvez pudesse pelo menos levar aquele verme com ele. Mas o instinto de autopreservação entrou em ação. Ele ergueu o pé, ciente de uma força que poderia facilmente quebrar seu pescoço. — Tá certo. Fazendo o que você manda… Petrônio tossiu ruidosamente e rolou de lado, vomitando o jantar inteiro na túnica ricamente bordada. Ele quase agradeceu. O guarda havia salvado sua vida, afinal. Então lembrou-se de quem era. Limpou a boca e levantou os olhos para seu salvador. — Já não era sem tempo, Sálix. Por que demorou tanto? Petrônio apalpou a marca do sapato de Mucum em seu pescoço.

Haveria hematomas mais tarde, mas ele sobreviveria. Tentou se levantar, oscilando ligeiramente e completamente encharcado enquanto recuperava o equilíbrio. — Parece que pegamos nosso último fio solto! — Petrônio bateu a lama e pedaços de folhas mortas do calção à medida que se aproximava de Mucum. — Seu patrão, Jobby Jones, vendeu você por algumas moedas. E que nome de mulherzinha é esse, Gladíolo? — Não ferra! Mucum devia tê-lo matado, mas agora estava preso como uma mosca na teia de músculos do guarda. Tudo que podia fazer era cuspir na cara de Petrônio. A mira foi boa e ele percebeu, indiferente, que a boa cusparada agora pendia do nariz do outro garoto. — Que insolência, vindo de um joão-ninguém! Isso é o melhor que você pode fazer? Petrônio pegou um lenço de seda e limpou lentamente a saliva. Ficou tentado a puxar a faca e furar o idiota ali mesmo, naquele momento. Em vez disso, porém, desferiu um murro na barriga de Mucum. — Isto, garoto, é por sujar meu gibão. Estas roupas são caras, sabe?! Sálix afastou a faca bem a tempo, soltando o outro braço de Mucum, e o garoto dobrou o corpo em agonia. Petrônio ficou parado, satisfeito com o resultado. — Isso foi só para começar. Leve-o para as masmorras. Vou cuidar dele mais tarde. Mucum sentia-se anestesiado quando foi posto de pé e o levaram, não muito diferente de um cão em uma coleira. Ark estava morto. O país ia para o brejo e ele estava liquidado. Enquanto o guarda o fazia avançar com a ponta da espada, ele se deu conta de que a promessa feita a Flô estava quebrada para sempre. Ele não voltaria, nunca. Depois que seu prisioneiro foi levado, Petrônio ergueu a lanterna, sua luz trêmula e fraca iluminando a poça de sangue no ramo-via. Por que ele tinha deixado o pássaro idiota ficar com toda a diversão? Devia ter desferido

a facada na barriga, uma evisceração perfeita. Ark teria visto os próprios intestinos escapando da barriga como vermes reluzentes. Até ali, a habilidade de Petrônio de desferir um golpe mortal se limitava a atacar um porco selvagem seguramente amarrado, gritando de terror enquanto Petrônio o golpeava no pescoço. Fazer aquilo com um dendriano era… por um momento ele não soube dizer. No entanto, quando informou o Conselheiro Grasp da morte de Ark, vinte minutos depois, quase recebeu um sorriso de agradecimento. Petrônio deixou de fora o detalhe de que Sálix salvara sua vida. — Você devia ter deixado que meus homens cuidassem de Malikum! — suspirou Grasp. — Mas pelo menos nosso trabalho não terá mais empecilhos. Era o melhor que Petrônio podia esperar. Estava dispensado. Pensou em ir ver a garota e contar a ela que o irmão mais velho estava morto, mas até ele tinha alguns limites. Iria deixá-la dormir. Mais tarde naquela noite, quando a chuva finalmente cessou seu rítmico tamborilar no telhado de cedro e a lua surgiu pela janela, derramando sua luz prateada pelo chão, sua porta abriu-se lentamente. Petrônio acordou no mesmo instante, tateando embaixo da cama à procura da faca. — Shhh! — soou uma voz suave. — Não precisa se defender de mim! Petrônio sentou-se na cama. — Minha senhora! — O conselheiro não valoriza suas verdadeiras habilidades! A voz manteve-se baixa quando Fenestra deslizou silenciosamente na direção da cama e sentou-se. — Bem… — disse Petrônio, sem saber como continuar. — Bem, nada. Admito para você que ele é um peão útil, mas nada mais. A lua iluminou os olhos dela, que o desafiavam a defender o pai. Petrônio ficou feliz ao ver que pelo menos uma pessoa naquele

miserável e úmido arremedo de cidade tinha coragem de discordar do conselheiro Grasp. — Pensei que ele ficaria contente, mas tudo o que fez foi ficar falando dos guardas. — Meu querido garoto. Você tem o que falta nele. Iniciativa. Para alguém tão jovem, sua astúcia é surpreendente! — Obrigado! Petrônio ficou feliz por ela não poder ver seu rosto enrubescendo. Ela usava algum tipo de perfume que tomou conta de suas narinas como uma droga. — Ah, não me agradeça. Foi você quem elaborou o plano, e então o executou. Nós não temos essas aves gigantescas em nosso país. Essas criaturas são a evolução de uma máquina mortífera. De certa forma, eu as admiro. Tem certeza de que não o deixarão escapar? A pergunta era uma crítica. — Os religiosos acreditam que os Corvos são capangas da morte. Pessoalmente, não acredito nessas bobagens supersticiosas. Mas desperdiçar uma refeição gratuita não é da natureza deles. — Ótimo. Nosso amiguinho provou ser um tanto escorregadio. — Não desta vez — assegurou-lhe Petrônio, encerrando o assunto. — E o que acontece agora? — O futuro, é claro! Ela o estava usando, Petrônio sabia, e aquela ideia o deixou amargurado. — Certo. Obrigado por me informar — disse ele, com alguma irritação na voz. Fenestra ignorou o sarcasmo. — E você cumpriu bem seu papel. Durma agora, meu garoto esperto. Garoto. Aquilo era tudo que Petrônio era para ela. Ele queria mais. Muito mais. Era humilhante ser deixado de fora. Seu pai recentemente tivera um encontro com Flint, mas tudo que o comandante fizera ao passar

por Petrônio na escada foi resmungar um agradecimento. Petrônio havia se transformado, num piscar de olhos, de negociador a garoto de recados de novo. E agora Fenestra não o punha a par dos detalhes, apesar dos elogios que lhe fazia. Quando ergueu os olhos, ela já havia desaparecido. Depois disso, dormir era impossível. Só havia uma coisa que o faria relaxar. Petrônio vestiu-se e saiu furtivamente do quarto. A casa inteira dormia; o único som era o rangido da madeira ao vento enquanto tudo balançava suavemente. Fenestra sem dúvida havia se retirado para qualquer que fosse o esconderijo que encontrara. Petrônio desceu em silêncio, torcendo para que a porta do estúdio do pai houvesse sido lubrificada recentemente. As dobradiças estavam do seu lado e em questão de segundos ele se encontrava diante da mesa do conselheiro. Lá estava a caixa que havia começado tudo aquilo. Quando ergueu a tampa e inspirou o aroma dos caros charutos guardados ali dentro, percebeu que, graças a ele, o espião havia sido descoberto. Quem disse que fumar é ruim para a saúde? Pegou um dos charutos e o girou entre os dedos gorduchos. Uma pequena celebração. Ele se dirigiu às portas da sacada, abriu o trinco e saiu. A chuva cessara havia muito tempo, deixando uma friagem no ar. A meia-lua agora estava mais baixa, a aurora não muito distante. Até mesmo as estrelas iam perdendo seu brilho. Petrônio acendeu o charuto, puxando a fumaça perfumada para o fundo de seus pulmões e deixando-a sair pelo nariz ao se debruçar na borda das grades de ferro. Abaixo dele, as copas das árvores mexiam-se com a brisa como uma nuvem verde-escura, já amarronzada nas bordas. Logo tudo aquilo iria mudar. Quando voltou ao estúdio, um pensamento o tomou de assalto. Seu pai era meticuloso quando se tratava de seus papéis. Se houvesse um plano, ele teria anotado, a despeito da advertência de Fenestra de que papéis eram provas. Mas onde olhar? A mesa era óbvia demais, assim como o arquivo encostado à parede. Nem mesmo Grasp seria burro a ponto de arquivar seu plano na letra T, de Traição. O que restava então? Teria ele escondido os

papéis atrás da tapeçaria? A resposta, quando emergiu, era tanto óbvia quanto desprovida de inteligência. Grasp havia encomendado um retrato de si mesmo a um dos melhores pintores de Arborium. Petrônio lembrava-se dos meses em que o pai passara horas posando. Ai de quem interrompesse o chefe da casa enquanto se dedicava àquela tarefa. Petrônio dirigiu-se ao quadro, no qual o conselheiro se encontrava sentado em uma cadeira adornada com joias, cercado por cães de caça. Usava um manto com mangas longas e pendentes, dobradas a fim de deixar à mostra o forro de pele de raposa branca. Por baixo, Grasp usava uma túnica de veludo preto por cima de um gibão de cetim cor-de-rosa. O pintor havia criado uma extraordinária semelhança, transformando o conselheiro no pomposo e vaidoso chato que ele era de fato. No entanto, Petrônio não estava vasculhando o estúdio nas sombras a fim de aperfeiçoar sua apreciação da arte. Com cuidado, ele tirou a moldura dourada do gancho. Sim! Quanta vaidade! O melhor lugar para esconder seus segredos? Atrás de si mesmo, do grande conselheiro Grasp! Em uma alcova oculta descansava uma caixa estreita com dobradiças na tampa. Petrônio a tirou rapidamente do esconderijo. Ali dentro havia um rolo de pergaminho. Petrônio o levou até a janela e o desenrolou, tentando decifrar à luz do amanhecer o documento redigido à mão. Fenestra havia mencionado o futuro. Ali estava, em preto e branco. A pura traição, evidências registradas a tinta, suficientes para uma série de enforcamentos por toda parte. Petrônio estremeceu com aquele pensamento. O dia já era sabido. Domingo. O Festival da Colheita. E ali estavam os detalhes macabros. Uma população bêbada com bom vinho não saberia o que a havia atingido. Quanto ao rei Quercus… Petrônio continuou lendo, horrorizado e ao mesmo tempo encantado. Quem suspeitaria de seu próprio exército e de seu querido e confiável líder? No auge da celebração, em um país tomado pelos ruídos dos festejos, os guarda-costas do rei lhe pediriam que deixasse a área dos festejos, afastando-se de todas as possíveis

testemunhas. Assim que os homens comprados tivessem o rei onde desejavam, o ato seria perpetrado. Hora de os soldados agirem. Quase nenhum sangue seria derramado enquanto o país mudava de mãos. Tudo que Fenestra tinha feito era oferecer a quantidade certa de ouro e cochichar em alguns ouvidos. Quando Petrônio enrolou o pergaminho e o devolveu com cuidado à alcova, ouviu passos seguindo na direção do estúdio. Passos ruidosos de duas pessoas; só podiam ser Sálix e Alno. O quadro ainda estava no chão, encostado à parede. Se alguém entrasse, seria a primeira coisa que notaria. Não havia saída. Petrônio encolheu-se nas sombras como um rato apanhado na armadilha. Dessa vez, não haveria nenhum trabalhador dos esgotos a quem culpar, e os guardas talvez optassem por atacar primeiro e fazer perguntas depois.

A Floresta dos Corvos Em um momento, Ark estava na névoa úmida de uma nuvem espessa. No outro, era erguido por asas batendo para o súbito espaço das estrelas e da noite. A lua parecia ter sido rasgada ao meio pelas mesmas garras que agora o seguravam com firmeza em uma gaiola curva. Os dentes de Ark batiam sem parar. Suas roupas serviam para Arborium, protegida como era por folhas e galhos. Ali em cima o vento machucava sua pele. No entanto, o frio era a menor de suas preocupações. Os gritos do Corvo bem poderiam ser os sinos do Templo anunciando sua morte. Ele não podia acreditar que Mucum havia de alguma forma conseguido segui-lo. Por que não ficara lá embaixo nas raízes com Flô? Pelo menos estaria em segurança. A última e fugaz esperança de Ark era que Mucum desse a Petrônio o que ele merecia. Mas tudo aquilo havia desaparecido, ficado para trás, enquanto ele se precipitava acima da floresta, cobrindo quilômetros em minutos. Ark tinha uma vaga consciência do quanto aquela visão era rara: Arborium estendendo-se como um tapete ondulante de folhas e sombras. Uma verdadeira visão panorâmica. Lembrou-se do mapa que vira na parede de Jobby Jones, e ali estava, ao vivo, subindo e descendo abaixo de si. A leste ele podia ver os lampiões noturnos envolvendo Heléboro, o castelo erguendo-se como uma flor brotando em seu centro. Eles estavam voando para oeste, onde as estradas iluminadas e os pequenos vilarejos sobre

plataformas logo desapareceram. No entanto, ele não era um passageiro em um passeio, mas um pedaço de carne em trânsito. Assim que essas garras o soltassem, ele seria rasgado em pedacinhos. Seu pai sempre lhe dissera para ficar de olho na floresta, para o caso de se tornar vítima da Dádiva do Corvo. Bem, era aquilo que ele era agora. Açúcar, tempero e músculo também é bom. Um presente para a barriga de algum animal. Sua deusa estava muito distante agora, e preces sussurradas não serviriam como proteção. Talvez ele houvesse imaginado o ronronar da larva gigante. Por um instante Ark tentou entrar na mente da outra criatura. Mas tudo que via era uma escuridão impenetrável. Ele pensou até na pena em sua bolsa, mas de que servia uma pena contra um pássaro inteiro? Seus braços e suas pernas estavam espremidos naquela minúscula gaiola. O fedor de seu sequestrador era avassalador, um terrível cheiro de carne em decomposição que penetrava seu nariz. A ferida aberta em seu peito começou a latejar. A ave parou, flutuando por um segundo. Ark espiou pelas garras, seus olhos tentando compreender a visão diante deles quando a ave começou a subir. As árvores haviam desaparecido, ficando para trás em uma linha longa e irregular. Ele podia distinguir um deserto rochoso que subia cada vez mais. Ah! Um calafrio começou a invadir os ossos de Ark. Montanhas! Penhascos enormes que se elevavam acima da floresta, curvando-se tanto ao norte quanto a oeste em um círculo gigantesco. Eram lugares nus, sem árvores, como um dendriano sem roupas! As asas negras do Corvo carregaram-no acima de cumes cobertos por gelo e neve que pareciam mais afiados e mais perigosos que quaisquer garras. Então, por fim, começaram a descer numa espiral, deixando a noite em direção à floresta do outro lado. Ark lembrou-se dos contos de fada de sua infância. O oeste era onde o sol descansava a cabeça. Se você não fizesse suas preces, o sono o traria para cá, para a terra dos pesadelos. Era uma vez uma floresta para a qual os

Corvos voltavam à noite. Um lugar de árvores retorcidas, governado por uma rainha sombria. A Floresta dos Corvos. De repente estavam acima das árvores, descendo tão rápido que Ark via apenas galhos e folhas riscando o ar, estendendo-se em sua direção. Ark fechou os olhos, à espera dos golpes afiados dos bicos, quando as garras que o seguravam se retraíram e ele tombou no que parecia uma cama de penas de ganso. As penas fizeram cócegas no seu nariz e ele não conseguiu reprimir um espirro. O som das asas do pássaro batendo desapareceu na escuridão. Abandonado, ele se levantou e olhou ao redor. Havia sido largado no fundo de um ninho enorme no topo de uma árvore. O luar infiltrava-se pelas folhas enormes: o ninho estava quase vazio, só havia uma pequena quantidade de ossos brancos espalhados. Ele tinha que sair dali! Ark tentou escalar as laterais, mas as penas que forravam a estrutura construída com ramos eram escorregadias e a borda do ninho era alta demais. De repente, ele ouviu um som rastejante seguido por um suave sibilo em algum ponto lá em cima. Seu coração disparado lhe disse que aquela era uma floresta selvagem. Nada familiar. Nada segura. Em pânico, ele se enfiou debaixo do forro de penas, na intenção de encontrar um buraco no ninho e sair espremendo-se por ele. Instintos de um encanador. Puxou penas suficientes para ver a estrutura do ninho. Não se tratava de nenhum frágil poleiro de pombos. Os ramos eram partidos, retorcidos e tecidos em cordas mais grossas que seu braço. Sem um serrote, aquele ninho ao ar livre era uma prisão de vime, e ele era uma isca à espera. Mas o que quer que tivesse se arrastado pelo galho lá no alto devia ter perdido o interesse, pois se afastou, a pele áspera raspando na casca da árvore. Ark deixou escapar um suspiro de alívio e ergueu os olhos para a noite estrelada. Lá estava o familiar Arado, cavando os sulcos do céu, e Órion, o caçador, olhava lá de cima para ele. Só que ele era a caça. Ark se recostou no ninho, sentindo-se perdido. Por que havia corrido direto para a casa de Grasp? Tivera tanta pressa em salvar a irmã que não havia parado para

pensar. Devia ter farejado a armadilha! Agora estava tudo acabado, ou estaria assim que aquele Corvo voltasse com os companheiros. Mas, afora o grito solitário de um noitibó, a floresta permanecia estranhamente silenciosa. A maciez das penas por fim o acalmou. Aquela havia sido uma longa noite. Teria ele de fato deixado os Exploradores das Raízes apenas algumas horas antes? Suas pálpebras estavam pesadas, e ele começou a resvalar para estranhos sonhos em que olhos o fitavam das sombras. Uma voz invadiu seu sono. — Ora, ora, ora, o que temos aqui? Ark acordou de repente, ciente de um galho afiado espetando suas costas. Sua túnica havia secado e colado no ferimento e seu corpo todo doía. A luz havia mudado, a noite substituída por uma névoa fria de antes do alvorecer. As horas tinham voado. Ark lambeu o orvalho dos lábios ao olhar para cima, perguntando-se por um segundo se o resgaste haveria chegado. No entanto, o rosto que espiava acima do ninho em nada o tranquilizou. Era o de uma velha. Sua pele era escura, como se competisse com a própria noite, mas os olhos eram de um verde vívido como musgo. Seu corpo esguio o fazia se lembrar de uma cobra. Seria aquilo que deslizara acima dele no escuro? De repente, a mulher passou pela borda, aterrissando de pé bem na frente do garoto. Elevando-se acima dele, Ark viu um corpo encurvado pela idade, vestido com um manto de penas de Corvos e longas anáguas pretas. Uma raposa morta enroscava-se em seu pescoço, talvez esperando para acordar. Em terror absoluto, ele afastou-se dela, indo para a parte mais distante do ninho. — Eu falo, e no entanto sua boca não responde. Repito: o que temos aqui? Os olhos o fitavam sem piscar, como uma coruja. — Por que se importa? — perguntou Ark com toda a coragem que pôde reunir.

Ele tinha certeza de que já ouvira aquela voz. E os olhos eram estranhamente familiares, assim como a maneira como se cravavam nele. Quem era aquela mulher das sombras com seus cabelos desgrenhados pretos como um Corvo, parecendo um ninho? Será que ele estava sonhando? Talvez as histórias que a mãe lhe contara quando era pequeno fossem verdadeiras. Poderia ser Ela? Impossível! Histórias não ganhavam vida. Ela estendeu uma das mãos e o agarrou pelo colete, erguendo-o até o nível de seus olhos, como se ele não pesasse mais do que um botão. Os braços dela estavam nus, os músculos tensos como gavinhas sustentando uma planta. — Isso fala. — Agora seus olhos tinham um brilho divertido. — Meus filhos o trouxeram para mim. Não muitos sobrevivem. Portanto, mais uma vez eu lhe pergunto o que você é. Uma rajada de ar percorreu o corpo de Ark, o nervosismo espalhandose como urticária. Ark sabia que estava acordado e que aquela não era uma dendriana comum. Ele a fitava perplexo. A mão que o mantinha suspenso no ar era toda errada, dedos e unhas fundidos, formando um conjunto afiado de garras. Um movimento da outra mão e Ark tinha certeza de que sua cabeça seria decepada. E que diabos ela queria dizer com filhos? Ark sentiu-se compelido a responder. — Um garoto. — Sim. De fato. E um que joga moedas em templos, tentando comprar esperança com simples metal. Ele estremeceu. — Como sabe disso? A mulher não se deu o trabalho de responder, finalmente largando Ark no chão do ninho. — Conte-me mais, garoto — disse ela. — Meu nome é Arktorious Malikum, aprendiz de encanador, filho do

Sr. Malikum. E ali, no alto daquela estranha árvore, ele sentia-se deslocado. Seus olhos cheios de pânico rapidamente abarcaram a floresta que se erguia acima do ninho, ainda envolta na névoa do amanhecer. Os galhos que cruzavam o céu eram nodosos e retorcidos como dedos com artrite, as folhas, manchadas, como se o outono já as tivesse infectado. — Suas palavras encobrem a verdade. Você é um trabalhador dos esgotos, um explorador de lugares escuros. Achei que tivesse sentido cheiro de algo podre. O tom zombeteiro o fez lembrar-se de Petrônio. — É um trabalho. Suas mãos se fechavam e abriam. — Um trabalho. Sim. É isso que você é. Um trabalho agora terminado. — A mulher havia obviamente decidido seu destino. — Já matei a curiosidade. Você é um lanche magro com nervos demais. Às vezes meus pássaros me trazem tesouros. Às vezes não. Tenho muitas outras coisas importantes me ocupando para perder meu tempo com gente como você. — A mulher deixou os olhos se desviarem. — Achei você deficiente, e a conversa tediosa. Meus filhos podem se servir de você. A mulher estalou os dedos. Das sombras e das copas das árvores circundantes mil pares de olhos de repente piscaram para ele. Ali havia mais Corvos do que ele jamais vira em toda a sua vida, uma cidade de monstros emplumados. Ark tornou a olhar na direção da mulher, e ela havia lhe dado as costas, dispensando-o como se ele fosse um carrapato irritante a ser arrancado das dobras de sua pele negra e enrugada. O ninho em que ele se encontrava agachado nada mais era que um prato. As aves estalaram os bicos, gritando seu coro matinal ao se preparar para o banquete.

A curiosidade mata O retrato no chão, a grande lacuna na parede, Petrônio encolhido nas sombras, tudo anunciava uma só palavra: Ladrão! Os passos se detiveram diante da porta. — Você verificou aqui mais cedo? — Eu pareço burro, Sálix? Veio um grunhido como resposta. — Sim. Todo turno que tenho que trabalhar com você! — Rá, amigão, rá! Petrônio ouviu o som de uma rolha sendo puxada e em seguida vários gorgolejos. — Me dá um pouco disso antes que eu morra de tédio! Se eles soubessem quem estava do outro lado da porta, ele estaria numa enrascada. Mas os passos foram se distanciando, seguindo pelo corredor. — Seu tolo! — Petrônio sussurrou para si mesmo, enxugando uma gota de suor na testa. Sálix e Alno estavam fazendo a ronda, sem pensar, poderiam ser facilmente evitados. Louco! Tivera mais medo de uma dupla de bandidos ineptos que de um Corvo devorador de dendrianos. Ele tornou a pendurar o quadro no lugar, tomando cuidado para que não ficasse torto. Cinco minutos depois ele descia a escada bem devagar, tentando evitar os que rangiam, e finalmente caiu na cama e em um sono profundo e sem

sonhos. A manhã seguinte chegou fresca e clara depois de a névoa do alvorecer dissipar-se nas folhas. Sua mão ainda estava dolorida por causa do soco que dera na barriga de Mucum. Ainda assim, não tão dolorida quanto estaria o estômago do garoto. Ficou tentado a descer até a masmorra para provocá-lo um pouco. Talvez mais tarde. O garoto e a irmã de Ark estavam exatamente onde ele os queria.

***

Na aula, o professor seguia com sua ladainha sobre a estrutura de veias do corpo: o sistema de transporte do sangue. Sentado no fundo da sala, Petrônio pensou no sangue de Ark, derramado pelos Corvos. Sua mente voltou à noite anterior: a satisfação de ver o rosto aterrorizado de Ark enquanto as garras mergulhavam em sua direção. O gemido alto quando o garoto foi arrancado do galho como um insignificante gorgulho. Mas depois veio a resposta indiferente do pai e, pior, a dispensa por parte de Fenestra. Uma raiva súbita aguçou-lhe a mente. Depois da aula, em vez de se juntar aos outros, decidiu seguir para a floresta. Quando ele ajudara Fenestra com a injeção que lhe salvara a vida, uma pergunta ficara sem resposta. Aonde ela estava indo? Só havia uma maneira de descobrir. Mentalmente ele traçou o caminho que haviam tomado naquela tarde, e seus pés seguiram em passos rápidos, logo deixando as multidões de Heléboro para trás enquanto Petrônio trilhava atalhos que se estreitavam. Por fim ele parou diante de uma placa, que pomposamente advertia: Estrada fechada para manutenção pelo conselho. À procura de novos caminhos para que o país siga em frente! Arborium era cheia de lugares assim, onde se viam cabos enferrujados e

tábuas apodrecendo. Eram sinais do velho império, quando toda a floresta era habitada por dendrianos, antes que as antigas pragas reduzissem a população a um eco de história. Às vezes a peste voltava como uma maldição para lembrar aos habitantes das árvores que Arborium não era inexpugnável. Onze anos antes houvera um pequeno surto, levando alguns trabalhadores dos esgotos e suas famílias antes de desaparecer no inverno mais frio de muitas gerações. Nos dias de hoje, ninguém pensava muito no assunto, embora aquele fosse o principal motivo por que muitos haviam levantado acampamento e seguido para uma nova vida em Heléboro. Essas vias rurais abandonadas não ofereciam nenhuma possibilidade de lucro. Desde que pusessem uma placa nelas, o conselho podia fingir que uma equipe de manutenção um dia cuidaria do problema. Petrônio não sabia o que estava procurando. Ele passou pela placa e prosseguiu até o local em que vira Fenestra em apuros. Felizmente, o caminho além continuava em uma única direção. Com cuidado, ele evitou os vários buracos na estrada, tentando não olhar para a queda de mais de um quilômetro e meio. Se Fenestra tinha um esconderijo, aquele lugar era perfeito. Outros dendrianos não iam se arriscar por ali. Petrônio parou. O que tinha sido aquilo? Ele tinha certeza de ter ouvido um leve ruído de movimento. Provavelmente um esquilo. Desejou estar com seu estilingue. Não havia satisfação maior do que ver uma daquelas criaturinhas intrometidas ser derrubada do galho e despencar pelo ar. A superfície foi piorando à medida que ele prosseguia. Plantas parasitas — samambaias e urtigas — tinham tomado conta do caminho. A passagem havia se transformado em uma selva que sugava a seiva das árvores. Ele parou para olhar mais de perto. Vários caules de urtiga estavam amassados. Alguém passara ali antes dele. Petrônio pisava cuidadosa e silenciosamente, os ouvidos atentos a cada farfalhar da floresta. Então chegou a uma clareira, uma encruzilhada onde dois galhos-via se cruzavam, sustentados no meio por um imenso tronco oco infestado por carunchos. Três direções possíveis. Ele entrou no arco do

tronco, olhou para o alto e observou o teto abobadado acima dele. Que direção deveria seguir? Um raio de sol ofereceu-lhe a resposta ao atravessar as folhas. Lá! Num dos portais, um fragmento de material rasgado. Petrônio curvou-se para examinar o minúsculo pedaço de tecido. Alguns dos fios captaram a luz, como se fossem tecidos de metal. Aquele material não era de Arborium. Petrônio sorriu, e estava prestes a cruzar o arco quando uma visão o deteve. Trinta ou quarenta metros à frente uma figura encontrava-se acocorada atrás de um arbusto. A figura estava vestida da cabeça aos pés com um traje que parecia absorver a cor das folhas à sua volta, até que se tornou difícil distinguir o que era homem e o que era arbusto. Ainda mais interessante era a arma que ele embalava habilmente nos braços. Petrônio nunca vira nada daquele tipo, e o garoto fazia questão de saber tudo que dissesse respeito a armas. Tratava-se de um tubo oco e transparente com uma das extremidades aninhada no ombro do homem, cujo dedo parecia preso a uma curva de prata na metade do tubo. Petrônio estremeceu. Ele não tinha o menor desejo de descobrir o que aquela arma era capaz de fazer. Tinha a sensação de que seu punhal não seria páreo para ela. Havia alcançado seu objetivo. Deveria ser aquele o destino de Fenestra. Aquele era um soldado de Maw. Apesar da camuflagem, tudo nele evidenciava que era estrangeiro. O que estaria fazendo aqui? Petrônio acalmou a respiração. Talvez fosse melhor voltar. Fenestra estava certa, afinal. Ele fizera sua parte. Mas outra parte dele estava curiosa, absorvendo, encantada, a visão. Ele chegou a pensar, loucamente, em ir até o homem e lhe perguntar sobre o bastão do ombro. Precisava descobrir mais. O tronco oco lhe deu uma ideia. Onde há madeira, degraus se seguirão, dizia o ditado. Ele olhou ao redor e encontrou uma série de degraus subindo em torno do tronco. Petrônio pôs o pé no primeiro degrau com todo o cuidado, testando-o em busca de rangidos, abrindo caminho em direção ao céu e buscando um melhor posto de observação.

Ele sentiu antes de ouvir. Uma ligeira reverberação na madeira. Então uma brisa começou, acompanhada por um tac-tac rítmico e abafado. Àquela altura Petrônio encontrava-se empoleirado cerca de trinta metros acima da área, tendo se arrastado por um buraco onde um galho havia apodrecido. Seus olhos não conseguiam compreender o que viam. Não se tratava de um pássaro, a menos que pássaros fossem feitos de metal. E, no entanto, ele pairava acima da floresta, preto e fosco, quase silencioso. No alto, quatro lâminas zumbiam, girando tão rápido que faziam os olhos de Petrônio se confundirem. A brisa havia se transformado em um vento forte, quase o arrancando da árvore. — Já vimos o bastante, não? — rosnou uma voz atrás dele. Petrônio poderia ter se socado. Ficara tão absorto pela visão que baixara a guarda brevemente. — Não fale nada. A menos que queira que seu cérebro respingue sobre suas lindas folhas verdes! Petrônio sentiu alguma coisa fria pressionar sua nuca. Ele se perguntara o que as armas de Maw podiam fazer. Agora descobriria. A única coisa que não conseguia entender era a perfeição com que a voz imitava o sotaque dendriano. Talvez aquilo fizesse parte de seu treinamento: o curso de línguas do Exército de Maw. Aprendam a falar como dendrianos e então os matem! Elogiar a habilidade linguística do homem dificilmente iria salvar sua vida. — Ninguém deve saber que estamos aqui! — A voz fez uma pausa, como se chegasse a uma conclusão. — E isso torna você um risco. A arma pressionou com mais força o crânio de Petrônio até sua cabeça latejar de dor. Ele fechou os olhos, incapaz de não implorar ajuda a Diana, na qual ele não acreditava, só daquela vez.

Uma descoberta repentina Aquela era a última palha, alimentando uma centelha lá no fundo de um exausto Ark. Ser dispensado como se não importasse de certa forma era ainda pior que a fome dos Corvos. O sol escolheu aquele momento para surgir acima do horizonte. Os primeiros raios perfuraram as profundezas do ninho, dourando o rosto marrom de Ark, a calidez hesitante enchendo-o com uma esperança insana. Sem pensar, ele puxou a pena de Corvo da bolsa, sentindo a picada afiada da ponta. Será que funcionaria? Era quase tão comprida quanto seu braço e parecia ter peso suficiente. Segure a pena, arrebate a hora. Ark ergueu o braço e o levou para trás com toda a força. A pena, como se guardasse a memória do voo, disparou como o vento diretamente para as costas da mulher. A pena era afiada como uma faca, cortando o ar na direção certa. Ele soube com a certeza do novo dia que a pena penetraria o manto, perfuraria a pele e se cravaria fundo naquele sombrio coração. Logo, a mulher cruzaria o rio Estio indo ao encontro de seu próprio criador. Pressentindo o perigo, a mulher girou subitamente. Seus olhos verdes brilhavam, divertidos. Uma das mãos disparou para agarrar a arma veloz. Tinha acabado antes mesmo de começar. Ark tropeçou para trás, sua última esperança firme na mão da mulher-

Corvo. Houve alguns segundos de um silêncio tenso. Ark estava derrotado, mas se ela ia dar a ordem para a massa de aves inquietas, ele não iria agir como um covarde. Sustentou o olhar dela. — Bem, isso — disse ela — é interessante. Um garoto que dominou o medo. O uso do meu presente também foi bem improvisado. Ark estava confuso. Ele havia esperado a morte, não elogios. Então compreendeu. — Era a sua voz, quando segui o esquilo, quando apanhei a pena, quando estava escondido com Mucum… — Sim. Agora, a única maneira de sair daqui é subindo. A mulher agarrou outra vez o colete de Ark e o lançou com facilidade para o topo do ninho, onde ele aterrissou. Sentia-se um dos galhos com que Shiv brincava, atirado de um lado para outro pelo simples prazer do gesto. Conseguindo sentar-se, ele oscilou brevemente para trás com o cansaço, depois se aprumou, ciente de que se caísse a queda seria fatal. A mulher subiu a parede íngreme do ninho abaixo dele como uma aranha e pôs-se a andar pelo galho. Então virou-se para trás brevemente. — Venha. Se você dominou o medo, então não há razão para temer. Ark viu que o ninho tinha sido construído entre dois galhos bifurcados. Mas não eram planos como os ramos-via de casa. Quando ele deixou o ninho, o caminho à frente transformou-se em uma passagem traiçoeira, oferecendo o risco de um tornozelo torcido em cascas esburacadas e liquens escorregadios. Relutante, ele aproximou-se dela, olhando para a figura impressionante. Apesar da deformidade, ele percebeu também pela primeira vez sua beleza feroz e atemporal. — Venho tomando conta de você desde o começo. Perdoe meu pequeno teste. Eu tinha de ver do que você é feito. Um rosto cruel não é o único que eu mostro. — A mulher escolhia o caminho, sua figura flutuando entre poças de sombra e luz. — Venha comigo agora. Ark tentou acompanhá-la enquanto o galho subia e fazia curvas, tonto com as estranhas visões daquela nova terra. Uma borboleta maior que um

cavalo passou por eles voando, as asas azuis iridescentes um eco do céu distante. A verdade nas palavras da mulher encaixou-se em sua cabeça como uma engrenagem. Crepúsculos em que andava sozinho pela floresta, sentindo que estava sendo observado e então considerando-se louco. — Mas por quê? — Mais tarde. Pelo menos deixe eu me apresentar. Pode me chamar de… — Corvena! A Rainha-Corvo! Os olhos de Ark se arregalaram com a compreensão e o medo. — Que encantador! Há anos ninguém se dirige a mim como “rainha”! Sim, às vezes me chamam de Rainha-Corvo, mas sou mais do que isso, Ark, muito mais. Sou a guardiã desta terra criada. Também fui cultivada como as árvores. Às vezes, a ciência e os milagres andam juntos. Ela parou e curvou-se graciosamente. — Eu sou A-Ark, apelido de Arktorious — gaguejou. Um minuto atrás ele era um assassino em potencial. Agora se apresentavam cortesmente. — Hã… você não vai me comer, vai? — Ah, francamente. Esses versinhos infantis exageram mesmo! Ela o estudou por um segundo com seus olhos verdes vívidos. Por que pareciam tão familiares? A sensação era enervante. Ark estava chocado. Goodwoody falara sobre como os dendrianos ignoravam a Rainha-Corvo por sua conta e risco. Agora ela estava andando ao lado dele, viva e respirando! — Espere um minuto! Isso significa que Diana está por aqui também? Ele espiou em volta, apavorado diante da possibilidade de conhecer a quem dirigia suas preces. — A mãe de todos nós já se foi há muito tempo. Corvena franziu a testa. — Você… a conheceu? Ark não podia evitar que as perguntas jorrassem. Eram informações demais para apreender, e o mesmo acontecia com aquela floresta de árvores

emaranhadas que confundia seu senso de direção. Ele sentia saudades dos familiares ramos-via que conhecia como a palma da mão, as cordas de proteção que davam aos dendrianos a sensação de segurança. Aqui não havia cordas para acalmar os nervos, somente uma via tortuosa ávida para derrubá-lo e puxá-lo para baixo. O galho de repente estreitou-se, e Ark intimidou-se. — Não posso… O ramo oscilava diante dele, uma corda bamba de madeira, cuja largura não era maior que a de seu pé. Corvena sorriu ao prosseguir confiante por ali. — Você precisa confiar. A floresta selvagem jamais o deixará cair. Ark não tinha tanta certeza. Essas árvores eram difíceis, traiçoeiras. Finalmente, ele tentou acalmar a respiração e seguiu adiante com todo cuidado, convencido de que a qualquer momento escorregaria. Mas, de alguma forma, seus pés encontraram os lugares certos e ele perdeu o medo, correndo para acompanhar sua nova guia. — Muito bem! — disse Corvena quando Ark finalmente a alcançou. — Quanto à resposta para a pergunta anterior… sim. Eu a conheci com todo meu coração e minha alma. Mas vamos deixá-la em paz por ora. Sua curiosidade conta a seu favor. Os dendrianos em geral são tão maçantes, com seus rituais, mateiros e preces equivocadas, mas você, Ark, sempre foi diferente. Você tem a capacidade de compreender a verdadeira força da natureza, algo muito maior que a simples crença. Esse é o motivo de você ter sido criado, menino enjeitado. Ark estava nervoso, sua mente correndo em disparada para acompanhar as palavras dela, que se enroscavam nele como as trepadeiras asfixiantes que subiam pelos troncos daquela floresta impenetrável. Seria mesmo verdade? Ele pensou em tudo que havia acontecido. Se sabia de tudo, por que estava brincando com ele? Talvez ela tivesse razão. E talvez a razão por que fora levado à Floresta dos Corvos fosse para encontrar-se com Corvena!

— Então me ajude a salvar Arborium. Meu lar está correndo perigo! Se você é quem diz ser, e não apenas uma velha da história antiga, já deve saber disso. — Arborium está sempre correndo perigo! — Corvena deu de ombros. — Isso já não me diz respeito. — Quando fui atacado por seu Corvo, estava tentando avisar ao rei que Maw está prestes a derrubar o reino. Deixe-me ir, ou, se é tão poderosa assim, me ajude! Ela precisava ajudá-lo! Mas Ark precisava ter cuidado. Provocar sua captora era loucura. Corvena quase tropeçou com a força das palavras dele. Parou, olhando para o garoto de uma nova perspectiva. — Bem, Ark, parece que meu experimento finalmente rendeu frutos. Quando minha mãe trouxe as sementes destas árvores para a ilha antes estéril, há muitos anos, eu sabia que o tempo de lutar pelas árvores voltaria. — A frieza de sua voz foi substituída por uma surpreendente ternura. — Bem-vindo à Floresta dos Corvos, Ark. Precisamos um do outro. Talvez você seja o primeiro visitante que sobreviverá para falar de nós. Agora venha, você deve estar cansado. Vou cuidar de seus ferimentos e alimentálo. Ark estava perplexo. Era isso o que aquela estranha mulher queria o tempo todo? Era só um jogo para ela? A floresta vazia de repente encheu-se com o som de asas batendo. Corvena se deteve. — Aqui estamos. Ark não tinha a menor ideia de onde estavam, apenas sabia que cada galho da árvore acima deles agora estava salpicado de olhos observadores. Milhares de guarda-costas emplumados. A porta engastada no tronco oco que se erguia diante deles estava coberta por símbolos e arranhões: sinais estranhos de lua e árvores que eram meio tronco, meio mulher. Uma das imagens, de uma figura feminina com arco e flecha caçando um veado, o

deixou perturbado. Corvena abriu a porta. Ark não tinha escolha senão entrar. O fogo estava aceso em uma grelha de ferro ornamentada com Corvos em alto-relevo, os olhos feitos de pedras preciosas. A sala era suntuosamente mobiliada e as chamas se refletiam em joias infinitas e instrumentos de metal reluzentes. — As aves têm um gosto por objetos cintilantes. Alguns são úteis, outros mero reluzir. Mas não é assim também com os dendrianos e seu amor pelo ouro? Ark assentiu, pensando no Conselheiro Grasp. — Eles me roubaram uma imitação da abastada vida arboriana, mas essas bugigangas jamais corromperão meu coração. A mulher serviu o líquido de um frasco, empurrando um copo de cristal para Ark. Estavam tão longe de casa. Ark olhou para o fogo, de repente consciente dos espetos pendurados sobre as chamas. Sua boca encheu-se de água; o cheiro de carne assada era pungente, irresistível. Ele se imaginara sendo forçado a triturar esquilos crus e insetos em algum buraco cheio de excrementos de aves, fazendo as vezes de ninho. — Carne crua é boa para meus amigos emplumados, mas prefiro assada. Aqui, sirva-se. E, antes que pergunte, é carne de cabra. Muito tempo se passara desde a última refeição de Ark na terra subterrânea dos Exploradores das Raízes. A carne era macia, tostada por fora e suculenta por dentro. Ark acabou com os pedaços de carne do primeiro espeto e devorou mais um, acompanhado por um suco vermelho com gosto de groselha fermentada. Corvena beliscava a comida em seu prato, suas unhas afiadas parecendo garras delicadas. — Então deusas comem comida também? Ela soltou uma gargalhada. — Suponho que eu pudesse esquentar algumas preces dendrianas bem-

intencionadas, mas seria um prato muito leve! Ark finalmente conseguiu dar um sorriso. — Assim é melhor! Agora temos assuntos importantes para tratar. Sabemos que Arborium está em perigo. O país está doente há muito tempo. Ark assentiu, pensando nas crianças ricas brincando nos jardins do castelo e no casebre que ele chamava de lar. — E agora vem uma intrusa pronta para arrancar o fruto do galho! — Maw? — Meus pássaros têm olhos. São eles que me contam o que acontece na floresta. A mulher que você ouviu encorajando Grasp a trair seu próprio rei, lady Fenestra, é uma deusa mais sombria do que eu jamais fui! Maw gerou um monstro perfeito, capaz de devorar todos nós. — Mas se você é a Rainha-Corvo, não pode agitar uma varinha de condão ou fazer alguma coisa assim? — Ark ainda não conseguia acreditar que estivesse sentado diante dela. Se ao menos seus pais pudessem vê-lo agora. — Existem altares para você por toda parte! — Como eu disse, Ark, o que alguns dendrianos senis acreditam que sou e o que sou de fato são duas coisas diferentes. É hora de você ouvir a verdade. Mas isso começa com uma pergunta: onde estamos? — Dentro do tronco de uma árvore. Na Floresta dos Corvos. No extremo oeste de Arborium. — E como surgiram as árvores? — Por que estou me sentindo na escola? — Responda! — ordenou Corvena. — Hã… os cientistas de muito tempo atrás. Eles seguiram uma mensagem enviada pela deusa para criar um mundo perto do céu, a salvo da terra poluída e daqueles que poderiam nos causar danos. Aquela era a arca verde que abrigaria os dendrianos de todas as tempestades por vir. Era uma história que todos os habitantes das árvores ouviam na infância. — Em certo aspecto, essa história é verdadeira. Há muito tempo existiu

um grupo de cientistas e pensadores que perceberam que as florestas logo seriam extintas. A terra era valiosa para a construção. Praticamente todas as árvores haviam sido derrubadas para abrir espaço para cidades de vidro. E, quando o cultivo de novas árvores tornou-se ilegal como medida de proteção do valor da madeira restante, era hora de agir. Eles foram liderados por uma mulher. Uma mulher sem nenhuma outra mensagem que não os anseios de seu coração para deter a loucura do mundo. — Isso é heresia! Ark estava chocado. — Os fatos são distorcidos e transformados com o tempo, como um galho em crescimento. À medida que as gerações passam suas narrativas adiante, a história é tecida em fantasia. A mulher era forte e inteligente. Em total segredo e com a ajuda de seus colegas, foi ela quem criou as primeiras sementes das árvores de Arborium. Outros no grupo encontraram uma ilha não habitada no meio do oceano, um dos últimos refúgios selvagens. Uma ilha que de alguma forma fora ignorada pela nação que um dia iria se tornar o Império do Maw. Ark sabia exatamente de que ilha Corvena falava, mas tudo em que ele acreditava estava sendo virado de pernas para o ar. — Como líder, coube a ela o sacrifício final. Ela simulou a própria morte, o que foi bastante fácil para uma grande cientista. Quando deixou a cidade na qual crescera, tinha o coração oprimido por causa da família, que precisou deixar para trás. Como chegou à ilha é outra história, e quem pode dizer o que se passou em sua mente enquanto enterrava as sementes na terra hostil? Era um experimento, que é uma espécie de prece, acho. Um sonho de criar vida nova quando todo o restante se transformava em grandes florestas de vidro e aço. — Ela era de verdade? Ark temia a resposta. — Tanto quanto você e eu sentados aqui esta noite. — Corvena fez uma pausa para olhar fundo nos olhos de Ark. — E eu sou filha dessa

mulher real, aquela cientista cuja fé criou Arborium. Aqui se encerram os fatos. Minhas aves preciosas me sussurram histórias sobre minha mãe, sobre como ela pôs a si mesma para dormir, enroscada como uma bola e envolta por sua mortalha, durante mil anos, enquanto as sementes cresciam ao seu redor. Mas até onde são verdadeiras não sei. Eles falam também dos Corvos de antigamente, que não tinham nem um metro de uma ponta de asa à outra e que comeram algumas das sementes de minha mãe. Eles foram transformados, assim como as árvores. A ciência esticou-lhes o bico, avolumou-lhes o corpo, transformou garras em lâminas e deu-lhes asas grandes o bastante para cortar as nuvens. Mas a ciência não explica tudo, pois, dentro daquelas sementes, mistérios ainda maiores se desdobraram, mistérios que nem mesmo eu compreenderei algum dia. Ark pôde imaginar então. Um lugar desolado, coberto por pântanos e urzes, onde apenas tempestades se elevavam acima da vastidão vazia daquelas terras. E daquele nada, daquele silêncio, a ação da chuva e do sol nas primeiras sementes havia criado Arborium… — Mas a terra debaixo de nós é suja, e foi por isso que as árvores cresceram tanto! Não acredito em você. — Os fatos não se importam com o que você acredita. — Corvena permitiu-se um breve sorriso. — Somente a terra além desses litorais era poluída, só que a história foi distorcida com o tempo. E, antes de perguntar de onde vieram os dendrianos, pense. — Até onde sei, podiam ter vindo de Maw! — Até que você não é burro, não é? Sim, Ark, eles eram refugiados. Um barco cheio deles, enfrentando ventos fortes e oceanos agitados que sacudiam e balançavam como copas de árvores em uma tempestade, rezando para escapar à marcha do novo mundo e encontrar alguma paz, uma terra a que pudessem chamar de sua, uma terra onde árvores ainda prosperavam. Ark tentou imaginar a cena. Ele nunca nem mesmo chegara perto do mar.

— Um barco velho e frágil, cheio de homens, mulheres e crianças desesperados. Ah, deparar-se com esse paraíso verde… Não havia gás venenoso, ainda não… E sua criadora os recebeu de braços abertos. Corvena sorriu diante daquele pensamento. — E foi assim que viemos todos parar aqui? — É uma história para outro momento. Mas você não acha que todos aqueles galhos-via foram construídos por magia, acha? O barco levava não só sonhos, mas carpinteiros, engenheiros e construtores. Eles trouxeram cidades inteiras em suas mentes, mas não as máquinas sombrias que enchiam o céu com fumaça imunda. Eles só precisavam de orientação para ter certeza de que os erros de Maw não se repetissem. — Corvena se levantou. — Está tarde e você precisa descansar. Preciso concluir. — Ela suspirou para si mesma. — Você sabe o nome da mulher, naturalmente… Ark podia ver uma palavra se formando em sua mente, mas não conseguia acreditar. Lembrou-se dos entalhes na madeira do lado de fora da casa de Corvena. — Isso mesmo, Ark… Diana. — Então, não existe nenhuma… Deusa? As palavras saíram aos tropeços enquanto Ark se encolhia diante da ideia que tivera. — O que é uma deusa? O que isso quer dizer? Você pode ler a mente dos animais, pode sentir as árvores, mas por acaso isso significa que deveríamos venerar você, jovem Ark? — Não… eu… isso não é justo! Sua mente disparava. Seria toda prece um desperdício tanto de ar quanto de pensamento? — Não necessariamente. Você nasceu tanto da ciência quanto da floresta. A intenção por trás de suas palavras sussurradas para Diana era correta. Talvez isso seja uma parte do que o fez ir em frente. Sabe, sempre observei você e esperei. Os Corvos são seus guardiões. É por isso que eles nunca o machucaram, por mais perto que você acreditasse estar da morte.

A pena que você encontrou foi arrancada do peito do meu pássaro mais precioso. Quando chegar a hora, ela lhe servirá novamente. — Ela fez uma pausa e seus olhos verdes de repente pareceram distantes. — Naquele dia em que coloquei você e sua irmã gêmea nos braços das pessoas que você conhece como seus pais, estava abandonando meus próprios filhos. Corvena baixou os olhos para ele com inesperada ternura. Ark sentiu o coração quase explodir. De repente, tudo fazia sentido, ainda que ele não quisesse que fosse assim. — Mas minha irmã morreu. Você não nos deixou nos braços deles, você nos deixou em um ninho, no frio! — reclamou ele, de repente exaltado. — Sim, você está certo, e embora não possa compreender, eu lhe peço perdão. Em breve você tornará a encontrá-la. Antes que Ark pudesse sequer pensar no que dizer, Corvena agarrou suas mãos. — Há coisas muito mais importantes em jogo, Ark. Esta era a minha pátria. Agora são os homens que mandam, e a transformaram em uma bagunça. Estou velha. Cabe a você agir. Desde que saiba disso, haverá esperança. Precisamos cuidar do seu talento. Quem sabe do que você é capaz?

Fingindo medo Petrônio estava muito perto da morte. Pelo canto do olho ele vislumbrou uma das extremidades da arma. Era completamente transparente, brilhante e lisa. Como funcionava? Não havia tempo para pensar enquanto o soldado a pressionava com mais força em seu crânio. Engraçado como os Corvos iriam se banquetear com ele no fim das contas. Não era de seu feitio desistir tão facilmente. Como iria se salvar? Talvez rezar fosse a resposta. — Tenho de me ajoelhar para fazer as pazes com Diana — murmurou. Era um risco. Ou sua cabeça iria pelos ares ou o soldado encontraria alguma migalha de consciência dentro de seu peito. — Ande logo com isso então, e nada de truques. Petrônio podia ouvir a impaciência do homem. Era um começo. — E como eu poderia ter aprendido na escola a enfrentar um soldado armado? Petrônio saiu do buraco devagar, recuando, até os dois se encontrarem dentro do tronco oco, equilibrando-se em uma plataforma de ferro deformada e enferrujada no alto dos degraus. Um feixe da luz do meio-dia passava pelo buraco, preenchendo a escuridão fria e úmida. Um morcego passou voando, protestando por ter sido perturbado. Pelo menos a arma havia recuado alguns centímetros e não estava mais espetando seu crânio.

Bom. — Não sei e não me importo. — Você não se importa de matar uma criança indefesa? Petrônio falava com uma voz frágil e chorosa, toda a sua linguagem corporal imitando a de uma criança apavorada ao se ajoelhar devagar. O homem ainda estava atrás dele, perto o suficiente para que Petrônio sentisse seu hálito com um estranho aroma de hortelã. — Um dendriano a menos, no que me diz respeito. Agora, ande logo com isso. Você tem trinta segundos. Ele fez um último esforço para continuar a conversa, hesitando em cada palavra. — Eu não vi nada, sinceramente. — Petrônio teve vontade de se bater ao ter uma súbita ideia. Aquele homem não era seu inimigo! Era tudo um mal-entendido. Ele só tinha de provar. — Estou do seu lado! Trabalho para lady Fenestra. Petrônio ouviu um arquejo de choque em resposta. — Não ouse dizer esse nome em voz alta! O homem pareceu em pânico por um segundo, pronto para fazer qualquer coisa. — Mas… — Mas nada. Se está do nosso lado, por que estava nos espionando? Lógica brutal. Petrônio não tinha o que responder. Curiosidade não seria uma boa resposta. Ele se agachou na madeira, sentindo a superfície áspera nos joelhos. Aquilo era ridículo. Ele estava mesmo do lado deles. Mas mencionar a enviada de Maw exercera o efeito oposto ao que ele pretendera. Um grande erro. Agora só havia uma saída. — Seu rato — vociferou o soldado. — De que buraco você saiu? Você ouviu demais. Precisa ser calado para sempre, e é o que vai acontecer quando eu jogar esse seu corpo gordo deste galho estúpido. Agora reze! O soldado estava acostumado a dar ordens a seus inferiores, e o tempo

daquela ralé estava se acabando. Petrônio curvou a cabeça e começou a balbuciar as palavras que aprendera no Templo. — Deite-me em doces clareiras. Ainda que eu ande pelos bosques da morte, tu estás comigo, tua vara e teu cajado a me consolar… As palavras saíam mecanicamente, mas cada parte do corpo de Petrônio estava tensionada, pronta para a ação. Ele ouviu um clique áspero e deduziu que a arma do homem estava pronta. Então Petrônio pressentiu-o inclinando-se mais e mais perto, na intenção de finalizar o trabalho. Agora! A perna esquerda de Petrônio escoiceou como um cavalo e fez contato direto com a canela do homem. Ouviu-se um satisfatório ruído quando o osso se partiu e o soldado desabou no chão, gritando, com o pé em um ângulo anormal e o osso branco exposto. No mesmo momento Petrônio ouviu um som semelhante a um suave farfalhar de penas e sentiu uma dor intensa e aguda no ouvido. Não havia tempo para pensar. Levantou-se com um salto, perguntando-se se Diana tinha atendido suas preces, afinal. Quando saltou sobre o homem para se dirigir à escada, um braço estendeuse de súbito e agarrou sua perna. — Seu pequeno… — Nem tão pequeno assim! — disse Petrônio. Desferiu um chute violento com a perna livre, acertando uma parte do soldado que o fez dobrar-se em agonia ainda maior e a começar a miar de dor como um gatinho. O braço o soltou, e Petrônio começou a descer a escada em disparada. O soldado que ele avistara primeiro não estava longe. Petrônio corria sério perigo. Talvez devesse ter apanhado a arma do homem, mas não sabia como usá-la. No que lhe dizia respeito, tratava-se de um pedaço de vidro estranho que apenas o retardaria. Alguns segundos depois ele chegava ao pé da escada, onde havia quatro arcos levando em direções diferentes. Ele espiou para a direita, a tempo de ver o segundo soldado a poucos metros, apontando a arma transparente para ele.

Àquela altura Petrônio havia deduzido que o que quer que saísse daquele tubo de vidro seria rápido e letal. Ele ouviu um segundo e quase imperceptível farfalhar e abaixou-se. Parte do arco desabou, lançando uma chuva de lascas sobre ele. Petrônio virou-se e saiu em disparada, esperando encontrar refúgio entre as samambaias que cobriam o caminho que usara para chegar ali. Podia não estar usando camuflagem, mas, no meio do verde, tinha ao menos uma chance de se esconder. Desejou poder parar e pôr algum juízo na cabeça dos soldados, dizerlhes que, sem ele, Fenestra não teria chegado a lugar nenhum. Mas era tarde demais para conversar. Projéteis passavam zunindo rente à sua cabeça, como andorinhas dementes. Petrônio mergulhou no primeiro trecho de samambaias, rolando ao cair sobre a moita macia. O galho-via era largo o bastante para sustentar toda uma colônia dessas plantas irritantes. Ao menos uma vez Petrônio ficou feliz pela incompetência do conselho. Arrastou-se para a esquerda, depois para a direita, espremendo-se como uma toupeira em uma lavoura suspensa, bem no meio da folhagem. Aqui também havia espiões: súbitos ramos de urtiga ocultos até que fosse tarde demais. Petrônio tentou ignorar seus ataques. Melhor algumas ferroadas que a morte súbita. Ele parou para recuperar o fôlego. Levou a mão à orelha, que queimava, e sua mão voltou vermelha. Talvez as samambaias disfarçassem o cheiro. Caso contrário, os Corvos cairiam sobre ele como larvas em um cadáver em decomposição. Não estava sendo um dia nada bom. Fenestra tinha lhe dito que já cumprira sua parte. Ele deveria têla ouvido. Então ele distinguiu o som do soldado, furioso, chutando as samambaias. — Cadê você, seu monte de imundície estrangeira? Um dos meus melhores homens está machucado, mas não vou deixar você se livrar desta! Petrônio sentiu uma raiva justificada. Quem era o estrangeiro aqui? Dúvidas em relação a Fenestra e suas promessas a Grasp começaram a insinuar-se em sua mente. Com soldados como aquele em seu comando,

quem garantia que ela não iria simplesmente massacrar cada dendriano? Uma vez que lhe tivessem dado o que ela queria, que utilidade teriam? As urtigas lhe deram uma ideia. É preciso combater fogo com fogo. Era o que os guardas de seu pai haviam lhe ensinado desde que ele havia pegado uma faca de cozinha e lançado contra um rato que tentava invadir a despensa. O animal foi atravessado pela lâmina, e um humilde instrumento de cozinha revelou seu lado obscuro. Qualquer coisa podia ser uma arma. O verdadeiro talento estava em usar o cérebro para criar oportunidade no desespero. Petrônio trincou os dentes ao fechar a mão em torno de uma moita de urtiga e arrancá-la sem fazer barulho. As raízes haviam penetrado fundo na madeira podre, mas não eram páreo para ele. Ignorando o inchaço nos dedos, Petrônio começou a voltar. Precisava posicionar-se atrás do soldado, que cometera seu primeiro erro elementar: pisotear a área fazendo muito barulho significava não ouvir o que estava se passando à sua volta. Petrônio tirou vantagem disso, seu corpo movendo-se com considerável facilidade enquanto ele abria caminho entre as samambaias até ficar praticamente atrás do soldado. Ele pensou nos diferentes métodos que sua educação lhe havia ensinado: o chute na base das costas e, durante a queda do inimigo, o salto sobre o pescoço seguido pelo estalo fácil; ou o estrangulamento de surpresa por trás. Hora de experimentar sua arma improvisada. — Apareça, seu arremedo choroso de espião! O homem apontou a arma para a selva e vários galhos se racharam em cicatrizes irregulares. — Como quiser! — gritou Petrônio, ficando de pé e na frente do soldado, passando as folhas de urtiga pelo rosto do homem, esfregando-as com força nos olhos, bochechas e nariz. O efeito foi imediato e perfeito. O soldado caiu de joelhos, arranhando o rosto ao mesmo tempo em que berrava de agonia. Nada como uma arma natural para salvar o dia! Petrônio pensou em chutar o soldado,

empurrando-o pela borda do galho. Não. A cabeça do homem iria ficar inchada até duas vezes seu tamanho normal por alguns dias, mas ele sobreviveria. E Petrônio também. Era hora de dar o fora dali. Petrônio sentiu a euforia. Nada superava uma boa luta, e a onda de adrenalina ainda percorria o corpo dele, enchendo-o de prazer. Dez minutos antes ele quase fora morto, e agora? Nunca se sentira mais vivo. Ele começou a se afastar pela selva, esfregando as mãos inchadas. Ao repassar todos os acontecimentos em câmera lenta em sua mente, ouviu um súbito e familiar farfalhar. Suas entranhas então pareceram estar se estilhaçando em milhares de pedaços. — O quê…? — ele gemeu. Tão perto e no entanto tão longe. Quando sua mente começou a ficar nebulosa, ele se deu conta de que soldados sempre têm colegas. Devia ter tomado mais cuidado. Baixou os olhos para ver o que parecia um caco de vidro projetando-se de seu peito. O sangue instantaneamente espalhou-se por seu gibão. Ele revirou os olhos e caiu com um baque surdo que ecoou pelo galho-via.

Uma porcaria de lição Ark dormiu a manhã inteira e adentrou a tarde em um quarto lateral tão suntuosamente mobiliado quanto o de Corvena. Ele não tinha a menor dúvida de que o colchão era de penas de Corvos. Seus sonhos foram igualmente negros. Havia um ninho, bem alto em uma árvore, na junção de dois galhos, e dois bebês acomodados nele. Um deles chorava a plenos pulmões. O outro, porém, tossia, o corpinho tremendo todo enquanto o vento espiralava em torno deles como um caçador faminto… Quando Ark finalmente despertou, encontrou Corvena sentada na beira da cama dele, observando-o. — Preciso voltar. Shiv… o rei… Ele tentou sentar-se, afastar-se daquela velha que na noite anterior tinha lhe dito que era sua mãe! Quem sabe não fora apenas um sonho horrível… Ele ainda se sentia muito fraco. — Ark, há mais em jogo do que o rei. Você sabe disso. Seja como for, que poder ele de fato detém? A podridão é profunda demais para que ele faça alguma diferença. — Não sei o que você espera de mim — retrucou ele, zangado. — Você disse que agora era por minha conta. Mas o que posso fazer contra soldados treinados? — Você não faz um bom juízo de mim! — suspirou Corvena.

— O que você esperava? Não é todo dia que a Rainha-Corvo anuncia que é minha mãe! — Seu coração de repente ansiava por sua casa. Por estar novamente com Shiv, conversando com o pai em seu catre. O Sr. Malikum, um homem que subiu em um galho e encontrou dois órfãos. — Então quem é meu pai? Os olhos verdes se desviaram por um segundo. — Um dia explicarei. Se eu lhe dissesse que cada árvore nesta terra o embalaria em seus ramos ondulantes como um pai faria, você poderia ainda não acreditar em mim. Ele não acreditava. Não podia. Em vez disso, Arktorious Malikum, o menino enjeitado, filho de Arborium, deixou escapar um grande soluço enquanto a mãe o abraçava com força. — E por que você me abandonou? — Era a vontade da floresta. Se você não crescesse como um dendriano, não saberia por que lutar. Mas o dia em que enrolei vocês dois e os deixei naquele berço de galhos quase partiu meu coração sombrio. E um dia, prometo, você irá compreender por que sua gêmea teve de seguir em outra jornada, muito mais perigosa. Naquele momento, Ark sentiu que ela sofria. Corvena já não era um ser estranho e poderoso, mas uma senhora lamentando tudo que teve de perder. — Sinto muito, mas você tem um propósito maior, Ark. Lá no fundo você sabe que essa é a verdade. — Delicadamente, ela enxugou as lágrimas do seu rosto. — O destino às vezes é duro como o cerne da madeira. Você rezou por um modo de consertar as coisas, e talvez Diana, mãe de todos nós, tenha lhe mostrado o caminho. Qual o sentido de rezar se aquilo não traz resultados? Estou aqui desde o início da floresta, ou quase. Talvez eu possa revelar um pouco do mistério dela. — Corvena soltou o filho e levantou-se. — Venha, há roupas limpas para você. Assim que tiver comido, vamos começar. É preciso desenvolver as habilidades que estão dentro de você. Não o lançaram nos esgotos sem treinamento, não foi? Você precisa de uma

professora. E ela se foi, as anáguas pretas rodopiando na brisa. Infeliz, Ark tirou as roupas velhas, suadas e manchadas de sangue. Uma crosta já começara a se formar sobre o corte em seu peito. Era mais um arranhão que um ferimento profundo. Ele tivera sorte de seu rústico gibão ser tão grosso. Havia uma bacia revestida de zinco no canto do quarto, cheia de água limpa das raízes. Quando ele terminou de se lavar, olhou as roupas novas, estendidas ali, como se Corvena soubesse desde sempre que ele viria. Ark vestiu as meias tecidas com lã tingida de preto, muito menos ásperas que as antigas. Sobre elas vestiu os novos calções de veludo preto acolchoado. Sua túnica fechava-se na frente com botões de marfim e ele finalizou com um colete de couro macio. Os sapatos eram do tamanho certo, muito mais confortáveis que o velho par que herdara do pai. Ele olhou-se no espelho acima da bacia. Um Corvo com pernas. Era aquilo que ele era? Ark já não sabia. Ele parou, hesitante, na porta do quarto. Corvena dissera que ele poderia salvar Arborium. De repente, sentiu ódio, mas ao mesmo tempo soube que ela era a única que poderia ajudá-lo a fazer aquilo. Até ali, apenas sentira a solidão de uma larva gigante e atirara uma pena no ar. Nada capaz de fazer a floresta tremer. Ark respirou fundo e por fim abriu a porta, sendo recebido por um dia incrivelmente luminoso. A luz abria caminho à força pelo dossel. O galhovia à frente parecia vazio. Ele olhou na direção das montanhas e de casa. Sentiu uma imensa solidão. Aquele lugar, com sua selva de árvores enrugadas e entrelaçadas, era estranho e, no entanto, assustadoramente belo. Onde estava Corvena? Ele olhou por todo o dossel deserto. Hoje não havia olhos observando-o das árvores. Hesitante, Ark começou a andar pela estrada, absorvendo a cada passo os raios de sol que atravessavam o caminho cheio de curvas. À medida que o sol foi aquecendo seu rosto, ele sentiu a força retornar ao corpo. Após algumas centenas de metros, viu um tronco imenso adiante. O caminho

alargou-se e começou a descer, formando uma piscina perfeitamente circular, a superfície lisa como um olho gigante refletindo o azul do céu lá no alto. Só que aquela piscina parecia natural, intocada por serra ou formão dendriano. Em vez de comportas e aquedutos para canalizar a água que vinha das raízes lá embaixo, aquele oco côncavo onde dois galhos gigantes encontravam o tronco devia ser cheio de água da chuva. A um lado, em uma plataforma de madeira elevada, Corvena encontrava-se sentada, as pernas cruzadas, os olhos fechados, o corpo imóvel feito pedra. Ark tossiu de leve. — Ah! — exclamou Corvena, abrindo os olhos. — Está com fome? Estou faminta. — Não sei. Por quê? A refeição ao amanhecer de repente lhe pareceu ter sido muito tempo atrás. Corvena pôs-se de pé. Os dedos de sua mão esquerda se abriram, fazendo um sinal para que Ark transpusesse a piscina natural. — Se estiver com fome, vai aprender. Venha. — O quê? Quer que eu ande sobre a água? — Não. Acho que vamos deixar isso para as lendas. Esta tarde vamos caçar. Não temos muito tempo. Ark viu que ela apontava para a passagem que margeava a piscina. Ele ainda estava cansado. Se ao menos pudesse mergulhar naquelas águas deliciosas… Mas Corvena já havia desaparecido dentro do tronco atrás dela. Ele correu para alcançá-la, descendo os degraus no interior do tronco de dois em dois. A Floresta dos Corvos parecia diferente. Sim, havia troncos ocos e galhos-via. Mas aí terminavam as semelhanças. Enquanto Arborium era projetada e construída, nesse lugar, escondido do outro lado das montanhas, parecia que tudo havia sido cultivado. Até mesmo os degraus que ele descia ruidosamente eram espontâneos. Talvez a própria árvore houvesse decidido dedicar-se à carpintaria. As extremidades se fundiam umas nas outras, e os

degraus eram mais concavidades que superfícies cuidadosamente aplainadas. Quando ele alcançou Corvena na descida, no patamar seguinte, ela se deteve ao lado de um arco oco coberto de hera. O galho-via que saía dali curvava-se e se retorcia, como uma cobra fossilizada na madeira. Em vez de andaimes e sustentações, o galho gigante partia do tronco, retorcendo-se, e se fundia com um galho da árvore seguinte. A trilha que cruzava os troncos, sobre os grandes abismos lá embaixo, havia sido escavada pelos cascos de criaturas desconhecidas. — Aonde estamos indo? — Em Arborium, todos correm de um lado para o outro. Eles falam em ir direto para o trabalho. Ou dizem: “Não fique enrolando por aí.” Arborium não foi criada para ser assim, como aqui, o único lugar que a influência dos dendrianos não alcançou. Meu sonho, e espero que o seu também, é que toda a nossa floresta possa se tornar limpa novamente se você fizer a sua parte. Tome cuidado e me siga de perto. Corvena lhe deu as costas e entrou na passagem. Ark tentou segui-la, embora o galho-via sustentasse sua própria floresta viva — um emaranhado de rododendros gigantes, loureiros e moitas de espinheiros que brotava da passagem e maculava a elegância de sua roupa nova. Cheiros e cores o assaltavam por todos os lados, desorientando-o e deixando-o tonto, pétalas de flores do tamanho de asas de Corvos flutuando em seu campo de visão. Ao tentar passar pelos arbustos, Ark tinha consciência de outros movimentos e ruídos de fugas apressadas. O pior que Arborium tinha a oferecer eram vespas mal-humoradas, bêbadas com maçãs fermentadas. Ele não queria saber o que se ocultava nas sombras desses caminhos. — Espere por mim! — gritou ele, dobrando uma esquina e quase colidindo com sua nova professora. — Psiu! — Corvena levou um dedo aos lábios. — Não está ouvindo? Ark se coçava e sentia calor. O único som que ouvia agora era o grito ocasional dos Corvos lá no alto. — Lembra-se de quando estava aprisionado nos esgotos e o guarda veio

espiar pela vigia? — sussurrou ela. — Sim. Ele não se surpreendia mais com o fato de ela parecer saber de tudo. — A pena-presente foi parcialmente responsável. Um Corvo não perde as penas de seu manto facilmente. Foi um sacrifício para meu Hedd abrir mão de uma das penas de seu peito, mas ele sabia que seria bem-utilizada. Porém, a outra parte vem do que você fez. Você nasceu na madeira. Você vem da madeira. Portanto, herdou as habilidades de toda árvore. Só precisa descobri-las. — Corvena ficou em silêncio, e então ele pôde ouvir. Um tamborilar distante, reverberando pelo galho e atravessando as solas de seus pés. — Rápido, agora. Ela agarrou Ark com firmeza pelos ombros, as unhas afiadas atravessando a túnica e enterrando-se em sua pele. — Este é um teste mortal. Você deve ser todo ouvidos. Estas árvores, em seu cerne, apreciam a quietude. É a razão por que sempre voltamos à floresta para acalmar nossos corações sombrios. Lembre-se dos guardas! Com aquilo, ela o soltou. De que diabos ela falava? O caminho estava vazio. Corvena desapareceu tão facilmente quanto o mundo que ele deixara para trás. O tamborilar tornou-se mais alto. Algumas folhas de espinheiro caíram, como se algum gigante houvesse sacudido seus pequenos galhos retorcidos. O que quer que estivesse no caminho à frente, aproximava-se a toda velocidade. Ark percebeu que seu coração disparava enquanto seus olhos tentavam perscrutar as sombras. — Corvena? — grasnou ele, com a garganta seca. Suas pernas experimentavam a súbita urgência de dar meia-volta e sair correndo dali. Tarde demais. No momento em que o tamborilar distante se transformou em rugido, o matagal diante dele subitamente revelou seu segredo.

— Ah! — arquejou Ark. Quando Corvena dissera a palavra “caçar”, ele não tinha a menor ideia de que se referia àquilo. Uma vara de porcos selvagens trovejava pelo caminho, vindo bem em sua direção. Estavam a apenas uns cinco metros e se aproximavam rapidamente. Ark vira um ou outro porco selvagem em casa. De vez em quando um deles ia parar na cidade, vindo das partes mais selvagens de Arborium, e todo mundo saía gritando por causa do que, basicamente, era um porco grande demais. Sem dúvida, as presas poderiam causar um ferimento feio se o bicho perseguisse alguém, mas os porcos selvagens não eram muito inteligentes. Era só sair do caminho deles e seguiriam em frente, deixando a maioria dos dendrianos abalados porém seguros. Corvena havia advertido Ark em relação à Floresta dos Corvos. Ela estava certa. Essas feras, assim como as árvores ao redor delas, haviam sido torcidas e esticadas até se tornarem irreconhecíveis. Eram montanhas de músculos sobre pernas, com o acréscimo de um par de presas que poderiam facilmente empalar uma família inteira em sua extensão afiada. Um já era suficiente para deixar alguém sem fôlego e lembrar cada prece que já houvesse sido lançada ao vento. Mas um bando deles, sacudindo o caminho por onde passavam com estrondo? Ele não tinha a menor chance. Todas as palavras que Corvena dissera desapareceram na mesma hora de sua mente, exceto que era óbvio que ele havia nascido das árvores. Ark havia criado raízes naquele ponto no centro da passagem. Como uma fraca mudinha de árvore, ele estava prestes a ser quebrado ao meio.

Fome de viver Se Mucum estivesse ali com ele, teria feito alguma piada sobre viver em um chiqueiro, mas não havia ali um amigo para bolar um plano de ação instantâneo. Em vez disso, Ark enfrentava um batalhão de feras selvagens. Se o trovejar de seus cascos não o derrubasse do galho, então as presas certamente atravessariam sua barriga. Corvena disse que era sua mãe! Será que uma mãe o deixaria para ser pisoteado até a morte assim? Ark sentiu o suor escorrendo pela testa. Os porcos estavam tão perto agora que ele podia sentir seu fedor. Os olhos arregalados eram como moedas brilhantes. Ele estava apavorado. As últimas palavras de Corvena de repente lhe voltaram. “Lembre-se dos guardas.” O que ele fizera quando ele e Mucum ficaram aprisionados atrás da porta? Os porcos agora estavam a uns três metros, as cabeças abaixadas, prontos para tirá-lo do caminho. Quando Ark sentiu o hálito do líder da manada, com as presas do monstro prontas para serem cravadas em seu peito, cada palavra dita por Corvena encaixou-se no lugar. Agora ele não tinha nenhuma pena de Corvo para agarrar. Ela dissera que Ark vinha das árvores, e o que as árvores fazem melhor? Elas se mantêm ao longo de todas as estações, resistindo contra a chuva violenta e o vento fustigante. Bem, estar “enraizado no lugar” talvez não fosse uma ideia tão ruim. Seu coração encheu-se de uma louca confiança. Era quase tão imprudente quanto pular

do galho. Ou ele viveria ou morreria, dois lados de uma moeda girando no ar em sua direção. No último segundo, Ark olhou para baixo. Se ele fosse mais uma árvore, os porcos o ignorariam. No entanto, não fugir da horda que se aproximava parecia um ato de loucura. Cada parte do corpo de Ark se retesou. Os animais não pararam. Em vez disso, passaram direto por Ark, seus corpos passando de lado por ele como se fosse uma rocha sólida. Em um piscar de olhos os porcos desapareceram atrás dele, pisoteando arbustos ao seguirem pelo galho-via. Ark lentamente relaxou, virando a cabeça para trás, incapaz de acreditar que conseguira. Era um milagre; estava ileso. A única coisa que restava era um leve cheiro que já era levado pela brisa. Um som de palmas interrompeu o silêncio. — Um pouco de última hora, mas serve, acho. Corvena deixou as sombras, seu manto de penas abrindo-se atrás dela como asas. — Serve? — A voz de Ark parecia ressecada. Pelo menos seus pés tinham voltado a funcionar quando ele se virou para encarar Corvena, embora em certo momento as solas dos sapatos quase tenham ficado presas à madeira. — Eu poderia ter morrido! — Sim. — E isso é tudo que você tem a dizer? — Não. Você poderia ter morrido, mas não morreu. Acreditei em você, Ark. — Corvena arqueou as sobrancelhas, divertida. — Mas ainda estou com fome. — Como é? — disse Ark. — Vamos ver se entendi bem: quase morri alguns segundos atrás e você está mais preocupada com seu apetite? Ark em geral era manso e dócil, mas ele estava mudando, se transformando em alguém diferente. Em geral era Mucum que ficava furioso. O que estava acontecendo com ele?

— Sim. Mas não se preocupe. Nossos amigos estão voltando, e dessa vez não vamos deixá-los ir embora tão facilmente. — O que quer dizer? — Quando o galho começou a tremer, ele soube bem o que ela queria dizer. — Ah, não, de novo não! As aulas na escola não eram assim. Pelo menos você não arriscava a vida! — Agora ouça bem. Não vou deixá-lo desta vez. Mas você precisa fazer o que eu mandar. Apesar do que conseguira realizar, Ark sentiu medo de novo. Não se sentia pronto para outro encontro. Não tão rápido. Seus lábios ficaram ressecados, e o coração começou a martelar dentro do peito, como um pássaro tentando escapar da gaiola. Era para o bem de Arborium. — Ok. Está bem. Me diga. Na pior das hipóteses, ele certamente poderia brincar de estátua mais uma vez. — Se você é mesmo da floresta, então há muito a ser descoberto. — Ela pegou um pequeno espelho e o entregou a Ark. — Você deve refletir sobre isto e sempre saber que a luz é amiga das folhas, e sua. — Um espelho? — guinchou ele. — Mas eu não preciso pentear o cabelo! — Não seja tolo, jovem Ark. Use a luz! O galho debaixo deles estremeceu quando o grupo fedorento de porcos selvagens correu na direção deles. Restavam poucos segundos. Um raio de sol atingiu o espelho e foi refletido, iluminando um pequeno trecho da floresta à esquerda do caminho. — Ah! Ark perguntou-se se ainda tinha tempo. Ele moveu a mão, tentando direcionar o pequeno feixe para o caminho à frente. A mão tremeu e errou antes de finalmente mirá-lo no líder dos porcos, agora a apenas alguns metros de distância. — Ótimo! — sussurrou Corvena em seu ouvido.

Ark não tinha a menor ideia se iria funcionar até o espelho atingir os olhos do porco líder. O efeito foi imediato. O animal estava cego. Ele caiu de cabeça nos arbustos que ladeavam o ramo-via e escorregou pela borda. Os outros no bando entraram no jogo mortal de “siga o líder”, seus guinchos agudos soando excruciantes à medida que um após o outro despencava pela abertura. Ark arfou, desanimado. Ele não tivera a intenção de causar um massacre. Corvena, porém, escolhera o local com cuidado. A floresta era particularmente densa ali, e os galhos que se irradiavam abaixo deles formavam quase um labirinto. Viver ali no alto, no dossel, dava agilidade aos porcos selvagens. Eles caíam como gatos, conseguindo aterrissar na vertical no matagal abaixo, agarrando-se na casca da árvore e então gritando e disparando para outras passagens nas profundezas da floresta. Todos, exceto um, que ainda estava no caminho de Ark. Talvez aquele fosse mais esperto ou, como Ark, fosse diferente. Ele não se deixara enganar com aquele truque do espelho, mas estava mais interessado em atacar os responsáveis por quase destruir sua família. Ele foi se aproximando devagar, os olhos conscientemente evitando o espelho, as presas abaixadas, prontas para mandar Ark para o além. — Muito bem, meu garoto! — gritou Corvena. Ark estava surpreso. Ele estava prestes a ser morto e Corvena o parabenizava. No entanto, não foi com ele que ela falou quando deu um passo na direção do porco solitário. — Estamos impressionados com sua determinação. Enquanto falava, sustentava o olhar do animal. Ark observava de lado o porco selvagem bater o pé e bufar para o inimigo, mantendo-se firme. Corvena ergueu as mãos, como se mostrasse à fera que estava desarmada, e a fitou, sem piscar. — Isso. Calma. Ela persuadia a criatura com o olhar. O animal se arrastou para a frente

como um cachorro que obedecesse ao comando de se aproximar. De perto, Ark pôde ver que a criatura estava tão assustada quanto ele. Sem se mover, Corvena sibilou para Ark: — O que está esperando? Pegue a faca no meu cinto. Use-a. Ark viu o punho da arma espreitando de suas anáguas. — Você quer que eu…? — A vontade da floresta. Comer ou ser comido. Entre os olhos é mais misericordioso. Ark se viu movendo-se em câmera lenta, erguendo a lâmina enquanto Corvena controlava o animal. Sentiu-se enojado com o poder da RainhaCorvo. — Não posso! — choramingou. — Se virarmos as costas, este animal nos liquidará sem pensar duas vezes. Precisamos comer. O que vai ser? Ele tomou uma decisão. Ergueu a faca bem acima da cabeça do porco. A floresta imobilizou-se e Ark teve consciência de Corvena de súbito ajoelhando-se e murmurando: — Entra para a escuridão, honra tua forma e centelha! Antes que tivesse tempo de questionar o que Corvena estava fazendo, a mão de Ark, livre, desceu na direção de seu alvo. Ele teve um último vislumbre dos olhos do porco, piscando para os seus, cheios de terror, antes que a lâmina penetrasse no crânio. O porco deu um suspiro antes de cair lentamente para o lado. Ark puxou a faca com desgosto. O sangue escorreu pelo ramo-via. Mucum havia matado o rato de esgoto com facilidade e Petrônio teria esfaqueado o excolega de escola, feliz. Mas Ark não experimentava nenhuma sensação de vitória. Matar ia contra tudo que a guardiã falava. — Você está em choque. Mas a passagem dele para o outro lado será segura agora. — O quê…? A imagem de Goodwoody ajoelhada no Templo veio à sua mente.

— Exatamente — respondeu Corvena. — Acha que não honramos os mortos? — Ela se levantou, observando Ark atentamente. — Além disso, foi uma boa aula. Você precisará de estômago forte para o que está por vir, criança. E só temos alguns dias para prepará-lo. Ark viu um Corvo descer do céu a poucos metros deles. O garoto recuou. Talvez Corvena controlasse de fato os Corvos, mas aquelas garras poderiam facilmente rasgá-lo ao meio. — Este é Hedd! — disse Corvena. Um par de olhos escuros e sem pupilas dirigiu-se a ele. Será que esperavam que ele dissesse olá? — Pode dizer o que quiser. Mas talvez seja bom temperar seu medo com admiração. — Corvena caminhou até Hedd e o acariciou sob o bico. A ave crocitou de prazer. — Estas aves são o coração desta floresta. — Bem, hã… obrigado por me salvar de Petrônio — disse ele, sentindo-se meio idiota. O pássaro inclinou a cabeça como se compreendesse, então apanhou o porco selvagem morto. Com um movimento de penas imensas, tanto ave quanto fera desapareceram nas sombras verdes. — Venha. Hedd vai levar nosso jantar primeiro. Esta manhã eu não tinha muita certeza se você estaria pronto para as tarefas que preparei para você, mas agora sou obrigada a elogiá-lo! — Por quê? Fiquei parado, deduzi como usar um espelho e matei uma pobre criatura com uma punhalada. Isso não vai salvar a floresta, vai? Ark sentia-se enjoado. — Seus Mateiros Sagrados pregam sobre a crença. Talvez você precise de um pouco dessa crença agora. Você e seus amigos talvez se tornem uma força a se considerar. Corvena tinha um bom argumento, embora Ark sentisse que suas mãos estavam sujas. — Suponho que eu tenha me saído bem. É melhor do que chavesinglesas e desentupir vasos.

Então pensou na maneira como o porco havia olhado para ele no momento em que a faca entrara em sua cabeça. — Se quiser ter êxito, deve se tornar amigo da morte. É isso que você tem à frente, se estiver disposto. — Meu melhor amigo provavelmente está morto. Isso já não é suficiente para você? Ark estava cansado da luta, cansado da maneira como Corvena arrancava pensamentos de sua mente como um Corvo devorando restos. Os acontecimentos daquela tarde começavam a afetá-lo. Sentiu o corpo inteiro tremer, como se seus membros estivessem se transformando em geleia. Algumas horas depois, e com uma tigela de ensopado de porco satisfatoriamente pesando em seu estômago, Ark encontrava-se deitado na cama. Corvena estava sentada com ele. Era estranho. Sua mãe… sua outra mãe era quem normalmente vinha sentar-se ao seu lado na cama. — O que você quer dizer com me tornar amigo da morte? As palavras rodopiavam em sua mente, como aquela estranha floresta que agora o detinha em seu poder. — Você verá. Este treinamento não é à toa. Faz parte de uma jornada que você está destinado a empreender desde o dia em que nasceu. Espero que esteja à altura. Ark não estava gostando nada daquilo. — É, eu sei que não. Ark, estou velha e frágil, e você é o futuro de Arborium. Logo tudo se esclarecerá. — Ela assentiu com a cabeça e se levantou. — Seja lá quais forem suas preces, use-as agora antes de dormir. Vou deixá-lo. Ela saiu e fechou a porta atrás de si tão rápido quanto a abriu. Aquilo tudo era demais. Pelo menos a cama estava quente. Ele tinha uma nova mãe, supostamente era o futuro de Arborium e as pessoas que amava corriam grande perigo. E agora descobria que vinha rezando toda a sua vida não para uma deusa longínqua, mas para sua avó. Ark envolveu

seu corpo com os braços. Embora estivesse exausto, sua mente não o deixava descansar. Fechou os olhos, mas tudo que pôde ver foi a irmãzinha com o sorriso travesso, o cheiro da fumaça da lareira de casa, Mucum correndo aos tropeços em sua direção, desesperado para vingar sua honra, a risada de desdém de Petrônio, o brilho do minério nos túneis das raízes lá embaixo, as vozes distantes tramando a destruição, filtradas pelo encanamento. Tudo aquilo o cobria como ondas até que seu corpo por fim não aguentou mais, e ele mergulhou em um longo e perturbado sono.

Alegria na masmorra — Onde, pelo nome obscuro e inglório de Diana, está meu filho? Grasp estava sentado à mesa. Se lhe restasse algum cabelo, ele o estaria puxando, com força. Em vez disso, dirigia sua raiva ao homem diante dele. — Não sei, senhor. Não vi. Desde quando Sálix era responsável por aquele insetinho vaidoso? — Você não sabe, não é? Esse é o seu problema — sibilou Grasp. — As pessoas que emprego costumam não saber nada de nada. É um espanto que eu ainda me dê o trabalho de pagar vocês! O guarda tocou o punhal em seu cinto, perguntando-se como ficaria enterrado no olho do patrão arrogante. — Bem, posso ir procurar por ele, acho. A última coisa que Sálix queria fazer era sair lá fora no frio. Ele salvara a vida do garoto uma vez. No que dizia respeito a Bombax Sálix, aquilo já era muito. Grasp parou, estufando o peito sob o gibão de cetim ridiculamente rosa. — Ele deve estar bêbado ou alguma outra bobagem assim. — O conselheiro permitiu-se um único e sombrio espasmo dos lábios. Ele mesmo fora um fanfarrão na juventude. E o garoto tinha apenas catorze anos, afinal… ainda assim, já era bem tarde. — Bem, então me informe quando ele voltar. Pode mandá-lo até meus aposentos. Sálix virou-se para sair.

— Por falar nisso, você informou aos pais de Malikum que o filho deles finalmente morreu de verdade? Sálix assentiu. O filho do encanador havia fugido deles vezes demais. Mas escapar às garras dos Corvos? Aquilo nunca tinha acontecido, e Sálix não era estúpido o suficiente para acreditar em milagres. A tarefa de informar aos pais fora a única alegria que tivera naquele dia. Ver a mãe antes determinada reduzida a cacos foi puro prazer, e a maneira como o pai do garoto havia desabado em seu patético catre trouxe um brilho selvagem aos olhos do guarda. — Ótimo. Ainda temos a garota como refém, o que deve mantê-los calados até que nossos planos se concluam. Agora vá. Sálix sabia que Grasp gostava que seus asseclas saíssem do escritório andando de costas, em algum tipo de deferência patética. Ele fez o oposto, virando-se rapidamente e se dirigindo para a porta. Bater ou não bater, aquela era a questão. Resolveu que deixar a porta entreaberta era uma pequena vitória, especialmente quando ouviu Grasp levantar-se alguns segundos depois e dirigir-se batendo pé até a porta, praguejando em voz alta. — Maldita corrente de ar! Malditos estúpidos e incompetentes com caca no lugar do cérebro! A batida da porta, quando ocorreu, foi particularmente ruidosa. Por mais que Grasp desprezasse seus subordinados, eles eram necessários para o trabalho sujo da política. A insolência não teria como consequência uma demissão, e Sálix sabia bem disso ao descer a escada assoviando.

***

Três níveis abaixo, em uma cela revestida com tábuas presas com rebite de ferro, Mucum andava de um lado para o outro como um cão enjaulado.

Suas costelas doíam e, no ponto em que Petrônio acertara o soco, parecia haver um grande hematoma. Na noite anterior, o guarda lhe dera um empurrão útil. — Bem-vindo à sua nova casa! — dissera ele. — Ah, e o senhor gostaria de um lanche antes de dormir? — Sálix havia feito uma breve pausa, saboreando o momento, sem esperar a resposta. — Bem, sinto muito! A porta havia sido batida, e a imensa chave, girada asperamente na fechadura, deixando Mucum com a escuridão e as horas insones de arrependimento. Se ao menos ele tivesse impedido Ark de deixar a estação dos Exploradores das Raízes. Era tudo culpa dele! E agora seu melhor amigo estava morto, estraçalhado pelos Corvos. De repente, Mucum sentiu falta do pai. No fundo, o velho não era tão ruim e devia estar arrancando os cabelos se perguntando onde o garoto estava. As lágrimas viriam em algum momento, mas por ora ele estava concentrado no que tinha diante de si. Sabia que suas chances também não pareciam muito boas. Pelo menos não estava sozinho. Um guincho agudo o trouxe de volta ao presente. — É uma mulher de cabeça para baixo, com olhos engraçados! Mucum estava deitado em um colchão que mais parecia um papel, tentando dormir um pouco. Ele se encolheu mais no canto, tentando escapar do vento cortante que entrava pelas fendas nas paredes. — Do que você está falando, Shiv? Ele nunca entendera a mente das criancinhas. Eram armários em que faltavam algumas tábuas. — De cabeça para baixo! — insistiu a irmã de Ark. — Tá, tá bem! Mucum estava surpreso por ter ficado na mesma cela que Shiv. Durante grande parte da noite anterior ela soluçara desconsolada, e por um tempo, enquanto tentava acalmá-la com um abraço, ele se esquecera de seus próprios problemas. Em vez disso, pensara em suas primeiras

lembranças, sendo embalado nos braços da mãe. Aqueles dias havia muito tinham ficado para trás. Shiv pulava, levantando a poeira do chão. — E ela tá jogando um beijo. Aaah, ela tá jogando o beijo pra você! Olha, Mucum! — Por favor, Shiv, deixa isso pra lá, tá? Passei por poucas e boas e não tô a fim das suas brincadeiras. — Ele não tivera coragem de contar à garotinha sobre o irmão. O que era preciso para alguém prender uma garotinha de quatro anos? — Agora, quando você parar de inventar coisas, que tal a gente bolar um plano para sair daqui, hein? Mucum finalmente virou-se e sentou. Um raio de luar atravessava a moldura da janela de grades no alto da cela. E lá, como Shiv lhe dissera e repetira, havia um rosto de cabeça para baixo. — Você prometer voltar para me ver! Os olhos dela piscavam como um par de vaga-lumes travessos. Mucum levantou-se de um salto, correu e parou debaixo da janela. — Flô! Que diabos você tá fazendo aqui? — Pensar em aparecer para uma visita. Você não me apresentar? Flô estava pendurada do lado errado, as pernas enroladas em um pedaço de corda, o rosto pálido cheio de preocupação. — Bem… hã… esta é Shiv. Shiv, esta é minha amiga Flô. — Eu disse! — replicou Shiv. Então voltou-se para a janela e fez uma pequena mesura. — Prazer em conhecê-la. Você anda com as mãos? — Só quando meus pés estar doendo! Shiv deu uma risadinha, espiando aqueles dois olhos enormes pelos dedos entrelaçados. Mucum não conseguia se recobrar da surpresa. — Você veio de tão longe só pra me ver? — Aahh! Não ser tão ruim assim, com o elevador e tudo. Mole, mole. Esperar que você sentir saudades minhas…

— Claro que sim. Mucum ficou feliz por estar escuro e ninguém poder vê-lo corar. — Eu ficar feliz com isso! — Flô sorriu. — Bem, eu pensar que você poder querer isto. Com grande esforço, Flô, de cabeça para baixo, levou a mão à mochila, que, pendurada em seu pescoço, ameaçava despencar nas profundezas da floresta lá embaixo. Mucum ficou animado. Se ela tivesse trazido uma serra, eles poderiam se livrar das grades e escapar dali. — Lá ir nós! Ela empurrou um embrulho pela abertura. Mucum estendeu a mão, apanhou o pacote e retirou o tecido que o envolvia. — O que é isto? Ele franziu a testa. — Eu trazer uma torta para você! — Ah… muito… obrigado. Mucum não podia acreditar. Petrônio o consideraria uma ponta solta grande demais. Não havia a menor possibilidade de o filho do conselheiro deixá-lo sair dali vivo. E o que a namorada levava para ele? Uma torta! — O que eu faço com isso? Os olhos de Flô encheram-se de lágrimas. — Ora, você dever comer, meu belo, e dividir com essa garotinha de que você cuidar. Não ser bom? — Ah, me desculpe, Flô. O cheiro tá ótimo. Mucum quase se bateu. Ela só pensara em si mesmo aquele tempo todo. Flô se alegrou na mesma hora. — Sim! Ser feito de sombroesas, e ser assombrosa! — Ela franziu o nariz com a própria piada. Naquele momento Mucum sentiu o coração partir-se, como se um machado o tivesse atravessado. Ele lembrou do canteiro de sombroesas

crescendo no fundo das raízes ocas debaixo da estação de mergulho. Como podia ter pensado que os Exploradores das Raízes cresciam no solo? Aquela garota era de carne e osso. — Que bondade a sua, Flô! Que que eu fiz pra merecer isso? — Ora, você ser um garoto honrado. Isso ser suficiente! Não perder as esperanças ainda! Por falar nisso, não morder com muita força esta torta. Ter uma coisa afiada e útil escondida nela! Aaahhh! Todas as vezes que Mucum pensava que os Exploradores das Raízes não estavam em seu juízo perfeito, via que estava enganado. Para sobreviver lá embaixo nas profundezas da árvore era preciso ter cérebro. Flô lhe trouxera tudo de que precisava. Comida e uma arma para o momento certo. Talvez ele não fosse morrer, afinal. — Dar um beijo então! Mucum estava chocado. Um beijo? — Hã… Flô, não sei se você notou, mas eu tô… assim… preso aqui. — Isso não ser problema para um garoto grande como você! Agora vir aqui! No trabalho, ninguém dizia a Mucum o que fazer. Mesmo Jobby Jones dava suas ordens de uma forma que sugeria que Mucum estava fazendo um favor a todos eles. Mas quando o assunto era garotas, Mucum era um bobo. Ele não tivera a coragem de fazer aquilo na festa dos Exploradores das Raízes. Era agora ou nunca. Assim, alcançou as grades e se esticou, tirando todo o corpo do chão. E colocou a boca entre as grades, sentindo-se um tolo. — Eca! — disse Shiv. — Isso é nojento! Mas antes que seus lábios se tocassem, ouviu-se um estrondo distante dentro do prédio e o ruído de passos se aproximando. — Aii! — exclamou Flô, afastando-se. — Mas não se preocupar! A gente guardar o beijo para depois. Mucum se preocupava, sim. A vida definitivamente não era justa! Ele deixou-se cair no chão, ciente do perigo.

— Voltar em algumas horas, eu prometer! Você precisar sair daí e tirar a garota antes que a noite acabar e então a gente se encontrar lá em cima — sussurrou Flô. — Peraí, garota! — murmurou Mucum. — Como que eu vou… ? Não houve resposta, somente um puxão na corda. O rosto de Flô ergueu-se e se afastou, sumindo como se ela não fosse mais que uma visão delirante. Mucum não tinha tempo para pensar. Levou os dedos aos lábios, sacudindo a cabeça na direção de Shiv para lhe dizer que ficasse quieta enquanto ele escondia rapidamente a comida e o que quer que viesse dentro dela debaixo do colchão. Quando os passos cessaram diante da porta da cela, ele esperou que não tivessem sido ouvidos. Caso contrário, uma torta de sombroesas e uma faquinha não seriam nenhuma defesa contra o golpe certeiro de uma espada.

O milagre da tecnologia

— Você escapou por muito, muito pouco. As palavras chegaram abafadas a Petrônio. Sabia que eram dirigidas a ele e que a voz era feminina. Também percebeu que seu peito doía, como se algum carpinteiro o tivesse confundido com uma tábua e o houvesse enchido de pregos. Naquele momento, seus olhos ainda estavam fechados, mas a voz era evidência mais que suficiente de que ele devia estar vivo. Duvidava que o barqueiro no rio Estio tivesse uma cadência tão feminina. De qualquer forma, se estivesse morto, dificilmente alguém empregaria a palavra “escapou”. Do que exatamente Petrônio havia escapado? Então, ao mesmo tempo em que um gemido de dor saía de seus lábios, ele foi se lembrando de tudo: sua pequena expedição de espionagem; o soldado pronto a atirar nele depois que ele fizesse as preces; a urtiga esfregada no rosto do outro homem. Petrônio flexionou os dedos, sentindo as saliências do inchaço onde as plantas urticantes haviam levado a cabo sua vingança. Enquanto tentava abrir os olhos, a voz continuou: — Quanto a meus homens, foi preciso uma boa dose de persuasão para impedi-los de enforcá-lo no galho mais próximo, em especial porque um deles tem uma tíbia estraçalhada graças aos seus esforços. Embora eu tenha

certeza de que você, como aprendiz de cirurgião, sabia o que estava fazendo. Ele podia detectar um toque de relutante admiração na voz agora reconfortantemente familiar. — Aqui, beba. Petrônio sentiu a cabeça sendo erguida quando o rosto de lady Fenestra finalmente surgiu em sua visão. — Ai! Luz muito forte… — murmurou ele. A bebida era efervescente e doce. — Sim, bem, afinal isto é uma baia de cirurgia em uma cápsula de voo. A morfina reduziu a dor. As oito horas de sono também devem ter ajudado. Como a bala de vidro conseguiu errar seu coração, nunca saberei. Talvez valha a pena agradecer à estranha deusa que vocês veneram nesta pequena ilha. Petrônio gemeu com o esforço de tentar se sentar. Fenestra foi em seu auxílio, colocando mais travesseiros em suas costas como apoio. Afora a cama, era como se ele tivesse sido transportado para uma terra da fantasia. Havia uma espécie de tubo transparente entrando em seu braço. E dois discos descansavam em seu peito envolto em ataduras e unido por fios a uma caixa quadrada sobre um carrinho. Um número piscava na caixa. — Oitenta e quatro batimentos por minuto, em repouso. Levando-se em conta os ferimentos que você sofreu, seu coração está se saindo extraordinariamente bem. Mas, à medida que Petrônio olhava ao redor, o número começou a disparar. Ele estava cercado por luzes e alavancas que revestiam a parede, como um imenso casulo metálico. Havia linhas retas demais para seu gosto. Seu primeiro instinto foi arrancar todos aqueles fios e sair dali rápido. Havia uma janela, e o brilho de um maquinário infernal iluminava a floresta noturna mais além. Aquilo era o que conhecia. Era seguro. Familiar. Talvez pudesse quebrar o vidro com um chute e passar pela janela. Mas sentia os braços pesados e as pernas não lhe obedeceriam. — Acalme-se, jovem Grasp. Você está protegido aqui. — Os olhos

habitualmente frios de Fenestra encheram-se de preocupação. — Se os seus assim chamados médicos o houvessem tratado com suas primitivas sanguessugas, você estaria em sérios apuros. Nossa tecnologia salvou sua vida. Petrônio arquejou. — Cápsula de voo, balas… tequi… no-lo-gi-a? — As palavras soavam estranhas em seus lábios. Mas, se ele estava vivo e envolto em ataduras, talvez Fenestra estivesse dizendo a verdade. Ele não fora sugado para a barriga de uma fera alienígena, mas convalescia em uma caverna de maravilhas. Respirou fundo, tentando forçar seu estúpido coração a seguir as ordens e desacelerar. Em seguida veio a curiosidade, a característica de Petrônio que o havia metido naquela encrenca, para começar. De repente sentiu-se ávido pelo significado por trás dessas estranhas palavras. Tudo a seu tempo. Uma súbita onda de enjoo percorreu seu sistema. — Obrigado — finalmente murmurou antes de afundar nos travesseiros. — Em parte foi culpa minha — ponderou Fenestra. — Você cumpriu o seu papel, e o cumpriu bem, convencendo o comandante com uma sacola de moedas de certo valor. E então eu o dispensei. A maneira como você encontrou meu rastro foi — ela fez uma breve pausa, olhando o garoto pálido na cama — empreendedora. Meus homens são muito bem-treinados. Não é fácil aproximar-se deles, muito menos abater dois sem uma única arma. Naturalmente, existem consequências. Eles foram rebaixados como punição por permitirem que um simples garoto os expusesse. — Queria saber… — sussurrou Petrônio, em seu desespero para impressioná-la com sua iniciativa. — Encontrei os planos e… — A dor recomeçou em seu peito. Ele sentiu o ímpeto de gritar, mas reprimiu a agonia com firmeza. — Precisava ver onde você… estava escondida. — E conseguiu. Escolhemos uma parte da floresta improvável de ser encontrada, bem distante da cidade. Você é nosso primeiro visitante, afora umas poucas cabras curiosas. Por falar nisso, isto aqui é seu, acho. Ela lhe entregou um caco comprido e fino que se assemelhava a um

pingente de gelo. — O que é? — Seu amuleto da sorte. Disparado do fuzil de um dos meus homens a mil metros por segundo com o objetivo de dilacerar seu coração. Meu cirurgião particular o tirou de você. Você queria saber o que era uma bala. Aqui está. Você a mereceu. Petrônio manuseou o projétil, sentindo a extremidade letal e afiada. Lugar de vidro era nas janelas. Aquilo dava a um material banal uma dimensão inteiramente nova. De repente, flechas e facas lhe pareceram tediosas e sem graça. — Sim. Eu me acostumei com as milagrosas propriedades das armas de fogo. Em Maw, vemos essas coisas com normalidade. Petrônio estava cheio de admiração. A arma de fogo parecia um membro extra, capaz de produzir chama instantânea. O que ele poderia fazer com uma dessas pendurada no ombro! A imagem de dendrianos estúpidos implorando misericórdia sob o olhar de uma arma assim era mais que atraente. A pequena ilha de Arborium de repente parecia tão pouco divertida. — Naturalmente, tínhamos de ter uma base, um lugar para nos preparar — prosseguiu Fenestra. — Meu método de transporte? Você está sentado dentro dele. Os olhos de Petrônio percorreram novamente o ambiente enquanto se lembrava do que vira no dia anterior, pairando sobre a floresta. — A ave de metal? Estou dentro dela? — Ele olhou para o número na caixa que piscava outra vez, aumentando para 105, 106, 107. Estava ao mesmo tempo apavorado e entusiasmado. Não era de admirar que seu coração disparasse no peito. — Vocês podem voar! — Sim. Podemos. Os céus e o restante deste planeta nos pertencem. O único, minúsculo, fétido lugar verde de resistência é bem aqui. Mas, sim, comparado a seus Corvos desajeitados, nossas máquinas são muito superiores.

Petrônio captou seu tom de superioridade. Arborium devia parecer muito atrasada para ela. Mas havia uma coisa que não fazia sentido. — Com toda essa tequini… hã… tequinilogia… — Tecnologia — corrigiu ela. — Certo. Com tudo isso… por que vocês não… destronaram Quercus e… se estabeleceram? Petrônio ainda estava sem fôlego. — Bem pensado, jovem, e, acredite em mim, teríamos feito isso. Mas as malditas árvores parecem ter seus próprios poderes. Você se lembra de quando me deu a injeção? Petrônio assentiu. Se não fosse curioso, para começo de conversa, Fenestra estaria morta. — De fato. Se as árvores tivessem sido bem-sucedidas, eu não teria sido mais que um vírus aniquilado por aquele gás protetor. Expliquei isso a você antes. Fabricar a vacina é um processo árduo e nossos cientistas não têm sido capazes de fabricá-la em larga escala. Não fosse assim, os exércitos de Maw teriam inundado esse remanso há muito tempo. Quanto a lançar bombas de fusão, por que destruir essa cultura tão valiosa, com seus escravos prontos para fazer o que pedirmos? — Bombas de fusão? O que são? — Vidro superaquecido. Quatrocentos e dezesseis mil graus centígrados, caídos do céu para queimar tudo em seu caminho. Você irá aprender. Este lugar é tão atrasado. — Vocês ainda têm soldados. — Alguns. Acabamos com os últimos estoques imunizando-os. Nossos pesquisadores nos disseram que os anticorpos só serão eficazes por mais quatro dias. — Não entendo. Ela o deixara perdido de novo. — Para dizer de forma clara: se não conseguirmos resolver isso em alguns dias, vamos cair mortos, como suas lindas folhas. Portanto, é melhor

esperarmos que o Comandante Flint faça jus a seu pagamento. Não se preocupe, porém; todo computador precisa de um backup, e o mesmo se aplica a todo plano. Cada vez que Petrônio achava que estava entendendo, Fenestra o deixava para trás outra vez. O que era um backup? O que aquilo tinha a ver com o plano? — E isso aqui, onde você está, também é um computador. Pense nele como uma máquina com pensamentos. — Pensamentos lógicos — interrompeu uma voz suave e masculina. Petrônio quase pulou da cama. — Quem diabos falou isso? — É só o programa de bordo — explicou Fenestra. — Diga-me, George, qual é a nossa trajetória de fuga? Não houve pausa antes de a voz responder: — Todos os sistemas em pleno funcionamento em vinte e três segundos. Ascensão vertical de trezentos metros alcançada a cinquenta e quatro segundos. Aceleração para oeste à velocidade de cruzeiro de mil e trezentos quilômetros por hora, alcançando o porto de Novo Passeio em 5, 6 horas. Tenha um bom dia. — Obrigada. A varredura do perímetro ainda está limpa? — Não há nenhum elemento estranho em um raio de duzentos metros. — Ótimo — disse Fenestra, ainda falando com o ar. Petrônio correu os olhos pela sala. Uma voz incorpórea? Loucura total! — Como isso funciona? — Ah, por favor, jovem Grasp. Sou política, não especialista em engenharia quântica. Provavelmente modulação de ondas usando fala sintetizada embutida em programação de consciência binária. Os dendrianos estão atrasados. Chamar este lugar de país em desenvolvimento é um exagero. E era o que Petrônio sentia. Mais do que por fora. Era como estar de volta ao seu primeiro dia na escola, com as crianças mais velhas rindo

porque ele não sabia onde pendurar o casaco. Nessa sala de linhas simples, ele sentiu que suava, constrangido. Fenestra fez uma pausa. — Isso soou mal. Perdão. Existem, entre vocês, aqueles ávidos por aprender, não é? — Sim. Ela o havia acolhido sob sua asa. Não era um lugar ruim para estar. — Está resolvido, então. Não esqueci que você salvou a minha vida. Agora lhe devolvi o favor. Isso nos deixa quites. No futuro próximo, você me será útil, disso não tenho dúvidas. Mas não se preocupe, nunca mais vou tratá-lo como um simples mensageiro. Petrônio absorveu o elogio e, por um breve instante, a dor em seu peito diminuiu. — Ah, seu pai foi informado de seu “acidente” e de que no momento você se encontra sob meus cuidados. — Ele não vai gostar disso. Quer… me manter debaixo das suas vistas. — Sim, eu vejo o quanto ele é duro com você. Tenho uma filha adolescente também. Existe uma arte em cuidar dos adolescentes que falta ao conselheiro. Mas, acredite em mim, ele não vai discutir com sua futura empregadora. Você precisa ficar aqui e se recuperar. Se a ferida cicatrizar bem, talvez eu possa convencer um de meus homens a lhe mostrar os princípios básicos da boa pontaria. Puxar o gatilho de um fuzil não é tão fácil quanto parece. Que tal? Havia um brilho no olhar dela, cheio de tentação. — Eu… Petrônio tinha a sensação de estar pulando da borda do ramo-via com a imensa queda sob seus pés. — Se Randall, minha filha, estivesse aqui, ela o transformaria em um bom atirador em poucos dias. Mas meus homens estão mais que capacitados para a tarefa. Depois que tiver descansado mais um pouco, pode começar. O que me diz?

A enfermaria noturna já não lhe parecia estranha. Havia ali um festival de palavras, máquinas e poder, e ele, Petrônio, fora convidado a sentar-se à mesa. Naquele momento, teria usado, feliz, seu arco mais querido como lenha. A mensagem era clara. Ela o salvara por um motivo. Aqueles que pudessem aprender teriam benefícios. Como era mesmo o ditado do velho carpinteiro? Se não consegue vencê-los, junte-se a eles. — Sim — disse Petrônio. Estava de volta ao jogo.

Fuga e traição Mucum estava aborrecido com Flô. Certo, a torta estava gostosa e o mapa da residência dos Grasp que a envolvia seria bastante útil. A faca escondida também era afiada o suficiente para dar conta do recado. Mas o bilhete que ela deixara só lhe dizia para fugir da masmorra e encontrá-la no ramo-via quando o sol nascesse. — Mas o que eu preciso fazer? Talvez na cachola dos Exploradores das Raízes faltassem alguns parafusos, afinal. — Você poderia desaparecer! — exclamou Shiv. — Como mágica! — Sim, um pouco de magia não nos faria mal. — Os olhos de Mucum se arregalaram. — Peraí, mocinha. — Ele coçou a cabeça, torcendo para que o plano que se formava em sua mente fosse digno do falecido melhor amigo. Era uma questão de honra. Quanto a desaparecer, bem, a maioria dos trapaceiros nas cartas que ele encontrava eram mestres não da magia, mas da fraude. — Você é boa de grito, pequena Shiv? — Sou, sim. Adoro fazer um barulhão! Ela assentiu, os cachos do cabelo caindo sobre as reluzentes bochechas morenas. — Bom para você. Pense nisso como uma brincadeira. Quer brincar? Shiv começou a pular e a bater palmas.

— Quero, quero, sim! — Muito bem. Então se prepare pra dar seu melhor grito, tá? Ele explicou como funcionaria a brincadeira. Shiv tornou a assentir. Seu sorriso radiante era totalmente endiabrado. — Sim, sim! Vamos lá! A cela se estreitava na direção da única entrada, deixando um espaço de pouco mais de um metro de largura acima da porta, onde as paredes se aproximavam. Mucum encostou-se em uma das paredes e ergueu a perna direita, plantando o pé com firmeza na parede oposta. Então retesou os músculos, torcendo para que pudessem sustentar seu peso quando ergueu a outra perna e firmou o sapato de sola de borracha do outro lado. Ótimo. A parede era áspera, seu colete de pele de ovelha agarrava-se a ela e impedia que ele escorregasse para baixo. Ele foi subindo um centímetro de cada vez até que seu corpo encurvado estivesse equilibrado exatamente acima da moldura da porta. Àquela altura suas axilas e suas costas estavam úmidas de suor e ele já podia sentir dor nos músculos das coxas. — Agora seria bom, Shiv. — Agora o quê? — perguntou Shiv, parecendo ao mesmo tempo cruel e inocente. — Ah, que Diana nos ajude. Agora… por favor! — disse ele entre os dentes. — Ah, que bom! — replicou Shiv, escancarando a boca e emitindo um grito capaz de fazer todas as mães dendrianas em um raio de quinze quilômetros correrem em seu auxílio. Houve um momento de silêncio seguido pelo ruído de passos de botas. — Lembre-se de sua fala! — sussurrou Mucum, sentindo o corpo começar a ficar dormente. A grade da porta deslizou, abrindo-se e revelando um olho único e fixo atrás dela. — Que que você tá gritando, sua pestinha? É melhor se comportar, porque interrompeu meu cochilo!

— Ele foi embora! — uivou Shiv com um convincente toque de terror na voz. Escondido acima da porta, Mucum sorriu. A irmã de Ark era uma atriz nata. — Embora? Quem… onde? Alno estava demorando a entender. — Ele estava doente e então foi ficando magro e mais magro e ainda mais magro. Ela fez uma pausa para dar efeito, e então voltou a gemer. Alno esmurrou a porta. Qual era o problema com as crianças? — Dá pra você falar normalmente, em dendriano? — Claro que dá! — cantou Shiv. — Ele ficou tão magro que desapareceu. Simples assim! Ela ergueu os braços para indicar a cela vazia. O único olho arregalou-se ao correr pelo espaço vazio. Alno entendeu a mensagem, mas não gostou do conteúdo. — Ah, isso não é nada bom, não é não. Agora tô encrencado! — A chave rangeu na fechadura e a porta se abriu. — Tem certeza que ele não tá embaixo da cama? Mucum não estava. Não havia espaço, e Alno sabia. O que ele não sabia era que o prisioneiro estava a uns trinta centímetros acima de sua cabeça, fazendo força para não respirar. Uma gota de suor caiu de sua testa na túnica do guarda. Instintivamente Alno levou a mão ao ombro e sentiu o tecido molhado. Não olhe para cima!, Mucum só conseguia pensar. Ele também torcia para que suas pernas não perdessem as forças. Se caísse, seria direto nos braços acolhedores de seu carcereiro. — Tá úmido aqui. — Foi o único comentário do guarda ao correr os olhos pela cela, tentando deduzir que diabos estava acontecendo. — Você diz que ele emagreceu. Isso não faz sentido! Quando o guarda andou na direção da janela para ver se o rapaz havia

de alguma maneira passado entre as grades, Shiv já estava recuando na direção da porta escancarada. Era hora de Mucum fazer sua parte. Se ele ao menos pudesse deslizar para o chão em silêncio e deixar a cela sorrateiramente, eles estariam livres. O plano tinha alguns problemas. Em um espaço tão minúsculo, qualquer ruído era amplificado. Quando Mucum ainda tentava descer, uma tábua às suas costas fez o que as tábuas fazem de melhor. Rangeu. Alno girou, um olhar de genuína surpresa estampado em seu rosto. — De onde você veio? — O guarda não ficou à espera da resposta. Já sacara o punhal da bainha e avançava na direção de Mucum. — Calmaí, amigo. Eu só tava praticando minha habilidade de escalada. Não aconteceu nada de ruim, né? Mucum recuou, Shiv escondendo-se atrás de seus joelhos. — Pensou que ia me enganar? Você é como todos os outros. Vamos pregar uma peça em Alno, eles dizem. Ele é sempre um bom motivo de gozação! — A expressão no rosto do guarda indicava que não havia nenhuma piada a fazer naquele exato momento. — Bem, vou tornar seu truque de desaparecimento permanente! Tanto a lâmina quanto o homem saltaram no ar, direto para o peito de Mucum, desejando o impacto sangrento. Mucum viu a faca voar em sua direção. Ele se perguntou se teria tempo de sacar o atencioso presente de Flô, no momento enfiado na aba interna do colete. Quando alcançasse a lâmina, já estaria morto. Melhor agir da forma mais antiquada. Já estivera envolvido em algumas boas brigas com outros moleques e a regra da floresta era simples: não havia regras, somente a sobrevivência. No último segundo, quando a lâmina afiada se encontrava a poucos centímetros de seu peito, Mucum inclinou-se para o lado, apoiado no pé esquerdo, e saiu do caminho. Alno não teve tempo de ficar surpreso quando seu punhal cravou o vazio. No entanto, ficou mais do que surpreso quando sentiu um chute

muito bem-mirado conectar-se com o ponto entre suas pernas e esmagar uma parte especialmente sensível de sua anatomia. — Aaaaai! — gritou em uma voz ridiculamente aguda enquanto a faca caía de sua mão, retinindo no chão, rapidamente seguida pelo seu corpo. Alno desabou, as mãos entre as pernas, tentando conter a agonia que logo se transformou em um desmaio. — Não seja tão mariquinhas! — rosnou Mucum, pairando acima de sua vítima. — Meu amigo foi muito mais corajoso do que você vai ser na sua vida! Shiv pôs-se a correr em torno do guarda nocauteado, cantarolando: — Acertar ele nas avelãs, avelãs, avelãs, acertar ele nas avelãs, vamos todos! — É esse tipo de versinhos infantis que eles estão ensinando na escola? — Ele a pegou pela mão. — Venha, pequena Malikum, tá na hora de levar você pra casa. Preciso fazer uma visita a uns velhos amigos e enfrentar um pouco de caca! Antes de deixar a cela, ele se inclinou sobre Alno e pegou as chaves em seu cinto, os dedos se atrapalhando. — Ai! Minhas partes! — gemeu Alno com as pálpebras tremendo. — A gente é que vai acabar sem partes se eu deixar você se levantar, amigão! — Mucum desferiu uma boa e velha direita esmagadora no queixo do guarda. A cabeça de Alno foi lançada para trás e quase quicou no chão. Mucum parou por um segundo, apurando os ouvidos, atento a algum obstáculo. — Durma bem! — disse, antes de levar o corpo inconsciente até o arremedo de cama e cobri-lo com um cobertor. Talvez aquilo lhes desse mais algum tempo. Em seguida, pegou Shiv pela mão e foi até a porta. Espiou por ela, nervoso. Tudo limpo. — Vamos! — disse Mucum. — Por aqui! Ele fechou a porta da masmorra e a trancou antes de virar à direita, torcendo para que o mapa da casa estivesse correto. Se estivesse, então um alçapão do sistema de encanamento forneceria a saída perfeita.

Dez minutos depois estavam do lado de fora, bem além da casa, esperando no cruzamento, a espessa névoa da manhã pairando pouco acima de seus tornozelos. Mucum mal podia acreditar que tivesse conseguido. Talvez, com a ajuda de Flô, ele pudesse afinal chegar ao rei. Flô surgiu de trás de um arbusto de louro. — Que bom que você estar bem — sussurrou ela. — As equipes de busca vão sair já, já. É melhor irmos embora daqui. — Sim! Flô parecia estranha. Ela não tentou abraçar Mucum e sua voz parecia hesitante. O garoto estava confuso. Cadê o beijo que ela prometera? — Eu ficar com a garota e cuidar dela por enquanto. Ela estendeu as mãos para Shiv, que, saltitando, atravessou alegremente o ramo-via. — A gente vai pruma ventura? — Sim. Eu pensar que sim. Flô então sacou uma faca de sua túnica e avançou na direção de Mucum. — Que que você tá fazendo? Mucum estava chocado. — Ser para seu próprio bem, meu garoto! — Para com isso, Flô. Não temos tempo pra brincar! Flô moveu-se com surpreendente rapidez, suas longas pernas diminuindo a distância entre eles em instantes. Antes que Mucum pudesse sequer erguer as mãos em defesa, Flô golpeou seu braço direito, abrindo um rasgo na pele. — Você é louca de pedra? — Mucum agarrou o próprio braço, vendo, horrorizado, o sangue escorrer e toda sua fé nos Exploradores das Raízes esvair-se. — Por que me ajudar a escapar e então me trair? Shiv chorava, tentando fugir de Flô, que segurava a garotinha com firmeza.

Antes que pudesse responder, Flô sentiu uma súbita brisa vinda do alto. — Ah, não! — exclamou Mucum quando um Corvo mergulhou da neblina encharcada de orvalho, vindo em sua direção. — Como você pôde fazer isso? — Eu sentir muito! — gritou Flô acima do ruído das asas. — Eu não ter escolha! — berrou enquanto a ave, atraída pelo incenso do sangue, voltavase para seu alvo.

Um velho amigo Quando Ark ouviu a voz, pensou que estivesse sonhando. — Me larga, sua esquisitona! Ele se sentou na cama, subitamente desperto após um sono longo e profundo. Reconheceria aquele resmungo em qualquer lugar. Será que estava imaginando coisas? Mas naquele momento a porta do quarto abriu de supetão. — Não quero ir pra mais nenhuma masmorra, dona. Já tive minha cota de prisão pela vida toda, certo… Ai! Uma figura corpulenta foi empurrada para o quarto não muito delicadamente. — Você lê a floresta como se tudo estivesse contra você. Use os olhos para ver a verdade! — retrucou Corvena. Mucum ergueu os olhos. — Ark! É você mesmo, amigão? Você deveria tá morto ou eu tô sonhando? — Não. Você está acordado. Eu acho. Um sorriso se abriu como uma flor desabrochando no rosto de Ark. Na última vez em que vira Mucum, o amigo lutava pela própria vida, no meio da chuva, em outro país. — Essa foi boa! — disse Mucum. — Pensei que os Corvos tivessem acabado com você. Tá ficando muito bom em enganar a morte, amigão. Tô

impressionado. Agora dá pra dizer quem que é a maluca com o penteado engraçado? Ele apontou para trás com o polegar. — Mucum, essa é minha m… — Mas Ark não conseguia dizer. Por enquanto não. — Essa é Corvena, a Rainha da Floresta dos Corvos. As palavras deixaram Mucum paralisado. — Tá brincando, amigo. Esse maracujá de gaveta? Faz anos que deixei de acreditar nessa baboseira. — Foi? — perguntou Corvena, um tom perigoso na voz. Então empertigou-se, até que de repente se avultou acima de Mucum. A pele escura brilhava feito carvão e os olhos cegavam em sua intensidade. — Eu sou Corvena — trovejou a voz, carregando relâmpagos e trovões, a decadência do inverno e a urgência da primavera. — Tudo que há de visível e de oculto nesta floresta me pertence! Mucum já estava convencido. — Ai, minhas cabras-das-árvores tolas! — Caiu de joelhos. — Perdoe meus insultos! Ele tremia todo. Corvena amoleceu, encolhendo-se de novo ao tamanho médio de um dendriano. — Ah, levante-se! Ficar se arrastando de joelhos é só para os peregrinos mais maçantes. — Tudo certo então. — Mucum se ergueu e recuou na direção da porta. — Não tô sonhando com a senhora nem nada? Para alguém que não acreditava em nada daquela ladainha, conhecer uma deidade de verdade era um choque e tanto. — Sou tão real quanto a madeira em que você está pisando. — É. Bem… O cérebro dele não conseguia apreender toda aquela situação. Ark interveio. — Mas o que aconteceu com Petrônio?

— Eu estava prestes a acabar com ele de uma vez por todas quando um dos guardas de Grasp apareceu atrás de mim com uma espada. Depois disso, veio a masmorra. Eu fugi e aí deu tudo errado. Minha namorada tentou me fatiar, e fui preso numa gaiola de garras e quase congelei quando um passarinho enorme me levou para um passeio nas montanhas. E agora encontro você junto com uma… uma deusa! Que dia! Mucum olhou o quarto ao redor com seu fino mobiliário. Podia não ser uma prisão, mas ainda não tinha certeza do que era aquele lugar. — Espero que você perdoe sua amiga Exploradora das Raízes — disse Corvena. — Foi um truque necessário para trazê-lo aqui. — Ela não me traiu, então? — Não. O que pedi a ela foi difícil. Sua religião prega o perdão. Espero que o considere nesse caso. O desespero de Mucum dissipou-se lentamente, como a névoa matinal. — Ela ainda gosta de mim, então? — Espero que você só esteja fingindo ser burro! É claro que gosta. Gostar é o de menos. Conheço e admiro os Exploradores das Raízes desde… Bem, não temos tempo para isso agora. Mucum não conseguia acreditar que Ark estivesse ali, vivo e respirando. — Puxa, amigão, pensei que você já fosse madeira morta! — É preciso mais que um aprendiz de cirurgião para acabar comigo! — Sim. A gente vai guardar o que é dele pra mais tarde. Aquilo era uma promessa. Todo aquele tempo em que ficaram tagarelando, Ark não conseguira perguntar sobre a pessoa mais importante de todas. — E Shiv? Você a encontrou na masmorra? Ela está bem? — Desculpe, amigo, devia ter contado logo de cara. Nós dois fugimos. Agora que sei que Flô não é uma traidora, acho que sua irmãzinha tá em boas mãos. Ark sentiu a esperança surgir como seiva.

— Graças às cascas de árvore! — E que pulmões ela tem. Você devia ter ouvido ela gritando para chamar a atenção dos guardas. Foi graças a Shiv que a gente escapou. — É a minha garota! — Ark sorriu. — Mas você acha que ela vai ficar bem? — Claro! Os Exploradores das Raízes vão cuidar dela. Ela vai tá no paraíso dos paparicos! Corvena voltou-se na direção da porta. — Vocês dois podem conversar. Não resta muito tempo. Partirão amanhã. — Mas eu acabei de chegar! — resmungou Mucum. Ark sorriu. Se seu amigo reclamava, então estava tudo bem. Até que as palavras de Corvena o atingiram. — Partir? Para onde? — Já esqueceu seu propósito? Você não pode ficar aqui para sempre. Há providências a tomar. A batalha se aproxima. Logo vocês estarão prontos. Ark sentiu o familiar nó da dúvida em seu estômago. — Batalha? Que batalha? — perguntou Mucum. Mas suas palavras flutuaram no ar e o quarto de repente estava vazio. Ele estremeceu. — Essa Corvena. É ela mesmo? — Sim. Ela me acolheu sob suas asas, por assim dizer. — Era hora de contar a ele, apesar de as palavras não saírem facilmente. — Ela parece achar que sou seu… filho. Bem, um tipo de… — Ela o quê? Que tal explicar que diabos tá acontecendo? Enquanto se vestia, Ark contou para Mucum tudo que tinha acontecido nos dois últimos dias. Quando acabou, Mucum parecia impressionado. — Uma deusa como mãe. E você quer dizer que sua avó criou tudo isso? Santo Vale! — De repente Mucum franziu a testa. — Peraí. Essa floresta toda não cresceu em poucos anos. Sem essa. Isso quer dizer que a

velha Corvena é velha mesmo! — Acho que sim. Tanto quanto as árvores. Ainda não consegui absorver tudo isso. — Bem, quem teria imaginado? De qualquer forma, se ela manda e desmanda, e vai haver uma luta, talvez ela nos deixe usar a FAC. — O quê? — Força Aérea dos Corvos. Pode ser a resposta contra Grasp e seus capangas. A porta se abriu atrás deles, trazendo um cheiro delicioso. Corvena ofereceu uma bandeja de madeira repleta de comida. — Será que sanduíches de bacon de porco selvagem apetecem aos dois jovens cavalheiros? Mucum levantou-se. — Perdoo qualquer um que me oferece um sanduíche de bacon. Viva! — Sem esperar o convite, ele agarrou dois e os enfiou na boca. — Uau! — exclamou, alguns bocados depois. — Tô quase me sentindo dendriano outra vez. — Agora vejo por que você o escolheu como companheiro. Corvena permitiu que um sorriso passasse por seus lábios enquanto esfregava um pouco de bálsamo no braço de Mucum e o envolvia em uma compressa suave de folhas de confrei. Mucum trincou os dentes, mas não ia deixar que ela visse que estava doendo. — É — disse Ark, recordando —, embora eu não creia que tivesse escolha. — Comam bem. Descansem. Depois saiam e explorem. Mas, se ouvirem um som sibilante, sugiro que corram, e rápido. As víboras por aqui são imensas e ficariam felizes em espremer vocês dois até a morte e depois os engolir inteiros. — Ah, certo. Obrigado por essa imagem. Nada como a ideia de encontrar cobras malignas pra completar meu dia. Corvena ignorou o sarcasmo do garoto.

— E amanhã vou lhes dar um presente… — Ela fez uma pausa e olhou os garotos com uma súbita tristeza. — Um presente da morte.

Treinamento mortal As ataduras que envolviam o peito de Petrônio pareciam trepadeiras, espremendo-o e deixando-o sem ar. Em nada ajudava a arma transparente, que ele carregava sem jeito, ser pesada como uma tora de carvalho. — Você é burro, garoto? Aponte o cano para baixo, caso contrário eu posso me ferir. Se o soldado se dirigisse a ele mais uma vez com ar de superioridade, Petrônio ficaria tentado. Como esperavam que ele a visse se era completamente transparente? — Ponha os óculos de proteção. Petrônio fez o que o soldado mandou, o nariz franzindo com o estranho cheiro químico quando os puxou sobre a testa. As lentes azuis tornaram o contorno da arma subitamente nítido como o dia. Ele estudou o uniforme mosqueado do homem: marrons e verdes misturando-se uns com os outros, o rosto dele todo borrado, tal qual um experimento de maquiagem que deu errado. Como camuflagem, porém, funcionava. E a arma em si era um milagre. Sem os óculos, ela simplesmente se misturava ao fundo. Não era de admirar que o atirador tivesse conseguido acertá-lo. — Você sabe que eu adoraria atirar em você de novo, seu pedaço de caca arrogante, se nossa grande e poderosa senhora não tivesse ordenado que eu tomasse conta de você. Muito bem. Estava ali para aprender. Petrônio apontou para um tubo

oco na lateral do fuzil. — E isto? — A câmara. Verifique se está vazia antes de encaixar o pente. Petrônio estava confuso. Ele não queria se pentear. O soldado pegou um bloco brilhoso e o enfiou debaixo do fuzil até ouvir um clique. — Puxe a alça da munição e a alavanca de segurança e está pronto. Petrônio não gostava de fazer papel de bobo. Se lhe dessem um punhal ele poderia com toda confiança atingir um homem no peito a uma distância de trinta metros. Mas isto? — Por que ele não estilhaça? — Ah, cara. Isso não é igual à janela da sua escola! Os cientistas foram até o nível molecular e fizeram esse material superforte. É por isso que nossas cidades reluzentes dominam suas árvores minúsculas. Este material é o futuro. E quando você o coloca em uma arma, a única coisa que vai estilhaçar é quem se meter no seu caminho! Petrônio estava impressionado, ávido por experimentá-la. — Bem, ela tem supressão de choque embutida — prosseguiu o homem —, mas assim mesmo esta belezinha vai acertá-lo como um cavalo, com um bom coice no ombro. Olhe pelo visor e mire naquele galho lá distante… e a suculenta bolota de carvalho pendurada. Cara, dá uma sensação ruim atirar em árvores. Em Maw, até mesmo uma farpa vale mais que ouro. Por um segundo Petrônio tentou imaginar aquilo. — Não existem árvores lá? — Não, cara. Mas temos arranha-céus numa quantidade que você não acreditaria. Ainda assim, mesmo com todos aqueles milhões de pessoas, às vezes a gente se sente solitário na cidade. Foi por isso que me alistei no exército. É bom fazer parte de uma equipe. Bem, você está desviando sua atenção do que interessa. Se liga, garoto. O alvo estava a uns cem metros de distância. Petrônio sentia a mão esquerda suada no gatilho. Ele mirou e puxou. Embora soubesse por

experiência própria que a arma era silenciosa, não estava preparado para a destruição que causou. À esquerda e à direita haviam galhos rachados e partidos. Ele baixou o fuzil como fora instruído, acionou o fecho de segurança novamente e foi sem pressa verificar seu alvo. Apesar do caos ao redor, a bolota de carvalho ainda dançava na brisa, zombando dele. — Foi o que pensei! — zombou o soldado, aproximando-se por trás dele. — O que ela vê em um monte de DNA burro e caipira? Ele não compreendeu o significado do insulto, mas o tom de voz do homem era claro. Petrônio tinha uma lâmina fina escondida no cinto. Um movimento de suas mãos e a chacota cessaria. — Me dê uma chance! — disse ele. O homem mostrou a Petrônio como equilibrar a arma, como prever o vento e a trajetória. Quando a noite caiu, a bolota de carvalho ainda pendia como uma joia verde e tentadora, e Petrônio havia ensinado a seu instrutor cada palavrão no dicionário dendriano. — Mais uma tentativa — pediu. — Balas não nascem em árvores. — Não diga! — sibilou Petrônio ao fazer pontaria. Era uma questão de criar a calmaria antes da tempestade, o esvaziamento da mente, a concentração total. O alvo seria destruído. Tudo que ele precisava era ter fé. Mesmo antes de seu dedo pressionar o gatilho, Petrônio sentiu uma alegria feroz correr como seiva em suas veias. Ele sabia… e, porque sabia, enquanto o tiro ainda ecoava, a bolota explodiu, estilhaçada em pedacinhos de polpa. — Tiro razoável — disse o soldado, de má vontade. — Meu nome é Heckler. — Grasp. Petrônio. — Não sei se posso apertar sua mão, sabendo que meu colega vai ficar mancando por meses graças a seu chutezinho na canela. Petrônio sorriu, mas sentiu-se perdido quando a arma foi tirada dele. E pensar no que ele poderia fazer de posse de uma dessas belezinhas!

— Você progrediu — disse Fenestra mais tarde quando veio sentar-se na beira de sua cama. — Heckler acredita que você tem as qualidades de um atirador. Petrônio tentou esconder o rubor em seu rosto. — É impressionante o que elas podem fazer. — Sim, mas uma máquina só é tão boa quanto as mãos que a manejam. Estou certa de que haverá trabalho para você quando nossos planos tiverem se concretizado. Como está o peito? — Bem. Se ele admitisse o quanto doía, ela não o deixaria continuar treinando. — Você ainda precisa descansar. Tenho mais uma tarefa para você executar. Com aquela promessa, ela apagou a luz da cama nas entranhas da cápsula de voo. Petrônio não conseguia dormir. Seu novo lar emitia um zumbido constante e luzes minúsculas piscavam como vaga-lumes dançando pelos painéis acima de sua cabeça. Ele repassou a explosão da bolota várias e várias vezes em sua mente. Aquele fuzil ganhava facilmente de sua faca favorita. Tanto poder contido em algo tão pequeno. Depois de uma hora tentando adormecer, seus olhos se arregalaram. Será que ele teria coragem? Por que não? Sabia onde ficava o arsenal, revestido por uma liga impenetrável. A chave era o que importava. Quando Fenestra se debruçara sobre ele, ele a vira reluzindo, pendurada no pescoço dela. Podia ouvir os roncos dos homens nos beliches no corredor mais à frente ao seguir sorrateiramente na direção dos aposentos de Fenestra. Seus passos soavam abafados. Mais uma vantagem da tecnologia de Maw. O metal não rangia como a madeira. A porta se abriu silenciosamente, e o pálido luar revelou a forma adormecida de Fenestra. Ele parou por um segundo, olhando a curva de seus lábios, a maciez de sua pele. Ela possuía uma beleza diferente da de todas as dendrianas. Era desconcertante. A chave repousava no travesseiro,

aninhada no emaranhado do cabelo da enviada. Se puxasse, ela acordaria. Ele se ajoelhou, como se rezasse, esperando ter alguma inspiração. É claro, a chave estava em um fecho. Se ele se movesse bem devagar, poderia abri-lo. Enquanto trabalhava no fecho, seus dedos roçaram de leve em um cacho solto de cabelo. Era macio como casca de faia, fazendo cócegas em sua pele. Pelo menos a respiração da enviada permanecia regular, embora a dele estivesse acelerada. Petrônio estava convencido de que seus batimentos cardíacos ecoavam pelo quarto, mas a mulher nem se moveu. Cinco minutos depois a chave girava na fechadura, e o armário abria as portas de metal para revelar prateleiras e mais prateleiras de precisão e matança. Um fuzil era óbvio e grande mais, mas no monte desarrumado de armas menores havia presas fáceis. Eles nunca sentiriam falta de uma das do topo da pilha. Ele segurou a arma, sentiu o peso confortável. Moldou-se à sua palma, como se suas mãos houvessem evoluído justamente para aquele ato. Serviria. Ele a deslizou para o gibão e fechou as portas. Ao se ajoelhar ao lado da cama de Fenestra, tentando abrir o clipe e devolver a chave, ela tossiu de repente. Petrônio ficou imóvel. Se ela abrisse os olhos, seria descoberto; o garoto de confiança reduzido a um reles ladrão. Não havia dúvida de que ela o dispensaria, ou coisa pior. Seus dedos se enrijeceram, como garras, a chave oscilando diante dele como prova. O que estava pensando? Fenestra confiara nele e era assim que ele pagava! Mas, em vez de acusações disparando de seus lábios, Fenestra deixou escapar um suspiro sonolento e deu as costas para ele, virando-se para as sombras. Com alívio, ele retornou para o quarto, afagando seu novo brinquedo. Na escuridão, os olhos de Fenestra estavam bem abertos enquanto ela sorria.

O encontro O sol brilhava forte quando Mucum e Ark seguiram com cuidado por um galho sinuoso na direção da casa de Corvena na tarde seguinte. — Sabe, até que este lugar não é ruim! — exclamou Mucum. — Tirando as vespas do tamanho do meu punho? — Bem lembrado, amigão! — Fora por pura sorte que eles haviam encontrado uma piscina cintilante e mergulhado quando um enxame passou zumbindo por eles. — O que eu tô tentando dizer é que é meio legal não ser importunado por um bando de dendrianos, né? Ark olhou para a floresta retorcida que já quase começava a parecer um lar. — Sim, acho que concordo com você. — Ainda assim. Não gosto dessa história do presente. Ark assentiu. Treinar era uma coisa, mas como a morte podia ser um presente? O pensamento o inquietava. Quando se aproximaram da casa de Corvena, a porta se abriu e duas figuras inesperadas saíram apressadas. Ark não podia acreditar em seus olhos. De todos os milagres da Floresta dos Corvos, por aquele ele não havia esperado. A bela visão alta e pálida trazendo uma criança pela mão. — Não é possível! — disse Mucum.

— Você algum dia me perdoar, meu garoto adorável? — A pele de Flô era pálida, mas seu coração batia com uma alegria viva e feroz. — Eu ter de fazer aquilo. Corvena querer você, e eu ter de levar uma mensagem para os Exploradores das Raízes… Mucum a olhava, surpreso, tocando de leve a crosta da ferida em seu braço. Flô se conteve, a dúvida vincando o rosto, lágrimas ameaçando jorrar. Então Mucum sorriu. — Vem cá! Mas promete que da próxima vez que você tentar fazer uma boa ação não vai usar uma faca? — Eu prometer! — disse Flô ao correr para os braços dele. Mucum sabia que era agora ou nunca. Mas com Ark e Shiv olhando? Quando Flô se inclinou para a frente fazendo biquinho, o nervosismo levou a melhor sobre ele, que roçou rapidamente os lábios no rosto dela e tentou fingir que estava tudo bem, agarrando-a em um abraço imenso e levantando-a do chão. — Eu estar tão preocupada com você! — ela sussurrou em seu ouvido. O toque dela aqueceu-o por inteiro. Ark pegou Shiv no colo e a abraçou com força, fazendo-a dar gritinhos de felicidade. — Como está minha irmãzinha? Senti tantas saudades de você! Os cachos do cabelo dela faziam cócegas, e a raiva que Ark sentia daqueles que a haviam encarcerado cresceu, ameaçando estragar o encontro. Mas o cheiro do ensopado vindo da porta aberta era um consolo. — Sou uma moça agora e encontrei todos os amigos carecas de Flozinha. Eles não têm cabelo nenhum! — contou ela. — Mas são muito, muito legais! E então a gente partiu numa ventura e viemos até aqui voando nas costas de um passarinho enooooorme! — Vocês estar com fome? Ter comida boa aqui — disse Flô, pegando Mucum pela mão e levando-os para a casa. Um fogo crepitava na grade de ferro, a panela de ensopado

borbulhando nas chamas. Ela pegou tigelas de madeira em uma prateleira e encheu-as até a borda. — Aaahhh! Vocês pôr isso para dentro! Eles se debruçaram sobre a comida deliciosa até que o último pedaço da carne macia fosse servido. Por fim, ambos se recostaram, deleitando-se com o calor da sala. Mucum estendeu as pernas e soltou um arroto de satisfação. — O que é que se diz? — exigiu Shiv com as mãos nos quadris. O rosto de Mucum ficou vermelho. — Desculpa — murmurou. Ark riu pela primeira vez em séculos. — Muito bem, Shiv. Nossos pais nos educaram muito bem! Shiv sorriu, com vergonha, e aconchegou-se nos braços de Ark. Uma voz veio das sombras no canto da sala. — O tempo está se esgotando! O Festival da Colheita se aproxima. É por isso que os convoquei aqui. Todos se assustaram. — Será que você podia não fazer isso? A gente vai ter indigestão! — queixou-se Mucum. — Perdoem-me — disse Corvena, andando até a luz. — Sou uma mulher impaciente, e é difícil livrar-se de velhos hábitos. Sigam-me. Tenho uma coisa para vocês. No fundo da sala de estar havia uma porta que Ark não tinha notado antes. Corvena a abriu, revelando uma caverna simples de madeira escavada. Um pequeno recesso continha uma única vela. Ark respirou fundo. Havia um estranho perfume embebido na madeira. O aroma de rosas. De repente, ele se sentiu tomado de tristeza. — Isto é…? — O lugar onde tudo começou? Você sabe que é — respondeu Corvena. Imagens infiltraram-se na mente de Ark. Uma mulher de cabelos

claros, enroscada como um gato no chão, envolta em um manto de teias de aranha enquanto dormia. Tempestades e estações passando furiosas lá fora. Um par de olhos se abrindo de repente; verdes como folhas, olhando-o através de mil anos com uma expressão que poderia derreter o inverno e trazer a primavera a uma terra estéril. Lágrimas escorreram pelo rosto de Ark. — Vocês estão sentindo? — perguntou. Mas seus companheiros limitaram-se a dar de ombros. Qualquer que fosse a mensagem que jazia adormecida naquele buraco escuro, era apenas para ele. — O que é essa coisa brilhante? É um tesouro? O dedinho de Shiv apontava para a extremidade das sombras tremeluzentes onde uma pena de Corvo descansava no chão. Acomodada em sua curvatura, havia uma ampola de vidro, presa em um cordão de couro. — Tesouro? — Corvena suspirou. — Receio que não, embora isso talvez seja mais valioso que a própria vida. Corvena arrastou-se para dentro do minúsculo espaço e cuidadosamente ergueu a ampola do lugar em que descansava. Ela sacudiu o pequeno frasco, o líquido escuro ali dentro faiscando sob a luz tênue. — Meu bravo Hedd viajou até o Norte, até o Lago Celeste nas cercanias da Terra dos Mortos. Ali, Arktorious, ele teve um encontro com alguém cuja falta você sentiu por tanto tempo. Essa dádiva sombria é o resultado de sua jornada. Quaisquer que fossem as lembranças encobertas na madeira oca, naquele momento elas desapareceram, substituídas por um frio glacial. Ark podia sentir a força magnética da ampola. E a Terra dos Mortos? Ele estremeceu só de pensar em tal lugar. Perguntas demais. — O que há na ampola? — Essa substância é uma criação abominável. Mas será útil. As árvores são verdadeiramente impressionantes: dispõem de muitas maneiras de se

armar. — Mas o que ela faz? Ark sentiu um súbito desejo de agarrar o frasco e atirá-lo no fogo, de livrar-se dele. — Espero que você nunca tenha de descobrir suas verdadeiras propriedades, embora isto possa vir a ser sua salvação. — Ela fitava Ark com olhos penetrantes. — Se chegar a hora, você saberá como usá-lo. — Corvena fez uma pausa para olhar para cada um deles. — Para pessoas tão jovens, vocês foram muito longe e conquistaram muito. — A expressão da senhora era grave. — Então, é preciso começar. Embora minha mente seja forte, meu corpo é fraco. Essa batalha é de vocês. Mucum foi o primeiro a compreender a mensagem de Corvena. — Um grupo de crianças contra os guardas de Grasp e os espiões de Maw. Isso é… — Impossível? — Corvena falava agora com certeza. — Vocês enfrentaram ratos raivosos, fugiram de guardas, falaram com animais e encararam os porcos selvagens da Floresta dos Corvos. Certamente alguns soldados e traidores não serão páreo para vocês. — Então dirigiu a última parte a Ark: — Como meu filho, eu não esperaria menos que isso! — Mas não somos nem adultos! — exclamou Ark. — Você espera demais de mim. — Essa é a questão. Os jovens são o futuro deste país. Pensem, planejem, conversem. É por isso que estão aqui. Talvez consigam salvar Arborium de si mesma e daqueles que querem destruir suas árvores! — Quem sabe você tenha razão — replicou Mucum. — Quando você fala assim, até eu acredito que somos ótimos! — As probabilidades podem parecer duvidosas — prosseguiu Corvena —, mas se reunirem todas as suas habilidades, pode ser que ainda haja esperança. E existe isso. — Ela entregou o frasco a Ark e olhou fundo nos olhos dele. — Arktorious Malikum, você é sangue do meu sangue, tem mais poder do que imagina. Guie seus companheiros e traga a esperança de volta

a Arborium. E, em relação àqueles que tomam parte em esquemas de traição, certifique-se de que sua misericórdia seja rápida e dolorosa. Ark sentiu que todos o olhavam. — Eu… — Peraí! — Mucum pôs as mãos nos quadris. — Eu tenho que seguir um garoto que tem metade do meu tamanho e ainda é mais novo do que eu? — Seis meses! — Corvena riu. — Será que esse período faz de você um mestre de sabedoria? — Não. Eu só queria dizer… — Quando as árvores falam, até mesmo Corvena obedece. Isso está determinado desde o dia em que Ark foi feito. Pense nessa situação como a combinação perfeita de cérebro e músculos. Flô apertou o ombro de Mucum. Que sentido havia em discutir? — E eu poder falar em nome de todos os Exploradores das Raízes para dizer que a gente estar do seu lado! — Não tenho certeza — disse Ark. Ele nunca havia pensado em si mesmo como um líder. — Ter certeza de sua capacidade tiraria metade da graça de tudo. — Corvena falava com leveza, embora pudesse ver os perigos à frente. — Eu tenho fé em você. Estranho, pensou Ark. É exatamente o que a Guardiã Goodwoody teria dito. Uma sacerdotisa e a Rainha dos Corvos de acordo. A floresta estava mesmo ficando de raízes para o ar. Corvena assentiu. — Talvez aquelas preces tenham sido ouvidas. A resposta não está em milagres, mas sim na ação! Ark pensou em como tinha vivido uma vida inteira somente nos últimos dias. — Bem. Cheguei até aqui. Não vou desistir agora. Mucum finalmente cedeu.

— Ah, tá certo então, conte comigo. Só não espere que eu chame você de senhor! — Bem, até que não é má ideia — disse Ark. — “Senhor” soa bastante bem! Corvena bateu palmas de alegria. — As árvores se alimentam de luz, e foi assim também com você, jovem Malikum. Acredito que este intenso rapaz esteja finalmente relaxando! Acredite em mim, o humor deve fazer parte de seu arsenal. — Fungos fedorentos! — queixou-se Mucum. — Ele não só vai me dizer o que fazer, como eu também vou ter que rir das piadas sem graça que ele faz? — Até que isso parece bom! — Ark abriu um sorriso. — Passei a gostar de sua teimosia, jovem mestre Gladíolo, mas sugiro que comece a pensar com bastante seriedade no que tem pela frente. A leve ameaça em seu tom de voz era inequívoca. Mucum captou a mensagem. — Certo então, vossa majestade! Finalmente a gente vai ter uma luta decente? — Sim. Corvena suspirou, guardando os receios para si. Ark era seu filho. Não era seu dever como mãe mantê-lo em segurança? Mas se o menino enjeitado não pudesse enfrentar aquele perigo derradeiro, Arborium estaria perdida. Ark amarrou o cordão de couro e prendeu o frasco em torno do pescoço. No ponto em que o frasco descansava sobre sua pele, ela coçava e suava. Era impossível. Mas também era impossível tudo que acontecera desde que ele ouvira os traidores. Shiv pulava de entusiasmo. — Podemos ter uma batalha? Uma das grandes? Por favor! — Ah, sim! — disse Mucum, estalando os dedos. — Já não era sem tempo!

A prática leva à perfeição As palavras de Fenestra ecoavam na cabeça de Petrônio. “Não vou mais tratá-lo como mensageiro, eu prometo!” Então, o que ele estava fazendo se arrastando para casa, cada passo acompanhado por uma dor lancinante no peito? Sua recuperação fora extraordinária. Na Escola de Cirurgiões, ele vira o que acontecia com ferimentos no peito: o pus gangrenoso que escorria, exalando um fedor como nenhum outro; o início da febre e as alucinações delirantes, quando o paciente era então amarrado. Tudo perfeito para que os estudantes observassem o previsível ricto da morte em toda a sua glória. Poucos se recuperavam, mas os alunos passavam nos exames com distinção. Em vez disso, ele voltara à consciência em poucas horas e estava totalmente ativo no dia seguinte. O treinamento com o braço direito de Fenestra, Heckler, fora uma distração bem-vinda. Agora, Petrônio estava quase em forma outra vez. — É tudo uma questão de dinheiro, jovem Grasp. Não concorda? — Fenestra o provocara, balançando uma sacola de couro que tilintava com o ouro estrangeiro. — E os homens do seu pai desempenharão um papel crucial. Cuide para que o recebam e que saibam o que é esperado deles. — Eu não a desapontei antes, desapontei? — Não. Você é o mais fiel dos… — Fenestra estava prestes a usar a palavra “criado”, mas se deu conta de que não serviria — ... aliados.

Guarde-o com a própria vida. Se não forem pagos, não verão nenhuma razão para adotar nossa causa modernizadora. — Ela ergueu um dos lingotes, de forma que ele captasse e refletisse a luz do sol. — Esta é a única linguagem que vai convencê-los e fazer seus corpos tornarem realidade os meus desejos. Ela falava como se não quisesse apenas os desejos, mas seus corações crus e sangrando. Fenestra insistira para que ele não levasse nenhuma arma estrangeira. Se fosse parado por uma patrulha real, ao revistarem o garoto tudo iria por água abaixo. Ele pensou que ela não tinha a menor ideia de seu roubo noturno. O que se aninhava dentro de seu gibão era uma proteção ao mesmo tempo sábia e prática. Naquela manhã, Petrônio via o mundo se tornar marrom sob seus pés, como se cada folha que crescesse estivesse se preparando para dormir. Estava sozinho, ou assim pensou, até avistar duas manchas negras pairando no céu azul. Ele só os viu de relance até que uma das formas transformou-se em uma massa de músculos recoberta de penas cor de carvão, vindo em sua direção. A intenção era clara. Petrônio só teve tempo para o mais breve dos pensamentos: Corvos normalmente só atacam quando sentem o cheiro de sangue. Ah! É claro. Ele baixou os olhos e viu que seu gibão havia adquirido uma nova mancha enquanto ele andava. Um dos pontos devia ter aberto. Ele sangrava, e aquele local solitário nos arredores abandonados da cidade estava longe de qualquer segurança ou abrigo. A ave jogou as asas para trás, batendo em marcha a ré enquanto as garras estendiam-se na direção de um belo e suculento pedaço de carne. O Corvo estava confiante, e aquela foi sua ruína. Desde quando um dendriano revida? Tal atitude seria um sacrilégio, um ato monstruoso aos olhos dos Mateiros Sagrados. Petrônio não dava a mínima para essas superstições bolorentas. Em um movimento rápido, girou no ramo-via para enfrentar seu atacante. Quando

as garras se estenderam para se cravar em pele e osso, o garoto puxou a pistola de vidro de seu gibão, soltou a trava de segurança e apertou o gatilho. A ave não teve nem sequer um aviso quando a minúscula lasca de vidro afiado encontrou o alvo quase silenciosamente. Ela cruzou o ar em uma fração de segundos, enterrou-se nas penas, perfurou a pele e atravessou o corpo do pássaro, destruindo vários órgãos internos. O Corvo gritou. Ele já estava morto, embora seu cérebro ainda não tivesse recebido a mensagem. As asas se agitaram de forma deselegante, o voo finalizado quando o cadáver despencou na direção do dossel da floresta. Petrônio ouviu ruídos de galhos se quebrando, vários baques. Então o silêncio. Ele olhou para a arma em sua mão, maravilhando-se com o fato de que um mecanismo tão pequeno pudesse dispensar a morte em uma escala tão dramática. Sim. O Império do Maw tinha muito a oferecer. — Venha, então! — gritou para o céu, onde outro Corvo voava em círculos, hesitante. — Vou acabar com todos vocês! A ave optou pela sabedoria em vez da morte, voando para longe do monstro de olhos ardentes e um tesouro mortal nas mãos. O garoto deu uma gargalhada. Com um simples movimento do dedo, Petrônio havia matado um Corvo e feito história. A maré estava virando. Ele guardou a arma, o humor imensamente melhor. Quem era o senhor da floresta agora? O sol brilhava concordando enquanto Petrônio percorria os caminhos secundários outonais, por fim entrando furtivamente pelos fundos do que já não lhe parecia mais seu lar. Não estava com a menor vontade de encontrar o pai. Ele apenas fecharia a cara. Petrônio seguiu para a masmorra. — Alto! Quem vem lá? — Por que está gritando, Alno? Alno tossiu, perguntando-se se algum dia se recuperaria do chute que Mucum lhe aplicara em cheio no meio das pernas. — Não estou. Não pode seguir adiante, mestre Grasp. Se o garoto ou o pai descobrissem que Mucum havia escapado, Alno

logo estaria a caminho da forca. Fazia algum tempo que Petrônio não era chamado de mestre, embora as palavras estivessem carregadas de sarcasmo. — Por quê? — Hã… A garotinha e o garoto. Doentes. Muito, muito doentes. Pode ser um caso grave de coleira! — Você quer dizer cólera? — Isso. Eles estão em quari… quaron… — Quarentena. Vamos torcer para que não morram, hein? Alno quase desmaiou de alívio. Por ora, a mentira havia salvado os dois — ele e Sálix. Petrônio ficou bastante satisfeito. Com Ark morto e seu amigo encrenqueiro doente, o que poderia dar errado? — Tenho uma coisa para você. Ele puxou a sacola do bolso e, quando Alno se inclinou para a frente, Petrônio afrouxou o cordão. Achou melhor não mencionar que a bolsa já estava mais leve do que estivera quando Fenestra a entregou para ele. — Para que isso? Alno farejou, desconfiado, como se ouro tivesse um perfume próprio. — Daqui a dois dias, no Festival da Colheita, meu pai vai providenciar para que os guarda-costas do rei sejam substituídos por você e Sálix. O restante é bem óbvio, se você me entende… Alno normalmente não perdia tempo com Petrônio, mas a visão daquele tesouro reluzente era suficiente para fazê-lo esquecer de todo o ressentimento. — Você quer que nós…? Petrônio espiou um lado e o outro do corredor, ansioso. — Será que preciso soletrar? Alno sacudiu a cabeça. — Isto é para começar. Haverá mais quando a ação tiver sido executada. — Petrônio explicou o plano e finalmente entregou a sacola. —

E não comente com meu pai que me viu. Será que aquela ainda era sua casa? Ele fora mais tratado como filho pela enviada de Maw do que por seu pai indiferente. Petrônio sentiu-se subitamente determinado a ir com Fenestra quando ela partisse depois da vitória. Alno sorriu. Como Sálix não estava presente, ele se perguntou se haveria uma forma de dividir o espólio a seu favor. Talvez fosse hora de se mudar daquele seu casebre, arranjar uma garota e se acomodar. Com uma recompensa assim, ele poderia até mesmo substituir os dentes podres. O futuro era verdadeiramente dourado!

Comunhão

Corvena passou o braço pelos ombros de Ark e o conduziu até a porta. Ela virou a cabeça brevemente para trás e olhou para os outros. — Tenham paciência. Ainda não é a hora certa de ir. A porta se abriu, e Corvena desapareceu. Ark se viu sozinho no ramovia, mas não estava de fato só. Acima dele, empoleirados nos galhos e erguendo-se em milhares de fileiras cerradas, os guardiões da Floresta dos Corvos olhavam para o garoto. Olhos cintilantes estavam cravados nele, à espera. Por que Corvena o havia levado até ali? Era outro de seus testes, tinha certeza, mas o que fazer? Então lhe ocorreu algo. O que Mucum dissera? Uma Força Aérea dos Corvos. Talvez, com a ajuda deles, pudessem mesmo conseguir! Mas os Corvos eram criaturas com mentes próprias. Ele precisava convencê-los. Era aquilo que Corvena estava pedindo a ele. Então, antes que tivesse chance de falar, um pensamento chegou até ele, levado pela brisa suave. As palavras saíam empoladas, como se formadas por bocas sem lábios: Um de nós perdido hoje. Garoto Grasp. Lança de vidro. Perigo. Com as palavras vieram imagens: um bravo pássaro voando pelo céu, procurando atingir Petrônio. O choque súbito quando um estilhaço

brilhante disparou pelo ar. E a dor sentida por todos os pássaros quando um irmão despencou nas profundezas. Estavam se comunicando com ele. Ark se concentrou e respondeu: Sinto muito por sua perda. Juntos podemos vingar sua honra. Eu prometo. A raiva cresceu dentro dele. Matar uma ave sagrada? Petrônio havia quebrado a mais antiga lei tácita. Silêncio. Talvez as aves estivessem avaliando o menino magricela e vendo o verme impotente que ele era. Ark sentiu a multidão deles sobrecarregando os galhos, sua força bruta, a tentação da escuridão. E, no entanto, por trás de tudo aquilo, uma nobreza feroz e firme. Cabia a ele fazer a pergunta, dizer às aves o que era agora. Ele fitou os olhos brilhantes, insondáveis, acalmando o tremor que percorria seu corpo. Eu sou Arktorious Malikum, trabalhador dos esgotos. Mas também sou Filho de Corvena, Ark das árvores. Enfrentei meus medos. E farei isso novamente. Vocês nos ajudarão a combater o perigo de Maw? Estão comigo? Outra vez o silêncio. Ark perguntou-se se teria falhado, se os Corvos repudiariam sua coragem, tomando-a por arrogância. Uma das aves inclinou o bico até o peito e tirou, do meio de suas penas, um carrapato do tamanho de um punho fechado. O inseto incômodo foi esmagado por suas garras. Um grito interrompeu o silêncio. Ark voltou-se. Era Hedd, o mais velho, cujos pensamentos agora falavam por todo o bando de Corvos. Sim. Garoto nascido da floresta. Nós estamos com você. Até o fim. O alívio inundou Ark. Fez uma profunda mesura, agradecido. Hedd prosseguiu. Ouça. Somos os olhos de Corvena. Nós nos movemos como a noite. Melhor que a noite. Espiamos algo que preocupa. Homem de pedra. Flint é o nome. Coração vazio como árvore oca. Seu exército está se movimentando. Ele é traidor, garoto da floresta. Olhe. Uma mariposa branca de repente desceu em espiral pelo ar e pousou nas mãos abertas de Ark, onde se desdobrou em uma folha de pergaminho enrugado. O garoto a virou, os dedos entusiasmados traçando os riscos de

penas cheias de tintas. Era um mapa do castelo e mais, muito mais. Horários, datas, esquemas de atos obscuros escritos ali e evidentes como a luz do dia. Hedd gritou mais uma vez. Seja bravo. Seja corajoso. E então o céu subitamente escureceu com as penas e um vento furioso prendeu Ark ao ramo. Ele piscou e a Floresta dos Corvos ficou vazia, os galhos nus. Ark estudou o mapa e leu as palavras malignas inscritas nele. Em sua cabeça, um plano começava a se desenvolver como uma folha na primavera. Talvez, apenas talvez, fosse possível, afinal.

***

O dia seguinte amanheceu cinzento e pouco promissor. Quando Ark, Mucum e Shiv saíram, um vento frio passou pela floresta e levantou suas roupas com dedos afiados. Flô havia retornado um dia antes para preparar os Exploradores das Raízes. Corvena fechou a porta ao sair. — Venham. Vocês foram alimentados. Aqui estão as provisões. — Ela passou uma sacola para Mucum. — E, Ark, eu lhe devolvo isto. — Corvena entregou-lhe a pena com a qual poucos dias antes ele tentara matá-la. — E, pequena e corajosa Shiv, este presente pode ser pequeno, mas é muito útil. — Uma bala! — ela adivinhou, cheirando o minúsculo pacote. — Eu gosto de balas! — É claro que sim. Eu não ia querer que você tivesse uma dor de garganta no momento errado! Corvena sorriu. Uma luz baça vazava por entre as folhas. Hedd olhou para eles de seu poleiro e fez o barulho de um estalo com o bico. Ark sentiu os pensamentos do pássaro. Medo do futuro. Mas o juramento de Hedd a Ark era forte

como o galho que o sustentava. O Corvo virou-se de lado, um único olho brilhante estudando Ark. Era hora das apresentações. — Hedd, Mucum. Mucum, Hedd — disse Ark. Mucum voltou-se para a criatura em questão. Como você se dirige a um monstro cruel? Ei, passarinho não era muito adequado às circunstâncias. — Hã…? Ele olhou para Ark, desesperado. Hedd continuava a fitá-lo. Ark podia sentir o prazer da criatura com o desconforto de Mucum. — Acho que o que Mucum está tentando dizer é: você se importa de nos dar uma carona para casa? Mucum assentiu. — O que ele disse. Corvena cruzou os braços. — Ele não se importa. Subam. Mucum tentou subir nas imensas costas da ave. Depois de muitos escorregões e xingamentos criativos, ele conseguiu passar as pernas sobre o Corvo, mas não antes que Hedd grasnasse algumas vezes em protesto. — Desculpe, seu Corvo! Não foi minha intenção chutá-lo na barriga. Sabe, acho que essa não foi uma ideia tão boa! — protestou Mucum enquanto se segurava com força. — Arktorious tem razão. Você poderia ganhar uma medalha pelas reclamações! — Tá, tá. Mucum estendeu o braço e puxou Shiv, depois Ark. — Por falar nisso, segurem firme! E lembrem-se: o futuro agora está em suas mãos! Lágrimas ameaçavam transbordar dos olhos de Corvena. Mas desde quando uma rainha mostrava seus pesares? Corvena deslizou a mão esquerda no ar, dando o sinal para que

decolassem. O pássaro bateu as asas imensas, uma, duas, três vezes. — Acima, acima e avante! — gritou Shiv, encantada, afundando nas penas macias. Então estavam no ar. Mucum quase escorregou ao subirem, seus joelhos apertando o corpo da ave como em um cavalo. — Segure minha cintura! — gritou para Ark quando o vento ameaçava arrancá-los de cima do Corvo. Corvena bem que podia ter providenciado rédeas. A ave gritou e seguiu para leste, na direção de Heléboro e do desconhecido.

A preparação é a chave Era o dia do Festival da Colheita e o céu estava azul-escuro, indicando o inverno que se aproximava. Mucum e Shiv tinham ido cumprir uma tarefa, e até Mucum teve de admitir que o plano de Ark era bom. A Floresta dos Corvos já era um sonho distante. Era hora de parar de fugir. Mucum ergueu Shiv e a acomodou nos ombros. — Olhe, menina! A floresta está pegando fogo! Shiv dava gritinhos de prazer, o sol brilhante da tarde contribuindo para o colorido enquanto todas as árvores tinham suas folhas decoradas em vermelho, marrom e dourado. As multidões enchiam as ruas indo para o Palácio de Barkingham, por causa do festival. Os adultos agitavam redes imensas presas a varas de bambu, esperando ensacar algumas folhas que caíam, e as crianças pulavam em pilhas de folhas do conselho armazenadas ao longo dos ramos-via. Os montes estavam prontos para serem reciclados e se transformarem em papel, materiais para telhados e roupas. O ar fresco do outono estava cheio de expectativa e risos. — A gente pode fazer uma lanterna? — Desculpe, docinho. Não podemos. Estamos com um pouco de pressa. A ideia de perder o desfile de lanternas era de matar. Como Shiv, ele crescera aprendendo a costurar as sobras de folhas na forma de luas cheias, carruagens, barcos e árvores em miniatura. Com velas espetadas em varas

em seu interior, elas transformavam os caminhos de Arborium em um rio incandescente de luz quando o crepúsculo caía. Naquela noite, o Festival da Colheita não seria uma celebração, mas sim um perigo. Se não se apressassem, o rei estaria morto antes que a noite chegasse ao fim, e amanhã o sol nasceria sobre uma terra em apuros. A estação de esgoto parecia feia como sempre. Mucum parou para farejar o ar. — É fedorenta! — disse Shiv, tapando o nariz. Mucum assentiu. Como ele sentira saudades do fedor de uma caca boa e honesta! Empurrou a porta, que se abriu com um rangido. Vários rostos viraram em sua direção. Mucum levou o dedo aos lábios ao se aproximar sorrateiramente do canto elevado do salão, pousando Shiv no chão para que pudesse cuidar da sua tarefa. Jobby Jones parecia um monte de banha trêmula, roncos e chiados saindo de sua boca aberta à medida que os sonhos o levavam para longe do cheiro de esgoto não tratado. — Hora de acordar, chefe! — rosnou Mucum, pegando um balde de líquido amarelo e despejando-o sobre o rosto do homem gordo. O efeito foi instantâneo. Dois olhos remelentos abriram-se abruptamente. — O quê? O que está acontecendo? Chamem a brigada de incêndio! — Jobby Jones pôs-se de pé num salto surpreendentemente rápido para alguém de seu tamanho. Enquanto as mãos gorduchas tentavam limpar o líquido nojento de seu rosto, ele por fim reconheceu Mucum. — Como ousa? Vou denunciá-lo por causa disso! Mucum permaneceu no mesmo lugar, com os braços cruzados. — Ah, é? Você já fez isso. Os outros trabalhadores dos esgotos ficaram parados, olhando. Acordar o capataz com um balde da mais pura produção dendriana não era uma cena que se visse todos os dias. Jones avistou o rosto de Shiv, dividido ao meio por um sorriso amplo. — E crianças não têm permissão para entrar aqui! — gritou ele. —

Vocês todos, voltem ao serviço, a menos que queiram ter um dia de trabalho descontado do salário! Em geral, aquela ameaça era suficiente. Hoje era diferente. Aquele espetáculo era bom demais para que o perdessem. Ninguém se mexeu. Continuaram parados, olhando. Jobby Jones titubeou. Sua autoridade estava sendo questionada! — Vou cuidar de vocês mais tarde. — Um dedo atarracado apontou para Mucum. — Mas você deveria estar na prisão! — Corta essa, velho. Fui trancafiado graças a você. Sabe como chamamos dendrianos do seu tipo? Traidores seivassugas. Espero que a recompensa tenha valido. — Ninguém fala assim comigo. O rosto do homem ficou roxo e seus olhos quase saltavam das órbitas. — Acabei de falar. Nossa conversinha acabou. Mucum era bem mais alto que Jobby Jones. A única coisa que o havia segurado até ali fora o medo de perder o emprego. Tarde demais para se preocupar com aquilo agora. Mucum recuou o braço e ergueu o punho. Ia ser divertido. Foi bom ver a expressão de súbito terror no rosto do chefe, mas o ruído produzido quando o punho do garoto atingiu aquele nariz imponente foi ainda melhor. O som áspero foi seguido por um jato de sangue que encharcou a túnica branca do superior. Jobby Jones caiu para trás como uma arvorezinha partida ao meio por um furacão. O baque de sua queda ecoou pela câmara. — Isso foi pelo meu amigo Ark, e também por todos os rapazes que você tratou como caca durante tanto tempo! Mucum sentia-se bem consigo mesmo. A violência justificada o fez exultar. Shiv batia palmas e saltitava no mesmo lugar. Um viva percorreu a estação de esgoto e de repente ele se viu cercado por seus colegas de trabalho.

— Santo Broto! A gente pensou que você tivesse matando trabalho — disse um dos rapazes. Esguicho falou: — Os guardas vinham aqui todos os dias, fuzilando a gente com os olhos e perguntando cadê você e Ark. Tô feliz de verdade por saber que ele não era um fantasma! Mas eu não disse nada para ninguém. — Pessoal, escutem. Ark e eu precisamos da sua ajuda — disse Mucum, limpando a mão na túnica. — O país tá em perigo e vai acontecer uma batalha. Dez pares de orelhas se puseram em alerta. — Uma das grandes. Vocês tão dentro? — Os porcos selvagens fazem cocô na floresta? — perguntou Esguicho, falando em nome de todos. — Acho que sim! — Mucum sorriu. — Tá combinado, então. Fleuma e Bile, amarrem o velhote. Shiv, pode se preparar para gritar de novo? — Quer que eu grite agora? — Shiv abriu a boca, revelando um assustador buraco negro. Todos os aprendizes cobriram os ouvidos com as mãos. Mas, antes que Shiv pudesse soltar a voz, Mucum a agarrou e colocou a mão sobre os lábios dela. Quem precisava de armas com um par de pulmões como aqueles? — Mais tarde, bonitinha. Eu aviso quando for a hora. Quanto ao restante, se reúnam aqui. Só temos algumas horas. E o que a gente vai fazer é o seguinte…

***

Ark se deteve no ramo-via perto do santuário, perguntando-se se sua moeda ainda se encontraria no fundo da água. Então entrou e se viu envolto por

incenso e sombras bolorentas. — Eu reconheceria estes passos em qualquer lugar! — A guardiã estivera rezando. — Será que é você mesmo? Apenas dois dias antes ela havia conduzido o funeral de Ark, lendo do Livro da Madeira: Mas um dendriano morre e é derrubado: sim, o dendriano entregou o espírito, e onde ele está? Suas palavras não haviam aliviado um só grama da dor dos Malikum, tampouco estancado seus rios de lágrimas. Não houvera corpo, apenas uma mortalha cheia de carne de cabra: um sacrifício para os Corvos. Os Mateiros Sagrados haviam zombado de seu pedido para conduzir a cerimônia. Tais rituais arcaicos estavam caindo em desuso. Ark atravessou o piso do Templo e ajoelhou-se ao lado da guardiã, permitindo que seus dedos nodosos lessem o mapa de seu rosto. — Você enganou a morte mais uma vez! Ele pensou no ataque confiante de Petrônio, nos Corvos e nos porcos selvagens. — Tive sorte. A floresta tinha uma missão para mim. Mas agora estou com medo. Embora fosse apenas uma velha cega, a guardiã ainda era capaz de oferecer conforto. — O galho o trouxe até este ponto. Ele não o deixará cair agora. Prometo. A boa deusa cuida do que é seu. Ark assentiu, perguntando-se se deveria contar-lhe sobre Corvena e quem ele era de fato. Mas agora não era o momento. — Tenho de lutar por Arborium. Dendrianos e outros podem morrer. — E você quer o meu conselho? — Não sei o que quero. Pelo menos conte aos meus pais que estou vivo, por enquanto, e que eles não devem se preocupar com Shiv. Ele ergueu-se para sair. — Ark. Pare. Sinto a raiva em você e o mal que está no estrangeiro. Se deixar que esse ódio leve a assassinatos, você se igualará àqueles que

procuram derrotá-lo. Ark afastou-se. — O quê? Deixá-los aleijar e mutilar enquanto oferecemos a outra face? Ele sentiu a ampola em torno de seu pescoço, como um arrepio frio, instando-o a destruir cada um dos traidores. — Não foi o que eu disse. Tirar a vida só cabe a Diana. Ark estremeceu ao ouvir aquele nome. Talvez não houvesse problema nenhum em usar o nome de sua avó. Fora ela quem criara aquele lugar a partir de seus sonhos. Aquela era verdadeiramente uma floresta de maravilhas. A guardiã prosseguiu: — Mas, quanto a lutar, o roteiro sagrado está claramente do lado dos justos! Era uma espécie de resposta. Corvena aniquilaria, feliz, todos os inimigos com um sorriso no rosto. Ark, no entanto, fora criado como um dendriano. Anos frequentando o Templo não podiam ser apagados tão facilmente. — Talvez você tenha razão — respondeu ele, seu coração inexplicavelmente mais leve, as ideias começando a girar. — Siga seu coração! — sussurrou a guardiã, embora a porta já houvesse se fechado. Ark tinha ido embora.

***

Meia hora depois ele encontrou Flô na saída do elevador. — Hora de fazer uma visita discreta ao palácio. Tem certeza de que seu grupo está pronto?

— Eu ter certeza, meu bom amigo. A gente estar prestes a ter um pouco de diversão, aahhh! A diversão não era uma arma, pelo que Ark sabia. Tudo que Corvena lhe dera antes de eles partirem fora uma sacola de suculentas maçãs e um apito que aparentemente nenhum dendriano podia ouvir. Em que situação estaria colocando os amigos? As probabilidades não lhe permitiam pensar a respeito. Logo eles se aproximaram do palácio, abrindo caminho pela multidão em expectativa. Os jardins agradáveis que cercavam o palácio normalmente eram fechados para o povo. Agora dendrianos de todas as classes debruçavam-se nos parapeitos para conseguir uma visão panorâmica de Heléboro. Os muros externos do castelo estavam repletos de mesas, todas com pilhas altas do melhor que a colheita podia oferecer, e muito mais dos próprios suprimentos do rei. O banquete não demoraria a começar. — Você não querer vir comigo pelos fundos? Flô podia se locomover pelos sistemas de encanamento de olhos fechados. E havia bastantes kits para apanhar assim que o restante dos Exploradores das Raízes chegassem. — Não, obrigado, Flô. Preciso ver se o treinamento de Corvena funciona. Vejo você lá em meia hora. — Você ficar bem? — Totalmente! Talvez, ao soar confiante, ele se sentisse mais assim. Flô lhe dirigiu uma última piscadela e se misturou à multidão. Era agora ou nunca. Lá estavam os degraus que levavam às enormes portas de carvalho guardadas pelo mesmo soldado com ar de desprezo. Era fim de tarde, quase noite, e a luz tênue suavizava o ar. O desfile de lanternas estava para começar. Quando as primeiras luzes bruxulearam, lançando sombras trêmulas pelo chão, Ark se afastou da multidão. Estava em território aberto. Corvena lhe ensinara a ficar imóvel. Como é possível ficar imóvel e mover-se ao mesmo tempo? Só havia uma maneira de descobrir.

O soldado mostrava-se entediado e irritado por ter de permitir que o povo entrasse nessa noite. Certamente ele estava lá para manter a plebe fora, não era? Uma breve brisa soprou e a porta atrás dele se abriu. — Maldito trinco solto outra vez! — murmurou. — Vou enfiar um galho pelo nariz do carpinteiro real! — E a fechou com violência. Ark não podia acreditar. Seus passos haviam sido mais leves que o ar, toda a sua mente focada em avançar devagar e despercebido. Por um breve instante os olhos do soldado se voltaram diretamente para ele. Ark tinha certeza de que havia sido descoberto até ver aqueles mesmos olhos meio bêbados seguirem em frente e ele estar lá dentro! Impressionante! De muito longe, sentiu Corvena sussurrando-lhe palavras de encorajamento. Mas ainda não era hora de congratulações. Ele deslizou sem ser visto para as profundezas do palácio, usando o mapa em sua memória para guiá-lo, espremendo-se contra paredes quando criados passavam apressados, carregando bandejas com grandes pilhas de comida, preparando o banquete que aconteceria dali a algumas horas. O mapa havia mostrado onde a guarda pessoal do rei estaria posicionada, e onde os soldados, trazidos da Zona do Musgo especialmente para o evento, montavam guarda. Finalmente ele seguiu os ecos da música distante através das passagens bem-iluminadas até chegar à porta certa. Olhou de um lado para o outro do corredor. Livre. Empurrou a maçaneta e entrou. A sala de teto alto estava vazia, exceto por um conjunto de cavaletes montados ao longo de uma parede, exibindo grandes pilhas de pratos e talheres limpos. No alto da sala via-se um pequeno nicho na parede, semelhante a uma miniatura de tribuna de músicos, e diretamente à frente de Ark havia portas duplas de madeira. Dali a poucas horas os lordes e as damas de Arborium iriam se sentar para seu próprio banquete no pátio interno do outro lado das portas. — O que você achar? — disse Flô, saindo de repente de trás de uma cortina. Ark reprimiu um grito.

— Além do fato de você quase ter me causado um ataque do coração, este espaço deve funcionar bem. — Se Corvena e seus pássaros espiões estivessem certos, talvez eles tivessem uma chance. — Não temos muito tempo. — Esse ser o motivo de eu trazer comigo alguns bons de nós. Três outros Exploradores das Raízes surgiram como se brotassem do nada. Em seus longos braços eles seguravam feixes de pedaços de cerne. — Vai ser barulhento? — Você manter vigia. Toda essa música que eles praticar para a dança estar fazendo um senhor barulho. Não achar que alguém se preocupar se alguns martelos e serrotes se juntar à orquestra! Flô tinha razão. Mas não era fácil perder o hábito de se preocupar. — E os outros trouxeram os ímãs? — Sim! Eles já estar no lugar. Nós, Exploradores das Raízes, nunca esquecer. Por acaso eu parecer uma garota distraída? — Não. Você está certa. — Ark de repente percebeu que Flô tinha cabelo. — Isso é uma peruca na sua cabeça? Flô riu, e a peruca se mexeu. — Ah! Está viva! — Ora, claro que estar! De repente surgiram oito pernas na peruca e ela saltou e aterrissou no chão. — Socorro! É uma aranha! Ela vai nos matar! — Ark recuou até um canto. Uma larva gigante podia ser maior, mas aquela coisa emitia cliques enquanto se dirigia para ele. — Ahhhhhh! — Ei! Parar com isso, seu gato assustado. Ele ser só minha aranha de estimação, Harold. Mas você poder chamar ele de Harry. Ele ajudar a gente com a rede! Com seus olhos múltiplos, a aranha lançou um único e desdenhoso olhar para Ark e entrou rapidamente no buraco que um dos Exploradores das Raízes havia aberto ao levantar uma tábua do assoalho.

— Não vou chamá-lo de coisa nenhuma — disse Ark. — E mantenha esse bicho longe de mim! Ele estava mais do que nervoso. Dali a duas horas o festival começaria. Se não estivessem prontos, seria o mesmo que entregar seu país em uma bandeja de madeira. Enquanto os Exploradores das Raízes começavam a trabalhar, Ark entreabriu a porta e abaixou-se para esperar. Sem pensar na razão, pegou a pena do Corvo e a colocou diante de si. Então levou a mão ao pescoço para desamarrar a tira de couro que segurava a ampola. Sua mão tremia quando ele a levou em direção à tampa. Mas não havia tempo para dúvida, mesmo quando a tampa saltou e uma fina trilha de vapor se ergueu. Ele tentou não sentir o cheiro, mas suas narinas captaram um fedor que quase o fez vomitar, sua mente agora sufocada com imagens de furúnculos abertos e pus, todas as coisas malcheirosas e putrefatas. Rapidamente, antes que perdesse a vontade de fazê-lo, ele mergulhou a pena afiada dentro da ampola até que ela sugasse várias gotas do líquido escuro. Pronto: a ampola voltou para a segurança em torno de seu pescoço, a pena bem-escondida dentro de sua manga, embora com que propósito ele ainda não soubesse. Ark rezou para que nunca tivesse de descobrir.

***

Haviam testado o motor meia hora antes. Agora a cápsula de voo fedia com o suor nervoso de corpos masculinos. Soldados presos por correias de segurança às paredes curvas da cápsula verificavam com cuidado suas armas. Uma culatra emperrada podia significar a diferença entre a vida e a morte. Lady Fenestra caminhava entre eles, o falatório silenciando-se após sua passagem. Ela finalmente se espremeu por um pequeno alçapão até a despensa

onde Petrônio fazia, ressentido, um inventário do equipamento. — Não falta muito agora! — disse ela. — E eu, preso aqui, contando pares de botas! Petrônio estava furioso. — Se tudo correr bem, os moradores da Zona do Musgo farão todo o trabalho por nós. Melhor uma batalha em que não se perde nem um só de seus homens, mas ainda assim se sai vencedor, não? Petrônio podia ver lógica nas palavras dela, mas seu coração ardia por um pouco de ação. — Meus homens darão reforço se alguma coisa der errado. Agora me prometa que não vai fazer nada estúpido! Petrônio perguntou-se se ela podia perceber a protuberância da pistola 100 em seu gibão. — Eu prometo — disse ele, seus olhos encontrando os dela, desafiadores. — Ótimo. Vai haver muito trabalho para você quando isso tiver acabado. Ela virou-se para sair. Petrônio não estava preocupado com o futuro distante. Quanto à sua promessa? Claro que ele não faria nada estúpido. Mas poderia fazer alguma coisa inteligente.

Todos os homens do rei O trabalho estava feito. Ark esperava que Mucum e Shiv estivessem prontos. Agora viria o teste mais perigoso de suas habilidades. Todos haviam concordado que tentar convencer o rei àquela altura era tolice. Melhor oferecer provas. Era a razão de ele agora encontrar-se diante dos aposentos particulares do rei. Um segundo antes, com a respiração presa e coberto pelas sombras, tudo que os dois guardas haviam notado fora um leve cheiro de mofo. Os olhos deles arregalaram-se ao reconhecê-lo. Não podia ser! — Santo Broto! Como foi que você entrou aqui de novo? — Os Corvos comeram você! — confirmou o segundo soldado. — E me cuspiram — Ark rosnou. — Meu gosto não anda muito bom ultimamente! Agora, eu já disse a vocês antes que o rei se encontra em grande perigo. E, como antes, o primeiro soldado fez o que seu treinamento ditava. O gancho de esquerda foi rápido, um punho fechado ganhando força pelo ar. As explicações podiam vir depois. O rei estava em grande perigo por causa de um trabalhador dos esgotos saído do sifão. — Por favor, não faça isso — pediu Ark em uma voz sensata, os olhos conectando-se com seu atacante um instante antes de o soco o atingir. Quem poderia recusar um pedido tão sensato? Embora fosse contra a

lógica, o soldado de repente apreciou a boa educação do garoto. — Você ficou maluco? — gritou o segundo soldado para o colega confuso, ao desferir um chute que teria quebrado várias costelas do garoto. Ark elegantemente deu um passo para o lado, vendo o pé apenas levantar algumas partículas de poeira. — Não tenho intenção de fazer nenhum mal ao rei. É com o conselheiro Grasp que vocês têm de se preocupar. Alguma coisa na voz do garoto, em seu tom aveludado, fez os dois soldados pararem. Ark sentiu-se subitamente feliz com as habilidades de Corvena. Tal mãe, tal filho. Se ele os retardasse por um segundo, talvez pudesse lhes contar uma história com mais verdade do que o conselheiro jamais poderia imaginar. Cinco minutos depois ele já os ganhara. Dendrianos céticos eram mais difíceis que larvas gigantes e porcos selvagens. Tais mentes precisavam de uma grande dose de persuasão. — A questão é: vocês estão comigo e com Arborium? — ele concluiu. — Quando você fala assim... Pouco antes, o instinto do primeiro soldado era o de derrubar o intruso. Agora ouvia com atenção cada palavra dele. Ark estava perplexo. Talvez a verdade fosse a arma mais simples. Era a forma como ela era usada que importava. Antes de o garoto ir embora, um dos soldados até apertou-lhe a mão, embora o outro ainda lançasse olhares suspeitos pelo corredor enquanto Ark se afastava. — Você não acha que isso é um monte de faz de conta? — Não. Ouvi Grasp falando com um dos homens dele outro dia. Ele calou a boca rapidinho quando me viu. Não dei importância na ocasião, mas agora faz sentido. — Então você tá dizendo que a gente deve arriscar nossa vida por causa de um garoto limpador de caca. — Basicamente, sim. Esse emprego não é grande coisa, mas eu gosto de morar nas árvores. Já ouvi histórias horríveis sobre Maw e não quero aquela

gente assumindo o controle por aqui, muito obrigado!

***

Duas horas depois, de uma sacada, Ark olhava o principal pátio interno do castelo. A lua finalmente estava cheia, preenchendo o espaço abaixo com uma luz pálida. Para alguns, aquela era uma moeda de prata que encheria seus baús quando a noite chegasse ao fim. Para Ark, porém, era o olho fixo da verdade, imóvel e brilhante, prestes a revelar ações escusas. Ele estudava a cena. Uma comprida mesa coberta com uma toalha estampada percorria o perímetro do pátio, o padrão de folhas de carvalho derramando-se pelo tecido branco. Sobre ela estava o melhor que Arborium tinha a oferecer: grandes cortes de porco selvagem defumado e tigelas de suco de maçã que disputavam lugar com jarros de vinho e pães crocantes em formato de lua crescente feitos com o trigo colhido nos campos suspensos. No coração do pátio, uma fonte alta, folheada a cobre, lançava borrifos de água de seus muitos galhos esculpidos enquanto crianças da corte, jovens príncipes e princesas de anáguas, gritavam e jogavam água uns nos outros. Nos quatro cantos das altas ameias que cercavam o castelo, grandes extensões de cordão mergulhavam no ar, tensionadas por pipas douradas que lá em cima seguiam o fluxo de correntes de ar. As pipas simbolizavam o ideal de Arborium, preso à terra, porém sonhando com os céus lá no alto. Os mais importantes dendrianos estavam reunidos, prestando homenagem ao rei e erguendo um sem-fim de brindes ao sucesso da colheita. Entre tamanha alegria era difícil imaginar que o futuro de seu mundo estava em perigo. Com todos os duques e condes e seus séquitos armados já bem avançados no caminho da embriaguez, a oportunidade não podia ser melhor. O rei parecia à vontade, rindo de uma das piadas de

Grasp. O conselheiro encontrava-se sentado à sua esquerda, com o comandante Flint à direita. Quercus estava cercado pela morte disfarçada de lealdade. Os olhos de Ark voltaram-se para os dois guarda-costas logo atrás do rei, os mesmos com os quais falara antes. Esperava que tivessem acreditado nele. Senão, o plano já estaria condenado. Houve uma explosão e o céu de repente se viu cheio de estrondos e clarões. O barulho foi o sinal perfeito. Ark lembrou-se das palavras de Corvena. Esperava que as árvores estivessem ouvindo. Era a melhor queima de fogos de artifício em anos. Ark saiu da sacada e percorreu o caminho de volta pelos corredores. Ao mesmo tempo, um dos guarda-costas sussurrou em tom urgente no ouvido do rei. O que quer que o homem tenha dito pareceu surtir efeito, pois o rei ergueu-se para acompanhá-lo, seguindo direto para a porta mais próxima, que se abriu para a sala de serviço vazia. Todos os rostos no pátio estavam voltados para o céu com uma alegria infantil. Nenhum deles, exceto Grasp, percebera o pequeno fato de que o rei estava deixando a festa. O segundo guarda-costas seguiu-os, virando-se uma vez para dar uma piscadela para o conselheiro. Grasp sentiu-se tranquilizado. Então era assim que Fenestra pretendia agir! Ele agora podia se recostar e desempenhar o papel de testemunha estarrecida quando chegasse a hora. Ark já se encontrava na sala de serviço, escondido nas sombras instáveis. Ele sentiu a imobilidade envolvê-lo como se camadas de madeira se depositassem ao seu redor, lembrando-se da primeira vez em que se escondera com Mucum. — Você falou da ameaça à minha vida e que tínhamos de nos retirar imediatamente. Mas por que não podíamos contar ao meu chefe de segurança? — O rei de repente sentiu-se inquieto naquele lugar escuro, fora das vistas de toda a corte. Seus instintos lhe diziam que as atitudes do guarda não faziam sentido. — Eu exijo saber… Um dos assim chamados protetores do rei agarrou-o por trás em um

abraço de urso, enquanto o outro enfiava um guardanapo de tecido na boca de Quercus antes de amordaçá-lo rápida e habilmente. Os homens seguiam as ordens recebidas ao pé da letra quando o arrastaram para os fundos da sala e subiram a escada que levava à alcova no mezanino. Houve uma pausa nos fogos de artifício, dando aos dendrianos tempo para erguer seus copos em desafio ao inverno vindouro. Alguns segundos depois a última parte da exibição teve início. O som era ainda mais alto que antes, cada foguete regando o local com faíscas douradas, as paredes sacudindo a cada explosão. Outra porta para a sala de serviço abriu-se silenciosamente, e dois homens entraram com os punhais em riste. — Guarda-costas primeiro. Depois o velho, certo? — sussurrou o mais alto, com uma cicatriz que ziguezagueava pelo couro cabeludo, como se um bêbado o houvesse atacado com uma lâmina de barbear. — Eu sei. Você não precisa ficar repetindo o tempo todo. — Preciso, sim. Você se esqueceria de vestir as roupas de manhã se eu não lembrasse! — Boa noite, cavalheiros! Ark deixou as sombras, as mãos vazias, sem nenhuma arma. Sálix demorou um segundo para reconhecer o ex-aprendiz de encanador. Não podia ser! — O qu…? — O choque transformou-se em desdém. — Todo arrumadinho, hein? Preto fica bem em você. — Obrigado. As roupas eram diferentes, mas o rosto era quase o mesmo. — E tem alguma coisa diferente em você… Ark manteve-se firme. — Sim. Muitas coisas, na verdade. Você vai descobrir. — Você tem muita coragem. Isso eu reconheço, seu nanico! — disse Sálix, quase com admiração. Sim, Ark tinha mesmo coragem. Ele pensou na ampola que se

aninhava, feroz como uma vespa, em seu pescoço. Mas agora não era a hora de descobrir do que ela era capaz. — Eu… p-pensei que os Corvos tinham pegado esse cara! — gaguejou Alno. — Parece que não, né? — Sálix sorriu, irônico. — Acho que a gente vai ter que dar um jeito no garoto dos esgotos como aquecimento. Eu corto a garganta dele e você fura a barriga. É o que chamo de uma divisão justa de trabalho. O que acha? Alno concordou, alegre. — Não sei como você escapou da morte mais uma vez, mas prometo que agora vai comparecer ao encontro! Sálix avançou com a faca na mão. O garoto era esquivo demais para o gosto dele. Mas para onde ele poderia correr agora? — Você não quer fazer isso de verdade, quer? Ark apoiou-se em uma perna e esfregou o topo do sapato na panturrilha, tentando recuperar o brilho do couro. — Que que você tem para tá assim tão confiante? — perguntou Alno. — Digamos apenas que finalmente o tempo acabou para vocês dois. O garoto deveria estar implorando para que lhe poupassem a vida, e não fazendo ameaças. Alno estava perplexo. Sálix, porém, estava impaciente. — A brincadeira terminou, cabeça de caca. A gente vai acabar com você, depois com os dois guarda-costas e, antes que o último dos fogos de artifício exploda no céu, o velho rei Quercus vai tá com a barriga cheia de aço. — E seu patrão vai recompensá-los? — Essa é a questão. O conselheiro Grasp, o assessor de maior confiança do rei, vai nos dar muito dinheiro depois disso! Ele vai ser o principal governante deste lugar quando Maw assumir o controle. E os homens do comandante que lidem com o bando de almofadinhas pomposos lá fora! Sálix apontou o polegar na direção das portas duplas.

— Que bom que você explicou o que tramaram. — Ark deixou que seus olhos seguissem por um segundo na direção do teto e do nicho oculto nas vigas acima. — Significa que agora posso cuidar de vocês. — Ah, por favor, dá um tempo. Bastava de brincadeiras para Sálix. Ele correu para Ark, a mão empunhando a faca. Se o garoto tentasse alguma reação, ele estaria pronto.

Revanche Quando o soldado o agarrou por trás, o rei soube que fora traído. Mas por quem? Ele havia esperado que um dos guarda-costas o apunhalasse, agora que estavam longe das multidões. Em vez disso, fora forçado violentamente a subir um lance de escada em espiral e em seguida empurrado por uma porta aberta. Então era aquilo que eles tinham em mente! Diante de Quercus, duas colunas sustentavam um pequeno nicho que dava para a sala de serviço abaixo. Um empurrão e ele teria despencado lá de cima. Um pescoço quebrado poria fim ao seu reinado. Um dos guardas havia empurrado Quercus na direção da beirada do nicho. No último segundo, ele puxou o rei de volta e agarrou sua cabeça, virando-a de forma que o rei se viu forçado a olhar para o rosto do guarda. Por alguma estranha razão, o homem fez o sinal da Cruz do Mateiro, então levou os dedos aos lábios, indicando que o rei ficasse quieto. A floresta inteira havia enlouquecido. Por que toda aquela encenação? Melhor ter seu destino cumprido. Seu suposto assassino tinha então apontado o dedo, girando o corpo do rei a fim de que ele olhasse para baixo. Naquele momento a porta dos fundos se abrira para Sálix e Alno, seus punhais prontos e ávidos. Enquanto mãos o seguravam com firmeza, o rei assistira ao desenrolar da cena com horror crescente. Era como ser o único na plateia em uma peça sobre si mesmo. O garoto vestido em elegantes

roupas pretas não parecia páreo para os homens. Ele havia reconhecido a cicatriz na cabeça do mais alto, mas as palavras que saíram rastejando de seus lábios como baratas imundas haviam sido piores do que qualquer punhalada. Estavam ali para cometer um regicídio, tendo os fogos como cobertura. Quando eles revelaram que os assessores de maior confiança do rei estavam por trás do plano, Quercus havia caído de joelhos, um velho decepcionado por aqueles que amava. Era um embrulho pronto para ser entregue a quem pagasse mais.

***

E agora Quercus tentava se soltar, contorcendo-se, mas o outro guarda interveio, envolvendo seu peito, como se os braços fossem uma corda. Mais uma vez o rei viu o dedo ser levado aos lábios, implorando silenciosamente para que se mantivesse calmo. O garoto lá embaixo era digno de admiração. Ao mesmo tempo louco e corajoso. Quem dera todos os dendrianos defendessem seu rei assim! Aquela não seria uma batalha justa. Quercus retesou-se diante da desonra de dois homens treinados matando um garoto desarmado. — O X marca o local — comandou uma voz. Ao rei só restava olhar, horrorizado.

***

Ao som daquela voz, Sálix deteve o ataque, voltando-se para o companheiro a tempo de vê-lo olhando para baixo.

— Do que você tá falando? Alno podia ver um imenso X assinalado sob seus pés. — Disto! — respondeu Ark, puxando uma alavanca presa à parede. Antes que Alno pudesse sequer pensar — não que fizesse aquilo com muita frequência —, um alçapão abriu-se aos seus pés, e lá foi ele em sua primeira lição de voo. — Socoooooorrrrro! — gritou Alno ao mergulhar para a morte certa. Então quicou de volta um momento depois, quando a teia de aranha gigante debaixo do alçapão o lançou para o alto. Mas, da segunda vez em que caiu, a teia grudenta o pegou e segurou com firmeza. O rei não pôde deixar de sorrir. Se não houvesse uma mão cobrindo seus lábios com força, ele teria gritado Bravo! — Um já foi, falta o outro! — disse Ark. — Muito esperto, guri! — rosnou Sálix. — Mas seus truques de moleque não vão me impedir de enfiar isto no seu peito! Ele foi se aproximando de Ark devagar, os olhos correndo pelo chão em busca de outros obstáculos ocultos. Do buraco no chão, Alno choramingava como uma criança. — Me ajude a sair daqui, Sálix! — Foi mal, amigo. Tem alguém que preciso matar! Nosso tempo tá acabando! Sálix fixou os olhos no garoto atrevido. Ark manteve-se firme. — Já estou cheio de você me perseguindo, ameaçando minha mãe. Pior de tudo: você pegou minha irmã! Isso é imperdoável. Na Floresta dos Corvos, eles o teriam matado. Mas a Guardiã Goodwoody implorou por suas vidinhas miseráveis. O rei perguntou-se de que diabos o garoto estava falando. Floresta dos Corvos? Aquilo era coisa de contos de fada, certamente. Sálix sentiu a confiança retornar. Mais um passo e sua faca deceparia a autoconfiança do garoto.

— Se tivessem me dado a ordem, eu teria estrangulado aquela pestinha escandalosa sem pensar duas vezes. Hora de mandar você pra uma jornada pelo rio Estio! Sua mão armada estendeu-se e… Uma garota surgiu de trás da cortina. Ela era mais alta que qualquer um ali na sala e careca feito um ovo de Corvo. — Minha vez agora! — disse ela. — Iuipiii! Nosso amigo idiota estar parado no lugar certo. Agora, garotos! Antes que Sálix pudesse sequer se perguntar quem era a garota estranha e antes que pudesse cravar sua lâmina no corpo do menino, ele sentiu uma dor intensa no pé direito. O rei só podia maravilhar-se com a engenharia ali envolvida. Por doze buraquinhos no chão, um círculo de longas varas afiadas de cerne de madeira projetou-se do chão, criando uma jaula circular instantânea e cercando Sálix inteiramente. Exceto por um pé, que infelizmente ficou no caminho. — Aaaaaaiiiii! — ele gritou, olhando, incrédulo, a vara afiada subir, atravessando seu pé bem no meio. — Tô morrendo! — Então, para começar, você não deveria ter colocado o pé aí! — contrapôs Ark. — Eu estar chocada! — disse Flô. — Ser outra piada do muito sério mestre Malikum? — Acho que sim! — respondeu Ark. Talvez Corvena tivesse razão. O humor podia levar à vitória, afinal. Mucum estava no caminho certo desde o início. Ark sentiu-se tonto de alegria. Eles tinham conseguido! Àquela altura uma poça de sangue havia se espalhado em torno das pernas de Sálix. O valentão desabou. — Eu vou morrer! — ele gemeu. — Pare de choramingar! — disse Ark. — É só um arranhão. Tenho certeza de que o rei vai querer que você viva o bastante para enfrentar a

justiça. Depois disso, eu não apostaria em suas chances! — De repente ele olhou para o nicho. — Podem soltá-lo. O rei foi libertado, a mordaça retirada. Os guarda-costas conduziramno gentilmente escada abaixo, ajudando-o se tropeçava. Os dois leais guarda-costas afastaram-se quando o garoto fez uma profunda mesura. — Vossa majestade! Lamento que tenha precisado passar por isso! Era a única maneira de oferecer provas contra os traidores que o cercavam. Quercus estava ao mesmo tempo surpreso e triste. Apenas cinco minutos antes ele estivera desfrutando o festival, sentindo-se feliz por poder dar ao seu povo uma pequena recompensa após um verão de trabalho duro nas lavouras suspensas. Seu braço direito havia lhe assegurado que o país estava em segurança. Cada palavra do garoto parecia arrancar a casca de um galho para revelar ali debaixo uma verdade mais desoladora. — Quem é você? Como descobriu essa conspiração? — Sou um de seus súditos, meu senhor. O senhor deveria ver por si mesmo como vivemos, nos agarrando nas bordas de Heléboro. A vida de um trabalhador dos esgotos é dura. O garoto havia perdido o tom respeitoso. Mas Quercus não podia se queixar. Sua vida acabara de ser salva. — Nunca mais irei criticar um encanador. A maneira como você lutou contra esses dois… — ele fez uma pausa — criminosos foi muito engenhosa! Os dois guarda-costas observaram, espantados, a gaiola de madeira de repente tornar a recuar para o chão, deixando Sálix inconsciente. Flô já havia apanhado uma pilha de guardanapos na mesa para tentar estancar o sangue, embora Sálix não merecesse seus cuidados. Ark não tinha tempo para elogios. — Eu estava trabalhando em um vaso sanitário entupido na casa do conselheiro quando ouvi Grasp conversando com a enviada secreta de Maw. Eles tomariam Arborium e reduziriam o país a uma fábrica de madeira

e gás cheia de escravos. Um choque vinha juntar-se a outro. Quercus correu os dedos pelos cabelos grisalhos, andando de um lado para o outro. A fanfarrice de Alno e Sálix de repente fazia sentido, e o rei estava apavorado. — Esta é uma notícia terrível. Você precisa me contar tudo. Ark olhou para as portas externas, como se esperasse problemas. — Não temos tempo para explicações. Seus assassinos fracassados eram subalternos, mas contam com um grande reforço. Como já ouviu, seu comandante não é mais leal ao senhor. Seu governo deixou o país cair em desordem. — Como você ousa? — disse o rei, com as bochechas coradas de raiva. Os olhos verdes de Ark tornaram-se frios. — Olhei dentro do coração de uma larva gigante, voei nas costas de um Corvo e passei por seus guardas como um fantasma. Eu ouso, sim. — Um frio caiu sobre a sala enquanto as palavras de Ark ressoavam. — Algo verdadeiro se perdeu. O senhor está disposto a lutar para recuperá-lo? O rei cofiou a barba. Quando uma estranha sabedoria brotava dos lábios de um garoto, era aconselhável dar ouvidos. — Fiquei trancado no palácio tempo demais. Talvez eu tenha esquecido o que a floresta significa para todos nós. Tenho sido complacente demais, dado atenção demasiada às palavras e prioridades dos outros. — Quercus controlou-se. — Mas não vou poder consertar as coisas se tudo for perdido esta noite. O que você propõe? Os guarda-costas quase protestaram. O rei buscava a orientação de um simples garoto! Ark não tinha tais escrúpulos. — O senhor deve convocar aqueles que lhe são leais, agora! — Como? — Com toda a autoridade que sua palavra costumava impor. Os fogos de artifício acabaram e um massacre está prestes a acontecer se não o impedirmos!

Quercus era o melhor líder que tinham. Agora era com ele. O rei estava velho, mas uma nova energia de repente correu como seiva por suas veias. — Somos dendrianos, certo? — A seu serviço, meu soberano! — disse cada um dos guarda-costas. Assim estava melhor. — Bem, também estou às suas ordens! Ark juntou-se a eles. O plano podia ser dele, mas, sem Quercus, todas as suas boas intenções iriam murchar como folhas caídas. — Eu também estar! — disse Flô, puxando seus companheiros. — Nós, Exploradores das Raízes das profundezas, ser leal até o fim. Quercus sentiu no peito um orgulho como não sentia havia anos. Ele tirou a espada da bainha e dirigiu-se à porta. — À batalha, então!

À batalha Quando o rei Quercus abriu as portas duplas que davam para o pátio interno, a cena com que se deparou encheu seu coração de confusão. A celebração prosseguia como se nada houvesse. Lordes, damas, duques e duquesas tagarelavam felizes, banqueteando-se com tudo que a floresta e a lavoura tinham a oferecer. Por que deveriam se preocupar quando estavam cercados por protetores bem-armados, trazidos de volta ao castelo diretamente dos Arsenais da Zona do Musgo? Aqueles mesmos protetores, o rei via agora, tinham as armas em punho, prontas para cortar os risos pela raiz. A queima de fogos de artifício finalmente chegara ao fim. Aquela era a única chance do rei. Será que seu povo ainda confiaria nele? — Às armas! — Quercus gritou do outro lado da praça e centenas de rostos confusos voltaram-se para ele. — Às armas! Arborium foi traída! Amigos que haviam crescido com ele examinaram o rosto vermelho do rei, tendo em punho a espada cerimonial nunca antes desembainhada, exceto para sagrar cavalheiros. Aquilo não era uma brincadeira festiva. Grasp arrastou-se para debaixo da mesa na esperança de evitar ferimentos, e Flint, aborrecido por ser descoberto, misturou-se às sombras para lembrar a seus soldados que eles já não eram guarda-costas, mas carniceiros prontos para entrar em ação. Os convidados reunidos viraram-se na direção da colunata que cercava

o pátio. Ouviram-se arquejos diante do súbito aparecimento de lâminas que refletiam a lua cheia. Uma nova colheita, dessa vez de sangue, estava prestes a ser efetuada. Mas a convocação de Quercus momentaneamente deteve o avanço daqueles que deixavam as sombras. O elemento surpresa fora tirado de Flint, embora as probabilidades estivessem com certeza a seu favor. O marquês De-Gall, com um bigode que se enroscava como uma trepadeira acima do lábio, e cabelos mais brancos que qualquer teia de aranha, decidiu que a morte iminente não estava no cardápio. Ele girou subitamente na cadeira, sacando uma espada leve que havia trinta anos não entrava em ação. — Pelo rei! — gritou em resposta. — Por Quercus e Arborium! As damas, normalmente mais preocupadas em empoar o nariz, puxaram punhais delicados e adornados com pedras preciosas de suas bolsas e se prepararam para o que quer que acontecesse. Podiam estar cercadas, mas faziam parte, com muito orgulho, da brigada de caça, capazes de saltar sobre galhos quebrados para caçar raposas-da-lenha. A covardia não fazia parte de sua natureza. Fez-se um momento de silêncio quando os dois grupos se encararam. Uma jovem princesa, de cachos louros brilhantes e com um porquinho selvagem de pelúcia apertado contra o peito, começou a chorar. Os soldados haviam sido treinados para manter a consciência à parte. O choro de uma criança não iria detê-los. Quando o primeiro ergueu a espada para atacar, e enquanto Ark se preparava para dar seu sinal secreto, uma voz estridente soou. — Alto! — O comandante Flint avançou um passo, saindo das sombras diretamente na frente do rei e de seus companheiros. Sua cota de bronze reluzia à luz dos lampiões a gás sobre as mesas e seu visor encontrava-se erguido, revelando uma expressão dura e olhos frios. — Majestade! — Ele curvou-se. — Perdoe-me a intromissão. — Não perdoo nada, Flint. Você foi um amigo em quem confiei.

Realmente nos vendeu para Maw? — A mudança está no ar, majestade! — Flint cuspiu a última palavra. — As pessoas não podem curvar-se diante de você para sempre. A salvo em seu castelo, você não vê o que está de fato acontecendo na floresta. Nós dois sabemos o preço pago pelos últimos vinte anos de paz. E como essa lealdade é recompensada? Baixos salários e alojamentos frios nos Arsenais! Primeiro o garoto com suas críticas afiadas. Agora Flint, incomodando sua consciência como um dente dolorido. Quercus sacudiu a cabeça, as imagens de uma colheita feliz destruídas. Será que ele havia mesmo ficado alienado? Flint continuou, expondo precisamente suas intenções. — Precisamos construir nosso futuro como for possível, na nova República de Arborium. — Você vai fingir que sua causa é justa? O ouro corroeu todo o seu bom senso, homem. — Quercus estava furioso. Havia quantos anos os dois se conheciam? — Honestamente, você acha que Maw vai cumprir as promessas feitas a você? Acredite, assim como estas árvores, eles vão derrubá-lo. — Florestas vazias, palavras vazias — contrapôs Flint. — Peço desculpas pela maneira como as coisas se desenrolaram. No entanto, se você se entregar, prometo que meus homens pouparão seus amigos aqui. — Caso contrário você se livrará de todos nós, inclusive das crianças? — A guerra é dura como o cerne, meu senhor. Nós dois sabemos disso. Por um segundo, pareceu que Quercus estava de fato considerando a oferta. — Não posso concordar com sua exigência, qualquer que seja o custo. Minha dignidade e a de meu povo não permitem isso. — Sim. Foi a resposta que pensei que daria, velho. Boa sorte para todos vocês, então. O visor de Flint desceu com um retinido quando ele sacou a espada. Era o sinal. Flint mergulhou na direção do rei, e seus homens

avançaram, prontos para o ataque. Ark ficou desesperado. Crianças atacadas e feridas? Aquela nunca fora sua intenção. Ele puxou a alavanca escondida na parede mais próxima. Funcionaria? Funcionou. A espada de Flint foi arrancada de sua mão como uma pena e voou na direção da parede, chocando-se contra ela com um clangor. Uma centena de pares de olhos momentaneamente se distraiu. — Maldição! — gritou Flint. Das sombras, Ark quase soltou um grito de alegria. Talvez Goodwoody tivesse razão, e a batalha pudesse ser vencida sem que se derramasse uma única gota de sangue! Talvez ele jamais tivesse de recorrer à ampola com o líquido escuro. O ímã oculto era um bom começo. Flint, porém, era um veterano endurecido pelas batalhas. Contratempos, ainda que inexplicáveis, não iriam detê-lo. Apesar de sua confusão, ele na mesma hora puxou uma faca de osso de um coldre no tornozelo. Seu instinto era bom. Ferro magnetizado não tinha nenhum efeito sobre aquela arma. Ark observou, impotente, Flint avançar na direção do rei. No entanto, o comandante não havia contado com os cortesãos. Eles podiam ser velhos, mas a seiva ainda corria em suas veias. Amavam as árvores como a própria família. — Fui seu instrutor quando você não passava de um garoto de fraldas! — disse um aposentado, bloqueando o caminho enquanto o rei recuava, erguendo sua arma com evidente esforço. O comandante sorriu. — Sim. Foi mesmo, velho! Muito agradecido. — Flint brandiu sua faca em um único e selvagem arco, rompendo veias no braço do velho. O sangue aflorou e a espada agressora caiu. — Sem ressentimentos, hein? — disse ele, cravando-lhe a faca fundo no peito, o que tirou do homem a defesa… e a vida. O corpo desabou no chão, a primeira vítima daquela noite.

Ark se deu conta do quanto fora estúpido. Havia outros ímãs ocultos pelo pátio, mas eles removeriam as armas de ambas as partes. Tanto preparo para aquilo. E aonde fora Flô? Ele sabia que estavam em menor número e sentiu-se oprimido. A batalha havia começado e era injusta desde o começo. O envelhecido marquês De-Gall fez o melhor que pôde, aparando os golpes e frustrando seu atacante, e uma das damas gritou, encantada, quando sua pequena lâmina de alguma forma cortou o pescoço de um soldado surpreso. O homem deixou cair a espada e levou as duas mãos ao pescoço, tentando conter o sangue vital que se esvaía entre seus dedos. Mas esses foram incidentes isolados ocorridos enquanto os homens de Flint pisavam os pratos esmagados, golpeando e apunhalando sem distinção jovens e velhos. Todo aquele tempo, Ark fez o melhor que pôde. Seu espelho portátil foi útil, colhendo a luz da lua cheia lá no alto à medida que ele corria no meio do caos, cegando um soldado após o outro com cuidado até que os cortesãos tivessem tempo para nocauteá-los. A guardiã havia falado sobre o caráter sagrado da vida, mas Ark não tinha poderes para impedir a carnificina. Ele se perguntou por um momento sobre o povo comum, banqueteando-se além dos muros. Entre os ruídos da festa, será que ouviriam os gritos vindos das profundezas do castelo enquanto Arborium era roubada de debaixo de seus pés? Corpos caíam, o sangue misturando-se com o vinho de jarros quebrados. Era mais do que desigual. Aqueles que sobreviviam passavam por cima das mesas na direção da fonte no centro do pátio. O rei estava entre eles, protegido por ora. Mas estavam cercados por soldados que se aproximavam, ávidos como lobos-da-madeira pelo banquete final. — Tudo certo, meus guris? O som, leve e metálico como um sino, foi o suficiente para fazer os soldados pararem por um breve segundo. — Joe? — gritou Ark. — Sim! Meu pequeno Malikum. Você me salvar uma vez, eu só estar

devolvendo o favor! O líder dos Exploradores das Raízes encontrava-se sobre as altas ameias, a túnica branca e o corpo comprido dando-lhe o aspecto de uma aparição espectral. Enquanto ele falava, outras figuras vestidas de branco surgiram. — As larvas gigantes não ser nem de perto tão sórdidas quanto vocês! — Dizer a eles, pai! — concordou Flô, aparecendo ao lado de Joe. Flint fez uma pausa, limpando o sangue de sua faca em um guardanapo. — Um bando de Exploradores das Raízes estrangeiros! Ah, céus, estamos apavorados. Vocês não deviam estar lá fora comendo cogumelos ou sei lá o que mais que vocês, macacos do minério, fazem lá embaixo? — Que bom que você estar apavorado! — gritou Joe. — Preparar-se, rapazes! — Os arpões de repente apareceram, tirados de dentro das túnicas brancas e largas. — Pegar ele primeiro. Joe apontou para um dos soldados de pé sobre as ruínas do banquete prestes a alcançar a multidão em torno da fonte. Ouviu-se um som sibilante, e o homem agarrou o ombro onde um arpão amarrado a uma corda havia se enterrado. O homem soltou um grito de cortar madeira antes de desabar no chão, inconsciente. — Este ser o ponto! — gritou Joe. — Agora ser a vez do resto de vocês, seus nabos superalimentados! Sua intenção era matar de medo os homens de Flint. E quase funcionou. Os soldados vacilaram em suas fileiras, apavorados com as presenças altas, pálidas e fantasmagóricas, chocados em ver o colega eliminado tão facilmente. Mas Flint havia se criado pelos ramos-via, onde o inesperado se transformava em banquete. — Arqueiros! — gritou, sua voz soando como um galho se quebrando. E antes que os Exploradores das Raízes pudessem sequer puxar o gatilho dos outros arpões, flechas voaram das sombras com precisão mortal. A altura dos Exploradores das Raízes dessa vez era uma desvantagem,

apresentando grandes silhuetas delineadas. O alvo perfeito para arqueiros treinados. Ark não tinha tempo para agir, então enviou um pensamento impossível para as árvores. Poderiam aqueles gravetos afiados lembrar que um dia tiveram vida e fizeram parte do coração vivo de uma árvore? Sua mente concentrou-se na ideia. — Caiam! — sussurrou ele, enviando suas palavras direto para a saraivada mortal. Lá dentro, no fundo da madeira morta, uma centelha se acendeu. E as setas vacilaram em seu intento. Se aquilo era uma prece, a resposta viera. Ark concentrou-se com todo o seu coração. Ele não deixaria seus amigos serem derrubados feito milho nas lavouras suspensas! As flechas concordaram, desviando-se de seu curso, ignorando os desejos dos arqueiros que as lançaram. Todas, exceto uma que estava muito próxima de seu alvo, muito certa de seu objetivo. — Nããããoo! — gritou Ark, finalmente caindo em si quando seu velho amigo cambaleou ligeiramente, o galho afiado projetando-se de sua pele. — Não! — tornou a gritar Ark das florestas, treinado por Corvena, incapaz de deter uma simples flecha quando mais importava. — Eu estar ferido! — grasnou Joe com um sorriso confuso ao tombar para a frente, a túnica branca tingindo-se de vermelho. Ele mergulhou direto, morrendo no instante em que as últimas palavras deixavam seus lábios.

Morte de um explorador Petrônio ouvira o distante tac-tac das pás da hélice começando a girar. Ecos de botas ressoavam pela câmara interna, no coração da cápsula de voo. Ele se perguntara o que estaria acontecendo. O silêncio reinava havia horas, embora o banquete já devesse ter começado. Fenestra o mantivera ocupado na despensa, pedindo-lhe que conferisse os números mais uma vez, tirandoo do caminho. Mas ele conseguira surrupiar um fone de ouvido sobressalente e o sintonizara na frequência certa. Usar toda aquela tecnologia já lhe parecia natural. O garoto podia perceber o pânico na voz de Fenestra ao colocar suas forças em alerta. O transporte já acelerava na direção do alvo. Será que o golpe dera errado? Do lado de fora daquela câmara estanque os homens se preparavam, e mais uma vez ele, Petrônio, se via preso à margem. Heckler enfiou a cabeça pela porta. — Eu disse a ela que isso não ia dar certo. Cara, esses dendrianos são loucos! Eu sabia que ia dar nisso. Petrônio percebeu um galho projetando-se da túnica do homem. — O que é isso? O rosto de Heckler ficou vermelho. Ele olhou ao redor, nervoso, escondendo o galho. — Não conte a lady Fenestra, mas esse belo galhinho vale mais do que

meu soldo. Cada homem tem de cuidar de si mesmo, não é? Ele piscou para Petrônio. — Exatamente! — disse Petrônio, com súbita inspiração. E isso era exatamente o que ele estava prestes a fazer. — Alguma coisa está errada com as reservas de vacina. Ele precisava atrair a atenção de Heckler. Se essas reservas se esgotassem, todos os soldados de Maw seriam cadáveres ambulantes. — Aqui — disse Heckler, abaixando a cabeça para passar pelo alçapão —, deixe-me ver isso. Petrônio saiu do caminho para deixar o homem inspecionar a porta de vidro do freezer e ergueu silenciosamente um disco rígido novo em folha de uma prateleira. Heckler inclinou-se para a frente. — Para mim parece tudo certo! — E vai mesmo ficar tudo certo! — disse Petrônio, batendo a borda afiada do equipamento na cabeça de Heckler. O homem soltou um gemido e em seguida desabou no chão. — Desculpe! — disse Petrônio. — Sem ressentimentos. Estavam do mesmo lado, afinal de contas, ainda que o sujeito tivesse atirado nele uma vez. A escolha de Heckler era oportuna. O homem gostava de umas cervejas, daí sua barriga combinar com a de Petrônio. O traje preto não era exatamente de seu tamanho, mas o garoto esperava que ninguém percebesse. Depois de despir o soldado inconsciente, ele o amordaçou e amarrou. Cinco minutos depois, o que parecia um dos homens de Fenestra silenciosamente trancava a câmara atrás de si e ajustava os óculos de proteção infravermelhos no rosto. — Aterrissamos em dois minutos. Coloque o cinto de segurança, seu tolo! — rosnou uma voz atrás dele. Petrônio quase pulou para fora do disfarce. Mas tudo que Fenestra viu foi um assecla pronto para o combate, disposto a obedecer às suas ordens. E

aquela, afinal, era a única intenção dele. A adrenalina corria feito seiva por suas veias. Finalmente, todo o seu treinamento tinha um propósito.

***

Ark correu até o corpo caído, sabendo que era tarde demais. Era uma terrível ironia, o mestre morrendo por causa da flecha com ponta feita do metal que ele havia escavado das raízes profundas. Que poder seria capaz de trazer os mortos de volta à vida? Corvena havia partilhado segredos sombrios, mas nenhum para aquela tragédia. Onde estava Flô? Ark vasculhou as ameias ao correr, desesperado por um sinal. Soluços altos de repente cascatearam pelo salão quando Flô lançou os longos braços sobre as ameias, tentando alcançar uma vida que já havia partido. — Abaixe-se! — gritou Ark. — Vão matar você também! Enquanto Ark falava, outra saraivada de flechas atravessou o ar. Mas não restava a Ark nenhuma força para detê-las. Apesar de sua tristeza, Flô abaixou-se no último segundo, as flechas soltando faíscas ao baterem na pedra sólida. Os Exploradores das Raízes que restaram haviam aprendido uma lição fatal: aumentar o número de baixas não resolveria nada. Ark agora encontrava-se sobre o corpo de Joe, caído no chão, os olhos procurando freneticamente algum sinal de vida. Ele ajoelhou-se, estendendo as mãos, sentindo apenas o calor que ia aos poucos deixando o corpo do amigo. Os olhos de Joe arregalaram-se como os de um santo, o sorriso aberto no rosto do Explorador das Raízes passando a mensagem de que uma boa morte não devia ser temida. Ark agarrou uma toalha de mesa, derrubando taças e copos, e a estendeu gentilmente sobre o corpo como

uma mortalha. Batalhas, porém, não são suspensas por causa de uma única morte. Antes que a saraivada de flechas seguinte fosse disparada, os Exploradores das Raízes tomaram as rédeas da luta. Trabalhando em equipes, lançaram uma pilha de folhas direto no pátio. Pelo menos parecia uma pilha de folhas, mas o escárnio dos soldados transformou-se em horror quando perceberam que aquelas folhas haviam sido habilmente costuradas. Cada construção de asa dupla suportava o peso de um Explorador das Raízes. Aqueles que viviam nas profundezas das árvores agora desciam voando para o pátio, tendo em mente apenas a vingança e o ferro mortal que saía de seus arpões. — Por Joe! — gritaram. — Nosso amigo e parente! Os homens de Flint começaram a cair como vítimas da peste. O comandante estava furioso. Ele virou-se para o garoto que era obviamente o responsável por aquela virada da maré. — Crianças e Exploradores das Raízes? Vocês acham que vão conseguir vencer os Arsenais do Norte? — Sim! — respondeu Ark, afastando-se de Joe. — E agora é a minha vez de lidar com você! — Ameaçado por um garoto que nem barba tem. Que engraçado. — O comandante curvou os dedos, chamando dois de seus homens que estavam ali perto. — Matem-no. Quando Ark chegou à Floresta dos Corvos, Corvena também tentou fazer pouco caso dele. Naquela ocasião, ele era um garoto assustado. Agora estava furioso, uma verdadeira força da natureza, com unhas e dentes. Dois soldados o cercaram. — Não gosto nadinha que você fale com nosso chefe assim! — rosnou o primeiro. — É desrespeitoso, sabe? — disse o segundo. — E quem desrespeita nosso chefe precisa ser punido! Ark olhou à sua volta. A batalha seguia a todo vapor. Ele viu o rei encostado na fonte, o suor porejando no rosto, os olhos brilhando. Corpos

espalhavam-se pelo chão feito palha. Exploradores das Raízes mergulhavam como andorinhas, alguns atingidos por flechas, oscilando sobre a borda e despencando na floresta, outros indo bater nas fileiras cerradas de arqueiros, causando devastação. Ele tinha a própria luta para travar. Os homens se aproximaram, prontos para acabar com o arrogante nanico. — A mudança vem em espiral — disse Ark. Era um aviso que os homens deveriam ter escutado. — Do que você tá falando? — perguntou um deles, confuso. — A mudança vem em espiral agora! Ark bateu o pé com força no chão diante dele. Tanto suas palavras quanto a engenharia dos Exploradores das Raízes foram precisas quando uma porta de alçapão foi aberta por uma mola comprimida. Infelizmente para os dois soldados, eles se encontravam bem em cima dela. Como os Exploradores das Raízes, eles voaram. Diferentemente dos Exploradores das Raízes, eles não tinham o benefício das asas ao baterem com um ruído horrível na lateral das ameias. — Desculpe a falta de barba! — disse Ark ao se voltar e caminhar na direção de Flint. O comandante pareceu preocupado pela primeira vez, mas então sorriu. — Você é esperto, garoto. Sou obrigado a reconhecer. E seus amigos parecem ter o controle. No entanto, nunca se sabe o que está atrás de você. — Flint apontou, prestativo, para trás dele. Enquanto todos os olhos se encontravam focados no truque de Ark com a mola, um dos soldados havia rastejado como uma cobra pelos montes de corpos, passando por debaixo da mesa e seguido direto para a fonte. O soldado agora levantava-se de um salto, despachando o guarda-costas mais próximo do rei com um soco no pomo de adão que lhe comprimiu a traqueia e deixou-o sem ar. Então uma faca reluziu, surgida do nada. A mão calosa segurou a cabeça coroada do rei, e a outra descansou a lâmina facilmente no pescoço de Quercus.

— Parece que chegamos a um impasse! — disse Flint. — Os repulsivos Exploradores das Raízes podem vencer, mas se sua preciosa majestade for despachada, todos perdem. Ark estava aturdido. A morte de um dendriano em troca de toda a Arborium? Quercus podia não ter sido o melhor dos reis, mas era o símbolo pelo qual lutavam. E aquela vida estava agora em suas mãos. — Que bom que está refletindo. Diga a seus amigos que parem agora, e deixaremos Quercus ir para o exílio. Sou um homem da razão. Talvez eu até consiga persuadir meus colegas a não matar mais nenhum dos pirralhos de luxo da corte. Ark olhou sobre os ombros de Flint e viu a princesa de cachos dourados deitada no chão, como se dormisse. Seu porquinho selvagem de pelúcia estava rasgado, o enchimento espalhado sobre o vestido. Flint era repugnante, e seus seguidores, um fungo venenoso. — Ignore as palavras dele! — disse o rei quando a faca beliscou seu pescoço e um filete de sangue escorreu. — Minha vida não significa nada. É o reino que importa. — Cala a boca! — rosnou o soldado. — Não, sargento. As palavras dele soam bastante nobres. Nada como uma causa perdida para nos fazer sentir nostalgia. — Flint voltou-se para Ark. — Ande, preciso de uma resposta. Meu tempo é precioso. Um grito súbito, destinado a explodir tímpanos, desviou a atenção de todos eles. Ark estava chocado. Ele reconheceria em qualquer lugar a boca que formou aquele som horrível. Afinal, crescera com ela. Normalmente, aquele era o prenúncio de pirraças, mas hoje era o canto de uma sereia da esperança. O grito cessou abruptamente. Todos os olhos se voltaram na direção de sua origem, escondida atrás de uma porta dupla no canto do pátio. O eco morria quando a porta se abriu de supetão e uma saraivada fedorenta irrompeu por ela, apontada diretamente para a fonte. — Seu grito vale por toda a Arborium, Shiv. Muito bem! Isso mesmo,

Fleuma! Boa pontaria, Bile! — soou uma voz familiar enquanto um jato de esgoto não adulterado atingia diretamente a cara do soldado que ameaçava o rei. — Arrgggh! Ele cuspiu, soltando a faca e escorregando na imundície antes de cair de cabeça nas tábuas. Infelizmente, o efeito respingo significava que o rei e seus últimos e bravos defensores não estavam mais vestidos com seda e veludo. Seus mantos exibiam agora um lindo tom de marrom. O rei tirou vantagem da surpresa, pegando a faca caída do soldado e pisando não muito delicadamente no pescoço de seu quase assassino para impedi-lo de se levantar. Os olhos de Flint quase saltaram das órbitas, seu cérebro tentando reformular uma reação. — Estou muito atrasado? — ressoou a bem-vinda voz. Ark quase soltou uma gargalhada. — Mucum, você está sempre atrasado, mas é muito, muito bem-vindo. Shiv está bem? — Você ouviu a menina. — Nós todos ouvimos! — gritou o marquês De-Gall. — Muito bem. Pensei que vocês poderiam tá na caca. Agora tão mesmo! O cheiro não é muito agradável, mas um garoto tem que fazer o que precisa ser feito! — Mucum empurrou com força e o imenso canhão de caca surgiu rolando, manejado dos dois lados pelos antigos colegas de Ark. — Achei que as lavouras suspensas já tinham fertilizante suficiente. Um pouco de adubo faria bem a esses bandidinhos, se cês me entendem! — Esse ser meu garoto! — cantou uma voz vinda dos parapeitos. — Eu sempre saber que você ser o mais bravo! Mucum não pôde deixar de sorrir. Ao entrar, a visão de Joe esparramado no chão quase o havia paralisado. Ele tinha rapidamente examinado os rostos dos outros Exploradores das Raízes mortos espalhados pelo pátio, sentindo-se culpado pelo alívio que sentiu de não encontrar

aquele que procurava. — Flô! Eu finalmente vou dar um beijo em você até dizer chega quando a gente acabar com isso! — Isso ser muito româââântico! — ela suspirou. — Ser melhor continuar agora. Até mais tarde, eu rezar! — É uma promessa! Dessa vez, ele a cumpriria. Flint sentiu-se envergonhado por ser derrotado por um bando de garotos comuns. — O que acham que estão fazendo? — rugiu para seus homens. Primeiro, eles tiveram de enfrentar criaturas brancas e esquisitas que achavam que podiam voar, depois um garoto que lançava seus homens no ar. Agora, os trabalhadores do esgoto haviam se insurgido contra eles. Para completar, os poucos que ainda tinham um coração debaixo da cota de malha quase suspiraram com o breve diálogo entre Mucum e Flô. Flint sabia que estava prestes a perder o comando. Tudo que lhe restava era a lealdade de seus homens e seu orgulho. — Vocês vão ser derrotados por simples crianças? Seu líder tinha razão. Eles eram crias dos Arsenais. Seu trabalho era mutilar e matar para quem lhes pagasse mais por aquilo. Quando Flint gritou “Quero todos mortos!”, eles compreenderam a ordem. Mas o desejo de Flint não seria facilmente atendido. Quando os homens deixaram suas lâminas conduzirem-nos de volta à batalha, Mucum assumiu o controle de seu minúsculo, porém eficiente, grupo. Esguicho operava a esteira rotativa no canhão, girando uma roda que disparava um jato constante de líquido tal qual um gêiser, aspergindo as galerias em torno do pátio e abatendo os arqueiros um a um. Mucum foi atingido no braço por uma flecha, mas simplesmente quebrou a haste e continuou gritando instruções. Os Exploradores das Raízes restantes aterrissaram no meio da ação e se livraram das asas, ajoelhando-se para disparar uma teia mortal de arpões

contra os poucos arqueiros que não haviam sido derrubados pela força do canhão. Ark observava, espantado. Sentia-se insignificante diante dos amigos, que arriscavam tudo. Com a ajuda deles, a revolta poderia ser sufocada. O rei havia recuperado a força, decidindo que a misericórdia não era uma possibilidade para o soldado preso debaixo de seu pé. Pisou com mais força, quebrando o pescoço do homem, então saltou à frente, rugindo como um urso, sua faca cortando o ar e a carne de qualquer soldado infeliz que se aproximasse. Era uma derrota. Flint recuou como um animal ferido, vendo todos os seus melhores planos darem errado. Onde estava o covarde Grasp? E será que Maw abandonaria seu golpe assim tão facilmente? O canhão de caca secou, o tanque debaixo do castelo que o alimentava agora vazio. Mucum não se deixou perturbar por aquela mudança nas circunstâncias. — Venham, garotos, vamos terminar de limpar essa bagunça! E tendo apenas seus punhos robustos como armas, ele entrou na batalha, brandindo os braços fortes como se fossem um par de espadas. Nem mesmo Esguicho demonstrou medo, correndo de um lado para o outro como um esquilo a fim de desequilibrar os homens de Flint, fazendo-os cair bem no caminho dos arpões ou dos socos esmagadores de Mucum. Por fim, um silêncio doentio caiu sobre o pátio. Os homens de Flint encontravam-se todos no chão, mortos ou feridos. Os arcos espalhavam-se pela galeria como folhas caídas; os dedos dos arqueiros nunca mais puxariam suas cordas, agora crispados na rigidez da morte. Ark estava bem diante de Flint. — Vou acabar com você agora. Flint elevava-se acima do garoto, o último traidor ainda de pé. — Você não tem armas. Eu não tenho medo. — Mas minhas palavras podem convencê-lo — disse Ark. — Ajoelhese.

O comando foi suave. Ele havia aprendido bem os ensinamentos de sua verdadeira mãe. E mães lutariam até a morte para proteger seu território. — Você quer que eu me curve? Creio que não! A arrogância ainda marcava as feições de Flint: o maxilar projetado, o desafio nos olhos cinzentos. — Ajoelhe-se! — repetiu Ark. Não iria tolerar mais nada dele. Quando seus olhos se encontraram, o poder da floresta fluiu entre os dois, envolvendo o corpo de Flint, forçandoo a cambalear enquanto cada grama de força de vontade era posto à prova. No entanto, com o tempo, uma árvore quebra uma pedra tão facilmente quanto um cinzel. Contra a vontade, os joelhos do comandante se dobraram e ele desabou no chão. O rei observava, estarrecido com a facilidade com que Ark dobrava aquele homem antes orgulhoso, transformando-o em uma trouxa de músculos trêmulos. — É preciso fazer isto? — Ele deu um passo à frente, tentando intervir. — Vamos expor sua traição em um julgamento. Esse é o costume dos dendrianos. — Sinto muito, vossa majestade. Mas no momento em que seu confiável colega concordou com a trama da sua morte, seu caminho foi definido. — Ark lembrou-se de um nervoso aprendiz de encanador fugindo do perigo como um coelho. Aquele jovem Malikum não passava agora de uma lembrança nebulosa. — Bem, vou dar ao comandante uma última chance de misericórdia. Todo aquele tempo Flint manteve-se de quatro no chão coberto de sangue, como um animal ferido. Seus lábios tentavam formar palavras, mas o poder hipnótico de Ark impedia qualquer reação. — Você pedirá perdão a seu rei e ao povo que confiou a você sua proteção! Cada palavra era como uma bolota de carvalho caindo e instantaneamente se enraizando no solo escuro da mente de Flint. Cercado

por uma legião de cadáveres, Flint mordeu com força os lábios até que o sangue escorreu por seu queixo. Se ele se pronunciasse e admitisse seus crimes, o garoto louco o deixaria viver. Mas não era assim que um líder agia. Ele não se submeteria. Ark sabia exatamente qual seria a resposta do homem. — Você… fará… o que a floresta deseja! E agora era Ark que se elevava acima de Flint, cada sílaba martelando no cérebro do homem. Os olhos de Flint reviraram. Estava perdendo tudo. Em sua mente, lingotes de ouro despencavam pela borda do caminho como folhas, fora de seu alcance para sempre. Não fazia muito tempo, tudo parecera tão fácil… Seus lábios se separaram quando sua mente enfim sucumbiu. — Não… rei… Arborium… Humffff. As palavras seguintes foram ininteligíveis. Um fio de espuma escapava pela lateral de sua boca. Ark virou-se de costas e inclinou a cabeça na direção de Quercus. — A morte é uma grande amiga se comparada ao que fará companhia à mente deste traidor pelo resto de seus dias. Mas, apesar da força de sua fala, o corpo todo de Ark tremia. Sentia o gosto da bile subindo até a garganta, seu estômago se retorcendo. Foi preciso lançar mão de tudo que lhe restava de forças para não vomitar ali mesmo. O rei não conseguia falar, embora suas mãos apertassem o punho de uma espada ensanguentada cravada na madeira. Como ele poderia julgar um garoto que salvara tanto sua vida quanto o país? Dois dos homens de Quercus, temerosos, deram a volta na ponta dos pés em torno de Ark, pegando o corpo que um dia pertencera ao comandante Flint e amarrando as mãos do homem derrotado às costas. — Acabou — disse Ark, seu coração enchendo-se de pesar enquanto examinava o tapete de cadáveres no pátio. Um cansaço terrível tomou conta dele. Fizera como a guardiã pedira,

não matando ninguém com as próprias mãos, embora não tivesse conseguido impedir os Exploradores das Raízes de executar sua vingança. Mas curvar a mente de um homem como se fosse uma árvore nova e então quebrá-la? Se era aquilo que a liderança exigia, ele não queria tal coisa. Sentia-se tão vazio quanto a cena sombria que se apresentava diante de todos. A batalha tinha acabado, mas aquela era a mais triste das vitórias.

Uma reviravolta

Um som encheu o ar noturno, ecoando no pátio devastado pela batalha. Em algum ponto lá em cima um pica-pau gigante martelava em galhos invisíveis, num ritmo repetitivo. O ruído era tão alto que todos os sobreviventes cobriram os ouvidos com as mãos. Ao mesmo tempo, um vento forte soprou, levantando capas, remexendo os cabelos de corpos caídos e borrando a visão daqueles que ousaram olhar para cima. Um fino fio negro desceu sibilando do céu. Em sua ponta vinha o que parecia um Mateiro Sagrado com traje completo, descendo em um ritmo absurdo. Antes que o rei pudesse sequer falar, a figura pousou e puxou para trás o capuz. — Meu senhor. Não creio que eu tenha tido o prazer… Apesar do barulho que vinha do alto, a voz soou acima dele clara como vidro. Era muita coragem, pensou Ark. Apesar de já estar tudo decidido, sua arrogância não havia perdido nada de seu brilho natural. Quercus estudou a mulher de pé diante dele, as botas revestidas de pele descansando nas tábuas sujas de sangue. — Lady Fenestra! — gritou ele acima do barulho das pás da hélice. — Enviada de Maw, presumo? A senhora veio se render agora que se encontra cercada?

O traço firme de seu sorriso era perturbadoramente confiante. — Ah, deixe-me assegurar-lhe uma coisa: se olhar através do vidro da forma correta, verá que a situação é justamente a oposta, meu querido e fraco reizinho! Estavam todos fascinados pela performance dela. Seria louca? As nuvens, porém, clarearam, revelando a fonte daquele ritmo atordoante. Uma forma negra encobria o céu, e de sua barriga mais fios escuros surgiam como teias de aranha instantânea. Cada um carregava uma figura vestida de preto, embalando nos braços o perigo reluzente. Pontos vermelhos de repente apareceram como pequenos vaga-lumes pairando sobre o peito dos homens do rei. Instintivamente Ark soube o que estava prestes a acontecer. E tudo que podia fazer era assistir em horror absoluto. — Acho que agora seria um momento tão bom quanto outro qualquer. Mas, por favor, poupem o rei. A enviada estalou os dedos e vários estampidos simultâneos ecoaram pelas árvores. Os pontos vermelhos brilhantes e vacilantes desabrocharam feito rosas terríveis. O cheiro de sangue os atingiu à medida que, um a um, dendrianos do bem desmoronavam no chão, instantaneamente apunhalados por estilhaços de vidro modificado, sua força vital derramando-se pelo pátio e sobre a borda das imensas árvores para cair na terra muito abaixo em cascatas vermelhas e antinaturais. Ark absorvia várias cenas ao mesmo tempo. Lá em cima, nas ameias, outro grito feminino soou quando Flô foi lançada para trás por um único disparo. Lá embaixo, no jardim, Mucum havia se escondido atrás do canhão de caca, e as balas de vidro espatifavam-se inócuas contra a lateral do cano. Esguicho não teve tanta sorte. Como um projétil minúsculo conseguia erguer por completo uma pessoa? Ouviu-se um arquejo e o jovem aprendiz dos esgotos tombou para trás, flácido. Enquanto tudo aquilo acontecia, Ark sentiu o calor em seu peito. Baixou os olhos e viu seu próprio ponto vermelho brilhante zumbindo. No

entanto, Corvena o havia treinado bem. Quando a bala veio em sua direção, ele observou sua trajetória, dividindo-a em milissegundos. Era uma simples questão de dizer àquele produto em alta velocidade de Maw que ele não estava mais em seu caminho. Deu um passo para o lado, permitindo que o projétil perdesse a força e caísse inofensivo, mergulhando na parede de madeira do outro lado. A surpresa estampou-se no rosto do atirador. Petrônio! Como um demônio que nunca desistia, seu rosto gorducho olhava, maligno, na direção de Ark. — Filho da juta! — Foi a única imprecação que lhe veio aos lábios. — Pensei que os Corvos tivessem pegado você! Era raro Petrônio ficar perplexo. Ark não tinha tempo para ressentimentos pessoais. O massacre tinha de ser detido. Seria aquele o propósito do fino apito guardado em sua capa? As palavras de Petrônio eram uma súbita dádiva. Ark levou o apito aos lábios e soprou uma nota de total silêncio. Entretanto, bem além dos picos de gelo, no oco de uma árvore, envolta em galhos que se enroscavam e retorciam como cobras, encontrava-se uma mulher que ouviu a nota, assim como todas as criaturas de que ela cuidava. — Ajude-nos! — murmurou Ark, ao mesmo tempo ciente das lascas brilhantes sumindo com a distância na direção de seus alvos. Se olhar através do vidro da forma correta, Fenestra dissera. Ela não olhara com a devida atenção. Ao permitir o uso de tais armas alienígenas no conflito, a enviada havia perdido a honra e, assim, trazido consequências ainda mais sombrias. Tudo no intervalo entre uma respiração e outra. Maw se encontrava aqui e suas tropas estavam prestes a enfrentar tudo que a Floresta dos Corvos podia oferecer em retribuição. A cabeça de Ark voltou-se para o oeste. Eles vinham como haviam prometido. Agora! A lua foi bloqueada quando o céu de repente se encheu de sombras que grasnavam. Uma massa negra e pulsante, muito mais

ruidosa que a solitária e subitamente vulnerável cápsula de voo. E eram liderados por um pássaro que se elevava no turbilhão. Todos os olhos se voltaram para cima. — Caramba! É o Hedd e a gangue dele! — gritou Mucum. Com todo aquele sangue, era de espantar que não tivessem vindo antes. Mas será que o cheiro os enlouqueceria? Ninguém àquela altura sabia se eram amigos ou inimigos. Ark não tinha tempo para se preocupar com os medos dos dendrianos. Os Corvos de Arborium ainda precisavam de sua orientação. O garoto se conectou com Hedd, sentiu a sagacidade daquela mente selvagem, porém nobre, viu sua intenção, mas temeu pelas consequências. Ele implorou a Hedd que ignorasse seu instinto. O Corvo líder tinha de convencer o restante do bando furioso. Dessa vez, não deviam buscar os feridos, mas aqueles que haviam causado os ferimentos. Como se em resposta, o bando descreveu um círculo e se virou. Por um breve momento viu-se o pânico nos olhos dos soldados. Com seus coletes blindados e visores infravermelhos, tudo que viam era um bando de aves enormes voando em sua direção. Penas contra salvas de tiros em alta velocidade. Fácil! Eles voltaram suas armas transparentes para os céus e dispararam uma saraivada de balas que teria partido ao meio um regimento de dendrianos. E, de fato, muitas das bravas aves caíram naquele primeiro assalto. Ark sentia cada morte como um golpe no próprio corpo. Via os olhos se apagando e, ainda pior, as lembranças de suas longas vidas aladas espalhando-se no ar frio à volta deles. Mas seus companheiros continuavam a voar, astutos e precisos, as garras à mostra para rasgar esses intrusos e transformá-los em nacos de carne. Armas muito mais avançadas do que qualquer coisa que Arborium já tivesse visto batiam retinindo nos galhos-vias e mergulhavam para o chão, girando em círculos como inúteis pedaços de vidro forjado que eram. E quanto às forças militares de Maw? Haviam sido vacinados contra o

gás, mas não havia nenhuma proteção contra bicos como navalhas e garras como foices. — Meus homens! — gritou a enviada, agarrando-se a uma mesa em choque, forçada a ver sua elite selecionada a dedo transformar-se em carne crua. A vitória foi literalmente arrancada dela aos pedaços. Um dos pássaros lançou-se sobre Petrônio, seus olhos brilhantes cientes de que era um prêmio precioso. Petrônio havia finalmente encontrado um páreo para ele. Nenhuma astúcia iria livrá-lo daquele encontro. Ele virou-se para encarar a ave. Que seja. Grasp pai havia se mantido fora da ação até então. Naquele momento, encontrava-se escondido debaixo de uma mesa próxima, vendo com uma clareza terrível o que estava prestes a acontecer. Ignorando anos de egoísmo, ele saiu de seu esconderijo e correu para Petrônio. — Filho! — gritou. Todos aqueles anos o garoto quisera apenas a aprovação do pai. Era necessário aquilo? O cérebro de Petrônio calculou as possibilidades e encontrou uma solução excelente. Ele não cruzaria o rio Estio naquele dia. Petrônio abriu os braços para receber o abraço salvador do pai. Mas no último segundo o empurrou com força, os olhos fixos nos do Corvo. — Pegue esse naco de gordura superfaturada! Sirva-se à vontade! O pássaro que se aproximava foi presenteado com um pedaço ainda mais suculento. Os instintos do animal assumiram o comando. No momento em que Petrônio mergulhava debaixo da mesa para se salvar, seu pai dava um último e gorgolejante grito. O conselheiro Grasp havia cometido o único ato altruísta de sua vida governada pela ganância. Sua recompensa foi uma garra que perfurou seu pescoço e secionou-lhe a traqueia instantaneamente. Tarefa cumprida, a ave voou para apoiar seus irmãos enquanto Grasp caía de joelhos, para em seguida desabar com um baque nas tábuas do chão. Ark olhou para o alto. Um dos Corvos havia se desviado. Ark

reconheceu o padrão das penas em torno do pescoço. Era Hedd. O que ele pretendia? Ah, não! O pássaro voava direto para a única outra criatura que ousava viajar pelo céu. No entanto, aquele inimigo tinha asas de aço. O que um Corvo poderia fazer contra tamanha superioridade técnica? A resposta era óbvia. Não!, gritou Ark, em silêncio e desespero. Hedd lançou de volta um último olhar que continha apenas tristeza. Estou com você até o fim, garoto da floresta. Voltaremos a nos encontrar. Promessa de Corvo. Ark não pôde fazer mais nada. Nenhuma prece, nenhum truque de mágica, nenhuma súplica às árvores para que detivessem a ave. Viu cheio de horror quando Hedd emitiu um único e estridente grito. O ritmo da cápsula de voo falhou. Hedd havia voado direto para as pás da hélice. Ark soltou um grito impotente e lágrimas rolaram por seu rosto. E então o corajoso pássaro se foi, deixando apenas um chuvisco de sangue honesto cascateando até o chão da floresta. Ark cerrou os punhos com força diante da injustiça de tudo aquilo. Por que fazer o certo doía tanto? O monstro de metal estava mortalmente ferido, inclinando-se para o lado enquanto seu curso era desviado para as árvores a leste. Ouviu-se um estrondo, um ruído de chamas que explodiram na noite e foram morrendo à medida que as árvores engoliam seus restos. Tinha acabado antes de começar. Ark postava-se no centro, entorpecido por tamanha coragem, cercado por uma tempestade de penas caindo. No momento em que Mucum saía rastejando de sob as ruínas do canhão e os últimos Exploradores das Raízes cuidavam dos feridos; no momento em que o rei olhava ao seu redor em completa confusão, a dor de eras esculpida em seu rosto; no momento em que Esguicho se virava e vomitava grandes poças de sangue; no momento em que uma criança abraçava a mãe morta e chorava um rio de lágrimas; no momento em que os

Corvos sobreviventes voavam até poleiros próximos para se alimentar da carne de Maw; no momento em que a enviada se erguia, surpreendentemente ilesa entre gemidos e gritos de dor à sua volta, Petrônio aproveitou a oportunidade. Ele saltou de debaixo da mesa direto para seu inimigo mais odiado. — Você! Por que não morre? — ele rosnou. Ark viu o inimigo de infância à sua frente, os olhos inflamados com o calor da batalha. Petrônio não se satisfez com palavras. Seus olhos se dirigiram por um segundo ao homem que um dia fora o comandante Flint. Então agarrou o ombro direito de Ark com uma das mãos enquanto a outra mergulhava fundo na barriga do garoto, em busca de tesouros sombrios. — Não é tão mágico agora, não acha? — zombou ele, recuando um passo para admirar seu feito, ouvindo o satisfatório som da lâmina que cortava. Ark cambaleou para trás, agarrando o punhal enterrado fundo em suas entranhas como se fosse um presente. Tudo era esperado, previsto. Menos aquilo.

O último Grasp Ark se perguntou por que não sentia dor. Morrer era mesmo assim tão fácil? Então ele soltou uma gargalhada. — Corvena disse que fruta era bom para mim! — gritou, histérico. Petrônio estava pasmo. Afinal, tinha acabado de apunhalar o magricela! — Você enlouqueceu? Você deve fazer algumas preces antes de ir ao encontro de seu criador. — Eu já fiz, e elas foram atendidas! Ark puxou o punhal de seu corpo como se fosse uma simples faca em um cepo de açougueiro, largando-a fora do alcance de Petrônio. Então era para aquilo a sacola de maçãs! Como Corvena sabia? Talvez os milagres crescessem, sim, em árvores! A mão de Ark disparou e agarrou o punho de Petrônio. — Não creio que o perdão de Diana vá lhe servir. Perdoar aqueles que nos pisoteiam? É um bom ideal. Mas não dessa vez. E, principalmente, não pelo bem da minha irmã. Ark finalmente soube qual era o propósito da Dádiva do Corvo. Esperava que Hedd ficasse orgulhoso. — Ai! — guinchou Petrônio, sentindo uma súbita picada na palma da mão.

A ampola fora necessária, no fim das contas. Corvena havia falado sobre um presente da morte. Agora estava tudo claro. A pena de Corvo oculta em sua manga servia a seu terrível propósito. Injetou uma única gota de um líquido agora ávido por veias com sangue vivo. — Aprendi muito na escola da floresta. Você supõe que as árvores são tolas, mas elas não são. Petrônio tentou se soltar das mãos de Ark, mas os dedos dele eram como ventosas. Que bobagens eram aquelas que o garoto falava? Tempo demais nos esgotos havia transformado a mente dele em caca. Por que os soldados do rei não o afastavam daquele maníaco? Ele ficaria feliz em ser preso, em alegar a má influência do pai no tribunal. O súbito formigamento em sua mão o distraiu. — Fui advertido sobre o mau uso do poder — prosseguiu Ark. — Mas para tudo existe um lugar e uma hora. Estes são aqui e agora. Os olhos dele também se voltaram para a mão de Petrônio, observando quando os dedos gordos começaram a escurecer, depois a enrugar. Corvena dissera que as árvores haviam se armado. Agora ele sabia como. — Ei! Solte-me! — gritou Petrônio no momento em que uma sensação de intensa e contínua agonia começou a subir por seus dedos, fazendo parecer que estavam sendo lixados de dentro para fora. — Vai acabar logo! As rugas insinuaram-se pela palma de Petrônio e alcançaram o pulso. Ele tentou se mover, mas a mão de Ark o segurava com força ainda maior. Petrônio sentiu medo então. Medo de verdade, pela primeira vez. Sua bexiga não resistiu e um fio morno desceu por sua perna. — Parece… casca de árvore! — ele berrou. — Ah, bom garoto. Você aprendeu direitinho! — sibilou Ark. Era aquilo que a ampola continha: a essência da vida de cada árvore de Arborium. A semente contida naquele líquido era irrefreável. Aquela parte do braço de Petrônio estava se transformando em madeira. Ele podia até ver os besouros e as formigas rastejando pelo que

restava de sua mão e minúsculos brotos se formando na ponta de seus antigos dedos. Logo chegaria ao ombro, seguindo para o coração. E então… — E então — disse Ark —, pelo menos você terá alguma utilidade. Quem sabe uma bela cadeira. Ou algumas tábuas. Adeus, Petrônio! Ark sabia que agora ele já não era melhor que aquele bandido sem consciência. Petrônio, porém, era um parasita que colocava em risco tudo que era bom e selvagem. Ark não tinha escolha. — Dendrianos iludidos! Ainda não fomos derrotados! — gritou Fenestra de repente. O que ela poderia fazer agora? Suas forças haviam sido dizimadas e a líder era uma derrotada tagarelando como louca. Ela voltou-se para Ark. — Vou exibir sua cabeça em um pedestal de vidro. O que você fez com o comandante foi imperdoável! Ark já não tinha medo da enviada. — Não, minha senhora. Foi o comandante quem quebrou todos os laços de confiança. Quanto à sua ameaça, vou esperar ansioso pela tentativa. Aquilo era ridículo: um duelo de palavras com uma mulher derrotada. Ótimo. A mente de Ark agora estava concentrada em outra coisa. Mesmo com o braço se solidificando, Petrônio sentiu a brisa da oportunidade, torcendo para que a enviada pudesse manter Ark falando. Aos seus pés viu uma espada caída. Os dedos enroscados no punho não mais precisariam dela, nem nesse mundo nem no próximo. Mas ele, sim. Petrônio de súbito inclinou-se para a frente e agarrou a espada com a mão livre. A madeira já havia ultrapassado o cotovelo de Petrônio, imobilizando tudo abaixo dele em uma escultura de madeira retorcida. Ele tinha a sensação de que seus tendões estavam sendo partidos ao meio e então refeitos em fibras e lascas de madeira. Um leve gemido escapou dos seus lábios. Ele estava aterrorizado: não diante da morte, mas do que tinha de fazer em seguida. A espada parecia estranha, como se a segurasse com a mão errada.

— Vai me matar de novo? — perguntou Ark. — Não! — gritou Petrônio, a adrenalina disparando por suas veias. Será que ele teria coragem? Só havia uma maneira de descobrir: a espada descreveu um arco rápido, na direção inequívoca de seu braço. — Não! Petrônio gritou novamente quando a lâmina bastante afiada obedeceu a seu comando, cortando a pele, rompendo tendões e atravessando ossos até que nas mãos de Ark restava apenas um membro, metade madeira, metade carne e ossos sangrentos, que já pertencera a Petrônio Grasp. Era difícil dizer quem estava mais chocado. Petrônio oscilou, a espada na mão que lhe restava desafiando quem tentasse se aproximar enquanto o sangue jorrava do coto de seu braço. Ele recuou na direção de Fenestra. — Não se aproximem! — rosnou para os inimigos. Os outros soldados recuaram um passo, quase admirando a louca coragem de um rapaz disposto a decepar o próprio braço para salvar a vida. Agora era a vez de a enviada agir. Ela se encontrava bem ao lado do alçapão cujas portas haviam lançado dois soldados no ar. Uma brisa soprava pelo buraco, adocicando o cheiro já viciado de sangue. Ela estendeu a mão para o garoto e o envolveu quase com ternura nos braços compridos. Então fez uma breve pausa. — Guardem as minhas palavras. Maw irá esmagar seu país minúsculo! Este é só o começo! Então, ela lançou-se pelo buraco criado pela mola do alçapão. E os dois se foram. Mucum correu até lá, mas o buraco os havia engolido como se nunca tivessem estado lá. Os outros soldados já estavam reunidos ali, aborrecidos com o fato de que a líder da revolução tivesse lhes escapado tão facilmente. — Nada sobreviveria àquela queda! — murmurou um deles. Ark andou a passos largos até o local, os olhos aguçados espiando a queda brusca, interrompida apenas por galhos irregulares irradiando como raios em uma roda de carroça. No escuro não podia ter certeza, mas não fora o manto da enviada que ele vira se abrir em torno dela à medida que

eles despencavam? Tanto faz. Agora não representavam uma ameaça. — Você tá bem, amigão? Mucum respirava pesadamente, tentando não absorver a destruição que os cercava. — Acho que sim. Como está Esguicho? Ele já havia carregado o amigo, gemendo de dor, até o local em que o cirurgião do rei havia reunido os feridos. — Vai sobreviver, e com uma grande cicatriz pra provar que é um dos bons. — Ah, ótimo. — É bom ver que você teve uma mãozinha! Ark desviou o olhar para o objeto que ainda segurava. Ele deixou os restos do membro caírem ruidosamente no chão. — Essa é possivelmente uma das piores piadas que já ouvi! Ele fez uma careta. — Bem. Você precisa rir, é sério. Dê o braço a torcer! — Por favor. Pare agora mesmo, senão vou ter que matar você! Uma súbita expressão de pânico surgiu nos olhos de Mucum. — Ah, não. Com toda essa correria, nem pensei nela. Flô? Seus olhos começaram a procurá-la freneticamente. — Eu vi… quero dizer… Ela foi atingida. O rosto de Mucum se contraiu. Ark apontou, e seu amigo correu na direção do fim da galeria no momento em que as portas se abriam e vários Exploradores das Raízes entravam, carregando uma figura de bruços. — Flô! — gritou Mucum, escorregando em sangue, penas e caca ao correr até eles. Os Exploradores das Raízes pousaram delicadamente a figura no chão, e foi aí que Mucum teve a surpresa de sua vida. A garota mortalmente pálida abriu um dos olhos e piscou para ele. — Você se preocupar demais! — sussurrou ela, obviamente sentindo

dor. — Você tá viva! — exclamou ele, ajoelhando-se para segurar a mão dela. — Essa ser uma conclusão muito óbvia! — disse Flô. — Eu pensar que ser bom se nós ferreiros fazer alguns escudos para o corpo. Ora, parecer que eles nunca ouvir falar de tal coisa. Que trabalheira, tentar fazer os ferreiros forjar alguma coisa estranha. Se ao menos mais alguns de meus companheiros usar eles… — Do que você tá falando? — perguntou Mucum. Grandes lágrimas rolavam livremente pelo seu rosto. — Vir cá, seu bobo. Olhar você mesmo! Flô ergueu a túnica branca. — Hã — começou Mucum, ficando vermelho. — Tem certeza de que este é o lugar e a hora certos? — Ah. Vocês, dendrianos, ser um tanto burros às vezes! Olhar você mesmo! — insistiu a garota, tirando um retângulo de ferro que havia embaixo de suas roupas com uma mossa bem marcada no meio. — Aqueles estranhos palitos de vidro não ter muita chance! — Graças a Diana! Ele normalmente não era de muitas preces a Diana, e talvez ela fosse mesmo a avó de Ark morta havia muito tempo, mas os anseios de seu coração haviam sido atendidos. — Eu estar um pouco machucada, porém. Mas olhar o seu braço! Ter uma flecha presa aí! Você precisar de cuidados médicos. Mucum baixou os olhos para a flecha quebrada. No calor da batalha, ele havia esquecido a dor, que agora voltava com força total. — Mas antes que os cirurgiões levar você daqui, você me conceder um único e pequenino desejo? — Qualquer coisa! — disse Mucum, rilhando os dentes para ignorar a dor que latejava em seu braço. — Você fazer uma promessa antes.

— Fiz? Mucum parecia confuso. — Ah, Deusa, salvar nós! Eu precisar dizer com todas as letras? — Hã… Acho que sim… Do que ela estava falando? — Aquele beijo que você ficar de me dar! — Ah. Certo. Isso. Sim. — Mucum tinha consciência de que todos estavam olhando para eles. — Eu preciso? O rosto de Flô murchou. — Só se você querer — respondeu ela baixinho. — Ande logo! — disse um soldado ali perto. — Senão vamos ter de matá-lo para deixar de ser burro. — É justo! E, embora estivesse fedorento e suado e seu braço parecesse que ia cair, ele se inclinou, sentindo os lábios dela cada vez mais perto. — Finalmente! — disse Ark. — Eca! — gritou Shiv, saindo correndo das sombras para se agarrar a seu bravo irmão. Enfrentar ratos raivosos era moleza comparado àquilo. Mas, finalmente, quando seus lábios encontraram os de Flô, Mucum pensou que eles eram mais macios que qualquer cogumelo das profundezas. O beijo foi sincero, verdadeiro e muito molhado. Ouviu-se então um “Viva” que se espalhou dos Exploradores das Raízes para os soldados. Até o rei, que conferenciava com Ark, deu um sorriso. Quando Ark olhou para eles, experimentou uma estranha mistura de sentimentos em seu peito. Deveria estar feliz pelos dois, mas havia uma pontinha de ciúme, embora ele jamais fosse admitir. Flô finalmente separou-se de Mucum mais com um soluço que com um arquejo de alegria. — Ah! Eu ser uma furadora de túnel e comedora de fungos egoísta! — Ela de repente se lamentou. — Tudo que eu querer é um pouco de

felicidade. Tola, tola que eu ser! — Ela batia no próprio peito ao se voltar para o chão, na direção de uma figura caída. Uma figura que nunca mais piscaria, nem faria piadas, nem chamaria a atenção dela novamente. — Meu pai não ter essa sorte! A desgraça estar aqui, enraizada em meu coração murcho! Mucum agarrou a garota e a apertou com força nos braços fortes, embalando-a. Ela estava certa. Havia muitas outras famílias naquela noite que dariam início à escura travessia do luto. E tudo por causa da cobiça de um império distante que ainda não tinha sido satisfeita.

Um visitante inesperado Ark era bom em prender a respiração. Às vezes havia mexilhões para pegar no fundo da piscina natural em que nadava. Era uma competição entre os meninos. Quem conseguia mergulhar os mais de cinco metros até o fundo pela borda de musgo escorregadia e ficar mais tempo lá embaixo? A piscina, lá no alto das árvores, era alimentada pelas raízes quase dois quilômetros abaixo, e quando a água subia, carregava com ela os esporos dessas saborosas criaturas. O truque era retirar os mexilhões fixos no fundo, usando os dedos como pente, antes de jogá-los em uma rede. Assim que voltava à superfície, puxando o ar, era hora de contar a coleta. Quem tivesse mais mexilhões ganhava, e Ark ainda estava invicto. O sol brilhava quando ele rompeu a superfície, ondulando a água. Já havia trechos nus nas árvores, nos locais onde as folhas haviam caído. As que ainda restavam eram douradas, quase transparentes. E havia cavidades onde rendas de gelo embelezavam as sombras. Tudo estava mudando. — Você é maluco! — disse Mucum, sentando-se na borda da piscina, beliscando as últimas amoras. — Água fria me dá arrepios! — Esse é o objetivo! O corpo inteiro de Ark formigava, ele sentia o calor na pele. Nada jamais acabaria com o fedor da batalha, o olhar patético do comandante quando ele acaba com sua lucidez. Ark agira certo? De súbito ouviu uma voz tranquilizadora.

— Não. O que você fez foi forjado com a justiça necessária. Ark olhou em volta e viu uma lebre-das-alturas empoleirada em um galho próximo, a cabeça inclinada para um lado, observando o garoto na piscina. Suas orelhas castanhas tremeram como um par de antenas, e então ela saiu saltitando e desapareceu na floresta. Ark sorriu. Devia estar imaginando coisas! Mas ao andar dentro da água sentiu-se limpo, revigorado pelas árvores, seus olhos abarcando o rico azul do céu acima dele. A fogueira já estava acesa e alimentada, protegida por pedras em um círculo cavado à beira da piscina. Já havia tido muito drama nas últimas semanas sem que ele precisasse atear fogo à floresta. Ark jogou a bolsa molhada para Mucum e continuou a atravessar a água. — Você vai entrar, Shiv? Shiv molhou os dedos dos pés na borda e deu um grito. — Está gelada. Muito gelada. Meus pés não gostam dessa água horrível! Desde a batalha, todas as vezes em que via Mucum, ela o seguia como uma ovelha nas lavouras suspensas. Mucum nunca tivera uma irmãzinha de consideração antes e, apesar das pirraças regulares, ele com certeza sentia muito carinho em relação àquele gravetinho. Flô, que cortava cogumelos de raiz, ergueu os olhos. — Eu achar que estar me acostumando com toda essa luz do dia. Ser gostoso na minha pele, eu achar. — Você está linda como sempre! — disse Mucum. — Eu adorar um bom elogio. Ser o melhor alimento de todos! De repente ela se calou e a lembrança de seu pai nublou a cena. — Seu pai ia querer que você fosse feliz, né? Mucum fazia o melhor que podia, mas um monte de palavras não iria apagar o que ela trazia no coração. Ela assentiu, enxugando uma lágrima fugaz. — Bem, a gente fazer um bom banquete de cogumelos e mexilhões. Ser muito gostoso. Vocês todos estar com fome?

— Morrendo! — responderam em coro. — Ai! — gritou Flô, deixando a faca escorregar. Ark viu uma brilhante gota de sangue formar-se na ponta do polegar dela. Por alguma razão, aquilo o deixou inquieto e trouxe lembranças da batalha. Segundos depois, quando ele finalmente saiu da piscina e sentou-se na borda para se secar, viu a água ondular e sentiu uma brisa despentear seu cabelo. Então o sol foi eclipsado por uma sombra negra e emplumada. — Ah, não! — gritou Ark quando um Corvo imenso, com as garras estendidas, começou a descer na direção deles. A história se repetia. Ele não tinha tempo nem mesmo de enviar seus pensamentos, de tentar desviar aquela ameaça demasiado rápida e instintiva. Quando Shiv abriu a boca para gritar, Flô ergueu os braços para se defender e Mucum correu na direção da namorada para protegê-la, a ave se aproximou… Ark fechou os olhos, relutando em ver a amiga ser levada do galho. Em vez do grito, ouviu-se um bater de asas e depois o silêncio. Ark espiou pelos dedos e viu um Corvo equilibrando-se no galho-via, perto da fogueira. Ele arrumava as penas negras já lustrosas. — É esse o tipo de boas-vindas que recebo? Quatro rostos em choque olharam a figura deslizar das costas do Corvo. Roupas pretas e pele escura ofereciam a camuflagem perfeita. Era como se parte do Corvo tivesse se soltado e ganhado vida. — Corvena? — disse Ark. Ele ainda não conseguia chamá-la de mãe. Era um passo muito grande. Mas por que ela deixara a Floresta dos Corvos? — Acho que ainda tenho esse nome! — ela replicou. Fez-se um silêncio constrangido. Mas de repente Corvena percebeu que não podia se esconder por trás de sua costumeira altivez. Então inclinou-se e agarrou Ark para lhe dar um abraço apertado.

— Muito bem, meu Ark! — sussurrou para que apenas ele ouvisse. — Eu sabia que você conseguiria. Ark fundiu-se nos braços que haviam mantido sua terra inteira por tanto tempo. Experimentou uma sensação de segurança, breve demais, porém. Alguns segundos depois ela o afastou delicadamente e empertigou-se para se tornar novamente Corvena, Rainha dos Corvos. — Estou sentindo o cheiro de comida boa sendo preparada. Posso me juntar a vocês? — Você assustou a minha garota! — disse Mucum. — Ah. Briguento até o fim. Só podia ser você, companheiro de Arktorious. — Sim. Bem. Podia ter avisado a gente que ia aparecer! — Perdoem-me. Tantas coisas aconteceram, e eu precisava cuidar da minha família de penas. Os Corvos haviam sido dizimados. Era uma lembrança sombria para todos. Corvena exibiu um sorriso corajoso. — Mas eles vivem e vão se reproduzir novamente, embora eu sinta muito a falta de Hedd. Ark sentiu o estômago se contorcer. Quando Hedd o arrebatara de Petrônio, o Corvo era um inimigo. No fim, passou a ser muito mais que um companheiro respeitado. Ele ainda se perguntava o que Hedd quisera dizer ao prometer que se encontrariam novamente. — Você irá descobrir — sussurrou Corvena, em resposta aos pensamentos dele. — Hedd era do bem — disse Mucum. — Foi preciso coragem para derrubar aquela máquina voadora. — Sim! — Corvena suspirou. — Foi mesmo. Por falar nisso, este é Hedd, filho de Hedd. A ave olhou para eles e então seus olhos encontraram os de Ark, que

imediatamente sentiu a dor do Corvo e o orgulho que tinha do pai. O garoto enviou pensamentos de gratidão silenciosa pela fatal bravura de Hedd. Corvena olhou ao redor. — Faz muitos anos que não saio do que vocês, dendrianos, chamam de Floresta dos Corvos. Há uma semana eu não poderia ter feito essa viagem, mas minha força está retornando. Acho que, graças a vocês, este país além do meu ninho parece diferente, menos poluído com pensamentos de traidores. — Ela olhou para o reflexo das árvores e do céu na água, e então os estudou, um de cada vez. — Como estão todos vocês? Ela sentou-se de pernas cruzadas na madeira, as anáguas pretas espalhadas à sua volta, criando sua própria piscina de penas. Foi Ark quem falou ao sair da água e se enxugar com uma toalha. — O rei tem sido muito generoso, especialmente agora que viu como a outra metade vive e conheceu a podridão que se encontra no coração de Arborium. Meu pai… — Ele fez uma pausa. O Sr. Malikum cuidava dele desde que era pequenino. Era certo chamá-lo assim. — Meu pai está tomando remédios decentes pela primeira vez. Quercus nos ofereceu um apartamento perto da corte no dossel superior, mas por enquanto eu gosto do cheiro da nossa casa. É bom estar com minha família outra vez.

***

Sua mãe não coubera em si de orgulho ao ficar sabendo do seu papel na salvação de Arborium. Ele não suportou contar a verdade sobre suas origens, embora achasse que ela suspeitava mais do que dava a perceber. Quando terminara de contar a história, em vez de tratá-lo como herói, a Sra. Malikum o fizera colocar os pés de volta na madeira com um sopapo.

Ela lhe aplicara uma bofetada tão forte que a casa inteira sacudiu, e então gritou para que ele nunca mais se colocasse em tamanho perigo outra vez. Ark se viu sorrindo ao se lembrar da cena.

***

— Então, como você sabia das maçãs? — perguntou ele a Corvena. — Foi pura sorte Petrônio ter me esfaqueado bem ali? — Sorte ou a dádiva da floresta? Todos ficaram em silêncio por um segundo, ouvindo o suave assovio das folhas do outono. — E agora uma pergunta para meu bravo e jovem guerreiro: as flechas ouviram você de fato? — Eu não pude acreditar! — disse Ark, com orgulho. — Tampouco eu poderia prever tamanha criatividade! Uma vez eu lhe disse que as árvores guardam mistérios profundos, que a ciência pode apenas supor. Mas Ark deixara de ouvir, lembrando-se da única flecha que escapara e que havia matado o pai de sua amiga. Se ao menos ele tivesse conseguido detê-la. Flô dissera várias vezes que não o culpava, mas aquilo não tornava nada mais fácil. Ele mudou de assunto. — E aquela ampola que você me deu. — Ark lembrou-se da expressão no rosto de seu algoz à medida que seu braço foi se transformando em madeira fria e morta. — Goodwoody me advertiu sobre assassinato, mas Petrônio foi longe demais. — Embora eu não conheça sua guardiã, ela está certa. Mas você também estava, agarrando o garoto das sombras pela mão e segurando-o com firmeza! Ele merecia tudo que as árvores podiam lhe fazer! Era uma espécie de resposta, embora Ark ainda se sentisse enjoado ao

pensar naquilo, na facilidade com que seu feito sombrio fora executado. — Você acha que Petrônio ainda tá vivo? — Falei com um conhecido meu, certo pirata da lama, que me afirmou categoricamente que nenhum corpo que correspondesse à descrição da enviada ou do garoto Grasp foi encontrado na base das árvores do palácio. Ark não queria mais pensar naquilo. Por ora, tinham ido embora. Ele pegou a bolsa de mexilhões e a esvaziou à margem da água para lavá-los bem. — Os acontecimentos do Festival da Colheita foram apenas uma batalha — continuou Corvena. — Mesmo que ele tenha passado para o outro lado, existem muitos outros ávidos por uma mudança lucrativa. Maw não vai desistir do seu prêmio assim tão facilmente! Ela tem razão, pensou Ark, subitamente cansado, mesmo com a luz do sol. Eles haviam apenas beliscado o couro de uma grande fera. Uma folha marrom e torcida caiu lentamente diante dele. Ark sentiu alguma coisa agitar as raízes de sua alma. Se ele era das árvores, se a seiva delas de fato fluía por seu corpo, do que seria capaz? Aquele pensamento tanto o entusiasmava quanto aterrorizava. — Se eles voltar, eu ser a primeira a receber todos com meu arpão! — afirmou Flô. — E é por isso que ainda tenho esperanças para a Floresta dos Corvos e todo esse sonho erguido de Arborium. Com palavras e coragem assim, eles terão uma briga e tanto nas mãos. — E eu posso botar todos eles para correr com o meu grito! — interveio Shiv. — Claro que pode, pequena! — disse Mucum. — Ouvi dizer que você manejou um canhão de esgoto com grande habilidade, Mucum! Corvena deu uma risada. Mucum enrubesceu. Ele entrara naquela história ao ouvir o colega tagarelando sobre tramas contra o rei e percorrera um longo caminho até

ali. — Acho que a gente se saiu bem. — E pensar que perdi a cena dos Exploradores das Raízes em pleno voo! — Aquilo ser bom demais, ahhh! Meus irmãos e irmãs criar aquelas folhas, como penas, em formas de agradar ao vento! Flô sorriu ao se lembrar da cena e da expressão assustada no rosto dos homens de Flint. Talvez os Exploradores das Raízes tivessem ficado lá embaixo por tempo demais. Um pouco de ar fresco não era nada mau. — Seu pai deu a vida para que todos pudéssemos estar aqui hoje. Estamos livres por causa dele. As palavras de Corvena foram uma flecha de bondade, acertando Flô no mais frágil dos lugares. — Você ser muito gentil. Mas não ser justo. Súbitas lágrimas correram pelo rosto dela. — Não — disse Corvena —, não é. Mas os feitos dele viverão em livros e histórias. Acredite em mim. Ela curvou-se para beijar a testa de Flô. Ark estava surpreso. A Guardiã Goodwoody era quem dava bênçãos. — Quanto ao restante de vocês, espero que o rei tenha reconhecido seus atos! — Certamente que sim! — disse Mucum. — Um vice-comandante afetado dos Arsenais apareceu a cavalo bem na hora que a batalha chegava ao fim, exigindo saber o que todos aqueles garotos tavam fazendo. Ele chamou de “interferindo nos assuntos do Estado”. Muralha era o nome dele. O sujeito era ainda maior que eu, e um camarada orgulhoso, se já conheci algum. Foi divertido ver o velho Quercus descascar ele. Como o rei bem disse, sem a gente Arborium não existiria mais. E o melhor: o soldado foi obrigado a entregar sua melhor espada para que Flô, Ark e eu pudéssemos ser sagrados cavaleiros a serviço do país. — Ah, que ótimo! — Corvena riu. — Devo me curvar e chamá-lo de

sir Mucum? Mucum ficou ofendido. — Esse é o meu nome agora! Não se esqueça disso! — Eu nem sonharia! Bem, meus senhores e minhas senhoras, seria possível comermos agora? A distância que percorri foi a maior dos últimos cem anos. Isso deixa qualquer um com fome, não é? — Sim — disse Ark —, estou morrendo de fome! E todos sentaram-se sob o sol da tarde, o primeiro frio do inverno em sua pele, aconchegando-se nas dádivas que Arborium tinha a oferecer, enquanto o Corvo os guardava com olhos brilhantes e atentos. Houve mais risadas, lágrimas e brindes erguidos a Joe, o mais bravo dos Exploradores das Raízes, e a todos aqueles que haviam perecido para proteger aquela terra que sonhava com o céu.

Continua
@BEbooks Floresta dos Corvos - Andrew Peters

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