Annia Ciedzadlo - Dias de Mel - Uma História de Amor, Guerra e Pratos

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Dias de Mel

ANNIA CIEZADLO

Dias de Mel UMA HISTÓRIA DE AMOR, GUERRA E PRATOS DELICIOSOS

Tradução: Alessandra Cavalli Esteche

Copyright © 2011 by Annia Ciezadlo Título original: Day of Honey Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela EDITORA PAZ E T ERRA . Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite. Editora Paz e Terra Ltda Rua do Triunfo, 177 — Sta. Ifigênia — São Paulo Tel: (011) 3337-8399 — Faz: (011) 3223-6290 http://www.pazeterra.com.br Texto revisto pelo novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. Ciezadlo, Annia Dias de Mel [recurso eletrônico] : uma história de amor, guerra e pratos deliciosos / Annia Ciezadlo ; tradução Alessandra Cavalli Esteche. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Paz e Terra, 2013. recurso digital Tradução de: Day of Honey Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui índice ISBN 978-85-7753-232-2 (recurso eletrônico) 1. Jornalistas - Estados Unidos - Biografia. 2. Jornalistas - Iraque. 3. Alimentos - Aspectos sociais - Iraque. 4. Iraque, Guerra do, 2003 Narrativas pessoais americanas. 5. Livros eletrônicos. I. Título. 13-08079

CDD: 070.92 CDU: 7

PARA MOHAMAD

Sumário PARTE I: NOVA YORK INTRODUÇÃO: SITIADA 1O assassino silencioso 2Afeganistanismo 3A noiva do mundo 4Mjadara PARTE II: LUA DE MEL EM BAGDÁ 5As vantagens da civilização 6“O Iraque não tem culinária” 7Tornando-se humano 8O movimento dos amantes democráticos 9Sumer Land 10O sabor da liberdade 11Iftar solitário 12Canja de galinha para a alma do Iraque 13O hijab do Diabo 14O livre 15Mesmo uma pessoa forte pode pedir paz PARTE III: BEIRUTE 16República das favas 17A Revolução Verde 18Morte em Beirute 19A guerra da cozinha 20A operação PARTE IV: COMER, REZAR, GUERREAR 21Medo e compras 22Mighli 23Cozinhando com Umm Hassane 24Ceia de pedras PARTE V: DEUS, NASRALLAH E O SUBÚRBIO 25Não há xiitas na vizinhança 26Minha experiência anterior com a guerra EPÍLOGO

AGRADECIMENTOS NOTA DA AUTORA RECEITAS GLOSSÁRIO BIBLIOGRAFIA SELECIONADA ÍNDICE REMISSIVO

“DIAS DE MEL, DIAS DE CEBOLAS.” — PROVÉRBIO ÁRABE

“Há muito tempo, no início deste século [XX], um jornalista austríaco, Karl Kraus, ressaltou que se realmente percebêssemos a verdadeira realidade por trás das notícias, correríamos, gritando, pelas ruas. Eu corri gritando pelas ruas dúzias de vezes, mas sempre consegui voltar para casa a tempo para o jantar.” — Jim Harrison, The Raw and the Cooked: Adventures of a Roving Gourmand

Parte I NOVA YORK

“Todas as grandes mudanças da América começam na mesa de jantar.” — Ronald Reagan

Introdução SITIADA

ELE ERA UM EXEMPLAR de uma espécie ameaçada de extinção: um dos poucos taxistas brancos e nativos que restavam em Nova York. Corpulento, de meia-idade, com cara de batata. Uma boina com aba de tweed de Donegal. Parou o carro ao meu lado, abaixou o vidro e rosnou com o canto da boca: — Quer um táxi? Fizemos o trajeto em silêncio até chegarmos à Atlantic Avenue. — Está vendo essa rua? — disse ele, apontando com a mão enorme em direção ao para-brisa. — São todos árabes nessa rua. Ele estava certo, mais ou menos. A conquista teve início no fim do século XIX, com o declínio do Império Otomano e o colapso do comércio da seda no Mediterrâneo. Entre 1899 e 1932, pouco mais de 100 mil “sírios” — naquele tempo, um termo abrangente que designava praticamente qualquer pessoa que viesse do Levant, o nome francês do Levante, ou Mediterrâneo Oriental — migraram para o Novo Mundo. Muitos deles se estabeleceram em Nova York. Em 1933, o jornal árabe-americano Syrian World descreveu a Atlantic Avenue, com um orgulho gentilmente sarcástico, como “o principal hábitat da espécie siriânica”. Em 1998, a Atlantic Avenue era um símbolo tão forte da identidade árabe-americana que a 20th Century Fox a recriou para rodar Nova York sitiada. No filme, terroristas árabes realizam uma série de atentados a bomba em Nova York e o governo impõe uma lei marcial juntando todos os árabes, tanto os culpados quanto os inocentes, em campos de detenção. — Esses árabes, é… — continuou o taxista — eles vêm para cá, tentam agir normalmente. Tentam agir como se fossem eu ou você. Como se estivessem se enturmando, entende? Ele soltou uma gargalhada. — E aí, no fim, eles são da Al-Qaeda. Era um alívio quando as pessoas falavam no assunto abertamente. Eu conseguiria conversar com esse cara. Ele era um americano nativo e presumiu que eu também fosse. E estava certo: sou uma vira-lata polonesa-grega-escocesa-irlandesa da classe média de Chicago. Um produto de currais, siderúrgicas e cursos de secretariado. Entendi de onde vinha todo aquele discurso. Eu vinha do mesmo lugar. Mas ao mesmo tempo o homem que eu amava tinha o nome do profeta do islã. Estávamos saindo juntos havia mais ou menos cinco meses. Eu costumava pensar nele como apenas mais um americano típico, mas agora, dia 13 de setembro de 2001, de repente ninguém mais via a coisa toda como eu. No 11 de Setembro, a senhoria bateu à porta dele pouco antes da meia-noite. A sra. Scanlon também era imigrante, da Irlanda, e sem dúvida tinha as próprias memórias relacionadas ao terrorismo. Com a voz alta e trêmula, ela perguntou: — Mohamad, você é árabe? Eu vinha pensando muito sobre o Nova York sitiada desde então. Quando a 20th Century Fox começou a fazer o filme no final dos anos 1990, eu havia acabado de me mudar para o Greenpoint, uma área do Brooklyn com grande concentração de poloneses. Pelo jeito a Atlantic Avenue real não tinha uma cara suficientemente nova-iorquina para o filme, então, da noite para o dia, os cenógrafos de Hollywood transformaram a pequena Varsóvia de Greenpoint em uma versão

cinematográfica da rua árabe. Toldos em que antes lia-se Obiady Polski, jantares poloneses, agora ostentavam escritos em árabe. Tanques passavam sob os holofotes. Andando pela imitação da Atlantic Avenue, era fácil imaginar que todas as nossas identidades étnicas cuidadosamente construídas não passavam de cenários de Hollywood, uma noção tão capciosa quanto a da “espécie siriânica”, uma armação que se podia montar e derrubar em poucas horas. Os postes de Greenpoint foram cobertos com folhetos que diziam que era proibido estacionar devido às filmagens de Lei marcial, nome provisório do filme; por acaso, muitos moradores de Greenpoint haviam fugido da Polônia no início dos anos 1980, quando o país estava de verdade sob a lei marcial comunista. Imigrantes poloneses de meia-idade paravam e olhavam os folhetos de Hollywood com uma satisfação sombria: “Viu só? Eu disse para você que ia acontecer aqui também.” De volta ao presente, 13 de setembro de 2001, luzes vermelhas e amarelas de sinais de trânsito corriam sobre o para-brisa escuro. Os poucos carros que passavam como fantasmas pela avenida vazia os ignoravam. Todos furavam o sinal vermelho nos dias que se seguiram ao ataque. Parar parecia sem sentido, como todas as outras coisas. — Não, cara, isso não é verdade — disse, finalmente. — Muitos árabes daqui deixaram seus países porque eles não eram da Al-Qaeda. Muitos deles vieram para fugir daquelas pessoas. O meu árabe não seria muito útil para a Al-Qaeda: ele é um xiita, pelo menos de nascimento. Mas trazer a divisão entre sunitas e xiitas para a conversa pareceu um pouco ambicioso naquele caso. — Eles vieram porque seus países eram uma confusão — continuei. — Os que estão aqui quiseram vir para os Estados Unidos. Ele olhou com firmeza para mim pelo retrovisor, os olhos brilhando no pequeno espelho. Suspirei. — Sabia que a maioria dos árabes que estão nos Estados Unidos são, na verdade, cristãos? Um argumento covarde. Afinal de contas, o meu árabe era muçulmano. — Ah, certo! — cuspiu o taxista. — Eles agem como cristãos. Eles fingem. Mas na verdade eles são da AlQaeda. Persianas cinza de metal escondiam as vitrines das lojas, mas a memória completava o que eu não conseguia ver. Aqui, à minha direita, ficava a frente da loja mal-arranjada de Malko Karkanni, cheia de latas de azeitonas e cafeteiras empoeiradas. O sr. Karkanni gostava de conversar; se a pessoa tivesse tempo, ele puxava um banquinho, fazia um chá e conversava sobre a falta de direitos humanos na Síria, o país de que ainda sentia falta. Mais à frente, à esquerda, havia um restaurante chamado Fountain, com uma fonte de verdade lá dentro, como num pátio otomano; uma vez, quando eu disse ao garçom de onde vinha minha avó, ele começou a falar grego fluente. E aqui, um pouco mais à frente, era a loja dos Sahadi, a famosa delicatéssen e supermercado, gerenciada por uma família que vivia em Nova York desde 1895, quando Abraham Sahadi abriu sua empresa de importação e exportação em Manhattan e meus ancestrais ainda aravam campos na Escócia, na Galícia e no Peloponeso. — Bom, meu namorado é árabe — disse eu de repente. As palavras saltaram de minha boca, a voz esganiçada e ofegante. — Ele não é da Al-Qaeda, e tenho muitos amigos árabes, e eles também não são da Al-Qaeda! Os olhos do taxista reluziram em minha direção novamente, agora demonstrando um pouco mais de ansiedade. Será que ele ia me jogar para fora do carro? Será que ia chamar a polícia, o FBI, e contar a eles sobre mim e meu namorado árabe? Ou será que ia simplesmente balançar a cabeça e decidir que eu era afinal uma dessas mulheres idiotas e infelizes que se casam com estrangeiros, pagam escolas de voo para eles e depois acabam em programas

de televisão insistindo que “ele parecia ser muito normal”? Como Annette Bening em Nova York sitiada, que se apaixona por um árabe culto, professor de faculdade palestino que age normalmente, mas no final — não se pode confiar neles — se revela um terrorista? Ele pensou sobre tudo aquilo por um ou dois quarteirões antes de falar alguma coisa. Então perguntou, com uma voz casual e inesperadamente gentil, como se tivesse rebobinado a conversa até o início: — Você conhece aquela loja dos Sahadi? Já foi lá? Eles fazem uma comida ótima, pode apostar. Você sabe, homus, falafel. Cara, aquelas comidas são muito boas. Você já experimentou? Existe um ditado em árabe que diz: Fi khibz wa meleh bainetna, há pão e sal entre nós. Significa que uma vez que tenhamos comido juntos, compartilhado o pão e o sal, os símbolos antigos da hospitalidade, não podemos brigar. É uma ideia adorável, a de que é possível combater o conflito com a culinária — e eu não engulo isso nem por um segundo. É só pensar em qualquer guerra civil. Ou em nossas próprias mesas de jantar, que gritam provas em contrário. Depois do 11 de Setembro, nova-iorquinos liberais passaram a ir aos bandos aos restaurantes árabes, afegãos e até mesmo indianos — qualquer coisa que parecesse vagamente muçulmana — como se quisessem dizer: “Ei, nós sabemos que vocês não são os vilões. Olhem, nós confiamos em vocês. Estamos comendo sua comida.” Os jornais de Nova York publicavam histórias sobre os estrangeiros e sua culinária, muitas seguindo mais ou menos a mesma fórmula: o imigrante caloroso fala com tristeza dos problemas de sua terra natal; assegura os leitores de que nem todos os árabes/afegãos/muçulmanos são malvados; e então partilha uma receita de algum prato que envolve berinjelas. Elas estavam por toda parte depois do 11 de Setembro, fotos de imigrantes segurando pratos de comida, os olhos implorando: “Não me deporte! Coma um pouco de homus!” Mas muitos foram deportados, e soldados americanos foram enviados ao Afeganistão e ao Iraque. Uma década depois, a lição ficou bem clara: você pode comer berinjela até seus dedos ficarem roxos, isso não vai impedir que os governos façam guerras. Mas, ao mesmo tempo, tem algo de especial na comida. Mesmo o jantar mais comum nos fala sobre uma diversidade de histórias, economias e culturas. É possível vivenciar um país e um povo por meio de sua comida de uma maneira que não é possível, digamos, por meio de seus noticiários. A comida conecta. Nos tempos bíblicos, as pessoas selavam contratos com sal, porque ele preserva, protege e cura — uma ideia que remonta aos antigos assírios, que chamavam um amigo de “um homem do meu sal”. Como as sementes de romã de Perséfone, a alquimia de comer nos conecta a um lugar e a um povo. Esse vínculo é frágil; pessoas que comem juntas um dia podem se matar no seguinte. Mais um motivo para o preservarmos. Muitos livros narram a história como uma sequência de guerras: quem ganhou, quem perdeu, quem foi o culpado (geralmente aqueles que perderam). Eu vejo a história como uma sequência de refeições. A guerra é parte de nossa luta contínua para conseguir comida — afinal de contas, a maioria das guerras se deve a recursos, mesmo quando os envolvidos fingem que não. Mas a comida é também parte de um conflito mais profundo, que todos carregamos dentro de nós: ficar num lugar e nos estabelecermos ou continuar em movimento. O embate entre essas duas tendências, quer assuma a forma de guerra ou não, molda a história da civilização humana. Então este é um livro sobre a guerra, mas também sobre viagens e migração, e sobre como a comida ajuda as pessoas a encontrar ou recriar seus lares. Um dos meus antigos professores de jornalismo, um homem com o inesquecível nome de Dick Blood, costumava dizer que se você quiser escrever a história tem que comer junto. Ele se referia às matérias do Dia de Ação de Graças, quando repórteres visitam abrigos, recolhem algumas declarações e voltam à redação para escrever pequenos textos reconfortantes sem nem ter experimentado o peru. Mas descobri

que essa recomendação — Você tem que participar da refeição — é uma boa regra para a vida em geral. Então, sempre que visito um lugar novo, tenho um ritual particular: nunca me permito partir sem experimentar pelo menos uma comida local. Todos temos mapas do mundo em nossas cabeças. Os meus, se você conseguisse vê-los, lembrariam uma mesa de jantar gigante, cheia de pratos de todos os lugares em que já estive. Spanish Harlem é um cubano. Tucson é um frango com abacate. Chicago é yaprakis; Beirute é makdous; e Bagdá… bem, Bagdá é outra história. No outono de 2003, passei minha lua de mel em Bagdá. Havia me casado com meu namorado, que também era jornalista, e seu jornal o enviara para o Iraque. Então, me mudei para Beirute, com um marido novinho em folha e algumas malas, e depois para Bagdá. Durante todo o ano seguinte, tentamos agir como recém-casados normais. Lavávamos nossas roupas, íamos às compras e discutíamos sobre o que fazer para o jantar como qualquer jovem casal, enquanto escrevíamos relatos sobre a guerra. E em meio a tudo isso eu cozinhei. Algumas pessoas montam escritórios quando viajam, alinhando papéis com cuidado, empilhando livros sobre a mesa, colando fotos da família no espelho. Quando estou numa cidade nova e estranha e me sinto sem raízes, eu cozinho. Não importa como o cômodo ou a cidade lá fora seja inóspita, construo uma pequena cozinha improvisada. Em Bagdá, era um fogareiro elétrico ligado a um soquete duvidoso no corredor que dava para o banheiro. Eu visitava as feiras locais e cozinhava o que quer que encontrasse: amêndoas verdes frescas, figos pretos e carnudos, galinhas recém-abatidas ainda com a cabeça. Cozinho para compreender o novo lugar, para tocar, sentir e assimilar a matéria-prima de meu novo ambiente. Faço comidas que parecem familiares e comidas que parecem estranhas. Cozinho porque comer sempre foi meu jeito mais confiável de entender o mundo. Cozinho porque estou sempre, sempre com fome. E cozinho pelas razões mais antigas: para afastar a solidão, a saudade de casa, o sentimento persistente de que não pertenço a determinado lugar. Se você for capaz de se apegar a algo substancial do fluxo de sua vida — se for capaz de se ancorar na terra, como Anteu, o gigante mítico que ficava mais forte toda vez que seus pés tocavam o chão —, você está “em casa” no mundo, pelo menos durante aquela refeição. Em toda zona de guerra, há outra batalha, um conflito em sombra que acontece num furor silencioso nos bastidores. Não se vê muito desse conflito na televisão ou nos filmes. Essa guerra não aparente consiste na destruição lenta, mas severa, da vida civil do dia a dia: as crianças não podem ir à escola. A mulher grávida não pode dar à luz no hospital. O agricultor não pode arar seus campos. O músico não pode tocar seu violão. O professor não pode dar aula. Para os civis, a guerra se torna um acúmulo implacável de não podes. Mas independentemente de tudo o mais que você não possa fazer, ainda assim tem que comer. Durante a guerra, a vida das pessoas começa a girar em torno da comida: primeiro para permanecer vivo, mas também para permanecer humano. A comida restaura uma sensação de familiaridade. Permite que alcancemos o outro, porque cozinhar e comer são naturalmente atividades grupais. A comida pode atravessar barreiras sociais, perpassando linhas sectárias e de classe (apesar de poder, também, é claro, reforçá-las). Fazer e compartilhar o alimento são essenciais para a manutenção dos ritmos do dia a dia. Fui ao Oriente Médio como a maioria dos americanos, relativamente ingênua no que dizia respeito tanto à cultura árabe quanto à política externa americana. Nos seis anos que se seguiram, vi muita guerra, mas também vi a vida normal cotidiana. Participei de jantares cerimoniais com xeques tribais em Bagdá; ajoelhei-me e comi kubbet hamudh no chão com mulheres iraquianas de Falluja; bebi áraque caseiro com cristãos milicianos nas montanhas do Líbano; comi peru cozido com um chefe peshmerga bem-educado no Curdistão; e aprendi a fazer yakhne kusa e muitos outros pratos com minha sogra libanesa, Umm Hassane,

que não fala uma palavra em inglês. Outras pessoas viram mais, fizeram mais, arriscaram mais. Mas eu comi mais. Se você quiser entender a guerra, tem que entender primeiro a vida cotidiana. A narrativa dominante do Oriente Médio é o conflito perpétuo: as bombas, as balas e as batalhas são sempre diferentes, mas sempre, de alguma maneira, lamentavelmente iguais. Por isso este livro não é sobre as formas sempre em evolução com que as pessoas se matam ou morrem durante as guerras, mas sobre como elas vivem antes, durante e depois das guerras. É sobre as milhares de pequenas maneiras com que as pessoas lidam com a guerra — como organizam suas vidas, às vezes sob um estresse e um sofrimento inimagináveis, e como sobrevivem. Toda sociedade tem um sistema imunológico, um exército silencioso que tenta trazer o corpo político de volta ao equilíbrio. As pessoas encontram maneiras de reconstruir suas rotinas em meio à confusão da guerra. Como minha amiga Leena, que uma vez deu um jantar em seu abrigo antiaéreo em Beirute, as pessoas fazem dar certo com o que têm. Esta é a história daquela outra guerra, a que acontece entre os bombardeios: o padeiro mantém seu forno comunitário funcionando para que a vizinhança possa ter pão; o proprietário transforma seu café num centro de refugiados; o agricultor alimenta os vizinhos com seu estoque de comida em conserva; os pais dirigem por toda a Bagdá tentando encontrar uma confeitaria aberta para que a filha possa ter um bolo de aniversário. São todos tão guerreiros quanto aqueles que carregam armas. Existem muitas maneiras de salvar uma civilização. Uma das mais simples é com comida.

1 O ASSASSINO SILENCIOSO

EM UM MUNDO RACIONAL, Mohamad e eu jamais duraríamos muito tempo juntos. Eu converso. Ele observa. Eu me perco em histórias divagantes e tortuosas esquecendo às vezes na metade aonde queria chegar. Ele escuta silenciosamente, e então extrai uma frase perfeita. Eu gosto de beber. Ele toma um gole ou dois de vinho tinto, e então senta e fica observando tudo com um sorriso tranquilo no rosto. Ele é calmo e racional. Eu sou orgulhosa, teimosa e me irrito com facilidade. Eu xingo como um marinheiro. Ele não. Você jamais ouvirá Mohamad descrever qualquer coisa como “a maior do universo” ou “a coisa mais idiota que já ouvi”. Sem a hipérbole, eu morreria. Em nenhum outro assunto discordamos mais do que no que diz respeito à comida. Eu como qualquer coisa, de língua a tripas e testículos de carneiro grelhados — uma iguaria no Líbano e simplesmente uma das muitas razões pelas quais gosto daquele lugar. Na escola eu era aquela criança que chegava ao lado das outras e perguntava “Você vai deixar isso?”. Vendo-me comer sobras de almôndegas, uma amiga uma vez me disse: — Sabe, Annia, acho que você comeria um rolo de papel toalha se alguém dissesse que era comida. Mohamad, por outro lado, se recusa a ingerir aspargo, alcachofra, cogumelo, beterraba; qualquer crucífera; abóbora que não esteja na forma de torta; pato; porco; peixe de qualquer espécie, crustáceos, algas e qualquer outra coisa que saia da água, como sapos ou enguias; bife que não tenha sido assado até parecer linóleo; café ou cerveja. Essa é uma lista parcial. Uma amiga certa vez nos convidou para jantar e me ligou antes para saber do que Mohamad gostava. — Que tal se eu contasse as coisas de que ele não gosta em vez disso? — respondi, caso ela já tivesse alguma ideia para o cardápio. Houve um longo silêncio enquanto ela imaginava a vida ao lado de alguém que se recusava a comer todas essas comidas. — Uau, Annia — disse ela em voz baixa. — Você deve amar muito Mohamad. É estranho, então, que a coisa toda tenha começado por causa de comida. E um tipo complicado e introvertido: folhas de uva recheadas. Se não tivéssemos comido as folhas de uva, Mohamad não teria me perguntado sobre minha avó; se eu não tivesse contado sobre minha avó, ele nunca teria falado sobre sua mãe, e nós não teríamos ouvido as histórias (ou será que foram as próprias folhas de uva?) que fizeram com que percebêssemos que estávamos nos apaixonando um pelo outro. De qualquer forma, culpo as folhas de uva. Elas fizeram com que conversássemos; instigaram nossas viagens — através do Boulevard of Death, no Queens, até a Turquia, de lá ao Afeganistão e, finalmente, a Bagdá e a Beirute. Mas primeiro ao Queens. Fiquei olhando para ele por um momento antes que ele me visse. Ele esperava por mim enquanto eu saía da estação de trem, uma figura grave e baixa em pé em meio à onda barulhenta de passageiros da hora do rush, com o cabelo preto acetinado quase, mas não completamente, escondendo seus olhos. Eles eram grandes e tinham cílios compridos, e eram da cor de grãos de cacau torrados, sob sobrancelhas pretas e

retas. O que o salvava de parecer bonito demais era o nariz longo e sardônico, além da postura de um homem cuja ideia de uma noite animada é debruçar-se sobre documentos sobre o abastecimento da cidade. Mohamad cobria a seção de transporte para o Newsday, um jornal de Long Island. Eu escrevia sobre condições sociais nas cidades e política para uma revista mensal. Era abril de 2001. Naquele tempo eu acreditava que o transporte, a trama de pontes e ônibus e metrôs que movimenta 8 milhões de almas da cidade de Nova York, era o furo jornalístico mais glamoroso do mundo. Então, durante nossos jantares ocasionais, falávamos sobre a política de transportes. Enquanto comíamos comida indiana na Sixth Street, esboçamos o processo de dez passos de aprovação de franquia da cidade; no Habib’s, um lugar abarrotado que vende falafel no East Village, onde Habib tocava Ella Fitzgerald e Louis Armstrong, falamos do processo de aumento das calçadas na cidade. Durante a sobremesa, discutimos as belezas complexas da tarifação de congestionamento. Conversas cheias de acrônimos de órgãos municipais, estatais e federais: HDP, MTA, HCFA. Coisa de romance, de aventura… não era o caso. E mesmo assim, todas as vezes que esse novo amigo me ligava, eu sentia uma alegria misteriosa. Memorizava anedotas sobre burocratas obscuros da cidade para contar a ele. Às vezes ria alto sem nenhum motivo. Dizia a mim mesma que esses sentimentos eram só a curiosidade de fazer um novo amigo. — Ele é um cara legal — disse a meus amigos —, mas um pouco chato. Quase só falamos de trabalho. Mas a verdade era que eu falava de trabalho. Ele ouvia. Mohamad é um homem quieto. Ele fala tão suave e raramente que um de seus antigos colegas de trabalho o apelidou de “o assassino silencioso”. Essa atenção toda fazia dele um repórter investigativo formidável. Mas durante o jantar fazia minhas mãos suarem. Se eu perguntava algo, ele fazia uma pausa antes de responder, olhando para mim em silêncio, e eu sentia como se fosse eu a interrogada. Evitava olhar diretamente para seus olhos; sempre que olhava, esquecia o que estava dizendo, pega de surpresa por sua expressão inteligente e concentrada. Então olhava para baixo, para suas mãos preciosamente cruzadas ou para sua boca, com o eventual meio sorriso, e continuava falando. Eu falo tanto quanto como, e ao mesmo tempo também. Mohamad nunca falava de si e raramente arriscava uma opinião. O que era uma pena, porque havia alguma coisa na voz dele que fazia meu coração bater mais rápido, talvez porque quase nunca a ouvia. Seus olhos insinuavam pensamentos e histórias escondidas em algum lugar dentro dele. Mas talvez eu estivesse imaginando isso. Estava para desistir dele quando inesperadamente, num dia ensolarado de primavera, Mohamad me convidou para visitar seu bairro no Queens. Ele apontava os pontos de referência do bairro enquanto caminhávamos: aqui estava a Queens Boulevard, tão perigosa para os pedestres que o New York Daily News a apelidou de Boulevard of Death, a Avenida da Morte. E aqui estava o Sunnyside Gardens, onde Mohamad morava, a famosa tentativa em construções partilhadas da era progressiva. Fileiras de prédios de tijolo com vista para um jardim comum enorme: um quintal para as crianças brincarem, os cachorros correrem e todos os vizinhos fazerem piqueniques juntos. — O Gardens é uma ideia legal porque as pessoas têm que cooperar, e se dar bem com seus vizinhos, para que possam compartilhar o espaço — disse Mohamad. Então sorriu e revirou os olhos. — É claro, o que em geral acaba acontecendo é que o pessoal simplesmente pega o seu pedaço do jardim e o cerca. Mas mesmo assim… É uma ideia bacana. Sunnyside era o mundo em miniatura: bares irlandeses construídos por empreiteiros imigrantes; casas noturnas romenas sem janelas; mulheres mexicanas vendendo tamales em caixas de isopor; churrascos coreanos. Havia até, do outro lado da avenida, um restaurante turco. — Turco?

Minha avó era grega. Fazia pouco mais de um ano que havia morrido e a perda era uma dor incômoda que nunca ia embora. Comer folhas de uva recheadas, um dos principais pratos que ela fazia, aliviava a dor por um tempo. — Podemos ir até lá? Ele deu de ombros. — Por que não? Atravessamos a avenida e abrimos a porta. O restaurante era silencioso e escuro. Uma televisão tremeluzia sem som nos fundos. Uma caixa de vidro continha pratos de comidas de formas e cores estranhas. Pedi folhas de uva e baba ghanouj e uma coisa vermelha granulada que parecia ter sido moldada na palma de uma mão fechada (o que, como descobri depois, não era só aparência). O garçom estava em pé ao nosso lado com os pratos. Ele inclinou a cabeça e me estudou com olhos semicerrados. — Com licença — disse ele, com inglês hesitante e leve sotaque —, você parece turca. Por acaso é turca? — Não — respondi, sorrindo. — Mas você chegou perto. Sou grega, em parte. A cabeça dele foi para trás um pouco, como se eu fosse estapeá-lo. Eles sempre fazem isso. A Guerra Greco-Turca acabou em 1922, mas as pessoas não esquecem essas coisas da noite para o dia. — Ah! — disse ele, colocando os pratos na mesa. Então pôs uma das mãos sobre o coração, com a outra descreveu no ar um semicírculo bem amplo e completou: — Então seja bem-vinda, minha… suposta inimiga. Algumas receitas são poemas. Alguns pratos que roubam a cena são novelas. Mas folhas de uva recheadas são contos — pequenas fábulas de transformação, não de pessoas (ainda que as melhores receitas também sejam capazes de fazer isso), mas de comida. A maioria das folhas de uva que comemos em restaurantes é industrializada e vem em latas gigantes. Mas de vez em quando é possível encontrar um lugar cujos donos são teimosos o suficiente para produzir as próprias folhas de uva. Quando elas têm o sabor certo, volto a Chicagoland, mais ou menos em 1977; consigo ouvir o rosnar asmático de nossa velha Frigidaire manchada pelo fogo, a música tema da emissora WGN saindo em estalos de nossa TV em preto e branco; consigo sentir o cheiro do carneiro no forno com tomates e abobrinha, embaçando as janelas; consigo ver minha avó na cozinha, fumando um cigarro enrolado por ela mesma e preparando yaprakis, que é como nossa família sempre chamou as folhas de uva recheadas. Yaprak significa “folha” em turco. Mas também pode significar “camada”, como o filo amanteigado da baclava; ou “página”, como as pequenas páginas marrons de Folhas de relva, o livro preferido da minha avó. Yaprakis é o alimento das pessoas que não desperdiçam nada, nem mesmo folhas de uva rijas. “Guarda o que não presta e terás o que precisas” era o credo da vovó: ela cozinhava, guardava, acumulava os restos e transformava quaisquer ingredientes crus que tivesse em estoque. Fazia conservas muito antes de as conservas entrarem na moda. Dava sobras de carne e laticínios ao exército irregular de gatos siameses mestiços que nossa família abrigava. Na cozinha dela nada nunca era desperdiçado; tudo sofria uma metamorfose e voltava como alguma outra coisa. Minha avó cresceu durante a Grande Depressão, e em parte seus hábitos se deviam a isso. Mas era algo mais profundo do que simplesmente economizar. — Sei que tudo aquilo que tiramos da terra teremos que devolver — disse-me uma vez, no verão anterior à sua morte. — Você tem que devolver ao mundo. Isso é o que eles sempre me diziam, meus pais,

meus avós, na minha infância. Então sempre planto sementes, sempre plantei, a minha vida inteira. Em seu jardim cresciam quilos e quilos de vagem grossa, que ela adicionava ao ensopado de carneiro; tomates vermelho-vinho, para serem salgados e temperados com orégano, azeite de oliva, feta e cebolas fatiadas da grossura de uma folha de papel (absorvia-se a salmoura com um pão dormido); milho, batatas, abobrinhas e endro. E, ao longo da cerca, uma videira dava folhas verde-escuras brilhantes, que ela recheava com arroz e carne e refogava em avgolémono, um caldo de ovos com limão. Todas as comidas têm um ingrediente invisível, um tipo de matéria escura culinária sem a qual o prato nunca terá aquele gosto certo. O pesto fica melhor se batido a mão com um pilão; quando machucadas, as paredes celulares das folhas de manjericão expelem seus óleos mais generosamente, criando um molho mais sedoso e emulsionado do que se forem abertas pelas lâminas afiadas de metal de um liquidificador ou de uma faca. Nesse caso, o ingrediente secreto é a força bruta: pesto, do italiano pestare, significa “pilado”. Às vezes o ingrediente secreto é o tempo. Faça um ensopado de abobrinha na panela de pressão e você servirá a mesa em uma hora, mas terá o gosto insípido e metálico. Deixe que a carne e as cebolas se conheçam durante umas duas horas e o sabor será muito mais do que aquilo que você colocou na panela. Folhas de uva recheadas demoram um tempão para ficar prontas. Faça-as sozinho e morrerá de tédio, que é o motivo de pouquíssimas pessoas prepararem esse prato hoje em dia. Você precisa estar rodeado de parentes, amigos, vizinhos; precisa de fofocas, histórias e assuntos. Talvez tenha que ser um pouco distraído, para que as folhas fiquem de tamanhos diferentes e cozinhem em tempos diferentes. Ou talvez as folhas precisem ser enroladas por mãos diferentes: é só olhar a avalanche verde-escura que Leena e suas filhas de dedos ágeis fizeram na cozinha de sua casa em Beirute e é possível dizer quais mãos enrolaram quais folhas. Qualquer que seja o motivo, quando são feitas em conjunto, as folhas de uva recheadas criam camadas de sabor em cascatas da mesma forma que contar uma história partindo de pontos de vista diferentes soma camadas de significados. Folhas de uva são um prato narrativo: cada ingrediente fala enquanto o embrulho se desfaz, contendo multidões, pequenas bonecas matrioshka comestíveis. Em algum passado mítico e bucólico do Peloponeso, minha avó talvez tenha se sentado no quintal, sob um caramanchão frondoso de videiras, enrolando yaprakis com as irmãs. Em Chicago, quando elas se reuniam, passavam mais tempo jogando os dados do jogo General do que enrolando folhas de uva para fazer yaprakis. Então minha avó fazia as comidas complicadas que amava — éclairs, yaprakis, comidas enroladas em comidas — em casa, na sua cozinha, comigo. Ela envolvia o arroz com mãos de pássaro, tão frágeis e fortes e delicadamente raiadas de veias como as próprias folhas. Enquanto enrolava cada uma das folhas verdes ela me contava histórias que iam e vinham da realidade para o faz de conta; histórias que continham outras histórias, apesar de eu ser muito jovem para entender isso na época. Nos tempos da minha avó, os anos 1930 e 1940, pouquíssimos dos grandes supermercados vendiam comidas “étnicas” como iogurte. — Tahine. Você já ouviu falar disso? — perguntou-me um dia, enrolando folhas de uva e cigarros. — São sementes de gergelim. Comida dos deuses! Quando éramos crianças, minha mãe costumava fazer iogurte. Então, quando ela morreu, meu pai ia aos mercados gregos perto de Halsted e Harrison. Ele comprava anchovas e ovas de peixe laranja e baclava. Achávamos que aquilo fosse só as castanhas. Ela riu e lambeu uma seda para cigarro. — Achávamos que iogurte fosse uma iguaria — disse ela. — Agora a gente compra essas coisas em qualquer lugar. De volta ao Queens, comecei a perceber, um pouco tarde, que essa refeição poderia na verdade ser algo como um encontro. Se fosse, eu estava cometendo o pecado capital de falar incessantemente sobre mim. — Estou chateando você? — Não, nem um pouco — respondeu ele. Mas Mohamad era sempre extremamente educado. Diferente

de mim. Ficamos olhando um para o outro, então olhamos rapidamente para nossos pratos. — Sabe — disse ele —, minha mãe também fazia folhas de uva. — Fazia? — Bom, acho que ela ainda faz. Quis dizer quando eu era criança. Ela está no Líbano. — Mas eu achava que você tinha sido criado aqui. Ela voltou para lá? — Não, ela ficou no Líbano. Durante a guerra. Beirute, por volta de 1979, um bairro chamado Shiyah: um amontoado de construções tortas de concreto. Roupas lavadas e fios elétricos enrolados no céu. Vergalhões expelidos do cimento cru como porcosespinhos; muitos desses prédios ficariam exatamente assim, inacabados, durante os próximos trinta anos. As pessoas viviam em apartamentos que tinham paredes inteiras abertas por explosões, em maquetes transversais, como formigas em meio ao vidro. Os Bazzi — mãe, pai, três irmãos e uma irmã, além do caçula Mohamad — se apertavam dentro de um apartamento minúsculo de dois cômodos. Mas atrás do prédio havia um pátio onde as crianças brincavam: uma árvore, um muro de concreto, um pedaço de gramado. A mãe plantava gardênias e orégano em latas enferrujadas de leite em pó e as colocava sobre o muro para que tomassem um pouco de sol. À noite, cartuchos de balas e fragmentos de artilharia caíam no quintal. De manhã, Mohamad juntava os pedaços de metal dentro de uma lata onde antes havia balas de menta. Outros prédios cresciam e curvavam-se, protegendo o jardim minúsculo. O bairro em que moravam pertencia à milícia muçulmana xiita Amal. O bairro duas quadras abaixo pertencia à milícia cristã. O espaço entre os dois era terra de ninguém, uma fronteira destruída que cortava toda a cidade. Algumas partes ficaram tão abandonadas, tão cheias de ervas daninhas e matagal, que os estrangeiros chamavam a área de “linha verde”. Os libaneses chamavam de khatt al-tamaas, linha de contato. Tirando alguns pontos controlados que permitiam que as pessoas fossem de um lado para o outro, atiradores em ambas as partes faziam com que fosse praticamente impossível atravessar a fronteira. As milícias não toleravam a neutralidade. Invocavam os jovens a defender seus bairros, suas famílias, seus bens. Aqueles que não queriam lutar podiam ser ameaçados, maltratados ou espancados. Ou eles se juntavam à maior milícia de todas: o exército dos desaparecidos. Mais de 17 mil pessoas, a maioria delas homens em idade de combate, desapareceram no vazio da guerra que durou quinze anos. Eles evaporaram em barreiras e em sequestros sem pedido de resgate, seus destinos são desconhecidos (deixando ao mesmo tempo uma certeza terrível) até hoje. Ou, se tiveram sorte e conseguiram um visto para algum outro lugar, foram embora. Os primeiros a partir foram os três irmãos mais velhos de Mohamad: Hassan foi para a França, Hassane, para a Espanha, Ahmad e a mulher, para Nova York. A irmã Hanan ficou para trás, mas os irmãos enfrentavam o perigo maior das milícias que dominavam as ruas. Eles planejavam voltar quando a guerra tivesse terminado. E num desses momentos delicados que permanecem para sempre na memória e que arquitetam nossos destinos, os pais de Mohamad decidiram não mandar o filho mais novo para Paris ou Barcelona, mas para Jackson Heights, no Queens. Era 1985. Ele tinha dez anos de idade. A verdade é que nunca tive muito interesse pelo Oriente Médio. Eu conhecia o enredo básico. Mas as criminações e recriminações intermináveis, a amarga queda de braço ao longo da história, meu cérebro — como o da maioria dos americanos — desconhecia. Todavia o Líbano era diferente. Ele fazia parte da minha infância, ao lado de Vila Sésamo, as músicas de Free to Be… You and Me e a Guerra do Vietnã. Eu deitava embaixo do piano da minha avó, me esticava no

tapete de poliéster laranja queimado e assistia à guerra em nossa TV desfocada em preto e branco. O Vietnã sangrou e virou Beirute, quase sem nem trocar os trajes, ou pelo menos era o que parecia para minha mente de seis anos de idade. Havíamos ganhado a Guerra do Vietnã, eles falaram na escola, mas agora o problema era em um lugar chamado Líbano. Isso me assustou, porque nós íamos ao Líbano três ou quatro vezes por ano. Líbano era a calma cidade de Indiana por onde passávamos em nossas viagens de cinco horas de Bloomington, onde fui criada, a Chicago, onde meus avós moravam. Líbano tinha uma parada de descanso onde podíamos esticar nossas pernas. Casais de idosos de agasalhos de poliéster em tons pastéis caminhavam vagarosamente em volta de suas motor homes. Os homens trocavam dicas de pesca enquanto esperavam na fila do bebedouro. Uma família de gatos abandonados vivia num bueiro. Parecia bastante inofensivo. Mas as notícias à noite mostraram um Líbano em preto e branco onde carros explodiam, prédios caíam e velhinhas gritavam e agarravam os cabelos. Homens de costeletas e calças boca de sino corriam de prédio em prédio, empunhando Kalashnikovs, num jogo de esconde-esconde de vida ou morte. Na segunda vez em que a guerra passou na TV, perguntei a meu avô se podíamos pular o Líbano na viagem de volta a Bloomington. Ele caiu na gargalhada. — Ei, Dina! — gritou ele na direção da cozinha, onde minha avó estava fumando e fazendo hambúrgueres, combustível para suas próprias guerras domésticas. — Escuta isso! A Putti acha que a guerra é no nosso Líbano! Fiquei envergonhada; eu tinha dito alguma besteira, mas não sabia qual. — Não, Putti — disse ele gentilmente quando viu a minha cara de confusa. — Não é o mesmo Líbano. É um Líbano diferente desse da TV. Mohamad riu. Bom. Não ficou ofendido. Nasci em 1970, disse a ele — exatamente entre a Ofensiva do Tet e Watergate. Para nós, filhos de Nixon, o Líbano simbolizava tudo o que tinha dado errado entre os humanos, assim como o Vietnã para os nossos pais. Então quando esse homem com quem eu talvez estivesse num encontro disse que era do Líbano, imaginei uma coisa maior que um pedaço de terra com a metade do tamanho de Nova Jersey; um país de mitos e símbolos, um Líbano da imaginação. Quando ele falou de sua infância em Beirute, balancei a cabeça e tentei parecer inteligente. Depois fui para casa e pesquisei freneticamente “guerra civil Líbano” no Google. Quem lutou contra quem e por quê? Como começou? Como terminou? O Google não me disse o que eu sei agora: que ainda estamos lutando pelas respostas dessas perguntas — ainda lutando, até hoje, por causa das próprias perguntas. O Queens também tinha suas linhas verdes, mas eram invisíveis. Asiáticos do sul numa quadra; irlandeses na outra. Uma salada de continentes, da Ásia Meridional à América do Sul. Não havia barreiras nem atiradores, as fronteiras só existiam em nossas cabeças. Ahmad morava com a esposa e a filhinha num apartamento de dois cômodos de um prédio enorme de tijolos vermelhos. A menina magrinha de Beirute, de dez anos, dormia no sofá. A mulher de Ahmad era infeliz no novo país e a comida era uma das poucas coisas sobre as quais conseguia ter algum controle: se tivesse guloseimas — doces, bolo —, escondia de Mohamad e dava para a filha. Nas fotos da época, ele parece esfaimado, instável, um menino magrinho e carrancudo suspenso no quadro como se tentasse desaparecer. Ele aprendeu inglês imediatamente e sem nenhum sotaque. Sua professora de inglês da sétima série, sra. Hertz, convenceu-o a escrever matérias para o jornal da escola. Na oitava série ele já estava cobrindo

notícias locais — um concerto de igreja, uma exposição numa biblioteca — para o Western Queens Gazette. As pessoas riam daquele aluno da oitava série quieto e sério, sentado no fundo da sala com um caderno. Mas ele não ligava: no Líbano, cercado de irmãos, irmãs e primos mais velhos, sempre fora o mais novo do grupo. Quando escrevia suas matérias, a falta que sentia do Líbano, e de sua mãe e de seu pai, diminuía um pouco. Em 1994, nove anos depois de ter deixado Beirute, Mohamad finalmente sentou-se outra vez a uma mesa de jantar com toda a família. A guerra havia terminado fazia quatro anos, mas nenhum dos irmãos tinha voltado a viver no Líbano. Estavam todos espalhados, divididos por vidas diferentes, com empregos e esposas e filhos em países variados. Falavam inglês, francês e espanhol tão bem quanto árabe. Reuniram-se na casa de Hassane em Barcelona. Ninguém disse, mas também não era necessário: agora não haveria mais volta. Naquela noite a mãe de Mohamad fez abobrinhas e folhas de uva recheadas, uma das refeições mais espetaculares que preparava. Segurando a abobrinha roliça e carnuda com uma mão, tirou a parte de dentro com uma faca bem longa. Guardou os boub al-kusa, os pedaços de carne verde-clara do interior, e refogou o restante com cebolas e sete temperos para servir como acompanhamento. Misturou arroz com carne moída, temperou com canela e pimenta-da-jamaica e recheou as cascas delicadas e ocas das abobrinhas; depois recheou as folhas de uva, uma a uma, segurando cada folha na palma de uma mão enquanto a enrolava com a outra. Então cobriu o fundo de uma panela com folhas de uva esticadas para que os vegetais não queimassem. Colocou uma camada de folhas de uva recheadas, depois uma camada de abobrinhas recheadas, mantendo-as bem juntas, como alvenaria, alternando as camadas até a boca da panela, pressionando-as para baixo com um prato. Como se ao fazer a iguaria mais complicada possível, colocando comida dentro de comida, uma Sherazade do fogão, ela pudesse enganar o tempo e manter a família unida para sempre. Quando a refeição terminou, os filhos se levantaram e se prepararam para deixá-la novamente. Ela começou a chorar. — Ela falou uma coisa que nunca mais esqueci — disse Mohamad, tão baixo que tive que me inclinar para a frente para ouvi-lo. — Ela falou: “O que eu fiz para Deus me castigar dessa maneira, fazendo com que todos os meus filhos tivessem que morar em diferentes cantos do mundo?” Em Bloomington, onde fui criada, acontecia uma feira na praça central em frente ao tribunal. Todos os sábados, os fazendeiros chegavam do campo antes do amanhecer e arrumavam barracas amontoadas de qualquer coisa que desse na época: primavera significava torta de morango e ruibarbo, cebolinha selvagem e alho-poró. O verão trazia torta de pêssego, succotash — um cozido com milho, favas e carne de porco —, groselha e milho. No outono, íamos para o interior comprar cidra de maçã direto dos produtores. Abóboras verdes gigantes e carnudas direto da terra. Milhos indianos roxos, brancos e amarelos com faixas vermelhas. E no inverno, quando não havia colheita, ainda assim tínhamos fubá moído em pedra e queijos amish. Foi na feira que minha mãe me ensinou a comer o que estava na época em vez de somente os morangos rijos e brilhantes pelos quais eu sempre implorava no mercado. Nas manhãs de sábado, ela encontrava conhecidos comprando tortas feitas em casa, casca de sassafrás seca ou pimentões verdes — itens tão exóticos no sul de Indiana no início dos anos 1970, antes de a globalização juntar os lados do mundo, que as pessoas se referiam a eles como “mangas”. Mas quando eu tinha treze anos, minha mãe se casou com o homem errado, pelo menos de acordo com meu avô. Influenciado por demônios que ninguém entendia, meu avô nos declarou “renegados”. Seu gesto anacrônico significava que não éramos mais bem-vindos na casa que sempre considerei meu lar — o piano,

o tapete laranja queimado e a cozinha da minha avó. Minha avó não ficou feliz com a situação, mas o que podia fazer? Seu poder terminava ao passar da fronteira da cozinha. Eu e minha mãe colocamos todas as nossas coisas no banco de trás de um Honda velho e acabado e fomos para a casa do novo marido dela no Arizona. Eu não sabia disso naquela época, mas se passariam muitos anos até que sossegássemos em algum lugar. Nossa primeira parada foi Ganado, uma cidadezinha no norte do Arizona, na reserva indígena dos navajos. Ganado foi meu primeiro ensino médio, um monte de trailers duplos no deserto. Ganado era pão frito, sopa pozole e tacos navajos, uma fatia gigante de pão frito com bife, feijão, queijo, cebola, alface, tomate e todo o molho de pimenta que se aguentasse comer. Minha mãe se divorciou e logo Ganado virou só um lugarzinho no deserto que desaparecia no retrovisor. Em meados dos anos 1980 (pulseiras de silicone, Wham! no rádio e esquadrões da morte latinoamericanos), mudamos para São Francisco. Os empregos eram poucos, os apartamentos mais ainda: senhorios escolhiam os moradores e nenhum deles queria uma mãe solteira com uma adolescente. Depois de visitarmos alguns hotéis aterrorizantes e de nos encontrarmos sem opção, acabamos num abrigo para os sem-teto chamado Raphael House. Uma seita cristã obscura administrava o local para famílias que precisavam se restabelecer. Na primeira noite eu e minha mãe entramos numa sala de jantar cheia de mesas comunitárias compridas. Os irmãos e irmãs distribuíam pratos que continham pequenos quadrados pálidos e gelatinosos de uma coisa chamada “tofu”. Fiquei olhando para aquela coisa. A coisa olhou de volta para mim, chacoalhando umidamente. Aquilo parecia me dizer: “Você está muito longe de casa e a Califórnia é uma terra estrangeira. Me coma, minha querida, e você nunca mais encontrará o caminho de volta para casa.” Tofu era um fenômeno do qual havia ouvido falar vagamente, mas imaginava, por ingenuidade, que jamais encontraria, como a falta de um teto. Uma boa garota do Meio-Oeste, criada a milho e frango e comida em abundância, tem que ter feito algo imperdoável para merecer essa coisa escorregadia. Olhei para minha mãe: ela parecia tão horrorizada quanto eu, o que não era um bom sinal. Claramente, estávamos nas mãos de algum culto californiano. Um dos irmãos me viu olhando para o tofu — todos comiam junto dos moradores do abrigo — e percebeu minha angústia. — Nem sempre comemos essas coisas — explicou, como se pedisse desculpas, e todos nós rimos. No fim, os irmãos e as irmãs eram um pessoal de Deus, apesar do gosto pela carne do Satã, e na maioria das vezes faziam comida de verdade. Eles mantinham a Raphael House com os proventos de um restaurante; uma vez nos convidaram para um piquenique com mais de uma dúzia de tipos diferentes de pão. Eu me lembro de pães do tipo boule marrons grossos recheados com castanhas e queijo; pães de forma brancos e fofinhos salpicados com endro; e da primeira vez em que experimentei pão de soda irlandês. Eu nem sabia que o pão podia ter formas tão diferentes, era como se cada um fosse um livro novo se abrindo, e isso mais que compensou pelo tofu. Ficamos em Raphael House durante três semanas e meia. Era difícil matricular uma adolescente semteto no ensino médio naquele tempo, mas depois de uma conversa rápida e elegante minha mãe conseguiu me matricular numa escola de São Francisco, que frequentei durante uma semana até que juntamos nossas coisas e fomos embora novamente. Overland Park, no Kansas, foi a terceira escola em que fiz o ensino médio; mas o que mais me lembro de lá é de uma coisa que os nativos chamavam de “pizza”, mas que não tinha nenhuma semelhança com a pizza que eu conhecia. Essa era um tipo de um biscoito gigante esmaltado com um queijo cheddar laranja fluorescente e cortada em quadrados.

St. Louis, no Missouri, era uma cidade de verdade: tinha o Sting Burger — a glória do Delmar Loop —, um hambúrguer picante com temperos e molho barbecue e “não recomendado para os fracos de paladar”. Mas os subúrbios tinham menores impostos. Minha mãe pesquisou algumas escolas públicas e fomos morar no bairro mais barato do melhor distrito escolar. Já ia para a quarta escola e com tudo isso minhas habilidades matemáticas eram muito rasas para que conseguisse entrar em uma boa faculdade, isso sem falar nas mensalidades. Naquele tempo, não ligava para isso. Só queria continuar mudando. Pode-se dizer que estava procurando por alguma coisa; um psiquiatra talvez descrevesse isso como um desejo de voltar ao piano e à cozinha da minha avó. Mas não era isso, meu avô já havia cedido na época, e tínhamos até voltado para visitá-los, mas aquele não era mais meu lar. Houve dias em que não sabíamos onde dormiríamos; meses em que eu desejava ir à escola como uma adolescente normal. Mas uma coisa nunca questionei: o jantar. De algum jeito minha mãe conseguia que nos sentássemos e tivéssemos um jantar decente todas as noites. Uma ou duas taças de vinho e um pote de barro transformavam cortes baratos de carne em daube provençale quando ela estava trabalhando; bacon, alho-poró e creme de leite (é preciso só um toque de cada um) transformavam a proletária batata numa rainha. Não importava onde estivéssemos — um abrigo para os sem-teto, o sofá de um amigo, nosso carro —, sentávamos para comer e estávamos em casa. No final do meu último ano na escola, uma amiga que dirigia me deu uma carona para casa. Eu não costumava deixar que meus colegas de classe vissem nosso apartamento de um quarto na beira da estrada, onde minha mãe dormia em um sofá-cama para que eu tivesse um quarto. Mas a Wendy era legal, então mostrei a casa e minha mãe a convidou para o jantar. Naquela noite íamos comer suleiman’s pilaf, um ensopado de carneiro e cebola coberto com salsa e amêndoas picadas e uvas-passas, servido com arroz e iogurte. Era um dos coringas da minha mãe, adaptado da escritora inglesa de livros de receitas Elizabeth David, a mulher que apresentou a Inglaterra do pósguerra à calorosa luz do sol da cozinha mediterrânea — uma nômade por escolha própria, uma aristocrata malandra que aprendeu a fazer refeições suntuosas do nada. Wendy morava numa casa que eu considerava uma mansão, com muitos quartos e uma sala de jantar de verdade. Sempre imaginei pessoas em casas como aquela comendo galantina de pato em pratos que combinavam sob um candelabro de cristal. Mas quando nos sentamos em nossa pequena mesa de jantar, que também era onde eu fazia minhas lições de casa, Wendy parecia atordoada. Ela disse que na casa dela as pessoas simplesmente procuravam por alguma coisa na geladeira ou compravam pizza em qualquer lugar. Ninguém ligava para o que ou quando as crianças comiam. — Vocês comem assim toda noite? — perguntou ela, com um tom que soava de admiração, e quando minha mãe disse sim percebi que o lar poderia ser uma coisa que se faz e não o lugar onde se mora. Continuei me mudando durante a faculdade e depois dela: Chicago, Portland, Mineápolis, Oakland. De volta a Bloomington para passar um tempo (no Hinkle’s Hamburgers, onde sempre perguntavam de um só fôlego: catchupimostarda? piclesecebola?). Depois da faculdade me mandei para Buffalo, onde trabalhei como garçonete em restaurantes baratos e esperei que a recessão terminasse. Buffalo era calçadas congeladas e deterioração urbana, bife e ovos a US$1,99 e café sem-fim na lanchonete do velho Pano às três da manhã. Depois de quatro anos na borda congelada da América, migrei para o sul e para a cidade grande. Com a exceção de um punhado de nova-iorquinos nativos, a maioria das pessoas que conheci lá era de transplantados como eu, que é provavelmente o motivo de ter sido o primeiro lugar em que me senti em casa. E aí conheci Mohamad. Outro nômade recalcitrante.

2 AFEGANISTANISMO

DEPOIS DO DIA DAS FOLHAS de uva, Mohamad e eu começamos a nos telefonar todos os dias. Algumas semanas depois ele me levou a seu restaurante preferido, o Afghan Kebab House. O nome do restaurante brilhava em neon vermelho na janela, contornado pelo desenho do Afeganistão em neon verde. Embaixo, o neon lavanda dizia: Carne halal. Do lado de dentro, o telhado era coberto por lona, fazendo com que o restaurante parecesse uma barraca. Pequenas mesas ficavam alinhadas às paredes. Garçons andavam apressados com bandejas escaldantes de kebab, que preenchia o salão com o aroma de pimenta-da-jamaica, canela e carneiro assado. Assim que nos sentamos, Mohamad levantou de novo e foi cumprimentar o dono. Ele o conheceu depois de fazer uma matéria sobre a comunidade afegã no Queens. Apertaram as mãos, conversando baixinho, e, por um momento, senti o mundo vagar à nossa volta como um veleiro. O garçom trouxe bolani kashalu, pasteizinhos crocantes e gordurosos recheados com batatas cozidas e ervas e tostados por fora. Depois vieram banjan burani, fatias de berinjela amanteigadas torradas e enterradas em iogurte polvilhado com hortelã seca. Finalmente chegou o kebab, macio e defumado, com arroz basmati marrom-claro, pão afegão grelhado e salada com muito molho branco cremoso salpicado com ervas. Mohamad sempre comia o kebab de frango. Ele amava a maneira como tudo vinha em um prato grande, o arroz, a carne e a salada com suas áreas demarcadas e semiautônomas. Isso o fazia se lembrar de sua mãe — como ela arrumava a comida no prato dele nas proporções exatas, com a configuração adequada de carne, salada, picles; como ela mergulhava tudo em molho de iogurte. Eu era aquela que experimentava o kebab de peixe, o bolani recheado com chalota e o narinj palau, pilafe cravejado do verde e laranja dos pistaches e cascas de laranja. Um pôster de uma garota que se destacava das profundezas de um xale de lã vermelho estava pendurado na parede áspera e marrom. Seu nome era Sharbat Gula, mas ninguém sabia disso na época. Em 1985, o ano em que ela saiu na capa da National Geographic, os olhos verde-água com aquela expressão fixa atraíram a atenção do mundo para a multidão de refugiados afegãos que fugiam da ocupação soviética. Então a Guerra Fria terminou, as tropas soviéticas deixaram o Afeganistão e, excetuando-se os historiadores de guerra e as feministas, a maioria dos americanos esqueceu a Ásia Central. Surgiu até uma palavra para esse esquecimento intencional: afeganistanismo. As pessoas começaram a usar o termo para criticar os jornais por desperdiçarem espaço em assuntos remotos e irrelevantes como o Afeganistão. Mas os órfãos dessa guerra esquecida cresceram e se juntaram ao Talibã, ficando cada vez mais ousados e radicais. Em fevereiro de 2001, os militantes barbados executaram publicamente duas mulheres acusadas de serem “prostitutas”, enforcando-as num estádio de futebol enquanto centenas de pessoas assistiam. Três semanas depois, o Talibã dinamitou duas estátuas de Buda do século VI. Os líderes talibãs declararam-nas ídolos, o que é proibido pela lei islâmica. Os Budas gigantes eram marcos históricos o bastante para chegarem à capa do New York Times. — Por que é que as pessoas estão mais preocupadas com as estátuas do que com o fato de que há um mês eles executaram duas mulheres publicamente? — perguntei a Mohamad.

— Ou com o fato de terem massacrado trezentas pessoas há dois meses — continuou ele concordando, com um tom de raiva que eu não reconhecia. Eu não sabia daquilo. O Talibã, descobriram depois, não estava tão distante quanto parecia: tinham aberto um escritório no Queens. Mohamad havia entrevistado o embaixador genial e pomposamente barbado do Talibã para as Nações Unidas, que lhe servira amêndoas açucaradas e chá verde. Em seguida, Mohamad escrevera uma matéria sobre o posto avançado do Talibã em Nova York. Ele me contou que a pequena comunidade afegã no Queens estava dividida, alguns eram pró-Talibã, outros eram contra. Apenas alguns conseguiram não se envolver novamente na política do país de origem. Os donos do Afghan Kebab House eram hazaras, muçulmanos xiitas, como a maioria das pessoas que o Talibã havia matado naquele mês de janeiro. Mohamad também era xiita, ou era isso que eu sabia vagamente; na época parecia o tipo de detalhe para o qual somente o Talibã ligaria. Nosso namoro continuou durante a primavera e o verão. Chamávamos a coisa de “romance transfronteiriço”, porque Greenpoint, no Brooklyn, fazia fronteira com o Queens. Eu atravessava o Newtown Creek de bicicleta, passava pela estação de tratamento de esgoto e pelo cemitério, pegava a Queens Boulevard até Sunnyside e muitas vezes acabávamos no Afghan Kebab House. Numa tarde quente no início do outono, fui até Sunnyside depois do trabalho. Saímos para jantar, como sempre, e depois voltamos para o apartamento dele. A essa altura eu já estava colonizando lentamente todos os espaços vazios da cozinha. Roupas minhas se empilhavam no chão, e naquele momento eu me debruçava sobre elas procurando por uma camisa limpa para ir trabalhar no dia seguinte. — Talvez devêssemos começar a pensar em morar juntos — disse ele brandamente. — Não agora — completou depressa quando viu a expressão em meu rosto. — Mas talvez algum dia no ano que vem, tipo na primavera. Eu estava apaixonada por ele. Mas gostava do ritual de ir e vir de bicicleta, do sentimento de liberdade que isso me trazia; em algum nível que não poderia expressar, pensei que talvez pudéssemos continuar fazendo isso para sempre. — Vamos pensar nisso — respondi. — Faz só cinco meses que estamos namorando. Concordamos em pensar no assunto. Nós dois tínhamos um longo dia pela frente: era véspera da eleição para prefeito, a culminância de uma longa e amarga campanha, e nós dois escreveríamos sobre isso até bem depois de todas as urnas estarem fechadas. Acordei tarde, como de costume, e andei pela sala. Mohamad já estava com a televisão ligada. Mas não havia nenhuma notícia sobre a eleição, nada de filas de eleitores esperando a vez de votar. Só um enorme prédio preto e branco contra um céu azul-claro com fumaça saindo da lateral. Seis dias depois, Mohamad estava num voo só de ida para o Paquistão. Nos meses que seguiram, os nova-iorquinos viveram num mundo que não sabíamos que existia. Discutíamos com nossos amigos sem motivo. Esquecíamos nomes e números simples. Ficávamos acordados à noite, incapazes de dormir, e atravessávamos sonâmbulos os dias. Passamos pelo outono e pelo inverno tossindo e arquejando. Vagávamos silenciosamente pelo metrô, uma cidade de zumbis, e olhávamos uns para os outros com uma compreensão dolorosa. Eu trabalhava na Wall Street, a mais ou menos oito quadras do Marco Zero. Depois do trabalho, saía na noite esfumaçada, passava pela Guarda Nacional e por caminhões de entulho cheios de metal retorcido, andando pela obra militarizada em que Manhattan havia se transformado. Mohamad me ligava toda noite, não importando onde estivesse. Islamabad, Quetta, Peshawar. Jalalabad, quando o Talibã perdeu o controle sobre ela. E sempre que o telefone tocava meu estômago se contraía, temendo más notícias.

Numa noite de inverno, enquanto esperava sua ligação, passei por uma praça onde tínhamos quase nos beijado num dos nossos primeiros encontros. Normalmente, a pequena praça estaria banhada pelo brilho laranja e reconfortante das luzes. Naquele dia estava escura e cheia de corpos rígidos de ratos cinzentos. Havia ratos por toda Manhattan naqueles dias, e pensar sobre o porquê de eles terem se proliferado de repente me fez chegar em casa aos prantos. Naquela noite, quando Mohamad finalmente ligou, tentei explicar para ele. Não eram os ratos, era alguma outra coisa, uma coisa que não conseguia entender: as ruas escuras, as barreiras por toda a parte. O fogo que queimou debaixo da terra durante três meses, fazendo com que tudo cheirasse a cinzas úmidas podres. Homens fardados e armados no metrô. As ruínas que continuavam se abatendo sobre nós muito tempo depois de o concreto e o metal terem sido levados para longe. Essa cidade tinha sido nossa casa, uma coisa viva; agora era uma zona militarizada circundando uma enorme vala comum. Ele suspirou. Um grupo de militantes paquistaneses havia permitido que ele entrevistasse um membro da Al-Qaeda ferido. Ele estava tentando descobrir se era seguro. (Algumas semanas mais tarde, depois que Daniel Pearl, jornalista do Wall Street Journal, desapareceu, eles cortariam o contato com Mohamad.) Mas não soube de nada disso até muito tempo depois. — Olha, tenho que ir — disse ele. Sua voz era firme. — Eu só queria que você soubesse que estou bem. — Não podemos conversar um pouco mais? Só quero ouvir sua voz. — Estávamos separados, naquele momento, há quase tanto tempo quanto tínhamos estado juntos. — Annia, tem cachorros selvagens aqui — disse ele. — Estou parado a céu aberto para conseguir um sinal de satélite e eles estão começando a me cercar. Preciso ir. Durante aquele longo e tenebroso inverno, arrastei todos os meus amigos ao Afghan Kebab House. Eu os enchia de detalhadas reminiscências: Mohamad não come kebab de peixe, só de frango; Mohamad gosta de firni, o pudim branco leitoso com aroma de água de rosas e cardamomo e polvilhado com pistaches triturados; Mohamad diz que lembra o mhalabieh libanês. Todas as vezes que ia ao restaurante, eu lembrava da última vez que Mohamad e eu havíamos jantado juntos. Foi uns dois dias antes de ele ir para o Paquistão. Eu lutava para conter as lágrimas, para ser forte e alegre e não pensar sobre o lugar para onde ele estava indo. — Olha, não quero que você se preocupe comigo — disse ele quando nos sentamos para comer. — Isso é ridículo. Como não vou me preocupar com você? Ele ficou em silêncio. Vinha trabalhando muito, passando a maior parte dos dias escrevendo sobre Osama bin Laden e o Talibã e vindo para casa tarde da noite para fazer as malas. Eu estava ocupada bebendo e chorando. Não sou chorona, mas chorei como uma criança nos seis dias que antecederam a partida de Mohamad, quando eu não estava bebendo muito, e também quando estava. Fazer qualquer outra coisa parecia completamente inútil. — Já contei a história sobre a janela do nosso apartamento em Beirute? — perguntou ele finalmente. Fiz que não com a cabeça. Em Beirute, naquele tempo, sempre havia bombardeios. Não dava para saber de onde vinham; poderia ser de um lado, poderia ser do outro. O pátio em Shiyah era muito perigoso para as crianças brincarem. Mas o apartamento dos Bazzi tinha grades na janela da sala, do tamanho certo para uma criança escalar. Ele corria até lá e se pendurava na grade como se fosse um macaco-aranha. Ele a chamava de trepa-trepa. Um dia ele estava brincando no trepa-trepa enquanto seus pais e Hassane faziam salada de iogurte na cozinha. O resto da família estava na sala: Hanan, Hassan, Ahmad e a vizinha Amal. Três libaneses numa sala, diz o ditado, e quatro opiniões. Isso se aplica tanto à comida quanto a outras

formas de política. Enquanto Hassane e seu pai viam sua mãe esmagar o alho e fatiar o pepino, todos achavam que sabiam o melhor, o único jeito de fazer a salada: Dois dentes de alho! Não, é demais, só um dente de alho! Não, dois dentes de alho, só que mais pepino! Menos hortelã! O que precisa mesmo é de mais tempo para deixar o sabor entrar! Finalmente a mãe chamou Ahmad na cozinha para ver se a salada tinha alho suficiente. Mohamad pulou do trepa-trepa e seguiu o irmão mais velho até a cozinha — o que quer que fosse, ele também queria experimentar. Naquele momento, um punho gigante socou todo o ar para fora do lugar. Um projétil de artilharia havia atingido a casa ao lado. A janela explodiu em facas voadoras. Lâminas de metal entraram fundo nas paredes — estilhaços, fragmentos da cápsula da bomba. Punhais de vidro rasgaram o sofá; a família encontrou-os depois saindo pelo outro lado. Um deles entrou na coxa de Amal. Ela nem sentiu no começo, não percebeu que estava sangrando até Hanan ver o sangue e começar a gritar. A casa ficou cheia de fumaça. Se Mohamad não tivesse se juntado à família na cozinha — se ainda estivesse brincando na janela, no trepa-trepa —, teria morrido. Ele inclinou o tronco para trás, cruzou os braços e sorriu para mim com um ar positivo e benevolente. Eu fiquei olhando para ele, perplexa. — Por acaso era para essa história fazer com que eu me sentisse melhor? — Bom, sim — respondeu ele, dando de ombros. Obviamente eu não havia entendido sua intenção. — Entendo assim: se fosse para eu morrer, teria morrido naquela hora. A falácia do jogador. Eu ri. Esse homem valorizava a razão mais do que qualquer pessoa que eu conhecia. Mas homens são criaturas supersticiosas. — Você sabe que isso é completamente irracional, né?! Ele riu. — Ok, tudo bem, talvez seja. Mas sempre faz com que eu me sinta melhor. Mas, de alguma forma, mais tarde, sentada no Afghan Kebab House sem ele, achei a história inexplicavelmente reconfortante. Talvez tivesse internalizado um pouco da fé dele no invisível, na teia de circunstâncias que ele acreditava que o manteria a salvo. Ou quem sabe foi porque ele quase nunca falava sobre Beirute, mas tinha me contado uma história, um fragmento de sua experiência passada na guerra, na esperança de que isso fizesse o mundo parecer um lugar mais seguro. E no fim era também a própria história. Minha família também fazia salada de pepino com iogurte (os gregos chamam de tzatziki) e eu conhecia o sabor: a hortelã seca e o pepino, o gosto do alho embebido em iogurte cremoso. Eu o via agora, na cozinha com a família reunida, quando o projétil de metal mortal foi arremessado na direção deles pelo céu, provando a salada que salvou sua vida.

3 A NOIVA DO MUNDO

“As cidades escolhem seus cidadãos, não o contrário.” — Vassilis Vassilikos, The Few Things I Know About Glaf kos Thrassakis EM JULHO DE 2002, Mohamad e eu nos mudamos para um apartamento no Brooklyn. Mas ele passava a maior parte do tempo no exterior: Paquistão, Síria, Líbano, Cisjordânia. Em janeiro de 2003, o Newsday nomeou-o editor responsável pela cobertura no Oriente Médio. Ele teria que morar em algum lugar na região. Jerusalém e Cairo eram escolhas tradicionais para a maioria dos jornais americanos. Mas ele queria morar em Beirute e me convidou para ir com ele. Então, em maio daquele ano, passei duas semanas lá para ver como era. Durante o dia, os carros dominavam Beirute. O trânsito da cidade fervia em espirais furiosas. Automóveis andavam ameaçadores pelas ruas e até sobre as calçadas. O ar pulsava com o diesel. Mas à noite as pessoas se arrastavam para as ruas. Sentavam e fumavam seus narguilés, tocavam música, bebiam café. Subiam e desciam pela orla comendo tremoços, as sementes que os mediterrâneos servem com sal como aperitivos ou comida barata de rua. Homens passavam em ciclomotores entregando brasas para narguilés e estrelavam a escuridão com cometas de brilho alaranjado. Se quiser conhecer Beirute, a melhor hora para começar é à noite. Começamos em Regusto, onde pegamos Hanan, a irmã de Mohamad, Huda, prima deles, e Ibrahim, seu marido. Fomos para os fundos de uma galeria comercial, a um bar do tamanho de um banheiro chamado Chez André, onde o garçom cortava a gravata de qualquer um que fosse tolo o bastante para aparecer usando uma e a pendurava sobre os desenhos pornográficos, encobertos por um amarelo esfumaçado, e o aviso que dizia: “Nada de política!” Bebemos cerveja libanesa sob uma cortina de gravatas decapitadas e de alguma forma acabamos nos incorporando ao grupo de um escritor de bigode que era exatamente igual ao Hemingway dos anos 1950. Nunca soube o nome dele. E acabamos no Baromètre, espiando por trás de cortinas grossas nos fundos de outra galeria. As garotas eram lindas, os garotos estavam cuidadosamente despenteados e todos pareciam se conhecer. O cardápio estava escrito em árabe num quadro de giz que mal se via através da névoa de fumaça e música. Ziad Rahbani, o compositor brilhante, assistia a tudo de uma fotografia pendurada num canto — na foto ele aparecia inclinado sobre uma mesa com a camisa de botões aberta até a metade e fumava intensamente, que era o que todo mundo no Baromètre estava fazendo também. Bebemos muito áraque, o licor de anis leitoso, enquanto garotas de cabelos compridos andavam de mesa em mesa como leoas e o jazz árabe de Rahbani ressoava pelo salão esfumaçado. Gritando para serem ouvidos, todos me faziam a mesma pergunta: Está gostando de Beirute? Berytus, Biruta, Beyrouth. A cidade existe desde pelo menos o terceiro milênio antes de Cristo, e desde então seus visitantes tendem a se apaixonar por ela. É uma cidade de migrantes, de pessoas eternamente indo ou vindo, enquanto exilados e oportunistas de todas as nações fazem da cidade seu lar.

— Não, mas o Líbano, somos um caso especial — disse uma vez meu amigo Munir, rindo. — Fomos invadidos por todos eles: os cananeus, os fenícios, os turcos, os gregos, os árabes. Temos o sangue de todos esses invasores em nossas veias! Quando o Líbano estava sob o domínio francês, as pessoas chamavam Beirute de “a Paris do Oriente Médio”. (Alguns chamavam de “a Suíça”, um apelido mais preciso, levando-se em conta toda a lavagem de dinheiro que acontecia lá.) Mas esse refinamento emprestado não fazia justiça ao lugar. A velha Beirute era a Medinat al-Alam, a “cidade do mundo”, onde as pessoas falavam grego no porto, turco no souq, o mercado, e francês nos cafés. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, Beirute se tornou a capital cultural cosmopolita do Oriente Médio — uma cidade árabe, uma cidade mediterrânea, mas também uma cidade que abrigava o mundo inteiro. Poetas, militantes e mercenários, todos iam para Beirute. Alguns desses imigrantes não eram o que pareciam — como Kim Philby, o amável correspondente responsável por cobrir Beirute para o The Economist, que acabou sendo o agente duplo mais conhecido da Guerra Fria. Dissidentes que fugiam de tiranos iam para Beirute para se esconder. Livros condenados pela censura iam para lá para serem impressos, como Awlad Haratina (publicado em inglês como Children of the Alley), a obra-prima épica alegórica de Naguib Mahfouz sobre os profetas de Abraão: impublicável no Cairo, mas bem-vinda em Beirute. Autores exilados iam para a cidade escrever seus novos romances; tiranos exilados, para planejar o próximo golpe (incluindo, por um breve período, um iraquiano jovem e promissor chamado Saddam Hussein). Impérios, reais e imaginários, surgiram e caíram enquanto se tomavam café e áraque nos bares e estabelecimentos de Beirute. Em 1951, estima-se que 30% do comércio de ouro do mundo passavam pelas casas de comércio da cidade. O centro da cidade tinha mais ou menos 25 cinemas nos anos 1950, fazendo do Líbano um dos países onde mais se ia ao cinema no mundo. Só a capital tinha cinquenta jornais; em 1975 o governo havia emitido licenças para mais de quatrocentos — um império de palavras. “Babel des accents arabes”, Babel dos sotaques árabes, como escreveu o escritor libanês Samir Kassir (filho de um palestino e uma síria, o que fazia dele um beirutense puro). Uma cidade de refugiados, uma cidade de tramas e pluralidades, uma cidade tão cheia de ideias que elas transbordavam para o oceano. Foi durante esse momento cosmopolita, cidadãos antigos de Beirute me disseram, que a cidade adquiriu mais um pseudônimo: Sitt al-Dunya, “dama do mundo”, e às vezes Arous al-Dunya, “noiva do mundo”. E Beirute estava em parceria com Mohamad também, naquela noite quente de verão, porque ele não fez o pedido definitivo, mas insinuou que queria casar. Eu não queria me casar. Odiava a ideia, por motivos complicados que não tinham nada a ver com Mohamad e tudo a ver com minha história. O casamento foi o pé que me chutou para fora da infância pacífica do Meio-Oeste e me fez atravessar meio continente até a Califórnia. Casamento significava exílio, catástrofe e desamparo. O casamento era um erro que as outras pessoas cometiam e então tentavam nos seduzir a cometer também: um esquema Ponzi humano, colossal e transgeracional. Mais filosoficamente, parecia que o casamento era parte de uma identidade imposta mais pelos outros — família, Igreja, governo — do que uma que escolhemos sozinhos. Mas Mohamad queria que eu me mudasse para Beirute com ele, então parecia uma boa hora para conhecer seus pais. A questão do casamento podia esperar, de preferência para sempre. Eu já havia conhecido Ahmad, irmão de Mohamad, em Nova York. Sua esposa tinha esperado por uma pausa na conversa e então perguntado, com uma truculência que, só depois fui entender, era defensiva: — Então, Annia. O que você acha dos árabes? Eu achava que a resposta fosse óbvia — afinal de contas, estava vivendo com um árabe. Mas ela ficou me olhando com os olhos semicerrados, como se eu fosse ceder ao interrogatório e começar a chamá-los

todos de terroristas. Conhecer os pais de Mohamad tinha tudo para ser um encontro igualmente estranho. Eles não falavam nada de inglês (talvez isso fosse bom, levando-se em consideração a nora), e eu não falava muito de árabe. E eles eram muçulmanos, e eu era católica, uma péssima católica, em vários sentidos, mas não esperava que isso fosse ajudar muito. Um amigo nosso tinha desfilado várias noivas em potencial na frente dos pais. Seu pai iraquiano deu uma série de vereditos arbitrários: uma era muito velha, a outra, muito baixa. Mas uma delas, eu lembrava, fora a escolha certa. Ela é agradável, o pai de nosso amigo decidiu, ela sorri. Decidi que ia sorrir muito. Mohamad tocou a campainha. A porta pesada de metal escuro se abriu, e fiquei frente a frente com o inimigo: uma velhinha de mais ou menos um metro e meio, usando um vestido de algodão azul desbotado. Olhos pretos brilhavam sob finas sobrancelhas arqueadas, iguais aos de seu filho. A boca quis desenhar uma carranca, mas os olhos sorriam; a combinação sugeria que ela estava tentando parecer severa enquanto se esforçava por não sorrir. Umm Hassane tinha 71 anos. Sua pele não era tão enrugada, mas seu rosto começava a sucumbir no meio, nariz e queixo juntando-se à boca, vincando uma expressão permanente de alegria relutante. Sorri. Ela sorriu de volta com um movimento quase imperceptível da boca. Sorri mais. — Olá! — falei alto, usando uma das palavras árabes aprendidas com esforço, e dei meu melhor sorriso de concorrente a Miss América. — Bem-vinda — disse ela. — Bem-vinda. — E esticou os braços segurando meus ombros com força, puxando-me para baixo e me beijando no rosto três vezes. Senti cheiro de alho, limão e de alguma coisa verde, uma gramínea… coentro. Ela parecia inteligente e bem-humorada, como se soubesse uma piada muito boa e planejasse guardá-la para si, mas quisesse que percebêssemos mesmo assim. Abu Hassane, o pai de Mohamad, olhou ansiosamente por sobre os ombros da mulher. — Bem-vinda, bem-vinda — repetiu ele, arrastando-se para a frente de chinelos. Sorri. Ele sorriu de volta, um sorriso largo e cheio de dentes. Entramos. Umm Hassane havia feito ensopado de abobrinha. Seu método envolvia triturar alho e coentro juntos no pilão e juntar tudo a um molho pesto cheio de aroma, que depois ela refogava para dar ainda mais sabor. Ela também preparara fattoush, a salada levantina feita de pão dormido. A salada fora temperada com suco de limão, sal e alho esmagados no mesmo pilão de madeira já usado, que depois ela deixou curtir para que o alho pudesse macerar no suco de limão. A casa cheirava a alho, caldo de carne, legumes fervidos e limões; para mim, era cheiro de lar. Mas antes que pudéssemos comer, teríamos que conversar. Em árabe. Em Nova York, eu havia aprendido uma série de frases levantinas árabes úteis, do geral “Como vai? O que me conta de bom?” a frases mais específicas, como “A fronteira está fechada hoje, mas não sei por quê”. E tinha também as que eu chamava de Intraduzíveis: palavras ou frases sem equivalente em inglês, mas que na minha opinião deveriam ter, principalmente sahtein. Significa “à sua saúde” (literalmente, “saúde dobrada”) e, como bon appétit ou buen provecho, sahtein é usada com o propósito altamente civilizado de cumprimentar alguém que está comendo ou que vai começar a comer. Quase todas essas palavras me abandonaram no minuto em que passamos pela porta. Agarrei-me ao “Olá” e carreguei meu sorriso. Entramos na sala e nos sentamos num conjunto de sofás marrons. — Você engordou! — disse Abu Hassane a Mohamad assim que se sentou. Ele soltou uma gargalhada como se fosse um acordeão velho.

Mohamad havia engordado um pouco, mas aquilo me pareceu muito direto. Ainda não estava acostumada com o jeito libanês de acolher filhos e filhas errantes. Nos seis anos que se seguiram, aprendi muitas coisas; uma delas foi o hábito infeliz de cumprimentar as pessoas destacando ligeiras mudanças de peso. — Você fala árabe? — perguntou Abu Hassane, apoiando as mãos nos joelhos, inclinando-se para a frente e apertando os olhos na minha direção com uma curiosidade gentil. — Um pouco — respondi e completei agramaticalmente —, vou aula Nova York uma vez cada semana. Ele respondeu com uma variante alegre do árabe, um fluxo rápido e ininteligível do qual só consegui entender palavras isoladas: — Beirute… aprender árabe… bom… Nova York… Bem-vinda. — Ela fala muito pouco árabe — disse Mohamad, rindo. — Ah! Voltamos a sorrir. É estranho estudar uma língua nova quando se é adulto. Nossa compreensão dá saltos à frente de nossa habilidade de articular e, porque não somos capazes de conversar no nível das outras pessoas, elas acham que não as entendemos. O resultado é que acabamos passando muito tempo ouvindo as pessoas falarem sobre nós na terceira pessoa. — Ela é bonita — disse Abu Hassane. — Sim, ela é — respondeu Mohamad, que fazia ideia de que eu poderia estar entendendo um pouco da conversa. — Ela tem um emprego? — Sim. Ela trabalha bastante. Ela é editora de uma revista. — Uma revista! — repetiu, animado, Abu Hassane. — Não é como a esposa de Ahmad! Ela não trabalha! — Umm Hassane levantou o queixo, um gesto levantino típico de negação, e agitou as mãos com desdém. Dos três irmãos de Mohamad, apenas Ahmad havia se casado com uma libanesa. Mas as ideias que Umm Hassane tinha sobre o trabalho, como eu viria a descobrir, superavam qualquer sentimento de solidariedade nacional. — Quanto ela ganha? — perguntou Abu Hassane. — Bom, não exatamente o mesmo que eu. Mohamad evitou olhar em meus olhos. Ele não disse a eles que eu estava pensando em me mudar para Beirute. Tudo isso poderia esperar até que tivéssemos passado pela entrevista inicial. — Mesmo assim, ela trabalha, não fica sentada sem fazer nada — disse Umm Hassane. — Isso é bom. Abu Hassane estava sorrindo para mim. Eu sorria como se tivesse sofrido uma lobotomia. Umm Hassane olhava para todos nós com uma expressão de tolerância secretamente conquistada. Então ela se decidiu. Eu tinha um emprego; eu falava um pouco de árabe; eu sorria. Só existia uma resposta possível. — Ela é muito agradável, gostamos dela — disse Umm Hassane, balançando a cabeça com firmeza em aprovação. — Está tentando aprender árabe e não é preguiçosa como algumas mulheres. Ela parou por um instante, possivelmente pensando na nora, então continuou: — Vou arranjar tudo. Ligamos para Hajj Naji e ele marca uma hora com o Sayyid. — Sayyid é qualquer descendente do Profeta, mas nesse caso ela estava falando sobre um clérigo xiita local. — E vocês se casam. Há dois verbos principais para “casar” em árabe libanês coloquial. Mas apenas um deles, tazawaja, significa simplesmente “casar-se”. O outro, katab al-kitaab (literalmente, “escrever no livro”), é mais comumente usado para um contrato de casamento islâmico. Nas minhas aulas de árabe, só havia aprendido tazawaja. Umm Hassane, muçulmana devota que era, usou katab al-kitaab. Então felizmente não entendi a

parte matrimonial da conversa, que Mohamad só traduziu mais tarde, na segurança de nosso quarto de hotel. Para mim, parecia simplesmente que eu havia recebido o selo de aprovação de Umm Hassane. Então fiquei sentada lá, ainda sorrindo com extravagância, alheia a nosso casamento iminente. Umm Hassane já havia planejado tudo: ela e a família nos casariam antes que pudéssemos ir para longe. Mas primeiro comemoraríamos minha visita e minha aceitação na família de Mohamad da maneira mais simples possível: comendo. Fomos para a mesa de jantar, sobre a qual havia jogos americanos feitos com os jornais da véspera, e nos sentamos. Depois da refeição vem o chá: essa é a regra na casa de Umm Hassane. Depois do chá, deve-se visitar os familiares, principalmente quando a família tem uma nova aquisição para mostrar. Abu Hassane não estava se sentindo bem, então ficou em casa. Umm Hassane colocou uma túnica preta e longa e o lenço que usava na cabeça quando saía de casa, e fomos para o prédio de Hajj Naji. — Esta é a noiva! — proclamou Umm Hassane, entrando e me apresentando com um discreto gesto de triunfo com uma das mãos, como uma apresentadora de TV. Uma sala cheia de pessoas virou-se para nós e ficou nos olhando. Uma sala cheia de olhos avaliou-me de cima a baixo e depois para cima de novo. Uma mulher roliça de ombros quadrados com sobrancelhas severas e sulcos profundos de insatisfação em seu sorriso levantou-se da poltrona em que estava sentada. Ela colocou uma mão em meu ombro, como se quisesse me fixar onde eu estava, e examinou-me com uma avaliação venal. Seu olhar viajou do meu rosto até meus pés, absorvendo tudo — a camiseta verde de algodão amassada, os sapatos pretos de couro empoeirados, a saia provavelmente não modesta o bastante — antes de voltar para o meu sorriso, que agora era incerto. — Parabéns! — declarou ela, levantando as sobrancelhas com uma surpresa teatral. — Ela é bonita! E beijou-me no rosto três vezes. Umm Hassane andou triunfante até uma cadeira, levantando o queixo para se aproximar do nariz e parecendo muito satisfeita consigo mesma. Essa era Batoul. Mohamad e eu acabamos inventando apelidos secretos para a maioria dos parentes dele: Khadija, com sua risada rouca e seus lenços modernos, era a Tia Legal; e Hajj Naji virou o Tio Austero. Mas Batoul era só Batoul, sem enfeites. A sala era simples, quase sem graça: nenhuma fotografia nas paredes de gesso rachado, nenhum tapete no chão de ladrilhos. Apenas a hospitalidade em sua forma mais básica, cadeiras e sofás arrumados em volta de uma mesa de café. Mas era uma mesa de café com tampo de mármore e em seu centro resplandecia um arranjo exuberante de rosas vermelhas falsas. Uma caixa de metal dourada de Kleenex ficava embaixo das rosas. Numa casa sem muitas futilidades, esses pequenos luxos marcavam a sala como um espaço público, uma área especial para convidados. Nós nos sentamos. Uma filha de uns quinze ou dezesseis anos com um lenço na cabeça circulou pela sala com uma bandeja oferecendo pequenos copos de suco de abacaxi para todos, começando por mim. Ela lançava olhares fascinados e furtivos em minha direção enquanto servia os outros. — Ela parece libanesa — disse Batoul, ainda olhando para mim com ar de avaliação. — Ela é faqirah! — declarou Umm Hassane, orgulhosa. Faqirah: literalmente, significa pobre. Mas pertence ao grupo das Intraduzíveis. Faqir (masculino) ou faqirah (feminino) pode significar que alguém é oprimido ou pobre. Mas, como tantas palavras que nasceram como insultos, essa se transformou em algo que é motivo de orgulho. No Líbano, e principalmente entre as pessoas do campo, significa com o pé no chão, humilde. “Ela é faqirah”, em boa tradução, seria algo como “ela é boa gente” ou “ela é um doce”. Umm Hassane havia dito a Mohamad que não se importava com quem ele iria se casar, contanto que a escolhida fosse faqirah. — Ah! — Batoul chacoalhou a cabeça, levantando as sobrancelhas em apreço. — Isso é bom!

Minha noivicidade estava estabelecida. Agora era a vez de Mohamad. Batoul e Hajj Naji não o viam fazia anos; dá para imaginar o que aconteceu depois… — Você engordou — disse Batoul. — Ela deve estar alimentando você direito! Todos riram e olharam para mim com malícia. Hajj Naji não riu. Comer juntos implicava outros tipos de comunhão — como morar juntos em pecado. — Quando vocês vão se casar? — perguntou ele, colocando o indicador perto do nariz, pensativo. Nas famílias libanesas tradicionais, sejam muçulmanas ou cristãs, o irmão mais velho do pai ou tio paterno é normalmente o guardião da moral coletiva da família. Como tio paterno de Abu Hassane, Hajj Naji era o patriarca da família. Era seu trabalho assegurar que os membros não desviassem do caminho da retidão. E Hajj Naji levava essa responsabilidade muito a sério. — Vou chamar o Sayyid — disse ele, levantando-se de sua cadeira. — Eu levo você. Vamos buscar Abu Hassane e vamos ver o Sayyid agora mesmo. Mesmo se eu quisesse me casar, isso tudo significaria problema. Como em Israel, no Líbano não havia casamento civil, só era possível ser casado por autoridades religiosas. Jovens libaneses vinham pedindo o casamento civil há décadas, mas os homens de Deus — tanto muçulmanos quanto cristãos — levaram a melhor todas as vezes. Nem mesquitas nem igrejas estavam dispostas a entregar o poder, ou os rendimentos, que vinham do controle das decisões mais íntimas da vida das pessoas. Se dois libaneses de religiões diferentes quisessem se casar, tinham duas opções: podiam fazer um voo de vinte minutos até Chipre, num avião cheio de jovens libaneses apaixonados, e casar no civil. Ou um deles podia se converter. Clérigos liberais casavam cristãos com muçulmanos sem exigir que o cristão se convertesse. Mas Hajj Naji não ia escolher esse tipo de clérigo, e Mohamad sabia disso. Um casamento não civil, como o que nos estava sendo empurrado, era a última coisa que tanto eu quanto Mohamad queríamos. A menos que ele agisse rapidamente, acabaríamos casados e eu acabaria me tornando muçulmana; ou ele teria que contar a Hajj Naji por que não podíamos. De qualquer jeito ele tinha muito o que explicar. Por algum motivo Mohamad não acreditava que Hajj Naji entenderia minha angústia existencial boêmia a respeito do casamento. Eu mesma mal conseguia explicá-la. Então ele pensou em uma desculpa melhor. — Bem, na verdade, não podemos nos casar agora — disse ele, com um pesar que pelo menos era parcialmente sincero. — Sabe, ainda não conversei com a família de Annia. Se nos casássemos sem o consentimento da família dela, eles ficariam ofendidos. Ofender a família da noiva: Hajj Naji, com seu bando de filhas, não poderia nem sequer pensar numa coisa dessas. Os parentes murmuravam em aprovação, impressionados com a prudência de Mohamad. Um casamento poderia acontecer, sem dúvida. Mas seria negociado do jeito certo, como um acordo entreas famílias e nesse caso também entre nações. Mohamad faria uma peregrinação até Chicago, como fiz a minha até Beirute. Eu o apresentaria à minha família, como ele me apresentou à dele, e uma aliança seria preparada. Relutante, Hajj Naji sentou-se novamente. Havíamos escapado por ora, e ele sabia disso. — Você tem razão — disse ele, assentindo com a cabeça. — A razão está com você. — Vamos nos casar quando voltarmos para os Estados Unidos — disse Mohamad, improvisando com audácia. — Em Nova York, um casamento civil. Isso teria sido novidade para mim se eu tivesse entendido na hora. Mas, felizmente para ele, eu tinha perdido completamente o fio da meada naquele momento. — Isso é bom — disse Hajj Naji, levantando o dedo indicador. Um casamento civil, afinal de contas, era

melhor do que casamento nenhum. — Mas você ainda vai ter que fazer um katab al-kitaab para que seja válido. Quando fomos embora, ele nos lembrou: — Não se esqueçam de fazer um katab al-kitaad. Eu chamo o Sayyid quando vocês estiverem prontos. Enquanto andávamos pelo corredor escuro do prédio de Hajj Naji, Mohamad olhou para mim com um alívio que só entendi parcialmente. — Chega de parentes — disse ele. — Prometo. Felizmente, essa promessa durou apenas algumas horas. Mais tarde, naquela noite, encontramos a irmã mais velha de Mohamad, Hanan, e nós três fomos visitar sua melhor amiga, uma prima chamada Huda, e seu marido Ibrahim, que nos cumprimentou gritando “Bem-vindos!” ao abrir a porta, como se fôssemos convidados reais. Ibrahim era alto e cortês, um pouco curvado, com olhos tristes e sábios e uma névoa de cabelo enrolado sobre as orelhas. Huda usava batom rosa e seus dedos dos pés, pintados com cor de cereja, saíam de glamorosas sandálias de tiras. Dentro do apartamento de Huda, que era cheio de imagens japonesas e livros de arte com reproduções coloridas de quadros, sentamos e bebemos suco de manga e conversamos. Hanan falava um pouco de inglês, mas tinha vergonha de sua gramática, então na maior parte do tempo só ficou sentada e olhando para mim com aqueles olhos pretos enormes. Ela fazia Mohamad parecer um locutor. Huda falava pelos dois: acendendo um cigarro atrás do outro, só parava de falar para fumar e só parava de fumar para falar, caindo às vezes numa gargalhada cheia de tosse. Tanto Ibrahim quanto Huda trabalhavam para o Ministério do Trabalho (o desemprego estava em 20%, segundo Ibrahim), então perguntei a Huda o que fazia lá. — Fazer? O que eu faço? — ela zombou em francês, franzindo a testa e jogando a cabeça para trás com a ideia. — Oras, escrevo poesia! Todos eram poetas. Mais tarde, naquela noite, quando chegamos ao Baromètre, Ibrahim ficou muito bêbado e começou a recitar poesia árabe para o cara que parecia o Hemingway. Fiquei muito bêbada e confidenciei a Huda que não estava tão certa sobre a ideia do casamento. — Sou maior que Mohamad cinco ano — disse eu com meu árabe infantil. Huda deu de ombros; ela era maior que Ibrahim também, então qual era o problema? — C’est mieux comme ça. — Ela olhava para mim, os olhos esbugalhados com uma inocência exagerada. Ela deu a última tragada de seu cigarro e acendeu mais um. — Nous sommes chiites — explicou ela, pronunciando “xiitas” do jeito francês: xi-its. — Et nous avons une forme de mariage… — Mutaa! — gritei. — …qui est le meilleur du monde! — concordou ela, ofegante em um espasmo de gargalhada rouca. Mutaa é uma forma de casamento temporário, praticado principalmente pelos xiitas, entre um homem e uma mulher solteira. O contrato expira após um período de tempo determinado por ambos — o que pode ser de algumas horas, dias ou até décadas — e não é necessário um clérigo. Eu sabia que mutaa parecia melhor no papel do que era na prática — que as mulheres que o escolhiam eram estigmatizadas, enquanto os homens não eram e que os clérigos iranianos popularizaram essa forma de casamento depois da Guerra Irã-Iraque em parte para se livrarem de pagar pensão para as viúvas da guerra. Mas eu ainda achava que, se aplicada adequadamente, era a forma mais civilizada de casamento de que já tinha ouvido falar. Huda concordava: segundo ela, você tem o direito de ficar casado o tempo que quiser e nem um dia a mais, ao que ela jogou um olhar galanteador para Ibrahim. Ele explicou por que mutaa é melhor para a mulher e para o homem; pode ser renovado ad infinitum; era possível convertê-lo à forma normal de

casamento, se o casal quisesse, mas por que alguém haveria de querer isso? Bebemos mais vinho. Um velho soltou um oud e começou a cantar canções folclóricas árabes e todos cantaram junto “Al-Hilwa di Cou Cou”. Perguntei a Huda o que aquelas palavras significavam e ela piscou os olhos delineados para mim e começou a cantar a canção (todos faziam isso se você mencionasse uma música): a garota bonita levanta de madrugada para assar pão; o galo canta, có, có, e os trabalhadores se preparam para o trabalho. “Ah, você que tem a riqueza, o pobre tem um Deus generoso…” Uma tigela de terracota com fígados de galinha banhados em suco de limão e alho foi colocada na mesa. Os outros começaram a pedir meze em combinações que eu nunca tinha imaginado, comida de Jaguadarte, criaturas amálgamas vindas de um mundo paralelo: fatias de linguiça, grossas como pepperoni mas temperadas como chouriço, cozidas em calda de romã doce. Pequenos pratos de homus com pedaços macios de carneiro refogados e pinhões. Pequenos copos de áraque cristalino que nublavam numa iridescência quando a gente colocava gelo. Uma pequena berinjela em conserva recheada com nozes picadas e pimentões vermelhos quentes, regada com azeite de oliva. — O que é isso? — perguntei, quando a berinjela apareceu. — Isso é makdous — disse Hanan. — É bom comer com vinho ou áraque. Quem pensa nessas coisas? Qual deus inclinou-se para a terra e sussurrou no ouvido de qual mortal que colocasse nozes dentro de uma berinjela? E depois que a comesse bebendo vinho? Eu queria gritar. Comi quatro makdouses e pedi mais quatro. O cheiro marinho do anis subia do áraque. — Será que pedimos quibe nayeh? — perguntou alguém. Silêncio repentino. Todos olhavam uns para os outros. Alguns balançavam a cabeça tristemente: Não diga que não avisamos. Mas outros faziam que sim e cutucavam uns aos outros com olhos brilhantes e conspiratórios. Alguns minutos depois, ele apareceu: carneiro cru com especiarias e grãos de trigo, aglomerado num monte do tamanho da mão de um homem. Nele, um garfo espetado coberto com pinhões torrados. Cheio de fatias de cebola crua e ramos de hortelã. Hanan ungiu o prato, derramando azeite de oliva verde-escuro na pequena montanha até que fizesse uma piscina ao redor. Mãos desceram de todas as direções, uma delas era a minha, arrancando pedaços de pão e rasgando a carne crua como leões. O quibe escorregou para dentro da minha boca, suave e quase amanteigado, até que o sabor das especiarias se revelou. Observando os outros, peguei um bocado de hortelã e cebola crua, duas lâminas afiadas de sabor que abriram o paladar para o sangrento carneiro cru. Mais bêbada agora. Hanan inclinou-se sobre a mesa na minha direção. Ela gritava alguma coisa e sorria; eu não conseguia ouvir. Então disse de novo: — Está gostando de Beirute? Abri a boca para responder. As luzes se apagaram. Um chiado de estourar os tímpanos, seguido de um barulho estridente de máquina industrial, que percebi, quando vi o bolo com uma vela em forma de estrela gigante em cima, ser uma gravação antiga e chiada em cassete de “Feliz aniversário” em árabe. As garotas da mesa ao lado levantaram-se de um salto e começaram a balançar os quadris, jogando os braços para o alto e quebrando os punhos; no fim da música, jogaram a cabeça para trás como velhas num casamento e ulularam.

4 MJADARA

MOHAMAD VOLTOU PARA BAGDÁ e eu para Nova York. Mas algo havia mudado. Alguns meses depois de nos esquivarmos de Hajj Naji, estávamos conversando ao telefone quando ele mencionou que tiraria férias maiores se nos casássemos. — Então por que não nos casamos? — disse eu. Não havia planejado dizer aquilo, mas no instante em que saiu da minha boca sabia que estava falando sério. E não só por causa das férias. Houve uma longa pausa. — Sério? — disse ele finalmente. Havia a parte romântica. Até hoje não sei ao certo quem fez o pedido para quem. Umm Hassane mandou para minha mãe uma túnica verde bordada e um rosário. Minha mãe mandou para Umm Hassane hortelã seca do jardim de nossa casa em Chicago, onde então morava com meu avô, que tinha noventa anos e havia amolecido o coração consideravelmente. Dominei meus medos e nos casamos — não fomos casados por um clérigo, como Hajj Naji havia imaginado, mas num apartamento em Nova York, em cerimônia extremamente civil presidida por uma juíza da vara da família que eu havia entrevistado para um artigo sobre violência doméstica. A juíza falou de maneira tão comovente sobre o casamento que fiquei me perguntando por que sempre tive medo dele. O casamento é uma jornada, ela discorreu, não um destino; para uma católica não praticante e um muçulmano acidental, casados por uma juíza lésbica judia e prestes a se mudarem para Bagdá, essa parecia a melhor definição possível. Em setembro de 2003, guardamos nossas vidas em uma centena de caixas com inscrições Nova York: Depósito e Beirute: Envio. E em outubro seguimos nossas caixas que iam pelo mar até Beirute. Lá, o sol do fim do verão brilhava no Mediterrâneo. As chuvas ainda não haviam começado e o mar ainda conservava o calor da estação. Quitandas pelas calçadas vendiam os últimos tomates jabalieh, frutas grandes e carnudas, rosadas e verdes, cuja carne formava camadas circulares como uma fila de pequenos babuínos mostrando o bumbum rosa. Como ainda não havíamos encontrado um apartamento, ficamos na casa dos pais de Mohamad. Eles queriam que fizéssemos mais um casamento, dessa vez islâmico. Assim eu seria família tanto sob as leis de Deus quanto sob as dos homens. Mas tia Khadija (a Tia Legal) disse a eles que isso não importava e que de qualquer forma não daria tempo — nós estávamos em Beirute mas Mohamad tinha que voltar para Bagdá. Então, no lugar de uma lua de mel, decidi ir com ele e tentar algum trabalho freelance. Não foi coragem que me levou para Bagdá, mas medo. Quando pensei em como seria ficar sentada ao lado do telefone esperando para ter notícias de Mohamad todos os dias, imaginando se ele estaria bem, meu coração acelerava em pânico. Já havia sido ruim o suficiente em Nova York, onde já tinha minha própria vida. Como seria em Beirute, uma cidade estranha, onde eu não tinha amigos, um lar, dias de trabalho de dez horas para me manter exausta o suficiente para anestesiar o medo? Então decidi que em vez de ficar sentada em casa, esperando que o medo me encontrasse, eu sairia e o encontraria primeiro. Abu Hassane não gostava do plano de a nova esposa ir para Bagdá. Mas Umm Hassane aprovava. Para ela,

Mohamad teria alguém para cuidar dele — para cozinhar e ver se ele estava comendo bem. O fato de eu pretender trabalhar (não como outras esposas!) era a melhor parte. — É bom… ela estará trabalhando, não vai ficar sentada sem fazer nada — dizia e balançava a cabeça em aprovação. — E ela pode cozinhar para Mohamad. Ele precisa de alguém que cuide dele. Secretamente, acho que Umm Hassane acreditava que Mohamad tomaria mais cuidado se eu estivesse em Bagdá com ele. Eu seria a emissária dela, uma espiã no território masculino da guerra. Não lhe contamos que ele provavelmente cuidaria mais de mim do que o contrário. Mas havia muitas coisas que não contamos a Umm Hassane. Os pais de Mohamad ficaram cada vez mais preocupados conforme o dia de nossa partida se aproximava. Não havia mais Saddam Hussein, o que era bom; mas o Iraque ainda não era lugar para um bom moço xiita, muito menos para sua nova esposa americana. No dia 19 de agosto, um caminhão-bomba na área do prédio da ONU em Bagdá havia matado 23 pessoas, incluindo o chefe da missão das Nações Unidas enviado para o Iraque. Dez dias depois, outro carro-bomba em Najaf havia matado o aiatolá xiita Muhammad Baqir al-Hakim e mais de uma centena de pessoas. E os pais de Mohamad assistiam a essas e outras catástrofes pela emissora Al Jazeera com desânimo crescente. — Mandamos você para a América para que você ficasse longe de toda essa guerra — murmurava Umm Hassane, apontando para a televisão como se o Iraque fosse apenas o capítulo mais recente da guerra civil libanesa. Abu Hassane concordava com a cabeça. — E agora você escolhe esse trabalho que manda você de volta para uma guerra! A maioria dos jornalistas venderia a própria mãe para conseguir o trabalho de cobrir uma zona de guerra. Isso não significava nada para Umm Hassane. Para ela, o novo cargo de Mohamad soava como o de um mudir kabir, de um chefão. No Líbano, o chefe fica sentado no escritório com cortinas brilhantes. Ele levanta o braço, servem-lhe café. Ele grita ao telefone, um exército de subordinados é dispensado. Se o filho era um mudir kabir, por que tinha de ir para o Iraque pessoalmente? Devia enviar algum empregado para lá enquanto ficava em Beirute. Eles não entendiam que cobrir o Iraque havia possibilitado que Mohamad estivesse em Beirute — que, para o filho deles, a estrada para casa passava por Bagdá. — Que emprego é esse? — perguntava ela desconfiada, como se o jornal estivesse tentando se aproveitar de nós. — Quanto eles pagam a você? Por que não podem mandar outra pessoa? Mas tinham orgulho da carreira de Mohamad: ele havia ido para a América e se tornado bem-sucedido. Quando ele cobriu a cúpula da Liga Árabe em 2002, na sua credencial de imprensa vinha “Editor responsável” traduzido como Kabir al-Murasileen — literalmente, “Maior dos correspondentes”, que soava como se ele fosse um rei entre os correspondentes. Mohamad ganhou uma medalha de prata como prêmio de jornalismo; Umm Hassane pensava que era o Prêmio Nobel, o que de fato lembrava, e quando o filho lhe entregou a medalha, ela a segurou esticando o braço e reclamou um pouco sobre as pessoas do Nobel, que deveriam ter lhe dado o prêmio antes. Alguns dias antes de nossa partida, o pai de Mohamad veio até nós com uma conspiração de última hora. — Não vão para o Iraque — implorou. — Vou ao dr. Nabil e peço a ele que faça um atestado dizendo que você está doente. Assim o jornal terá que enviar outra pessoa! Abu Hassane piscava os olhos marejados, parecendo confuso e frágil, enquanto Mohamad explicava gentilmente que não podia escapar de um trabalho internacional com um atestado do médico da família. Dividida entre o orgulho e a preocupação, Umm Hassane reagiu como mães do mundo todo: com comida. Ela nos encheu de comida como se camadas de gordura pudessem nos proteger de carros-bomba e granadas; como se conseguisse fazer com que ficássemos em Beirute ao nos deixar gordos demais para levantar nossos corpos da mesa de jantar.

Ela fez todos os pratos que Mohamad ama: yakhnes, ensopado de legumes com abobrinha, quiabo, ervilhas e cenouras, vagens gordas ou qualquer vegetal da estação. Montes brilhantes de arroz libanês cheio de azeite e cozido com aletria torrada. Fattoush com cebolinhas picadas e pepinos e hortelã banhados em molho de limão com alho. Batatas fritas salgadas que mergulhávamos em iogurte fresco em vez de catchup. E para mim ela fez mlukhieh e frikeh, o ensopado verde folhoso e o trigo tostado com frango que estavam rapidamente se tornando minhas novas obsessões. E, é claro, ela fez o favorito de Mohamad, mjadara hamra. Mjadara é uma comida camponesa clássica, um prato antigo cujo nome significa “o empelotado”, devido às lentilhas escuras incorporadas aos cereais. Mas as pessoas também se referem ao prato como “o favorito de Esaú”, porque acreditam que era o bíblico “prato de lentilhas”, o famoso cozido de lentilhas vermelhas pelo qual o caçador Esaú trocou seu patrimônio. A maioria dos mjadara que se vê hoje em dia é feita com arroz. Mas no Líbano, principalmente nas aldeias, as pessoas ainda o fazem com bulgur ou trigo parboilizado. E em algumas aldeias as pessoas guarnecem o prato com cebolas caramelizadas quase tostadas. Essas cebolas tostadas deixam o prato com uma cor tão escura e avermelhada que sempre me faz pensar em Esaú dizendo ao irmão Jacó “Rápido, dême um pouco dessa coisa vermelha”. É assim que eles fazem o prato na aldeia do sul em que Umm Hassane cresceu. Na primeira vez em que experimentei mjadara, não conseguia entender por que Mohamad ficava tão entusiasmado com o prato. Eram só lentilhas e cereais. Mas o sabor das cebolas pretas avermelhadas demorou em minha língua: as cebolas queimadas davam ao mjadara uma profundidade. O bulgur era firme, quase carnoso, mais saboroso que o arroz, e de repente eu estava desejando aquela comida muito vermelha. Pouquíssimos restaurantes sabem fazer mjadara hamra. Caramelizar as cebolas deixando-as na cor exata sem queimá-las é como fazer o molho roux do gumbo, aquele prato típico da Louisiana — tire os olhos só por um momento e ele queimará, e mesmo o cozinheiro mais experiente tem que jogar tudo fora e começar de novo. Umm Hassane mexia as cebolas por quase quarenta minutos, até ficarem no ponto exato, e sempre havia um momento em que ela parecia preocupada, pensando que talvez tivesse afinal de contas queimado as cebolas. E se eu estivesse sentada em vez de assistindo por sobre os ombros dela, ficava tensa na beirada da cadeira. Mas ela nunca queimava as cebolas. Quando servia o prato, nunca deixava de nos lembrar, apontando com censura para a mesa e dizendo: — Vocês não terão isso no Iraque! Mohamad ficou feliz por eu ter decidido ir a Bagdá com ele. Mas conforme o dia de nossa partida se aproximava, começamos a ter pequenas brigas. Isso não era necessariamente uma coisa ruim: estávamos aprendendo a ter brigas construtivas, assim como os gatos aprendem a caçar brincando de lutar uns com os outros. Mas era preciso muita prática. Brigávamos por causa de comida, de táxi e por causa de minhas tentativas hesitantes de falar árabe. Brigávamos por pequenas coisas, como o que íamos levar, e por coisas importantes, como por que havíamos decidido ir para Beirute. Brigávamos por causa de batatas fritas. Mas todas as vezes em que brigávamos por causa dessas coisinhas pequenas, na verdade estávamos brigando por causa da grande questão de como seria estarmos juntos em Bagdá. Alguns dias antes de partir, andávamos pela rua Hamra quando vi um botão de metal enferrujado na calçada. Sem pensar, fiz o que minha mãe me ensinara quando eu era criança: abaixei, peguei o botão e coloquei no meu sapato esquerdo para dar sorte. Se achar um botão, guarde-o e terá sorte o dia todo. — Você não poderá fazer esse tipo de coisa quando estivermos em Bagdá — disse Mohamad, franzindo a testa. Ele não se divertia com minhas superstições excêntricas do Meio-Oeste. Avisou-me que, uma vez

no Iraque, eu teria que parar de pegar moedas, botões e pedaços interessantes de metal do chão. E não ia poder sair por aí fuçando em pilhas de escombros ou invadindo prédios abandonados, outros hábitos meus que ele não conseguia achar cativantes. — Olha, não sou uma idiota — respondi, começando a ficar irritada. — Não vou andar por aí pegando objetos estranhos do chão em Bagdá. — Não estou falando de pegar objetos estranhos do chão — respondeu ele, e sua voz de repente ficou tensa. — Estou falando de objetos que parecem familiares. — Ah! Durante a invasão, forças americanas e britânicas lançaram bombas de fragmentação carregadas de submunições que pareciam baterias ou fragmentos de metal. Além dessas munições produzidas em massa, os rebeldes já estavam plantando pequenos dispositivos diabólicos disfarçados de detritos comuns e inofensivos — uma lata, um pneu. Eram dispositivos explosivos improvisados, trazidos ao Oriente Médio por T.E. Lawrence e outros durante a Revolta Árabe contra os otomanos, quando treinaram os beduínos na arte de atrapalhar o tráfego ferroviário colocando explosivos ao longo dos trilhos. A monarquia do Iraque instalada pelos britânicos não sobreviveu, mas as táticas de Lawrence da Arábia permaneceram; agora os rebeldes iraquianos estavam usando-as contra os britânicos, os americanos e quaisquer civis que estivessem no caminho. Havia todo um mundo de coisas das quais eu nunca ouvira falar. Enquanto eu assistia a Vila Sésamo, Mohamad ouvia um rádio a bateria que anunciava quais ruas tinham atiradores. Enquanto eu estava atrás de trilobitas no riacho que passava atrás de nossa casa ou juntando minha coleção de fragmentos interessantes de metal, Mohamad colecionava cápsulas de artilharia. Eu havia visitado esse mundo por alguns meses em Nova York depois do 11 de Setembro. Mohamad tinha crescido nesse mundo. Ele conhecia suas regras instáveis e não escritas. Agora eu teria que aprender essas regras também. Estava chegando o dia em que iríamos voar até Amã, a capital da Jordânia, e atravessar a fronteira para Bagdá de carro. No dia anterior ao nosso voo, Umm Hassane fez mjadara hamra. Nós dois estávamos no quarto no meio de uma de nossas brigas quando ela veio nos dizer que estava pronto. Duas camas infantis de madeira branca ocupavam o quarto, lado a lado, separadas por uma cômoda. Era onde Mohamad dormia quando criança e nós parecíamos ter voltado a esse tempo: os dois sentados em camas diferentes com os braços cruzados, olhando cada um para um lado. Umm Hassane ficou em pé na porta. Ela nos encarou, primeiro um, depois o outro, apertou os olhos na minha direção e murmurou algumas frases ríspidas em árabe. Então, saiu a passos firmes em direção à cozinha, mantendo a expressão decidida habitual. Ótimo, pensei. Eu mal a conheço e ela já me odeia. A mãe do meu ex-namorado me culpava pela bebedeira dele. Agora essa me culpa pelo trabalho do filho. E não consigo nem me comunicar com ela para explicar que não é minha culpa. — O que ela disse? — perguntei a Mohamad. Olhei para ele com o canto do olho, sem me virar, para mostrar que ainda estava brava. Ele suspirou. Odeia traduzir. Traduziu lentamente, a contragosto; eu percebia pela distância de sua voz que ele também não estava olhando para mim. — Ela disse: “O que ele está fazendo agora? Quer que eu bata nele para você?” Sem mexer meu corpo, para que ele não pensasse se tratar de uma trégua, movi a cabeça para o lado. Ele estava olhando para mim de lado da mesma maneira. Nossos olhos se encontraram. Caímos na gargalhada. — A gente não devia brigar — disse ele.

— Principalmente por coisas idiotas — concordei. Levantamos e andamos pelo corredor até a cozinha, onde Umm Hassane estava esperando para nos servir mjadara.

Parte II LUA DE MEL EM BAGDÁ

“De todos os países que conhecemos não há um que seja tão fecundo de grãos. De fato não tem pretensão nenhuma de cultivar a figueira, a oliveira, a videira ou qualquer outra árvore da espécie; mas de grãos é tão frutífero que rende normalmente duzentas medidas… Quanto ao painço e ao gergelim, não direi até que altura crescem, embora seja de meu conhecimento; pois não ignoro que tudo o que já escrevi a respeito da fecundidade da Babilônia deve parecer incrível àqueles que nunca visitaram o país.” — Heródoto, Histórias, Livro 1

5 AS VANTAGENS DA CIVILIZAÇÃO

EM OUTUBRO DE 1929, uma inglesa de 36 anos chamada Freya Stark foi para Bagdá saindo do porto de Beirute. Ficou decepcionada ao encontrar o deserto do Iraque cheio de carros, caminhões e ônibus de seis rodas, além da sinalização em inglês implorando às pessoas que faziam piqueniques que não sujassem o deserto com sacos plásticos. Em Rutba Wells, no coração da província de Al-Anbar, descobriu para sua tristeza que o forte militar britânico servia “maionese de salmão e outros requintes”, incluindo creme e geleia. “Mesmo agora”, lamentou no livro que escreveu para preservar a memória do velho Iraque antes que ele desaparecesse, “cruzar o deserto é uma atividade corriqueira”. Stark havia chegado muito tarde. O Iraque estava ocidentalizando-se rapidamente. Os britânicos instalaram uma monarquia constitucional em 1921 (no mesmo ano, não por coincidência, em que tomaram o vizinho Irã com um golpe). Importaram um número suficiente de oficiais da Índia para estabelecer um minirraj, repleto de memsahibs, damas que tomavam chá, mordiscavam bolinhos e lamentavam sobre o Servant Problem. Em 1927, descobriram petróleo em Kirkuk. Logo as ferrovias Simplon-Orient-Express e Taurus-Express ameaçaram ligar Londres e Bagdá numa viagem de apenas oito dias. Para Stark, que tinha devorado As mil e uma noites quando criança, isso era uma catástrofe. Ela previu que em poucos anos o antigo Iraque não existiria mais — afogado em uma maré de cremes, bolinhos e outras indesejáveis “vantagens da civilização”. Ainda assim, através de seu cinismo, ela sentiu a presença de um poder maior naquele passeio pelo deserto. Então completou com uma aposta, que o tempo e a história poliram até que tivesse um alto brilho reflexivo: “Se essas inundações ocidentais, para as quais todas as comportas estão abertas, vêm em direção ao leste para batismo ou afogamento”, concluiu, quase como um complemento, “é difícil dizer”. Setenta e quatro anos depois, nas horas escuras da madrugada, Mohamad e eu atravessamos a mesma estrada no deserto. Saímos cedo de Amã para evitar os perigos da travessia: militantes e ladrões — os iraquianos os chamavam de Ali Babás — além do calor esmagador. Nosso motorista era um homem magrelo de meia-idade que vinha de Ramadi. Tinha um rosto escuro e angelical, marcado pelos anos dirigindo pelo deserto, e a voz tão suave que tínhamos que nos esforçar para ouvi-lo. Ele desviava o olhar envergonhado sempre que falava comigo e mesmo quando falava sobre mim para Mohamad. O cinto que usava anunciava seu pedigree de pirataria em letras prateadas enormes e erradas: Calven Klein. A fivela em tamanho exagerado prendia a camisa vermelha de poliéster dentro dos jeans azuis duros e fazia com que ele parecesse um caubói iraquiano. Silenciosamente, batizei-o Ramadi Kid. O carro era um “Genmo”, Kid nos assegurou com orgulho manso enquanto carregávamos nossas malas e caixas para o porta-malas. Estaríamos seguros dentro dele; éramos seus convidados, sob sua proteção. Convidou-nos para almoçar com sua família, em Ramadi, a caminho de Bagdá. Fiquei animada: já tínhamos um convite para almoçar e nem estávamos no Iraque ainda. — Vamos ver — respondeu Mohamad, num tom que dizia, de maneira inequívoca: não. Era uma oferta generosa, claro exemplo da famosa hospitalidade do deserto, e eu estava ansiosa para experimentar a

comida iraquiana. Mas Ramadi era a fivela do cinto de banditismo de Al-Anbar. Trazer um carro com estrangeiros para almoçar era uma boa forma de atrair os Ali Babás. Depois de 1990, quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas impôs sanções, poucas mercadorias podiam entrar ou sair do Iraque legalmente sem a aprovação da ONU. Muitos iraquianos dependiam das rações distribuídas pelas Nações Unidas — arroz, farinha, óleo de cozinha, açúcar e outros itens básicos (incluindo chá) — para sobreviver. Depois da invasão de 2003, as autoridades norteamericanas da ocupação abriram as fronteiras e aboliram as taxas de importação, e de repente, mais uma vez, as vantagens da civilização inundavam o Iraque: comida, aparelhos de som, antenas parabólicas. Opel, Renault, Mercedes. Volantes à esquerda, volantes à direita, não importava. Iraquianos famintos por carros batizaram as Mercedes-Benz pretas de Lailas, por causa da atriz egípcia Laila Elwi. As enormes Toyota Land Rovers brancas eram Monicas, por causa da ex-estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky. Carretas enormes a caminho do Iraque passaram rugindo por nós, carregadas de carros, gado, aparelhos de televisão, refrigeradores. O tráfico de mercadorias no pós-guerra funcionava em mão dupla. Voltando do Iraque, um erudito americano foi pego no aeroporto Internacional John F. Kennedy com três selos cilíndricos de quatrocentos anos do Museu Nacional do Iraque. A cabeça do rei Sanatruq I de Hatra esculpida em calcário, do século II a.C., enfeitava a lareira de um decorador de interiores libanês. Três libaneses que trabalhavam para o assim designado pelos americanos Ministério do Interior foram detidos no aeroporto de Beirute tentando passar com quase 20 milhões de dinares iraquianos para a meca da lavagem de dinheiro que é o Líbano. Um país inteiro estava à venda, todos compravam ou vendiam, e nosso pequeno Genmo era apenas uma manchinha boiando no rio de saques que corria de leste a oeste. Toda essa riqueza atraiu os Ali Babás. Não havia bancos funcionando no Iraque — nada de cheques de viagem, nada de transferências bancárias nem de caixas eletrônicos. Estrangeiros traziam dinheiro vivo, computadores, telefones via satélite. Ladrões e traficantes colocavam vigias nas estradas e nas paradas. O comerciante que vendia gasolina ou servia o chá poderia também vender informações. E pouco tempo depois os Ali Babás estavam atrás de você, com BMWs grandes e elegantes bem mais rápidas que seu Genmo desajeitado. Um carro à frente, um carro atrás, e você estava perdido. Kid mantinha uma granada de mão no porta-luvas apenas para essas ocasiões. Certamente Freya Stark, com seu anseio pelo inesperado, aprovaria. Depois de Amã, a paisagem achatou-se, esticou-se e saiu de fininho pela noite. Por sugestão de Mohamad, deitei. — É mais seguro se ninguém vir você — disse ele. Não discuti. Não conseguia dormir havia dias. Kid havia colocado cortinas escuras em seu Genmo, como se fosse uma caravana de beduínos, para que seus clientes pudessem viajar despercebidos. Fechei as cortinas e deitei a cabeça na mochila. Os dois ficaram acordados, conversando baixinho em árabe sob o brilho de vaga-lume das luzes do painel do carro. “Estrada”, ouvia vagamente. “Bagdá”. E “Genmo”. A maioria das palavras árabes são construídas a partir de uma raiz, normalmente três consoantes, chamadas de jazr. Vogais e outras consoantes se enlaçam e desenlaçam entre as letras da raiz, mudando forma, pronúncia e significado: com outras letras, a raiz KTB se transforma em livro, livros, escrever, escreveu, escritor, biblioteca, livraria. Genmo, percebi enquanto caía no sono, era um versão arabizada de um jazr americano: GM, General Motors. Eu acordava de vez em quando e puxava as cortinas para olhar a escuridão do lado de fora. Via areia, céu, estrelas. Nada de postes telefônicos, sinalização ou paradas para caminhoneiros. Murmúrios ocasionais de luz laranja a distância sinalizavam que havia pessoas lá fora guardando rebanhos, arrumando carros ou

fazendo pão. Uma caminhonete brilhou à nossa frente. Estava parada no acostamento, suas luzes iluminavam o motorista ajoelhado na areia sobre um pequeno tapete de oração. Ele orava virado para o leste, na direção em que estávamos indo; ajoelhado contra a luz, uma pequena chama no escuro cavernoso, ele parecia ser o único outro ser humano no mundo. Acordei novamente quando o Genmo parou numa entrada de terra na lateral da rodovia. Era uma pequena loja, não mais que uma cabana no deserto. Entramos ainda meio sonolentos, saindo em segundos da escuridão da estrada para um arco-íris de embalagens: barras de chocolate turco envoltas em papel lavanda iridescente. Pôsteres com propagandas de cigarros Gauloises com uma faixa azul. Lencinhos umedecidos cor-de-rosa que cheiravam a gasolina e flores. Ficamos lá vesgos com o excesso, a rodovia ainda zumbindo dentro de nós. Um menino magro com o rosto escuro correu até nós, com a jaqueta fechada protegendo-o do frio da madrugada do deserto. Com uma expressão inquieta, esticou dois pequenos copos plásticos na nossa direção. — Bebam — disse. O que faz de nós civilizados? Escritores e eruditos, desde o biógrafo do século XVIII James Boswell até o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, sugerem que cozinhar nos torna humanos. Mas como aponta Martin Jones, arqueólogo da Universidade de Cambridge, em Feast: Why Humans Share Food, há uma diferença mais básica entre nós e os milhões de outras espécies desse planeta: somos as únicas criaturas que dividem comida com estranhos, pessoas que não são de nossa família ou tribo. Se pudéssemos dizer que a civilização começou em algum lugar específico, uma boa sugestão seria Jerfel-Ahmar, um pequeno povoado às margens do Eufrates a cerca de 640 quilômetros e 11 mil anos da estrada em que Mohamad e eu estávamos. Jerfel-Ahmar e um punhado de outros locais marcam uma virada na história humana batizada pelo historiador e arqueólogo Gordon Childe de Revolução Neolítica. Antropólogos ainda discutem sobre onde e quando essa revolução começou — algum momento entre 8 e 10 mil anos antes de Cristo, no Crescente Fértil, mas em tempos diferentes e em lugares diferentes — e se foi uma reviravolta súbita ou uma evolução longa e lenta. Mas sabemos que antes daquele momento as pessoas viviam de forma nômade, seguindo manadas de gazelas e indo em busca de campos de gramíneas silvestres comestíveis, cuja localização mudava de acordo com a estação e o clima. E então — e aqui também os eruditos ainda discutem sobre os motivos — as pessoas começaram a plantar o trigo e a cevada silvestres que juntavam para se alimentar. Estabeleceram-se e começaram a viver num só lugar. Em Jerfel-Ahmar, arqueólogos encontraram algumas das mais antigas evidências de habitações humanas permanentes: mós, poços de armazenamento e, num cômodo que Jones aponta como a possível “cozinha mais antiga do mundo”, sementes de cevada, mostarda e trigo. A cevada havia sido aberta exatamente como o bulgur, que é quebrado após a secagem, usado no tabule ou no mjadara até hoje e provavelmente pelo mesmo motivo: para fazer com que durasse mais tempo quando armazenada. Mas os moradores de Jerfel-Ahmar também tinham fragmentos de obsidiana da Anatólia, que hoje corresponde à Turquia, a muitos dias de viagem a pé. A mais antiga habitação permanente, então, continha algumas das mais antigas evidências das viagens. E aí reside um dos paradoxos mais profundos da humanidade: não podemos viajar, no sentido de deixar nossa casa e voltar, antes que tenhamos uma casa para deixar. Entram Caim e Abel, Jacó e Esaú, fazendeiro e pastor — os que ficam e os que vagam. Ibn Khaldun, o erudito da Andaluzia do século XIV, dividiu a sociedade em duas categorias, os nômades e os sedentários. A maioria das civilizações, ele acreditava, começou como os beduínos — guerreiros fortes e orgulhosos que sobreviveram com pouco mais do que o básico. É de sua natureza saquear. “Seu

sustento”, escreveu, “está onde quer que a sombra de sua lança caia”. Ibn Khaldun admirava a asabiyah beduína, solidariedade ou coesão, uma atitude resumida num antigo provérbio ainda comum no Iraque: “Meu irmão e eu contra meu primo; meu primo e eu contra o forasteiro.” Viajantes que não estavam sob a proteção de uma tribo eram forasteiros e, assim, presas por direito. Mas inevitavelmente, de acordo com Ibn Khaldun, povos nômades sucumbem às tentações da vida sedentária. Eles se estabelecem e começam a produzir cultura — lei, arte, arquitetura, culinária. Constroem grandes prédios, escrevem livros e logo ficam preguiçosos e fracos por comer muita comida rica, principalmente a feita com gorduras animais (um mal sobre o qual Ibn Khaldun adverte diversas vezes). Perdem sua asabiyah. Um novo grupo de nômades aparece, endurecidos pela vida no deserto e pelos alimentos livres de gordura, e destrói as residências urbanas decadentes. Colocam abaixo grandes prédios e usam as pedras para fazer fogueiras e cozinhar sua comida nômade e simples. Levam a civilização de volta ao início e o ciclo recomeça outra vez. Mas essa é apenas uma parte da história. Cruzar o deserto é sempre um jogo de apostas. As pessoas que encontrarmos irão nos matar e roubar nossa caravana? Ou sacrificarão um camelo ou ovelha, um sacrifício simbólico, para nos alimentar? O resultado depende de uma língua (e não estou falando só do árabe) que a maioria de nós não entende de todo. Não podemos sair em viagem sem termos um lugar para parar, comida para comer e água para beber, algum lugar para dormir em segurança e pessoas que nos deem essas coisas. Então nasceu o código de hospitalidade do deserto. A hospitalidade evoluiu como uma maneira de assegurar a sobrevivência, não só de indivíduos, mas de uma rede social — uma teia frágil que sustenta a vida humana na imensidão do deserto. Esse ideal de hospitalidade é belamente articulado à história de Lot do Velho Testamento, que nos ensina a proteger nossos hóspedes porque eles podem ser anjos disfarçados. (Ela também nos ensina a valorizar mais a vida de homens estranhos do que as de nossas filhas, um ideal não tão belo.) A língua árabe retém no DNA uma história sobre água e sobrevivência no deserto. Antes do islã, a palavra “charia”, o caminho para Deus, significava o caminho para o poço. A palavra para primavera, ain, é também a palavra para olho: ambos são essenciais; ambos produzem água. O folclore e a literatura árabes são repletos de histórias de beduínos que morrem nobremente dando sua água para outra pessoa. Até hoje é uma tradição do deserto dar as boas-vindas a forasteiros com um líquido: um copo de água no calor, uma xícara de chá contra a noite gelada do deserto. Agradeci sonolenta ao garoto e bebi o chá. Estava quente, açucarado e tânico. Luz e calor correram por meus membros, acalmando a agitação da estrada e me ancorando ao chão, pelo menos por um instante. Eu já estava internalizando a tirania do chá, os milhares de galões de copos minúsculos que a hospitalidade obriga a consumir no Oriente Médio. Em Beirute o chá era um sinal de que a refeição havia terminado; bebíamos, sacudíamos a xícara, a colocávamos sobre a mesa e dizíamos “Daymeh, inshallah”, que assim seja sempre, da vontade de Deus. Aqui era uma coisa mais básica: um gesto de boas-vindas. A hospitalidade, oferecida por um imperador ou por um pastor analfabeto, é o que nos faz civilizados. Sem ela, as porcarias que consideramos civilização — carros, bolinhos, maionese de salmão no deserto — podem desaparecer da noite para o dia. Qualquer tráfego de mercadorias pode ser interrompido, por sanções, Ali Babás ou saqueadores do pretenso mundo civilizado. Mas o velho costume da hospitalidade a estranhos, ou de acolher anjos, ainda sobrevive. Mohamad comprou um pacote de biscoitos turcos, massas inchadas cobertas com uma pasta rosa

açucarada. Comemos juntos, a doçura química dos biscoitos se dissolvendo no chá férrico. Olhei para meu marido. Ele olhou para mim e sorriu. É por isso que estou aqui, pensei. Bebemos oceanos de chá e beberemos mais — daymeh, inshallah. Mas este estamos bebendo neste momento, aqui, juntos. Então nossa lua de mel começou, com o ato elementar de bondade: uma oferta simples e anônima na noite sem-fim do deserto.

6 “O IRAQUE NÃO TEM CULINÁRIA”

DEPOIS, SEMPRE QUE ALGUÉM ME perguntava como era Bagdá, eu contava sobre a topiaria. Como muitos americanos, eu tinha uma imagem de Bagdá feita a partir de uma montagem de cenas da Guerra do Golfo e filmes antigos do Douglas Fairbanks: palmeiras, minaretes, tanques e muita areia. Quando chegamos a Bagdá, sob o sol forte de outubro, esperava ver certas coisas. Topiaria não estava entre elas. Mas lá estavam as coberturas verde-escuras belamente aparadas em ondulações, formas abstratas de carnaval, como quadros de Joan Miró que haviam ganhado vida. Olhei pela janela e pensei que existia outra Bagdá, assim como o outro Líbano, que era diferente daquele da TV. A topiaria adornava os bairros mais ricos, como Mansour e Jadriyah, configurando as fachadas das mansões. As mansões de Bagdá! Eram um verdadeiro choque de civilizações, um pastiche frenético de kitsch internacional. Algumas tinham portas altas abobadadas, como bancos antigos. Algumas pareciam castelos de brinquedo, com torres cilíndricas e janelas em meia-lua. Algumas eram construídas para parecerem ruínas romanas. Outras lembravam Alhambra, mas com toques modernos: uma janela enorme em formato de diamante, vidros azuis-prateado ou uma pirâmide invertida enorme descansando sobre sua ponta. As casas com mais detalhes orientais, janelas em arco e sacadas em treliça, ostentavam os toques ocidentais mais chamativos. Um Taj Mahal em miniatura com um portão barroco de ferro forjado. Uma mansão otomana protegida por uma torre vitoriana. A maioria delas estava bem cuidada: seus donos haviam prosperado sob o governo de Saddam. Estar em Bagdá naquele tempo era como entrar numa cápsula do tempo. Bairros inteiros pareciam o cenário de um dos primeiros filmes de James Bond: carros soviéticos, cadeiras de plástico brancas curvadas, arte expressionista abstrata. O país havia passado as últimas décadas isolado do resto do mundo, o que levou a um diálogo com o passado. O resultado foi uma fascinação ao estilo culto à carga com ídolos que o resto do mundo substituíra havia muito tempo. Depois de alguns meses em Bagdá, eu não ficava mais surpresa quando as pessoas paravam no meio de uma conversa e começavam a cantar músicas do The Doors ou do Bryan Adams. Séculos colidiam. Um burrinho com as costas curvadas puxava uma charrete de madeira em frente a um veículo blindado que mais parecia um enorme elefante de metal cinza. Militares em 4x4 brancas empurravam fazendeiros que dirigiam tratores para o acostamento. Os pobres faziam fila e esperavam um dia e meio por gasolina subsidiada; aqueles que podiam pagar alguns dólares a mais compravam galões de combustível contrabandeado no acostamento. Crianças descalças vendiam gasolina, Kleenex (ou a imitação do Oriente Médio, Khaleenex), chapéus de palha, Marlboros e rosas vermelhas de plástico para as pessoas presas no trânsito. Prédios baixos assavam sob o sol, rodeados por muros, árvores raquíticas, a poeira sempre presente de uma cidade em tentativa constante de manter o deserto afastado. Se Los Angeles tivesse vivenciado uma breve explosão da riqueza do petróleo e depois fosse isolada do resto do mundo por várias décadas, pareceria muito com Bagdá: longas rodovias, inchadas com mais carros do que podem abarcar, sufocando a cidade como pítons. Uma fumaça petrolífera vingativa. Uma cidade de 5 milhões de pessoas, esparramada e complicada, dividida por um rio; algumas de suas maiores pontes fechadas; as principais vias arteriais do

trânsito bloqueadas com tanques e barreiras para sempre que houvesse um ataque ou a ameaça de um ataque, o que acontecia diversas vezes por dia, ou para sempre que um oficial viajava de uma zona militar à outra em enorme comboio armado; Genmos brancos enormes e ameaçadores cheios de militares que poderiam abrir fogo contra qualquer um, a qualquer hora, por qualquer motivo; e nada de celulares para se comunicar com esposas, maridos ou filhos que esperavam ansiosos. Todas essas frustrações, que eram as condições gerais de um dia bom em Bagdá em 2003, eram a mãe de todos os engarrafamentos. E então chegamos ao Tigre, onde tudo mudou. O rio passa pelo coração do Iraque e divide a capital ao meio, uma linha longa e maleável de água orlada por árvores. A perpendicularidade implacável seria opressiva sem o rio e as tamareiras: torres altas e generosas que subiam até explodirem em arcos verdes para todas as direções. Árvores que imitam o jato gracioso de um chafariz. Passei sete meses e meio no Iraque, que depois se esticaram em mais de quinze meses, a maioria deles com Mohamad. Um período curto em meio a uma longa guerra, uma espécie de lua de mel. Um tempo em que muitas coisas eram possíveis, só que não foram. Os grandes jornais alugavam mansões. Freelancers e pequenos jornais como o Newsday se estabeleciam em hotéis, uma série deles, desde o maltrapilho ao aterrorizante. Todos ficavam na Zona Vermelha, que era qualquer lugar fora do complexo militar fortificado dos Estados Unidos, chamado de Zona Verde. Fomos direto para o hotel Hamra em Jadriyah, um bairro residencial tranquilo. O Hamra consistia em dois blocos grandes de edifícios inspirados em Bauhaus com um pátio no meio. Um homem vendia tapetes e joias no átrio da entrada principal. Um aviso na porta dizia: Por favor: todas as armas devem ser deixadas no balcão da Segurança. Mohamad e eu jogamos nossas malas empoeiradas sobre a cama e descemos as escadas em direção ao restaurante. Passamos pela recepção, atravessamos o café com suas cadeiras laranja, e chegamos ao pátio entre os prédios. Havia uma piscina — a famosa piscina do Hamra, de um azul cintilante — e ao redor dela uma constelação de mesas e cadeiras de plástico. Não havíamos comido nada além de biscoitos e chá desde a Jordânia e estávamos famintos. Pedi fattoush, a salada por que tinha me apaixonado em Beirute, homus e frango tikka, o nome local para o que se chamava de shish taouk em Beirute. O segredo do fattoush está no conjunto, no contraste bem coreografado dos elementos opostos. É preciso manter os ingredientes separados até o último minuto, para que o pão não absorva muito líquido; ele deve fornecer um contraponto crocante à alface macia e ao tomate suculento. O molho picante combina os diferentes elementos. Às vezes o elemento azedo é o suco de limão ou o melado de romã, ou ambos. Às vezes é o sumagre, o pó marrom que tem o sabor de mil tomates que explodem na boca. No Líbano, o fattoush geralmente vem com uma leve pitada de sumagre — o suficiente para “abrir o apetite”, como as pessoas dizem lá, mas não o suficiente para fazer as papilas gustativas saírem correndo. Mas aquele fattoush era diferente. Alguém o havia metralhado com tanto sumagre que a sensação era de tomar uma garrafa de ácido cítrico. O pão estava pesado e encharcado de doer na alma. Queria dissolver-se em lodo aquele alagado, mas por estar tão impregnado de óleo rançoso se manteve firme. A alface iceberg tinha ficado transparente de tanto tempo mergulhada no molho, esbranquiçada e murcha, como os dedos ficam quando permanecemos na banheira por muito tempo. Encolheu-se mole, borrachuda e pegajosa como um punhado de elásticos de borracha. Os tomates estavam granulosos, olhando para mim imersos num banho de sumagre no fundo do prato como se dissessem: Coma-nos se for capaz. Derrotada pelo fattoush, encarei o homus. Parecia o que sempre parece: um prato redondo de pasta bege, com uma covinha no meio, polvilhada com mais do persistente sumagre. Estava mais pálido do que qualquer homus que eu já havia visto, um pouco mais duro que o normal e estranhamente translúcido, como um creme para o rosto comestível. Mas homus é homus — o que poderia dar errado? Parti um

pedaço de pão e aventurei-me. Em Buffalo trabalhei por um breve período pintando casas e, apesar de nunca ter provado de fato, esse homus lembrava a argamassa que passávamos nas paredes. De alguma forma ele conseguia ser pegajoso e calcário ao mesmo tempo. Não passava de pasta de grão-de-bico com água — muita água — misturada. (Adicionar um cubo de gelo ao homus proporciona uma textura leve e cremosa; adicionar mais de um é um truque que alguns restaurantes usam para economizar dinheiro.) Nada de tahini, nada de alho, nada de suco de limão. Nada de azeite de oliva. Apenas tinha ficado lá, parado na cozinha por muito, muito tempo. Olhei para Mohamad. — Eu devia ter avisado — disse ele, dando um meio sorriso piedoso. — A comida daqui é bem ruim. Fiquei envergonhada. Eu havia lido uma porção de livros sobre as sanções e sobre Saddam. Ainda assim, por isso eu não esperava. O Oriente Médio não era uma região que algum dia eu tivesse associado a comida ruim. — É assim em qualquer lugar? Ou só aqui? De todos os estrangeiros em Bagdá, Mohamad era um dos únicos que não depreciava a comida iraquiana. Ele pegou um pedaço de baguete em formato de bola de futebol americano, passou um pouco daquela massa corrida e colocou na boca. Mastigou um pouco a coisa e pensou sobre a pergunta. — Os iraquianos — disse — fazem um pão muito bom. A guerra destrói os sistemas de abastecimento. Destrói a ordem natural dos ingredientes e do trabalho. Força as pessoas a se concentrarem mais no sustento que no sabor. Parecia loucura, mesmo criminoso, chegar a um país devastado pela guerra, com um povo esmagado entre a ocupação e a insurgência, e esperar uma refeição decente. Mas eu sabia por Mohamad e outras pessoas de Beirute que a comida fora uma das poucas coisas que fez com que as pessoas seguissem em frente durante a cruel e interminável guerra; que boas refeições, na companhia de pessoas amadas, ajudaram-nas a suportar o que estava acontecendo. Como os iraquianos sobreviviam sem isso? Não era só o Hamra. No Clube de Caça, o parquinho da elite petrolífera do país, serviam-se pilhas de cartilagem sob o murmúrio de uma nuvem de moscas letárgicas. Outros restaurantes luxuosos não eram muito melhores. O cardápio nunca variava: carne. Kebabs de carne, carne frita, carne cozida. Carne com arroz, carne com pão, carne com carne. Tudo coberto com as bolhas de gordura brancas que os iraquianos adoravam, mas o resto do mundo inteiro odiava. Não era a guerra. A comida iraquiana, todos diziam, era simplesmente horrível, mesmo antes da invasão. Alguns especulavam que era genético, outros, cultural. A maioria assumia que era endêmico ao lugar. Um jornalista americano que passou anos em Bagdá descreveu a comida como “uma guerra contra suas papilas gustativas”. À medida que a guerra se arrastava, a culinária iraquiana tornou-se uma piada frequente entre os militares, os voluntários humanitários, os correspondentes de guerra e outros forasteiros que chegavam a Bagdá. As pessoas riam dizendo que estavam fazendo a “Atkins iraquiana”. Vegetarianos mordiscavam piedosamente macarrão e homus. Alguns voltaram a comer carne por puro desespero. Todos brincavam dizendo que a comida iraquiana era a real arma de destruição em massa. Os críticos mais ferrenhos eram as pessoas que vinham de outras áreas do Oriente Médio: sírios, iranianos, libaneses. No Irã, quando queriam um termo depreciativo para os árabes, as pessoas recorriam ao antigo epíteto “comedores de lagarto” — um insulto persa, de milhares de anos, à dieta tradicional beduína. — Os iraquianos nunca tiveram uma comida boa — dizia Rebecca, uma amiga libanesa que trabalhava

como tradutora em Bagdá. — Meu pai vinha muito para cá a trabalho antes da Guerra do Golfo e era exatamente como agora. Os restaurantes eram terríveis. Todos os libaneses traziam a própria comida! — E completou com uma coisa que eu ouviria muito no Líbano: — Sempre tivemos a melhor comida. Outra jornalista que conheci resumiu tudo. Depois de anos em Bagdá, ela desenvolveu sensibilidade e compaixão raras para com os iraquianos. Mas não tinha simpatia nenhuma pela comida. — Como é que se pode escrever sobre a culinária do Iraque? — perguntou ela, com uma risada incrédula quando eu disse que estava escrevendo este livro. — O Iraque não tem culinária! Fiquei pensando naquilo. Em Nova York, sempre ouvi as pessoas falarem com autoridade serena sobre como a comida do Meio-Oeste era sem graça. De acordo com esses sofisticados citadinos (muitos deles também vindos das regiões ribeirinhas), vivíamos de caçarola de batatas chips. Nossa culinária consistia de abrir latas; nossos temperos eram o sal e a pimenta. Tínhamos almas de pão de forma. Mas cresci comendo pudim de caqui, uma receita tradicional do sul de Indiana, com aromas de canela, gengibre, noz-moscada e cravo-da-índia. Minha mãe cozinhava cogumelos dos flancos musgosos da floresta escura e úmida. Ela me levava à pousada Porthole para comer bagre frito apimentado, servido com hush puppies, bolinhos crocantes de farinha de milho com um interior macio. Frango que chegava ao mercado de caminhão por fazendeiros antes do amanhecer — aves que tinham mais gosto de grama, chicória selvagem e terra molhada, tinham mais gosto de frango, que os pequenos cadáveres industrializados embalados a vácuo. Bolo de milho tão doce que poderia causar um desmaio. Manteiga de maçã tão rica que deveria ser processada. A verdadeira comida do Meio-Oeste tinha gosto de cogumelos e sassafrás, florestas virgens e prados intocados, picantes de margaridas e cenouras selvagens. Então quando moradores da Costa Leste opinavam sobre nossa culinária insossa do Meio-Oeste, eu apenas concordava com a cabeça e ficava de boca fechada. Podem continuar achando isso, pensava comigo mesma. Mais pudim de caqui para mim. E se com o Iraque também fosse assim? A comida que os estrangeiros comiam — não necessariamente a mesma coisa que comida iraquiana — era ruim. Mas era ruim porque os iraquianos eram incultos beduínos comedores de lagarto que nunca dominaram as artes culinárias? Ou outra coisa estava acontecendo? Uma vez que fazemos essa pergunta, a equação toda muda. Pode ser arrogante esperar comida boa de povos derrotados por décadas de guerras, sanções e ditaduras. Mas também é arrogante não esperar. Dizer que um país não tem culinária parece dizer que não tem cultura, não tem sociedade civil. Aquela refeição horrorosa no Hamra foi um desafio, um enigma. Aquele era a Crescente Fértil, onde a civilização e a agricultura começaram. Tinha de ter uma culinária. E eu imaginava que seria boa. Então decidi sair e encontrá-la.

7 TORNANDO-SE HUMANO

NUM PAÍS MUITO DISTANTE, há um rei chamado Gilgamesh. Isso foi há muito tempo. Ele é corajoso e bonito. Dois terços deus e um terço humano. Ele constrói a metrópole de Uruk, com sua grande muralha, a maior cidade que o mundo já viu. E quando uma enchente terrível destrói a cidade, ele a constrói novamente. Mas lentamente Gilgamesh começa a ficar malvado. Ele toma os jovens de seus pais e os mata. Exige dormir com noivas na noite de núpcias. “Ele exibe seu poder sobre nós como um touro selvagem”, as pessoas começam a se queixar. O povo de Uruk recorre à ajuda dos deuses. Os deuses vão a Aruru, a deusa que começou toda essa confusão ao criar Gilgamesh e toda a raça humana. — Você tem que tomar uma atitude em relação a esse cara — pedem a ela. — Faça um homem que consiga enfrentá-lo. Aruru suspira, fecha os olhos, pergunta-se por que não se dedicou ao arco e flecha. Então lava as mãos, pega um pedaço de barro e molda um cara que consegue enfrentar o poderoso Gilgamesh de verdade. Enkidu é peludo, loiro e tem duas vezes o tamanho de um homem normal. Vive no deserto, fora dos muros da cidade. Anda por aí nu, bebendo na fonte com os animais e comendo grama com as gazelas. Um dia um caçador vê Enkidu agachado na fonte. O selvagem levanta a cabeça. Seus olhos se encontram. De repente, o caçador percebe que esse selvagem peludo é o ativista dos direitos dos animais que tem desarmado suas armadilhas, fechado seus buracos e libertado animais selvagens capturados. O caçador fica tão horrorizado que corre até a cidade e vai direto a Gilgamesh e suplica: — Você tem que tomar uma atitude em relação a esse cara. O poderoso Gilgamesh, assim como todos os deuses que vieram antes dele, corre imediatamente para uma mulher. E que mulher! Shamhat — meio sacerdotisa, meio prostituta. Ela trabalha no templo de Inanna, deusa do amor e da guerra. Shamhat sabe exatamente como lidar com esse homem selvagem: vai direto até a fonte e tira toda a roupa. Quando Endiku a vê, esquece imediatamente seus amigos animais. Shamhat o tira de seu estado natural com as duas influências civilizadoras mais antigas e eficazes: primeiro dorme com Enkidu até que ele esteja “satisfeito com seus encantos”. Isso leva seis dias e sete noites. Em seguida (devem estar com muita fome a essa altura) ela o leva para comer e beber. Enkidu olha para aquilo e pergunta: O que é isso? Enkidu não sabia comer o pão, e a beber cerveja nunca havia aprendido. A meretriz falou a Enkidu: “Coma o pão, Enkidu, é o que se faz para viver. Beba a cerveja, que é o costume da terra.” Enkidu comeu o pão até que estivesse saciado, ele bebeu a cerveja — sete jarros! —, se tornou efusivo e cantou com alegria! Estava extasiado e seu rosto brilhava. Lavou o corpo peludo com água, E esfregou-se com óleo e tornou-se humano.

Se você é como eu, a primeira coisa que pensou depois de ouvir esse épico mesopotâmio antigo sobre comida, sexo e civilização foi: então o que eles comiam? No princípio era o verbo. E com o verbo veio a habilidade de dizer estou com fome. Então logo depois do verbo veio a receita. Até os anos 1980, estudiosos acreditavam que o livro de culinária mais antigo do mundo era De re coquinaria (Sobre a culinária), uma coleção de receitas romanas que se acredita ter sido compilada no fim do século IV ou início do V, mas atribuída ao gourmand romano do século I Apicius. Então um historiador francês chamado Jean Bottéro começou a traduzir meticulosamente três tábuas de argila rachadas, originalmente do sul da Mesopotâmia, da Coleção Babilônica da Universidade de Yale. A maioria dos historiadores acreditava que as tábuas continham fórmulas farmacêuticas. Mas quando Bottéro começou a traduzir a escrita cuneiforme, descobriu que nas tábuas estava a coleção de mais ou menos quarenta receitas que datavam de cerca de 1.600 a.C. — sendo não só as primeiras receitas do Iraque ou as primeiras receitas do Oriente Médio, mas as primeiras receitas de que temos notícia na história do mundo. Bottéro, sempre acadêmico, não considerou as tábuas “manuais de culinária” no sentido moderno do termo — eram instruções para um ritual da classe sacerdotal, não foram feitas para o público em geral. Mas essencialmente as tábuas são sem dúvida um livro de receitas como as cópias dos livros de receitas mais antigas, gastas e manchadas de manteiga que minha mãe tem em casa. As receitas (que eram provavelmente ditadas para escribas por diferentes cozinheiros) contêm instruções para uma série de ensopados e combinações sofisticadas e tentadoras de carne e grãos. Algumas são listas de ingredientes concisas e profissionais (como as de Elizabeth David, que não dá medidas de ingredientes ou tempos de cozimento). Outras davam instruções meticulosas divididas em tarefas específicas (como as da generosa e loquaz Julia Child). As ações básicas são as mesmas que fazemos em nossas cozinhas hoje: abra o frango, tire sua moela, sele a carne, adicione água. Nossos cozinheiros anônimos (que provavelmente eram homens) até amarravam as pernas da ave, exatamente como fazemos hoje. E distribuíram créditos a obras emprestadas: uma receita “aos elamitas”, que viveram onde agora é o sudeste do Irã, e outra foi marcada como de “estilo assírio”. A receita mais complexa e atraente é a de uma de ave temperada com cebolas e ervas e servida numa casca de pão dividida em duas partes, uma em cima e outra embaixo: empadão de frango de 3.600 anos. Mas o que eles comiam? As tábuas não dizem exatamente, porque foram escritas mais ou menos mil anos depois da época de Gilgamesh (o período no qual o personagem em que o épico se baseia supostamente viveu), por volta do que estudiosos acreditam ser mais ou menos 2.600 ou 2.700 a.C. Porém, graças a Bottéro e a outros tradutores de textos antigos, temos uma ideia muito mais precisa, e o mais surpreendente nessas receitas antigas não se deve a estranhezas, mas a como as coisas mudaram pouco. Sabemos que os mesopotâmios gostavam de ensopado, e como Nawal Nasrallah, escritora de livros de receitas iraquianas, observa em Delights from the Garden of Eden, seu guia definitivo para a culinária iraquiana, os ensopados de vegetais e carne evoluíram para os margas, que são um prato básico no Iraque até hoje. Sabemos que os mesopotâmios antigos bebiam muita cerveja. (Eles faziam até uma cerveja com sabor de romãs, que é algo que eu adoraria experimentar.) Também gostavam de grãos parboilizados e torrados muito similares ao bulgur e ao frikeh de hoje. Faziam pão com cevada, trigo e emmer, uma linhagem antiga de trigo conhecida hoje como farro. E sabemos que eles gostavam de sabores fortes: com ervas e temperos como coentro e cominho, muitas das receitas de ensopados das tábuas de Bottéro terminam com alguma variável de “adicione alho, cebola e alho-poró triturados” — uma instrução de que me lembraria depois, quando a mãe de Mohamad me ensinou a fazer seu ensopado de abobrinha.

Mais ou menos 3.600 anos depois de os cozinheiros de Bottéro terem ditado suas receitas, eu estava fazendo ensopado de frango com um refugiado iraquiano chamado Ali Shamkhi. Ele morava com dois amigos, também refugiados, num bairro na periferia de Beirute. Os três homens se alimentavam e combatiam a saudade de casa fazendo comida tradicional iraquiana, ligando de vez em quando para suas mães no Iraque para pegar conselhos sobre receitas. Ali cozinhava a ave de um jeito que eu nunca tinha visto antes: primeiro lavava o frango em água corrente, sussurrando “Bismillah”, em nome de Deus, em respeito à carne que iríamos comer. Ele a fervia por mais ou menos cinco minutos em quantidade suficiente de água apenas para cobrir a carne. Depois coava o caldo de galinha dessa fervida inicial e — para meu desespero — jogava tudo no ralo. — Despejamos a água do frango depois da primeira fervura para tirar o odor — explicou. — O frango fica mais saboroso dessa forma. Percebi isso diversas vezes quando iraquianos cozinhavam. Eles ferviam a carne, o arroz, o peixe — até vegetais como o quiabo — primeiramente por alguns minutos. Em seguida despejavam a água e adicionavam nova, às vezes até mesmo trocando a panela, para o segundo cozimento. Alguma coisa nessa prática me incomodava. Já tinha ouvido falar daquilo, mas onde? Então lembrei: era assim que os cozinheiros sumérios ensinavam seus leitores a preparar aves. (Bottéro chamava isso de “mania de lavar a carne depois do primeiro cozimento”.) Os iraquianos fazem ensopados assim há 3.500 anos. Depois da Revolução Neolítica, mas antes de Gilgamesh — os historiadores não sabem exatamente quando, mas é provável que seja muito antes de 3.000 a.C. —, os habitantes perceberam que as terras entre o Tigre e o Eufrates seriam muito mais verdes se fosse possível controlar as poderosas águas dos dois rios. Cavaram canais entre os rios, inventaram a irrigação e se estabeleceram como agricultores. De repente, precisavam manter sob controle coisas como safras, excedentes e sementes. E assim a escrita surgiu não muito tempo depois — que é provavelmente o motivo de a deusa dos grãos, na Mesopotâmia antiga, ser também o deus da escrita e da contabilidade. (Os mesopotâmios também tinham uma deusa da cerveja.) O pão foi o centro dessa revolução agrária. No acádio cuneiforme, a língua semita das tábuas de Bottéro, “pão” era sinônimo de comida: a palavra para “comer”, akâlu, era o símbolo do pão indo ao símbolo da boca. Tábuas de argila babilônicas datadas de mais ou menos 2.000 a.C. listam pelo menos trezentos tipos de pão, todos com ingredientes, sabores e métodos de preparo diferentes. Eles faziam pães em formato de mãos humanas e até de seios femininos — uma pequena diferença em relação ao pão como o alimento original e essencial. Os mesopotâmios assavam muitos de seus pães em um tinuru, um forno de argila cilíndrico com o topo aberto diabolicamente quente. Eles enrolavam a massa em pequenos cilindros e deixavam que o glúten descansasse. Então os espalhavam como panquecas e batiam-nos nas paredes internas escaldantes do forno, onde imediatamente borbulhavam em pães achatados consistentes. Milhares de anos depois, iraquianos ainda fazem pão exatamente da mesma maneira nas padarias de bairro. A palavra acadiana para “comer”, o pequeno ideograma do pão indo em direção à boca, sobrevive até hoje como o verbo árabe akala, “comer”, e o substantivo imediatamente relacionado akil, “comida”. O tinuru acadiano continua vivo como o tanoor árabe, o tanura iraniano e o tandoor sul-asiático. Na próxima vez em que pedir frango tandoori em um restaurante indiano, engula isso: você está falando uma palavra que as bocas humanas vêm pronunciando, de uma forma ou de outra, há pelo menos 4 mil anos.

8 O MOVIMENTO DOS AMANTES DEMOCRÁTICOS

NOSSO QUARTO NO HAMRA tinha uma cozinha, então em nosso segundo dia em Bagdá saí para fazer compras. Acabei no souq al-ajanib, o mercado dos estrangeiros, onde aparentemente eu era a única estrangeira. O mercado se tornou um dos meus lugares preferidos em Bagdá e eu ia lá com frequência, principalmente quando precisava do consolo dos frutos. Alfaces romanas saíam como uma avalanche das caçambas de caminhonetes. Havia cestas tecidas à mão transbordando de figos roxo-escuros enrugados e macios como bebê. Berinjelas brilhavam como lágrimas obsidianas gigantes. Em lojas escuras, bananas pendiam do teto em cordas peludas como iscas de uma aranha gigante da selva. E os tomates: intensos, suculentos e vermelhos, empilhados em pirâmides sangrentas como as cabeças das vítimas de Hulagu. Na primeira visita comprei tomates e azeitonas pretas carnudas importadas da Turquia, e naquela noite, em vez de comer no restaurante do hotel, Mohamad e eu jantamos macarrão à puttanesca. Puttanesca é meu molho de macarrão preferido. Como um bom amigo, é flexível e clemente; confiável, constante, mas também disposto a evoluir. E, como um bom amigo, está pronto para você em mais ou menos vinte minutos quando se precisa realmente dele. E também tem a questão do nome: “o macarrão das prostitutas”. Diz a lenda que puttanesca foi inventado por garotas trabalhadoras que precisavam de um molho que pudessem preparar e comer rapidamente entre um cliente e outro. Esses mitos sobre a origem dos pratos são quase sempre apócrifos, mas oferecem sabor ao prato. O nome dá ao puttanesca um gosto remanescente de sexo — isso, diz o nome, é um molho para mulheres “trabalhadoras”. Houve alguns momentos desesperadores em que eu estava tirando o caroço das azeitonas com uma faca sem fio. Odiei-me por ter deixado o descaroçador em Beirute e me perguntava se eu tinha ido até o Iraque apenas para me tornar uma dona de casa retardada. Mas então me lembrei da massa corrida que serviam lá embaixo e de repente fazer puttanesca em Bagdá não parecia tão irracional. Empurramos os computadores e os jornais iraquianos para um lado da mesa. Abrimos uma garrafa de Massaya, o excelente vinho libanês encontrado em Bagdá, e sentamos para comer. — Estou feliz que esteja aqui — disse Mohamad. Alguns dias depois, fomos visitar o Institute for War & Peace Reporting, um grupo sem fins lucrativos que treina repórteres independentes em zonas pós-conflito — o que o Iraque, naquela época, deveria ser. Assisti a uma aula ministrada por Maggy e Hiwa, jornalistas que Mohamad conhecia de suas passagens anteriores por Bagdá. Os estudantes fizeram um bombardeio de perguntas. Estavam todos ansiosos para escrever histórias reais, não a propaganda que cresceram ouvindo, e contar ao mundo o que estava acontecendo no Iraque. A maioria era de estudantes de vinte e poucos anos, mas também havia alguns oficiais militares aposentados, homens mais velhos que haviam desperdiçado a juventude em guerras em que não acreditavam e queriam começar uma vida nova. O que eles queriam era muito, mas parecia possível na época — atravessar décadas no espaço de um verão, voltar 35 anos num pulo exuberante ao passado. — Antes, não podíamos falar nada — disse um jovem magro, um comunista apaixonado chamado Salaam. — Então agora estamos tentando dizer tudo de uma vez… falar de comida ou de qualquer outra

coisa. — Salaam foi o primeiro comunista que conheci que elogiava George W. Bush filho, mas ele não seria o último. Depois da aula, sentei do lado de fora a uma mesa de piquenique e conversei com os estudantes durante algum tempo. Havia um jovem musculoso de 21 anos chamado Ali que tinha um sorriso lento e torto. Ele ia à Babilônia e voltava todos os dias — uma viagem de quatro horas — só para assistir às aulas. — Ele é um guerreiro! — disse uma garota com feições delicadas e pálidas e cabelo loiro-areia. Ela se sentou à mesa de piquenique e levantou o pequeno queixo arredondado, olhando de Ali para mim com uma expressão intensa. Por um segundo fiquei irritada por ter sido interrompida. Mas depois decidi que gostava da ousadia: a maneira de se sentar à mesa e da sua opinião como se eu devesse ter perguntado alguma coisa a ela. Seu nome era Roaa. Contratei-a como minha tradutora. Mas como a maioria dos tradutores, ela acabou se tornando muito mais. Em 1951, um sociólogo iraquiano chamado Ali al-Wardi pronunciou um célebre discurso na Universidade de Bagdá. Revisitando Ibn Khaldun, o filósofo do século XIV que dividiu a civilização em beduínos e citadinos, Wardi delineou duas tendências coexistentes na sociedade iraquiana: badawah, beduinismo, e hadarah, civilização estabelecida, que ele relacionou a urbanismo e modernidade. — A visão tradicional de Ibn Khaldun é que existem dois tipos de pessoas: os moradores da cidade e os nômades, sempre em conflito — disse-me Faleh Jabar, um sociólogo e autor iraquiano proeminente. — Ali al-Wardi inverte isso: ele coloca os dois lados na mesma pessoa, no mesmo personagem. Ele transforma isso num tipo de luta psicológica, uma esquizofrenia, se preferir. Essa luta, Wardi argumenta, definiu a história e as características do Iraque — e, por extensão, de todo o Oriente Médio. Em meados do século XX, o Iraque era um dos países mais modernos da região. Apesar das divisões étnicas e religiosas na sociedade, Bagdá possuía uma vida civil próspera: um museu de arte antiga, um museu de arte moderna, uma orquestra sinfônica. Seus hospitais e universidades atraíam estudantes de todo o Oriente Médio. O arquiteto bauhaus Walter Gropius projetou uma biblioteca para a Universidade de Bagdá cujos arcos imponentes simbolizavam uma mente aberta, como iraquianos me disseram décadas depois. Em 1948, o Iraque tornou-se o primeiro país árabe a conceder o voto às mulheres. Onze anos depois, o governo teve a primeira ministra mulher do mundo árabe. No mesmo ano, uma lei proibiu o casamento infantil e garantiu às mulheres iraquianas o direito ao divórcio. A taxa de alfabetização aumentou: “Cairo escreve, Beirute publica e Bagdá lê”, dizia um ditado bastante conhecido. Se Beirute era a Paris do Oriente Médio, então Bagdá poderia reivindicar ser Londres ou Berlim. Mas ainda havia divisões profundas entre os iraquianos, que o Partido Baath explorou quando tomou o poder em 1963 e novamente em 1968. Um movimento secular que enfatizava a identidade pan-arábica, os Baath canalizavam o fervor revolucionário que varria a região. O partido realizou sangrentos expurgos de escritores, intelectuais, artistas e professores e até mesmo entre sua classe. Judeus iraquianos eram “agentes sionistas”. Xiitas iraquianos eram infiltrados persas. Comunistas espetaculosos eram espiões russos. Julgamentos aparentes seguidos de execuções públicas reforçavam o antigo provérbio: meu primo e eu contra o forasteiro, ou então… O principal mantenedor desse novo regime era Saddam Hussein. Saddam era um homem das tribos rurais, de uma classe que as elites urbanas chamavam de “aqueles que comem com cinco”, ou seja, com os dedos, o jeito beduíno. Mas o jeito beduíno acabou ganhando. (Ibn Khaldun, que sempre gostava de ficar do lado dos vencedores, provavelmente culparia os talheres burgueses.) Em meados dos anos 1970, o presidente iraquiano era apenas figurativo: seu primo Saddam, que

liderava uma teia elaborada de redes de inteligência, governava efetivamente o país. Saddam supervisionou a nacionalização dos ativos de petróleo, confiscando-os das empresas estrangeiras quando os preços começaram a subir durante a crise do petróleo; as receitas do petróleo foram de 1 bilhão a 8 bilhões de dólares em pouco mais de dois anos. Grande parte dessa nova receita foi para as armas e os militares. Mas ainda havia o suficiente para construir rodovias, hospitais e sistemas de saneamento básico e para financiar projetos agrícolas e industriais. Nos anos 1970, o desenvolvimento econômico e social do Iraque, conforme medido pelo Banco Mundial, era o mesmo de países europeus com renda média alta, como a Tchecoslováquia e a Grécia. Mas Saddam já havia começado a isolar o Iraque do resto do mundo. “Ensinem seus filhos a terem cuidado com o estrangeiro”, ele instruiu em um discurso, publicado em 1977, para funcionários do Ministério da Educação, “pois ele é um par de olhos para seu país e alguns deles são sabotadores da revolução”. Dar a empresas ou até mesmo aos filhos nomes de estrangeiros era suspeito. Conhecer um “estrangeiro” era o suficiente para ser submetido a um interrogatório. Quando Saddam finalmente tornouse presidente, em 1979, expurgou o Partido Baath mais uma vez e preencheu o alto escalão do governo com parceiros leais, seus primos, tios e cunhados. No mesmo ano uma revolução islâmica expulsou o xá tirânico do Irã e trouxe ao poder o xiita aiatolá Ruhollah Khomeini. Em 1980, alarmado pelas agitações entre a maioria xiita do Iraque, Saddam invadiu o vizinho Irã. Países ocidentais, incluindo os Estados Unidos, e seus aliados árabes deram-lhe auxílio, armas e apoio de inteligência irrestritos ao longo da Guerra Irã-Iraque. A guerra, que durou oito anos, matou pelo menos 1 milhão de pessoas no total, drenou a riqueza petrolífera do Iraque e o deixou com uma dívida de bilhões de dólares com outros países, incluindo o vizinho Kuwait. O pequeno reino do deserto se recusou a perdoar a dívida. Saddam o invadiu em agosto de 1990, e a Arábia Saudita, aliada americana rica em petróleo, pensou que poderia ser a próxima. O Conselho de Segurança das Nações Unidas isolou o Iraque e impôs sanções que impediam Saddam de exportar petróleo. Em janeiro de 1991, uma grande força liderada pelos Estados Unidos expulsou as tropas iraquianas do Kuwait para o sul do Iraque. O presidente George W. Bush pai insistiu que os iraquianos se levantassem contra Saddam, e eles assim o fizeram: rebeliões explodiram no coração xiita no sul do país e no norte de maioria curda. Mas Bush e seus assessores temiam que se o regime sunita de Saddam caísse a maioria xiita tomaria o poder — e se aliaria ao Irã. Os militares norte-americanos permitiram que Saddam atacasse os rebeldes atirando de helicópteros. Quando o regime derrotou os levantes, dezenas de milhares de iraquianos haviam sido executados, principalmente rebeldes curdos e xiitas. Ao final do reinado de Saddam, seu regime havia executado alguns milhares de seus cidadãos. Sanções das Nações Unidas permaneceram até a invasão dos Estados Unidos em 2003. Como o Iraque estava proibido de importar produtos químicos e equipamentos necessários para instalações de saneamento, quase 227 milhões de quilos de esgoto não tratado terminavam no Tigre todos os dias. Sem as exportações de petróleo e com pouca atividade econômica, a moeda do Iraque entrou em colapso. O preço dos alimentos subiu em disparada: em agosto de 1995, a farinha de trigo custava quatrocentas vezes mais que durante o pré-guerra. Os salários das pessoas ficou quase sem valor. As famílias de classe média tinham dificuldades em comprar alimentos básicos, como ovo e leite. Carne se tornou um luxo. Em 1988, 7% das crianças de Bagdá mostravam sinais de obesidade infantil; em meados da década de 1990, centenas de milhares de crianças iraquianas morriam de uma combinação letal de má nutrição, água contaminada e doenças infecciosas. Ainda na década de 1990, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação estimou que 576 mil crianças com menos de cinco anos haviam morrido como resultado das sanções. (Estimativas

posteriores baixaram o número para perto de 250 mil — um número, ainda assim, muito alto.) Numa entrevista de 1996 para o 60 Minutes, a correspondente da CBS Lesley Stahl perguntou a Madeleine Albright, a então embaixadora americana nas Nações Unidas, se as sanções faziam valer aquele preço. “Acredito que essa seja uma escolha muito difícil”, disse Albright, em um comentário de que veio a se arrepender mais tarde, “mas o preço vale a pena”. Em 2003, a maioria dos americanos já havia esquecido a declaração. Muitos iraquianos não. As sanções quase não prejudicavam Saddam e seus comparsas: seu círculo íntimo conseguia tudo de que precisava, graças ao contrabando de petróleo e a reservas de dinheiro. Ele transformou o programa Oilfor-Food, ou petróleo por alimentos, destinado a alimentar os iraquianos empobrecidos, num esquema de propinas lucrativo. Mas ao mergulhar iraquianos de classe média na pobreza, as sanções fizeram com que acabassem ainda mais dependentes do regime: uma professora de escola que ganhava dez dólares por mês não colocaria em risco sua quota de alimentos, que recebia do governo, ao criticar Saddam. O Iraque havia se tornado, como o escritor iraquiano Kanan Makiya descreveu em seu livro Cruelty and Silence, de 1993, uma prisão gigante. Durante aquele tempo, a classe média escolarizada do Iraque começou a vender seus livros — mais um vínculo com o mundo exterior — para comprar comida. Na luta histórica de Wardi, não havia dúvida sobre qual lado era o vencedor. Roaa nasceu em Bagdá em 1980, no ano em que a Guerra Irã-Iraque começou. Como outros jovens iraquianos, aprendeu a manusear uma Kalashnikov na escola. Os professores ensinavam as crianças a chamar o presidente de Tio Saddam e no início de cada aula ela gritava com todos os outros alunos: “Vida longa ao grande Saddam!” Em 1988, quando a guerra arrefeceu, as tropas de Saddam pulverizaram gás venenoso na cidade curda de Halabja. Mais ou menos 5 mil pessoas morreram — algumas em minutos, corpos congelados em agonia onde quer que estivessem, e milhares de outras mais tarde, quando o veneno atacou seu sistema nervoso. A família de Roaa é curda, e vários de seus tios morreram em Halabja. Na época, ela tinha oito anos. O pai de Roaa trabalhava para a Iraqi Airways como engenheiro de voo, um bom emprego que confortavelmente os classificava como classe média iraquiana. Seus pais viajavam para a Turquia, a Grécia, o Líbano — até para a China e o Japão. Quando ela era criança, eles a levaram para passar dois meses no Canadá e um mês na França. Aquelas primeiras viagens deixaram-na ansiosa para aprender outras línguas e conhecer o mundo. Mas, em 1990, depois da primeira Guerra do Golfo, quando as sanções proibiram que voos saíssem e entrassem no Iraque, seu pai perdeu o emprego e eles se juntaram ao restante da classe média iraquiana que desaparecia. Roaa e seus irmãos pertenciam a uma geração de jovens iraquianos cujas capacidades estavam sendo desperdiçadas, e eles sabiam disso. Qualquer um que tivesse nascido depois de 1968 havia crescido sem conhecer um mundo sem Saddam. Garotas como Roaa sonhavam com as coisas que suas mães de minissaia puderam aproveitar — viagens, festas, ensino superior. — Quando minha mãe fala de sua vida, e da diversão que teve nos anos 1960 e 1970, sinto como se tivesse perdido a minha — disse-me Roaa certa vez. — Não sou só eu. Todos nós sentimos assim. Uma de suas poucas ligações com o mundo exterior era o Shabab TV, ou TV Juventude, um canal de televisão pertencente a Uday, filho de Saddam. O Shabab TV transmitia ocasionalmente versões piratas de filmes americanos, e um deles se tornou um ícone para os jovens iraquianos: O show de Truman, filme de 1998 cujo herói é o protagonista involuntário de um elaborado reality show. — Para os iraquianos da minha idade, é exatamente como vivíamos sob o governo de Saddam — disseme. — Você estava sempre sendo observado, nunca estava sozinho, nem mesmo à noite, na cama. A família de Roaa morava perto de um dos muitos palácios de Saddam. No início de 2003, quando a

invasão se aproximava, ela tinha medo de que a pequena casa fosse bombardeada. Para o caso de a família ter que sair de repente, cada um deixava uma mala sempre feita. Todos tiveram que decidir do que precisariam se nunca mais fossem ver sua casa. Olhando pelo quarto, Roaa percebeu que suas posses mais importantes eram os bichos de pelúcia que havia ganhado de colegas de escola. Pegou um urso que ganhou da melhor amiga e que batizara de Champagne. — Porque ele era exatamente da mesma cor que o champagne. Um ano depois, ao me contar sobre o urso, seus olhos se encheram de lágrimas. — Pode não ser tão importante para outras pessoas, mas era para nós, porque são nossas memórias — disse, um pouco na defensiva. — Não gosto de jogar as coisas fora. Gosto de manter todos os pequenos detalhes de mim mesma. É importante, porque é tudo que nos sobrou do passado. O passado não havia deixado muita coisa: algumas fotos e um urso de pelúcia com o nome de uma bebida que Roaa nunca tinha experimentado. Aos 23 anos, preparava-se para morrer sem nunca ter vivido. Quando a guerra veio e sua casa não foi bombardeada, Roaa se pegou pensando pela primeira vez no futuro. Antes, sonhava em ser diplomata e visitar terras estrangeiras. Mas para a geração dela, desmamada a mito e propaganda, o próprio Iraque era terra incógnita: mesmo dentro do país, o regime mantinha rédeas curtas quanto aonde as pessoas iam e com quem falavam. Agora as aulas de jornalismo davam a ela uma chance de explorar seu país e se comunicar com o resto do mundo. Para o iraquiano comum, viajar ainda não era fácil — era preciso passaportes, que exigiam dinheiro para suborno, e países dispostos a emitir vistos para os iraquianos. Mas no verão e no outono de 2003, estrangeiros começaram a ir a Bagdá: gurkhas nepaleses, empreiteiros americanos, milicianos libaneses da guerra civil, restaurateurs chineses, escritores britânicos e exilados iraquianos que tinham fugido para Londres, Paris e Beirute décadas antes. Quando cheguei a Bagdá, no final de 2003, metade do mundo já estava lá. A cidade mudava. Nos meses após a invasão, as taxas de casamento subiram; os aluguéis aumentaram; recém-casados foram morar com os pais; o número de divórcios cresceu. Em centros comerciais como Arasat, banners de vinil com muito efeito de Photoshop gritavam os nomes das marcas que inundavam o país ao passar pelas fronteiras recém-porosas: Samsung, Davidoff, Gauloises. Nas praças públicas, cartazes escritos à mão em árabe e inglês anunciavam novos partidos políticos e grupos orgulhosos com nomes que incitavam o otimismo: Frente Nacional dos Intelectuais Iraquianos. Movimento dos Amantes Democráticos do Iraque. A Humanidade do Iraque e a Sociedade das Famílias Lesadas. O Elo dos Civis Retardados. Os Defensores da Organização para o Povo Iraquiano. Foi a primeira vez que fiquei num país estrangeiro por mais de duas semanas. Tudo parecia novo e estranho para mim também. Os costumes eram diferentes: os homens iraquianos andavam pelas ruas de braços dados, com o rosto colado no pesçoco uns dos outros como se fossem amantes, mas Mohamad e eu não podíamos dar as mãos em público que todo mundo olhava. Os iraquianos falavam sobre Hamurabi e Assurbanípal como se fossem parentes que tinham vindo tomar um chá na semana anterior. As pessoas tinham um senso de humor selvagem e absurdo. Os caras do cybercafé em frente ao Hamra decoraram as paredes com impressos de piadas que eles mesmos criavam; uma delas dizia: “Não se preocupe se seu computador falhar, é só uma questão de bomba!”, pontuada com um smiley e um ícone de bomba. Comecei a passar o tempo com um grupo de artistas, poetas e dramaturgos, que ficavam nos cafés e nas livrarias, intelectuais que fumavam um cigarro atrás do outro e tinham conversas longas e acaloradas sobre

arte, literatura e Jim Morrison. Eles se chamavam de Al-Najeen, os sobreviventes. A maioria deles era de homens de vinte e poucos anos: Basim Hamed, que havia feito a escultura modernista de uma família iraquiana contra um sol e uma lua crescente que substituíra a famosa estátua de Saddam na praça Firdous que iraquianos e soldados americanos tinham derrubado em 9 de abril; Basim al-Hajar, o dramaturgo que estreou uma peça nas ruínas do Teatro Al-Rasheed menos de um mês depois que o regime caiu; e Oday Rasheed, diretor cinematográfico de 31 anos que estava rodando o primeiro longa-metragem pós-guerra do Iraque. Depois de muitas rejeições (a maioria dos editores queriam histórias sobre os insurgentes), eu havia conseguido convencer um jornal a publicar uma história sobre o filme de Oday. Roaa e eu marcamos uma reunião para encontrar Oday e seus amigos no apartamento deles. Roaa gostava dos Najeen; nós duas considerávamos os meninos nossos amigos. Mas quando estávamos andando pelas ruas movimentadas tentando encontrar o apartamento deles, ela começou a olhar ao redor inquieta. Quando chegamos a um beco escuro e estreito em frente ao prédio deles, Roaa parou e olhou para cima, em direção às janelas cobertas de fuligem, com uma expressão de incerteza e medo. Ela não queria entrar. — Você não entende — disse ela. — Em nossa cultura, é esse tipo de coisa… entrar na casa de alguns homens… — Ela parou por alguns instantes. — Se alguém me visse entrando nessa casa, diria que estou fazendo coisas erradas. O termo “coisas erradas” aparecia frequentemente em minhas conversas com mulheres iraquianas. Sua inexatidão era corrosiva: era possível imaginar qualquer coisa, e as pessoas imaginavam. O termo tinha o poder de impedir que mulheres como Roaa visitassem um grupo de homens gentis e inteligentes da idade dela. Mantinha as mulheres fora da vida pública; fora de qualquer vida que não fosse a cozinha. — Olha, você não precisa entrar — disse eu, provavelmente menos paciente do que deveria ter sido. — Eles falam inglês o suficiente, posso falar com eles. Você pode ir para casa. Roaa respirou fundo. — Não — disse, e levantou o pequeno queixo. — Esse é um dos jeitos antigos das coisas, uma das coisas que temos que deixar para trás. Ainda respeito minha cultura. Jamais faria alguma coisa que prejudicasse a cultura islâmica. Jamais. Mas tudo está mudando… o mundo está mudando. E se ficarmos com a mesma cabeça de cem anos atrás, nunca mudaremos nada. E assim ela atravessou o beco e entrou no prédio.

9 SUMER LAND

ALGUMAS SEMANAS APÓS nossa chegada, Rebecca, uma amiga libanesa, nos levou para jantar no hotel Sumer Land, onde estava hospedada. — Vocês têm que experimentar o shish taouk que eles fazem! — disse-nos e em seguida fez seu maior elogio: — É quase libanês! Independentemente da nacionalidade, era shish taouk de verdade: pedaços de peito de frango alaranjados por conta dos temperos, marinados no iogurte até ficarem macios e suculentos, nada a ver com as bolotas marrons e duras do Hamra. Decidimos que iríamos nos mudar para o Sumer Land assim que pudéssemos. Isso exigia uma coincidência triangular de encontros: primeiro entre Rebecca e Muhammad, o gerente do hotel, para convencê-lo a nos dar um quarto com a taxa especial que ela pagava (“Não seja bobo… eles estão prontinhos para vir, mas você tem que fazer um preço bom!”); então entre Mohamad e Muhammad; e finalmente entre Muhammad, Mohamad e eu, para consumar o negócio tomando café nas porcelaninhas de seu escritório. Muhammad, o gerente, era um homem alto e curvado, com um bigode caído. Parecia um sujeito austero no início, fazendo eco ao andar para lá e para cá na recepção de mármore. Tudo nele se inclinava e vergava, como um terno vazio pendurado em um cabide. Mas ele ficou mais acessível quando nos mudamos e até demonstrou certo senso de humor. Muhammad e seus empregados mantinham certa camaradagem, e começamos a fazer amizade na recepção, no restaurante, no café. Nós nos instalamos e começamos a nos sentir em casa. Nosso quarto tinha até uma pequena cozinha, com um fogão de verdade, uma pia e um pequeno refrigerador. Começamos a ir mais às feiras e a comer mais comida iraquiana: perto do hotel havia uma padaria onde era possível comprar falafel e outra onde era possível comprar pão tanoor. A primeira fazia seus sanduíches de falafel com samoun, um pão tipo baguete a que Nawal Nasrallah se refere como uma “versão domesticada” dos pães francês e italiano, e os besuntava com maionese. Começamos comprando só o falafel, enrolando-os em pão tanoor com legumes frescos da feira. Em casa, comíamos falafel com o homus que eu mesma fazia, com azeite de oliva libanês importado e uma pitada de baharat iraquiano, uma mistura de especiarias carregada na pimenta, no cominho e no coentro. Mohamad sentia falta da comida do Líbano e eu estava amando encontrar comida no Iraque, então fazíamos nossas criações, mistura de ingredientes iraquianos com o estilo libanês. Desenvolvemos um ritual: depois de trabalhar o dia todo, parávamos nas feiras para comprar pão e quaisquer frutas ou vegetais da estação: tomates, quiabo, figos e as lendárias tâmaras iraquianas. Viciei em tamur rutab, as tâmaras frescas colhidas no início da estação. Eram diferentes de todas as outras que já tinha comido — suculentas e leves por dentro como plumas, com uma pele tão fina que estalava quando mordida. Mas nos dias em que estávamos muito cansados para cortar tomates ou o congestionamento ficava muito grande para chegar às feiras ou as padarias não tinham pão — ou todas as anteriores —, sempre tínhamos o restaurante do Sumer Land. Era outro mundo: a decoração laranja e marrom dos anos 1950; as paredes grossas de tijolo; as mesas rústicas de acampamento esculpidas em chapas grossas de madeira. Eu entrava na cozinha às vezes só para dar uma olhada, e o cozinheiro corpulento ria. Ele usava sempre um

avental branco e limpo de chef. Às vezes eu o convencia a fazer um prato para mim com os vegetais que o restaurante geralmente só servia como acompanhamento: abobrinha, cenoura e couve-flor perfeitamente refogadas na manteiga. Chegou a um ponto em que, sempre que a equipe do restaurante me via entrando, eles cantavam: — Shajar, jazar, wa qarnabeet, abobrinha, cenoura e couve-flor? Hussein, o jovem garçom alto e falante, tentava me provocar com novos pratos: — Hoje temos camarão, direto de Baçorá — dizia, inclinando-se sobre nossa mesa, sussurrando conspiratoriamente. — E eles vieram em um caminhão refrigerado! O Sumer Land servia um aperitivo brilhante, uma mistura do quibe moderno do Oriente Médio e ovo apimentado, com raízes que datavam do Iraque medieval: a cesta de ovos. Lembrava o bolo frito de carne e grãos chamado quibe qras no Levante. Com o formato de um ovo mas em variados tamanhos, o clássico quibe qras consistia em duas camadas: uma fina e crocante de trigo quebrado e carne, que misturados formavam a casca do “ovo”. Carne moída temperada, às vezes misturada com pinhões, era a gema. A maioria dos restaurantes parava por aí. Mas o chef do Sumer Land cortava dois quadrantes de um lado do quibe, deixando uma faixa no meio como a alça de uma cesta de Páscoa. Então ele tirava a parte de dentro e colocava metade de um ovo cozido cortado no comprimento. Em cima dessa mistura ele colocava molho russo grosso e laranja, para que lembrasse o recheio em um ovo apimentado. A cesta de ovos era como um ovo à escocesa orientalizado ou um quibe ocidentalizado, dependendo da origem de quem comesse; um trocadilho intercultural por excelência, uma brincadeira com a forma e a função do quibe e do ovo. Na verdade, era o eco culinário dos cozinheiros medievais iraquianos, que escondiam ovos cozidos em seus bolos de carne para surpreender e agradar os convidados. Ele enchia a barriga, deixava feliz e custava mais ou menos dois dólares. Um amigo iraquiano disse que antes da guerra o Sumer Land era famoso por suas festas — bacanais selvagens ao estilo de Beirute onde a elite pré-guerra iraquiana terminava a noite dançando nas mesas. A imagem do lúgubre Muhammad presidindo tal devassidão parecia improvável. Mas quando Mohamad perguntou sobre as tais festas, o rosto sombrio do gerente iluminou-se com um sorriso nostálgico. — Sim, nossas festas eram as melhores — soltou ele, olhando para baixo com seu anguloso nariz. — As pessoas vinham de Mansour, de toda parte. O Hamra não era nada. Certa noite, mais ou menos às 22h30, eu estava sentada no café do Sumer Land quando uma mulher alta entrou. Algo nela chamava atenção. Talvez fosse a blusa rosa-bebê, incomum em Bagdá. Ou talvez fossem os longos cabelos dourados caindo sobre os ombros em ondas descuidadas; seus braços magros depilados; o arco de seu nariz como a asa de uma ave. Qualquer que fosse o motivo, os homens que estavam no café se ajeitaram nas cadeiras, as mulheres tentaram ignorá-la e, um a um, todos os funcionários homens do hotel encontraram uma desculpa para ir ao café. Notei aquela mulher ainda algumas vezes depois daquele dia. Costumava chegar sempre tarde da noite e, apesar de parecer conhecer os funcionários do hotel muito bem, não falava com ninguém. Uma dessas vezes em que essa mulher misteriosa veio, eu disse “oi” em árabe. Ela virou-se para mim, olhos de coruja que me avaliavam com calma, e sem muita cerimônia perguntou em inglês: — Você se deitou com seu marido antes de se casar? Eu sabia que os funcionários do hotel provavelmente haviam dito a ela quem Mohamad e eu éramos. Mas não sabia quem ela era, nem nada a seu respeito e no Iraque não se discute a própria vida sexual com estranhos. — O que você acha? — finalmente respondi. Ela riu, e então deu um sorriso sonolento. Éramos amigas agora, ou pelo menos cúmplices. Ela

estendeu a mão e encostou nos pelos dourados do meu antebraço. — Por que você não dá um jeito nisso? Seu marido vai gostar mais de você. — Ah, não acho que ele ligue para esse tipo de coisa — respondi. — Rá — quase gritou. E com satisfação completou — Ele vai deixar você. Na primeira vez em que visitei o quarto de Layla, ela estava sentada numa cadeira bem perto da televisão. Mal havia espaço para o sofá e o par de cadeiras na claustrofóbica sala do apartamento. Havia impressões de mãos gordurosas nas paredes encardidas. Suas duas filhas, de seis e onze anos, tão bonitas quanto a mãe, jogavam no computador. O protetor de tela era uma foto de Saddam depois de um de seus famosos nados pelo Tigre, reconstituições de sua fuga aguada depois da frustrada tentativa de assassinar o primeiroministro iraquiano em 1959. O ditador estava encharcado e sem nada acima da cintura além de um sorriso branco deslumbrante. Layla assistia a Friends. — Amo o Ross — suspirou ela, fechando os olhos como se sonhasse acordada, colocando a mão com unhas muitíssimo bem-feitas sobre o coração. Visitei Layla com frequência no ano que seguiu. Sentávamos na sala e compartilhávamos café, chá, cigarros e doces árabes. Layla tinha mais ou menos a minha idade, pouco mais de trinta anos. Estudou arte e poesia clássica na Universidade de Bagdá, mas largou os estudos quando se casou aos 23 anos. Divorciouse do marido, que era um galinha, alguns anos antes da guerra. — Ele era gentil, muito romântico — disse. — Mas não ligava de verdade para mim e para as meninas. Só queria o meu dinheiro. Quando Layla descobriu que Mohamad e eu estávamos em lua de mel, ficou horrorizada: recém-casada e já estava me descuidando — nada de pedicures, nada de depilação e cabelos que não conheciam nenhum produto químico. — Nós, mulheres orientais, gostamos de ficar bonitas para nossos maridos — disse ela. Olhava para mim como se me acusasse, como se eu fizesse parte de uma campanha americana imperialista de feiuirização. — Eles gostam que estejamos bonitas — explicou a sobrinha de Layla, Shirin, que estava fazendo uma visita naquele dia. — Suaves. — Também gostam que tenhamos seios grandes — disse Layla. Levantando a camiseta, exibiu um brilhoso sutiã bege com enchimento. — Nós, mulheres iraquianas, temos seios maiores que os das americanas — completou e abaixou novamente a camiseta. Depois que já fazia alguns meses que nos conhecíamos, Layla decidiu salvar meu casamento fazendo em mim uma reforma iraquiana completa: pernas, braços, sobrancelhas, manicure e pedicure. — Vou chamar uma mulher, uma amiga, e ela virá ao hotel — disse, parecendo feliz por ter um projeto. — Ela faz tudo, menos o cabelo. Para pintar você vai ter que ir ao salão. Não contei a ela que a única vez em que havia arrumado o cabelo no salão fora no dia de meu casamento e que odiei tanto que corri para casa antes da cerimônia para tirar o spray que estava incrustado em meu couro cabeludo. Antes da guerra, Layla ia a festas frequentadas por ambos os sexos, onde podia usar as roupas da moda de que gostava e “conversar, dançar, rir, coisas que as garotas fazem”. Ela ia a shows de artistas libaneses no Alwiya Club, onde diziam que Uday Hussein havia feito sua festa de aniversário. As entradas custavam cinquenta dólares — uma fortuna para a maioria das pessoas no Iraque, principalmente depois das sanções. Ela não perdia um espetáculo. Fazia viagens internacionais sem um mahram, o acompanhante do sexo masculino exigido quando as mulheres saíam do país. As regras não se aplicavam a pessoas como ela. — Fiz tudo o que eu queria — disse ela. — É por isso que não sou feliz agora. Porque antes da queda do

regime eu tinha mais liberdade. Layla era uma Baath de espírito, se não um membro do partido. Etnicamente, era curda; mas acima de certo nível de riqueza e privilégios, a etnia ou a seita não importavam tanto quanto para os que estavam abaixo dela. Havia muitos Baaths xiitas e curdos. Seus amigos eram cristãos, curdos, xiitas, sunitas; não importava. O que importava era o dinheiro, e ela tinha muito. Layla era dona de uma mansão às margens do Tigre. Mas depois da invasão não podia mais morar lá; ela era muito sequestrável. Felizmente, o dono do Sumer Land era um amigo da família, então ela foi para o hotel com as filhas. Apesar de sua devoção fanática à beleza, quase ninguém a via no dia a dia: ela raramente saía do Sumer Land. Layla me parecia um oficial britânico, que se vestia para o jantar todas as noites para que a civilização não se acabasse. Parecia passar a maior parte dos dias sentada sozinha na sala amontoada, bebendo café com mãos perfeitamente pintadas, assistindo a Rachel, Ross e à turma toda andando por seus apartamentos de contos de fadas numa luxúria unissex pecaminosa e sonhando estar entre eles. Uma bela mulher desejando David Schwimmer e Saddam Hussein. Foi uma surpresa no início. Mas fazia sentido: para ela, ambos significavam a liberdade.

10 O SABOR DA LIBERDADE

“Se você for a qualquer cidade, coma de seus vegetais e cebolas, pois eles expulsam a doença típica daquela cidade.” — The Medicine of the Prophet, Mahmud Bin Mohamed al-Chaghhayni DEPOIS DE ALGUMAS SEMANAS EM BAGDÁ, Mohamad contratou um motorista chamado Abu Zeinab, um gigante animado que dirigia o menor carro vermelho de Bagdá. (Abu Zeinab é um kunyah, um apelido derivado do nome do filho primogênito — nesse caso, “pai de Zeinab”, sua filha de quatro anos. Em grande parte do mundo árabe, os pais geralmente denominam-se em relação ao menino mais velho, mas entre xiitas iraquianos não é incomum pegar o nome da primogênita.) Um dia Abu Zeinab nos levava às margens do Tigre quando passamos por um bosque de palmeiras do tamanho de um campo de futebol. Troncos altos e graciosos marchavam em linhas imponentes. As copas entrelaçavam-se formando uma grande cobertura verde. Grama crescia tão verdinha que de início parecia sintética. Ao olhar para fora, para esse oásis, lá do carrinho quente de Abu Zeinab, preso a acres de trânsito cheirando a diesel, percebi que fazia meses que eu não tocava a grama. E na hora a saudade de casa me pegou. De Chicago, minha mãe me escrevia e-mails descrevendo o outono no Meio-Oeste: a magnólia perdia suas folhas. As maçãs brilhavam como cerejas de um vermelho vivo. Os cervos invadiam o jardim todas as noites e olhavam para cima, assustados, ao ouvirem a porta de tela bater. O ar cheirava a fumaça de madeira e canela. A saudade de casa era como uma doença. Um desalinhamento dos membros. Um desequilíbrio químico do sangue. Corpo e alma desalinhados de tanto tentar abraçar dois lugares diferentes de uma só vez. Minha pele lembrou-se do nível exato de umidade do ar; rebelou-se contra o calor e a poeira. Meus pés lembraram-se da exata tensão superficial do asfalto de Nova York, do solo do norte de Illinois, do piso de madeira. Meus olhos precisavam do verde. Se não era possível levar o corpo de volta ao lugar do qual ele se lembrava, restava a segunda melhor opção: trazer para perto um pouco do lugar de onde o corpo veio. Podemos enganar o metabolismo, pelo menos temporariamente, com música. Podemos entorpecer o organismo com bebida. Mas a melhor maneira de enganar a saudade de casa, como qualquer viajante sabe, é com comida. Depois daquela primeira refeição desastrosa no Hamra, eu perguntava sobre comida a todo iraquiano que encontrava. Mesmo naquela época, as pessoas já ficavam cada vez mais cansadas de política. Mas todo mundo ama falar sobre comida. E comida era uma das poucas coisas sobre as quais eu conseguia conversar em árabe. No início, simplesmente andava por Bagdá falando com as pessoas com o parco dialeto levantino que eu sabia. Picles em Beirute são kabees, “apertados”. Em Bagdá são mkhallal, “os vinagrados”, ou turshi, uma palavra persa para picles. No Líbano abobrinha era kusa ou courgette; no Iraque, shajar, que no Líbano

significa “árvore”. Mas mesmo quando conhecia as palavras não conseguia entender o sotaque gutural iraquiano. As palavras eram mais pesadas; eles pronunciavam com força consoantes que os libaneses simplesmente engoliam ou cuspiam de uma vez. Se os iraquianos não me entendiam, podia ser porque eu tinha entendido uma palavra errado; podia ser também porque eu estava usando uma palavra levantina que eles nunca haviam ouvido antes. As vezes em que realmente me comunicava pareciam pequenos milagres, e eu sussurrava as palavras para mim mesma como um encantamento bom. Dajaj: frango. Mai: água. Rumman: romã. Masquf: masquf. Comecei a pedir a todos que me recomendassem um prato preferido. Todos diziam a mesma coisa: masquf. Você tem que experimentar masquf. O melhor restaurante para comer masquf ficava na Abu Nuwas, às margens do Tigre… No momento em que falavam do masquf suspiravam, e um misto de expressões — de prazer, de orgulho e de arrependimento — passava por seus rostos. E continuavam, dizendo que hoje em dia o melhor masquf era servido num lugar em Karada, perto da fábrica de couro. Aqui, vou anotar para você… A busca por comida me levou a lugares em que Bagdá apresentava o que tinha de melhor. Karada era meu bairro preferido, principalmente a longa e agitada feira da rua Inner Karada. As revistas americanas descreviam as iraquianas encolhidas dentro de casa, sequestradas e estupradas quando colocavam o pé para fora. Nas ruas de Bagdá, de acordo com essas reportagens, não se via o sexo frágil. Porém, Karada era um enxame de mulheres: iraquianas trabalhadoras que não dispunham de criados para fazer suas compras. Elas tinham que trabalhar, fazer compras e cuidar dos filhos. Usavam camisetas de mangas curtas, abayas pretas compridas, e tudo o mais que havia entre uma coisa e outra. As mulheres que usavam abayas, longas túnicas pretas de poliéster, pareciam grandes medusas negras nas calçadas. De vez em quando, uma mão aparecia para segurar crianças pequenas, apontar para tomates ou segurar o tecido preto sob um queixo arredondado. Na loja de masquf de Mahar, o homem me levou até uma banheira onde gordas carpas cinza nadavam lentamente. Pediu que eu escolhesse minha vítima. Apontei para a mais animada. O cozinheiro meteu a mão na banheira e agarrou o peixe, colocou-o em uma tábua gasta de madeira e esmagou sua cabeça com uma marreta. O peixe estava atordoado, mas não morto — eu havia escolhido aquele, afinal, por seu vínculo feroz com a vida. Começando pela parte de trás da cabeça do peixe, ele abriu a espinha com uma faca, então pegou cada um dos lados da incisão e virou o peixe do avesso. As duas metades de seu rosto agora olhavam para dentro, uma para a outra, num beijo macabro. Mantendo-o aberto com mãos rápidas e fortes, ele achatou o peixe, agora completamente desconstruído, em um “O” grande e redondo. Então, dobrou o peixe entre as mandíbulas de metal de uma grelha dupla (mais tarde, visitei lugares mais tradicionais que apoiavam o peixe em palitos de madeira). Colocou a grelha sobre um grande barril aberto de madeira em brasa e disse: — Volte em uma hora e seu masquf estará pronto para comer. Havia uma frase que os iraquianos sempre usavam: o sabor da liberdade. Para muitos dos moradores de Bagdá, esse sabor era de masquf. Era mais que só um peixe, ou um jeito de prepará-lo; o ritual do masquf encarnava um lugar, um tempo e um modo de vida perdidos. O masquf pode ser feito em qualquer lugar — é feito em Baçorá ou até mesmo, nos dias de hoje, em Beirute. Mas seu propósito é ser saboreado nos restaurantes a céu aberto da Abu Nuwas, a orla ao longo do Tigre onde os iraquianos passeavam ao pôr do sol.

Tradicionalmente, o melhor masquf era feito de barbos, um peixe parecido com a carpa que os iraquianos comem desde os dias da antiga Mesopotâmia. Mas o sabor do prato também era resultado da uma hora que se esperava para o peixe ficar pronto. Durante esse tempo, as pessoas comiam, bebiam, jogavam e conversavam. Garotas e garotos andavam pela orla rindo e paquerando. Mães e pais alugavam barcos e navegavam pelo rio iluminado pela Lua, bebendo sobre a água ao som de música e risadas, os estalidos do fogo, o cheiro de peixe assado que vinha das margens do rio. — O importante na Abu Nuwas era beber áraque — explicou Salaam, o jovem comunista que eu havia conhecido na aula de jornalismo de Maggy e que se tornara um grande amigo — e comer meze, entradas como jajik enquanto se espera o peixe ficar pronto. Abu Nuwas atingira seu auge nas décadas de 1950 e 1960, quando a cidade alugava pequenos lotes às margens do rio para famílias passarem ali o verão. Elas montavam ramadas temporárias de madeira com tetos tecidos com juncos do rio. Nas noites quentes, todos iam para a beira do rio conversar, tocar ud, fazer passeios de barco e comer masquf. Algumas pessoas diziam que o masquf havia sido importado pelos otomanos. Outros diziam que era uma tradição babilônica, de milhares de anos. Muçulmanos alegavam se tratar de um prato cristão (sendo o gosto dos cristãos por peixe bem conhecido). Os cristãos sussurravam que era uma especialidade do antigo povoado judeu que vivia às margens do rio (sendo a afinidade dos judeus com os peixes bem conhecida). Alguns acreditavam que o prato tinha vindo dos mandeístas (sendo o amor mandeu pelo rio e suas águas bem conhecido). Achei isso frustrante. Eu queria fatos, datas, referências doutas, não uma mistura vaga de nostalgia com um toque exótico. Todos falavam sobre o masquf, mas ninguém sabia de onde ele vinha. A etimologia não ajudava: como acontece com muitos pratos árabes, seu nome descreve mais a forma do prato que seu conteúdo. Masquf significa “com telhado”, de saqf, “telhado” — a descrição poética do peixe espalhado sobre o fogo como o telhado de uma pequena ramada aberta. Tábuas sumérias antigas mencionam peixe “tocado pelo fogo”, uma frase ambígua. Heródoto escreveu sobre três tribos babilônicas que viviam só de peixe, mas, de acordo com sua descrição detalhada essas tribos secavam ao sol as presas capturadas, amassavam-nas no pilão e faziam bolos ou “um tipo de pão”. (Um iraquiano das tribos Marsh disse-me que eles ainda fazem peixe assim.) Pedro Teixeira, um português comerciante e aventureiro que viajou por Bagdá em 1604, notou que “os peixes são abundantes e bons e os mouros os usam”. Mas o em geral minucioso Teixeira não diz como os mouros usavam o peixe. E foi assim com todas as fontes que consegui encontrar: quanto mais eu lia, quanto mais eu perguntava para as pessoas, mais o masquf e suas origens se perdiam no mistério. No Iraque, como em todos os lugares, a comida era um indicador geográfico instantâneo. Havia o famoso picles preto de Najaf, feito com calda de tâmaras; o pequeno e delicado quiabo de Hillah; os kebabs macios e suculentos de Fallujah. Havia um tipo de carneiro assado no forno que é uma especialidade não só de Baçorá, mas de uma família específica de Baçorá. Esse sistema GPS de culinária muitas vezes denunciava a seita. — Posso entrar numa casa iraquiana e pela comida dizer se a família é sunita ou xiita — disse-me um iraquiano certa vez. — Não estou dizendo que sunitas não fazem pratos xiitas ou vice-versa. Mas existem certas comidas que são associadas a certos lugares. Masquf era um exemplo. Podia ser feito em outras cidades, mas sua alma ainda ficava em Bagdá. Tirava seu sabor do Tigre, mesmo se o peixe nunca houvesse tocado suas águas, e da rua Abu Nuwas. Abu Nuwas tinha esse nome devido a um poeta do século XVIII. Ele era um acompanhante do califa alAmin, filho de Haroun al-Rashid, o califa das Mil e uma noites. Apelidado de “Pai de Cachos” por seus

cabelos exuberantes, Abu Nuwas era um bon vivant bissexual famoso por suas khamriyaat, “canções ao vinho” — hinos em louvor ao vinho e às noites que passou tomando a bebida com lindos garotos e garotas. Ele era o poeta patrono dos bares, da bebida e da liberdade impenitente. “Acumule tantos pecados quanto conseguir”, ele escreveu uma vez, pois quando o Dia do Julgamento chegar, e você vir como Deus pode ser clemente e gracioso, roerá os dedos com pesar por toda a diversão que não teve. “[Então] beba o vinho, mesmo que proibido/Pois Deus perdoa mesmo os pecados graves”. Os bardos nômades da Arábia pré-islâmica frequentemente entremeavam seus poemas de invocações grandiosas, como a famosa qifa nabki, alto, e choremos. Eles choravam pelo acampamento abandonado, pelo lugar no deserto onde a caravana com seus amantes uma vez parou e pelo romance da viagem sem fim. A fórmula persistiu muito depois de a poesia ter se mudado para as cidades; na Bagdá medieval, poetas citadinos que não reconheceriam um camelo se o animal mordesse seus traseiros ainda evocavam o frio acampamento, os rastros na areia, a amada perdida. Abu Nuwas dominou primeiro a forma nômade antiga. E depois a atualizou com uma paródia mais apropriada à vida urbana moderna: “Esse perdedor parou para conversar com um acampamento abandonado”, ele escreveu (a paráfrase é minha), “enquanto eu parei para perguntar o que tinha acontecido com o bar das redondezas”. Nas décadas de 1960 e 1970, uma geração de intelectuais iraquianos descobriu um mundo de ideias, debate e amizade na rua Abu Nuwas. O jornalista e memorialista iraquiano Zuhair al-Jezairy descreveu o momento como uma mudança no relacionamento de Bagdá com o rio conforme a rua e seus restaurantes evoluíam: “O rio se tornou uma espécie de pulmão pelo qual a cidade respirava — uma bênção para os olhos e o espírito.” Faleh Jabar cresceu em Bagdá durante a era de ouro da rua Abu Nuwas. Hoje ele é sociólogo e escritor conhecido. Mas antigamente era um estudante jovem sem um tostão, que vivia de escritas ocasionais e trabalhos de tradução, “produzindo orações horríveis” com seu dicionário inglês-árabe. Todas as noites, Jabar e seu grupo de amigos se reuniam na Abu Nuwas e passavam longas noites de verão bebendo, conversando, trocando livros, argumentos e ideias. Uma noite, um amigo de Jabar trouxe a esposa para o café. Alguns dos restaurantes de masquf tinham “seções para a família”, onde parentes podiam fazer refeições juntos. Mas rapazes e moças que não eram parentes de sangue se misturarem em cafés e bares — sentarem e beberem juntos em lugares onde se servia álcool — ainda era um choque. Ninguém nunca tinha visto algo do tipo. Isso causou tumulto no local. O dono veio até a mesa. — Não temos uma seção particular para as famílias — disse ele, querendo dizer “não permitimos mulheres aqui”. — Isso não é da sua conta — respondeu a moça, os olhos verdes brilhando. — Estou bebendo chá, existe algo no Corão, na charia ou na lei que proíba beber chá num café com meu marido? Com meus primos, com todos os meus irmãos? Uma coisa assim só poderia acontecer na Abu Nuwas, Jabar me disse, abaixando a voz e olhando para trás por sobre os ombros como se, trinta anos depois, o dono do café ainda pudesse ouvi-lo. Depois que o profeta Maomé morreu em 632, a liderança do islã passou para uma sucessão de califas. O califa era o “comandante dos fiéis”, o líder político e militar da comunidade mundial dos muçulmanos e a cidade onde ele morava era o califado — a capital do mundo muçulmano. Em 792, o califa al-Mansur mudou o califado da Síria para o Iraque. Ele também construiu a cidade redonda de Bagdá em um lugar pequeno, mas estratégico, às margens do Tigre. Batizou a nova capital de Medinat al-Salam, a Cidade da Paz, e imediatamente começou a construir um enorme palácio.

Naquele tempo, como agora, Bagdá era uma cidade comercial. Toda profissão tinha seu souq: os ourives, os livreiros, os perfumistas. E bem no meio do mercado movimentado, rodeado de fabricantes de sabão, açougueiros e cozinheiros, ficava o novo palácio do califa. Assim que o palácio foi terminado, um embaixador do Império Bizantino foi visitá-lo. Escribas e estudiosos contam versões diferentes do que aconteceu em seguida — kan ya ma kan, como os contadores de histórias dizem, um termo intraduzível que significa algo como “era uma vez” ou “era e não era”. Mas isto foi mais ou menos o que aconteceu: — O que achou da minha cidade? — perguntou o califa ao visitante bizantino, esperando elogios generosos. — De fato, o senhor construiu um palácio como nunca ninguém antes ergueu — disse o embaixador —, mas há um defeito: o mercado. Porque ele é aberto a todos, seu inimigo pode entrar e os comerciantes podem passar adiante informações sobre você. O líder que vive perto de seus súditos não pode ter segredos. O califa franziu a testa, ficou rígido e achou que teria um ataque de raiva. — Não guardo segredos de meus súditos — disse ele friamente. Mas assim que o embaixador bizantino foi embora o califa ordenou que seus servos lhe trouxessem uma roupa larga. Ele desenrolou a roupa em cima da mesa e desenhou um novo plano para a cidade no tecido. Baniu todos os mercados do centro da cidade, deixando apenas alguns baqqals, verdureiros, a quem impediu que vendessem qualquer coisa menos vinagre e verduras. Levou os mercados para o outro lado do rio, colocando cada comerciante num lugar específico, com os açougueiros lá no final porque “suas facas são afiadas e seu juízo, entorpecido”. Com um traço de sua pena, reescreveu a cidade. Saddam Hussein considerava-se um dos grandes califas. Ele também construiu um palácio às margens do Tigre; também rearranjou a cidade. Em 1968, depois de seu segundo golpe, o Partido Baath proibiu o aluguel de pequenos lotes ao longo do rio. Em meados de 1980, Saddam começou sua agressão contra a rua Abu Nuwas e sua cultura de liberdade cosmopolita. Desviou água do rio para abastecer as fontes e piscinas de seu palácio. Cercou o rio com arame farpado. Colocou guardas ao longo da Abu Nuwas que vigiavam com desprezo os pedestres. Destruiu quadras de antigas casas típicas, com suas varandas graciosas em cantiléver, e substituiu-as por uma fileira de casas idênticas de tijolo marrom. Por mais feias que fossem, essas casernas marrons eram imóveis superiores, recompensas para fiéis escudeiros do partido; Saddam encheu-as de seus Guardas Republicanos, “e assim”, escreveu Jezairy, “o rio se tornou seu prêmio”. A rua do poeta bissexual bêbado, do masquf, da cerveja e das noites de verão se transformou num distrito de drogas e prostitutas e cães selvagens. Alguns restaurantes ainda vendiam masquf às margens do rio. Mas com olhos e ouvidos do regime por toda a parte, o prato tinha um sabor diferente. Durante as sanções, o esgoto despejado no Tigre poluiu demais o rio para a pesca e o comércio de masquf deslocou-se para o Karada. Agora os peixes era criados em viveiros gigantes, levados de caminhão para a cidade e vendidos em banheiras nas calçadas de Karada ou em restaurantes como o White Palace. Os pescadores que um dia viviam pescando shabout e bunni do Tigre foram para outros lugares ou morreram. Em junho de 2003, Jabar voltou para Bagdá pela primeira vez em quase 25 anos. Foi direto a Abu Nuwas. Perto da ponte Jumhuriyah, ele olhou para o Tigre; o que antes era uma fita prateada havia se tornado algo verde, químico e venenoso. Uma cerca de metal bloqueava as águas de qualquer um que fosse tolo o suficiente para se aproximar. Espirais de arame farpado cresciam às margens do rio como uma erva metálica mutante. Qifa nabki, alto! e choremos. Mas então, olhando com mais atenção, Jabar viu um buraco na cerca. Alguém tinha feito um buraco irregular com um alicate. Um rosto velho sem dentes olhou para ele da margem do rio: um velho pescador,

um remanescente da velha Abu Nuwas. — O que é essa cerca, quem colocou essa cerca? — perguntou Jabar. — Ela está aí há vinte anos — disse o velho. — E quem fez esse buraco? — Nós — disse o velho, triunfante. — Pegamos de volta nosso rio pela primeira vez em vinte anos. O velho pescador contou a Jabar que acordava ao amanhecer todos os dias, ia ao mercado de peixe no Karada para comprar peixes e os trazia de volta para o rio, onde os colocava numa piscina para mantê-los vivos — só para assar peixe ao lado de um rio poluído demais para se pescar. Economicamente, não fazia sentido: o dinheiro que o velho gastava de gasolina era talvez mais que o pouco que conseguia com suas parcas vendas. Mas essa não era a questão; a questão era estar lá ao lado do rio, fazendo masquf. — Ele não conseguia ir embora daquele lugar — disse Jabar. — O rio era seu lar. De volta a Mahar, na Inner Karada, meu masquf finalmente estava pronto. Cada parte de sua superfície havia sido lambida pelo calor radiante até que o peixe estivesse assado, marrom dourado e perfumado, como uma auréola comestível gigante de peixe. Haviam envolvido o peixe em pão tanoor e enchido de cebolas picadas, tomates e salsa. O sabor do masquf vem da madeira sobre a qual o peixe é assado. A madeira da macieira é muito apreciada, mas outras árvores frutíferas — romã, laranja e damasco — também são boas. A superfície que ficava de frente para o fogo tinha uma camada externa como um couro que ficava tostada em alguns pontos. Mas embaixo dessa camada havia uma carne branca e macia com um sabor defumado delicado. Nunca comi truta logo após ter sido defumada, mas imagino que possa ter um gosto parecido com o do masquf. Usando pedaços do pão tanoor, puxei pedaços da carne branca. Dobrei-os em pequenos sanduíches, alternando pedaços de peixe com uma explosão ácida de tomate, cebolas e salsa. Na época, o Mahar servia só para viagem, então eu pretendia levar meu masquf para algum lugar e comê-lo sentada a uma mesa. Mas estava com tanta fome na hora em que peguei o peixe e seu sabor defumado era tão irresistível que o devorei inteiro no carro com Abu Zeinab no meio de um engarrafamento no Karada.

11 IFTAR SOLITÁRIO

NUM DIA NO FINAL DE OUTUBRO, Mohamad e eu estávamos andando pela rua em Bagdá quando ouvi uma voz rouca, em tom de provocação, exclamar em libanês: — Mohamad Ali! Você se lembra de mim? Viramos para trás e vimos um cara magrelo meio sinistro, com olhos nebulosos e cabelos pretos encaracolados. Era Maher, irmão do ex-marido de Hanan, e isso me ensinou sobre a natureza interligada das relações do Oriente Médio, sem falar das relações familiares entre integrantes da diáspora: Mohamad não se surpreendia em encontrar o ex-cunhado da irmã dele andando na rua de uma capital estrangeira com uma população de 5 milhões de pessoas. Maher era diretor cinematográfico independente, um freelancer como eu — ou, como ele dizia, abrindo bem os braços e um sorriso largo: — Je suis libre… comme Irak! Ele estava hospedado no Cedars com Hazem, um jornalista que Mohamad conhecia de Beirute e trabalhava para o jornal árabe Al-Hayat (“Vida”). O hotel Cedars era muito visado para ataques, então Mohamad conseguiu quartos para eles no Sumer Land. Eles descansavam no quarto do hotel com camisetas brancas enormes, fumando um cigarro atrás do outro, contando histórias e bebendo uísque com a TV ligada. Nenhum deles falava inglês muito bem, então nossas conversas iam indistintamente do árabe ao inglês e ao francês. Ambos eram ex-comunistas, ambos loucos de pedra, e eu os adorava. Além da nossa lua de mel, o outono de 2003 seria a primeira vez em que Mohamad e eu estaríamos no mesmo país em nossos aniversários, que ficavam a onze dias um do outro. Naquele outono, o aniversário de Mohamad também coincidiu com o início do Ramadã. Quando Hazem e Maher souberam desse alinhamento de ocasiões especiais — lua de mel, Ramadã, dois aniversários —, decidiram comemorar com um iftar improvisado no quarto de hotel. Iftar é o jantar que quebra o jejum durante o mês do Ramadã. Mas o nosso foi bastante secular; um iftar pagão. Maher havia trazido uma garrafa de áraque de Beirute. Tinha o cheiro da minha primeira noite no Baromètre, em maio — àquela altura, isso parecia ter acontecido havia anos. Mas naquela noite de outubro, com a diva libanesa Fairouz tocando ao fundo, três línguas colidindo e o fogo frio e adstringente do áraque, a vida intelectual liberal de Beirute não parecia estar tão distante. Fiz homus com azeite de oliva e temperos iraquianos. Hazem e Maher fizeram ovos mexidos com sujuk e comemos makdous. Eu conseguia sentir minha fluência em árabe aumentar milagrosamente conforme o nível de áraque da garrafa diminuía. Esqueceria tudo no dia seguinte, e a ressaca não me ajudaria, mas por uma noite senti que estava exatamente onde era meu lugar. O Ramadã é o nono mês no calendário lunar muçulmano. É a comemoração do período em que o anjo Gabriel começou a revelar o Corão para o profeta Maomé, ordenando-lhe: “Leia!” Durante o Ramadã, os muçulmanos acreditam que os portões do Céu estão abertos, os portões do Inferno estão fechados e os anjos descem para andar entre nós. É um mês para se refletir e reavaliar a vida, para se aproximar de Deus e para ser perdoado por todos os pecados cometidos no ano anterior. As pessoas fazem jejum o dia todo e

se abstêm de fumo, sexo ou ingestão de água. Com o pôr do sol, enquanto a chamada noturna para a oração ecoa da mesquita, quebram o jejum com tâmaras e iogurte, assim como o Profeta e seus companheiros fizeram um dia. Um bom muçulmano passa o Ramadã jejuando, contemplando a fome e o sofrimento de outros, dando esmolas e alimentos aos pobres e indo à mesquita à noite para leituras especiais do Corão. Enfim, essa é a ideia. A realidade do Ramadã, na maior parte do mundo muçulmano, é diferente. Para o setor alimentar, o Ramadã é uma longa véspera de Natal. Reservas em restaurantes são feitas. Instituições de caridade, empresas e partidos políticos dão iftars generosos para centenas e centenas de convidados. As famílias passam o dia todo cozinhando iftars enormes com todos os pratos que conhecem, incluindo os elaborados e os doces que não fazem durante o resto do ano. Todos participam; é comum convidar amigos não muçulmanos para o jantar. Quando bem comemorado, o iftar dá a todos, mesmo os pagãos e excomunistas sem Deus, uma chance de comemorarem juntos. Depois, as pessoas socializam. O comércio fica aberto até tarde da noite, luzes brilham e consumidores andam pelas lojas até a madrugada. (Quanto mais tarde você for dormir, mais tarde você acordará e menos do dia seguinte passará em jejum.) Algumas pessoas chegam a ficar acordadas até o suhoor, a refeição antes do amanhecer que prepara as pessoas para o jejum do dia. Os canais árabes por satélite passam novelas populares que duram um mês e às quais as pessoas se reúnem para assistir. Os teatros montam peças. Em Beirute, não é incomum lojas de doces ganharem mais dinheiro durante o mês do Ramadã do que em todo o restante do ano. As pessoas consomem tanto pão durante o Ramadã que as padarias ficam sem farinha e às vezes recorrem à antiga prática de fazer pão com farinha de cevada. É uma época de jejuns e de privação, mas o mês inteiro do Ramadã gira em torno da comida. Para toda uma geração de iraquianos, 2003 foi o primeiro Ramadã sem sanções ou Saddam. Pela primeira vez em décadas, as pessoas seriam capazes de se reunir livremente e de ter discussões políticas com as quais jamais poderiam ter sonhado. Roaa planejava visitar amigos que não via desde antes da guerra. Todos tinham grandes esperanças; vinham fazendo jejum há mais de trinta anos. Na segunda, 27 de outubro, o primeiro dia completo do Ramadã, bombardeios simultâneos nos arredores da Cruz Vermelha e em três delegacias mataram 35 pessoas e deixaram mais de duzentas feridas. Em uma manhã, as esperanças dos iraquianos de um Ramadã feliz desapareceram. A primeira semana do mês santo passou sombria e com mau presságio. Naquela sexta, uma poeta amiga de Hazem chamada Reem deu uma festa de aniversário para a filha, Laylak, e nós passamos por lá com Hazem, Maher e Ali, o editor de um jornal iraquiano que também era poeta. Reem não levava a filha para a escola desde o bombardeio da Cruz Vermelha; muitos pais fizeram o mesmo. Ela prometeu à filha uma festa de aniversário fabulosa, com um bolo espetacular, para compensar a semana do castigo. Mas na manhã da festa um folheto começou a circular por Bagdá. Mandava que todas as escolas, escritórios e lojas fossem fechados por três dias e ameaçava a vida de qualquer um que desobedecesse. Reem dirigiu por toda a cidade, desafiando o folheto com seu aviso sinistro, mas não conseguiu encontrar um bolo; todas as confeitarias estavam fechadas. Pior ainda, todos os convidados haviam cancelado a presença. Naquela tarde, quando soube que a tia e os primos não apareceriam, Laylak caiu no choro. — Ninguém vai sair de casa hoje! — gritou. E correu para o quarto, rasgou o vestido de festa e colocou um pijama. Marchou de volta até a sala e lamentou-se: — Isso não é um aniversário… é um Dia de Sangue! Laylak era magra e tinha o rosto sério e sombrio e aquele jeito arrependido de encolher o pescoço nos ombros que parecia quase universal entre as meninas de onze anos. Quando chegamos lá, ela já havia quase desistido da festa. Ela se sentou, sorriu tímida para nós e me contou baixinho que gostava da escola. Pobre menina, pensei. Deixada de castigo por terroristas e sentenciada a passar o aniversário com os

pais e os amigos adultos chatos deles. — É tão triste ela não poder ir para a escola — sussurrei para Mohamad, quando Laylak voltou para o quarto. — Você devia escrever uma reportagem sobre isso — disse ele. Ele estava certo. Esqueça os exércitos, os rebeldes, os políticos… metade dos repórteres do mundo estavam se acotovelando para conseguir uma dessas histórias. Então a primeira que escrevi de Bagdá foi sobre uma garotinha que queria ir à escola e não podia. O bolo que Reem finalmente achou já tinha alguns dias. Estava começando a ficar seco, a cobertura branca ganhava um gosto um pouco químico por causa dos botões açucarados vermelhos, verde e amarelos que tinham começado a rachar e vazar. Havia sido encomendado e assado num momento mais esperançoso, antes do bombardeio da Cruz Vermelha, coberto com amor, cravejado com doces açucarados — e foi ficando cada vez mais rançoso, esperando por um iftar que nunca aconteceria. Quando bem comemorado, o Ramadã é um equilíbrio: privação durante o dia, celebração durante a noite. Tirando as noites de Bagdá, com a capacidade de se reunir e compartilhar comida, os terroristas reduziram o Ramadã a uma época de medo e jejum. A festa de aniversário solitária de Laylak era um dos milhares de jantares isolados naquela noite. Em 2003, em vez de andar pela Abu Nuwas, fazer compras na Inner Karada, tomar sorvete na famosa sorveteria Faqmah ou ficar acordada até tarde conversando com primos, tias e tios e amigos há muito não vistos — todas as coisas normais do Ramadã — uma cidade de 5 milhões de pessoas sentou-se para uma refeição que nunca tivera antes, nem mesmo nos dias mais sombrios da Guerra Irã-Iraque: um iftar solitário. Fomos embora cedo, o Ramadã estava só começando, e todos previam mais ataques antes do fim do mês. No portão Reem colheu um pequeno ramo de jasmim noturna e me deu. — Leve com você — disse. — Tem um cheiro muito bom. As pessoas em Bagdá geralmente dizem adeus dando uma flor — jasmins, gardênias —, um eco de um costume antigo de esfregar as mãos de um visitante com água de rosas no momento da partida. A fragrância nos envolveu de maneira fantasmagórica, passou por barreiras e guardas armados, cortando o cheiro de esgoto, lixo queimado e combustível de gerador, um guardião invisível de nossa volta para casa pela noite insurgente.

12 CANJA DE GALINHA PARA A ALMA DO IRAQUE

“Você já viu um jardim que vai até a altura da manga da camisa de um homem, um pomar que se pode pegar no colo, um falante que pode falar dos mortos e ainda assim ser o intérprete dos vivos?” — Abu Uthman Amr ibn Bahr al-Jahiz DUAS SEMANAS DEPOIS, Hazem e Maher foram embora: Hazem foi para Beirute e Maher, para Paris, onde morava. (Oday e os outros Najeen pediram a ele que colocasse um buquê de rosas no túmulo de Jim Morrison, missão que ele aceitou nobremente.) Senti muito a falta deles. Mas naquela época a busca por comida e bebida havia me levado à rua Mutanabbi, que levava o nome do famoso poeta iraquiano do século X que certa vez disse que seu verso era tão forte que os cegos podiam lê-lo e os surdos, ouvi-lo. Os persas representam o Paraíso como um jardim murado. Minha ideia de Paraíso está mais para a rua Mutanabbi, na parte velha de Bagdá; uma rua inteira sem nenhum carro, somente livros e cafés. Toda sexta, comerciantes de livros e jornais esticavam cobertores e lençóis de plástico pelas ruas, cobriam-nos de livros, revistas e jornais, vendendo a palavra escrita como se fosse batatas ou melões. Toda a rua e parte das calçadas ficavam tomadas de livros novos e usados — livros de feitiços, religião, poesia, provérbios e propaganda. Era como uma biblioteca horizontal gigante, um jardim de livros. E não eram apenas livros! Na rua Mutanabbi, era possível comprar tudo e qualquer coisa que tivesse a ver com a escrita ou o papel. Corões verdes e dourados em relevo. Pôsteres gigantes de Imam Hussein segurando o filho moribundo, perfurado pelas flechas dos soldados de Yazid na Batalha de Karbala. Cola em bastão, canetas com penas nas tampas e poltronas infláveis para crianças. Cadernos em espiral com gatinhos brancos fofinhos, filhotes saltitando e mulheres fatais piscando longos cílios. Livros de engenharia. Manuais e dicionários. Livros para aprender inglês sozinho aninhados entre manuais de linguagens de programação arcaicas como Pascal, Basic e Cobol; e, por razões que nunca imaginei, um volume sem fim de cópias amareladas do The Journal of Heat Transfer. Fileiras e mais fileiras de Time e Newsweek antigas, algumas delas velhas o suficiente para trazerem Nixon na capa. Exemplares antigos de Playboys e Hustlers brigavam por espaço na calçada com números passados da Flex e de outras revistas de musculação e ginástica. A rua Mutanabbi também era famosa pelos livros de feitiçaria e bruxaria para colocar maldições em rivais ou inimigos. De acordo com meu amigo Usama, esses livros foram banidos por Saddam, que temia mais a magia negra do que golpes apoiados pela CIA, e alguns eram vendidos por milhares de dólares. O Partido Baath havia imposto controle sobre as importações de livros em 1970. Depois disso, nenhum título poderia entrar no país legalmente sem a aprovação do governo, e o número de obras que entrava no Iraque diminuiu. Os livreiros ainda vinham para a Mutanabbi na época do Baath, mas o que podiam vender era mais controlado, e por isso alguns exemplares eram contrabandeados. Meus livros preferidos na Mutanabbi eram as cópias samizdat de livros que antes eram proibidos, como 1984 e A revolução dos bichos. Eram pequenos, do tamanho de livretos de poesia, e fáceis de esconder ou abandonar, se necessário. Mimeografados em papel barato brilhoso e mal-encadernados, eram quase que só a ideia de um livro, reduzidos ao elemento mais básico do pensamento sobre o papel. Era difícil acreditar que aquelas palavras

roxas esmaecidas, já se apagando, um dia tiveram o poder de levar leitores à prisão ou mesmo à execução. E ainda assim as pessoas as liam. As multidões que enchiam a rua Mutanabbi toda sexta mostravam como Bagdá estava faminta por esses frutos que costumavam ser proibidos. A maioria dos livros estava em árabe, mas dentro das pequenas livrarias empoeiradas era possível encontrar muitas brochuras em inglês empilhadas em torres que estavam sempre desabando; E.M. Forster; Herman Melville; traduções inglesas de escritores iraquianos famosos; até mesmo a clássica etnografia do sul do Iraque de Wilfred Thesiger, The Marsh Arabs. Havia também pilhas e pilhas de romances empoeirados e meio apagados da Mills & Boon, a prima britânica da Harlequin. Na primeira vez em que fomos à Mutanabbi, Roaa comprou uma pilha de quinze centímetros de romances surrados dos anos 1970, que exibiam em suas capas inflamadas homens enrugados e mulheres de seios fartos se abraçando diante de montes lúgubres e paisagens marinhas. — As pessoas riem de mim por causa desses livros — disse ela, colocando-os na bolsa. — Mas na verdade foi com eles que aprendi a falar inglês. Roaa não havia conseguido frequentar o ensino médio de língua inglesa, no qual os filhos e filhas da elite de Bagdá tagarelavam com perfeitos sotaques americanos. Mas as livrarias de Mutanabbi funcionavam como bibliotecas: por um pequeno depósito, ela podia pegar um ou dois livros, devorá-los em casa, levá-los de volta na semana seguinte e trocá-los por mais livros. Depois de anos estudando romances baratos emprestados, Roaa falava inglês tão fluentemente quanto qualquer filha de burocrata do Baath. A rua Mutanabbi era um ótimo equalizador. Os cafés eram o coração de Mutanabbi e os mais famosos eram o Hassan Ajami e o Shahbandar. Como aqueles da Abu Nuwas, os cafés abrigavam uma cultura de curiosidade intelectual que atravessava identidades étnicas e sectárias. Faziam parte de uma tradição de discussão e debate públicos que datava da Bagdá medieval. Shahbandar era minha casa de chá preferida, quase centenária, na esquina da Mutanabbi. Dentro, gaiolas de pássaros pendiam do teto alto. Fofocas subiam com a fumaça dos cigarros, manchando as altas paredes azul-claras e brancas com o gás de rixas literárias antigas. O café inteiro tinha o reconfortante tom de sépia de um século de nicotina. Nas paredes havia quadros coloridos de ruas antigas de Bagdá, com suas sacadas projetadas; quadros pastéis de mesquitas; um desenho da Grande Mesquita em Meca, onde estava escrito o shahadah, a profissão de fé muçulmana; uma aquarela da árvore genealógica de Maomé em tons de azul e vermelho; e os 99 nomes de Deus escritos em caligrafia árabe. Fotografias em preto e branco meio apagadas contavam a história do trágico século XX do Iraque: havia uma foto do rei Faisal I, o chefe hachemita que os britânicos estabeleceram como rei do Iraque em 1921, uma recompensa por liderar a Revolta Árabe contra os otomanos. Próximo havia outra fotografia, do jovem filho de Faisal, Ghazi: um menino baixinho num trono enorme com os pés mal tocando o chão. Um pouco mais distante havia a fotografia do imenso funeral do ostensivo e amado Ghazi, então com 27 anos e rei do Iraque, morto em um conveniente acidente de carro na época em que se mostrou cada vez mais crítico ao controle britânico sobre o supostamente independente Estado iraquiano. Eu sempre encontrava algum conhecido no Shahbandar. Basim, o escultor; Nassire, um poeta que conhecia do grupo Najeen; o marido de Reem, Sadig; e sempre, em seu lugar de sempre, num banco de madeira branco e gasto contra a parede dos fundos perto da cozinha, Abu Rifaat, também conhecido como o Professor, Cara do Grafite, Rei do Grafite, Caçador de Paredes e o Virgílio de Bagdá. Quando olho para as fotografias que tenho de Abu Rifaat, não vejo uma pessoa, mas um furacão. Ele nunca conseguia ficar quieto o tempo suficiente para que alguém tirasse uma foto, então o que aparece é um olho solitário espreitando distraído em meio a um borrão de bochechas e queixo em redemoinho. A ponta rosa do nariz carnudo mantém um bigode grisalho no lugar; o resto cambaleia conforme ele vira de

um lado para o outro no meio das frases, para conseguir falar melhor com todo mundo de uma vez. Óculos pretos de plástico mal equilibrados no nariz, um gorro preto enfiado na careca rosada, abafado em camadas de blusas e casacos gastos como um boneco de neve de lã. — Você tem que experimentar isso! — afirmou ele em minha terceira ou quarta visita, depois de olhar para mim por alguns segundos e tentar lembrar qual de seus cortesãos eu era. — É um chá tradicional, um chá irrrraquiano — disse segurando o “r” de iraquiano, com um dedo levantado —, o melhor de todos os chás! Protestei em vão que já tinha pedido e bebido um oceano de chá. Mas estava falando com as paredes. Ele já havia ido. Voltou com um copo de um chá pálido. — Isso — disse-me com um floreio — isso… acredite em mim!… é o verdadeiro chá do Iraque. Parecia oleoso, denso e amarelo, como um copo de topázio derretido. Tinha um gosto azedo, mas meio doce — um gosto antigo, como beber velhos livros de história. O nome era hamudh, que significa azedo, e era feito de noomi basra, limas-da-pérsia secas ao sol importadas historicamente da Pérsia pelo porto iraquiano do sul, de Baçorá. Abu Rifaat havia passado a maior parte da vida como operador de radar no exército iraquiano. Quando se aposentou, tornou-se um estudioso da palavra em tempo integral. Poetas medievais iraquianos iam para os mercados de Baçorá para aprender o árabe do deserto dos beduínos; doze séculos depois, Abu Rifaat assombrava os cafés e as ruas de Bagdá, compilando guias massivos e cheios de anotações das expressões mais fortes da fala iraquiana — os provérbios, as expressões, as piadas, os grafites e as gírias. — Todas elas estão vivas — disse, quando nos sentamos no Shahbandar, mexendo as mãos ao redor do café — porque estão circulando em lugares como esse. Nunca vi Abu Rifaat sem um monte de livros. Ele os empilhava em uma das mesinhas de linóleo do Shahbandar: uma cópia velha e bolorenta da revista Cricket com a capa rasgada; uma cartilha dos anos 1950 rasgada de Business English; e Canja de galinha para a alma. Este Abu Rifaat dizia que só perdia para Uncle John’s Bathroom Reader, um compêndio de curiosidades, histórias e pequenos fatos antigos que ele geralmente apontava como prova da beleza da literatura americana. — Eles escrevem coisas tão bonitas que não se pode encontrar nada parecido em outro país! — disse. — Por exemplo, o Bathroom Reader. É tão lindo. Não é um livro… é uma faculdade! Reúne tudo o que é belo. No Oriente Médio, histórias folclóricas contam as desventuras de um tolo sábio, um malandro chamado Juha, ou Nasir id-Deen ou, no Líbano, Abu Abed. Nos Estados Unidos, a tradição de contar histórias continuou em compilações de lendas urbanas e pequenas fábulas de autoajuda, como Canja de galinha para a alma. Abu Rifaat amava os Estados Unidos e tudo o que o país produzia. Seu pai começou tudo: se um filme americano passava à noite na televisão, ele acordava os filhos, sacudindo com carinho seus ombros: — Vejam, assistam… James Cagney! Jimmy Stewart! Mais tarde, Abu Rifaat descobriu algo melhor que Hollywood: a literatura americana: Jacqueline Susann, Harold Robbins, Sidney Sheldon e Barbara Taylor Bradford. Os livros eram a chave dele para a América, o mundo de sonhos que o fazia seguir em frente durante os longos e solitários anos no exército. — Precisamos dos artistas, porque eles deixam a vida bonita — suspirou para mim certa vez, no Shahbandar. — Não sei por que os jornalistas riem de mim quando digo que amo Sidney Sheldon. Sua escrita… é tão bonita. Sabe, um dos livros dele tive que ler 22 vezes para ficar satisfeito! Nunca ri do gosto de Abu Rifaat para livros. Em Bagdá você lê o que conseguir encontrar. Eu consegui uma brochura antiga de Moby Dick na rua Mutanabbi e toda a Trilogia USA de John dos Passos em volume único. Mas fiquei igualmente feliz quando encontrei uma cópia antiga e desmanchando do romance sobre

boxe de Budd Schulberg The Harder They Fall, com uma capa mole que rugia: “Violento e forte, cheirando a sangue e desejo.” Eram os Estados Unidos também, e todos precisamos fugir de vez em quando. O fim do outono em Bagdá parecia a primavera no Meio-Oeste. Não estava muito quente, e, depois que chovia, o perfume das árvores de laranja e limão temperava o cheiro da queima do lixo e do combustível dos geradores. Comecei a andar de carro com Abu Zeinab, e às vezes com Roaa, e a explorar diferentes partes da cidade: Hurriya, Kadhimiya, Bab al-Muadham, Baitaween. A Universidade de Mustansiriya, a galeria de arte Hewar (“Diálogo”), com seu jardim de esculturas verdes e café a céu aberto. Mas havia um lugar que eu vinha evitando. Com exceção de uma ida noturna ao hospital militar americano quando fiquei doente, nunca havia ido à Zona Verde. A Zona Verde era rodeada de barreiras de concreto, arame farpado, guardas armados, sacos de areia e barreiras militares onde era preciso ficar na fila por horas, mesmo que a cada minuto aumentassem as chances de ser alvo fácil para ataques suicidas; tudo para assistir a conferências de imprensa nas quais oficiais estadunidenses liam declarações preparadas sobre como tudo estava indo bem no Iraque. Em meados de novembro, eu me sentia mais segura bebendo chá no Shahbandar do que passando perto da fortaleza do poder americano. A rua Mutanabbi me parecia menos estrangeira. Porém, pouco depois do Dia de Ação de Graças, uma amiga me disse para procurar por um soldado que ela conhecia chamado Alan King. Ela nos apresentou por e-mail e sugeriu que nos encontrássemos. Convidei-o para almoçar — pensando, ingenuamente, em levá-lo ao Karada para comer masquf. Alan King me respondeu imediatamente. Tudo certo em relação ao almoço; quanto à localização, ele escreveu: “Já que minha cabeça está a prêmio, tento não ir a muitos lugares públicos.” E pediu que o encontrasse na Zona Verde. Alan King era corpulento como um barril de petróleo, sólido, e tão loiro que seu cabelo parecia branco. Tinha um rosto redondo, vermelho e queimado de sol que projetava para cima com os olhos sempre semicerrados, como se sua própria loirice o cegasse. Ele parecia ter sido feito para climas mais frios. Mas era de Virgínia, havia passado os anos 1980 e 1990 em lugares como Egito, Bósnia, Honduras e Panamá, e parecia se sentir em casa no calor infernal de Bagdá. — A Betsy contou que você é jornalista — disse e apertou minha mão com o que pareceu ser um bloco de concreto. — É mesmo um prazer conhecer você. Alan liderava uma subunidade de assuntos civis que era responsável por construir relações entre o exército dos Estados Unidos e a população local. Conforme os militares marchavam pelo sul e entravam em Bagdá durante a invasão, Alan percebeu que as tribos tinham muita influência, principalmente fora de Bagdá. Então montou um banco de dados com os xeques tribais do Iraque e fez de sua missão construir alianças com os líderes tribais e suas complexas redes de relações. Estudou todas as divisões tribais: desde as confederações globais à menor unidade de cinco gerações em uma família. Conseguiu uma cópia do Arab Tribes of the Baghdad Wilayat, um guia publicado em 1918 pelas autoridades britânicas coloniais, e começou a aprender a história das tribos mais importantes. Mantinha reuniões semanais com um historiador iraquiano em que trabalhavam em uma lista de todas as tribos do Iraque. Ele as colocou em seu Palm Pilot, indexadas em tribo, subtribo, clã, subclã, ramo e família. Memorizou cada linha e cada verso do Corão, principalmente aqueles que tinham alguma coisa a ver com as relações entre os muçulmanos e os “Povos do Livro” — cristãos, sabeus e judeus. Durante as conversas, recitava versos do livro sagrado muçulmano e em seguida de escrituras bíblicas. Todo esse exercício valeu a pena quando ele conheceu Hussein Ali al-Shaalan, um xiita da cidade sulista de Diwaniya. Xeque Shaalan liderava um ramo dos Khazail, uma confederação historicamente rebelde com ramificações por todo o Oriente Médio. Xeque Shaalan fugiu do Iraque após o levante de 1991, quando os

xiitas do sul se rebelaram contra Saddam a pedido do presidente Bush. Depois de um ano na Arábia Saudita, recebeu asilo político de Londres e lá estudou direito na American University. Voltou ao Iraque depois da invasão de 2003. Em demonstração de respeito, Alan convidou o xeque Shaalan para encontrá-lo três vezes. Shaalan esperou até o terceiro convite para conceder um encontro ao oficial americano. Quando finalmente se encontraram, Alan narrou um conto iraquiano de séculos sobre a confederação tribal que cruzava um rio. Essa era uma deferência ainda maior que os três convites. — Esse conhecimento que ele tinha, ou ele já possuía ou encontrou — disse Shaalan, balançando a cabeça gravemente quando o conheci. — Em ambos os casos, isso demonstra que ele está cumprindo seu dever. Aprender sobre as tribos, conhecer sua história — gestos que demonstravam o tipo de respeito mútuo que uma casta de guerreiros espera da outra. Mas Alan descobriu que um dos mais importantes atos de diplomacia que um soldado americano poderia ter era simplesmente comer. Comer o carneiro que um xeque tribal sacrificou. Comer montanhas de arroz com três dedos. Comer bolos de gordura com prazer, e sem nenhuma hesitação, porque o anfitrião normalmente guardaria todas aquelas iguarias para ele mesmo e está oferecendo a você min eedu, de sua mão. Comer sentado à mesa em cadeiras douradas de jantar estofadas por todos os lados, reclinado nas almofadas de um diwan, ou ajoelhado no chão de concreto em volta de uma folha de plástico presa com tigelas de quibe. O caminho para os corações e as mentes passava pelo estômago. Você tem que participar da refeição. Isso estava provando ser uma verdade para mim também. A comida e a bebida eram como o soro da verdade. As pessoas diziam uma coisa na primeira vez em que as conhecia. Depois de uma xícara de chá ou café, um prato de doces — gradualmente, mordida a mordida —, revelavam o que pensavam de fato. — Estamos indignados com os acontecimentos desprezíveis em Abu Ghraib! — podiam dizer a princípio, tendo, educadamente, a reação que achavam que eu esperava. Depois de uma xícara de café, a indignação com Abu Ghraib se transformava em: — Bom, não estamos surpresos. Ao fim de uma refeição, podia ser um encolher de ombros incrédulo: — Você acha que ligamos se os americanos torturaram essas pessoas? Os Baaths nos torturaram durante anos. Esqueça Abu Ghraib. O que realmente quero saber é: quando vamos ter eletricidade? Todo lugar do mundo tem um shibboleth, uma pergunta para entender quem você é e a que é fiel. Os gregos clássicos perguntavam aos estranhos de qual cidade-estado eram cidadãos: o cínico Diógenes detestava tanto essa pergunta que inventou a famosa réplica: “Kosmopolites eimi, Sou um cidadão do mundo.” Como qualquer outra pergunta, essas também têm resposta: quando você chega a um lugar novo, é bom aprender sua pergunta logo, porque ela revela o que as pessoas valorizam (ou temem) mais do que qualquer coisa. Durante os dois anos que passei em Clayton, Missouri, me acostumei à pergunta: “De que paróquia você é?” — porque, em alguns círculos, ser católico era aparentemente coisa certa. Em Nova York era: “O que você faz?” — porque em Nova York todos devem fazer alguma coisa. No Iraque a pergunta é: “Min aya aamam?, de que tribo você é?.” Literalmente, aamam significa “tio paterno”: a tribo — chamada banu, o plural de ibn, que significa “filho” — é uma família bastante extensa que serve como garantia de linhagem e honra. As tribos do Oriente Médio surgiram muito antes do islã ou do cristianismo. A identidade tribal atravessa linhas sectárias e suplanta fronteiras nacionais: uma tribo pode ser xiita em alguns lugares, sunita em outros. Um membro de uma tribo do oeste do Iraque pode sentir maior lealdade em relação a parentes do outro lado da fronteira na Síria do que em relação a iraquianos de Baçorá. Algumas das maiores

confederações tribais, compostas de numerosas tribos alinhadas para fins de guerra, atravessavam toda a península Arábica. Historicamente, o servo de maior confiança do líder tribal era o que fazia seu café, que era responsável pela hospitalidade. Líderes tribais frequentemente formavam alianças durante banquetes enormes. Eles comiam e conversavam durante horas em monólogos corteses que às vezes viravam demandas concretas. Em muitos casos, selavam o acordo com outra refeição cerimoniosa: carneiro assado, frangos, pão tanoor, ensopados de carneiro e tomates e berinjela e abobrinha para despejar sobre os montes obrigatórios de arroz. A refeição e a negociação eram partes essenciais do mesmo ritual. Alan encontrava xeques em tendas no deserto ou em mansões de cimento. Negociações complicadas em torno de direitos de irrigação, oleodutos e acordos de segurança eram feitas durante uma refeição. Certa vez, enquanto conversava com um xeque dentro de sua casa, a equipe de segurança que estava do lado de fora passou um rádio para Alan em pânico: — Senhor, estão matando um carneiro aqui! O que fazemos? Rindo, pediu que se acalmassem. — Naquele momento, soube que teríamos de ficar para o almoço — disse ele mais tarde. Ele estava aprendendo uma das primeiras e mais básicas lições sobre o Iraque: nunca, jamais recuse uma refeição. Então, quando Alan convidou Mohamad e eu para um jantar ofertado pelo xeque Shaalan, achei que recusar seria um ato de insensibilidade cultural imperdoável. E se éramos obrigados a comer um banquete brobdingnagiano em prol da compreensão intercultural, eu estava pronta para fazer o sacrifício. Foi assim que Mohamad e eu acabamos no banco de trás de uma 4x4 com Alan e um juiz da Filadélfia chamado Daniel L. Rubini, rugindo pela rua Palestina num comboio de dois carros que era dolorosa, visível e ensurdecedoramente americano. Alan estava agitado. Para ele, sair da Zona Verde era tão perigoso e estressante quanto, para nós, entrar lá. Ele tinha que conseguir permissão para se aventurar na Zona Vermelha e precisava levar uma equipe de segurança onde quer que fosse: nesse caso, dois homens que ele apresentou vagamente como “amigos”, mas que tinham a vigilância silenciosa de espiões. Ele parou para fazer várias ligações urgentes e sussurradas (o Iraque ainda não tinha serviço de telefone celular, mas militares e oficiais da ocupação tinham uma rede especial de telefonia). Finalmente disse-nos qual era o problema: havia compreendido que o jantar seria na casa do xeque Shaalan, mas de alguma forma as linhas se cruzaram, os planos mudaram e, aparentemente, estávamos indo a outro lugar — um restaurante libanês chamado Nabil. Para os militares, restaurantes eram perigosos. Como barreiras, eram um ponto íntimo de contato entre ocupantes, ocupados e todos os que ficavam entre os dois. Comida e os espaços públicos em que se comprava ou se consumia essa comida — hotéis, restaurantes, cafés e mercados — eram cenários de todas as ambiguidades e frustrações entre iraquianos e estrangeiros, e esse é o motivo de esses lugares estarem sempre entre os primeiros a serem atacados. Quando entramos, percebi Alan e sua equipe de segurança dissecando o lugar com os olhos, medindo a linha de visibilidade das mesas às janelas e o caminho mais rápido da frente até os fundos. Depois de várias conversas sussurradas, os garçons nos levaram até uma sala nos fundos sem janela. O xeque Shaalan era alto e andava muito devagar. Seu rosto era bronzeado, com pálpebras pesadas que davam a ele uma expressão de cansaço, como se estivesse passando por coisas que sabia serem inúteis mas que se sentia obrigado a cumprir. Ele carregava o peso de um homem nascido em posição de comando, um jeito de falar e de olhar como se todos estivessem esperando por ele. Usava ternos de lã feitos sob medida, às vezes de risca de giz, cortados por alfaiates hábeis em modelos fluidos típicos do Oriente Médio. Falava em frases longas e rebuscadas que deixariam Henry James orgulhoso. O xeque sentou-se no meio de uma mesa comprida de banquete, com o tradutor de Alan ao seu lado,

seguido de Alan e um de seus seguranças. Eu me sentei do outro lado da mesa com o juiz Rubini, Mohamad e o outro segurança. Garçons iam e vinham, servindo prato atrás de prato de homus, tabule, baba ghanouj. Travessas ovais grandes de carneiro grelhado, frango e cafta, tudo coberto cuidadosamente com pão embebido em suco de tomate. Montanhas de pepinos frescos, rabanetes e cebolinhas verdes, cabeças inteiras de alface e cebolas brancas delicadamente descascadas. Mantendo as regras da hospitalidade, trouxeram mais de uma travessa de cada tipo de comida para que ninguém tivesse que se inclinar sobre a mesa. Não havíamos comido antes de sair para encontrar Alan. As horas esperando no trânsito, depois parados na fila na Zona Verde, seguidas pela adrenalina ao atravessar Arasat, tudo deixou meu sangue gritando por açúcar. O restaurante tinha grelhado o prato de carne com cebolas e tomates, e o cheiro defumado de pele de tomate tostada envolvendo a polpa quase derretida, além do cheiro metálico de carne grelhada, mas ainda sangrando por dentro, empalada em longos espetos de metal, estava disparando comandos animais urgentes — prender, matar, comer — pelos circuitos já crus do meu cérebro. Mas assim que nos sentamos em volta das várias iguarias, o xeque Shaalan olhou ao redor, sacudiu a cabeça e falou. — Saddam — começou, sacudindo o braço envolto em lã com um ar nefasto de enumeração — fez muitas coisas erradas. Peguei meu caderno. Isso seria épico. Curvar-me sobre a mesa para pegar uma garfada de comida enquanto o xeque falava — mesmo partir sorrateiramente um pedacinho do pão que estava tão perto da minha mão — seria um desrespeito impensável a nosso anfitrião. Só o mais feio dos americanos cometeria tal insulto. Então nos acomodamos para ouvi-lo. Por enquanto, pelo menos, comeríamos história. O Império Otomano, que governou de maneira intermitente o Iraque durante séculos, deixou as lideranças tribais mais ou menos em paz até o século XIX, quando impôs reforma agrária e um código penal que corroeu o poder desses líderes. No entanto, quando o Império Britânico ocupou o país, depois da Primeira Guerra Mundial, os administradores coloniais decidiram promover os xeques rurais. Oficiais britânicos acreditavam que os xeques poderiam ser mais facilmente controlados que os iraquianos urbanos e instruídos da classe superior, que começavam a espalhar que os cidadãos poderiam querer governar seu próprio país. As necessidades da Inglaterra na Mesopotâmia (leia-se: petróleo) seriam melhor satisfeitas por uma “regra velada” através dos xeques, escreveu o oficial político colonial Bertram Thomas, do que por um “experimento prematuro” com um governo nativo. Em 1918, administradores coloniais britânicos deram aos xeques tribais o poder de resolver disputas e coletar impostos. Os iraquianos talvez desejassem um sistema mais moderno e igualitário, mas a lei tribal, disse Thomas piedosamente, tinha “a aprovação do costume imemorial”. Durante as décadas seguintes, o império expandiu tanto o poder dos xeques que os camponeses iraquianos se transformaram praticamente em escravos. Quando o Regulamento das Disputas Tribais foi finalmente revogado, em 1958, muitos xeques já haviam acumulado poder e riqueza sem precedentes. De início, Saddam via os xeques como uma potencial ameaça à sua hegemonia. Mas acabou percebendo que poderiam ser úteis. Durante a Guerra Irã-Iraque, entre 1980 e 1988, soldados começaram a abandonar o exército e a voltar para suas tribos a fim de se esconder. Saddam recorreu aos xeques para que capturasse desertores. Assim como os britânicos haviam feito antes dele, Saddam substituiu aqueles que não cooperavam por simuladores. As pessoas os chamavam de “falsos xeques” ou “xeques suíços”, pelos carros, pelo ouro e pelo dinheiro que Saddam esbanjava com eles. O regime mantinha uma relação detalhada de todos os xeques, falsos ou genuínos; a certa altura, somavam 7.380. As tribos do Iraque, conforme assinala o historiador Hanna Batatu, sempre prosperaram enquanto suas

cidades sofriam. Quando as instituições civis do país começaram a desmoronar sob a ditadura Baath, os xeques recuperaram muito da influência que haviam perdido. Quando o estado de direito enfraquecia, a lei tribal ganhava força: quando os iraquianos se envolviam em alguma disputa, recorriam a seus xeques e não aos juízes ou policiais corruptos. — Você tem um conflito: roubo de terras, direito de irrigação, acidente de carro — contou-me Adnan al-Janabi, um xeque tribal que estudava economia e era um oficial da Opep nos anos 1970. — As tribos de ambos os lados tentam se reunir e chegar a um acordo. Se isso não acontecer, você vai ao tribunal: o policial vai lhe chantagear, o juiz vai ficar com o restante e, no final, alguém do governo anulará o julgamento. Mesmo que você consiga um julgamento no tribunal, não será possível aplicá-lo. Em alguns casos, ficará nesse ciclo durante anos… isso se não ocorrer uma vingança, o que é bem provável. Quando mediadores tribais chegavam a um acordo, faziam com que os dois lados se encontrassem, quase sempre durante uma refeição. Às vezes até compartilhavam o pão cerimonial e o sal. — O papel dos líderes tribais é fazer com que os dois lados se encontrem bem cedo — explicou Janabi —, e terminamos partindo o pão, beijando-nos e, quase sempre, o conflito é resolvido. Nos anos 1950, o pai de Janabi sugeriu substituir a lei tribal por um código civil. O próprio Janabi tinha uma opinião não muito clara sobre o costume iraquiano supostamente sagrado de resolver disputas por meio das tribos. — Os britânicos impuseram isso… trouxeram isso com eles — disse-me, agitando o terço islâmico impacientemente. — Inshallah, se tivermos uma sociedade civil, posso descansar em casa e ter uma boa noite de sono. Mas minhas esperanças de uma resolução rápida numa sociedade civil e pacífica, devo dizer, estão sendo massacradas. E completou tristemente: — Eu pensava que levaria uns dois meses. Quando nos sentamos para jantar com o xeque Shaalan, o sistema judiciário do Iraque estava uma bagunça. Policiais, investigadores e juízes esperavam suborno antes de abrir um caso. Juízes honestos tinham medo de julgar casos, pois temiam que insatisfeitos com suas decisões mandassem matá-los. Uma semana antes de jantarmos no Nabil, o juiz Rubini escreveu um memorando para as autoridades da Autoridade Provisória de Coalizão liderada pelos Estados Unidos, onde trabalhava como conselheiro para o Ministério da Justiça do Iraque. Ele chamou atenção para o fato de que, embora os tribunais penais estivessem abertos havia sete meses, teriam havido apenas vinte condenações penais em Bagdá — uma cidade que já caminhava rumo a uma anarquia. Se o novo Ministério da Justiça do Iraque tinha qualquer esperança de reconstruir o sistema legal do país, fazia sentido conversar com os xeques tribais que vinham sendo os juízes de fato há décadas. Foi por isso que Alan levou o juiz Rubini para encontrar o xeque Shaalan. — Falo partindo de uma ignorância minha — disse o juiz, que havia sido cuidadosamente treinado por Alan. — Conheço tribunais, mas não conheço tribos. Sei que vocês têm 10 mil anos de história. Meu país tem apenas 225. Sorrindo levemente, xeque Shaalan inclinou a cabeça. — Vocês têm o poder… vocês e todas as tribos nacionais… e têm muitos inimigos, de dentro e de fora. — continuou o juiz Rubini. — O país está desmoronando com a corrupção, há um poder tremendo… — Isso é muito verdade, nosso país tem 10 mil anos de história — disse o xeque Shaalan, interrompendo-o calmamente. — Você mencionou que seu país tem apenas 225 anos de história. Mas nesses 225 anos vocês conseguiram conquistar muitas coisas… — Ele parou, magnífico, e o juiz Rubini assentiu com a cabeça. — E aqui entra o papel das tribos, se elas levarem seu trabalho a sério. Cumprindo

seu papel, elas serão melhores pelas razões que vou explicar. Levaria anos até que pudéssemos comer. Tudo o que o xeque Shaalan dizia tinha que ser traduzido para o inglês. Tudo o que Alan e o juiz diziam tinha que ser traduzido para o árabe. Desviei o olhar para a direção de Mohamad. Ele parecia estar com fome. Muito levemente, com um movimento que só eu seria capaz de interpretar, ele revirou os olhos. — Gostaríamos de manter um relacionamento que tivesse um bom alicerce, para podermos aproveitar ao máximo sua presença aqui — disse o xeque. — É um passo correto. Sabemos que vocês estão indo embora. — Nesse momento, o xeque fez uma pausa significativa, olhando ao redor da mesa, como se quisesse dar ênfase ao ponto. — Mas, antes de vocês partirem, queremos aproveitar a presença de vocês aqui. Temos que fazer com que as coisas aconteçam mais rapidamente do que antes, para que possamos estar prontos quando todas essas mudanças acontecerem. Foi formado um conselho para a redação da constituição, de que vocês devem estar cientes. — Ele apontou graciosamente para o juiz Rubini. — Dolorosamente cientes — disse o juiz. Todos riram com educação, e um pouco de desespero. A tão esperada constituição ainda não havia sido escrita, mas a questão de quem iria escrevê-la, e como essa pessoa seria escolhida, já causava amargos conflitos. — Queremos fazer com que essas mudanças aconteçam com mais rapidez — disse o xeque Shaalan, franzindo a testa levemente. — Deveríamos estar prontos para mudanças rápidas. O trabalho que o coronel King está fazendo é uma das coisas mais importantes para que a Autoridade Provisória de Coalizão tenha uma dimensão real do que está acontecendo no Iraque… De repente as luzes se apagaram. Houve um ou dois segundos de silêncio chocante. No pequeno cômodo sem janelas, a escuridão era absoluta. Quedas de energia eram constantes em Bagdá e geralmente não eram motivo de alarme. Mas Alan tinha dito algo sobre estar com a cabeça a prêmio. Se as pessoas erradas tivessem visto o carro… se as pessoas erradas soubessem que um oficial americano estava jantando ali, com dois seguranças, um xeque tribal e um casal de intrusos, esse seria o momento para atacar. Na escuridão, eu fazia minha própria análise de riscos. Se fôssemos atacados, pensei com a intensidade febril do baixo teor de açúcar no sangue, não quero encarar isso de estômago vazio. Eu estava olhando a comida pelo que pareciam horas; cada prato de homus, cada espeto de carne estavam gravados em meu cérebro. Eu poderia esticar o braço, pegar um pedaço de pão e um punhado de homus e ninguém saberia quem teria cometido o crime. Naquele momento, cada um dos “guarda-costas” acendeu uma pequena porém poderosa lanterna. — E se algum desses líderes tribais falhasse — continuou o xeque Shaalan, retomando seu discurso como se nada tivesse acontecido —, se falharem em sua missão, serão envergonhados, profundamente envergonhados, diante de suas famílias, diante das pessoas de sua região… As luzes se acenderam novamente. Os guarda-costas desligaram as lanternas. Em árabe levantino perfeito, um deles murmurou: “Alhamdulillah, graças a Deus.” A cabeça do xeque Shaalan virou-se para o lugar de onde veio o som. — E que surpresa maravilhosa — declarou com largo sorriso — descobrir que nosso amigo fala árabe! Todos murmuramos, concordando que era maravilhoso. O xeque Shaalan sorriu e diplomaticamente retomou seu discurso. Mas antes que ele pudesse voltar à sua fala, Mohamad pegou um pedaço de pão, esticou o braço até o outro lado da mesa e mergulhou o pão no homus. O xeque Shaalan ficou congelado, com o braço esticado, no meio de uma frase complicada. Alan franziu a testa. Faisal, o tradutor britânico, educado e elegante de Alan, parecia horrorizado. Até os guarda-costas

permitiram-se leves contrações faciais. Mohamad olhou para nós, mastigando calmamente, sem o absoluto remorso. Olhei para ele. Estávamos lá para testemunhar a aliança. Não para comer. E, também, eu é que era a gulosa, não ele. — E espero — disse o xeque, colocando a mão no coração e chacoalhando a cabeça com pesar infinito, como se tivéssemos recusado sua comida — que nossos convidados comam algo, e não esperem por mim. Seis dias após nosso jantar com o xeque Shaalan e alguns antes do dia em que Mohamad e eu deveríamos ter ido embora, boatos ecoavam por Bagdá: os militares americanos finalmente haviam prendido Saddam. Em 13 de dezembro de 2003, as tropas dos Estados Unidos capturaram-no num pequeno buraco no chão perto do vilarejo de Al Dour. No dia seguinte, depois de ser interrogado e de terem matado seus piolhos, os oficiais norte-americanos liberaram um vídeo para todo o Iraque e o mundo: o grande ditador sujo e derrotado, seguindo seus captores como uma criança senil; baixando a cabeça para a checagem dos piolhos; e abrindo a boca, obedientemente, para uma lanterna americana. Clérigos xiitas comeram doces na hora das orações. O Partido Comunista Iraquiano levantou bandeiras vermelhas em júbilo. Fogos felizes soaram esporadicamente. Nas ruas, as pessoas queimavam velhos dinares iraquianos com o rosto de Saddam impresso. As comemorações terminaram cedo, quando a maior parte de Bagdá correu para casa para se esconder dos tiros e ataques de retaliação, e eu liguei para Roaa. Quando as autoridades da ocupação estadunidense mostraram a filmagem de Saddam na coletiva de imprensa, um dos jornalistas iraquianos ficou de pé e gritou: “Morte a Saddam!” — palavras que provavelmente havia esperado sua vida inteira para dizer. Pensei em Roaa imediatamente: eu estava animada e feliz por ela. Essa seria uma ocasião catártica, o momento em que sua liberdade finalmente pareceria real. Ela atendeu o telefone chorando. — Pensei que você estaria feliz — disse eu, sentindo-me burra. — Feliz? — respondeu ela. — Quando vimos esse pequeno vídeo dele, desse jeito, foi algo terrível. Sua voz tinha uma uniformidade que me preocupou. Normalmente ela pulava de uma sílaba à outra, no ritmo de sotaques inesperados. Agora, sustentava um único tom de desesperança. — Fiquei triste porque nossas vidas inteiras foram desperdiçadas por esse homem — disse ela. — E pelo quê? Por nada. Roaa e eu passamos o dia seguinte andando pela cidade, conversando com as pessoas que encontrávamos. Elas estavam divididas entre felicidade, humilhação e raiva. Uma mulher cujo pai havia sido morto por Saddam disse que estava com raiva por ele ter sido capturado por americanos. Outra mulher, que perdera doze parentes nos expurgos do Baath, disse que não sabia o que sentir. O sabor da liberdade era mais complexo, mais amargo do que imaginávamos. Finalmente um diretor de teatro de quase quarenta anos disse o que todos estavam pensando: Obrigado, América. Agora vão. — Quando os americanos vão embora? — perguntou ele. — Eles disseram que queriam as armas de destruição em massa. Não existem armas de destruição em massa. Eles disseram que queriam que o regime caísse. Caiu. Eles queriam encontrar Saddam. Encontraram. E agora? Que motivo usarão para ficar? A lua de mel havia acabado. Estávamos em Bagdá havia dois meses e meio e era hora de ir embora. Eu não tinha certeza de onde era nosso lar — não morávamos aqui, nem em Beirute, nem mais em Nova York — mas estava com saudade de casa. De repente, queria estar em Chicago, onde seria Natal e todas as casas estariam cheias de luzes coloridas. Poucos dias antes do Natal, voltamos a Beirute.

13 O HIJAB DO DIABO

QUANDO VOLTAMOS PARA BAGDÁ, em março de 2004, uma melancolia profunda pairava sobre a cidade. Podíamos sentir o medo nas conversas das pessoas, uma mudança sutil que vinha gradualmente acontecendo nos últimos meses. Pessoas desapareciam à luz do dia e seus corpos eram encontrados depois com sinais de tortura. Todos conheciam alguém — um amigo, um parente — que havia sido morto. Não era nada comparado ao massacre sectário que viria nos próximos anos, mas naquela época parecia inimaginável. Uma companhia americana havia alugado todo o Sumer Land e se recusava a aceitar outros hóspedes. Então nós mudamos para o Andalus, um pequeno hotel perto da Abu Nuwas, a apenas algumas quadras da praça Firdous. Do outro lado da praça ficava a belíssima mesquita de cúpula azul que os correspondentes de televisão tentavam colocar ao fundo das chamadas ao vivo. Do outro lado da mesquita ficavam o Sheraton e o Palestine, dois hotéis altos e rodeados por várias camadas de muros e barreiras. Juntos, formavam um complexo, uma fortaleza onde as grandes redes de televisão e agências de notícias colocavam suas equipes. O Palestine tinha uma piscina e um bar panorâmico onde, segundo boatos, o filho de Saddam, Uday, costumava beber. Fui lá algumas vezes: era cheio de empreiteiros bêbados, e isso, somado às mesas mal iluminadas e às lâmpadas retro dos anos 1970, dava ao lugar um glamour febril, ameaçador. Das janelas eu via o Tigre, uma cobra negra que dividia a cidade, margeado por luzes laranja que piscavam, mantidas vivas por mil e um geradores. Fora da primeira linha de barreira e dos muros de concreto do Palestine e do Sheraton, havia uma pequena rua com alguns hotéis menores, mais baratos e menos seguros, incluindo o nosso. O Andalus era um octógono dentro de um quadrado: um átrio de oito andares ia até o alto do prédio. Os quartos projetavam-se para fora do átrio, arranjando-se em formas estranhas como peças de um quebra-cabeça. Nosso quarto não tinha cozinha, somente uma geladeira pequena e uma pia no corredor estreito que saía do banheiro. Comprei um fogareiro coreano em Karada, coloquei-o perigosamente sobre a geladeira e fiz ovos mexidos. Enchi potes de plástico com cebolas, maçãs e tâmaras iraquianas. Ficamos no quarto andar durante quase todo o verão de 2004. Comemos muito homus enlatado no Andalus. Quando chegamos ao Andalus, a rua Abu Nuwas estava mudada mais uma vez. O terreno do antigo palácio de Saddam agora fazia parte da Zona Verde. Militantes disparavam morteiros do outro lado do rio em direção à Zona Verde; os militares americanos devolviam. Os poucos restaurantes de masquf remanescentes quase nunca abriam e às vezes eram atingidos. Barreiras, muros de concreto e tanques americanos bloquearam a Abu Nuwas durante quase todo o verão. Crianças de rua das redondezas ficavam por ali, praticando seu inglês com os soldados americanos. Mulheres mais velhas que trabalhavam nas barreiras flertavam desesperadamente com jovens reservistas. Meninos de oito ou nove anos, órfãos daquela guerra e de outras passadas, cheiravam cola e, como cafetões, ofereciam as irmãs. Era poeirento e depressivo. Abu Nuwas teria parado e chorado. Mas no início de algumas noites, enquanto o sol se punha sobre o longo colar prateado do Tigre e as palmeiras que ainda restavam esticavam seus braços contra o céu, as pessoas ainda iam ao rio. Velhos se sentavam calmamente, fumando e olhando a água brilhante. Assistindo a essa contemplação silenciosa do

Tigre, eu gostava de pensar que o rio, que já tinha visto coisas muito piores com o passar dos anos — inundações, pragas, invasões dos mongóis — sobreviveria. Alguns dias depois de nossa volta, fui ao Sumer Land visitar os funcionários e ver se Layla ainda estava lá. O reccepcionista me trouxe uma xícara de chá. Perguntei a ele como estavam todos. — Muitos problemas — disse ele e sacudiu a cabeça. — Depois que a senhora e seu marido foram embora, tivemos muitos problemas. Perguntei se eu podia comprar um jornal. O hotel normalmente vendia jornais num pequeno balcão na recepção, mas o balcão não estava mais lá. — Não vendemos mais jornais — disse-me o recepcionista. — Quando vou ao banheiro, eles roubam. — Quem? Quem roubaria um jornal? — Os americanos — respondeu amargamente. Lá em cima, Layla e as filhas sentiam como se vivessem em estado de sítio. Elas não se sentiam bem ao comer no restaurante do hotel, que ficava cheio de empreiteiros bêbados todas as noites. Não iam mais ao café. Mas a perda mais amarga era a piscina. Antes da guerra, Layla nadava na piscina olímpica de Qadisiya, que reservava um dia da semana para as mulheres. Depois da guerra, segundo ela, “os americanos” dominaram a piscina e não havia mais o dia das mulheres. Durante um tempo, ela e Shirin nadaram um pouco na minúscula piscina em formato de rim do Sumer Land, que era do tamanho de uma caçamba de caminhonete. Mas aí os empreiteiros chegaram. — Agora o único lugar em que posso nadar — disse Layla, respirando fundo com tristeza — é no chuveiro. Enquanto conversávamos, um homem corpulento com um corte de cabelo militar e o rosto vermelho veio até a sacada na frente da janela de Layla. Ele usava uma camisa polo branca e calças cargo cáqui. Olhou para a janela dela e acenou. Layla não respondeu ao aceno. — Você está vendo aquele homem? — disse, levantando o queixo e apertando os lábios para ele com ódio. — É um idiota. Ele acenou novamente, ficou na ponta dos pés e apertou os olhos, tentando espiar para dentro da janela dela. — Quando o vemos no hotel, ele sempre diz “Salaam aleikum, salaam aleikum” — continuou ela com desgosto. — E está sempre usando um dishdasha, uma túnica, e vestido como um xeque. Uma noite, Layla contou, o empreiteiro bateu à sua porta e tentou se convidar a entrar. Ela dava uma pequena festa no apartamento: alguns parentes tinham vindo e havia música. Layla tentou fechar a porta para que ele não visse suas filhas e parentes, e para que eles não o vissem. Mas o homem colocou o pé na porta e tentou olhar para dentro por sobre os ombros dela. — Ele disse: “Ei, como você não me convidou? Somos amigos!” — Ela como que cuspiu a palavra “amigos”. Talvez ele não tenha percebido o que estava fazendo; talvez estivesse apenas tentando ser amigável. Talvez não. Mas Layla não conseguia conciliar a Rachel e o Ross de Friends a esse tipo tão diferente de amigo americano. O empreiteiro jamais entenderia que os americanos não eram hóspedes, mas ocupantes, e que hospitalidade estava fora de questão. Na época eu escrevia com regularidade para o The Christian Science Monitor. Meus editores estavam especialmente ansiosos por uma história sobre Fern Holland, uma americana de 33 anos que tentava organizar centros de apoio a mulheres no sul do Iraque.

No dia 9 de março, Fern visitou o centro para mulheres em Karbala com sua assistente Salwa Oumashi. No final da tarde, Fern e Salwa, acompanhadas de um assessor de imprensa chamado Robert Zangas, voltavam para o escritório em Hilla. No caminho, um carro cheio de homens armados forçou o carro em que os três estavam a sair da estrada e os metralhou até a morte. Horas após o atentado, investigadores da Coalizão prenderam seis suspeitos. Quatro deles tinham um cartão de identificação válido da polícia do Iraque. Aquelas três pessoas eram vítimas de uma guerra maior, uma guerra contra as mulheres iraquianas. Não havia como saber se haviam sido um alvo específico por promoverem os direitos das mulheres, mas parecia provável: eu já havia entrevistado Yanar Mohammed, uma feminista assumida que havia recebido diversas ameaças de morte, e ela não era a única. A Coalizão tinha anunciado que iria transferir o gerenciamento daqueles centros para os funcionários locais. Eu queria que aquelas mulheres iraquianas fossem o foco da minha história. Para fazer isso, teria que ir a Karbala. Eu nunca havia ido a Karbala, e nem Roaa. Ela falava três línguas fluentemente, mas, além de Bagdá, conhecia apenas a cidade nortista de Sulaimaniya, no Curdistão iraquiano. — Tenho 23 anos e ainda não conheço o resto do Iraque! — disse ela. O isolamento tinha feito com que Roaa tivesse ideias interessantes sobre os xiitas: eles eram maus muçulmanos que não oravam o suficiente; usavam truques xiitas para escapar de obrigações religiosas, como jejuar para o Ramadã; sua revolta contra Saddam em 1991 tinha falhado devido às deficiências deles, não porque os americanos abandonaram os rebeldes do sul depois de pedirem que se levantassem contra Saddam. (A rebelião dos curdos, de acordo com ela, fora bem-sucedida graças à ingenuidade curda e não à assistência militar de uma zona de exclusão aérea patrulhada por caças americanos e britânicos.) Costumava discutir com ela sobre esse tipo de coisa durante horas. Eu argumentava que alguns de seus amigos mais próximos eram xiitas: ela adorava Usama, outro jovem estudante do Institute for War & Peace Reporting. E gostava de Mohamad, principalmente depois do incidente do hijab. Antes de sairmos de Beirute, Umm Hassane me deu um hijab de poliéster preto e cinza para a viagem de carro por Anbar e para outras situações em que eu precisaria parecer iraquiana. Enquanto me mostrava como amarrá-lo sobre o queixo, um sorriso astuto cruzou seu rosto. — Talvez você goste dele — disse, olhando para cima com um suspiro melancólico — e comece a usálo o tempo todo. Levantei uma sobrancelha na direção de Mohamad. Ele respondeu com um olhar maligno que dizia: Só por cima do meu cadáver. Mohamad se opunha ao hijab por razões filosóficas, mas eu suspeitava de que essa reação fosse também parcialmente estética. No minuto em que coloco o hijab, uma transformação incrível acontece. Como a cabine telefônica transforma o doce Clark Kent no Super-Homem, eu também, de hijab, me transformo numa camponesa albanesa carrancuda. Meu rosto redondo se torna duro e apático, amargo e incrivelmente feio. Uma papada surge. De repente odeio os homens, todos eles. Fico tão horrorosa de hijab que tudo que eu olho fica feio também, por compaixão. Mohamad detestava tanto essa metamorfose que depois de nos mudarmos para o Andalus às vezes eu me encontrava na estranha posição feminista de argumentar que precisava usar aquela maldita coisa por uma questão de segurança. Roaa se recusava a me apoiar: ela estava totalmente do lado de Mohamad. — Um homem oriental não querer que sua mulher use o hijab… isso é maravilhoso — exultava ela. — Isso é algo fantástico, de verdade. Roaa era uma muçulmana devota. Orava cinco vezes por dia, como fizera durante a vida toda, e colocava o relógio para despertar na hora da oração. Se estivéssemos trabalhando, fazia suas orações no fim da tarde, ao chegar em casa. Mas não era conservadora: seu melhor amigo era um rapaz da idade dela, um

cristão, e eles conversavam ao telefone quase todos os dias. Ela não usava hijab, mas jeans e camisetas de borboletas coloridas rosa, amarelas e azul-claras que sempre combinavam com a sombra que aplicava sobre os olhos. — Annia, é evidente que eles percebem que você é estrangeira. Você nunca usa maquiagem suficiente — repreendeu-me certa vez, rindo e revirando os olhos castanhos, naquele dia pintados com um azul brilhante. — Nós, iraquianas, gostamos de usar muita maquiagem! Mas foi Roaa quem me ensinou o jeito certo de usar um lenço de cabeça. A estrada para Karbala era uma das mais perigosas do Iraque — as pessoas chamavam a área por onde ela passava de Triângulo da Morte — e precisávamos ser o mais discretas possível. Ambas colocamos abayas, umas túnicas longas, antes de sair de Bagdá. No carro, Roaa me mostrou como puxar uma ponta do lenço de cabeça e prendê-lo com um alfinete ao lado, para que eu parecesse uma boa garota muçulmana tão acostumada a usar o lenço que já lhe acrescentava um pouco de estilo. Roaa confessou que não havia conseguido dormir na noite anterior. Eu estava nervosa também: uma semana antes Fern e Salwa tinham sido mortas; durante o feriado religioso xiita da Ashura, extremistas sunitas tinham lançado nove ataques simultâneos em Karbala que mataram por volta de cem pessoas. Eu havia enviado um e-mail ao conselheiro da Coalizão do escritório em Hilla dizendo que queria visitar o centro. Ele me dissera categoricamente que não era uma boa ideia ir a Karbala. Decidi ignorá-lo: se dependesse do pessoal da Coalizão, nunca iríamos a lugar nenhum fora a Zona Verde. Antes de sairmos, liguei para minha amiga Manal Omar. Ela trabalhava para a Women for Women International, um grupo de apoio que ajuda mulheres em zonas de guerra a terem autonomia. Fern e Salwa eram amigas dela também. Manal alertou que eu fosse extremamente cuidadosa na viagem. — Não podemos ir para lá por causa do risco — disse ela. — E isso está acabando comigo, porque sei que Fern e Salwa iam querer que continuássemos o trabalho que estavam fazendo. Manal me aconselhou a voltar se os militares tivessem bloqueado a estrada principal, como normalmente faziam depois de ataques. — Tem uma estradinha, uma estrada secundária que você tem que pegar quando eles bloqueiam a principal — disse. — Tem uma placa… não lembro o nome… mas se a estrada principal estiver fechada, não pegue o atalho. Faça a volta e volte para casa. Não reparei nas placas. Num minuto estávamos na estrada principal, que passava pelas pequenas cidades sunitas do sul de Bagdá. No seguinte a estrada principal estava fechada e, de repente, nos encontramos nas pequenas estradas secundárias que serpenteavam pelos exuberantes canais de irrigação do Eufrates. E eu não sabia dizer se essa era a estradinha a que Manal se referia. Karbala é famosa por seus doces, fesenjoon, por uma história que data dos primeiros anos do islã. Depois da morte do profeta Maomé, uma guerra civil estourou motivada pela questão de quem deveria ser o califa — um parente do profeta ou um de seus companheiros mais próximos. A disputa sobre quem deveria manter o controle acabou dividindo os islâmicos nas seitas xiita e sunita. No ano 680, Hussein, neto do profeta, rebelou-se contra Yazid, o califa em Damasco. Ele foi com sua família e um pequeno grupo de seguidores para a cidade de Kufa, no sul do Iraque, cujo povo prometeu apoiá-lo. O exército de Yazid interceptou Hussein no deserto. Cercou a caravana e cortou seu acesso às águas do Eufrates. Depois de um grande sítio de dez dias, durante os quais as crianças da família de Hussein imploraram por comida e água, os homens do califa mataram o líder e cortaram sua cabeça. Levaram as mulheres sobreviventes e as crianças de volta a Damasco, onde o califa exibiu os cativos e as cabeças decepadas para sua corte. Mas a irmã de Hussein, Zainab, recusou-se a reconhecer a autoridade de Yazid. Em um discurso apaixonado, ela o denunciou pela morte do irmão, o neto do profeta. Salvando um dos

filhos de Hussein, preservou a linhagem do profeta. Por esse ato, milhões de xiitas fazem a peregrinação à cidade poeirenta para visitar o túmulo do imame Hussein. Os xiitas acreditam que o sangue de Hussein embebeu o solo de Karbala, deixando a terra com um cheiro doce. Quando chegamos a Karbala, o santuário estava tomado de peregrinos iranianos. A maioria, mulheres. Elas usavam jeans. Suas túnicas abriam e revelavam pedaços de tecidos das cores do arco-íris apertando a cintura. Na cabeça, tinham o tipo de lenço que alguns dos muçulmanos iraquianos mais dogmáticos chamariam de al-hijab al-shaitany, “o hijab do Diabo”: finos florais rosa e verdes que iam até a nuca, arranjados para revelar cabelos cacheados cuidadosamente enrolados. Elas cantavam em persa enquanto andavam pelas enlameadas ruas de Karbala. Uma peregrina adolescente usava jeans roxos apertados nas coxas e botas de salto alto. Roaa olhou para ela por detrás de seu buraco negro. — Estamos usando essas coisas terríveis e veja as mulheres iranianas — sussurrou. — Sendo que é culpa delas termos de usar abayas! No Centro de Mulheres Zainab al-Hawraa, em homenagem à neta do profeta, as mulheres que deveriam ser responsáveis pela gestão se sentiam isoladas. Sentiam saudade de Fern e Salwa, que costumavam visitá-las quase toda semana, trazendo falafel do mercado e outros presentinhos. Elas recordaram o último dia das duas: uma das iraquianas do centro havia feito fesenjoon, o espetacular prato iraniano de ensopado de frango com molho agridoce de romã engrossado com nozes, e todas comeram juntas. Duas semanas após o assassinato de Fern e Salwa, as mulheres se sentiam sitiadas. Disseram que não apareciam muitos visitantes por causa das estradas perigosas. Todas haviam recebido várias ameaças de morte. Algumas vinham de telefonemas misteriosos, mas outras, de pessoas que elas conheciam — religiosas locais que ligavam à noite, ou vinham a suas casas e avisavam-nas que o centro de mulheres era mantido “por judeus” e que não era bom para a reputação de uma mulher ir para lá. A última ameaça de morte veio naquele dia, trazida por um estudante eclesiástico que bateu à porta enquanto Roaa e eu conversávamos com as mulheres. A gerente tentou despistar o incidente, não querendo nos alarmar, mas seu olhar de medo era mais assustador do que qualquer coisa que ela pudesse ter dito. Eu estava começando a perceber que a viagem era mais perigosa do que havia pensado, não só para mim, mas também para as outras. Queria experimentar os famosos doces de Karbala, de que Roaa e outras pessoas tinham me falado, mas precisávamos sair da cidade antes que o sol se pusesse. E ainda tínhamos uma parada para fazer antes de ir embora. Um jovem clérigo xiita chamado Muqtada al-Sadr vinha denunciando a ocupação liderada pelos americanos desde o início. Na semana anterior aos assassinatos, os clérigos de Sadr haviam criticado os centros de mulheres. Eu queria ver o que seus representantes em Karbala tinham a dizer sobre os assassinatos. O clérigo que gerenciava o escritório, xeque Khidayer al-Ansari, nos levou a sua sala de visitas. Retratos de mártires xiitas cobriam as paredes, incluindo um do pai de Sadr, um grande aiatolá que fora assassinado pelo regime de Saddam em 1999. Tiramos nossos sapatos e nos sentamos no chão com o xeque. Xeque Ansari aprovava os centros de mulheres: eles ensinavam costura e informática, e essa tecnologia, disse-nos, era boa para as pessoas. Ele condenava os assassinatos. — Não vejo como isso pode estar ajudando — suspirou, olhando tristemente para o chão. Mas ficou irritado quando lembrou que L. Paul Bremer, encarregado norte-americano da administração no Iraque, inaugurou o centro no mês anterior com uma bem-arranjada sessão de fotos para a imprensa. — Quando Bremer abriu esse centro, todos ouviram seu discurso: “Pretendemos dar às iraquianas liberdade total” — disse ele, e completou ominoso: — E pode sublinhar duas vezes “liberdade total”.

Durante essa conversa, o xeque manteve os olhos em Roaa, responsável por traduzir o diálogo, e percebi que essa observação implacável estava deixando a jovem nervosa. — Eles fingiram que tinham liberdade e democracia e que traziam isso para as mulheres — continuou, com raiva. — E isso é uma mentira porque eles não permitiram a democracia até hoje. Isso era difícil de refutar. No verão de 2003, autoridades da ocupação haviam cancelado as eleições locais, desejadas com quase desespero pela maioria dos iraquianos, e, em vez disso, empossavam oficiais militares e policiais iraquianos como líderes locais. Então autoridades norte-americanas começaram a fundar centros de mulheres — muitos, como o de Karbala, em antigos escritórios do regime que partidos políticos queriam para si. Em Karbala, autoridades americanas chutaram um partido político xiita local para fora do prédio e depois mandaram Bremer para ser fotografado com iraquianas na inauguração do centro. Para homens como o xeque, a mensagem parecia clara: a liberdade das mulheres veio à custa da sociedade iraquiana. Que as mulheres eram a sociedade era algo que ninguém além delas — e raros outros como Manal Omar e Fern Holland — entendia. De repente o xeque vislumbrou uma maneira de deixar claro seu ponto de vista. Sentando-se ereto, colocou uma mão sobre o joelho e desenrolou a outra de modo teatral em minha direção. — Pergunte isso a ela — disse ele atentamente, ainda olhando para Roaa. — Você sabe por que Marlene Monroe se matou? Aquele havia sido um dia longo e triste. A estrada de Bagdá, que teríamos que pegar para voltar, estava repleta de pichações que diziam Ao JIHAD, MUÇULMANOS, e quem quer que tivesse escrito aquilo não escreveu jihad no sentido de luta ou batalha. Quando as mulheres souberam que fomos de Bagdá até lá sozinhas, olharam umas para as outras assustadas. Uma tinha perdido um sobrinho na mesma estrada no início daquela semana. Elas nos disseram para voltarmos o mais rápido possível. O sol já escorregava em direção ao horizonte. Era hora de ir embora. E agora o homem de Muqtada em Karbala queria falar sobre “Marlene” Monroe. — Não — respondi. — Por favor, conte-me. Colando as coxas no chão, ele começou o que era claramente uma de suas histórias preferidas. — Marlene Monroe tinha muitos fãs — entoou, com a cadência narrativa musical do árabe clássico —, e esses fãs escreviam muitas cartas para ela. Eles faziam perguntas como “Como você se tornou uma estrela? O que fez para ficar tão famosa?”. “Um fã recebeu de volta uma carta de Marlene. No envelope, a estrela de cinema havia escrito instruções para abrir a carta somente depois de sua morte. Depois que ela cometeu suicídio, o dedicado fã, obedecendo a seus desejos, finalmente abriu a carta.” Isso, de acordo com o xeque, era o que dizia: É verdade, sou uma estrela, e famosa no mundo todo. Mas tudo o que sempre quis foi uma família. Tentei criar uma família decentemente, com honra, e falhei. Então não se esqueça disso: a fama não vale a pena se você perde sua honra, e perde o paraíso.

Ele olhou para nós, triunfante. — Esses centros de mulheres são muito bons para as mulheres, mas a coisa mais importante para as iraquianas é criar uma família com honra — concluiu, caso não tivéssemos entendido a história. — A mulher iraquiana deveria manter sua honra… não deveria perder o paraíso, jogar fora toda sua vida pelo que eles chamam de “liberdade”. Educadamente, agradecemos ao xeque pela lição. Arrumando nossos abayas, colocando para dentro cada fio desobediente de cabelo, pegamos a estrada de volta para Bagdá.

14 O LIVRE

EM ABRIL, AS TROPAS AMERICANAS lutavam contra duas rebeliões no Iraque: uma dos militantes sunitas em Fallujah e outra da milícia de Muqtada al-Sadr, nomeada por Muqtada de Exército Mahdi — nome do imame xiita que desapareceu misteriosamente no século IX e que muitos xiitas acreditam que voltará no dia do Juízo Final. No dia 3 de abril, o exército dos Estados Unidos prendeu um dos principais tenentes de Sadr. No dia seguinte, domingo, aqueles que apoiavam o clérigo saíram às ruas nas cidades de todo o Iraque. Oito soldados americanos foram mortos em confrontos em Sadr City, um bairro xiita de Bagdá de onde tinha vindo quase a metade da população da cidade. Na praça Firdous, no fim da rua em que ficava o Andalus, centenas de jovens começaram a se reunir. Saímos para ver o que estava acontecendo. Uma multidão de homens descia a rua Saadoun gritando “Muqtada! Muqtada!”. Tiros foram disparados da direção para a qual eles corriam, e os homens viraram e correram de volta, muito mais rápido dessa vez, e agora sem gritar. Um caminhão aberto passou como um trovão com dezenas de homens em cima, todos vestidos de preto dos pés à cabeça, segurando bandeiras pretas, gritando e indo em direção aos disparos. Dois dias antes, o exército americano havia cercado a cidade de Fallujah. Naquele dia, autoridades da ocupação anunciaram que prenderiam Sadr por seu envolvimento na morte de outro clérigo xiita no ano anterior, em abril de 2003. Três membros do Conselho de Governo ameaçaram renunciar ao cargo. Um deles era uma mulher, a dra. Salama al-Khafaji. No dia 9 de abril, no aniversário de um ano da queda de Bagdá, um Humvee circulou a praça Firdous o dia todo, lançando um alerta de recolher em árabe em volume altíssimo: “ESTA É UMA ÁREA MILITAR. ESTA ÁREA ESTÁ FECHADA POR ORDEM DAS FORÇAS DA COALIZÃO. SE VIRMOS QUALQUER PESSOA ENTRANDO NESTA ÁREA, ESSA PESSOA SERÁ IMEDIATAMENTE ABATIDA.” Então, caso parecesse improvável que a mensagem ganhasse o coração dos iraquianos, a voz da América completou: “SE ESTIVER COM RAIVA HOJE, DEVE ESTAR COM RAIVA DO EXÉRCITO MAHDI, PORQUE ELES NÃO LIGAM PARA O BEM-ESTAR DO POVO IRAQUIANO.” Naquele dia, Mohamad e eu fomos a Sadr City para as orações de sexta-feira. Mohamad e Abu Zeinab seguiram para a mesquita. Eu fiquei andando por lá e entrevistando as pessoas com Usama, um jovem estudante de jornalismo que contratamos como tradutor. Todos mencionavam a dra. Salama, como a chamavam. “Ela é mais corajosa que qualquer homem”, diziam homens grisalhos, admirados. “O sapato dela vale mais do que o Conselho inteiro”, trovejou um dos assistentes de Sadr para dezenas de milhares de partidários durante as orações na mesquita. A dra. Salama era a figura política feminina mais popular do Iraque, de acordo com uma pesquisa que também a classificou como a décima primeira figura pública mais popular no geral. Por ter amplo apoio dos partidários de Sadr, fazia a mediação entre eles e o exército norte-americano — uma forma de diplomacia essencial, mas extremamente perigosa. Pouco tempo depois, xeque Hussein Ali al-Shaalan nos apresentou a ela. Sentamos no escritório da dra. Salama com seu consultor, um clérigo xiita chamado xeque Fatih Kashif

al-Ghitta. Os dois xeques eram amigos, mas, assim que nos sentamos, começaram uma discussão sobre os direitos das mulheres. As mulheres exigiam uma cota de 40% no novo parlamento, o corpo legislativo que substituiria o Conselho de Governo. A ideia de as mulheres terem participação no governo tinha amplo apoio popular, principalmente em áreas xiitas. No entanto, alguns políticos eram contra, em nome da tradição. Nosso amigo xeque Shaalan, infelizmente, era um deles. — Quero para as mulheres do Iraque o que existe nos outros países, mas dentro dos limites islâmicos — argumentou xeque Shaalan, recostando-se na cadeira. Ele estava resplandecente, como sempre, com uma rica túnica de lã marrom-escura. Ele salientou, bastante preciso, que a maioria dos países na “coalizão dos dispostos” liderada pelos Estados Unidos tinha apenas um punhado de mulheres em seus próprios governos. — Como poderemos ultrapassar os países que vêm com sua retórica de liberdade, democracia e direitos humanos — perguntou, sorrindo —, quando nesses países a participação política das mulheres quase não passa de 20%? Maldito espertinho, escrevi em minhas anotações. Mohamad traduzia a maior parte da conversa, apesar de a dra. Salama e o xeque Fatih de vez em quando trocarem o árabe pelo inglês, e eu fazia anotações para nós dois. — O sistema que gostaria de ver, em particular, seria um em que a pessoa que fosse mais capaz, independentemente de sexo ou religião, estaria no poder — disse o xeque Shaalan. — É claro, levando em consideração que somos uma sociedade oriental. Não sou partidário do atraso, ou de ficar congelado no tempo. Mas também não sou favorável a uma abertura ampla que conduziria ao confronto e levaria a uma sociedade que não é nem uma sociedade oriental nem uma sociedade ocidental, mas uma sociedade em desordem. Xeque Fatih olhou para a dra. Salama. Ela sorriu. Ele usava uma túnica comprida e o turbante branco que o identificava como um clérigo xiita. O rosto carnudo sob o turbante terminava numa barba aparada e grisalha. As olheiras fundas sob seus olhos davam a ele o ar de um homem de saúde preocupante. Mas quando sorria ou fazia trocadilhos engraçadinhos, o que acontecia com frequência, lembrava um professor genial de faculdade. Os olhos da dra. Salama tinham em geral uma expressão de paciência, com um leve toque de humor. Com seu rosto oval e seu abaya, parecia uma Madona vestida de preto. Ela tinha 46 anos. — Somos uma imagem do Iraque — disse xeque Fatih, querendo referir-se a religião, tribos e mulheres. — E gosto da maneira como estamos aqui dispostos. Dra. Salama estava sentada atrás de uma mesa enorme numa cadeira de escritório preta almofadada mais alta do que ela. Havia um computador com um monitor de tela plana atrás dela e um Corão dourado dentro de um estojo de veludo verde sobre a mesa. Alguns jornais estavam abertos no lugar onde ela os estivera lendo. Os dois xeques — um religioso e um tribal — estavam sentados diante dela como suplicantes. Xeque Shaalan sorriu, indulgente. — Não vou falar nada sobre isso, mas quero que as coisas sigam um fluxo natural — disse ele, num tom que indicava que a discussão estava terminada. — Vamos ver o que acontece. Não fechem nenhuma porta, e talvez as mulheres levem 50%! (Perfeito enrolador, anotei.) Mas xeque Fatih não estava disposto a abandonar o tópico. — O século XX foi um século masculino, e tivemos quatro ou cinco guerras — insistiu. — Vamos deixar o século XXI para as mulheres e ver o que acontece.

— Muito bem, mas quantas dras. Salamas existem? — disse xeque Shaalan franzindo a testa. — Eu me preocuparia com quantas existem por aí e se elas são mesmo boas. — É verdade que a maioria das mulheres com quem trabalho não tem experiência política — disse a dra. Salama, que permanecera quieta até o momento. Seus olhos castanho-escuros seguiam a discussão de um lado ao outro. Xeque Fatih suspirou e revirou os olhos. — Xeque Hussein — disse ele, usando o primeiro nome do xeque Shaalan — Nisrine Barwari, no Ministério das Obras Públicas, vale dez ministros. Tenho experiência com mulheres em todo o Iraque, Baçorá, Amara, Kut, e você não precisa se preocupar, existem mulheres ainda melhores que a dra. Salama por todo o Iraque. Se eu fosse um extremista, pediria por 60%! — Quarenta por cento serão um choque que a sociedade não está preparada para aceitar — disse xeque Shaalan. Ele não estava mais sorrindo. — Xeque Hussein, na crise atual, em Fallujah e Najaf, quem está perdendo? É a mulher. — Não, é toda a sociedade. — Não, sejamos honestos: é a mulher — disse xeque Fatih, girando seu terço islâmico, quase chacoalhando-o em direção ao amigo. — Quem é a base social que mais será pressionada? A mulher. Ela tem que se equilibrar entre seus filhos, sua casa e sua causa. — Deveríamos ter um debate maior — disse Shaalan, sacudindo a conversa para longe com a mão, com um sorriso cortês suave que parecia dizer: Já chega dessa loucura, passemos nós, homens, às questões reais. Mas xeque Fatih ainda não estava pronto para mudar de assunto. — Já conversamos muito sobre isso! — disse, inclinando-se para a frente para mais uma rodada. Olhei para a dra. Salama. Sua boca sustentava um sorriso vigilante, quase imperceptível. Ela tem algumas coisas a dizer sobre isso, pensei. Mas vai deixar que eles gastem seus argumentos brigando um com o outro primeiro. Havia um quê analítico em sua quietude, uma sensação de que havia rodas girando sob a superfície, o que me fez lembrar de Mohamad. E xeque Fatih, indisposto a deixar a discussão de lado enquanto não convencesse seu oponente, ou pelo menos o intimidasse à submissão, me fez lembrar de mim mesma. Nossa primeira refeição com a dra. Salama e o xeque Fatih foi um almoço de trabalho. Mais ou menos uma semana depois de nos conhecermos, ela nos convidou para comer masquf em seu escritório. Colocaram uma toalha de mesa sobre uma das mesas, e comemos masquf conversando sobre a ascensão de Sadr. Foi um desafio tirar os pequenos ossos do peixe defumado e fazer anotações ao mesmo tempo. Mas conforme discutíamos a “transferência de poder” para um governo iraquiano transitório que estava por vir e as condições terríveis de sobrevivência em Sadr City, tive uma sensação estranhamente confortável de déjà vu. A dra. Salama falava sobre as mesmas coisas de que as pessoas falavam em Buffalo, Chicago, ou qualquer um dos outros lugares onde eu tinha vivido: despejo de resíduos tóxicos muito próximo das casas das pessoas, sistemas de esgoto ruins, a necessidade de escolas e hospitais melhores. Eles lembravam os líderes civis que conheci nos Estados Unidos, de porões de igrejas, em panfletos mimeografados e reuniões da comunidade; exceto que a comunidade, nesse caso, era Sadr City. O pai de Salama, Hassoun al-Khafaji, era carpinteiro — um homem religioso, autodidata, um leitor. Ele amava lógica e ensinou sua filha a importância de ler livros e de fazer perguntas. Aos quinze anos, ela começou a usar o hijab, que era malvisto pelo regime secular Baath. Ela usava-o mesmo assim. — Eu não era uma mulher calma — disse-me certa vez, falando com calma, como em geral fazia, mas com uma expressão firme que me fez acreditar nela. Como praticamente todo iraquiano que conheci, ela queria ser artista. Quando jovem, também queria ser médica ou engenheira de petróleo. Quando o sistema educacional Baath tornou essas ambições

impossíveis, ela estudou odontologia. — Encontrei-me na odontologia — disse — porque gosto de escultura, e a odontologia exige esculpir e tirar fotos. — Ela se casou e teve quatro filhos. Mas toda semana, enrolada em seu abaya preto, a dra. Salama saía de casa sem dizer ao marido aonde ia. Se ele perguntava, dizia que ia visitar uma amiga para o almoço ou para tomar um chá. Finalmente, um dia, ele exigiu saber o que estava acontecendo. Baixando os olhos, ela deu uma resposta enigmática: — Estou fazendo o que é certo. Ela estava estudando numa hawza clandestina, uma academia religiosa xiita, para mulheres. Esse tipo de salão informal ou grupo de estudos era tradição no Iraque desde o califado abássida, quando filósofos se encontravam nas mesquitas de Baçorá e Bagdá para tomar chá, roubar comida dos pratos uns dos outros e debater a última tradução de filosofia grega. Mas sob o governo de Saddam, a prática se tornou clandestina, e quando a dra. Salama começou a frequentar, era extremamente arriscada. Ela não contou a seus irmãos nem a seu marido aonde estava indo “porque tinha medo de que alguém pudesse perguntar sobre meu filho, e aí estaríamos em grande perigo”. As mulheres que estudavam com xeque Fatih e sua mãe, a dra. Amal Kashif al-Ghitta, diziam a seus maridos, irmãos e filhos que estavam indo a almoços de senhoras — reuniões inofensivas em que mulheres comiam, fofocavam e bebiam chá. Em vez disso, estudavam economia, ciências sociais, lógica, retórica, ciências humanas, sistemas legais comparados e lei islâmica — uma espécie de clube de leitura para religiosas. — Não escondíamos o fato de que nos encontrávamos e não escondíamos o fato de que éramos estudantes — disse-nos. — Mas fazíamos coisas como dizer “Hoje, vamos almoçar na casa de fulana”. Outro dia tomaríamos chá na casa de outra pessoa. Eram os anos 1990, no auge da “campanha da fidelidade” de Saddam. Depois da primeira Guerra do Golfo, Saddam começou a cortejar os radicais islâmicos na tentativa de angariar apoio. O Partido Baath ainda era nominalmente laico, mas Saddam se tornou um mestre em usar o islã como uma ferramenta de repressão política. Ele decapitava mulheres — em muitos casos, mulheres que tinham parentes homens que haviam sido acusados de pertencer a partidos políticos banidos — sob o pretexto de que eram “prostitutas”. Muitos homens reagiram mantendo suas mulheres, filhas e irmãs trancadas na cozinha. Tais mulheres em geral se voltaram para a religião: era uma identidade que seus homens não podiam criticar. (Suspeito de que elas também quisessem ser capazes de citar o Corão e suas interpretações a seus maridos e pais que diziam que isso e aquilo eram ordens islâmicas.) No entanto, as xiitas estavam em desvantagem no que dizia respeito a aprender a própria religião. Academias públicas ensinavam apenas as doutrinas sunitas aprovadas pelo governo. Saddam não podia fechar as academias religiosas xiitas, que vinham sendo o centro do aprendizado xiita havia séculos. Mas as hawzas não admitiam mulheres. E qualquer um que ensinasse princípios xiitas em propriedades privadas, mesmo em casa, corria o risco de ser preso ou morto. Apesar do perigo, xeque Fatih e sua mãe decidiram ensinar mulheres em casa. Sua hawza informal era baseada na tradição xiita de estudar um vasto leque de assuntos como parte de uma educação religiosa. Eles seguiam a mesma linha de estudo que os homens seguiam na Hawza al-Ilmiya em Najaf, onde a maioria dos grandes aiatolás islâmicos xiitas haviam estudado. Esse conhecimento era tão perigoso — filosofia, retórica, lógica, história — que xeque Fatih ensinava às mulheres de trás de uma tela ou por um microfone, em outra sala, para proteger suas identidades. Elas faziam perguntas “porque em nossa hawza, perguntas são mais importantes que lições”. Mas ele nunca via suas alunas, e elas nunca viam seu rosto. — Eu não queria saber quem eram nossas alunas — disse-nos xeque Fatih — porque, sob tortura, seria forçado a dar seus nomes e eu não queria fazer isso. Eles teriam capturado todas as minhas alunas.

Apesar dessas precauções, xeque Fatih foi pego. Em 1998, foi preso e enviado à prisão Abu Ghraib, condenado por instigar oposição ao regime. A dra. Amal continuou as aulas por um tempo, mas um dia teve de parar. Vivia confinada em casa, sujeita a vigilância constante, e se preocupava com o fato de que o Partido Baath executaria seu filho se ela causasse problemas. Ela passava o tempo escrevendo livros. Xeque Fatih acabou sendo condenado à morte. A dra. Amal e as alunas da hawza reuniram todo o dinheiro e todas as joias que conseguiram, incluindo mais ou menos meio quilo de ouro. Tudo chegou a 20 mil dólares, dos quais 8 mil foram para subornar o juiz e o resto dos oficiais. O dinheiro não o tirou da prisão. Mas foi o suficiente para comprar sua vida. — Ele vale a pena! — exclamou a dra. Salama quando eles nos contaram a história. — Vale mais que isso. Uma aula dele vale isso. — Bem, todos valem a pena — disse xeque Fatih gentilmente. — Muitos outros morreram em Abu Ghraib, e eles também valiam a pena. Em dezembro de 2002, quando a invasão estadunidense se aproximava, Saddam concedeu anistia a presos políticos (exceto aqueles que executou). No dia em que xeque Fatih foi solto, a dra. Salama foi à prisão com a dra. Amal e três outras alunas. Mas eles não se encontraram frente a frente antes da queda de Saddam; ela o viu sair de Abu Ghraib, mas ele não a viu no meio da multidão. A dra. Salama e a dra. Amal ainda mantinham as hawzas. Não mais clandestinas, acabaram se tornando algo mais para grupos de leitura — círculos de conversa em que as mulheres discutiam ideias, política e tudo o mais. No início de maio, Roaa e eu fomos a uma das reuniões. Xeque Fatih e sua mãe moravam em Hayy al-Jamia, nos arredores da universidade, numa casa rodeada por um jardim de palmeiras e canteiros de flores. Sentamos na sala de jantar enquanto oito mulheres, que tinham de vinte até sessenta anos, como a dra. Amal, discutiam sobre empregos, política, eleições e o fato de não se sentirem seguras nas universidades ou em qualquer outro lugar. Uma mulher compartilhou o tipo de história que estava se tornando lugar-comum: seu irmão era policial iraquiano. Ele havia atirado num ladrão que tentava escapar e agora a família do ladrão exigia “dinheiro de sangue”, de acordo com a lei tribal. — Precisamos ter um sistema que proteja a polícia — afirmou uma das mulheres com convicção. Uma mulher de quase quarenta anos entrou em uma discussão com uma jovem engenheira civil que não acreditava que o hijab devesse ser compulsório. Todas concordavam no que dizia respeito à necessidade de mais educação, principalmente para as mulheres. A dra. Amal deu uma pequena aula sobre a defesa da liberdade de pensamento, que ilustrou com o que pareceu a versão iraquiana de Watergate, em que Nixon era um governante injusto levado para o mau caminho por conselheiros ladinos. Depois as mulheres juntaram-se em torno da dra. Amal, chamando-a de sheikha. Perguntei a ela sobre os livros que tinha escrito. — Meu favorito é Torn Bodies — disse ela. — Escrevi esse livro enquanto meu Fatih estava na prisão. Inspirei-me em Franz Kaf ka. Vocês conhecem Kaf ka? E em Edgar Allan Poe. É narrado pelas partes do corpo de um homem: braços, pernas e, desculpem-me — aqui sua expressão ficou mais severa —, órgãos sexuais. É uma metáfora da sociedade iraquiana. Dra. Amal desapareceu, voltou com uma cópia de um de seus livros e empurrou a cópia para Roaa. — Na próxima vez em que nos virmos — disse ela com firmeza — quero que discuta o livro comigo. Roaa fez que sim com a cabeça, parecendo aterrorizada. Fomos para fora e nos aprontamos para ir embora. A dra. Salama e eu ficamos no jardim sob uma palmeira com a filha dela, uma menina tímida de treze anos com o mesmo rosto em formato de lua da mãe. Enquanto discutíamos o legado do medo deixado pelo antigo regime, a menina puxou a roupa da mãe.

— Mamãe — sussurrou ela, ansiosa. — O que foi? — perguntou a dra. Salama, virando-se para ela e abaixando a cabeça para ouvir. — O que é esse regime? Vai me ajudar a perder peso? Dra. Salama caiu na gargalhada. Ela colocou o braço em volta da filha e a abraçou, puxando-a para perto do tecido preto ondulado de seu abaya. — Não, minha querida — respondeu, sorrindo —, não é desse tipo de regime de que estamos falando. A dra. Salama era um enigma para mim. Ela era inteligente, sincera e independente. Opunha-se à wilayat al-faqih, a doutrina de governo absoluto pelos clérigos que é aplicada no Irã. Desafiava os partidos islâmicos influenciados pelo Irã e apoiava Ahmed Chalabi, um xiita secularista, para primeiro-ministro. (Ele perdeu.) Ela e o xeque Fatih lutavam sem trégua por uma transição de poder mais democrática, para o maior número de ministras mulheres e para maior representação política de Sadr e seus seguidores (uma tática que poderia ter atenuado sua ascensão ao poder se tivesse sido seguida naquela época). E mesmo assim ela apoiava a Resolução 137, uma proposta de substituição da Lei de Estatuto Pessoal de 1959 por um sistema descentralizado que permitiria que autoridades religiosas controlassem assuntos pessoais — incluindo a lei familiar como divórcio, casamento, custódia dos filhos e direitos de herança. A maioria dos ocidentais cometeu o engano de classificar a dra. Salama entre os islâmicos linha-dura. (Hillary Clinton certa vez a denunciou como uma “ultraconservadora”.) Mas a realidade era mais complicada. A maioria dos iraquianos é xiita. Graças a anos de guerra e assassinatos em massa de homens, a maioria — algumas estimativas chegam a 55% — também é feminina. Mulheres xiitas são a cara do Iraque, o maior grupo demográfico do país. A maior parte dos iraquianos apoiava alguma forma de lei islâmica; ao mesmo tempo, também apoiava os direitos das mulheres ao trabalho, à educação e ao poder político. Em julho de 2004, a Gallup divulgou uma pesquisa que demonstrava que os iraquianos apoiavam o direito das mulheres a cargos políticos nacionais com uma margem de dois para um (exceto nas áreas de concentração sunita, onde o apoio aos direitos das mulheres era muito mais fraco). Como muitas iraquianas, a dra. Salama acreditava que o islã permite que as mulheres exerçam o poder nas esferas pública e privada. Teoricamente, isso é verdade. Uma das verdades inconvenientes no Iraque, assim como na maior parte do mundo muçulmano, é que as mulheres não têm o status que o Corão diz que elas deveriam ter. Líderes políticos e religiosos evocam o islã — muitas vezes fazendo uso de interpretações misóginas de passagens e hadiths ambíguos e amplamente contestados do Corão — para justificar práticas tribais pré-islâmicas como assassinatos de honra e mutilação genital. Ira Lapidus, o respeitado estudioso islâmico, define isso da melhor maneira em seu livro A History of Islamic Societies: “O ideal do Corão e o exemplo de Maomé”, escreveu, “provavelmente eram muito mais favoráveis às mulheres do que a prática árabe e muçulmana posterior”. Em 1959, quando começou a vigorar a Lei de Estatuto Pessoal, as iraquianas receberam proteções civis que estavam entre as melhores no mundo árabe. Porém, o Partido Baath enfraqueceu esses direitos nos anos 1960, e Saddam desgastou-os mais ainda durante a campanha da fidelidade dos anos 1990, quando segregou escolas e descriminalizou a poligamia e os assassinatos de honra. Para muitos homens iraquianos, a repressão de Saddam providenciou uma justificativa conveniente para a disparidade entre o status da mulher no papel e na prática. Uma vez que essa desculpa não existia mais, mulheres xiitas quiseram voltar à esfera pública. Elas viram o islã como sua porta de entrada. Havia precedentes para essa ideia. No Marrocos, feministas haviam pressionado o governo a trabalhar com os estudiosos muçulmanos no sentido de reformar as restritivas leis do direito da família no país. O resultado foi uma nova lei islâmica no campo do direito de família que prometia direitos geralmente

negados às mulheres por meio de muitas interpretações da charia. Mas a questão, em ambos os países, era se as mulheres algum dia teriam esses direitos na prática. Liguei para Amira Sonbol, professora da Universidade de Georgetown que estava escrevendo diversos livros sobre as mulheres e a lei, a história e a sociedade islâmicas. — Sou uma das primeiras a defender o discurso islâmico como meio de mudar a lei — disse ela. — É a única esperança para as mulheres muçulmanas no futuro. Mas precisa funcionar sob condições em que as mulheres realmente tenham chance. E as mulheres no Iraque, nesse momento, realmente não têm essa chance, devido à situação política do país. Sonbol previa que os direitos das mulheres seriam um objeto de barganha nas negociações entre partidos políticos dominados por homens. — As ondas empurram você para onde você não quer ser empurrado — disse. — As mulheres xiitas no Iraque não sabem que serão os peões na divisão do Iraque, e que serão dispensáveis. Mais ou menos nessa época, Roaa conseguiu um emprego no Al-Hurra (“O livre”), o canal via satélite em árabe montado e fundado com dinheiro de impostos americanos. Ganhava bastante dinheiro — 800 dólares por mês, um salário excelente (mesmo com a semana útil de seis dias que era comum no Iraque). Ela cobria carros-bomba e encontros políticos e fazia reportagens externas que retratavam o cotidiano. Nosso amigo poeta Ali, da festa de aniversário da Laylak, evento que parecia ter acontecido havia anos, foi nomeado diretor de jornalismo poucas semanas depois de Roaa ter entrado na emissora; ele seria seu chefe. Essa era a carreira que ela sempre quis. Naqueles meses, nos encontrávamos para tomar café e ter o tipo de conversa sobre carreira e coisas de mulheres que eu tinha com minhas amigas em Nova York: reclamávamos de nossos chefes e dos homens, falávamos sobre casamento e relacionamentos, fazíamos confidências sobre nossas ambições para o futuro. Como Layla, Roaa ansiava por dias em que meninos e meninas pudessem passar mais tempo juntos como iguais, sem línguas fofoqueiras arruinando suas reputações. Mas, diferentemente de algumas de suas amigas, ela não acreditava em sexo antes do casamento nem mesmo em beijos antes do casamento: liberdade, para ela, significava liberdade para explorar o mundo e modos diferentes de pensar. — Não é que eu seja liberal — disse ela com sinceridade (isso me fez sorrir) —, mas é difícil encontrar alguém que pense como eu. Tenho minhas ideias. Tenho amigos homens. Ser uma jovem muçulmana com ideias próprias era solitário. Além disso, havia todas as barreiras comuns contra o casamento de jovens iraquianos: falta de dinheiro, instabilidade e o fato de que, como curda, seria difícil casar-se com um árabe. — Esse é o problema — suspirou. — Nunca tive um amor! Um dia, quando terminamos nossas pequenas xícaras de um encorpado café árabe, Roaa colocou minha xícara de cabeça para baixo no pires. Depois de alguns minutos, leu meu futuro na lama escura da borra açucarada de café. Ela previu que eu iria a vários lugares: em minha xícara, viu rios, árvores e a aproximação de um gigante negro com um coração puro. E o futuro dela? — Não se pode ler a própria borra — disse ela. — Dá azar. Mas nós queríamos as mesmas coisas: viagens, carreira, crescimento. Reuniões em que homens e mulheres pudessem sentar juntos e conversar. A liberdade de ver o mundo. Durante essas conversas, eu geralmente tinha que lutar contra a vontade de lhe prometer todas as viagens, toda a educação e todas as aventuras que ela desejava, todas as coisas que eu queria que ela tivesse, se fossem minhas para dar. Todas lutávamos para reconciliar esses dois lados de nossas naturezas: a nômade e a caseira, a mãe e a estrela de cinema. Eu queria que Roaa tivesse os dois. Em outro Iraque — o que “nós” havíamos prometido

a “eles” — talvez ela pudesse ter. — Eu tinha o sonho de conhecer pessoas de outras culturas — comentou ela. — Espero poder fazer isso um dia. Porque ficamos bloqueados do mundo inteiro durante muito tempo. — Você ainda quer isso? Mesmo sendo perigoso? — Ainda tenho esse sonho — respondeu. — E é muito difícil fazer com que se torne realidade. Mas quem sabe, um dia, se o Iraque acalmar, eu possa fazer isso. Estávamos sentadas num restaurante de frente para a Abu Nuwas, olhando para o Tigre. Mesmo rodeado por tanques e arame farpado, o rio tinha uma grandeza vagarosa e iridescente. As tamareiras inclinavam-se e admiravam seus reflexos na pele reluzente do rio. Dentro do restaurante, estávamos esparramadas em divãs de madeira cobertos por almofadas de estilo otomano. O teto era tecido com esteiras de junco que exalavam um cheiro de trigo ao sol no calor seco. Na entrada um bule de latão esquentava sobre um fogareiro. Éramos as únicas clientes. De repente, Roaa sacudiu a cabeça, como se despertasse de um sonho ou tivesse sido pega de surpresa por um pensamento particular. — Sabe de uma coisa, Annia? — disse, olhando para mim com um ar calmo e intenso. — Nunca imaginei que, mesmo depois que a guerra acabasse, eu estaria sentada com uma estrangeira falando sobre essas coisas. No dia 13 de maio, Mohamad foi a Beirute. Eu deveria ter ido com ele, mas no último minuto os editores do Christian Science Monitor pediram que eu ficasse e substituísse um dos jornalistas de sua equipe que precisava de uma folga. Naquela manhã, fizemos nossas malas no pequeno quarto do Andalus. Guardamos o fogareiro, os potes plásticos, as maçãs, as cebolas e os vários pacotes de sopa e macarrão, e demos tudo a Abu Zeinab. Levei todas as outras coisas para o quarto do Monitor, no Musafir. Naquela tarde, o motorista do Monitor, Adnan, nos levou ao aeroporto. Ficamos de mãos dadas no banco de trás enquanto atravessávamos a estrada que levava ao aeroporto, naquela época uma das estradas mais perigosas do Iraque. Mohamad desceu do carro na primeira barreira para esperar pelo ônibus que o levaria ao terminal. Adnan ficou do lado de fora do carro, apertou a mão de Mohamad e beijou-o nas duas bochechas. — Sr. Mohamad, não se preocupe — disse ele em árabe —, cuidarei dela como se fosse minha própria irmã. Quando ele deu a partida, desabei num choro de soluçar. Adnan olhou para mim angustiado: — Sra. Annia — disse ele, tentando encontrar as palavras na língua nova que estava aprendendo —, quando eu estava no exército iraquiano, fui embora por nove meses… Minha esposa ficou sozinha, como você. Nove meses seguidos lutando na Guerra Irã-Iraque. Eu poderia sobreviver por doze dias sozinha em Bagdá. — Tentei ficar assim. — Nesse momento, ele se virou de novo para o volante, agarrando-o com os punhos firmes e os braços bem retos, como se tentasse empurrá-lo para longe, e enrijeceu o pescoço numa paródia de masculinidade. — Mas por dentro, eu estava chorando. Ele se virou para mim, tirando as duas mãos do volante, fechando os punhos e colocando-os sobre o coração: — Sinto muito — disse ele —, mas depois de ele ter ido, mais amor. No dia seguinte fui ao Shahbandar. Encontrei Nassire, um jovem e charmoso poeta que conhecia do AlNajeen. Houve uma época em que ele tinha um nariz perfeitamente esculpido, mas agora toda a parte da

frente havia sido tosada. Ele ficava com a cabeça para o lado, de um jeito estranho, tentando esconder o buraco onde um dia havia um nariz, mas não se pode esconder a ausência de um nariz. — O que aconteceu com você? — perguntei, burra, tão chocada que esqueci minha educação. — Eles me seguraram e cortaram meu nariz com um cortador de papel — murmurou, olhando para o chão. Não perguntei quem eram “eles”. Era irrelevante. Todo mundo que eu conhecia achava sorte simplesmente estar vivo. Abu Rifaat fora assaltado e espancado seis vezes; ser cristão fazia dele um alvo fácil. Ele se sentia traído pela América, pela cultura que amava e, principalmente, pelo homem que um dia idolatrara, o libertador George W. Bush. — Ele disse que ia transformar o Iraque num oásis — disse Abu Rifaat, pronunciando “onassis”. Sua voz estava rouca de perplexidade e dor. — Nos últimos meses, fui atacado seis vezes por ladrões. Um deles bateu em minha cabeça com uma garrafa. Ele se inclinou e tirou o gorro, revelando uma cavidade funda no crânio rosado e macio. — Então esta é a situação das pessoas felizes? Onde está a segurança, onde está a felicidade, onde está o oásis, sr. Bush? — gritou. — Este é um oásis onde garrafas são quebradas em nossas cabeças! Enquanto conversávamos, um homem magro e curvado veio até nós. Ele tinha uma pinta marrom no meio do rosto e seus olhos brilhavam e dançavam. Ele ficou parado na minha frente, inclinou o rosto na direção do meu e gritou: — Diga a ela que rejeitamos essa nova bandeira americano-israelense! Já que todo o resto estava às mil maravilhas, o Conselho de Governo direcionou seus talentos ao problema mais urgente do país: desenhar uma nova bandeira iraquiana. As novas cores dominantes eram o branco e o azul-claro, e essa semelhança com a bandeira israelense não foi bem-aceita pelo público iraquiano. E não tinha mais as palavras Allahu Akbar, Deus é Grande, que Saddam havia adicionado à antiga bandeira iraquiana durante a campanha de fidelidade — palavras que são sempre mais fáceis de adicionar que de retirar. — Diga a ela que se eles tentarem pendurar a nova bandeira iraquiana em Fallujah, em Ramadi, nós os mataremos! — gritou o homem. — Tiraremos a bandeira e os penduraremos em seu lugar! — Mas ela não é americana! — mentiu Abu Rifaat. — Ela é libanesa. Uma jornalista libanesa! — Ela é uma espiã! — Ela é jornalista! — insistiu Rifaat. — Uma jornalista francesa. A conversa entre eles deteriorou desse ponto em diante. Depois que o homem foi embora, um velhinho gentil e magro usando um dishdasha e um gorro de oração tricotado branco veio e ficou parado diante de mim. Ele era o gerente. Em nome do estabelecimento, e do povo do Iraque, ele se desculpou pelo homem furioso. — Você é uma hóspede aqui, você é bem-vinda aqui — disse ele. — Conhecemos você, e você é amiga de Abu Rifaat, que é muito conhecido aqui; sabemos que gosta de poesia iraquiana, e gostamos disso, e sinto muito por esse homem ter falado de modo grosseiro. Ele não me deixou pagar pelo chá. Na vez seguinte em que encontrei Abu Rifaat, ele ainda estava se desculpando. — Depois que você saiu daqui, eu e o dono do café conversamos severamente com aquele homem — disse-me. — E ele ficou com muita vergonha do que tinha feito e se sentiu muito mal pelo que disse. Duvidei daquilo. Eu sabia que Abu Rifaat e o velho teriam me dado as boas-vindas se eu retornasse. Mas a hospitalidade era uma espada de dois gumes; não queria que meu prazer com os livros e a companhia de poetas os identificasse com o “inimigo”, que era o que, naquele ponto, eu tinha me tornado.

Então, embora o Shahbandar fosse meu lugar preferido em Bagdá, e talvez no mundo inteiro, fiquei longe da rua Mutanabbi e do Shahbandar Café depois daquilo. Toda sexta ficava em casa, e pensava: é assim que a Roaa deve se sentir, e Laylak, todos esses iraquianos que não podem ir ver seus amigos mais queridos ou sentar em seus lugares favoritos; exceto que é muito pior para eles, porque eu posso ir embora e eles não. Voltei apenas uma vez, para me despedir. Sentei nos fundos, conversei baixinho e fui embora depois de cinco minutos, e nunca vi o Shahbandar Café de novo. Uma semana depois, Abu Rifaat veio me visitar no escritório do Monitor, no Musafir. — Livros! — gritou ele quando viu a estante no escritório. Ele foi até a estante, ficou em pé diante das prateleiras, abriu bem os braços, como se fosse abraçar todos aqueles livros, e gritou: — Fico fraco diante dos livros! Abu Rifaat tagarelava sobre uma coisa ou outra, grafite, revistas ou poesia, quando notou que eu não estava falando nada. Ele parou por um instante e olhou para mim por sobre os óculos: — Você quer alguma coisa para comer? — perguntou de repente. No início daquela semana, o chefe do Conselho de Governo Izzedin Salim, havia sido assassinado. Eu havia conversado com diversos homens torturados em Abu Ghraib e estava terminando uma história sobre prisioneiras que haviam sofrido tortura psicológica. Um iraquiano de Fallujah tinha me trazido um disquete que as pessoas estavam distribuindo em círculos insurgentes, supostamente fotos de soldados norte-americanos torturando e estuprando iraquianas. As fotografias eram falsas — na verdade, tinham sido tiradas de um site pornô húngaro —, mas eram um lembrete gráfico de que todos os lados usavam corpos de mulheres num jogo perigoso de símbolos políticos, e quando as vi perdi o apetite por dias. Sempre que comia mais que uma mordida de qualquer coisa, um pânico me dominava: uma mensagem vinda do estômago de estresse extremo, meu corpo rejeitando completamente a comida e, embora não estivesse doente, sentia vontade de vomitar. Eu havia perdido quase cinco quilos em dez dias. — Talvez um cigarro — respondi. Ele franziu a testa, e eu lembrei que, antes de sua mulher ir embora para o Canadá com seus dois filhos, Abu Rifaat tinha sido pai. — Você está sempre trabalhando e fumando demais — disse ele. — Você trabalha muito, pois ama os iraquianos demais, e ama seu trabalho mais do que a si mesma. E está sempre comendo em restaurantes, e isso não é bom. A comida de restaurante não é saudável. Não posso levá-la para a minha casa porque não é seguro. — Ele morava com duas tias solteironas num bairro da classe operária. — Vou levá-la para almoçar e mostrar a verdadeira comida do Iraque. Descendo a rua havia uma pequena barraca de kebab. Da mesma maneira que as fortunas do Iraque haviam desmoronado, a barraca de kebab havia prosperado de um pequeno carrinho para uma barraca de metal reluzente dentro da qual era possível até caminhar. Uma pequena televisão ficava numa prateleira na parede. Abu Rifaat me fez sentar perto dela e saiu apressado para pegar comida. No balcão, teve uma conferência urgente com o cozinheiro, um jovem gordo em um dishdasha cinza sujo. O cozinheiro riu com espanto do pedido de Abu Rifaat. Quando viu que o velho estava falando sério — a ajnabieh ia mesmo comer aquilo —, foi ao trabalho. Em vez de fazer o kebab grelhado comum, ele tirou a carne moída do espeto e fritou em fogo alto numa pequena panela de metal já gasta. Enquanto isso, picou um tomate gordo e suculento em pedaços e jogou na panela com umas cebolas e uma pitada de pimenta. Depois salteou os vegetais na gordura e nos temperos da carne. A carne, por sua vez, absorveu o molho de tomate apimentado. Em Bagdá, eles chamam isso de banadura shamee, tomates damascenos. — Esta — disse Abu Rifaat, quando trouxe a comida para a mesa — é a verdadeira comida do Iraque! —

Ele me mostrou como pegar nacos de carne encharcados com pedaços de pão tanoor. Ele me olhava sorrindo enquanto eu comia todo o prato. Limpamos o resto do molho com mais pão. Enquanto tomávamos chá, Abu Rifaat falou sobre educação, seu assunto preferido. Segundo ele, o povo iraquiano precisava de educação mais do que de qualquer coisa, “porque há 35 anos essas pessoas estão separadas do resto do mundo. E essa separação matou uma grande parte de seus modos, sua moral”. E precisava viajar: “Viajar pelo mundo, o que vai fazer com que se sintam cidadãs do mundo, não só de um país.” Depois de comer, senti a exaustão voltar. Mas Abu Rifaat era invencível. — Eu amo chá! — gritou, e pediu mais uma xícara. Quando chegou, ele demonstrou o jeito correto de mexer o chá sem fazer barulho com a colher dentro do vidro. Não consegui não rir. Eu precisava voltar ao escritório e terminar minha matéria, mas Abu Rifaat sempre me animava. De repente ele percebeu que eu estava esperando por ele. — Vou mostrar o jeito irrrraquiano de terminar o chá rapidamente — declarou. — Você faz assim. — Jogando o chá no pequeno pires de vidro, mexeu algumas vezes para que esfriasse logo. — E depois bebe assim! — Ele aproximou o pires dos lábios e engoliu o chá com uma sugada longa e barulhenta. Não foi bonito, mas tinha a essência das boas maneiras. Graças a Abu Rifaat, meu apetite foi completamente recuperado. No dia seguinte fui ao restaurante do Sumer Land, que às vezes ainda ficava aberto ao público, para meu prato de sempre de shajar, jazar wa qarnabeet. Por algum motivo o chef havia escolhido aquele momento em especial no final de maio de 2004 — durante a ascensão do Exército Mahdi, o primeiro ataque da marinha a Fallujah e os julgamentos dos fuzileiros americanos de Abu Ghraib — para fazer um rocambole de frango recheado com molho de creme. Foi lindo. Um gesto que poderia, como as manicures de Layla, parecer sem sentido para alguns; mas para outros poderia conter toda a civilização, ou pelo menos uma recordação da vida real. Fui até a cozinha agradecer-lhe. Ele estava sentado, suando, rodeado de caçarolas e panelas sujas. Facas sujas estavam no balcão perto dele, usadas apenas pelas moscas. O ar-condicionado estava desligado. O gerador devia ter falhado ou talvez ele simplesmente nem ligasse mais para isso. — Por quê? — perguntei. — Por que uma coisa tão bonita em tempos como esses? Ele deu de ombros. Uma expressão de orgulho e desespero, no meio do caminho entre um sorriso e um suspiro, cruzou seu rosto. — É o que sei fazer — respondeu.

15 MESMO UMA PESSOA FORTE PODE PEDIR PAZ

DEPOIS DE TER SE TORNADO HUMANO, Enkidu vai direto a Gilgamesh, e leva uma surra. Isso faz com que se tornem melhores amigos, assim como num bom filme de artes marciais, e Gilgamesh decide que os dois devem fazer uma viagem. Gilgamesh quer matar um monstro e varrer o mal da terra. Enkidu tem um mau pressentimento; então tenta dissuadir o amigo, mas Gilgamesh não ouve. Eles pegam suas armas. Os velhos suspiram. Os jovens torcem. Os dois amigos andam até onde hoje fica o Líbano e matam o monstro Humbaba, sentinela da floresta de cedros. Infelizmente, deve-se consultar os deuses antes de matar um de seus monstros. Alguém tem de pagar por esse ato de húbris. A viagem foi ideia de Gilgamesh, mas os deuses matam Enkidu. Gilgamesh não consegue acreditar que o amigo está morto. Segura Enkidu nos braços por seis dias e sete noites e fala com ele como se ainda estivesse vivo. No sétimo dia, uma larva cai do nariz de Enkidu e Gilgamesh finalmente entende que o amigo, o poderoso homem selvagem, não passa de carne apodrecendo. Ele fica na selva durante dias, desgrenhado e extenuado, vestido com a pele de um leão. Enfim, chega ao oceano, cujo horizonte é também a beira do mundo. Felizmente, no limite do mundo, no lugar exato em que uma alma errante mais precisa, há um bar onde ele pode beber uma cerveja. A garçonete vê Gilgamesh se aproximar, tranca a porta e corre para o telhado. — Quem é você? — grita para Gilgamesh. — Você é a visão do diabo. Gilgamesh fica à porta da taberna. — Meu amigo tão amado voltou ao pó — grita ele. — Não sou eu como ele? Algum dia deitarei, para nunca mais me levantar novamente? Siduri, a garçonete do fim do mundo, olha para ele com compaixão. Está acostumada a resolver muitas crises existenciais em seu trabalho. — Você jamais encontrará a imortalidade — diz ela a Gilgamesh — porque os deuses a guardam para eles mesmos. Então pare de correr atrás daquilo que não pode ter e aproveite as coisas que estão a seu alcance: E quanto a você, Gilgamesh, encha a barriga de coisas boas; dia e noite, noite e dia, dance e seja feliz, faça banquetes e alegre-se.

Mohamad e eu estávamos em Beirute, fazendo uma pausa de duas semanas em nossa permanência em Bagdá, quando ouvimos as notícias: insurgentes tentaram assassinar a dra. Salama quando ela passava pelo Triângulo da Morte. Ela tinha sobrevivido. Mas seu filho de dezessete anos e um de seus guarda-costas não. Assim que voltamos para Bagdá, fomos fazer uma visita de condolência à dra. Salama em seu escritório. Havíamos marcado uma reunião oficial, mas por algum motivo os guardas militares dos Estados Unidos se recusaram a nos deixar entrar. Então ela, ainda de luto pelo filho, fez uma visita clandestina ao Andalus. Nós nos encontramos na recepção e a levamos para o quarto acompanhados de vários guarda-costas, jovens sérios que esperaram do lado de fora. Fiz chá e bebemos enquanto ela nos contava o que havia

acontecido, sentada numa cadeira em nossa pequena sala. Ela havia ido a Najaf para conversar com as pessoas de lá como parte de seu plano de mediação entre o Exército Mahdi e os militares norte-americanos. Naquela noite, tropas dos Estados Unidos bloquearam a estrada principal, então o comboio de dois carros no qual estava foi forçado a pegar as estradinhas secundárias e letais. Mais ou menos às oito da noite, um Opel vermelho surgiu atrás deles, deu a volta e foi embora. Alguns minutos depois, voltou, e quem quer que estivesse do lado de dentro abriu fogo. O motorista aumentou a velocidade. Ela viu o carro em que estava seu filho sair da estrada. Ela implorou ao motorista que voltasse, mas era muito perigoso. A dra. Salama tinha esperança de que o filho pudesse estar vivo. Mas naquela noite descobriu que um de seus guarda-costas havia morrido. — Pensei na mãe dele, em sua esposa, seu filho — contou-nos. — Eu estava muito transtornada. Então, no dia seguinte, quando recebi a notícia da morte de meu filho, foi um pouco mais fácil de aceitar. Em Najaf, ela tinha conhecido muitas mulheres que perderam filhos, maridos e irmãos na guerra entre os militares norte-americanos e o Exército Mahdi. — Elas queriam coisas muito simples: viver em paz e ter suas famílias — disse. — Acho que nessa ocupação as mulheres foram quem sofreu mais. E acho que é por isso que são elas que querem paz. Achei isso uma coisa tão simples, mas o governo, o governo americano, não entendeu. Ela falou sobre o trabalho que estava fazendo com aqueles que apoiavam Sadr, tentando convencer o grupo e os militares a entrar em algum tipo de cessar-fogo. — As pessoas dizem que pedir paz significa que você é fraco, que não pode lutar — comentou ela. — Então eu disse a essas pessoas: “Não, mesmo uma pessoa forte pode pedir paz.” Ficamos com medo de que alguém pudesse tê-la visto — que alguém mandasse uma mensagem para as pessoas erradas, que tentariam assassiná-la na saída do hotel, o que seria nossa culpa. Mas ninguém no hotel nem mesmo a reconheceu. Usando abaya, ela estava completamente segura: apenas mais uma iraquiana anônima. As coisas pioraram durante o verão. À noite deixávamos a porta de nosso quarto aberta para diminuir o calor. Certa noite, um rato enorme andou pelo corredor, parou na nossa porta e olhou para dentro esperançoso, como se pudéssemos convidá-lo a entrar e tomar um chá. Passamos a deixar a porta fechada depois disso. Trabalhávamos o tempo todo, vivíamos exaustos e estressados e brigávamos o tempo todo. Antes que pudéssemos perceber estávamos discutindo. A eletricidade acabava, não havia água e de repente discutíamos sobre quem esqueceu de encher os galões. No mercado, se tínhamos a sorte de encontrar dois tipos de macarrão, brigávamos sobre qual deles comprar. E isso não era nada comparado às brigas sérias, como decidir se deveríamos nos mudar para um hotel “mais seguro”. No Dia dos Pais, peguei emprestado o telefone via satélite de Mohamad e liguei para meu avô. Ele tinha 92 anos e estava surdo como um poste. Menti e disse que estava em Beirute, mas acho que ele não acreditou. — Não fique no caminho de nenhuma bala! — aconselhou-me e riu. Era sua frase preferida da Segunda Guerra Mundial, quando foi operador de rádio na marinha mercante. Sua outra frase preferida era “Louvado seja Deus e passe a munição”. Minha mãe pegou o telefone. A irmã de meu avô, Connie, tinha sido uma WAVES (Women Accepted for Volunteer Emergency Service, Mulheres aceitas para serviço voluntário de emergência) na Segunda Guerra Mundial e minha mãe havia ligado para ela pedindo conselhos sobre a vida durante os tempos de guerra.

— A tia Connie disse que você tem que tomar muito cálcio, magnésio e zinco — disse ela. — E vitamina B para o estresse e C também! Vitaminas em Bagdá: essa é a minha mãe. Se conseguíamos comer como rainhas quando estávamos sem um tostão no bolso, sem casa e morando no carro, então por que sacrificar a boa nutrição numa zona de guerra? — Mãe, estou em Bagdá. Não tem onde comprar vitaminas aqui. Na maior parte do tempo não tem nem remédio. — Você não disse que o motorista de vocês compra vitaminas da Alemanha? Isso era verdade: o irmão de Abu Zeinab morava na Alemanha e uma vez ele nos ofereceu um fitoterápico europeu. Eu havia me esquecido disso. Mas minha mãe lembrava. — E outra coisa — continuou —, não brigue com Mohamad, ele é uma pessoa maravilhosa, e nós amamos você, e ele ama você também. E além do mais, estão numa guerra! O que poderia ser mais estressante? Claro que vocês estão brigando. Mas estou tão preocupada… Pensei: “Meu Deus! Esses dois ficam discutindo e eles vão pisar em uma bomba na beira da estrada e vão continuar brigando!” Era uma descrição tão precisa de nós dois que tive que rir. — E não deixe de se exercitar — disse ainda. — Preste atenção em seus exercícios e em suas vitaminas que vocês não vão brigar. Ouço o tempo todo de amigos libaneses que viveram a guerra civil: naquele tempo, as bebidas eram mais fortes. A música era mais alta, para abafar o bombardeio. Os homens eram mais gentis, as mulheres, mais corajosas. Eles ficavam dançando a noite toda porque era mais seguro do que voltar para casa. — Cada meia hora era uma nova vida — descreveu minha amiga Adessa. — Naquela meia hora, você tinha que se reinventar. E se conseguia passar pela bomba seguinte, você se reinventava de novo. Um dos segredos da vida em tempos de guerra é que os sentidos ficam mais aguçados, mais sintonizados com o prazer em todas as suas formas. As cores são mais brilhantes, mais saturadas. Os cheiros são mais fortes. Sons provocam pulos. Músicas provocam choros sem motivo. E a comida? Você nunca se esquecerá do gosto que ela tem. Em Bagdá, nossas amizades começaram a crescer quando a esfera pública começou a encolher. Tornouse perigoso para iraquianos e estrangeiros se encontrarem em público. Então, em vez de encontrarmos nossos amigos em hotéis e restaurantes, o que era arriscado para eles e para nós, íamos comer em suas casas. Quase toda a comida servida em restaurantes e hotéis era comida social: carnes grelhadas, homus, tabule, kebab. Mas havia todo um universo de comida — que Abu Rifaat talvez chamaria de a “verdadeira” cozinha iraquiana — que você nunca experimentava se só comesse fora. Essa outra cozinha era parte de uma Bagdá escondida, de uma vida que as pessoas cultivavam atrás de portas fechadas. Os iraquianos ainda lutavam para defender a vida pública, mas estavam perdendo, e sabiam disso. Então as pessoas começaram a conduzir suas vidas privadas. Estudavam nas salas de casa em vez de estudar nas universidades; cortavam o cabelo em casa em vez de ir às barbearias e aos salões de beleza; e em vez de ir a peças ou concertos, assistiam ao desfile vertiginoso de novelas e reality shows que, para muitos, haviam substituído a vida real. A história de um país está escrita em sua comida. A maioria dos americanos pensa que comida árabe é homus e tabule, os aperitivos sociais do Mediterrâneo. Mas o Iraque tem uma cozinha própria, fusão de diferentes tradições culinárias que se desenvolveu durante séculos de migração e guerra. Os sumérios deram lugar aos acádios, depois aos assírios, cujo império varreu o Iraque, o Levante e partes da Turquia, do Egito e do Irã. O imperador assírio Assurnasirpal, um propagandista genial da comida, um dia deu um

banquete de dez dias para 69.574 convidados. (Tempos depois um governante assírio jantou sob a cabeça decepada de um rei elamita colocada num poste sobre a mesa de jantar.) Então veio uma série de conquistadores: babilônios, persas, gregos, partos, romanos. No século VIII, quando o califa al-Mansur fundou Bagdá e transformou o Iraque no centro do Império Abássida, iniciou o que as pessoas ainda chamam nostalgicamente de a Era de Ouro do Islã. Para os abássidas, que tinham escribas para traduzir textos gregos e persas, a culinária era uma ciência — um ramo da medicina e também uma arte. Os abássidas transformaram o banquete, que era uma demonstração crua de poder, num evento de elite. O califa exibia seus conhecimentos de culinária assim como os de arte, poesia, música e história. Cozinhar era uma arte social: poetas recitavam longas e trabalhadas descrições de banquetes para conquistar a boa vontade dos califas. Um califa até promoveu um campeonato de culinária entre seus cortesãos, uma versão medieval iraquiana do reality show Top Chef. Como os governantes de qualquer império, os abássidas eram cruéis e repressores. Mas eram rudes com estilo. Presidiram uma explosão na agricultura e no comércio que historiadores descrevem como uma revolução verde medieval, levando temperos e frutas da Ásia até a Europa e espalhando inovações agrícolas pelos países conquistados. Eles misturaram os alimentos nativos do deserto com a culinária das cortes persa e bizantina para criar uma revolução gastronômica que mudou para sempre a maneira como o mundo comia. Quando o islã varreu a península Arábica e chegou ao Oriente Médio, assimilou as culinárias de seus convertidos. A comida clássica beduína — cabritos e ovelhas assadas, camelo grelhado, pão cozido em cinzas — era misturada aos temperos indianos, ao pilafe persa, ao iogurte turco e aos vegetais bizantinos. Escritores árabes escreveram tratados denunciando o efeminado pilafe persa e louvando a máscula comida beduína. Mas era uma batalha perdida: a dieta tradicional dos árabes do deserto estava se transformando, incorporando toques persas, como arroz picante com nozes e passas, caldo aromatizado com noomi basra, as pequenas limas secas e os molhos agridoces que são a base da cozinha iraquiana até hoje. Os muçulmanos árabes conquistaram almas infiéis; mas os convertidos não árabes conquistaram o paladar islâmico. A luta eterna de Ibn Khaldun entre beduínos e citadinos, ao que parece, criou uma culinária rica e variada. Os abássidas tinham um império como qualquer outro em 1258, quando o chefe mongol Hulagu, neto de Genghis Khan, saqueou Bagdá. Cronistas medievais contam que o Tigre ficou vermelho de sangue no primeiro dia e preto de tinta no segundo, quando os mongóis evisceraram as bibliotecas abássidas e jogaram os livros no rio. Mas os mongóis não conseguiram destruir a comida: os abássidas já haviam exportado sua culinária para a Europa, onde sua influência permanece até hoje, principalmente na cozinha hispânica. O escabeche, peixe ou frango marinado, que é o alimento básico da culinária hispânica e latinoamericana, veio do condimento apimentado persa sikbaj. Os pequenos bolinhos de carne espanhóis chamados albóndigas têm sua origem no al-bunduqieh, do árabe bunduq, avelã, um nome divertido para os pequenos bolos de carne do tamanho de uma avelã que os cozinheiros árabes colocavam nas sopas. E quando beber um julepo de hortelã, pense em seu ancestral, o xaroposo julab, do persa “água de rosas”. Depois da agressão mongol, Bagdá se tornou um remanso onde várias tribos e dinastias — seljúcidas, mamelucos, persas, otomanos — lutaram entre si durante séculos. O sistema de irrigação entrou em colapso. As planícies férteis se transformaram em desertos. Os otomanos finalmente tomaram o controle, até serem derrubados depois da Primeira Guerra Mundial pelos britânicos, que costuraram uma nação com os fragmentos dos impérios desaparecidos. Um mapa do Iraque atual não contará essa história, mas a comida sim. Cada império impôs sua influência na culinária, motivo de vegetais recheados se chamarem dolma no Iraque — como são chamados na Grécia e na Turquia — e não mehshi, a palavra árabe para “recheado”; motivo também de os iraquianos

beberem em glassat, o plural arabizado da palavra inglesa glass, e de picles iraquianos às vezes serem chamados de turshi. Até hoje, as fronteiras definidas pela comida e pela linguagem muitas vezes refletem as diferenças entre os povos de maneira muito mais precisa do que as linhas desenhadas arbitrariamente em mapas. A culinária iraquiana reflete o fato de que o país está na interseção de regiões muito diferentes: o mundo levantino, a península Arábica, a Turquia e a Pérsia. Bagdá era a mesa a que todos se sentavam. O fesenjoon, o prato agridoce de romã com nozes, veio da Pérsia. O tashreeb, a tigela de pão embebido em caldo com frango ou carneiro, era uma antiga refeição do deserto na península Arábica — e agora temperado com especiarias indianas e noomi basra. Vendedores de rua do Karada fritam bagre com curry em pó dourado como girassol, rico em cúrcuma, um sabor fugaz da comunidade histórica de judeus iraquianos que certa vez viajaram por Bagdá, Bombaim e Calcutá. Os antigos mesopotâmios ainda se escondiam em lugares como o Khan Dajaj e o Chicken Inn, um restaurante simples onde todos eram servidos com um frango assado inteiro envolto por uma casca de pão iraquiano que era tirada e usada para pegar os pedaços de frango, como um rei sumério faria. No fim, percebi que a beleza do masquf estava em suas linhas atravessadas de ascendência — no fato de que eu não conseguia descobrir exatamente de onde veio. Suas verdadeiras origens não importavam tanto quanto as que as pessoas pensavam. Se todo iraquiano com quem eu conversava falava do masquf como um prato pertencente a um grupo diferente, talvez essa fosse exatamente a questão: era um prato nacional, a culinária de um lugar e um tempo onde identidades — étnicas, sectárias e ideológicas — se dissolviam, pelo menos durante a hora de ouro em que se espera o peixe ser preparado. Não importava se o masquf havia sido inventado pelos sumérios, pelos assírios, pelos cristãos, pelos muçulmanos ou pelos judeus. O que importava era que todos pensavam nele como um prato de outro povo e ainda completamente seu também. Sami Zubaida é um professor emérito de política e sociologia no Birkbeck College, da Universidade de Londres, e um dos maiores estudiosos de nacionalismo e culinária do mundo. Ele cresceu no distrito de Baitaween em Bagdá durante os anos 1940. Zubaida me disse, naquele tempo, que o homus era praticamente desconhecido em Bagdá. Mas no bairro onde ele morava, bastante cosmopolita, era comum as famílias de diferentes credos e origens — e, portanto, tradições no que dizia respeito à culinária — mandarem a seus vizinhos pratos de comida. A família judia iraquiana de Zubaida tinha amigos da Síria, onde o homus era um alimento básico; os homens faziam negócios juntos e as mulheres trocavam receitas. — Eles nos mandavam homus e tabule. Ambos eram novidades para nós. Perguntei a dra. Salama se os iraquianos da geração dela tinham crescido comendo meze como homus, tabule e fattoush. — Grelhar o pão e colocá-lo na salada? — disse, sorrindo. — Não, nunca fizemos isso. Todas essas saladas, tabule, fattoush, mesmo essa, como é mesmo o nome… — Estávamos sentadas a uma mesa com meze e ela apontou para um prato redondo de baba ghanouj, que muitos libaneses chamam de mtabal. — Esse mtabal… tudo isso era novidade para nós. Quando eu era criança, não comíamos isso. Comíamos jajik e saladas de pepino e tomate. Essas eram as saladas famosas. Depois de 1948, refugiados palestinos que foram para o Iraque fizeram com que a comida levantina se tornasse mais familiar. Porém, foi durante o boom do petróleo dos anos 1970, quando as famílias de classe média como a de Roaa ganharam dinheiro suficiente para viagens ao exterior, que a comida mediterrânea se espalhou de verdade. Famílias viajavam para a Turquia, a Síria ou o Líbano e voltavam com o gosto pelas saladas mediterrâneas. — No fim dos anos 1980, começamos a ter pequenos restaurantes que vendiam esses pratos — disse a

dra. Salama — e as pessoas comiam isso no jantar. Ao primeiro olhar, aquela minha refeição horrorosa no hotel Hamra pode parecer uma prova de que o Iraque não tem culinária. Mas, quando fui um pouco mais a fundo, descobri uma história completamente diferente: o fattoush falava de uma preciosa era transitória em que as famílias iraquianas comuns podiam viajar ao Mediterrâneo. O homus sem azeite de oliva fazia lembrar que o óleo vegetal nativo do Iraque, como apontou Heródoto, vinha do gergelim, não da azeitona. Mesmo os kebabs shish continham camadas de significado: kebabs de frango são shish taouk em Beirute e na maior parte do Levante, e tikka dajaj em Bagdá. Segundo Zubaida, tikka é a antiga palavra persa (não mais usada no Irã, mas comum na Ásia Meridional) para “pedaços de comida em número ímpar ou singulares”. Um simples espeto de carne; mas, em seus vários nomes, um conto de impérios que lutaram para dominar a terra onde a civilização como a conhecemos começou. Quando conversei com Zubaida e com a dra. Salama, finalmente entendi por que a refeição no Hamra tinha sido tão ruim: não era iraquiana. A comida que os estrangeiros comiam em hotéis e restaurantes não era nada típica, mas transliterações medonhas da comida mediterrânea. Julgar a comida iraquiana com base nos meze dos hotéis e restaurantes de Bagdá — imigrantes infelizes do império do petróleo, da figueira e do vinho — era como condenar a culinária do Meio-Oeste depois de experimentar chop suey num shopping suburbano de Indianápolis. Durante o verão de 2004, visitamos muitas vezes o xeque Fatih e a dra. Salama para almoçar. Às vezes eles nos davam masquf; outras vezes, frango e carneiro. A carne assada é cerimonial, a comida tradicionalmente servida para honrar um convidado. Mas em nossa última visita experimentamos algo diferente. A dra. Salama mandou dois de seus guarda-costas nos buscar. Um deles era magrinho, com um rosto fino e chupado e olhos raivosos. O outro era só uma criança, com as bochechas gordas de bebê sob a barba macia. Cumprimentaram-nos colocando a mão no coração. Quando sorriram, seus rostos desesperados se transformaram, e eles pareceram quase esperançosos. Em seguida, nos levaram com pressa para uma Mercedes preta blindada. Dentro do carro, o guarda-costas mais jovem colocou uma fita cassete. Era latmiyat, as músicas pulsantes que comemoram o massacre em Karbala. Enquanto andávamos pelas ruas, ele começou a cantar suavemente junto com a fita. Mohamad e eu olhamos um para o outro e sem dizer nada demos as mãos. Os guarda-costas conduziram o veículo pelo portão da casa, fechando e trancando-o com cuidado antes que saíssemos do carro. Uma multidão de guardas estava no gramado do pátio. Xeque Fatih nos encontrou na porta e nos levou para a sala de estar onde os encontros das mulheres aconteciam. Os Kashif al-Ghitta vinham de uma longa linhagem de clérigos, uma antiga família religiosa cujo nome significa “descobrindo o que está coberto”, e a dra. Amal nos mostrou retratos de parentes de Najaf e uma árvore genealógica lindamente pintada. Sentamos e conversamos sobre política no escritório do xeque Fatih, que era repleto de livros, e depois fomos almoçar. A mesa estava abarrotada de comida: bandejas fumegantes de arroz dourado e macio. Peixe de água doce cozido em molho de tomates. Frango assado com açafrão. Tebsi baitinjan, meu cozido iraquiano preferido — berinjela, tomates, batatas, pimentões e temperos, feito para jogar em cima do arroz. — Experimente isso — disse xeque Fatih, estendendo o prato de peixe. — É uma especialidade de Najaf, algo que aprendemos de lá. É delicioso. Como muitos pratos da culinária do sul do Iraque, essa refeição era bastante influenciada pela culinária persa — o açafrão dá sabor ao frango, por exemplo. De sobremesa comemos sohan, um doce de pistache e açúcar queimado da antiga cidade santa de Qom, no Irã. A comida e a religião dos xiitas iraquianos estão tão interligadas que o sogro de Saddam certa vez os chamou desdenhosamente de ahl al-mutah wal fesenjoon,

o povo do casamento temporário e do fesenjoon. (Se tivesse tido a sorte de experimentar qualquer um dos dois, teria percebido que isso era um elogio.) Não era possível encontrar esse tipo de comida nos restaurantes de Bagdá. A esposa do xeque Fatih preparara a refeição especialmente para nós e para nosso amigo Moises, um fotógrafo espanhol cuja nacionalidade evocou uma lembrança súbita ao xeque Fatih. — Fui à Espanha certa vez, há muitos anos — confidenciou, entusiasmado. — Era um lugar maravilhoso. Como a mãe, xeque Fatih tinha estudado ciência e filosofia além da jurisprudência islâmica. Ele tinha viajado na juventude: Espanha, Suíça, Itália e Líbano. Em Roma, tinha comido espaguete. Em 1978, em uma exposição de fotografia na Suíça, viu a foto de um homem se ajoelhando aos pés do ditador iugoslavo Tito e amarrando seus sapatos. E nunca esqueceu aquela imagem. — Aquilo me ensinou a beleza das coisas feias — disse-nos —, algo que é muito complicado, mas que nos ajuda a entender. Na Espanha, havia experimentado pratos típicos num restaurante. — Eu lembro, tomei uma bebida excelente lá — divagou ele. — Era muito saborosa. Acredito que seja algum tipo de bebida nacional da Espanha. Ele sorriu e franziu a testa, olhando na direção de Moises. — Como é mesmo o nome? Dessa bebida nacional da Espanha? Ninguém disse nada. Eu sabia pela cara de Mohamad que ele estava pensando a mesma coisa que eu: sangria. Se o xeque havia bebido vinho sem saber, não queríamos chamar a atenção para o fato. Silenciosamente, tentávamos passar a Moises a mensagem urgente: Por favor, Moises, não diga que é sangria. Moises estava quieto, sentindo uma leve nostalgia talvez, debruçado sobre o prato. — A bebida nacional da Espanha é o vinho, cara. Xeque Fatih caiu na gargalhada. — Não, não, não era vinho! — respondeu ele. — Era doce! Muito doce, muito deliciosa. Talvez não tivesse mesmo sido sangria. Talvez tenha sido horchata, ou alguma outra coisa. Talvez exista outra bebida nacional da Espanha. — Que gosto tinha? — perguntei. — Ah… — suspirou, olhando para longe, saboreando a memória da viagem. — Lembro que era vermelha; tinha fruta. Muito deliciosa, muito doce. O peixe de Najaf estava delicioso, eu disse a eles. E porque estávamos entre amigos, comentei que minha avó era grega e que era muito parecido com um dos muitos jeitos gregos de fazer peixe: cozido em molho de tomate e cebola. — Grega? — perguntou a dra. Amal. — Você leu Aristóteles? Eu me inspiro muito nos gregos. — Nós lemos Aristóteles em nossa hawza — disse xeque Fatih. — E Os sapos, de Aristófanes — disse a dra. Amal. — É uma descrição excelente da política. Poderia descrever a política no Iraque até hoje. Você leu? — Sim. E As nuvens — complementei. — Aristófanes é meu dramaturgo grego favorito! Mas deixa Os sapos pra lá… Você leu Lisístrata? A dra. Amal fez que não com a cabeça. Franziu a testa e olhou para xeque Fatih e para a dra. Salama. Ninguém ouvira falar de Lisístrata. — É minha peça grega favorita! — disse, alheia ao penhasco para o qual eu estava galopando. — É sobre um período em que os gregos estavam em guerra durante, sei lá… anos… e eles não paravam de guerrear. Então as mulheres se reúnem e dizem aos homens que se eles não parassem de guerrear… Parei de repente quando percebi o que estava prestes a dizer. Olhei em volta da mesa. Todos olhavam

para mim com expectativa: a dra. Salama em seu abaya preto; xeque Fatih em seu turbante clérigo; e a dra. Amal, a mãe idosa. Aquelas eram pessoas profundamente religiosas, independentemente da quantidade de filosofia grega que tinham lido. Como eu poderia descrever Lisístrata para eles — uma peça cheia de piadas sexuais brutas, no início encenada por homens usando falos gigantes de couro? Uma peça cujo enredo gira em torno de mulheres que dizem aos homens que enquanto eles não pararem a guerra não haverá mais sexo? Lancei um olhar desesperado para Mohamad. Ele também não havia lido Lisístrata. Também esperava para ouvir o que eu ia dizer. — As mulheres se reúnem e fazem um acordo que até que os homens parem de guerrear… é… ahn… elas não terão nada a ver com eles — concluí. A dra. Amal e a dra. Salama se entreolharam, seus olhos redondos de espanto. E depois olharam para mim. — Isso é excelente! — disse a dra. Salama. — Preciso ler essa peça! É exatamente o que estamos tentando fazer com as mulheres de Sadr City! No final de julho de 2004, um mês depois de L. Paul Bremer transferir o poder para o governo interino do Iraque, o irmão e o sobrinho de nosso amigo poeta Ali haviam sido assassinados em uma emboscada preparada para ele. Alguém — militantes, criminosos, não havia muita diferença — tinha tentado sequestrar a esposa do xeque Fatih. O tio de outro amigo havia levado um tiro, por motivos que ninguém conhecia, no jardim de sua casa. Abu Rifaat e outros cristãos iraquianos tentavam fugir do país desesperadamente. Até Alan King estava indo embora. Nós nos encontramos na Zona Verde para um triste jantar de despedida pouco antes de sua missão ter terminado. — Sinto como se estivesse abandonando essas pessoas — disse ele, seu rosto rosado transparecendo a emoção. — Como se isso aqui fosse um navio naufragando, e eu estivesse indo embora num bote salvavidas, deixando todos para trás. Estamos deixando esse lugar pior do que o encontramos. Já Roaa tinha pedido demissão de seu emprego no Al-Hurra. Jornalistas iraquianos tinham uma expectativa de vida muito baixa. Um dia, um velho sentado no meio-fio disse a um dos colegas dela que, mesmo que não concordasse com os revoltosos, ele queria ajudá-los a sequestrar “todos vocês que estão trabalhando para os americanos”. Roaa pediu demissão logo depois disso. Antes de irmos embora — voltaríamos em poucos meses, pelo menos era o que pensávamos na época —, ela nos convidou para almoçar em sua casa. Assim que estacionamos na entrada da garagem, Roaa olhou rapidamente para o fim da rua e fechou o portão de metal. No caminho curto entre a entrada da garagem e a porta da frente, Mohamad e eu tivemos o cuidado de não falar em inglês um com o outro. Quando os vizinhos perguntassem quem viera visitá-la, como certamente fariam, Roaa diria que éramos parentes curdos de Suleimania. Eu usanva o hijab de poliéster preto e cinza de Umm Hassane — não saía mais de casa sem ele naqueles dias — e Abu Zeinab nos levou até lá em seu novo carro com o assento do motorista do lado direito, um carro que ninguém pensaria ser americano. Precisávamos de toda essa trama para entrevistar rebeldes ou ativistas feministas, que viviam sob constantes ameaças de morte feitas pelos rebeldes, ou para professores universitários, que eram assassinados um a um. Mas no verão de 2004 também precisávamos dessas manobras para missões mais inocentes como almoçar com um amigo iraquiano. Achava que o almoço seria uma coisa casual. Mas quando entramos na casa de Roaa, vimos que era outra coisa. Um sufrah, um banquete. Beitik aamra, sufrah aamra, diz uma expressão iraquiana que significa algo como: Que nossa casa esteja sempre aberta aos outros, que nossa mesa esteja sempre cheia de comida. Roaa havia feito um banquete de despedida com todos os meus pratos locais favoritos. Começando na

noite anterior, preparou um dolma enorme, a mistura de vegetais recheados tão característica do Iraque — não apenas folhas de uva e abobrinhas, mas também tomates, pimentões verdes, berinjela e até cebolas e acelga; todos recheados com arroz temperado e carne, cozidos juntos durante horas na panela com uma camada de costeletas de carneiro no fundo. As cores dominavam a mesa, vibrantes e saturadas como um quadro de Braque, uma montanha fumegante de roxo, verde-escuro e vermelho. Ela fez um prato do norte do Iraque chamado kubbet hamudh, pastéis retangulares recheados com carne apimentada e cozidos como pão ázimo no caldo de tomate picante. Também fez tebsi baitinjan, porque sabia que eu adorava. (Ela riu de mim quando contei o quanto eu amava o prato: “Sabe, Annia, na verdade é bem fácil de fazer.”) E em homenagem à nacionalidade de Mohamad, serviu tabule, fofinho e fresco, o bulgur ligeiramente crocante, como eles fazem em Beirute. — Não sabia que você cozinhava bem assim — comentei, quando sentamos à mesa. Roaa queria ser uma diplomata, uma embaixadora. Não uma dona de casa. Ela sorriu e olhou para a mãe. — Temos um ditado: Quem aprende de um bom professor será ainda melhor que esse professor. Sua mãe sorriu de volta, orgulhosa apesar da natureza provocativa do elogio. Ela podia ter ensinado a filha a cozinhar, mas também a criara para que dissesse o que pensa. Sentamos à mesa. Alan, irmão mais velho de Roaa, quieto e protetor, Schwan estava lá também. Finalmente conheci o irmão mais novo de Roaa, Shko, “um gênio dos computadores” de quem eu ouvia falar havia meses. Ele era tímido e corpulento e sorria em vez de falar. — Estou encorajando Shko a tentar entrar em boas faculdades — disse ela — porque agora não existem mais pontos extras, nem amigos do presidente. Apenas o pai de Roaa estava ausente. Aos 67 anos, procurava trabalho na Jordânia. — Não gostamos da ideia, porque ele está velho agora — disse Roaa. — Mas é difícil para ele ficar sentado sem fazer nada. Pensei que devia ser difícil para ela também, mas não disse nada. Depois de termos demolido o quanto pudemos a montanha de dolma, quando não havia mais tebsi para ser consumido, Mohamad e eu olhamos um para o outro e dissemos algo sobre ir embora. — Aonde vocês vão? — perguntou Roaa. — Ainda não comemos a sobremesa! Desaparecendo em direção à cozinha, ela voltou com um prato de torta coberto. Fomos para a sala de estar e tomamos chá e café em cadeiras de madeira e sofás à janela. Ela descobriu a obra-prima: uma torta de banana coberta por uma camada vermelho-clara de gelatina de cereja. Pedaços festivos de banana estavam suspensos no gel vítreo vermelho como pequenas luas. — Como você aprendeu a fazer isso? — perguntei, perplexa, esquecendo que receitas, diferentemente de pessoas, podem cruzar fronteiras nacionais quando quiserem. Ela contraiu o queixo e levantou uma sobrancelha para mim, fixando a expressão por um instante, exatamente como Umm Hassane. — Sabe, Annia — disse ela, sorrindo —, nós sabemos como fazer essas coisas. Essa é uma de nossas especialidades, na verdade. A comida que Roaa fez para nós naquele dia era herdeira de uma ideia cosmopolita, uma convergência de culturas que estava ainda codificada em seu DNA. O kubbet hamoudh pegou os antigos grãos nativos, misturou-os com a carne; absorveu o tomate, o nabo e outros invasores da Ásia e das Américas. Sob o domínio dos otomanos, os bizantinos antes deles e os partos e sassânidas antes deles, os vegetais recheados viajaram sobre montanhas e ao longo de rios, da bacia do Mediterrâneo a Mosul, Aleppo e Anatólia, onde era conhecido por seu nome turco, dolma; visitaram as cozinhas de muçulmanos, cristãos e judeus; de

curdos e armênios, sufis e salafistas, falantes de árabe e aramaico, reis e plebeus, paxás otomanos e sahibs britânicos, até alcançar a mesa a qual nos sentamos com Roaa em Bagdá no final do verão de 2004. Para Roaa, as horas em casa cozinhando eram uma salvação dúbia; uma prisão, mas também um refúgio. Um dia ela sonhou em viajar para outros países. Agora não podia nem dirigir pela cidade. Presas em suas cozinhas, iraquianas como ela ainda desejavam explorar o mundo. Aos milhões, faziam os mesmos movimentos: cozinhavam o arroz e selavam a panela com papel de alumínio — ou, para as gerações póssanções, um saco plástico —, assim como as antigas haviam feito com massa de pão. Salgavam berinjelas e então as submergiam em água, sob o peso de um prato. Lavavam frango e carne vermelha, talvez sussurrando “Graças a Deus” enquanto pegavam suas facas para cortar a carne. Tiravam os miolos de abobrinhas, tomates, pimentões vermelhos; milhões de mãos enrolavam folhas de uva em Baçorá, Mosul, Bagdá, Sulaimania, Erbil e mil vilarejos espalhados pelo Iraque. Por meio do ato universal de compartilhar receitas, elas também compartilhavam a memória de outros lugares, outros mundos. Enquanto essa memória existisse sob qualquer forma — livros de receitas, receitas escritas à mão, uma torta de banana — ela sobreviveria.

Parte III BEIRUTE

“Beirute está fervendo como uma panela!” — Tawqif Yusuf Awwad, Death in Beirut

16 REPÚBLICA DAS FAVAS

DEPOIS DE UM MÊS EM NOVA YORK e um mês de procura inútil por um apartamento em Beirute, eu estava com saudade de Bagdá. Tinha saudade das palmeiras, do calor seco e amarelo e dos sons guturais do árabe iraquiano. Tinha saudade de Roaa, da dra. Salama e de Abu Rifaat. O Christian Science Monitor havia me convidado para integrar a equipe fixa de freelancers em meados de outubro e eu não via a hora de voltar. Havia apenas um problema. Nos dois meses e meio em que estivemos fora, nove jornalistas estrangeiros foram sequestrados, a maioria deles freelancers. Um grupo que se autodenominava “o exército islâmico no Iraque” havia decapitado um freelancer italiano e mandado um vídeo com imagens do corpo para a Al Jazeera. Militantes ainda mantinham reféns dois repórteres franceses, um deles conhecido nosso. Um jornalista australiano foi capturado logo depois de sair do hotel Hamra, e parecia claro que alguém no hotel ou nas redondezas dera a informação aos sequestradores. Eles tinham freelancers ou pequenas agências de notícias sem segurança, como o Monitor, como alvos. Duas noites antes de meu voo para Amã, eu estava assistindo a um vídeo na Al Jazeera: figuras mascaradas e encapuzadas estavam em frente a um pôster preto com escritos brancos em árabe. Suas bocas abriam e fechavam silenciosamente indicando que gritavam. Um prisioneiro estava ajoelhado diante deles. Sem nenhuma emoção, apenas uma centelha de curiosidade, percebi que era eu. Um dos mascarados agarrou a cabeça do prisioneiro e a puxou para trás, e naquela hora acordei. Não senti medo, mas sabia que aquele sonho me dizia que era isso que eu deveria sentir. — Olha, Annia, sei que você adora trabalhar para o Monitor — disse Mohamad. — E se você quiser mesmo ir, não vou impedir. Mas lembre-se de que você não tem que provar nada para ninguém. Eu sei que você é uma boa jornalista. — Não estou tentando provar nada. — Eu estava com raiva; todos pareciam pensar que essa era alguma questão emocional, mas no que dizia respeito a mim sentimentos não tinham nada a ver com isso. — Sei que você sente como se estivesse abandonando a história se não voltar — continuou. — Sei como você se sente. Eu sei que não é uma questão de ego. Mas lembre-se de que nenhuma história, nada sobre o que você possa escrever, é tão importante que valha a pena morrer por ela. E você não vai estar ajudando ninguém, não estará chamando a atenção de ninguém para a história, estando lá e sendo sequestrada. No dia em que eu deveria ir a Amã, Scott Peterson, repórter da equipe do Monitor, me ligou. — Escuta, Annia, as coisas não estão mesmo boas por aqui — Scott falava muito rápido e parecia distraído. — Margaret Hassan foi sequestrada hoje de manhã. Margaret Hassan era uma irlandesa que tinha se casado com um iraquiano, se convertido ao islã e morava em Bagdá desde 1972. Ela trabalhava para uma instituição de caridade internacional e havia passado décadas ajudando iraquianos a ter acesso a saúde e água limpa. — Não sabemos o que aconteceu. Talvez ela não tenha sido sequestrada. Não há nada muito certo. Mas boa coisa não é. Isso não é bom. Você tem certeza de que quer vir? — Não — respondi. Os pais de Mohamad haviam nos convidado a ficar com eles até que encontrássemos um lugar para morar.

Mas precisávamos de um local mais central para começar a procurar por um apartamento de verdade. Nosso amigo Hazem, o escritor do Al-Hayat com quem tínhamos passado o Ramadã em Bagdá, nos ajudou a conseguir um quarto com desconto. Era no Berkeley, um hotel pequeno na rua Jeanne D’Arc num bairro chamado Hamra. Não achávamos que ficaríamos lá por muito tempo. Beirute se projeta para fora da costa leste do Mediterrâneo como um bode gigante andando de costas em direção ao mar. A porção noroeste da cidade fica ainda mais para fora, uma corcova teimosa chamada “a capa de Beirute”, e é aí que se encontra a Hamra, a famosa rua que deu ao bairro seu nome. Hamra era um bairro historicamente misto, de maioria muçulmana, mas com maronitas, armênios, gregos ortodoxos e até missionários protestantes americanos. Foi uma vizinhança rebelde e cosmopolita desde o início — um desses lugares onde os fatos e a fantasia convergem, que é provavelmente a razão de sempre ter atraído escritores. Um número desproporcional de romances se passa em Ras Beirut, principalmente os romances sobre a guerra civil ou o período que a antecede, quando a rua Hamra era o ponto de comércio mais glamoroso da cidade. Aqui ficava a loja onde nossa amiga Leena vinha comprar meia-calça durante a guerra civil, mesmo enquanto os milicianos andavam pelas ruas; havia o famoso restaurante Wimpy — em 1975, o auge da Beirute moderna pré-guerra. Agora era uma cápsula do tempo empoeirada onde velhos se sentavam em cadeiras de plástico laranja e fumavam, tomando a mesma xícara de café o dia todo, como lagartos cinza pacientes. Um jornalista amigo nosso chamado Mansour estava sentado um dia num dos famosos cafés da Hamra com um amigo. Eles começaram a especular o que aconteceria lá se houvesse outra guerra civil: cada café teria a própria milícia, eles brincaram. Os guerreiros do Café Younes juntariam forças com as Brigadas do Baromètre! Os clientes do Regusto marchariam contra os do Starbucks! A imagem dos eternos bebedores de café da Hamra se revoltando os fez rir. Um velho que fumava um cigarro atrás do outro na mesa ao lado os ouviu. Ele se virou para os amigos e fixou um olhar de velho marinheiro em Mansour. — Eu estava aqui durante a guerra civil — disse ele —; guerreei em Hamra. E vocês podem estar rindo agora, mas posso dizer, é exatamente assim que as coisas eram. Nossa pequena suíte de dois quartos no Berkeley era velhinha, mas limpa. A porta se abria para uma sala estreita com uma namoradeira de vinil marrom, uma televisão e uma cadeira. (Acima da namoradeira ficava uma gravura chamada L’Arrivée des Mariés, com um casal do século XIX desembarcando de uma carruagem puxada por cavalos, o que parecia indicar que estávamos na suíte nupcial.) À direita da porta, uma pequena pia e um minirrefrigerador estavam enfiados num buraco com mais ou menos um metro de profundidade. À esquerda, passando a televisão, uma porta que levava a um pequeno quarto com uma cama, um banheiro e uma pequena penteadeira, que usávamos como escrivaninha. Não era nem um pouco luxuoso: era mais um apartamento bem pequeno sem uma cozinha de verdade. Mas a beleza do Berkeley era sua sacada, maior que os dois aposentos juntos. Beirute é a cidade das sacadas. O 1,4 milhão de habitantes da cidade tinha apenas um punhado de parques públicos minúsculos, nenhum deles exatamente verde. Então, como Nabucodonosor, as pessoas criavam jardins suspensos. Sacadas e telhados transbordavam com vegetação: gerânios, buganvílias, alecrim e plumérias, uma cidade de jardins em pleno ar. Do topo do Berkeley, eu via um jardim em um telhado com mobiliário em teca e palmeiras em vasos que deviam ter custado uma pequena fortuna na Exotica, a loja de plantas tropicais exclusivas. Do outro lado da rua, tomate e manjericão saíam de latas de azeite de oliva enferrujadas e idosos com agasalhos comidos por traças ficavam à noite sentados em caixotes velhos fumando. Um galo andava por ali com um ar arrogante, lançando um olhar vigilante de um lado a outro, como se supervisionasse seus servos.

A população de Beirute ainda mantinha pombos em seus telhados, uma prática antiga que os árabes desenvolveram durante as Cruzadas para mandar mensagens (e, uma vez, no século XX, para mandar cerejas frescas do Líbano ao califa fatímida no Egito). Um criador de pombos da Hamra havia tingido de fúcsia o pássaro principal de seu bando, o mesmo rosa fluorescente dos nabos marinados em suco de beterraba que os restaurantes de Beirute serviam. Sempre que eu via os pássaros brancos voando pelo céu azul, seguindo seu líder cor de beterraba, pensava na milícia da cidade que conciliava moda e guerra usando uniformes pink. Talvez um pequeno semideus pós-guerra tenha transformado os combatentes em pombas quando a guerra terminou. Da sacada, tudo parecia possível. Nosso quarto ficava no sétimo andar; daquela altura, as buzinas dos carros pareciam um balido distante de ovelhas. Podíamos ver o agito da rua Hamra, os pontos de táxi, os homens que ficavam sentados do lado de fora do Royal Flush discutindo enquanto faziam apostas e o Centro de Diversões Barbarella. Víamos as montanhas cobertas de neve sob o sol do inverno e envoltas em nevoeiro durante as chuvas do outono. Víamos o pôr do sol flamingo e damasco berrantes da cidade. Quando o anoitecer caía sobre Hamra, víamos as dançarinas do Marrocos e das antigas repúblicas soviéticas fazerem fila do lado de fora do hotel Pavillon, embaladas a vácuo em calças de elastano roxas, e subirem em micro-ônibus que as levavam à linha costeira neon das superboates. Eu ainda me encolhia quando passava por carros estacionados. Pulava toda vez que ouvia barulhos altos. Atravessava a rua para evitar latas de lixo, que podiam conter explosivos, e nos cafés eu me sentava o mais longe possível das máquinas de cappuccino. Quando passava pela tranquila mesquita de nosso bairro, sempre esperava ver centenas de homens saindo, sacudindo os braços e berrando “Muqtada! Muqtada!”. No início de outubro, uma pequena bomba tinha explodido o carro de um político enquanto ele andava por Ras Beirut. Ele sobreviveu, mas seu motorista não, e a explosão reforçou minha crença de que tudo — portas batendo, estouro de escapamentos, crianças soltando foguetes — era uma bomba. Mas quanto mais eu vagava pelas ruas de Hamra, mais esses medos retrocediam à raiva passada. De alguma forma, durante os meses que passei de lá para cá, dirigindo e voando do Iraque para o Líbano e do Líbano para o Iraque, Beirute havia se tornado minha casa. Algumas semanas depois de voltarmos, um corretor imobiliário se ofereceu para nos mostrar um apartamento num bairro do outro lado do centro da cidade. Andamos pela Hamra até a Universidade Americana de Beirute, passamos pela figueira do Medical Gate e descemos a rua John Kennedy. Passamos pelo pálido navio-fantasma que havia se tornado o Holliday Inn, ainda vazio e com cicatrizes de balas da Guerra dos Hotéis, um dos muitos pequenos conflitos que constituíram a guerra civil de quinze anos. Atravessamos a rodovia Fakhreddine e entramos em Bab Idriss, o Portão de Idriss, um bairro nomeado séculos atrás quando a cidade ainda tinha muros contra invasores. Andamos por Wadi Abu Jamil, o antigo bairro judeu, passando pelas poucas mansões otomanas condenadas a serem logo demolidas, e as reconstruções elegantes ascendendo em meio a elas. As construções antigas cheiravam a alecrim selvagem e camomila. Morcegos voavam pelo vítreo azul da noite que se iniciava. Andamos pela rua Bank, passando pelo prédio do Parlamento, e entramos em pleno centro de Beirute. O centro girava em torno da Sahat al-Nijmeh, praça Estrela, que na verdade era circular, uma roda de ruas de pedestres de calçamento de pedra que se cruzavam em um espaço aberto com uma torre de relógio art déco alta ao centro. (O Líbano esteve sob controle francês desde o fim da Primeira Guerra Mundial até 1943, e a praça foi projetada durante os anos do mandato francês como uma miniatura da Place de L’Étoile, o eixo do plano radial de Haussman para Paris.) Meninos e meninas adolescentes caminhavam pelo grande círculo em volta da torre fingindo não se notarem. Crianças andavam em triciclos e brincavam com bolas de borracha. Babás do Sri Lanka e das Filipinas corriam atrás delas, enquanto pais ficavam nos cafés a céu

aberto fumando narguilé. Cadeiras e mesas invadiam as ruas, cheias de pessoas comendo, conversando e rindo. Além da Corniche, a estrada que ia do fim de Ras Beirut até o mar, a cidade tinha poucos espaços públicos. Era um prazer simplesmente estar rodeada de pessoas. Antes da guerra civil, o centro era um grande souq. As pessoas vinham de todo o Líbano para comprar tudo, desde comida até móveis: roupas, café, jornais, temperos, livros. Assim como as caravanas um dia haviam se ligado a rotas de comércio regionais na antiga cidade de Berytus, o centro pré-guerra do país era um lugar onde todos os libaneses podiam experimentar os prazeres da vida cosmopolita: podiam assistir a filmes, procurar prostitutas, participar de apresentações, vender tomates, comprar livros usados ou ouvir um hakawati, um contador de histórias tradicional. Havia até mesmo bancas de café informais onde moradores de uma mesma área podiam se reunir e beber café, esperando por táxis que dividiriam para levá-los juntos de volta a suas cidades. Durante a guerra, a Linha Verde atravessava o centro. Atiradores miravam uns nos outros e em quaisquer civis que estivessem entre eles. As belas construções antigas, com suas arcadas parisienses, foram despedaçadas e estraçalhadas. As ruas se encheram de cascalhos e barricadas. Dois anos depois do fim da guerra, o primeiro-ministro, Rafik Hariri, propôs uma renovação dramática do antigo centro da cidade. Hariri era um magnata bilionário da construção que tinha feito fortuna na Arábia Saudita, trabalhando para a família real. Ele sonhava em restaurar Beirute a seu estado pré-guerra de resplandecente centro comercial e bancário — Dubai no Mediterrâneo. Expulsou pequenos lojistas, barracas de café, lojas de conveniência, livrarias, donos de restaurantes e quase todos os moradores da área e compensou a maioria deles com ações de uma companhia novinha chamada Solidère. Muitos inquilinos e proprietários do centro alegaram que a companhia havia subestimado o valor de suas propriedades deliberadamente, mas não havia nada que pudessem fazer: o domínio do centro pela Solidère foi negociado entre a empresa de Hariri, o governo de Hariri e um dos antigos empregados de Hariri, que era o líder das autoridades de reconstrução do Líbano. Hariri transformou o arruinado centro da cidade num calçadão onde a classe alta internacional poderia mordiscar sushi vindo da Ásia, experimentar tangas de penas de cem dólares na La Perla e comprar um telefone de mil dólares em formato de banana na Bang & Olufsen. Solidère e seus maiores acionistas fizeram bilhões enquanto a dívida do Líbano disparava: em 2005, a relação entre a dívida pública do Líbano e o PIB era a segunda mais alta do mundo (depois do Malauí). Um ano antes, Hariri alcançava o número 108 da lista de pessoas mais ricas do mundo da revista Forbes, com sua riqueza líquida de 4,3 bilhões de dólares. Entretanto, Hariri reconstruiu o que os outros haviam destruído e por isso as pessoas estavam dispostas a perdoar muita corrupção. Filho de um catador de frutas sunita de Sídon, ele era um carismático e self-made man, dado a gestos extravagantes — e poucos outros líderes libaneses haviam articulado uma visão que transcendia seita e bairro. Ele nunca tinha sido um guerrilheiro, nunca tinha participado de uma milícia. As pessoas se queixavam de como ele havia dominado o centro, mas muitos, mesmo alguns que tinham perdido suas casas ou lojas, amavam-no assim mesmo. O apartamento que íamos ver ficava num bairro que a empresa dele havia construído, um lugar chamado Saifi Village. Beirute ainda tinha bairros onde velhos rodavam todas as manhãs em bicicletas com pães de gergelim de todos os tamanhos chamados kaak, gritando “Kaaaaaaa-IIK!”. As mulheres iam às sacadas, desciam o dinheiro em cestas para os velhos e subiam-nas novamente cheias de kaak. Os homens empurravam carrinhos de frutas e verduras pelas ruas. Pessoas alimentavam vira-latas nas calçadas. Vendedores de bilhetes de loteria andavam berrando: “Hoje é o dia! Hoje é o dia!” Velhinhas baixinhas de salto alto marchavam pelas calçadas esburacadas todas as manhãs até a venda. Homens desocupados tomavam conta das calçadas para suas reuniões a céu aberto, mas davam um passo para o lado sempre que uma

mulher passava e às vezes cantavam alguns compassos de uma canção de amor. Assim, em alguns dias, quando se andava na rua, parecia que a cidade inteira estava cantando uma serenata contínua. Saifi Village não era esse tipo de bairro. Durante a guerra, havia sido uma frente de batalha. Agora era uma terra de fantasia cimentada de mansões em tons pastéis de rosa e amarelo com cortinas brancas em filigrana. Era rodeado por todos os lados por rodovias e estacionamentos, fazendo com que fosse praticamente inacessível a pé. As ruas vazias faziam com que você se sentisse como se estivesse preso dentro de um modelo de gesso de um arquiteto. Pequenos jardins eram fechados ao público por portões trancados. Butiques ofereciam bolsas de couro feitas a mão que custavam três ou quatro vezes o salário mínimo do Líbano, que na época era duzentos dólares. Nunca poderíamos nos dar ao luxo de viver lá, o que para mim não era problema nenhum. O corretor imobiliário era sombrio, com um ar de desleixo derrotado, e nos mostrou com um ar taciturno o apartamento supervalorizado que todos sabíamos que não poderíamos alugar. Então, quando estávamos do lado de fora em frente às pequenas butiques singulares, Mohamad mencionou que havíamos estado em Bagdá. — Bagdá? — disse o corretor, de repente interessado. — Eles têm carros-bomba lá! O tempo todo. Assim como aqui, durante a guerra! Ele apontou para além de arbustos bem cuidados, em direção ao estacionamento. — Você olha para um carro e… bum!, ele explode! — continuou, abrindo os braços com força para ilustrar a explosão. — Este carro aqui; aquele carro lá. Nunca se sabe qual! Dois, três carros-bomba por dia! Então deixou os braços caírem e sorriu para nós, suspirando alegremente. Ele sentia falta dos carrosbomba. Eu sabia como ele se sentia. Não era exatamente que eu gostasse da guerra. Desejava uma vida normal durante todo o tempo que ficamos em Bagdá. Mas quando ela veio, fiquei com um sentimento de irrealidade: passamos por aquilo, sobrevivemos a tudo aquilo — e para quê? Para que as pessoas pudessem comprar bolsas artesanais que custavam setecentos dólares? Nenhum daqueles mundos — nem o dos carros-bomba nem o da reconstrução rosa pastel — parecia real. As coisas estavam piorando no Iraque. Roaa tinha outro emprego, mas andava recebendo mensagens anônimas que falavam do hijad e insinuavam que mulheres que trabalhavam com “os ocupantes” eram… ela não completou a frase, mas eu podia imaginar. Eu queria agarrar todo o mundo e gritar em suas caras que a guerra ainda estava acontecendo. Queria ter uma vida normal, mas não queria que os iraquianos, que continuavam lutando para ter qualquer vida, fossem esquecidos. Beirute parecia oferecer um tipo de solução. A economia era uma bagunça, o sistema político, uma zona. Depois que a guerra civil acabou, o regime sírio controlava o Líbano como se fosse um estadosatélite. A família Assad e seus comparsas canalizavam dinheiro e bens para fora do país, extorquiam comerciantes libaneses e espancavam ou prendiam aqueles que protestavam contra suas decisões. A política do Líbano estava marcada por uma série de assassinatos não resolvidos que começaram durante os anos da guerra e continuaram na primeira década dos anos 2000. Ninguém sabia quanto dinheiro tinha desaparecido da economia — uma entidade fantasma mesmo antes da guerra —, apenas que era muito. Mas quinze anos depois do fim da guerra, era possível andar pelas ruas e comprar um pedaço de pão sem ser morto. Raramente se falava sobre esse assunto. Era surreal ver as pessoas passarem por cima de velhos ódios, mas também me dava a esperança de que a vida podia recomeçar depois de uma guerra. As pessoas não precisavam se amar, ou mesmo se gostar; tudo o que tinham de fazer era participar do acordo tácito de viverem juntas, de alguma forma fazer a coisa funcionar. E, olhando para o ritmo do dia a dia em Beirute, estava funcionando. Se o Líbano podia superar sua guerra civil, eu dizia a Roaa, Oday, Salaam e Usama, o Iraque também

podia. Podia levar um tempo, mas nós esperaríamos. Nesse ínterim, eu ia me estabelecer, começar a fazer aulas de árabe e encontraríamos um apartamento. Uma fotografia em preto e branco apagada e manchada de fumaça fica pendurada atrás do balcão de várias pequenas lojas de Beirute. Nela, uma antiga fachada de loja está geralmente cercada por vários homens de terno e chapéu, carros e antigas construções graciosas. Talvez um dono orgulhoso esteja do lado de fora com um avental de açougueiro ou do lado de dentro, junto à caixa registradora: o negócio da família antes da guerra, quando ficava localizado no centro da cidade. Quando o centro de Beirute sucumbiu, as pequenas lojas que compunham o coração comercial da cidade se espalharam por todas as esquinas. Todo bairro ganhou um pedacinho do centro: Hamra tinha a famosa confeitaria Intabli e o Café Younes, que enchia nosso bairro com o aroma de, entre muitos outros, grãos de café torrados. Sem o centro, o mapa mental coletivo da cidade ruiu. A guerra havia confinado as pessoas a certos bairros ou porções da cidade. Quando acabou, uma amnésia deliberada se espalhou pela cidade. As pessoas davam informações relativas a uma cidade do passado: “passando o prédio do An-Nahar”, quando o jornal que levava esse nome não é mais publicado; vire na esquina onde antes era o Café Modca; ou desça a Nazlet al-Piccadilly, rua que tinha o nome de um teatro fechado havia décadas. Não existiam mais atiradores, mas as pessoas ainda evitavam certos bairros ou ruas sem se lembrarem do porquê. Os estrangeiros que vinham a Beirute aprendiam um conjunto de nomes — os nomes oficiais das ruas — inútil. A cidade quase não tinha placas de trânsito e de localização. As poucas existentes ficavam penduradas timidamente nas laterais dos prédios, ao estilo europeu, e eram completamente ignoradas. A rua chamada “Baalbek” em mapas e nas placas era conhecida como “rua Commodore”, devido ao hotel Commodore (centro nervoso da guerra civil, agora só mais um dos muitos hotéis de Hamra). Minha amiga Paula cresceu na rua Sidani. Ela não sabia o nome da rua Makdisi, duas quadras mais à frente; para ela era “a rua antes da Hamra” ou “a rua onde fica o mercado da cooperativa”. Um dia encontrei uma corretora imobiliária descendo nossa rua. Ela havia morado no Hamra a vida inteira, mas quando eu disse que tinha chegado andando, até onde ela estava, saindo da rua Jeanne D’Arc, ela disse que eu estava enganada; insistiu que era “muito longe daqui”, muito longe para ir andando. Leveia até a rua Jeanne D’Arc, que ficava a exatamente duas quadras dali, e mostrei a ela uma placa pequena e escondida com o nome da rua pela qual ela provavelmente já tinha passado mil vezes. Havia outra rua Jeanne D’Arc, segundo ela — uma que eu não conhecia, é claro, sendo estrangeira. Ela estava certa à sua maneira — havia sim, outra rua Jeanne D’Arc, uma que ficava na sua imaginação, e em Beirute tais ruas são tão reais quanto as feitas de asfalto. Todos que eu conhecia pareciam carregar um mapa alternativo de Beirute na cabeça, um mapafantasma sobreposto à grade física de ruas. Todas essas Beirutes imaginárias eram diferentes uma das outras, e todo mundo insistia que sua Beirute pessoal era a real. As pessoas sempre se perdiam, ninguém sabia dar informações e não era possível falar a um motorista de um servees para onde se estava indo, porque ele dirigia por uma Beirute diferente da Beirute onde você achava que estava. Depois de algumas semanas comecei a acreditar que todas as cidades não passam de alucinações em massa. Felizmente havia um conjunto de informações com o qual todos concordavam. Na ausência de placas de localização, um governo que funcionasse ou qualquer coisa que fosse semelhante a um contrato social, aprendi a andar pela cidade de acordo com a comida. Peça ao motorista de um servees para ir até a rua Sidani e talvez ele não saiba do que você está falando; pode ser até que ele negue a existência de tal rua. Peça a ele para ir à sanduicheria Marrouche, famosa pelos sanduíches de frango desfiado com molho de alho, e ele saberá exatamente aonde você quer ir. O mapa gastronômico era o mais confiável.

Havia turistas do Golfo que vinham a Beirute sabendo apenas uma localização: Barbar, o famoso império de restaurantes de uma quadra inteira em Hamra. Barbar serve de tudo, de sanduíche de miolo a coquetéis de frutas com nomes como Hitler, Castro, Noriega e Nelson Mandela; mas era famoso por seu shawarma e pelo falafel. — Eles dizem “Leve-me ao Barbar” assim que saem do avião — disse Abu Hussein, um motorista de servees que conhecíamos da vizinhança. Eu me dava muito bem com esse sistema. Nunca, jamais, esquecia como chegar à Salim Hassan, a loja de especiarias perto do cruzamento entre a Jeanne D’Arc e a Makdisi, porque eles vendiam sementes de mostarda preta, feno-grego e pequenos saquinhos de noomi basra por um dólar. — A comida é a única coisa que funciona em Beirute — disse certa vez nosso amigo Bassem, e ele estava certo. Comecei a construir um mapa do Hamra em minha cabeça. Um bom dia em Beirute começa com foul (pronuncia-se “ful”), então era com isso que meu mapa começava. Foul significa “favas”, mas também é a abreviação para foul mdamas, o úmido cozido de favas secas misturadas com alho, suco de limão, azeite de oliva e — dependendo do gosto e da localização — grão-de-bico e especiarias que é servido no café da manhã. (No Levante, favas e grão-de-bico também são os ingredientes principais do falafel, e algo nessa combinação parece magia, não importando a forma que ela tome.) Há um antigo provérbio que varia de país para país e é mais ou menos assim: “Foul de manhã, café da manhã de reis; foul no almoço, comida de pobre; foul à noite, jantar de burros.” (Rima em árabe.) Outro provérbio ordena de maneira sombria: “Ma t’oul foul hatta yaseer bil makyoul”, “Não chame de fava antes que esteja em seu prato”, o equivalente árabe do ditado “não conte com o ovo…”. Tudo isso é para provar a importância das favas. Em Beirute, todo bairro que se prezasse tinha um fawal, um homem dos grãos, um fabricante de fava. Certos fawals eram famosos: o do Zarif, atrás da estação de TV Future, tinha praticamente o próprio culto. Consumidores faziam fila na frente, alguns levando tigelas, como pedintes esperançosos. Se não fosse com a sua cara, ele servia todos antes de servir você, e você seria sortudo se ganhasse uma tigela de favas. (Meus amigos o chamavam de Nazista do Homus, por causa do Nazista da Sopa do seriado televisivo Seinfeld.) Mas eu preferia meu fawal do Hamra: Abu Hadi. Descendo o emaranhado de ruas laterais entre a Hamra e a Bliss, em frente ao Açougue Moderne, entre o antigo teatro pornô e o verdureiro muçulmano devoto, ficava a frente estreita da loja de Bassam Badran, agora conhecido como Abu Hadi — em minha opinião, o melhor fawal do Hamra, e possivelmente de toda Beirute. Ele se autodenominava Malik al-Foul, O Rei Fava. Abu Hadi tinha um rosto de galgo, a barba por fazer e grandes olhos castanhos cheios daquela expressão materna que os bons cozinheiros têm — sempre preocupado com uma panela prestes a ferver ou com cliente que precisa ser alimentado. Nascido em Damasco em 1969, trabalhou como cabeleireiro até que uma lesão no braço o inspirou a transformar seu amor pela comida em meio de vida. — Em casa, não deixo minha mãe cozinhar — disse-me certa vez. — Na minha família, todos esperam que eu chegue em casa, porque eles gostam de comer comigo e de experimentar o que faço. E então ele usou uma das Intraduzíveis: ana bshaheeyun, desperto seus apetites, ou nesse caso algo como “sinto tanto prazer em comer que as pessoas ficam com água na boca só de me ver”. Ver Abu Hadi cozinhar sempre me dava essa sensação. A frente estreita de sua loja estava muitas vezes cheia de gente, a maioria homens, esperando com cobiça por suas favas ou saboreando-as nas duas pequenas mesas em frente ao balcão onde ele ficava. Abu Hadi estava sempre virando omeletes numa pequena frigideira, misturando homus em sua Moulinex antiga, mandando o ajudante comprar carne no açougue Moderne do outro lado da rua e embalando as favas dos clientes com um prato de hortelã,

tomates, cebolinha-verde, pimentões vermelhos, picles, azeitonas e pão. Ele fazia toda a variedade de pratos que se espera de um bom fawal: foul, homus e homus com carne; msabbaha, “o nadador”, grãos-debico inteiros banhados em molho de tahini com limão e alho; balila, “o molhado”, grãos-de-bico inteiros misturados com alho, sal e cominho. Mas meu favorito era o fattet homus, um dos muitos excelentes pratos árabes que são servidos com pão dormido. Ele amassava um dente de alho com uma pasta numa tigela com sal, misturava uma concha generosa de grãos-de-bico cozidos macios da ânfora de bronze fervente sobre o fogareiro de duas bocas e jogava a mistura numa embalagem para viagem quase num mesmo movimento. De alguma forma, simultaneamente, como uma deusa hindu com vários braços, ele batia tahini e iogurte e cobria as favas com o molho. Ele jogava uma panela de alumínio escurecida em outra boca do fogão, colocava metade de um tablete de manteiga, alcançava embaixo do balcão um pouco de pinhão e um punhado de migalhas de pão árabe seco e os colocava para cozinhar na manteiga quente. Quando ficavam de cor caramelo, ele os jogava em cima do iogurte, onde se formava uma calda amanteigada, e polvilhava a paisagem com uma pitada de hortelã seca, cominho e páprica: uma cadeia de montanhas em miniatura, montes afiados de pão dourado crocante, vales cheios de manteiga, nevados com iogurte branco cobertos de verde, marrom e vermelho-escuro. — Só uso os melhores ingredientes em meu fatteh — disse-me Abu Hadi certa vez, e para provar ele levantou um tonel de plástico de iogurte Taanayel e uma embalagem de alumínio de manteiga Lurpak. Mas ele não precisava provar nada. Eu sentia tudo isso em meu fatteh. Depois de um café da manhã com fatteh ou foul estava pronta para qualquer coisa, mesmo para o Abu Ibrahim. Eu subia de novo a Makdisi, passava pela Book Sale, a livraria com pôsteres de Stálin, Marx, Che Guevara e Hugo Chávez na janela, e parava na Smith’s, o famoso mercado que tinha ficado aberto durante a guerra civil, para comprar vegetais e outros itens básicos. Descendo uma quadra na Makdisi, virando à direita na rua Gandhi estaria no Abu Ibrahim, o khadarji, ou verdureiro, que vendia as frutas e os vegetais mais frescos. Abu Ibraim nasceu Mohamad Ali Sadi Gul em 1953 em Mardani, Turquia — “o país mais lindo, as melhores montanhas, os melhores prédios, as melhores ruas”. Seus pais morreram quando ele tinha apenas nove anos. Então ele foi para o Líbano para ficar perto do avô, mais um dos cerca de centenas de milhares de curdos que migraram para o Líbano durante o século XX. Agora ele possuía um negócio promissor: uma pequena caverna ao lado de um prédio, cheia de abobrinha, berinjela, alface, tomate e qualquer fruta que estivesse na época. Ele empilhava caixas de salsa, hortelã, alface romana e coentro na calçada, enchendo todo o pavimento como uma onda verde. Clientes se agrupavam ao redor dele, pechinchando, amofinando-se e acotovelando-se por sua atenção. Ele pesava as compras na balança de metal com pesos de ferro octogonais em um dos braços. Andava pela calçada gritando com voz rouca com seus filhos, que o ajudavam a vender os vegetais. Ele tinha 26, me disse uma vez: “26”, contou-me, com o queixo eriçado, “da mesma mulher!”. Um homem pálido e careca parado atrás dele com uma cabeça de alface revirou os olhos e bufou em descrença. Mas eu acreditava em Abu Ibrahim: ele era forte como uma velha árvore, e eu conseguia imaginar que tivesse uma mulher ainda mais forte que ele. Coloquei minhas sacolas de compras no chão. Era época de abacates e havia uma caixa deles na calçada. Passei as mãos nas cascas reptilianas brilhantes e sonhei com cheesecake de abacate. Enquanto isso Abu Ibrahim vasculhava minhas compras. — O que é isso? — rugiu. Levantei e vi o filho de Abu Ibrahim esvaziando minhas sacolas de compras do Smith’s. O próprio Abu Ibrahim estava segurando meu pacote de verduras. Estava marcado 1.250 libras libanesas, que é menos de um dólar.

— Alface a 1.250 libras! — uivou ele, como se fosse ele quem estivesse sendo assaltado. — Eu vendo por muito menos! Tomates então! Vendo por menos! Uma idosa olhou do balcão das berinjelas e franziu a testa para mim por cima dos óculos. Os homens que conversavam do outro lado da rua Mahatma Gandhi, em frente a um prédio em que diziam que as prostitutas marroquinas viviam, assistiam com interesse. — Essa alface é especial. O tomate também — protestei em árabe murcho. — Sem coisa ruim. — Não sabia a palavra em árabe para “orgânico” ou “sem agrotóxico”. Eu definitivamente não sabia a palavra árabe para “projetos agrícolas patrocinados pela comunidade que beneficiam pequenos agricultores”. — Por que está pagando esses preços? — berrava ele. — Por que compra verduras desses ladrões? Você devia comprar de mim! Eu não podia culpar Abu Ibrahim: ele só estava tentando proteger seu monopólio. O Líbano era uma nação de monopólios, um país fundado por banqueiros e comerciantes, onde as leis garantiam o direito de vender produtos estrangeiros a apenas um comerciante. Se comprasse chá Lipton, queijo Kraft ou chocolate Lindt, estaria comprando da mesma família, porque ninguém mais tinha o direito de importar esses produtos. (Hariri tinha tentado abolir a lei da exclusividade, mas nem ele conseguiu vencer os oligopólios que dirigiam o país desde sua fundação.) Meu outro khadariji local explicava assim: — Se quiser comprar batatas, tenho que ir a alguém da família X, porque é quem controla todas as batatas. Ele vai a Bekka Valley, onde as batatas são cultivadas, e diz ao fazendeiro: “Aqui está o dinheiro, cultive suas colheitas e quando elas estiverem boas, venda-as para mim.” E o pobre homem fica em dívida com ele; o que ele pode fazer? Ele deu um suspiro pesado. — Todo o Oriente Médio é assim. O mundo inteiro é assim! Em janeiro de 2005, Mohamad foi para o Iraque cobrir as históricas eleições parlamentares. Fiquei em Beirute e marquei com corretores imobiliários e simsars, os reparadores do bairro que agiam como corretores informais. Marquei até mesmo com o responsável pelos aluguéis do Solidère, que deixou claro que preferia alugar para milionários do Golfo que para libaneses expatriados e suas esposas estrangeiras. Mas ele admitiu, relutante, ter alguns apartamentos vagos. Se voltássemos na segunda seguinte, talvez pudesse nos deixar olhar alguns deles. Domingo, Mohamad voltou do Iraque, exausto mas vibrante com a alegria dos iraquianos em sua primeira eleição real em décadas. Segunda dormimos até tarde. Fui à sacada e assisti à luz do sol do meiodia brincar na confusão em zigue-zague das parabólicas e das antenas enferrujadas. Imaginei como seria ter nosso apartamento, como seria se nos estabelecêssemos em Beirute depois das andanças do último ano e meio. Talvez tivéssemos uma gaiola com canários na sacada, como as pessoas faziam em Beirute, e plantássemos hibiscos e buganvílias, nossa contribuição para a rede de jardins suspensos no ar. Eu plantaria tomates em grandes baldes. De repente uma explosão trovejou pela cidade. Pombos assustados encheram os ares. — Mohamad! — corri para o quarto escuro e sacudi seus ombros. — Querido, você ouviu isso? Foi uma explosão enorme! Acho que foi um carro-bomba! Ele reclamou como todo homem faz quando o acordamos. Se havia ouvido alguma coisa, absorvera em seus sonhos. Chacoalhei-o de novo. — Por que você me acordou? — gemeu ele. — Foi um carro-bomba! — Annia, você acha que qualquer coisa é um carro-bomba — disse ele. — Foi só o escapamento de um

caminhão. Vou voltar a dormir. Voltei para a sacada. Sete andares abaixo, um carro solitário descia silenciosamente a rua Hamra. A Jeanne D’Arc, normalmente cheia de carros buzinando ao meio-dia, estava vazia. Um homem corria pela calçada gritando roucamente. Fui para o outro lado da sacada, que ficava de frente para as montanhas e o Mediterrâneo. Além dos telhados distantes, entre nossa sacada e a seda ondulada do mar, uma nuvem preta de fumaça começou a subir.

17 A REVOLUÇÃO VERDE

NO DIA 14 DE FEVEREIRO DE 2005, um caminhão-bomba com uma tonelada de explosivos passou pela carreata blindada de Rafik Hariri, que dirigia pela Corniche. Soldados e policiais estavam reunidos em volta da enorme cratera que a bomba abriu na estrada. Equipes de resgate arrastavam corpos carbonizados para fora de carros em chamas. No canal Future, a apresentadora chorava ao anunciar que Hariri, o antigo primeiro-ministro bilionário e dono do canal de televisão, estava morto. Multidões raivosas se reuniram em frente à mansão de Hariri, perto de Berkeley, gritando palavras de ordem antissírias. Do lado de fora do hospital para onde as vítimas eram levadas, mulheres abaladas choravam e se abraçavam. Algumas horas depois da bomba, políticos opositores se reuniram na casa de Hariri e redigiram uma declaração acusando o regime sírio e o governo pró-Síria do Líbano pela morte do político. Peguei um motorista de servees para me levar ao centro naquela noite. Ruas normalmente cheias de carros estavam vazias, com apenas alguns táxis. Marchas intermitentes de jovens em ciclomotores agitando fotos do magnata assassinado rugiam pela cidade escura. No Zuzaq al-Blatt, um bairro histórico com construções das eras francesa e otomana, eles haviam quebrado as vitrines de algumas lojas que permaneceram abertas. O vidro brilhava nas calçadas. Os restaurantes no centro estavam às escuras, o preço fixo de duzentos dólares pelo jantar especial de Dia dos Namorados fora esquecido. Em questão de horas, o bombardeio acabou com o conto de fadas em que quisemos acreditar — que o Líbano tinha se recuperado, que a vida normal voltara, que a guerra tinha terminado. Como muitas, “a guerra civil libanesa” não era um conflito único, tratava-se mais de uma época, um longo crepúsculo de batalhas deflagradas e terminadas imprevisíveis o suficiente para manter os civis num estado de constante ansiedade. Guerras entre Síria, Israel, Irã e outros países aconteciam como uma série de batalhas de gangues de bairro entre milícias fortemente armadas: a Guerra das Montanhas, a Guerra das Bandeiras, a Guerra dos Campos. A maioria dos libaneses que eu conhecia fazia referência à guerra que ocorria todos os dias com um pequeno eufemismo que lembrava a Irlanda do Norte e seus intermináveis “problemas”: chamavam-na de “os acontecimentos”. Para a maioria dos americanos, o momento definitivo do conflito libanês veio em outubro de 1983, quando um agressor suicida bateu um caminhão-bomba no quartel da Marinha dos Estados Unidos perto do aeroporto de Beirute e matou 241 militares. A investigação militar americana concluiu que militantes xiitas haviam planejado o bombardeio. Esses militantes mais tarde se uniriam ao Hezbollah, o grupo cujo nome significa “Partido de Deus”. Em 1989, Hariri ajudou a intermediar uma reunião de cúpula na cidade saudita de Taif, onde havia construído um hotel de luxo para seus patronos reais. Os líderes políticos e da milícia do Líbano assinaram um acordo de paz, mediado pela Arábia Saudita, que redistribuía o poder entre as maiores seitas e instalava o regime sírio (com a bênção da América) como afiançador da paz no Líbano. O fim das brigas e o acordo pós-guerra criaram altas expectativas: cargos no governo seriam distribuídos segundo mérito, não seita. Uma legislatura bicameral seria formada. Tropas sírias, que estavam no Líbano quase ininterruptamente desde 1976, iriam se reposicionar e, depois de um tempo, partir. No início de 2005, nenhuma dessas coisas

havia acontecido, as tropas sírias continuavam no país e a pequena oposição antissíria começava a crescer. Hariri nunca se uniu oficialmente à oposição, mas planejava conduzir uma chapa independente nas próximas eleições parlamentares. Representantes da oposição acreditavam que o regime sírio havia matado Hariri para impedir que ele desafiasse seu domínio sobre o Líbano. A família de Hariri decidiu enterrá-lo no centro da cidade. Colocaram a tenda de seu funeral entre a Virgin Megastore e uma mesgamesquita que ele havia construído à beira da praça dos Mártires, a enorme área aberta que ficava a uma breve caminhada ao leste de Sahat al-Nijmeh. Durante a Primeira Guerra Mundial, quando o país foi torturado pela fome, o governante militar otomano Jamal Pasha (conhecido no Líbano como O Açougueiro) executou publicamente nacionalistas libaneses naquela praça. Havia sido um local de encontro popular, com cinemas e cafés, e também uma frente da batalha na guerra civil; depois, um grande espaço vazio onde manifestantes se reuniam. No passado, as forças de segurança do Líbano controladas pela Síria espancaram e deram voz de prisão a manifestantes naquela praça. Mas eles não podiam impedir que as pessoas se reunissem ali, agora que era um túmulo. A procissão do funeral atraiu milhares, e a praça dos Mártires se tornou um local de reunião dos enlutados. Uma semana após o assassinato, a oposição organizou uma demonstração massiva. Nada de galhardetes do partido nem de cartazes de líderes cultos, só bandeiras libanesas. Funcionários de agências de publicidade globais lançaram uma marca: um esquema de cores vermelho e branco e a palavra “Independência” em inglês, árabe e francês. Milhares de manifestantes marcharam em direção ao centro segurando faixas: “PAREM A SÍRIA.” “FORA SÍRIA.” “VERDADE, LIBERDADE, INDEPENDÊNCIA.” Um enorme cartaz dizia simplesmente, em letras em negrito gigantes: “Socorro.” Quando a multidão chegou à praça dos Mártires, montaram uma tenda e juraram ficar lá até que o governo caísse e as tropas sírias deixassem o Líbano. Nos meses seguintes, o centro de Beirute foi palco de algo entre uma vigília e uma rave. Dinheiro, pôsteres, bandeiras e comida eram enviados por partidos políticos. Adolescentes montavam tendas com estacas enfiadas na terra. Homens de meia-idade em ternos sob medida andavam por lá segurando sacolas do Patchi, chocolatier exclusivo, distribuindo mastros para bandeiras. À noite, cantores e mestres de cerimônia gritavam discursos de cima de um palco enorme. Centenas de pessoas andavam pela praça, a maioria jovens em suas melhores roupas, pavoneando-se e embonecando-se como alegres ratos de shopping revolucionários. Os libaneses chamaram essa revolução pacífica de Intifada da Independência. O governo Bush declarou-a a Revolução do Cedro. Especialistas americanos diziam que aquela era a prova de que o Iraque tinha valido a pena: as eleições naquele país tinham despertado uma “primavera árabe”, uma onda de democracia que varreria a região, começando por Beirute. Naquela primavera, Mohamad e eu passamos a maior parte de nossas noites no centro. Jantar no centro se tornou um ritual: jantávamos no Al-Balad, um restaurante pertinho de Sahat al-Nijmeh que servia comida do interior do Líbano, e então andávamos pelo centro conversando com os jovens que lotavam a praça. Eles estavam animados por fazer parte de um movimento de massa; falavam ansiosos sobre jogar fora anos de um governo sírio humilhante. A maioria acreditava que quando os sírios partissem todos os problemas políticos e econômicos do Líbano acabariam também. Na época eu estava começando a perceber o veio profundo de depressão que corria por Beirute, mesmo entre aqueles que eram jovens o suficiente para não ter assistido à maior parte da guerra civil. O Líbano era especialmente cruel com sua juventude: cerca de um terço dos libaneses com ensino superior precisava migrar para outros países para encontrar salários que correspondessem a suas qualificações e custeassem o alto preço de viver em seu próprio país. Zuhair Al-Jezairy, o jornalista iraquiano que passou parte de seu exílio no Líbano, descrevia o Líbano e sua situação com pesar como “não tanto um país para suas crianças quanto um ponto de partida para seu exílio futuro”.

A renda de libaneses que trabalhavam em outros países constituía quase um quarto do PIB do Líbano. Mas os jovens forçados a deixar o país para manter a economia funcionando não podiam nem mesmo votar dos países em que trabalhavam. Isso era produto do sistema político feudal do Líbano: o parlamento ainda tinha muitos zaeems, chefes de clãs que recebiam o poder como herança e depois passavam suas cadeiras para filhos e sobrinhos. O resultado era uma legislatura na qual muitos membros, como um grupo pelo bom governo do Líbano certa vez definiu secamente: “não tinham experiência em elaborar leis.” Uma nova classe de caudilhos havia ascendido durante a guerra civil, líderes de milícia ou militares de origem humilde, e, se eram diferentes, eram mais corruptos que os zaeems hereditários. Quando a intifada já tinha alguns meses, Rebecca veio nos visitar. Seu irmão Rudy passara a maior parte da primavera acampado na praça dos Mártires, mas ela tinha perdido a revolução — ainda estava trabalhando em Bagdá, uma das muitas jovens libanesas ganhando mais dinheiro fora do que jamais ganharia no próprio país. Fomos jantar no centro e conversamos sobre as eleições do parlamento que aconteceriam em maio e junho. Rebecca era de Bikfaya, a cidade natal do líder miliciano cristão Bashir Gemayel, assassinado em 1982, e sua família sempre havia sido leal à dinastia Gemayel. Porém, naquela primavera, enquanto o Líbano se preparava para suas primeiras eleições pós-guerra livre da dominância síria, ela começou a questionar a lógica da liderança hereditária. — Por que sempre tem que haver um zaeem ou o filho de umzaeem para concorrer ao parlamento? — perguntou Rebecca enquanto comíamos quibe e tabule no Balad. — Por que não eu? Todo fim de semana, Mohamad e eu íamos à casa de Umm e Abu Hassane para uma refeição caseira. Os jantares eram no centro. Os almoços eram em dahiyeh, um percurso de quinze minutos (em dia bom) e um mundo de distância da praça dos Mártires. Ir a dahiyeh era como voltar no tempo. Contratávamos um servees, os velhos táxis em ruínas que andavam por Beirute acionando suas buzinas para pedestres desatentos e fazendo lotadas a um dólar por passageiro. Enquanto subíamos a rua Bishara al-Khoury, pela velha Linha Verde, o centro e suas boates iam se distanciando atrás de nós. As construções roídas pelas traças da guerra civil, os atiradores e homens de milícia de Beirute apareciam à frente. No final do percurso, passando pelo jardim de pinheiros cercado e pelo hipódromo murado, sob o outdoor gigante pintado a mão de Musa al-Sadr, um líder xiita que desapareceu nos anos 1970, entrávamos em dahiyeh. Literalmente, dahiyeh significa “subúrbio”. Mas com o tempo, em Beirute, a palavra se tornou uma abreviação para a constelação de municipalidades — Haret Hreik, Tayuneh e Shiyah — passando os limites da cidade. Nos anos 1940, um planejador urbano francês concebeu os subúrbios de Beirute como uma área espaçosa e distinta onde as famílias da classe alta poderiam criar seus filhos em meio a árvores, jardins e pequenos parques verdes. Infelizmente, o francês bem-intencionado não previu os levantes demográficos que viriam com a Segunda Guerra Mundial. A economia do sul do Líbano dependia quase completamente do comércio com cidades palestinas como Haifa e Acre. Em 1948, depois da criação de Israel a guerra estourou, moradores do sul foram isolados de seus principais mercados e a economia da região entrou em colapso. Durante a segunda metade do século XX, migraram para Beirute e seus arredores — entre eles, no final dos anos 1950, estavam os pais de Mohamad. Em março de 1978, depois de uma série de ataques de guerrilheiros palestinos ao norte de Israel, os militares israelenses invadiram o sul do Líbano e montaram uma buffer zone administrada principalmente por cristãos libaneses. Mais xiitas libaneses migraram para os arredores de Beirute, juntando-se aos milhares já deslocados do sul, e no início do século XXI uma população que havia sido 88% rural em 1950 tinha revertido sua demografia quase completamente e se tornado 87% urbana. No início dos anos 2000,

dahiyeh era o lar de cerca de meio milhão de pessoas, muitas delas xiitas do sul. A área era controlada pelo Hezbollah, a milícia xiita apoiada pelo Irã que surgira durante e guerra e se tornara um dos partidos políticos mais poderosos do Líbano. E também um aliado da Síria. Quinze anos após o fim da guerra, o governo havia reconstruído muito pouco dos subúrbios de Beirute. A área ainda ficava sem eletricidade durante oito ou até dez horas por dia, porque a companhia elétrica do Líbano não conseguia suprir a demanda da população. As torneiras de água secavam durante semanas nos meses mais quentes do verão. Não era só em dahiyeh que havia escassez — amigos que moravam em outros subúrbios tinham o mesmo problema —, mas era pior lá. Eu estava curiosa para descobrir se a intifada inspiraria as pessoas em dahiyeh a tirar seus líderes corruptos do poder — se, tendo mandado embora os soberanos da Síria, o Líbano finalmente elegeria políticos que cuidassem de atender a necessidades básicas, como água e eletricidade. — Umm Hassane, a senhora vai votar? — perguntei durante um de nossos almoços. — Por que eu deveria? — respondeu ela, largando um prato de abobrinha e folhas de uva recheadas. — Ninguém merece meu voto! Em Bint Jbeil, o vilarejo onde ela havia crescido, os políticos distribuíam pão, carne, verduras e azeite alguns dias antes das eleições. As mulheres do vilarejo passavam os dois ou três dias seguintes fazendo todos os pratos de seu cardápio: quibe, kusa, folhas de uva, maqlubeh e outros. No dia da eleição, todos se reuniam na praça do vilarejo, enchiam-se de comida e votavam pelo zaeem que distribuíra os alimentos. Umm Hassane lembrava-se das eleições com certo cinismo. Mas e aqui em Beirute?, perguntei a ela. Certamente aqui era diferente. Em quem ela votaria? Umm Hassane olhou para mim como se eu fosse louca. Ela vivia em dahiyeh havia quase meio século, mas por conta das leis eleitorais obscuras do Líbano não podia votar lá. Por seu domicílio eleitoral ainda ser em Bint Jbeil, onde nasceu, tinha apenas duas opções: podia passar horas num ônibus quente e cheirando a diesel, chacoalhando até o vilarejo que deixara para trás havia décadas, tudo pelo prazer dúbio de votar em políticos que não a representavam. Ou poderia ficar em casa, passar o dia tirando o miolo de abobrinhas e recheando folhas de uva e acabar fazendo algo útil com o tempo que tinha. Essas situações de escolha de Hobson, de escolha falsa, eram função do sistema de governo “confessional” do Líbano. Enquanto os franceses iam embora em 1943, as elites libanesas colocavam em vigor um acordo não escrito de que o presidente seria sempre um cristão maronita, o primeiro-ministro, um muçulmano sunita e o presidente do parlamento, um muçulmano xiita. As cadeiras parlamentares eram divididas entre dezoito seitas oficialmente reconhecidas (com as menores agrupadas em uma cadeira da “minoria”). Inicialmente, as cadeiras do parlamento foram divididas de acordo com uma proporção de seis para cinco entre cristãos e muçulmanos, com bases no censo de 1932 que mostrava os maronitas como a maioria do Líbano. Nos anos 1960, muçulmanos começaram a superar os cristãos, mas o governo se recusou a realizar um novo censo, e o desejo dos muçulmanos por uma parte proporcional do poder se tornou um dos focos da guerra civil. A ideia por trás do sistema era de que o equilíbrio entre as religiões impediria as maiores seitas de subjugar as menores. Mas ao fazer da religião o elemento básico da cidadania, colocando diferentes seitas numa relação de soma zero umas com as outras, o sistema confessional tornou praticamente impossível que as pessoas não tivessem conflitos religiosos: se os muçulmanos ganhavam uma cadeira, os cristãos tinham que perder. Depois da guerra civil, as cadeiras parlamentares foram redistribuídas igualmente entre cristãos e muçulmanos (uma relação que ainda favorece os cristãos, que agora constituem cerca de um terço da população). O parlamento deveria aprovar uma lei eleitoral “livre de restrições sectárias”, mas nunca o fez e, em 2005, o único censo de que o Líbano dispunha ainda era o de 1932 — por coincidência, o ano em que

Umm Hassane nasceu. Se os libaneses fossem autorizados a votar segundo critérios não baseados em seitas, o círculo corrente de soberanos e zaeems (incluindo os dois maiores partidos xiitas, que tinham muito a ganhar com seu status quo) arriscaria perder seu monopólio de poder. Até aquele dia, Umm Hassane e centenas de milhares de pessoas como ela não tinham permissão de votar na cidade onde moravam, trabalhavam, estudavam, dormiam, faziam compras e pagavam impostos. — A senhora votaria se pudesse votar em Beirute? — perguntei a Umm Hassane. Ela virou de costas para a pia e nos lançou um olhar fulminante. — O que você acha que é isso aqui? — perguntou ela, colocando uma mão no quadril e agitando a outra na direção da pequena cozinha escurecida, a mesa de oleado, a floresta de concreto lá fora. — A América? No dia 8 de março de 2005, o líder do Hezbollah, Sayyid Hassan Nasrallah, organizou um ato massivo no centro de Beirute para “agradecer a Síria” pelo que ela havia feito pelo Líbano. Nasrallah desconfiava de que a oposição antissíria estava prestes a assinar um acordo de paz com Israel — anátema para os xiitas que tinham laços com o sul, onde as memórias da ocupação israelense, que acabou em maio de 2000, ainda eram frescas. Centenas de milhares de partidários do Hezbollah e do Amal, os dois principais partidos xiitas, assim como uma constelação de partidos cristãos e seculares menores, reuniram-se na praça Riad alSolh, do outro lado do centro da cidade tomando-se como referência a praça dos Mártires. No dia 14 de março, um mês após o assassinato de Hariri, a coalizão antissíria respondeu fazendo o próprio comício no centro da cidade. Centenas de milhares de pessoas se reuniram na praça dos Mártires e, assim, o Líbano tinha uma nova falha geológica política. Ambos os lados — aqueles que haviam exigido a saída da Síria e aqueles que haviam se unido a Nasrallah e seus aliados — disseram representar a maioria. Cada lado definia as crenças políticas do outro nos termos mais sombrios possíveis: quem questionasse o movimento antissíria ou seus líderes era um simpatizante de terroristas. Quem criticasse Nasrallah ou seus aliados era lacaio do imperialismo ocidental. Quem achasse que os dois lados mereciam críticas claramente simpatizava com o lado errado, dependendo de com quem estivesse falando, e estava escondendo a lealdade por algum motivo nefasto. Era preciso escolher um lado. Mais ou menos uma semana depois de 14 de março, o khamsin começou a soprar. Toda primavera, o khamsin se levanta no Egito e no deserto da Líbia e sopra sobre Beirute seu bafo quente. O tempo muda da noite para o dia com o khamsin, ou “cinquenta”, devido ao número de dias que dura. É “um vento do mal que não traz nada de bom a ninguém no Oriente Médio”, escreveu a revista Time em 1971, completando que o khamsin pode “enlouquecer os homens”, causar acidentes de carro e aumentar os índices de criminalidade em até 20%. Alguns cientistas e estudiosos da Bíblia acreditam que a nona praga do Egito do Livro do Êxodo — as “trevas que se possam apalpar” — foi um khamsin. Um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém diagnosticou esse misterioso mal-estar como uma superabundância de íons positivos. Os íons deixam os idosos deprimidos e letárgicos, mas provocam o efeito oposto nos jovens, que ficam literalmente supercarregados de energia elétrica positiva. Esses efeitos fisiológicos, segundo a Time, corresponderam aos maus ventos dos outros continentes — o mistral da França, o foehn da Áustria e o lendário Santa Ana da Califórnia, aos quais escritores, de Raymond Chandler a Joan Didion, atribuíram incêndios, assassinatos e suicídios, isso sem contar uma série de metáforas acaloradas. Eu amava o khamsin. O vento fazia com que me sentisse afoita; prometia prazeres e perigos inesperados. Da noite para o dia, a chuva fria do inverno de Beirute se transformava em calor sobrenatural. O ar cheirava a areia. O céu ficava laranja. De repente era hora de trocar os sapatos por sandálias, de sair durante a noite, e as pessoas sacudiam a cabeça e diziam: “É o khamsin, o khamsin!”, com aquele orgulho de saber que as pessoas sempre demonstram diante de eventos que as surpreendem todos os anos. Naquele ano, alguns dias após o início do khamsin, Hassan Abdallah, amigo de Hanan, ligou para nos dizer que tinha

alho verde. O Líbano possuía todo um universo de verdes silvestres comestíveis que marcavam as estações de forma mais confiável que qualquer calendário. As pessoas do interior procuravam por eles nos campos, nas encostas das montanhas e em terrenos baldios. Mercados e khadarjis geralmente não vendiam esses verdes — eram muito incultiváveis, muito efêmeros. No entanto, era possível comprá-los de beduínas que vendiam hortifrúti nas calçadas. Eu comprava de Umm Adnan, que ficava sentada do outro lado da rua do Café Younes; Hassan havia me apresentado a ela assim que nos mudamos para o bairro. Umm Adnan tinha mais ou menos sessenta anos — ela não sabia exatamente sua idade — e ganhava a vida assim havia 25 anos. Acordava todos os dias às quatro da manhã, chegava a seu “ponto” antes das oito e arrumava a loja bem no meio da calçada com grandes sacos de lixo pretos cheios de verdes: hortelã fresca, orégano, salsinha, alface romana, rúcula, beldroega e, com sorte e se estivesse na época, alho verde. A chegada do alho verde era sempre um presente sazonal não programado. As pessoas faziam banquetes improvisados. Amigos se presenteavam com molhos de lanças verdes delgadas e os salteavam com aspargos finos como lápis e funcho silvestre. Ou misturavam com sleeqa, o apanhado de raízes selvagens que as pessoas do campo colhiam na primavera. O alho de Hassan vinha das terras de sua família em Khiam, bastante ao sul, onde ele aparecia mais cedo do que em Beirute. Numa noite quente e de muito vento no final de março, fomos à casa de Hassan para o banquete de verdes do início da primavera. Alguns amigos de Hanan estavam lá, incluindo o grande escritor que eu havia conhecido no Baromètre, em 2003, aquele que parecia o Hemingway. A filha de cinco anos de Hassan corria pelo apartamento rindo. Os brotos de alho verde-claros tinham listras magenta na ponta. Ele os picou e cozinhou na frigideira. Tinha também uma pilha de khubaizeh, uma malva verde e cabeluda que crescia em terrenos baldios, prédios abandonados e pilhas de entulho de construção. Ele picou o khubaizeh e refogou-o no próprio caldo com funcho silvestre e cebolas caramelizadas. O alho verde foi refogado com ovos mexidos, uma forma tradicional mediterrânea de servir vegetais e verduras, e polvilhado com coentro. Encheu um prato com rabanetes, cebolinhas, pimentões verdes e iogurte de leite de cabra. Ele trouxe o alho e o khubaizeh à mesa em pratos grandes, duas montanhas verdes, e distribuiu pedaços de pão árabe. Mergulhamos o pão primeiro no khubaizeh, as folhas murchas ainda grossas e molhadas com um sumo verde-escuro. Por trás de sua camuflagem de funcho, a malva tinha um gosto de erva — de uma folha que a gente imagina girafas ou búfalos mastigando. Então provei os ovos, com seu sopro verde de alho. Alho crescido domina o prato, mas esse era diferente: escondido por trás do cheiro de suor animal do alho havia algo gramíneo e quase doce. — Essa “revolução do cedro” — disse Hassan. Ele estava falando em árabe, mas reproduziu o neologismo do governo Bush num inglês com sotaque americano sarcástico. — Isso tudo é só mais propaganda. Nada vai ser diferente no fim. Até agora, nada mudou. Curiosamente foi o grande escritor, de quem eu lembrava como o mais cínico dos amigos de Hanan, que respondeu: — Non, ça bouge, ça bouge — disse ele, mexendo a cabeça enorme com lentidão de um lado ao outro. — Está caminhando. As coisas estão mudando enfim.

18 MORTE EM BEIRUTE

SUPONHO QUE ACONTECERIA MAIS CEDO ou mais tarde. Não evitamos de propósito; era só mais uma das coisas que estávamos sempre adiando. Em março, tivemos que cobrir a revolta pela independência. Em abril, houve a retirada histórica das tropas sírias do Líbano. Maio e junho trouxeram as eleições parlamentares. Então, num dia doce de julho, quando fomos à casa dos pais de Mohamad almoçar, quatorze séculos de tradição finalmente nos alcançaram. — Maal asaf, não posso beijar você no rosto — disse Abu Hassane parado à porta, trêmulo. — É haraam eu beijar você no rosto. Ninguém sabe realmente o que aconteceu — se ele decidiu isso sozinho, o que acho improvável, ou se algum parente o convenceu (eu suspeitava de Hajj Naji). De qualquer forma, Abu Hassane acreditava que porque Mohamad e eu não tínhamos feito um katab al-kitaab, não estávamos “casados de verdade”. Então eu não era oficialmente parte da família; sendo assim, não era permitido que ele me desse um beijo de boasvindas no rosto quando eu ia a sua casa para nossos almoços semanais. — Eu quero — disse ele, angustiado —, mas não posso… não é certo. Abu Hassane não era sempre assim tão religioso. Mas conforme envelhecia, viciou-se em preocupação. Ele se preocupava com sua saúde, com a situação política; ele se preocupava, o que era bastante sensato, com o fato de Mohamad ir para o Iraque. Ele se preocupava com morrer e ir para o inferno. O Líbano era uma nação de preocupados. Durante a guerra civil, a dieta irregular e constante de explosões, assassinatos e sequestros fizeram com que as pessoas recorressem a tranquilizantes, antidepressivos, haxixe do Bekaa Valley… qualquer coisa que aliviasse o estresse. Quinze anos depois, as pessoas ainda tomavam Xanax e Valium como se fossem aspirinas. A maioria das pessoas que conheci confessou estar mdepress, uma arabização da palavra que todos conhecemos. Médicos super-receitavam tudo, e mesmo que não o fizessem pacientes se supermedicavam de qualquer forma. Na extremidade da mesa de jantar, Abu Hassane mantinha um pequeno santuário para os deuses da mesquita e da farmácia. Um pequeno Corão verde e dourado; um pequeno tapete de oração de veludo, para orar à mesa, agora que já estava muito enrijecido para orar no chão; um qurus, pequeno amuleto feito de argila de Karbala, que os xiitas usam para orar; e potes Tupperware com remédios para todos os males físicos e espirituais da idade avançada — gastrite, insônia, infecção — cuidadosamente separados. Muito depois que a doença havia desaparecido, ele continuava a tomar os remédios esperando adiar o inevitável. Seus olhos estavam mais fundos naqueles dias, o andar mais difícil. Sua pele, de um rosa pálido e ceroso, se esticava sobre os ossos de seu rosto. Sua voz era como um carro tentando pegar no meio do inverno. Conforme o corpo enfraquecia, ele depositava sua fé na profilaxia espiritual como uma segunda Hajj para exorcizar os pecados cometidos desde a anterior. (Por estar muito frágil para enfrentar as multidões, sua Hajj seria feita por procuração, a um custo de 5 mil dólares, pelo subordinado de qualquer clérigo que realizasse o serviço, mas no final ele decidiu não fazer assim.) Certificar-se de que nos casássemos “de verdade” era mais um tranquilizante da alma, uma última tentativa desesperada contra a doença, a morte e ir para o inferno.

Alguns dias depois, Mohamad apareceu na porta de nosso quarto. Eu estava sentada à escrivaninha, terminando um artigo sobre os males do sistema político sectário do Líbano. — Meu pai me deu isso — disse ele, franzindo a testa, segurando um pedaço de papel mais ou menos do tamanho de um post-it. — Certo… e o que é isso? — É de Hajj Naji. Ele quer que a gente leia. — Por quê? — Para nos casarmos de verdade. — Ah… Lembrei-me da sábia juíza que nos casou em Nova York. “Sabem, Mohamad e Annia, de certa forma, isso é apenas um contrato que vocês estão fazendo”, disse ela. “Mas se realmente fosse apenas um contrato legal, não seria um momento tão incrível da nossa experiência como seres humanos; não seria tão ressonante, tão sacramental.” Escravos não teriam lutado por isso no século XIX; gays e lésbicas não estariam brigando por isso agora. “Então o que”, perguntou ela, “faz dessa cerimônia um sacramento?” Estiquei a mão na direção do pedaço de papel. — Vamos casar — disse eu. — Você acha? Ele me entregou o papel como se estivesse aliviado em se livrar dele. — Por que não? Em pé atrás de mim, Mohamad olhava por sobre meus ombros e nós examinamos o documento juntos. Era um pequeno quadrado de papel branco, do tipo que chamam de “bloco de notas” no Líbano. No topo, estava escrito Anis impressões comerciais. Embaixo, Abu Hassane — provavelmente instruído por Hajj Naji — tinha escrito em árabe: Caso-me com você por um dote no valor de 50 mil dólares americanos, a serem pagos antes do casamento.

Embaixo dizia entre parênteses: (Coloquem a quantia que quiserem.) — Vamos colocar 5 mil dólares — disse Mohamad. — Bela tentativa — disse eu. — Mas acho que mereço pelo menos cem mil. Ele sorriu. Sorri para ele e cruzei os braços. Quando nos mudamos para Beirute, Mohamad me deu umas aulas na arte da negociação. Nunca aceite o preço dado, ele me dissera; sempre abaixe pelo menos 25%, mas de preferência cinquenta. Foi ele quem me ensinou a colocar o queixo sobre o ombro, olhar para cima através dos cílios com uma reprovação tímida e falar suavemente “Ana zbuni indak”, “Sou sua cliente”, uma frase mágica que invocava uma rede de obrigações quase erótica entre comprador e vendedor. Aplicada da maneira certa, as regras da negociação podiam transformar a compra de meio quilo de berinjelas num tango sedutor, uma série de acordos mutuamente coreografados quase como um casamento. Mas não acho que Mohamad teria me ensinado tanto se soubesse que um dia eu acabaria negociando com ele. Ele apertou os olhos, com um sorriso leve. — Não tem valor legal mesmo — ressaltou, ganhando tempo. — Ok — disse eu, dando de ombros, inexpressiva. — Então podemos colocar 150 mil. No Iraque, eu havia passado um dia num tribunal de Bagdá, assistindo a noivas prometerem-se em casamento a noivos por X quilos de ouro, Y dólares americanos, tantos dinares iraquianos, tudo isso escrito

diretamente no contrato matrimonial. Mas algumas noivas renunciavam ao dote de casamento e se casavam por apenas um exemplar do Corão — uma forma de protesto, um amigo me disse mais tarde, contra serem vendidas como um saco de batatas. Eu considerava preocupante o mercantilismo sem disfarces das cerimônias de casamento islâmicas: a transação era o contrato matrimonial. Mas tinha que admitir que havia certa qualidade na honestidade — reconhecia-se a verdade confusa, uma verdade que todos tentamos evitar, de que o casamento é um daqueles lugares em que o amor e a economia colidem. Era exatamente essa natureza contratual que iraquianas como a dra. Salama valorizavam. Você pode colocar o que quiser no contrato, ela me disse certa vez: custódia, direitos de propriedade, divórcio. Isso dava às mulheres algum poder — pelo menos em teoria, porque, como em um acordo pré-nupcial, o que consta no contrato em primeiro lugar depende de quem detém a vantagem. Por acaso, Kanye West havia acabado de lançar sua nova canção, “Gold Digger”, e eu estava com ela na cabeça. “’Holler ‘we want pre-nup!” Eu provocava Mohamad. “’Cause when she leave your ass/ She gonna leave with half!”* Ele ria, hesitava. Eu pressionava com minha vantagem. — Não vou por menos de 75 mil… e essa é minha última oferta — disse eu, colocando o pedaço de papel sobre a escrivaninha, recostando-me na cadeira, apoiando meus pés sobre a escrivaninha e cruzando novamente os braços. — Você quer que eu leia isso ou não? Essa foi a lição mais importante de todas, a que ele tinha martelado: sempre vá embora. Quando você vai embora — o ideal seria sair rápido, indignada, depois de uma discussão sobre o preço —, eles chamam por você com ofertas frenéticas de preços mais baixos. Sempre funciona. No comércio, como no romance, eles não sabem quanto precisam de você até que você prove que não precisa deles. — Ok, tudo bem, 75 mil — disse ele, rindo. — Você vale a pena. Mas não tem valor legal. Como boa leitora, li o papel. — Caso-me com você — disse eu, no tom mais ameaçador que consegui, enquanto tentava não rir — pela quantia de 75 mil. — Eu aceito — disse ele. E assim estávamos casados. Não precisávamos nem de testemunha; eles facilitam as coisas o máximo que podem. Nossa cerimônia xiita forçada significava que estávamos “realmente” casados aos olhos de Deus. Se falávamos sério ou não, ou se isso importa no final, deixo a questão para os deuses e os advogados. No dia seguinte, fomos ao apartamento dos pais de Mohamad comer mlukhieh. Abu Hassane foi até a porta de chinelos. Ele olhou para nós por sobre os ombros de Umm Hassane, seu rosto pálido e ansioso flutuando na escuridão do corredor. — Vocês leram? — perguntou. — Lemos — disse Mohamad. — Ah! Estou tão feliz! — disse Abu Hassane, abrindo um sorriso desdentado. Endireitando-se, ele colocou uma mão no coração. — Estou muito feliz porque agora posso beijar você — continuou, ainda radiante. Beijou meu rosto três vezes e nos sentamos à mesa, cercados de sacramentos e medicamentos receitados, para comer mlukhieh. O dia seguinte estava quente e úmido. Apesar das objeções extenuantes da esposa, Abu Hassane foi até a farmácia do bairro comprar alguns remédios. Ele caiu do lado de fora da farmácia e bateu a cabeça na calçada. O farmacêutico chamou uma ambulância, que o levou para o hospital, mas, apesar de estar consciente, não conseguia falar. Alguns dias depois, entrou em coma. Mohamad e eu passamos as semanas seguintes no hospital, com um elenco de tias e tios, primos,

amigos e parentes distantes em circulação constante. Certa noite, Mohamad veio para casa tão nervoso que mal conseguia falar. Ele havia passado o dia todo lidando com a burocracia da saúde no Líbano: Abu Hassane possuía o plano de saúde do Estado e como o governo libanês não pagava suas contas os melhores hospitais não o aceitavam. Quando Mohamad finalmente chegou ao hospital, um primo distante foi até ele e disse: — Eu estava aqui no hospital de manhã e você não. Onde você estava? Para o primo hipócrita, a breve ausência de Mohamad provava que ele era um mau filho e dava motivo para fofoca — exatamente o tipo de fofoca tóxica de família que fez com que nossa cerimônia do post-it fosse necessária. — Agora sei por que esse país é tão bagunçado — vociferou ele. — Porque passamos o tempo todo fazendo coisas inúteis e estúpidas só para que as pessoas não nos critiquem. Por que temos que fazer todas essas coisas estúpidas? Passei a mão na cama e segurei o cobertor para que ele se deitasse. — Mas a maior parte da sua família é agradável — comentei. — E é por isso que os libaneses que moram em outros países fazem muito mais coisas — disse ele, deitando-se, ainda furioso. — Porque ficam livres do jugo de suas famílias! Todos os nossos jovens amigos libaneses enfrentavam o mesmo problema. Amavam suas famílias, suas tradições. Mas a “tradição”, nas mãos de certos parentes, tornou-se uma forma virulenta de chantagem emocional. Tias e tios ligavam para seus irmãos e insinuavam que eram maus pais se um filho ou filha não se casasse. Primos competitivos atacavam uns aos outros com insinuações maldosas. E um número assustador de famílias — tanto cristãs quanto muçulmanas, na minha experiência — bania filhos ou filhas que se atreviam a se apaixonar por pessoas que não fossem de sua religião. Não havia como escapar do schadenfreude maligno dos parentes. Abracei-o. Desde o colapso do pai, Mohamad tinha um ataque de raiva a cada noite: com parentes intrometidos, com o sistema de saúde estatal, com o Líbano. Tudo perfeitamente válido, mas tudo desviando da questão maior, que era o fato de seu pai estar morrendo. Três semanas depois do acidente, Abu Hassane morreu. O apartamento em Tayuneh foi organizado para as condolências, o período de luto tradicional em que as pessoas visitavam a família para prestar respeito. Os sofás e as poltronas foram tirados da sala, onde foram colocadas então dúzias de cadeiras de metal dobráveis para abrir espaço para o fluxo de parentes, amigos de parentes e parentes de amigos. Uma mulher baixinha foi contratada para canalizar a circulação incessante de café e chá em pequenas xícaras que ela distribuía sem parar em bandejas. Primos distantes ficavam horas sentados na sala. Alguns choravam, enquanto outros murmuravam condolências e olhavam tristes para o chão. Tios e tias fofocavam sobre quem mais estava doente. Ninguém trazia travessas de comidas de qualquer tipo, o que eu não conseguia entender. Por que ninguém estava dando comida para essas pessoas? Um idoso apareceu de terno preto e velho e começou a ler versos do Corão. Ninguém sabia quem ele era. Finalmente alguém pagou a ele 5 mil liras para que fosse embora. Depois descobrimos que havia toda uma classe de enlutados freelancers, idosos que vasculhavam os obituários, iam às condolências de completos desconhecidos e ficavam lá até que fossem pagos — um tipo de flanelinhas do luto. Hajj Naji contratou um cantor de funeral para cantar uma majlis taziyeh, a canção do luto baseada na encenação da paixão da morte de Imame Hussein, uma tradição das condolências xiitas. O cantor era um jovem alto e sério com bochechas rosadas e uma barba irregular preta. Usava um dishdasha branco longo e carregava um caraoquê. Isso mesmo, ele ligou o aparelho, conectou o microfone e começou a cantar. Então parou, arrumou a reverberação e começou de novo. A narrativa de Karbala trovejou para fora da sala de

estar e ecoou pelas janelas em longos lamentos de caraoquê. Ele pontuava a melodia com soluços longos e tremidos fazendo parecer que uma força poderosa arrancava as notas das profundezas de seu corpo. Senti uma inundação em meu peito, mas não queria chorar, e Mohamad também não; era público demais, teatral demais. A tristeza ficou presa no interior, alimentando um reservatório de lágrimas em espera. Finalmente a maré de enlutados recuou. Mohamad e eu estávamos sozinhos no apartamento vazio com Umm Hassane, Hanan, Hassan e diversas dúzias de cadeiras dobráveis vazias. Alguém comprou um frango assado; tiramos os pedaços com os dedos, mergulhando-os em molho de alho e comendo com picles e pedaços de marquq, pão fino como papel. A mulher do café atirou-se numa cadeira dobrável e caiu violentamente no sono, roncando, com a cabeça para trás, revelando uma boca completamente desdentada. Limpamos a mesa, fizemos chá, trouxemos café e Hassan falou comigo em nossa bagunça costumeira de árabe, inglês e francês. — Você vem para Bint Jbeil? — perguntou fazendo que sim com a cabeça, para me encorajar. Haveria um velório no dia seguinte na vila ancestral da família e todos os parentes iriam. — Não sei — respondi. — Não tenho certeza se Mohamad quer que eu vá. Isso foi um eufemismo. “Não acho que você deva ir” foi o que ele me dissera na noite anterior. “Acho que você vai se sentir deslocada.” Isso descrevia mais os sentimentos dele do que os meus, mas não chamei sua atenção para isso. — Acho que ele está com receio de ter que ficar traduzindo para mim — disse a Hassan, mudando para o francês. — Acho que essas reuniões de família são difíceis para ele. Acho que não é fácil para ele ficar mudando constantemente entre os dois mundos, as duas línguas. Ele fica cansado. Então quero ir, mas não quero fatigá-lo. Hassan concordou com a cabeça. Depois que seu pai morreu, ele insistiu em distribuir dinheiro aos pobres, de acordo com a tradição islâmica; mas alguns meses antes também nos trouxera uma garrafa de Saint-Émilion da França. Se isso era uma contradição, ele parecia conciliar com uma graça que eu admirava exatamente por não ser natural. Orbitar constantemente entre línguas e mundos era difícil, e eu percebia que isso exigia muito dele, mas ele fazia mesmo assim. — Entendo o que você quer dizer — respondeu. — Era difícil para mim também quando me casei com Annemarie. Mas você vai se acostumar com isso; ele vai se acostumar com isso. Vou conversar com ele. Você deveria vir conosco. Saímos de Beirute sob o olhar sereno de Nabih Berri, no fim da Raousheh, num outdoor que até recentemente havia sido ocupado pelo presidente sírio. Berri nos acompanhou até o sul, em várias poses heroicas — Berri descansando o queixo numa das mãos e olhando pensativo para longe; Berri num abraço político viril com o líder do Hezbollah Hassan Nasrallah; Berri chacoalhando um dedo no ar; Berri cerrando o punho e parecendo um sabichão de óculos escuros pretos. Ele era o líder do Amal, o presidente do parlamento e um dos políticos mais poderosos e corruptos do Líbano — o poderoso chefão dos xiitas. O Amal havia começado como braço armado do Movimento dos Desapossados, um grupo de direitos civis fundado em 1975 pelo clérigo visionário iraniano Musa al-Sadr. Os xiitas estavam começando a emergir das condições feudais de trabalhadores rurais ou meeiros, os fallahen, e o movimento de Sadr tentava canalizar seu deslocamento em poder político. Porém, em 1978, o clérigo desapareceu durante uma visita à Líbia (sua família acredita que ele foi assassinado pelo ditador líbio Muammar Kadafi). Quando Sadr desapareceu, seu movimento se fragmentou; os membros mais religiosos depois formariam a espinha dorsal da nova milícia Hezbollah apoiada pelo Irã. O Amal e o Hezbollah eram tecnicamente rivais, mas, com o passar dos anos, aperfeiçoaram uma divisão simbiótica dos prêmios: o Hezbollah ficava com as almas xiitas e o Amal, com suas terras e seu dinheiro.

Certa vez, durante a guerra civil, ladrões invadiram o apartamento de Umm Hassane e levaram todos os móveis. A maioria das pessoas simplesmente daria de ombros, jogaria as mãos para o céu e choraria: “O que podemos fazer? O Líbano é assim.” Mas Umm Hassane foi até o escritório do Amal de seu bairro, com um parente “bem relacionado” que ela intimidou a lhe acompanhar, para reclamar. — Tia, eles não sabiam que era a sua casa — explicou o chefe local. Galante, propôs uma solução: os móveis já estariam longe, mas eles podiam roubar a casa de outra pessoa, alguém que não tivesse wasta, conexões, e dar a ela os móveis da nova vítima. Ela se recusou. Mais perto de Bin Jbeil, a imagem de Berri começou a dar lugar a fotografias retocadas de mártires: guerrilheiros do Hezbollah que haviam morrido lutando contra o exército israelense desde 1978, quando este ocupava uma faixa do sul que incluía Bint Jbeil. Quando os israelenses foram embora em 2000, o Hezbollah plantou lembranças triunfantes da ocupação por toda a cidade. Um tanque israelense enferrujado guardava a entrada para o vilarejo. Pôsteres gigantes de Nasrallah e Berri oscilavam sobre o reservatório de água, esculturas em amarelo-neon de foguetes e granadas de mão foram erguidas. Durante a segunda invasão israelense, em 1982, a família de Mohamad fugiu para Bint Jbeil. Como o exército israelense avançava na direção de Beirute, era mais seguro estar em um local do país que já estivesse ocupado. Eles ficaram com a irmã de Umm Hassane, Nahla, numa bela casa de pedra que tinha mais de cem anos. Agora, 23 anos depois, enquanto íamos de carro para Bint Jbeil, uma discussão teve início dentro do carro: Hanan queria ir direto para o velório, mas Hassan insistia que fôssemos ver tia Nahla primeiro. Eu não conhecia a casa, ele argumentou — “Mais non, ela tem que ver a casa” —, mas na verdade acho que ele mesmo queria visitá-la. Saímos do carro de duas portas alugado e andamos pelas ruas estreitas de pedra da antiga cidade. Passamos por portas de madeira azul-celeste com caligrafia árabe, descemos por uma longa passagem de pedra, vislumbramos topos de árvores maravilhosos escovando o céu sobre os muros e então passamos pelo portão de ferro forjado de estrelas octogonais. Dentro do pátio, o jardim da tia Nahla estava coberto de hibiscos, buganvílias, espirradeiras e gerânios rosa. Orégano crescia em barris enferrujados e latas de azeite. Tomates-cereja derramavam-se sobre a calçada. O pátio era cheio de árvores, galhos pendurados com o peso de laranjas verdes e grandes romãs que estavam começando a ficar com o talo rosado. O muro caiado que cercava o quintal tinha uma pia, com um pedaço de espelho em cima, para fazer ablução e preparar alimentos ao ar livre. Com exceção das buganvílias e espirradeiras, tudo era comestível. Tia Nahla colocava pétalas de hibiscos no zuhurat, a infusão de ervas e flores que as pessoas tomavam quando estavam resfriadas. Fervia folhas de gerânio numa calda delicada para derramar sobre doces e destilava flores amargas de laranjeira numa fragrância para dar sabor a pudins. Derretia as sementes vermelho-escuras de romã em melaço agridoce que dava sabor a seu fattoush. Além do muro, frutas espinhosas projetavam-se de forma obscena na barraca de cáctus; ela descascava, tirando os espinhos, e fervia para fazer geleia. Tia Nahla apareceu mancando para nos receber. Era uma idosa baixinha que usava uma saia preta de poliéster e sapatos ortopédicos. Ela parecia confusa por querermos ver a antiga casa — era só uma casa, nada de especial. Mas conforme Hassan corria de quarto em quarto, dando palestras em cada um deles, ela pareceu ficar orgulhosa, e quando pedi para tirar uma foto, ela começou a ajeitar o lenço de cabeça e ficou protestando por não termos avisado para que tivesse se arrumado melhor. A porta da frente levava diretamente à fresca cozinha azul e verde de tia Nahla. A cozinha era longa e estreita como um pequeno navio. Prateleiras pintadas descansavam sobre suportes de madeira esculpida em arabescos. Um quadro de madeira estava pregado à parede, cheio de ganchos de metal nos quais tia Nahla pendurava potes de iogurte de plástico duro que reutilizava para armazenamento. No cômodo

seguinte, havia um namlieh que ia do teto ao chão, um armário de madeira para manter os alimentos longe das formigas saqueadoras. No teto alto, perto de pequenas janelas projetadas para arejar a casa, ficavam ganchos para pendurar pequenos namliehs do tamanho perfeito para casas de bonecas. — Regarde, Annia! — disse Hassan, mostrando um jarro de barro do balcão da cozinha. O jarro tinha a barriga redonda e o pescoço alongado, com um pequeno bico projetado para o lado e pequenas toalhinhas de crochê cobrindo as aberturas. O ibriq era de um modelo antigo, com o mesmo formato do porrón espanhol; mantinha a água gelada, mesmo no verão, e as pessoas ainda usavam ibriqs para compartilhar água sem tocar o recipiente com os lábios. Segurando-o bem acima da cabeça, Hassan inclinou-o para que a água saísse pelo pequeno bico diretamente para sua boca aberta, como vinho saindo de um odre medieval. Tentei realizar a manobra e acabei com a blusa toda molhada. As antigas casas libanesas eram projetadas tendo em mente a comida. (Às vezes literalmente: sob o jugo dos otomanos, aldeões libaneses construíam paredes falsas em suas casas para esconder seus grãos dos coletores de impostos do império.) A casa da tia Nahla tinha um cômodo para o saaj, um fogão convexo de metal para grelhar pão e uma pedra para moer grãos, e uma sala especial só para preparar e armazenar mouneh. Mouneh vem de mana, “armazenar” ou abastecer; no Líbano pode se referir a qualquer comida estocada para o inverno ou para tempos difíceis — picles, geleia, queijo seco, makdous conservados em azeite de oliva, pasta de tomate seca ao sol, frutas caramelizadas e até carne conservada em gordura. Mas também pode se referir à tradição de preparar a comida; é uma dessas palavras que abrangem todo um modo de vida. Todo verão, e início de outono, tia Nahla e seus vizinhos se reuniam para fazer mouneh. Eles tiravam os espinhos e descascavam os cáctus para preparar conservas. Com as romãs faziam as caldas que davam sabor ao fattoush e ao lahmajin e, às vezes — dependendo de quem estivesse cozinhando —, temperavam carne dentro do quibe qras. Passam um dia fazendo tahweeshet kamouneh, mix de cominho, a mistura de especiarias para moer com quibe nayeh. O da tia Nahla era cheio de flocos de pimenta tão poderosos que bastou respirar e já comecei a espirrar. E as mulheres passavam dois dias preparando zaatar, o pó picante marrom-esverdeado que faziam com sal, sumagre, sementes de gergelim e folhas secas de orégano sírio silvestre (também chamado de zaatar, bastante confuso e universalmente maltraduzido como “tomilho”). Tia Nahla fazia cinco quilos de zaatar todo ano. Guardava meio quilo para ela e levava os outros quatro quilos e meio a Beirute para dar ao resto da família sacos artesanais de musselina de bulgur e mouneh em jarras de vidro. Enquanto moíam as folhas de zaatar e torravam as sementes de gergelim, as moças do povoado bebiam muitas xícaras de café e chá e trocavam muitas fofocas vitais — algumas delas, não tenho dúvidas, sobre o sobrinho Mohamad e sua esposa americana. O velório de Abu Hassane aconteceu na husseinieh de Bint Jbeil, uma sala de reunião xiita que funciona como algo entre uma mesquita e um centro comunitário. O prédio era uma construção achatada e cinza que parecia uma escola suburbana dos anos 1960. Assim que entramos, os homens e as mulheres se separaram. Segui as mulheres até uma sala comprida com filas e mais filas de bancos de madeira, como os bancos de igreja, cobertos com almofadas de espuma estofadas em poliéster. Cadeiras e sofás ficavam encostados nas paredes da sala. Pelo menos cem mulheres estavam sentadas nos bancos, algumas delas jovens, mas a maioria velha. Pilares grossos sustentavam o teto baixo, dando a impressão de que estávamos num porão de navio. Flores de plástico rosa, vermelhas e amarelas enfeitavam os pilares e as paredes. Na frente da sala, uma plataforma com um púlpito de madeira, também enfeitada com flores. Atrás da plataforma, no teto e nas paredes mais flores, fotografias de clérigos xiitas penduradas, incluindo um retrato retocado do aiatolá Ruhollah Khomeini, líder da Revolução Islâmica de 1979 do Irã, jovem, barbado e brando, parecendo tão inocente quanto o Messias loiro e bronzeado de que eu me lembrava das

igrejas do Meio-Oeste. Uma idosa com o rosto carnudo andou até o púlpito e plantou-se atrás dele. Sem dizer palavra, arrumou seus mantos negros e começou a cantar. O microfone estalou e deixou o som mais áspero, mas sua voz líquida chegou até nós. Cresceu como ondas, indo para cima e para baixo, em cascata, através de uma tramoia de notas até chegar à mais baixa e, com um soluço, começar tudo de novo. Eram aqueles soluços no meio da respiração que nos pegavam, rompendo nossa compostura da mesma forma que o choro de um bebê espalha o pânico, uma resposta involuntária ao som de outro corpo humano em angústia. O ritmo da canção batia em nós, desapiedado como o oceano. Um a um, os rostos das mulheres à minha volta avermelharam, enrugaram e desmoronaram. Jovens altas com mantos pretos andavam para cima e para baixo nos corredores distribuindo caixas de Kleenex da forma como os católicos passam a cesta de ofertório durante a missa. Agora eu entendia por que todo corredor era cheio de pequenos cestos de lixo. Mulheres chorosas descartavam lenços molhados até os cestos transbordarem. Lágrimas começaram a surgir dentro de mim, uma onda tão profunda que eu nem sabia que podia existir e de repente pensei em minha avó, por quem eu nunca havia chorado adequadamente — sempre adiava, deixava para quando me estabelecesse —, e me senti dissolver. Nesse momento a mulher parou de cantar e começou a recitar o fatiha, o capítulo de abertura do Corão. As mulheres murmuraram, se agitaram e começaram a se recompor. Ela começou a cantar de novo, dessa vez uma canção melódica meio folk. Entendi alguns versos que falavam de trazer água, de um poço e de alguém que tinha partido — uma tradição antiga de canções de luto, que datavam de épocas pré-islâmicas, cantadas por mulheres; canções que falavam de longas jornadas a pé, de café que esfria porque o amado não está lá para tomá-lo, da água que desce de nossos olhos como a água de uma nascente. A batida ecoava o coração humano mas também a cadência dos passos; pulsava de verso em verso, e vagarosamente as mulheres começaram a se agitar ao ritmo da música. Elas batiam no peito e nas coxas e a pancada firme era como a batida de um coração enorme. Senti que estava desaparecendo, arrastada pelo som, e a sensação de anonimato era estranhamente reconfortante depois de semanas de hospitais e parentes. Uma idosa com rosto esperto e enrugado estava sentada ao meu lado, batendo no peito; no tempo fraco ela elevava as mãos abertas aos céus, o gesto heráldico de um apóstolo em pintura italiana medieval. No minuto em que a canção acabou, ela pegou um maço de Marlboro. Metade das mulheres na husseinieh acendeu cigarros, principalmente as mais velhas, recorrendo umas às outras por fogo. Uma jovem no fundo do corredor dobrou seu lenço de papel num pequeno quadrado exato e colocou-o em algum lugar dentro de seu manto preto. As mulheres da família ficaram na frente da sala, os rostos marcados pela tempestade do pesar. Uma longa e lenta fila começou a se agitar entre as cadeiras e os sofás. As pessoas passavam por elas para beijos e apertos de mãos. Segui a fila, sem ter certeza se era da família ou amiga, se eu daria condolências ou as receberia, mas quando cheguei a Hanan ela esticou os braços e me envolveu num abraço encharcado de lágrimas. Tia Khadija havia arrumado uma mesa no quintal de sua casa, perto de um muro baixo de pedras e uma figueira jovem. Um pinheiro alto espalhava sua sombra sobre o banquete que ela tinha preparado; tinha mlukhieh, o cozido verde-musgo que Mohamad e eu amávamos; quibe nayeh; e travessas redondas de metal enormes de cafta bi saynieh, carne moída temperada com camadas de tomates e batatas e assada para que as batatas absorvam o molho de tomate e o sabor da carne. Ela enchera tigelas enormes de plástico com tabule, fattoush e um amontoado de hortelã, alfaces romanas e pepinos. Bebemos água em um ibriq de vidro transparente, e dessa vez consegui derramar o líquido dentro da boca. Para Mohamad, o mais jovem, Khadija fizera shawrabet shayrieh, uma sopa tradicional com macarrão cabelo de anjo e almôndegas temperadas. Era seu prato favorito.

— Fiz esse especialmente para você Mohamad Ali — disse tia Khadija, com a voz rouca como açúcar mascavo — porque sua mãe disse que você gosta. Todos riram: ele podia ter quase trinta anos, ter coberto guerras e revoluções, ter um bom emprego e uma mulher americana; mas aqui em Bint Jbeil ainda era o bebê da família e famoso por seu paladar enjoado. — Isso me lembra uma história — disse o marido de tia Khadija. — Vocês se lembram da vez que todos fomos para Aley? No início dos anos 1980, durante um bombardeio particularmente perigoso, Umm Hassane, Abu Hassane e todos os filhos se enfiaram no carro e foram passar um tempo com parentes nas montanhas nos arredores de Beirute. A jornada era longa e perigosa, com muitas barreiras hostis, e quando chegaram lá, horas depois, estavam tremendo de alívio. Mohamad, na época apenas uma criança, reclamou que estava com fome. Umm Hassane ofereceu a ele ovos cozidos e purê de batata com azeite de oliva, outro de seus pratos favoritos. Mas quando ela começou a esquentar a água, o menino bateu o pezinho com raiva: ela estava esquentando a água na panela errada! A única panela da qual comia, ele falou para os adultos, estava na prateleira de casa. Todos tentaram conter o riso quando ele exigiu que Abu Hassane voltasse até Shiyah, pegasse a panela e trouxesse para cozinhar seu ovo: “Ou”, ele gritou, “não vou comer!” De volta ao século XXI, Mohamad ficou vermelho quando o marido da tia Khadija contou a história na frente de todos. A família inteira estava lá, reunida pela primeira vez desde 1994. Hassan viera de Paris. Ahmad, de Nova York. Hassane, que falava sem parar, de Barcelona. Mohamad Ali, que crescera “do lado de fora”, era o único filho homem que morava no Líbano agora. Hanan nunca tinha ido embora. E eu. Ficamos sentados do lado de fora ouvindo os grilos, os carros e outros sons do campo até a noite nos alcançar. Enquanto comíamos o que havia sobrado do banquete funeral preparado por tia Khadija, as pessoas se lembravam de outras histórias da vida de Abu Hassane. A comida trazia memórias, conectando a família a pessoas e lugares que não estavam mais conosco, aos mortos. Como a tradição, a repetição de alimentos familiares criava a ilusão de que o passado ainda estava vivo: comemos esse alimento agora porque o comemos antes, quando Abu Hassane ainda estava conosco. Casamos como nossos ancestrais sempre se casaram porque as pessoas que amamos — pais, mães e talvez até nós mesmos — encontram o conforto na repetição, no ato de passar por momentos que há muito deixaram de ser necessários ou talvez nunca tenham sido. Algumas tradições escolhemos rejeitar, como separar homens das mulheres ou comprar uma noiva como um saco de batatas. Outras, como cozinhar para uma família de luto ou jurar amar e apoiar uns aos outros diante de pessoas que amamos, nós mantemos. * Cara, queremos um acordo pré-nupcial!/ Porque quando ela deixar você/ Vai embora com a metade! (N.E.)

19 A GUERRA DA COZINHA

DEPOIS DO ASSASSINATO DE HARIRI, Mohamad e eu suspendemos nossa procura por apartamento — temporariamente, dissemos a nós mesmos, até que a situação política se acalmasse. Mas o país não se estabeleceu e nós também não. No dia 2 de junho, o colunista Samir Kassir foi morto por uma bomba plantada sob seu carro. No dia 21 de junho, George Hawi, antigo líder do Partido Comunista, foi morto por um carro-bomba. No dia 12 de julho, Elias Murr, ministro da Defesa, sobreviveu a um carro-bomba. No dia 25 de setembro, um carrobomba quase matou a jornalista televisiva May Chidiac, arrancando uma de suas pernas e um de seus braços. Uma série de bombas de baixa potência, mas estrategicamente localizadas, explodiu em bairros de maioria cristã, matando várias pessoas, e conforme os bombardeios e assassinatos continuavam no decorrer do ano dava para sentir o ódio emergir como vapor nas ruas de Beirute. Tensões entre xiitas e outros grupos religiosos do Líbano cresciam desde o assassinato de Hariri. A polarização tinha muitas causas: o expansionismo do Irã, o apoio do Hezbollah à Síria. Porém, uma era mais forte que as outras: o Iraque. Em outubro de 2005, recebi uma mensagem no celular de meu amigo Abdullah, professor de literatura que conheci de Bagdá. Ele amava Hemingway, George Orwell e George Bernard Shaw; tinha uma paixão por escritores irlandeses como Eugene O’Neil, e eu ficava completamente encantada com a forma com que seus olhos pretos brilhavam sempre que discutíamos livros e ideias. Abdullah visitava um tio em meados de setembro quando uma das milícias do governo do Iraque varreu o bairro e prendeu todos os homens. O novo governo do Iraque, dominado pelos xiitas, estava capturando os sunitas acusados de serem insurgentes (por meio de “informantes” que podiam ser qualquer pessoa, desde um parente irritado até um extorsionário da vizinhança) e torturando-os. “Eles nos mantiveram sob forte tortura”, dizia a mensagem, “e depois disso me liberaram com um Sinto muito por termos nos enganado”. Então acrescentou, como se não fosse nada: “A vida no Iraque é muito perigosa. Ninguém pode se salvar.” Liguei para Abdullah e perguntei o que tinha acontecido. Durante dezessete dias, mantiveram-no preso com outros doze homens numa sala fria e escura, muito pequena para que pudessem deitar. De poucos em poucos minutos os guardas batiam as portas para que os prisioneiros não conseguissem dormir. Eles não podiam tomar banho nem mesmo lavar as mãos, parte das abluções que os muçulmanos devem fazer antes das orações. Eles o interrogaram em três ocasiões, durante as quais foram usados choques elétricos “em todas as partes de meu corpo”, ele me disse, enfatizando o “todas”. Forçaram-no a maldizer Omar ibn alKhuttab e Othman ibn Affan, o segundo e o terceiro califas, a quem alguns xiitas consideram usurpadores. E disseram ao tio dele que deveria ir embora de Bagdá — que a cidade agora pertencia aos xiitas, não aos sunitas. Em novembro, tropas americanas descobriram as prisões “secretas”, cuja existência era de conhecimento dos iraquianos havia meses, mantidas pelo Ministério do Interior do Iraque. O Ministério do Interior era controlado pelo Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque, um partido xiita com laços estreitos com o Irã. A descoberta contribuiu para uma mudança radical da opinião pública americana

— um incentivo crescente para que as tropas fossem retiradas o mais rápido possível, colocando o país infeliz no buraco das coisas designadas “Não é mais problema nosso”. Perguntei a Abdullah o que ele achava. “Na verdade os próprios iraquianos estão muito confusos”, foi a mensagem que recebi de volta, “eles não querem que os Estados Unidos vão embora agora”. A visão dele não refletia a opinião da maioria: enquetes mostravam que a maioria dos iraquianos queria que os americanos fossem embora. Mas a maioria dos iraquianos era xiita. Como trataria as minorias quando estivessem no poder? Os sunitas do Líbano olhavam para o Iraque e viam seu pior pesadelo: um governo dominado pelos xiitas, apoiado pelo Irã, onde sunitas eram tirados à força da vida pública. As pessoas começavam a repetir o refrão nefasto de que as tensões sectárias agora eram maiores do que haviam sido em 1975, às vésperas da guerra civil. A guerra civil começou com uma convergência de conflitos — a respeito da disparidade econômica, da migração urbano-rural, de lutas ideológicas, entre outros — dos quais a religião era apenas um. Mas a religião tinha um jeito de amenizar as outras diferenças, ainda mais pelo fato de ser estreitamente ligada à estrutura política. A mesma coisa acontecia agora. A divisão sunita-xiita começava a suplantar as diferenças pró e antissíria, muçulmanos e cristãos, esquerda e direita. A maioria dos xiitas libaneses que conheci não gostava muito do regime sírio, mas isso não importava — seus partidos políticos estavam alinhados com ele. (Não ajudou o fato de a Síria ser um país de maioria sunita governado por uma família de alauítas, uma ramificação do islamismo xiita.) No dia 12 de dezembro de 2005, um investigador especial das Nações Unidas estava para emitir um relatório sobre o assassinato de Hariri. Algumas horas antes do relatório, um carro-bomba controlado remotamente matou Gibran Tueni, o editor do An-Nahar, e também seu motorista e seu segurança. Naquela noite, o gabinete libanês pediu formalmente às Nações Unidas que criassem um tribunal internacional para investigar o assassinato de Hariri e toda a série de outros assassinatos. Cinco ministros xiitas saíram do gabinete em protesto, deixando o governo paralisado durante semanas. Fui ao enterro de Tueni dois dias depois com Chibli Mallat, professor de direito e ativista dos direitos humanos. Milhares de pessoas marcharam atrás do caixão. Alto-falantes gigantes em caminhões emitiam sem parar a gravação de uma promessa que Tueni havia feito oito meses antes, durante o comício de 14 de março, contra a Síria: “Juramos por Deus Todo-Poderoso”, a voz do morto entoava repetidamente, “muçulmanos e cristãos, a nos mantermos unidos para sempre em defesa de nosso grande Líbano”. Mas Tueni falava sobre a última guerra. Em Beirute, as pessoas estavam se preparando para a próxima. — Temos, no Líbano, algumas pessoas que compartilham o sonho dos terroristas — disse-me um jovem de 23 anos chamado Ahmed al-Masri, gritando para ser ouvido, por causa dos alto-falantes, enquanto seguíamos o cortejo fúnebre — e não poderemos fazer nada enquanto estiverem aqui. Al-Masri era um seguidor de Saad Hariri, filho e sucessor do magnata assassinado. Ele se ofereceu para me apresentar a algumas lideranças do Movimento Futuro. Respondi que preferia falar com ele. Ele disse que sua solução para o problema xiita era simples: limpeza sectária. — Devíamos mandá-los todos de volta para o Irã — gritou. De volta para o Irã: eles eram forasteiros, invasores em seu próprio país. Seguimos marchando, a voz de Tueni ecoava ao fundo, invocando sem parar a união entre muçulmanos e cristãos enquanto muçulmanos falavam de livrar o território de outros muçulmanos. Qualquer um que pense que o ódio terminou com a guerra civil nunca tentou procurar por um apartamento em Beirute com um xiita. Mais ainda que o dinheiro, o ódio era a força que determinava onde

as pessoas moravam. — Graças a Deus, estamos finalmente nos livrando dessas pessoas — disse uma proprietária que conhecemos, lançando um olhar para o corretor imobiliário, que concordou com a cabeça, solidário. Essas pessoas eram intrusos que tinham se mudado para Beirute durante a ocupação israelense no sul. Essas pessoas, em outras palavras, eram os xiitas, e muitos não xiitas achavam que a cidade não era o lugar “deles”. Isso era em parte falso e em parte verdadeiro. Muitos dos xiitas que tinham fugido do sul acabaram ocupando prédios de pessoas que haviam sofrido com a limpeza religiosa — cristãos expulsos da Beirute Ocidental pelas milícias sunitas, por exemplo. Milícias xiitas como o Amal colocaram as famílias deslocadas em apartamentos vazios e depois as usaram como moedas de troca humanas para extorquir dinheiro dos proprietários e do governo. No Wadi Abu Jamil (o Vale de Abu Jamil), esse jogo era tão rentável que as pessoas chamavam o lugar de Vale do Ouro. Quando a guerra acabou, as pessoas tinham a esperança de que os xiitas fossem embora — preferiam que os xiitas ficassem no sul, formando um escudo humano entre Beirute e Israel. Ver um jovem xiita voltar dos Estados Unidos com uma esposa americana, um emprego americano e uma conta para reembolso americana pronto para alugar os apartamentos dos quais tinham acabado de chutar seus semelhantes… isso deve ter doído. Essa proprietária em especial conciliou o sectarismo com a ganância, exigindo um aluguel ridiculamente alto com tamanha grosseria que Mohamad e eu apenas nos levantamos e abandonamos as negociações. Se estava sendo grosseira agora, como iria se comportar quando pagássemos os seis meses adiantados como de costume? E aí existia o oposto: proprietários xiitas que queriam alugar para um bom moço xiita. — Tenho outras pessoas interessadas — disse um, provavelmente mentindo —, mas quero alugar este apartamento para você, porque você é metawali — um termo depreciativo aos xiitas, que data dos tempos otomanos, do qual os xiitas se apropriaram e usavam como forma de criar vínculo. Mohamad franziu a testa: essa cumplicidade sectária nojenta deixou um gosto ruim em sua boca. Era um lugar bonito e barato, mas não alugamos daquele proprietário. Outro prédio estava revestido de fotos de Bashir Gemayel. Quem é seu inimigo?, perguntava a pichação árabe na sacada dos fundos, e respondia: Seu inimigo é o sírio. Um de nossos amigos mais próximos era uma síria-americana que morava em Damasco e nos visitava com frequência. Ainda que eu quisesse que ela se sentisse bem-vinda, o lugar era barato e lindo, e eu desejava um lar. Mohamad recusou: — Se houver guerra, ficaremos presos — disse ele. Achei que ele estava sendo melodramático… a guerra não tinha terminado havia quinze anos? Finalmente encontramos um proprietário que parecia diferente. Era um iraquiano-libanês e sua mãe havia sido dona de uma escola preparatória exclusiva na Bagdá pré-Baathista. Ele tinha uma tartaruga de estimação. Tinha classe. Ele nos seduziu com várias xícaras de café, longas conversas sobre arte iraquiana e lembranças da vida cosmopolita em Bagdá antes de Saddam. Na terceira visita, depois da segunda xícara de café, ele se virou para Mohamad e disparou: — Então… você é um Bazzi — disse ele delicadamente. — Você é Hezbollah ou Amal? A grande questão libanesa. A família de Mohamad era famosa por produzir nacionalistas árabes teimosos e rebeldes, que não apoiavam o Amal nem o Hezbollah — um legado do mesmo renascimento árabe mítico e antigo que o do próprio proprietário. Mas a religião reduzia essas diferenças: se você fosse druso, a suposição era que você seguia Jumblatt ou Arslan; para sunitas, era Hariri; e se você fosse xiita, é claro, devia ser leal ao Hezbollah ou ao Amal. Se negasse, bem, as pessoas diriam, todos sabem que esses

xiitas mentem — eles até têm uma palavra para isso, taqiyah, uma doutrina religiosa que permite que os xiitas escondam sua verdadeira crença em ambientes hostis. A questão da lealdade sectária era o equivalente libanês ao: “Quando você parou de bater em sua mulher?” Negar apenas confirmava sua culpa. Mohamad explicou que sendo americano e jornalista não precisava ter fidelidade a qualquer partido político do Líbano. O proprietário franziu a testa e não pareceu convencido. Ele acabou nos oferecendo o apartamento, mas a triagem sectária tinha nos deixado um pouco preocupados, e abandonamos as negociações. Meses depois, alguns amigos nossos alugaram desse proprietário. Eles eram um grupo misto, libanês, americano e canadense. Puxando os americanos de lado, o proprietário deu um conselho: eles deviam se livrar do libanês, um estudante de medicina — ele era xiita e não se pode confiar nessas pessoas. Beirute podia fechar suas portas para nós por não termos dinheiro suficiente, por sermos da seita errada, por sermos muito teimosos quanto a pagar pelos preços altíssimos que os proprietários cobravam de repatriados e estrangeiros. Mas havia um lugar de onde não podia nos mandar embora. Na geografia do ódio de Beirute, bares e restaurantes eram solo incontestável. Um dia, Hanan nos levou ao restaurante onde seu melhor amigo, Munir, era garçom. O nome do restaurante era Walimah, uma palavra que significa “banquete” — uma grande celebração, uma festa que pode durar dias. O restaurante era no térreo de um prédio residencial antigo e gracioso, um dos poucos que ainda restavam em Hamra, descendo a rua Makdisi. Imbés altos cresciam em volta da janela. Na porta da frente, um quadro de giz com os pratos do dia escritos em árabe e inglês era a única indicação de que se estava entrando num restaurante e não na casa de alguém. Abrimos a pesada porta de madeira com arabescos em metal enquadrando os painéis de vidro jateado. Do lado de dentro, o restaurante preservava a organização de uma velha casa libanesa. Havia uma sala de estar central, agora sala de jantar, com salas menores saindo de cada lado. Janelas e arcadas entre elas permitiam que as pessoas se vissem e davam a impressão de estar do lado de fora e do lado de dentro ao mesmo tempo: a casa como vila em miniatura e a sala central como praça da cidade. Um balcão de madeira escura curvava-se no pequeno hall de entrada, a parede atrás brilhando com garrafas de vodca, uísque, absinto e outros licores. No fim do bar, duas janelas cortadas na parede davam para dentro da primeira sala de jantar. Uma passagem aberta dava para o grande salão central, com duas mesas grandes e uma estação para os garçons redonda, de madeira e com tampo de mármore. Uma alta porta francesa de vidro levava para a varanda. Nos fundos havia uma terceira sala de jantar, imagem espelhada da primeira. Banquetas fundas e sedutoramente acolchoadas com almofadas bordadas da cor do arco-íris enchiam as paredes da frente e dos fundos. Cada sala tinha teto alto e janelas com venezianas de madeira. Isso me fazia lembrar do Runcible Spoon, meu café preferido em Bloomington, que ficava numa antiga casa de madeira e cheirava a café e canela, com varanda, quintal e janelas ensolaradas. Eu me senti em casa. — A gente deveria vir aqui o tempo todo — sussurrei para Mohamad. — Principalmente porque conhecemos os donos — concordou ele, pensando de maneira prática. Munir não era como eu esperava. Ele era alto, tinha os olhos sonolentos e um bigode prateado desgrenhado, falava com sotaque francês e transmitia a graça preguiçosa e carinhosa de um tigre avuncular. Tinha o hábito de terminar as frases com “sabe?”, principalmente quando falava de algo de que a pessoa discordasse veementemente, e amava discutir, ainda mais do que eu. Ganhava de qualquer um jogando Scrabble. Ele negará isso quando ler o livro, porque ama contradizer o que as pessoas dizem, mas na verdade Munir era um ghanouj, o tipo de provocador que flerta sem a menor vergonha com todo mundo, independentemente de idade ou gênero, não necessariamente de uma forma sexual, mas por pura paquera.

(Baba ghanouj significa algo como “papai é um namorador”.) Ele abria concessão para a beleza, mas não para outras fraquezas, e recusava-se sem exceção a discutir política: — Não, não — dizia, sacudindo para longe os mundos sórdidos da seita e da ideologia com uma mão autocrática —, não discuto tais assuntos. A mãe de Munir, Wardeh Loghmaji, era dona do Walimah. Ela era uma sulista tímida de Tibneen. Casara-se com um menino de seu vilarejo quando tinha apenas quatorze anos e se mudara para Beirute, onde viu imagens em movimento pela primeira vez na vida — algo tão maravilhoso, pensava nisso décadas mais tarde, que ela levou as duas mãos ao rosto em êxtase. Seu marido morreu jovem; ela casou-se novamente e se mudou para o Hamra. Quando a guerra se tornou intolerável, em meados de 1980, ela e o marido, Ali, se mudaram para a Costa do Marfim, depois para Kinshasa, que na época era a capital do Zaire. Na África, abriu um serviço de bufê para libaneses expatriados com fome de comida caseira. Havia encontrado sua vocação; mas em 1991 motins estouraram em Kinshasa. Soldados que não recebiam seus pagamentos invadiam lojas libanesas, Ali esteve muito perto de levar um tiro e eles perderam tudo com a exceção de algum dinheiro que Wardeh amarrava na cintura por baixo das roupas. O aeroporto de Kinshasa fora fechado, então eles fugiram de barco para Brazzaville, de onde o governo libanês os levou de avião de volta para Beirute. De volta ao Hamra, viram que o bairro estava preso num estranho limbo entre seu apogeu pré-guerra dos anos 1970 e os destroços nada românticos da manhã seguinte do pós-guerra. Aqueles anos haviam destruído mais do que apenas prédios: famílias tinham se separado, casamentos haviam sido cancelados ou adiados e as pessoas nem sempre tinham alguém em casa que cozinhasse para elas. As próprias migrações por que passou haviam ensinado a Wardeh o poder da comida caseira e em 1994 ela e duas amigas abriram o Walimah para dar a Ras Beirute “o gostinho da refeição caseira”. O Walimah era o tipo de lugar onde um fiel a Hariri poderia dividir um prato de hindbeh com um xiita que apoiava o Hezbollah. Havia um entendimento tácito de que você se despia de seus dogmas quando passava pela porta. Eu estava começando a entender o velho cartaz manchado de fumaça do Chez André, que vira naquela noite havia tanto tempo, que ordenava: Nada de política! Espero que Wardeh me perdoe o comentário de que suas comidas não libanesas — os suflês, as lasanhas — podem ser descritas, para ser gentil, como “irregulares”. O cliente esperto não pedia nada com um nome europeu ou a criação que ela chamava de “frango chinês”. Se você sabia o que estava fazendo, estudava os cardápios quinzenais impressos de Wardeh e programava sua vida de acordo com os dias em que havia yakhnes. Quando eu pensava em comida libanesa, geralmente imaginava meze; homus, folhas de uva recheadas, baba ghanoush. Mas yakhnes era parte de outro dialeto culinário, um que a maioria dos americanos nunca tinha experimentado. Sua apoteose eram tabeekh, refeições feitas por tradição em casa com uma tabkha, uma panela de argila feita à mão (hoje em dia geralmente uma panela de pressão). Como a “caçarola”, tabkha pode ser o objeto ou a comida nele preparada. Tabeekh eram molhos e ensopados, pilafes e molhos feitos com ingredientes mais humildes que meze: trigo, arroz, batata, verduras, feijões, lentilhas. Era o tipo de comida que Umm Hassane fazia quando íamos visitá-la: slow food, comida camponesa, a culinária das pessoas que aproveitavam os ingredientes da época e enriqueciam a pouca carne que tinham com vegetais e grãos. Yakhnes e tabeekh eram comida da alma libanesa: akil nafis, “comida com alma” (ou, mais literal, “comida é alma”). Durante anos, os restaurantes de Beirute consideravam essa comida muito plebeia para ser servida. Meze e mashawi eram as comidas pelas quais as pessoas pagavam para comer; tabeekh era o que mães e avós faziam em casa. Quando Mohamad e eu nos mudamos para Beirute, apenas alguns restaurantes serviam

comida caseira. O Walimah era um deles. Wardeh fazia pratos tradicionais do campo como mjadara hamra, trigo bulgur com abobrinha e tomate e bulgur com carne; ela fazia frikeh, trigo verde rachado, outro grão tradicional que a maioria dos restaurantes de Beirute negligenciava. Fazia os pratos vegetarianos “azeite de oliva”, como kindbeh, dentes-de-leão ou chicória refogadas em azeite de oliva e cobertas com cebolas caramelizadas crocantes; berinjela cozida com tomates, pimentões e cebolas; vagem, feijão-de-lima ou quiabo refogados com azeite de oliva; e meu favorito, o glorioso foul akhdar, favas macias e jovens assadas inteiras com cebolas caramelizadas, alho e coentro até se desfazerem. As pessoas do campo faziam quibe com abóbora, tomate e batata no lugar da carne e Wardeh fazia esses pratos também, assim como os mais complicados, como abobrinhas recheadas cozidas no iogurte; sayadieh, peixe com arroz temperado e molho de gergelim; os intestinos recheados que pouquíssimos restaurantes tinham coragem suficiente para servir. Ela fazia até khubaizeh. Por serem de vilarejos próximos, os yakhnes de Wardeh eram muito parecidos com os de Umm Hassane. A fórmula básica não mudou desde os sumérios: um caldo feito com frango, carneiro ou carne de boi, alguns vegetais — espinafre, abobrinha, vagem, couve-flor — com uma explosão de sabor do molho de alho e coentro adicionado no fim, que sempre me fazia lembrar dos sumérios e sua mistura de última hora de alho e alho-poró. Naquela primeira vez que comemos no Walimah, Mohamad e eu nos sentamos na varanda. Comemos bamieh, ensopado de quiabo, feito com tomates, carne e temperado com alho e coentro. — Parece o da minha mãe! — disse ele, com um ar repentino de surpresa, como se aquilo fosse um truque de mágica. Mohamad tinha um jeito de exclamar com prazer e surpresa quando comia algo que reconhecia. Seu tom de apreciação parecia implicar que eu era de alguma forma responsável, como se eu tivesse preparado o prato, mesmo se tudo o que eu tivesse feito fosse abrir uma lata de molho de espaguete ou sentar e comer com ele. Compartilhar de sua alegria com essa descoberta, naquele dia na varanda do Walimah, era tão bom quanto lhe preparar uma refeição com quatro pratos: não tínhamos encontrado um apartamento, mas tínhamos encontrado comida caseira, e pelo menos, por ora, isso era o suficiente. Nossa eterna procura por um apartamento se tornou uma piada entre nossos amigos. Quando as pessoas ficavam sabendo que morávamos em hotel, imaginavam-nos deitados sobre lençóis de cetim enquanto criados nos traziam iguarias. “Um hotel, isso deve ser ótimo”, diziam com inveja. “Serviço de quarto… Você não precisa nem cozinhar!”. Mesmo que eu quisesse, o serviço de quarto não funcionava. O Berkeley estava mais para um desses hotéis com pouca mobília procurados por estudantes do que para o grande hotel de turismo que um dia aspirou a ser. Consagrava essas ambições perdidas com um cardápio de serviço de quatro páginas, escrito com elegante letra cursiva em papel creme e com itens como “Frango ao Rei” e “Filé a Florentina com purê de batata”. Se você pedisse qualquer um deles, o funcionário informaria com pesar que aquele item havia acabado. O que o Berkeley tinha, na verdade, era: pão, labneh, azeitonas e ovos. Era mais barato ir até a venda da esquina comprar essas coisas, e era o que fazíamos. Mas eu queria cozinhar. Quanto mais a guerra do Iraque vazava para o Líbano e envenenava nossas vidas, mais nossas esperanças de nos estabelecermos diminuíam, mais eu sentia que a comida era a única coisa que conhecia de verdade. Era a única substância confiável que ligava uma parte da vida à outra, a única ligação tangente entre quem eu era e onde eu tinha vivido. Fiquei obcecada por comida. Pedia por correio edições antigas de obscuras revistas britânicas de culinária com matérias com títulos como “Notes for a Study of Sectarian Cookery in Lebanon” (“Notas para

um estudo da culinária sectária do Líbano” em tradução livre). Eu seguia professores de nutrição. Ia a palestras sobre o desenvolvimento do setor agrícola do Líbano e fazia volumosas anotações. Rastreei o Food Heritage Foundation, um grupo de artistas, professores de agricultura e nutrição e donos de restaurante — Wardeh fazia parte do grupo — que preservava receitas rurais libanesas. Em festas, eu encurralava pessoas e as assustava com interrogatórios sobre os anos de fome, a grande fome durante a Primeira Guerra Mundial que matou tantos libaneses, em termos de proporção demográfica, quanto a praga da batata irlandesa. Em novembro de 2005, juntei-me ao Movimento Slow Food do Líbano, e quando eles montaram um souq em Beirute eu estava lá toda semana. O Souq El Tayeb (“O mercado saboroso” ou “O mercado bom”) começou como um punhado de fazendeiros e pequenos produtores vendendo frutas, vegetais e mouneh no estacionamento em frente à mercearia Smith’s; mais tarde mudou-se para Saifi Village, onde se tornou um dos lugares mais badalados de Beirute. Os ricos do Líbano iam de Land Rover à feira e faziam fila para comprar sanduíches feitos com kishk al-fuqara, “o kishk dos pobres”, um queijo feito de trigo por pessoas pobres demais para comprar leite. A maioria dos meus amigos libaneses tinha sentimentos mistos sobre o souq. Mas eu gostava dos fazendeiros e produtores, gostava da comida e achava que os ricos do Líbano tinham jeitos piores de gastar o dinheiro que subsidiar pequenos fazendeiros. O kishk da nostalgia alimentava sua fome de pertencimento, de se conectar com um passado agrário mítico, e eu não podia criticá-los por isso; eu procurava pela mesma coisa. De qualquer forma, passava a maior parte do tempo conversando com os fazendeiros e produtores. E foi assim que conheci Ali Fahs. Um fazendeiro rígido, banguela, manco e com um sorriso curtido, Ali fazia todos os tipos de mouneh: geleia de figo com gergelim, temperos misturados com pétalas de rosas, bolinhos macios de labneh suspensos em azeite de oliva grosso e doce como mel verde-escuro. Ali decidiu que gostava de mim quando disse a ele, fazendo piada, que meu marido era metawali. Quando ele soube que Mohamad era Bazzi, entoou: — Os Bazzi são muito ricos. Não era verdade, protestei, mas Ali já havia decidido que deveríamos fazer negócios juntos — os cofres da família Bazzi seriam o capital e ele daria o mouneh. — Esse mercado… precisa de uma mente grandiosa — disse-me Ali, puxando-me de lado numa manhã de sábado. — E você pode ganhar muito dinheiro. — Como? Ele olhou da esquerda para a direita, expulsando com a carranca qualquer abelhudo, e pensou se deveria divulgar seus segredos de negócios. — Você acha aquilo que ninguém tem e cobra um preço alto — explicou ele, com o dedo indicador em riste. — Por exemplo, plantas do mar; ninguém tem — abrindo um sorriso triunfante, inclinou-se para a frente, bateu no peito ossudo e revelou —, mas eu tenho. — E levantou um frasco de folhas verde-escuras em conserva: hashishet albahar, haxixe-do-mar. Ali falava inglês e francês improvisado, áspero, línguas que havia aprendido sozinho durante os anos que passou trabalhando em grandes cozinhas industriais da Arábia Saudita. Seu sonho era vender mouneh suficiente para se mudar para a Califórnia e abrir um posto de gasolina. — Na noite passada, tive um sonho — disse-me em outra manhã. — Eu estava na Califórnia. Tinha um posto de gasolina; era todo meu. Era tão bonito… Por que a Califórnia? — Porque é o cesto da América — suspirou ele. — Assim como o Líbano é o cesto do Oriente Médio. Ali Fahs estava certo: o Líbano abundava em comidas maravilhosas e o souq era minha perdição. O

minibar do Berkeley tinha capacidade para apenas duas sacolas de comida, mas eu via um punhado verdeclaro de zaatar, com seu cheiro singular de pétala de rosa e seu brilho prateado delicado e, como uma viciada, começava a pensar: posso cozinhá-lo assim que chegar. Eu fazia fatayer recheado com zaatar. Secava o zaatar para que não precisasse ser armazenado na geladeira. A esposa de um fazendeiro me deu uma receita de suflê de funcho e fui para casa agarrada a uma nuvem verde suave de talos cheirando a alcaçuz; eu já estava de volta ao Berkeley quando lembrei que não tínhamos um forno. Quanto mais me sentia sem raízes, mais eu cozinhava. Passava horas na cozinha de casa de bonecas montando refeições patologicamente elaboradas: peito de pato com favas cozidas e frikeh, minha variação de uma receita de Paula Wolfert — o trigo verde torrado absorvendo o molho rico, cravejado com botões verdes de pistache macio que eu passava horas descascando. Omeletes de alho, funcho, espinafre e feta. Salmão assado com funcho e sementes de coentro cozidos numa redução de cenoura e funcho, servido com molho de vagem baby e abobrinha. Peitos de frango recheados com pistaches em pó e coentro e mergulhados em molho de abacate. Cerejas assadas com amêndoas verdes tostadas. Essas misturas ornamentadas eram um substituto de outra coisa, algo simplesmente fora de alcance. Umm Hassane teria dito que eu queria um filho, mas o que queria era muito mais simples: jantar com amigos, e não no restaurante. Queria convidar amigos a virem a minha casa e servir-lhes comida — minha comida, feita com as minhas mãos. Eu queria um tempo e um lugar onde as pessoas que se amavam sentassem em volta de uma mesa e conversassem. Partir o pão era a melhor e mais antiga desculpa para uma ocasião como essa. Era como se criava a própria tribo, um microcosmo do mundo em que se quer viver. Mas não se pode convidar pessoas para jantar quando se mora em um quarto de hotel: nós nem mesmo tínhamos uma mesa, quanto mais cadeiras para os convidados. A única poltrona estava permanentemente carregada de papéis e equipamentos de trabalho. E Mohamad se recusava a comer o que chamava de minha “comida chique”. Ele nunca experimentava nada que eu fazia, e quando eu forçava um pouco ele enrugava o rosto com desgosto e recuava. Levei meses para perceber que não era a minha comida que ele desprezava. Era o inesperado, qualquer coisa que fosse imprevisível e nova. Conforme o Líbano mudava, Mohamad tinha bons motivos para querer se agarrar àquilo que conhecia — como na história que eu havia ouvido na casa de tia Khadija, sobre a vez que ele quis ovos cozidos na panela especial durante a guerra civil. Esse era o jeito dele de lidar com o estresse. Cozinhar frenética e compulsivamente era o meu. Então, no Berkeley, eu jantava sozinha, imaginando convidados que nunca viriam. Cortava o peito de frango e colocava um pedaço no prato, derramava por cima o molho e arrumava tudo no prato direitinho, como se estivesse de volta a um dos restaurantes em que trabalhei como garçonete. Servia uma taça solitária de vinho, sentava e assistia à TV, porque Mohamad há muito já teria se retirado para o quarto com uma tempestade de protestos por causa do cheiro da comida, que odiava. No final do outono de 2005, xeque Fatih e a dra. Salama foram a Beirute para uma conferência. Era sua primeira viagem a Beirute desde muito tempo e eles agiam como turistas bobos. Filmaram tudo com uma minicâmera. Ficavam maravilhados com cartazes que divulgavam remoção de pelos a laser, com as pessoas andando pela Corniche, com pessoas apenas andando pelas ruas. Era sua primeira viagem para fora do Iraque em muitos anos, e ao mostrar Beirute para os dois eu ficava pensando no momento do Mágico de Oz em que Dorothy abre a porta de sua casa de fazenda em preto e branco do Kansas e vê o colorido em tecnicolor de Oz. A dra. Salama precisava de um vestido de festa, então fomos ao shopping ABC em Ashrafieh. De alguma forma acabamos na Women’ Secret, uma loja de lingerie europeia, em que manequins seminus

eram adornados com roupas de baixo que fariam o próprio varejista Frederick of Hollywood corar. Mas na floresta de sutiãs de enchimento e calcinhas cavadas, todos pareciam estar olhando era para a iraquiana com o abaya preto de corpo inteiro. Andamos pela loja, acompanhados por uma vendedora perplexa, até o momento em que a dra. Salama parou diante de um sutiã de cetim rosa. Ela esticou uma de suas mãos fortes — no Iraque ela era famosa por realizar extrações dentárias sem a ajuda de nenhum homem, e mulheres religiosas vinham a ela para extrair seus dentes — e acariciou a seda. — É muito bonito — comentou com uma reverência serena, como se estivéssemos no Louvre discutindo uma pintura renascentista. A vendedora loura de farmácia ficou parada atrás dela, piscando seus cílios postiços em um estado de choque educado. Depois das compras, fomos à confeitaria do hotel Bristol tomar sorvete. Tomei de chocolate. Ela pediu uma bola de sorbet de limão e ficou olhando para a órbita pálida amanteigada de limão por um instante antes de comer. Seu rosto parecia cansado, mas ela sorria. — Esse sorvete — disse calmamente — é muito bonito. Tudo era bonito; antes, naquele mesmo dia, ao ver meu cabelo preso num rabo de cavalo, ela dissera: — Seu cabelo está arrumado de um jeito, Annia, que é muito bonito! No ano e meio que havia passado desde a última vez em que nos vimos, ela havia sobrevivido a outras muitas tentativas de assassinato. Em uma delas, os homens haviam atingido seu marido na perna, na mão e no abdômen. Ele mandou que ela abandonasse a carreira política; ela se recusou e eles estavam quase se divorciando. Ela havia batido de frente repetidamente com os partidos políticos xiitas do governo. Ela e seus filhos estavam vivendo em confinamento. — Aprendi a valorizar as coisas bonitas — disse, com tanta suavidade que eu tive que me inclinar para a frente para ouvir. — Tenho uma planta em meu jardim, e um dia ela floresceu. Eu disse a minha filha: “Veja essa flor. Uma coisa tão pequena e delicada. Devíamos aprender a dar valor a coisas como essa quando as temos.” Enquanto a dra. Salama e eu tomávamos sorvete, Mohamad e xeque Fatih estavam sentados na recepção do Bristol. Mohamad perguntou se eles estavam com fome. Poderíamos levá-los a restaurantes, cafés, o que quisessem: sushi, meze, culinária francesa, italiana — Beirute tinha de tudo. Tinha até um restaurante espanhol. Mas o xeque queria outra coisa. — Já que estamos aqui, só queremos uma coisa — disse ele. — Seria uma honra para nós comer uma refeição preparada pelas mãos de Annia. Era como uma fábula das Mil e uma noites: o homem sagrado, em viagem a uma terra estrangeira, pedindo pelo único favor que não podíamos conceder-lhe. — Bem — disse Mohamad (um tanto tímido, confessou mais tarde) —, o problema é que não estamos conseguindo encontrar um apartamento. Então ainda estamos morando em hotel. — Um hotel? — perguntou xeque Fatih, com uma perplexidade educada. — Mas vamos conseguir um apartamento logo — completou Mohamad apressado. — É claro, estava só brincando — disse xeque Fatih. — Eu só queria dizer que adoraríamos comer a comida da Annia. Não precisa ser agora. Faremos isso quando pudermos. Havíamos comido diversas vezes na casa de xeque Fatih em Bagdá. Quando teríamos a chance de retribuir essa hospitalidade? — Na próxima vez que vierem a Beirute, se Deus quiser — disse Mohamad, usando o árabe formal cheio de floreios que quase nunca usava —, Annia fará um banquete para vocês!

Em fevereiro de 2006, extremistas sunitas bombardearam o Santuário Askari, o túmulo de dois imames xiitas, em Samarra, cidade do norte do Iraque. O bombardeio, e as represálias que se seguiram, acelerou o conflito sectário que era uma guerra civil em tudo, exceto pelo nome. No dia 23 de fevereiro, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, fez um grande comício em dahiyeh, claramente para protestar contra o bombardeiro em Samarra. Ele culpou os Estados Unidos pela conflagração no Iraque e desafiou o país a desarmar o Hezbollah. Segundo ele, sunitas e xiitas não deveriam culpar uns aos outros. Mas Beirute estava mais tensa do que antes. Na semana seguinte, Mohamad finalmente se encheu de toda a minha atividade culinária. Ele convenceu o faz-tudo do Berkeley a instalar um ventilador na parede sobre o balcão de pouco mais de um metro que separava a cozinha do resto da pequena sala em que escrevíamos artigos, assistíamos ao jornal e fazíamos praticamente tudo, exceto dormir. Um dia depois, 1º de março, coloquei minhas luvas de borracha para lavar a louça e vi que a pia estava cheia de pequenos pedaços de gesso. Pedaços de parede cobriam a cozinha e tudo o que tinha nela: livros de receita, rosas secas, pacotes de macarrão, potes de kamouneh, garrafas de vinagre de vinho tinto, azeite de oliva, taças de vinho cuidadosamente limpas, grão-de-bico seco, bulgur, camomila, paus de canela; tudo estocado e precariamente empilhado como se eu estivesse tentando isolar a pequena cozinha do mundo. Olhei para aquele amontoado de coisas empoeiradas, aquele depósito frágil dos meus deuses domésticos, calculei que morávamos no Oriente Médio havia exatamente dois anos e meio e de repente todos os anos de andanças, de exílio da cozinha da minha avó, de morar em carros e nos sofás das pessoas, invadiram minha cabeça pressionando meu crânio. — Você é um imbecil — gritei com meu marido, lançando um dos copos do hotel contra a parede. O copo quebrou e lançou cacos de vidro nos meus sapatos, que estavam alinhados à parede perto da porta. — Você entende que estamos aqui há dois anos e meio e ainda moramos na merda de um hotel? — Bem, tecnicamente, isso não é verdade — observou Mohamad, não muito esperto —, porque nós moramos aqui desde janeiro de 2005. Essa era uma discussão de longa data entre nós: eu dizia que nos mudamos para Beirute em outubro de 2003, quando deixamos Nova York; ele afirmava que nos mudamos para Beirute em janeiro de 2005, quando deixamos o Iraque para sempre. Da mesma forma, o calendário cristão começa com o nascimento de Jesus; o calendário muçulmano começa em 622, o ano em que o profeta Maomé fez sua Hégira, ou migração, de Meca para Medina. Às vezes, eu provocava Mohamad sobre seu “calendário da Hégira”, o tal que começava em janeiro de 2005. Essa não foi uma dessas vezes. — Não estou nem aí! — gritei. — Quero um apartamento de verdade! Quero morar em algum lugar! Quero uma merda de uma cozinha! Tecnicamente nós tínhamos uma cozinha — o minibar, a pia minúscula, os dois fogareiros elétricos que éramos estritamente proibidos de utilizar. (Eu os usava mesmo assim, e os funcionários, que gostavam de nós, faziam vista grossa.) Eu a medi uma vez, deitando-me: tinha o comprimento exato da minha altura e não muito mais que a minha largura, como um caixão. Chamá-la de cozinha era superestimá-la. Escorreguei até o chão, curvada contra a parede, e comecei a chorar de raiva. Mohamad rastejou até mim — com hesitação, caso eu começasse a jogar as coisas de novo — e colocou a mão em meu ombro. — Eu prometo, está bem? — disse ele. — Prometo que vamos conseguir um apartamento. Eu tinha que sair daquele quarto minúsculo. Liguei para minha amiga Leena e decidimos nos encontrar para tomar um drinque no Walimah. Era quinta — uma noite normal, ou era o que eu pensava, mas quando cheguei ao restaurante encontrei-o transformado. À noite, as janelas altas com venezianas de madeira deixavam entrar a brisa do jardim. Lanternas pendiam do teto e globos de vidros de damasco

brilhavam como frutas radiantes. Não havia mais mesas na sala de jantar central, agora repleta de corpos girando e rodopiando e cabelos esvoaçantes dos casais que dançavam. Uma voz rouca cantava uma canção circular sincopada que soava como um gato perseguindo um pássaro. O ar era uma sopa de suor, vinho e algo mais… mlukhieh. Era a Noite do Tango, a milonga de quinta à noite que Munir tinha inaugurado. Eu amava a palavra milonga, que significa um tipo de música, um estilo de dança e um evento com frequência regular — uma reunião em que as pessoas dançam tango juntas. A milonga é uma comunhão que reside não tanto num lugar físico ou um tempo, mas numa reunião de almas. Sentei no primeiro salão bebendo vodca e absinto com Leena e Munir e vendo os dançarinos fazerem ondas pelo chão de ladrilho como criaturas do mar. — No mês passado, ouvi opiniões sectárias que nunca tinha ouvido antes — disse Munir, sem um pingo daquele jeito paquerador. — E ouvi de pessoas de quem nunca imaginei que ouviria esse tipo de conversa. Um anjo passou e ficamos em silêncio por um instante. Munir estava projetando na parede o filme Tango, de Carlos Saura (sobre a guerra suja da Argentina, apesar de Munir negar isso), sem som. Na tela o rosto de um velho chorava em uma canção sem palavras, uma lua muda e ciente sobre os dançarinos que deslizavam pelo chão. Uma das tangueras estava usando um sapato de salto alto com lantejoulas rubi que combinavam com seus cachos cor de cereja. Uma mulher alta de quase cinquenta anos descansava numa cadeira e esticava as pernas envoltas em uma bota de couro de salto fino que ia até a altura de suas coxas e que, nela, pareceriam elegantes. Um dos dançarinos se jogou na cadeira ao nosso lado. Ele era esguio, com um cabelo preto penteado para trás e um rosto suave e bondosamente sexy de um jovem Valentino. Ele dançava havia horas e sua camisa preta, desabotoada o suficiente, estava encharcada de suor. Esse era Georges, o instrutor de tango. Assim que começamos a conversar, percebi que seríamos amigos. Na Noite do Tango seguinte, quando arrastei Mohamad comigo, Leena tinha enchido a primeira sala com jornalistas estrangeiros. Na sala central, dançarinos de tango circulavam. No último salão uns políticos estavam em volta de uma mesa fumando, homens com rostos orgulhosos usando ternos pretos e exibindo círculos escuros sob os olhos. Risadas roucas e íntimas vinham daquela mesa. Estava coberta de garrafas de Johnny Walker que reluziam âmbar à luz de velas. — Acho que temos um golpe pró-Síria sendo preparado no salão dos fundos — murmurou Leena quando entramos, curvando-se para a frente. Ela tinha a rara habilidade de circular entre mundos, e a Noite do Tango era feita para isso: era possível ter uma mesa de políticos pró-Síria num salão e o outro ficar cheio de diplomatas americanos, seus seguranças do lado de fora com pequenos fones de ouvido, e várias pessoas dançando entre os dois ambientes. Um dos jornalistas de Leena pediu mlukhieh. Ele tinha passado três anos em Beirute e nunca havia experimentado mlukhieh, e agora que provava não estava gostando. Ele largou a colher e fez uma careta para a tigela branca e sua sopa escura primordial. — O que é essa coisa? — perguntou. — É espinafre — disse o repórter de um jornal americano. — É quiabo — corrigiu um escritor de viagens britânico. — É mlukhieh — disse Leena, divertida. O mlukhieh é feito com as folhas da juta, Corchorus olitorius, e, como acontece com o quiabo, as pessoas ou amam ou odeiam. Não há neutralidade quando se trata de mlukhieh. O mlukhieh pantanoso, verdeescuro, tem gosto de lagoa escura e calma no meio de uma floresta densa. Tem o quê argiloso e fértil de folhas molhadas se desintegrando no solo. O ensopado tem sido um famoso prato do norte da África há séculos; na Tunísia do século XIX, era tão caro que os guardiões da cidade recebiam cinco vacas e um saco

de mlukhieh todo ano. No Japão, é valorizado como alimento saudável; nas Filipinas, é feito como um ensopado chamado saluyot. Wardeh fazia o seu de duas maneiras: a primeira era ao estilo egípcio (folhas cortadas em tiras finas, acompanhadas de cebola picada e vinagre). A segunda era puro sul do Líbano, as folhas verdes venosas cozidas inteiras com frango, coentro e pimentões vermelhos no caldo de alho. Ela servia com pão e suco de limão, sobre o arroz, e encharcava os grãos como chuva de verão na terra seca. Em inglês o mlukhieh é conhecido como Jew’s Mallow (Malva do Judeu). Ninguém parece saber o porquê. Quando perguntei a Sami Zubaida, ele arriscou um palpite de que os falantes da língua inglesa experimentaram o prato pela primeira vez com os imigrantes judeus, o que faz sentido. Clifford Wright, em sua história enciclopédica e livro de receitas Mediterranean Feast, propõe que os mandamentos da dieta judaica fizeram com que a folha amarga fosse especialmente amada pelos judeus alexandrinos, e isso faz sentido para mim também, porque considero comer o mlukhieh um pequeno sacramento. Mas mlukhieh tem o gosto do proibido assim como do sagrado: o califa louco al-Hakim, da dinastia dos xiitas fatímidas do Egito, baniu o mlukhieh (supostamente porque o califa sunita Muawiya amava o prato), e talvez isso explique por que os egípcios gostam tanto de mlukhieh até hoje. Diz a lenda que ele é um tabu entre os drusos, porque é afrodisíaco, mas assim como muitos muçulmanos bebem álcool, muitos drusos comem mlukhieh. Por algum motivo — uma tradição no fundo do subconsciente, talvez — os poucos restaurantes de Beirute que o preparavam serviam às quintas-feiras. Quando perguntei a Wardeh a razão, ela deu de ombros e negou qualquer significado. Isso só completava os mistérios do prato. Comi o mlukhieh do jornalista, já que ele não quis continuar, e fui ao bar conversar com Munir. Georges veio até nós, ágil e suado como um jovem fauno. — Cuidado com esse cara — disse, apontando para Munir. — Ele adora pegar seus sonhos e acabar com eles! — Estou benessniss — disse Munir em árabe, sorrindo. Outra Intraduzível: fofocar, incitar problemas entre as pessoas. — Como Iago! — completou, sorrindo por sobre os ombros enquanto ia atormentar alguma outra pessoa. — Destruidor de sonhos! — gritou Georges para as costas de Munir. E se virou para mim: — Sabia, Annia, que nunca me apaixonei? — Quantos anos você tem? — Tenho 25 anos — respondeu, tragicamente. — E se for tarde demais? E se isso nunca acontecer comigo? Georges falava francês, inglês e árabe fluentemente e tinha um italiano respeitável. Dançava e escrevia poesia. Quando não estava fazendo essas coisas, as quais realizava com graça e habilidade, era neuropsiquiatra. Fazia parte da tribo preciosa que andava entre mundos, como Leena e Munir. Seu único defeito era a terrível doença dos 25 anos. — Espere mais alguns anos — aconselhei, de repente me sentindo muito sofisticada e feliz por ter 35. — Acho que vai se apaixonar por alguém logo. — Acredite, é isso que estou procurando — suspirou. — Quero que alguém parta meu coração. Não vejo a hora! Georges foi para a pista de dança. A milonga rosnava e gemia. Munir voltou para o bar. Bebi mais um absinto e confidenciei que não sabia o que fazer com meu marido. Ele não comia minha comida; rejeitava todos os apartamentos que visitávamos. Não gostava de tango, não gostava de política e estava começando a desgostar do Líbano. — Às vezes acho que a única coisa no mundo da qual ele gosta — disse eu — sou eu. — Escuta, Annia — disse Munir —, Mohamad não gosta de admitir que quer um lar. Ele nunca vai

admitir isso, sabe. Mas se você encontrar um lugar e deixar esse lugar bonito, deixar mobiliado e pronto para ele, Mohamad vai ficar muito feliz.

20 A OPERAÇÃO

DEPOIS DE DOIS ANOS E OITO MESES (segundo o meu calendário), com a ajuda heroica de Leena, Mohamad finalmente assinou o contrato de aluguel de um apartamento num bairro entre o Hamra e o mar. Em maio de 2006, retiramos livros, roupas e móveis do depósito. Nossa casa ficava na rua Najib Ardati, a mais ou menos duas quadras do Mediterrâneo, bem ao lado do antigo farol listrado de preto e branco que dava nome ao bairro: Manara. Tinha uma sacada grande, uma cozinha de verdade, com uma geladeira de verdade e um fogão de verdade. Da janela da cozinha, eu via uma porção trapezoidal das águas do Mediterrâneo, que ficava com uma cor diferente a cada dia, um gigantesco anel do humor da cidade. Comecei a fazer aulas de árabe na rua Bliss. Minha professora, Hayat, morava no apartamento ao lado do nosso e a rede de fofoca do bairro era tão extensa que ela sabia exatamente quanto nós pagávamos de aluguel antes mesmo de desempacotarmos tudo. Adotei um gatinho laranja vira-lata quase morto de fome que demos o nome de Shaitan. Assim que nos mudamos, Umm Hassane veio nos fazer uma longa visita, instalando-se no sofá e tomando posse do controle remoto. Depois de meses de luto pelo marido na companhia de parentes, Umm Hassane se viu sozinha no apartamento vazio em Tayuneh. Ela começou a sentir dores misteriosas nas pernas e nas costas. Caminhava com dificuldade, fazendo caretas a cada passo, e mal saía do sofá da sala. O médico diagnosticou hérnia de disco e prescreveu cirurgia corretiva. Aos 74 anos, Umm Hassane nunca tinha feito uma cirurgia na vida, e o simples fato de ouvir a palavra a apavorou. (Como outros de sua geração, ela se recusava a falar o nome de doenças como câncer em voz alta; em vez disso, sussurrava “aquela doença”.) Em árabe, como em inglês, uma “operação” pode tanto ser militar quanto médica: uma batalha, uma invasão, um ataque. Conforme o ataque à sua coluna vertebral se aproximava, ela encarava A Operação como se estivesse indo para uma batalha da qual poderia não voltar. Apesar do medo, A Operação correu bem. Ela voltou para casa carregada de opiatos sintéticos e recuperou a posse do sofá e do controle remoto. Ainda não conseguia andar sem ajuda, mas estava mais corada e até sua ladainha do sofrimento recuperara certo vigor. Mas quando perguntávamos como estava se sentindo fazia uma carranca e anunciava: — A Operação falhou. Depois de um tempo, estava recuperada o suficiente para que eu a levasse para dar pequenas caminhadas. Ela reclamava com amargura: — Como posso caminhar com toda essa dor? No entanto, nunca recusava o passeio. Agarrava-se a meu braço ao mancar pela rua, olhando ao redor para o novo bairro, novos açougueiros e padarias, novos verdureiros; uma vizinhança completamente nova de vítimas. Umm Hassane recuperava sua força aterrorizando comerciantes locais e qualquer um que cruzasse seu caminho. Estávamos andando pela rua Makdisi um dia quando uma pedinte se aproximou de nós com a mão estendida. Hamra era cheio de pedintes — homens, mulheres, crianças pequenas. A maioria das pessoas os contornava sem problema, olhando para o outro lado como se eles fossem invisíveis. Umm Hassane voou

até a pedinte como um galo vingador. — Saia daqui! Vá! — ralhou ela, batendo as mãos perto do rosto da mulher. A súplica teatral no rosto da mulher virou horror e ela escapuliu pela rua. — Umm Hassane, haraam — disse eu. — E se ela precisa do dinheiro? — Precisa do dinheiro? — retrucou, carrancuda. — Que trabalhe! — Talvez ela seja palestina ou beduína — sugeri. — Talvez não consiga os documentos para trabalhar legalmente. Umm Hassane bufou. — Ela é jovem! Pode varrer o chão! Pode esfregar! Como eu, Umm Hassane já tinha limpado casas para sobreviver. Ao contrário de mim, considerava isso a solução incontestável para todas as queixas de injustiça social, da pobreza à migração forçada. — Que limpem casas! — decretava ela, com um movimento régio de braço, como uma Maria Antonieta um pouco mais prática. Ao final de cada caminhada, eu tinha que redesenhar o mapa mental da vizinhança: de agora em diante precisaria andar uma quadra a mais na Sidani para evitar o açougueiro que ela tinha insultado. E levaria um ou dois meses até que eu retomasse a coragem de voltar ao verdureiro da Adonis. Ela era especialmente cruel com os jovens estudantes do Cesto Saudável. Era um projeto de agricultura que tinha o apoio da comunidade, gerenciado pela Universidade Americana de Beirute, que vendia produtos de pequenas fazendas orgânicas em lojas por baixo custo. Os alimentos custavam um pouco mais que as importações no mercado, mas ainda assim eram baratos, mais gostosos, duravam mais e a iniciativa apoiava os fazendeiros locais. (Eu não falava nada sobre esse último argumento, imaginando que os fallaheen entrariam na categoria de pedintes de acordo com Umm Hassane.) Quando levei Umm Hassane mancando pelas escadas do Cesto Saudável, os estudantes de agricultura sorriram com doçura. Quem seria essa adorável hajji? Umm Hassane olhou em volta para as prateleiras de madeira crua, onde cebolas e berinjelas estavam empilhadas de modo nada artístico em grandes caixas de madeira, e franziu a testa. Os khadarjis arrumavam seus produtos em montes coloridos e pulverizavam-nos com água para que brilhassem. Cortavam a melhor laranja sanguínea para que se pudesse ver a carne roxa dentro dela e a deixavam em cima das outras. Essas pessoas apenas largavam suas frutas e verduras em qualquer lugar. — Que lugar é esse? — perguntou. — Nossos alimentos são um pouco mais caros porque são cultivados sem químicos — explicou Eliane, uma das estudantes de agricultura. — É mais saudável e ajuda os fazendeiros locais. O rosto de Umm Hassane não escondia o que ela pensava: essa coisa toda de fazendeiros e químicos era uma manobra escandalosa para enganar estrangeiros bobos como eu. Ela pegou uma maçã e a inspecionou com raiva. Era sem forma, como as maçãs orgânicas tendem a ser, com verrugas, covinhas e um pouquinho de sujeira. Custava duas vezes o que ela pagava pelas maçãs importadas no dahiyeh. Ela protestou alto enquanto eu pagava dois dólares por dois quilos de maçã. Minha compra era uma derrota tática para o lado da honestidade e da economia; então, quando saímos, só para mostrar quem é que mandava, Umm Hassane apontou para uma lavanda no vaso do lado de fora da loja e ordenou que um dos estudantes de agricultura a desenterrasse e que a desse para nós. Ele ficou muito atordoado para desobedecer. Desenterrou a planta e nos deu com um sorriso nervoso. — Eles estão enganando a Annia, aqueles ladrões lá! — sussurrou ela para Mohamad quando chegamos em casa. — Byidahaku alaiha — disse, irritada —, eles estão rindo nas costas dela, puxando a perna. Eu não podia culpá-la. Tantas coisas no Líbano eram uma fraude. A economia era uma fraude; o mercado imobiliário era uma fraude; os partidos políticos não passavam de pura fraude. Até a comida era

uma fraude: comerciantes inescrupulosos “requentavam” rótulos de alimentos vencidos, vendiam azeite de oliva podre, colocavam água no leite. Depois de uma vida de desconfiança era difícil acreditar que alguém pudesse fazer uma coisa boa para os outros — principalmente pessoas que não tinham wasta, como fallaheen — a não ser que fosse parte de uma fraude mais ousada e ainda mais sinistra. O que mais a irritava era que esses bandidos nem se preocupavam em inventar uma boa mentira. — Sem químicos? — Ela revirou os olhos e levantou as mãos para o céu irada. — Não dá para cultivar maçãs sem químicos! Umm Hassane dominou nossa sala de estar. Ocupava o sofá o dia inteiro e o deixava minado com bolinhas de lenço usado quando se recolhia à noite. Comandava o banheiro social, pegava o sabonete líquido de lavanda para as mãos e o esmagava com punhos cerrados para extrair o sabonete. Chegávamos em casa e a encontrávamos encostada como uma paxá rodeada de parentes de Bint Jbeil, velhas hajjis com as cabeças cobertas e velhos baixinhos que se sentavam duros em cadeiras de encosto reto ao seu redor enquanto ela os regalava com contos sobre A Operação. Ela recebia mais ligações que nós dois juntos. Muitas manhãs, eu ia até a sala e a encontrava já ao telefone trocando condolências com algum parente. No início de julho, um jornal me mandou cobrir uma história sobre o “Playboy Conspirador”, o filho mimado de uma “boa” família de Beirute que havia feito contato com grupos ligados à Al-Qaeda pela internet e expressado um desejo de realizar bombardeios em Nova York. Quando liguei para a mãe do conspirador, ela atendeu na hora, como se estivesse esperando pela minha ligação. Perguntei por que ela achava que o filho havia se tornado um militante islâmico. “Shu yaani?”, ela gritou, desconcertada. Repeti a pergunta em árabe, apesar de ela supostamente falar inglês, mas ela continuou confusa. Finalmente percebi que não era a mãe do Playboy Conspirador, mas uma tia velhinha de Bint Jbeil que já estava na linha, ligando para Umm Hassane, quando retirei o fone do gancho. Até nossos telefones quase não pertenciam mais a nós. Mas a comida era o verdadeiro campo de batalha, e aqui a pergunta retórica era a arma mais poderosa de Umm Hassane. Ao responder nossas perguntas mais simples, ela lançava uma salva retórica que nos deixava, seus atacantes, impotentes. — Umm Hassane, a senhora está com fome? — Como posso ter apetite? — Umm Hassane, o que a senhora quer comer? — Como posso comer com toda essa dor? — Umm Hassane — percebendo que teríamos que recorrer a perguntas específicas se tínhamos alguma esperança de sermos respondidos —, a senhora quer salada e batatas? — Se você vai fazer, talvez — dizia e, em seguida, jogando as mãos para cima, depreciando —, mas não se você for fazer só para mim! Se perguntássemos “Biddik shi?”, você quer alguma coisa?, ela respondia, desesperada: “Shu biddi? Shu biddi akel?”, o que eu quero? O que posso comer? Mohamad dizia que essas eram “tentativas não tão sutis de nos dizer que não temos nada para comer”. Na maioria das vezes ela dizia apenas “Shu baarifni?”. Literalmente, significa: “e o que eu sei?”. Mas como o “pode ser” de um adolescente, ou o “ah, esquece!” de um espertinho, shu baarifni continha vários significados cambiantes. Da boca de Umm Hassane, significava: me deixa em paz; não me deixa em paz; não sei o que eu quero; quero que você saiba o que quero sem eu precisar pedir ou mesmo sem eu saber o que quero. Sua outra expressão favorita era “Ma btifru maai”, não faz diferença para mim. Isso significava que, no fundo, opiniões violentas eram sufocadas num esforço sobre-humano da parte dela. Todas essas expressões

continham uma camada de maestria passivo-agressiva que me impressionava muito, apesar de ser muito frustrante, e comecei a pensar que Umm Hassane poderia ganhar milhões dando palestras de comunicação corporativa. No fim, a maioria das saídas retóricas de Umm Hassane significava apenas sim. Elas diziam: Por que vocês não estão comendo? Por que não estão comendo o que eu como? Por que não estamos todos comendo juntos, a mesma coisa, ao mesmo tempo? As guerras a respeito da comida vieram à tona em uma sexta-feira, quando perguntei se ela queria um sanduíche de pepino e labneh para o almoço. Aparentemente, servir arous como um lanche era uma coisa, e oferecê-lo para o almoço, outra completamente diferente. — Ultimamente só como labneh — choramingou. — Como ontem, comi hoje de manhã. Azit nafsi, minha alma, meu apetite desiste. — Ela ficou ofendida por você ter oferecido isso a ela — sussurrou Mohamad para mim na cozinha. — É comida de criança. — Então o que é que ela quer? Mohamad foi até a sala para investigar. Depois das formalidades corriqueiras — “O quê? Eu, comer?” — ela deu a ele uma lista de reclamações: não tínhamos salada, nem carne, nem pão. E o pior de tudo, não tínhamos o óleo mais elementar das cozinhas libanesas: Mazola. Ela reclamou da loucura de cozinhar com nada além de azeite de oliva — o azeite de oliva não era para cozinhar, como todos sabiam, e como podíamos viver daquele jeito? Mohamad andava para lá e para cá, um embaixador relutante, enquanto eu esperava na cozinha para descobrir o que ela queria. Finalmente, depois de alguma adulação, ela concordou com um sanduíche de frango feito com sobras de shish taouk. Pedi a ele que descobrisse se ela queria alho, homus e picles, os ingredientes tradicionais de um sanduíche como esse. Ele voltou com uma resposta bem Umm Hassane: — E por que é que eu ia querer homus? — Ela está sendo insolente — murmurou ele ao voltar para a cozinha onde estávamos nos escondendo de sua ira. — Eles são todos pseudomártires, toda a minha família. Amávamos tê-la em casa. Traríamos para ela qualquer coisa que pedisse — mas ela se recusava a pedir. De alguma forma, essa mulher, o terror dos verdureiros e dos estudantes de agricultura, não conseguia articular seus desejos na privacidade de nossa casa. Ela estava tentando tanto não nos atrapalhar, não ser um fardo, que acabou nos deixando quase malucos. — Tive uma ideia — disse a Mohamad um dia, quando estávamos na cozinha. O que ela queria de verdade era que fizéssemos alvoroço por ela, que a agradássemos e cuidássemos dela. Mas Umm Hassane era da geração de minha avó: criada para colocar os outros acima de si mesma, para nunca admitir os próprios desejos, exceto no contexto de negá-los. Elas mostravam seu amor cozinhando e reclamando. Para essas mulheres, a cozinha era um dos poucos lugares em que podiam ser rainhas incontestáveis. Esbocei um plano: pediria a Umm Hassane para me ensinar a cozinhar comida tradicional libanesa, sob o pretexto de que eu tinha que aprender a cozinhar para Mohamad, como uma esposa zelosa. Em vez da mistura de coisas extravagantes que eu fazia só para mim, Umm Hassane me ensinaria a fazer a comida camponesa do Líbano — mlukhieh, sayadieh, burgul wa banadura, quibe nayeh. Eu aprenderia algo novo; ela teria uma missão, algo que a fizesse se sentir valorizada. E se isso fazia com que eu parecesse uma esposa obediente, era um preço que estava disposta a pagar. No dia em que planejamos fazer mlukhieh, entrei na cozinha tarde. Umm Hassane estava acordada desde as

sete da manhã ensaiando cada pedacinho do trabalho. Perto da pia, uma galinha crua se esparramava no balcão, esperando por mim como uma acusação nua. — Lave! — comandou ela, ao entrar mancando na cozinha e apontar para a galinha. — Fazer café — sussurrei, indo até a chaleira. Eu mal conseguia me comunicar em inglês, muito menos em árabe, antes de tomar meu café. Era claro que não tinha entendido. Elevando a voz ao máximo, Umm Hassane apontou para a pia e repetiu as ordens: — A galinha! Lave! Nós ainda nem havíamos começado a cozinhar e já estávamos caminhando para uma daquelas conversas de choque de civilização em que as pessoas ficavam gritando substantivos em árabe sem parar — ÁGUA! ÁGUA! — pensando que eu era surda e simplória, mas nunca explicando exatamente o que queriam que eu fizesse com a porcaria da água. Enquanto isso, eu ficava parada lá, engasgando com verbos básicos e pensando: isso é uma amostra de como deve ser para um motorista de táxi, um ajudante de garçom, uma camareira, qualquer dos primeiros empregos que os imigrantes conseguem nos Estados Unidos quando ainda estão aprendendo inglês. Esses encontros em geral se deterioravam em algo assim: — Fazer café! — Lavar galinha! — Café! — Galinha! — Café! — Galinha! Então me lembrei de um velho hábito de minha avó. Sempre que estava com vontade de alguma coisa — um hambúrguer, um cigarro, uma cerveja — ela dizia: “Você quer uma cerveja, não quer?” “Você não quer um hambúrguer?” “Você quer que eu enrole um cigarro para você?” Na época, isso me deixava doida. “Não, vó, você quer um hambúrguer”, eu dizia. Por que ela não podia simplesmente admitir que queria uma cerveja? Ela mandava na cozinha, por que não podia simplesmente pegar o que queria? A vida da minha avó girar em torno das vontades de outras pessoas — ela precisar justificar seus desejos, até para ela mesma — era algo que eu não entendia, até muito depois de ela ter falecido. — Umm Hassane — disse eu. — A senhora não quer uma xícara de café? A senhora gosta de café, não gosta? E assim nasceu nosso ritual matinal de bolo e café. Naquela manhã, antes de fazer o mlukhieh, Umm Hassane e eu nos sentamos na sacada e comemos bolo de chocolate e tomamos café. Daquele dia em diante, fizemos isso todas as manhãs. Tínhamos conversas truncadas e assistíamos aos rituais matinais da cidade: pombos rodopiando no céu, o trânsito na Corniche, empregadas batendo tapetes nas sacadas. Ela esticava as pernas e deleitava-se ao sol. Normalmente, ela desaprovaria tamanha ociosidade; as pessoas deviam estar limpando casas. Mas por ser parte de minhas aulas de culinária, estava tudo bem. Na verdade, ela estava fazendo aquilo pelo meu bem. Certa manhã, sentadas olhando para nossa porção de água do Mediterrâneo, ela abaixou as pernas e arrastou a cadeira para mais perto da minha. Inclinou-se para a frente, olhou para mim com uma expressão intensa, e ordenou: — Traga-me um bebê! — Mas nós temos um gato — retruquei. — Quem precisa de um bebê? — Um gato! O que é um gato? — disse ela, descartando com irritação minha fuga. — Traga-me um bebê!

Como eu poderia explicar para ela que nossas vidas ainda eram muito confusas, muito instáveis? Correspondentes de guerra não andavam pelo Oriente Médio com bebês; ou que mesmo agora, que estávamos começando a nos estabelecer, não sabíamos onde queríamos morar de maneira permanente? Eu definitivamente não tinha o árabe — ou mesmo o inglês, naquela hora da manhã — para expressar a variedade de emoções que aquela ordem despertava. — Eu quero um bebê — disse a ela, encolhendo os ombros inocentemente —, mas Mohamad não. Esse era outro truque que eu tinha aprendido na escola de culinária e da retórica de Umm Hassane: sempre que ela queria alguma coisa do jeito dela, afirmava, piamente, que Mohamad Ali gostava disso assim ou Mohamad Ali queria isso. Mas eu devia saber que não era para tentar virar a espada da mestra contra ela. — Mohamad não quer? — rosnou ela, atirando para o lado a opinião dele com um movimento do queixo. — Quem liga para o que ele diz? Traga-me um bebê!

Parte IV COMER, REZAR, GUERREAR

“Comer é uma coisa simples e boa numa hora como esta.” — Raymond Carver, A Small, Good Thing

21 MEDO E COMPRAS

EU ESTAVA NA AULA DE ÁRABE, numa manhã quente de julho, quando Leena ligou. — O Hezbollah sequestrou dois soldados israelenses hoje de manhã; estou indo fazer as unhas — anunciou, como se essa fosse a progressão natural das coisas. — Pode demorar para eu ter uma chance de ir ao salão de beleza de novo — explicou em seguida e foi aí que comecei a suspeitar que seria mais que uma troca de prisioneiros dessa vez. — Muito bem, turma — disse minha professora de árabe, suspirando. Considerada muito bonita em sua época, Hayat usava conjuntos de lã e óculos pendurados por uma longa corrente dourada. Suas sobrancelhas estavam sempre desenhadas em arcos precisos, o cabelo castanho chocolate arrumado com altivez. Pensei que ela fosse nos mandar para casa, mas Hayat lidava com desastres, deslocamento e guerra como uma beirutense por excelência: — Hoje acho que vamos aprender umas palavras novas. Quem conhece o verbo “sequestrar”? Virando-se para o quadro-negro, escreveu os termos em árabe para “sequestrar”, “explosão”, “assassinato”. Logo os alunos estavam gritando palavras do vocabulário: Como é que se diz troca de prisioneiros? Negociação? Carro-bomba? Alguns minutos depois, o telefone de Hayat tocou e ela atendeu. Sua expressão mudou ao longo da ligação. — Maal asaf — suspirou. — Acho que todos deveríamos ir para casa. Andei pela rua Bliss em direção à nossa casa. Carros isolados e táxis passavam rapidamente rumo a qualquer destino que julgassem seguro. Soldados e veículos blindados andavam pelas ruas na direção da Corniche e da estrada que levava ao aeroporto. Lojas e escolas ainda estavam abertas, mas naquele primeiro dia, quando os israelenses bombardearam o sul do Líbano, a maioria das pessoas em Beirute ficou em casa. — Durante a guerra civil, era comum as pessoas correrem para as lojas sempre que acreditavam que aconteceria um ataque para comprar o que pudessem — disse Hayat quando liguei para ela naquela tarde. — Hoje as lojas ficaram abertas como de costume, mas com menos pessoas que o normal. — A cidade inteira aguardava. No dia seguinte, aviões de guerra israelenses bombardearam o aeroporto e os tanques de combustível da usina elétrica de Jiyeh. Silenciosa e simultaneamente, a cidade inteira ouviu a mesma invocação, e toda Beirute atendeu ao chamado, preparando-se para a guerra com uma antiga tradição libanesa: fazer compras. Na Smith’s, as prateleiras já estavam vazias. O balcão refrigerado estava limpo — nada de iogurte, nada de labneh, nada de leite. Enquanto hesitava e esperava para ver o que ia acontecer, meus vizinhos já se alvoroçavam no supermercado, limpando-o como se seguissem comandos de batalha — o que, de certa forma, estavam. Em tempos de guerra, fazer compras se torna um exercício darwiniano de acumular a maior quantidade de calorias no menor tempo. A população de Beirute tinha tanta prática nessas compras de combate dominadas pela adrenalina que as fazia sem nem perder o senso de estilo.

Observei desamparada enquanto um jovem andava preguiçoso pela seção de laticínios com o cabelo impecavelmente arrumado e jeans da Diesel, seguido por uma empregada do Sri Lanka em uniforme engomado. Com um tédio infinito, ele apontava para os itens nas prateleiras: uma caixa de macarrão, um vidro de corações de alcachofra. Ela recolhia os desideratos e os colocava cuidadosamente na cesta. Ele divagava, olhando de um lado para o outro através de olhos sonolentos, meio fechados, como se a loja fosse uma boate e nenhuma das meninas fosse bonita o suficiente para ele. Era tão indiferente que mal queimava calorias. Eu estava começando a suar só de olhar para ele. Andei pelos corredores devastados pegando os produtos aleatórios e inúteis que restavam: uma lata de creme de milho. Macarrão tricolor. Bacon embalado a vácuo. Tortellini seco, que Mohamad e eu comeríamos durante toda a guerra e para sempre falaríamos dele, com um arrepio de repulsa, como “o macarrão da guerra”. As pessoas compravam comida para enfrentar o cerco, qualquer coisa que não precisasse de refrigeração — leite em pó, latas de homus, feijão, trigo rachado. Mas também sucumbiam a desejos menos racionais, como iogurte, que estragaria quando começasse a faltar eletricidade. Quando liguei para minha amiga Nahlah para saber o que queria, ela pediu biscoitos de arroz. Comprei seis caixas para ela e uma mistura de bolo de chocolate para mim. E todos fizeram fila para comprar pão. No Oriente Médio, comida sem pão é como sopa sem tigela. A maior parte da comida árabe é feita ou com pão, ou para comer com pão, ou é pão. Nos anos de vacas magras, era ele que alimentava famílias inteiras. A vida girava em torno dele. Se um pedaço de pão caísse no chão, Umm Hassane o beijava e o apertava contra a testa antes de colocá-lo de novo na mesa. A maioria dos bairros de Beirute tem um furn, um forno de pão comunitário onde as pessoas se reúnem de manhã e no início da tarde para pegar manaeesh recém-assado, pequenas pizzas crocantes cobertas com zaatar, queijo, carne moída ou carneiro, ou linguiça armênia picante, para dizer apenas alguns tipos. O furn também supria as pessoas de novidades, fofocas, conversas — comunhão em seu sentido mais generoso. Durante a guerra civil libanesa, a padaria do bairro ficou ainda mais importante. Quando o gás de cozinha ficou escasso, as pessoas voltavam à velha prática de levar sua massa para o forno do bairro, resumida no antigo provérbio: Deixe que o padeiro asse sua massa, mesmo que roube metade dela. Mulheres e crianças saíam para fazer as compras — era menos provável que as confundissem com combatentes — e as mulheres que se reuniam na padaria do bairro ficaram conhecidas como niswan al furn, “as mulheres do forno”. No bairro da Beirute Ocidental onde minha amiga Barbara morava, as padarias eram território neutro durante a guerra civil. As pessoas passavam um jornal compartilhado por toda a fila, discutindo as notícias. — Geralmente havia irmãos em milícias diferentes, lutando um contra o outro — disse ela —, mas quando estavam no furn, eles eram neutros. Não havia guerra lá. Entretanto, outros guardavam memórias mais sombrias. Quando era criança, minha amiga Samar ficava na fila durante horas para comprar pão, vendo arrogantes combatentes do Amal e de outras milícias passarem a frente de todos e pegar a cota destinada ao bairro sem nem pagar. — Eu esperava na fila pelo pão e os adultos vinham e pegavam tudo e eu começava a chorar — lembrou meu amigo Malek (que acabou virando professor de nutrição). Às vezes, milicianos apossavam-se da padaria: se controlassem o abastecimento de pão, controlariam o bairro. Durante a guerra, a rede invisível de obrigações que chamamos de contrato social começou a ruir. Quando a destruição alcançou a padaria do bairro, foi o golpe final. Se tivesse pão, você poderia se convencer de que tinha o que o pão representava: uma vida estável e civilizada. Comprei cinco pães. Estragariam em um ou dois dias, mas quem não fica melhor depois de sentir o

cheiro de pão saído do forno? Tantas pessoas compraram pão naquele dia que o sindicato dos padeiros emitiu uma declaração às estações de rádio locais dizendo que era preciso parar de estocar pão. — Se continuarem a estocar pão — avisaram os padeiros ameaçadoramente —, vocês contribuirão para a crise. Tive que rir. Os padeiros fizeram parecer que um exército de donas de casa e empregadas do Sri Lanka tinha causado a guerra. Pensei no que Umm Hassane teria dito: — Se pararmos de comprar pão, Israel e o Hezbollah vão parar de bombardear um ao outro? Depois de estocar pão, fui a Haret Hreik com meu amigo Jackson, um radiorrepórter. No início daquele dia, o brigadeiro-general israelense Dan Halutz havia avisado que se o Hezbollah não parasse de atirar foguetes contra Israel os militares israelenses começariam a mirar áreas do Hezbollah, até em Beirute, e que os moradores dos dahiyeh podiam tirar suas próprias conclusões. Queríamos perguntar aos xiitas comuns o que achavam de sua guerra novinha em folha. As ruas estavam vazias, com exceção dos shabab, jovens, passando com ciclomotores com bandeiras amarelas do Hezbollah tremulando na parte traseira. Poucos homens mais velhos corriam para casa com mantimentos comprados às pressas, preparando-se para o sítio. Dentro de um prédio, vimos famílias lotando o elevador, em sua maioria casais mais velhos fugindo do bairro, agarrando-se a malas feitas da noite para o dia. Todas as pessoas que abordamos disseram que apoiavam “a resistência”. Mas olhavam em volta nervosas enquanto diziam: o Hezbollah está sempre de olho, sempre atento, e era isso o que eles deveriam dizer. Todos pareciam aterrorizados. Naquela noite, a cidade estava completamente silenciosa. Às 3h30, começou — um zumbido, algo cortou o céu, vindo de todos os lados como se estivesse emergindo do oceano. Nesse momento, o chamado à oração veio hesitante da mesquita. A voz fraca gravada do muezim afogou-se no rosnado crescente dos aviões de guerra. Fui para fora e fiquei parada na sacada. Os prédios agrupados em silêncio por todos os lados. Um sinal luminoso subiu perto dali, uma estrela cadente vermelha, fez um arco sobre a cidade silenciosa e foi em direção ao mar. Então vieram as rajadas de britadeira das metralhadoras antiaéreas. Em seguida as primeiras bombas. Voltei para dentro e fiquei deitada, acordada, ouvindo até o amanhecer escoar a escuridão do céu e, então, dormi. Acordei algumas horas depois quando um alerta de mensagem apitou em meu celular. Era de Usama, em Bagdá. Ele escreveu: “Espero que estejam bem e seguros. Todos no Iraque estamos preocupados com vocês.” Fiquei feliz em ter notícias dele, mas sua mensagem não foi animadora. Mohamad e eu fomos até a interseção Ghobeireh, a principal estrada que levava a dahiyeh. Um pedaço grande do viaduto estava caído sobre a estrada inferior, como se tivesse sido fatiado com uma faca gigante, bloqueando o acesso a dahiyeh e ao aeroporto como num golpe de caratê. Atrás da ponte destruída, uma escultura de cimento em tamanho real do aiatolá Khomeini dominava a cena, praticamente intocada. Ela tinha algumas cicatrizes, mas não sabia dizer se eram dessa guerra ou da anterior. No aeroporto, uma gigantesca coluna de fumaça preta e oleosa saía de uma bola de fogo laranja dos tanques de combustível bombardeados. Uma Ferrari vermelho-cereja estava abandonada. Outdoors com ripas verticais estalavam e rodavam com anúncios alternados de salões de beleza para homens, colares de diamante e geradores de energia. Do lado de fora do terminal moderno e reluzente, arbustos haviam sido podados para soletrar o novo nome do aeroporto: Aeroporto Internacional Rafic Hariri. Do lado de dentro, o terminal estava vazio, exceto por um punhado de soldados. Painéis eletrônicos brilhavam com os horários de partida e chegada de voos que jamais aconteceriam. De uma janela com vista

para o terminal, um homem grisalho acenou para que subíssemos. No escritório apertado, uma equipe com funcionários de três linhas aéreas do Oriente Médio atendia ligações frenéticas de visitantes presos no Líbano. Shehadeh Zaiter, o gerente grisalho, havia mantido o escritório aberto durante a guerra civil. — Não se preocupem, estamos seguros — disse ele orgulhoso. — Durante a guerra costumávamos andar pelas pistas, entre as bombas. Enquanto falava, um míssil caiu do lado de fora. O terminal tremeu. Então outro, ainda mais perto. Um soldado correu para a porta do escritório e gritou que descêssemos ao porão. Descemos correndo pelas escadas rolantes paradas, acotovelando-nos como um grupo de passageiros que corriam para pegar um voo. Lá embaixo, cercados por soldados nervosos e famintos, Zaiter nos chamou para longe do grupo. Se achávamos que a guerra ia durar muito tempo? Não sabíamos o que dizer a ele. Respondemos que era provável que sim. — Que Deus nos ajude — disse ele baixinho. Meu amigo Salaam, o comunista, ligou de Bagdá. — Sinto muito por ver isso acontecer com o Líbano — disse. Então riu e completou maldosamente: — Eu queria que acontecesse com a Arábia Saudita e os outros países árabes. Mas agora estava claro que o Hezbollah havia calculado mal a resposta israelense quando sequestrou os dois soldados. Israel bombardeou o aeroporto e pontes, bloqueou os portos e matou diversas pessoas, a maioria delas civis. Depois de uma coletiva desafiante no dia do sequestro, Hassan Nasrallah desapareceu. Circulavam rumores de que havia sido atingido por um míssil israelense. As pessoas começavam a imaginar que ele estaria morto. Naquela noite, sexta, 14 de julho, mais ou menos às 20h30, Nasrallah fez um pronunciamento, transmitido pelo canal de TV do Hezbollah, Al-Manar. Sua voz estava abatida e cansada, mas a fotografia que acompanhava seu discurso, algo surreal, mostrava o sorriso bochechudo que era sua marca registrada. Ele ofereceu condolências às famílias dos mártires que haviam oferecido suas vidas “ao mais nobre confronto e batalha que a Idade Moderna conheceu, ou melhor, que toda a história conheceu”. Ele lembrou os libaneses da vitória que tiveram no dia 25 de maio de 2000, quando as tropas israelenses se retiraram do sul do Líbano. Então fez algo que ninguém esperava. Lembrando sua audiência de que havia lhes prometido “surpresas”, anunciou que começariam naquele instante. — Agora, no meio do mar, de frente para Beirute, o navio de guerra israelense que atacou a infraestrutura, as casas das pessoas e os civis… vejam-no queimar — disse ele calmamente. Era uma noite quente, e estávamos com todas as janelas abertas. Manara era um bairro misto, não particularmente xiita, ou mesmo apenas muçulmano, mas quando Nasrallah deu sua declaração dramática podíamos ouvir palmas e gritos de comemoração dos apartamentos nas redondezas. Mohamad e eu corremos para o telhado. Conseguíamos ver um brilho laranja, como sinais luminosos, disparados do mar para o céu. No mar, um míssil C-802 feito no Irã havia atingido o navio de guerra. Lá embaixo, caravanas de carros andavam pelas ruas buzinando em comemoração, como se a morte e a destruição que tinham acontecido e certamente aconteceriam de novo fossem um casamento ou uma vitória na Copa do Mundo. — Isso é uma guerra guerra, não é uma guerra civil — disse eu, em uma visão repentina de Estadosnação colidindo no ar acima de nós como dirigíveis. — Isso não tem nada a ver com o que aconteceu em Bagdá.

— Não, não tem — concordou Mohamad. — É isso o que venho tentando explicar para você. No apartamento, Umm Hassane não estava impressionada com o gesto dramático de Nasrallah. — Por que o Hezbollah está fazendo isso agora? O que estão pensando? — reclamou ela. — Vejam o Egito e a Jordânia e todos os outros países árabes, eles não estão atacando Israel. É só no Líbano que forçamos a barra assim. Sábado de manhã, no povoado de Marwahin, no sul do Líbano, as Forças de Defesa israelenses ordenaram que as pessoas evacuassem a região. Quando elas saíram, a artilharia abriu fogo contra o comboio de moradores que fugia e matou pelo menos dezesseis pessoas. Em Beirute, as pessoas se concentravam em detalhes, em pequenas tarefas que pareciam irrelevantes, mas tinham a virtude de ser algo passível de controle. Umm Hassane me parou quando eu saía para trabalhar e perguntou em tom de urgência se eu planejava passar pano no chão. Nosso bairro inteiro estava lavando roupas. Prédios balançavam, repentinamente festivos, como o cordame de um navio. Lençóis, toalhas, fronhas drapejavam, quarando ao sol. Uma cidade de bandeiras brancas. Mohamad interpretou os lençóis brancos pendurados de uma maneira diferente da minha — como um sinal de que a água e a eletricidade não iam durar — e de repente estava empenhado em lavar roupa. Mas ele queria que eu lavasse enquanto ele trabalhava. — Por que é que eu tenho que lavar a merda da roupa? — gritei. — Porque tenho uma merda de um emprego, e você não — estourou ele. Eu também estava trabalhando muito: tinha quatro matérias para entregar e havia acabado de recusar a quinta. Mas como freelancer ganhava apenas uma fração do salário dele. — Acho que vou me divorciar! — gritei. Ele pediu desculpas. Eu pedi desculpas. Lavamos as roupas juntos. Liguei para Hania, uma ativista dos direitos dos animais que havia me ajudado depois que adotei Shaitan. Ela andava pela cidade alimentando gatos e cachorros vira-latas. — Então, você ainda está aqui — disse ela. — Fiquei pensando se você era uma das pessoas que iria embora ou das que ficaria, estando casada com um libanês. Fui para o Smith’s ver se tinham leite (não tinham). Havia um jovem açougueiro no balcão de carnes que sempre me contava piadas horríveis para praticar o inglês. Ele tentou contar uma, algo sobre uma galinha usando um ovo em volta do pescoço. Não fazia sentido nenhum, mas eu ri mesmo assim, porque o rosto dele tinha a aparência ansiosa de alguém que tentava não cair no choro. — Você vai embora? — perguntou ele, quando me entregou o frango. — Não — respondi. — Eu moro aqui. De volta em casa, fiquei parada na frente da pia da cozinha, comendo um sanduíche e olhando pela janela para o antigo farol listrado em preto e branco. Não havia eletricidade; eu teria que preparar o frango logo e depois terminaria de escrever minhas matérias e então… Ouvi um barulho metálico bem alto que parecia vir de todos os lados, como se o mar fosse uma tigela de metal gigante em que alguém houvesse batido com um martelo. As janelas foram sugadas para dentro e depois pressionadas para fora, o vidro tão maleável quanto plástico. Shaitan correu para a despensa e ficou escondido sob uma prateleira. Os israelenses haviam bombardeado o novo farol, uma torre prateada alta que ficava perto dali. O bombardeio tivera um estranho alvo — a torre ficara ilesa, exceto no topo, do qual pendia um metal entortado. Levei alguns minutos para perceber o óbvio: o antigo farol ficava na frente de nossa cozinha e de nossa sala. Se fosse o próximo alvo do bombardeio, por mais preciso que este fosse, toda a frente do apartamento seria atingida por estilhaços de vidro.

— Umm Hassane, temos que sair daqui — disse eu. Não tinha ideia de para onde poderíamos ir, mas tínhamos que sair do apartamento. — Não vou sair daqui — respondeu ela, colocando o queixo para o alto e sentando novamente no sofá com os braços cruzados. — Não vou a lugar nenhum. Que me matem, ma btifru maai, nem me importo. A casa de tia Khadija foi bombardeada. A casa de tia Nahla em Bint Jbeil foi bombardeada. A casa de Batoul e Hajj Naji foi bombardeada. Vários parentes apareceram em nosso apartamento, carregando malas e expressões nervosas, e sentaram em nossa sala com Umm Hassane tentando decidir para onde poderiam ir. Hajj Naji ficou com seus primos; tia Nahla ficou com o irmão; o filho de tia Khadija ficou conosco até que conseguisse ir para outro lugar. Era um jogo, e todo o Líbano estava participando. Todos os dias pessoas fugiam para Beirute, carregando mochilas gastas cheias de roupas e sacos plásticos com pães. Motoristas cobravam de quatrocentos a quinhentos dólares para trazer as pessoas do sul, mais ou menos quarenta vezes o preço em tempos de paz. O preço da gasolina subiu, em algumas áreas, até 500%. Escolas, hospitais e os poucos espaços públicos estavam todos cheios de refugiados. Quando o bombardeio parou, um mês depois, havia quase um milhão de refugiados internos — quase um quarto da população do Líbano. Fui a um pequeno parque público chamado Jardim Sanayeh com Jackson e meu amigo Abdulrahman, que andava por Ras Beirut comprando comida e remédios para os refugiados com seu próprio dinheiro. Centenas de pessoas que haviam fugido do bombardeio no sul do Líbano dormiam nas ruas e embaixo de árvores. Uma família estava acampada embaixo de uma árvore e pendurou uma gaiola com um canário no galho, além de montar um pequeno fogão. Um bebê engatinhava por essa cozinha ao ar livre, mastigando uma bolachinha, e um menino de quatro anos me entregou, tímido, um biscoito. Andamos por lá e conversamos com os refugiados durante uma hora. Não havia ninguém, autoridade ou representante, do governo libanês; nenhuma evidência daquilo a que o presidente George W. Bush tinha se referido no início daquele dia, ao receber um barril de arenque em conserva da chanceler alemã Angela Merkel, como a “frágil democracia” do Líbano. As únicas pessoas que estavam fazendo alguma coisa pela crise dos refugiados no Jardim Sanayeh eram alguns estudantes adolescentes e de vinte e poucos anos, um deles usando tala e curativo de uma recente plástica no nariz. A maioria deles era do Partido Social Nacionalista Sírio, um partido secular alinhado com o Hezbollah. — As milícias estão cuidando dos refugiados — disse Abdulrahman com desgosto, quando saímos do parque. — Mish maaoul, inacreditável. A história era a mesma por toda a cidade. A maioria dos centros de refugiados que visitamos, em escolas e outros prédios vazios, era gerenciada pelo Amal. Em Tayuneh, a algumas quadras do apartamento de Umm Hassane, havia um shopping em construção. Bem abaixo da superfície, milhares de refugiados estavam amontoados no estacionamento subterrâneo. Centenas de refugiados ocupavam cada nível da catacumba de pedra; quanto mais baixo, mais miseráveis eram, como os anéis do inferno. O cheiro pressionava e entrava pela boca como uma cobra; merda, mijo e comida apodrecendo, bebês vomitando e pessoas tossindo, o suor e o ar viciado de centenas de humanos. Geradores enormes cantarolavam e mal mantinham as luzes fluorescentes acesas. Para entrar ou sair, ou andar entre os níveis, filas de pessoas espremiam-se subindo e descendo simultaneamente escadas que tinham largura suficiente para que passasse apenas uma por vez. Cada família tinha montado uma área temporária dentro das linhas riscadas que marcavam as vagas do estacionamento. Espalhavam-se sobre cobertores e esteiras de palha, com fraldas e roupas amarrotadas em volta deles. Quatro andares abaixo da terra, Jackson e eu acabamos conversando com uma estudante de ciências

políticas de 23 anos que usava uma camiseta de algodão rosa, uma loira muito bonita com olhos pintados de vermelho. Seu nome era Rowina. — Você é a terceira pessoa que vem nos ver — disse ela. A primeira a descer até refugiados era do Hezbollah. A segunda era do Amal. Ela tinha deixado sua casa em Haret Hreik havia três dias, quando Halutz deu seu aviso, e desde que os aviões de guerra bombardearam seu apartamento, ela estava embaixo da terra. — Sentada. Só sentada — disse ela, abraçando a irmã de sete anos, Fatima. — Se alguém vem do lado de fora, perguntamos para ele: “Quais são as novidades?” Perguntei a Rowina por que ela não ia lá para cima, por que tantas famílias ficavam na escuridão. O ar não era muito melhor acima da terra? — Sim — respondeu —, mas quando subirmos, as bombas poderão vir. Se o shopping fosse bombardeado, todos seriam enterrados vivos, mas não comentei nada sobre isso. As tensões aumentavam sob a meia-luz fluorescente do estacionamento. Homens começaram a gritar e a se empurrar. Quando pessoas ficam alojadas como ratos sob o solo durante dias, não é preciso muito para começar uma guerra. Fui embora. Enquanto subíamos a rampa do estacionamento, saindo da fétida cidade subterrânea, encontramos funcionários do Hezbollah descendo. Levavam cinco carrinhos de mercado cheios de compras pela curva longa e lenta da rampa. As pessoas embaralhavam-se lentamente numa multidão paciente, reunidas em silêncio diante dos carrinhos de compras, esperando serem alimentadas. Enquanto distribuíam a comida, os homens do Hezbollah entoavam em alto-falantes: “Allah Karim”, Deus é generoso. Quando contei a Umm Hassane a respeito das pessoas que dormiam no parque e as centenas de famílias do estacionamento subterrâneo, ela ficou furiosa. — As pessoas estão dormindo embaixo da terra e o Sayyid nem liga — disse ela, referindo-se a Nasrallah. Durante um discurso, Nasrallah havia prometido reconstruir as cidades e os bairros dizimados com a ajuda de “amigos”, o que deu a entender se tratar do Irã. As áreas bombardeadas ficariam novas, segundo ele — melhor que novas, cheias de luz e ar. — Ele disse que ia deixar o Líbano como era antes — disse ela, ecoando um comentário que tia Khadija havia feito. — Ele vai trazer os mortos de volta à vida? Fui visitar Paula, uma amiga. Ela era amiga minha e de Munir, uma socióloga com uma risada rouca, olhos inteligentes e um cabelo doido. Morava com a mãe num pequeno apartamento a algumas quadras do nosso. Ficamos na cozinha fumando um cigarro atrás do outro, espremendo limões e misturando com vodca. Ela deveria estar terminando sua tese de doutorado sobre “Mulheres empreendedoras no Líbano pós-guerra”. A mãe de Paula estava sentada a uma mesa antiga de madeira na cozinha, “corrigindo” um pacote de pão árabe. A tarefa era separar as duas metades e colocá-las de volta no pacote ao contrário. É um velho truque das donas de casa libanesas: expondo uma maior área da superfície do pão ao ar, atrasa-se a invasão inevitável do mofo, prolongando assim sua vida — uma técnica útil em tempos de paz, mas ainda mais essencial durante a guerra. Ainda havia farinha, mas Israel havia bombardeado estradas e pontes, impondo um bloqueio por terra, mar e ar. Quem sabia quanto tempo os suprimentos durariam? Assim Umm Paula estava corrigindo o pão. No Líbano, pais geralmente são conhecidos pelo nome de seu filho primogênito, não de sua filha, então ela era conhecida como Umm Pierre. Mas sempre a chamava de Umm Paula, e ela sempre ria. Umm Paula

tinha um rosto quadrado e um jeito sarcástico de resumir as coisas. Ela mancava ao andar, favorecendo uma perna, como um velho boxeador. Em 1963, ela e o marido deram o nome de Golda à irmã de Paula, em homenagem à primeira-ministra israelense Golda Meir — que não era a pessoa mais popular no Líbano, considerando que os dois países estavam em guerra desde 1948. Quando perguntei a Paula o motivo, ela cerrou um punho, bateu na palma da outra mão, mostrou os dentes em um sorriso selvagem e disse: — Por que eles queriam que ela fosse forte. Perguntei a Umm Paula algo em que eu andava pensando: O que manteve as pessoas durante a longa guerra civil que durou quinze anos? O que as sustentava? O que elas comiam? Ela ficou em silêncio por alguns instantes. Pegou um pedaço de pão árabe, separou as metades e as colocou de volta no pacote. E fez isso mais uma vez. Então falou. Um dia, disse Umm Paula, uma mulher juntou seis pedras. Ela acendeu o fogo no forno de barro em seu quintal. Ajoelhando-se em frente ao forno, colocou as pedras sobre ele. Colocando as pedras em linhas bem retas, ela as polvilhou com um pouco de sal e começou a cozinhar. Um homem passou e enfiou a cabeça por cima do muro. — O que você está fazendo? Cozinhando pedras? — provocou, rindo. — São para meus filhos — respondeu ela. — Não temos nada para comer, mas não quero que eles saibam disso. Quando virem essas pedras, pensarão que estou fazendo algo para o jantar, e não vão mais sentir fome.

22 MIGHLI

— O CÉU ESTÁ TRISTE PELO LÍBANO — disse Abu Hussein. Seu táxi velho e cansado subia chiando a rua Bishara al-Khoury, levando Mohamad e eu até dahiyeh através da luz sombria. — O céu está chorando por nós. Mas não era chuva. Não era o céu. A pesada nuvem cinzenta fazia parte da própria cidade, suspensa no ar: restos pulverizados de várias centenas de prédios, milhares de apartamentos e 1.600 pequenos comércios, com todo seu conteúdo, explodiram em pó fino e subiram aos céus como confetes. As nuvens de fumaça pairavam sobre Beirute e pareciam mudar o próprio clima, formando um estranho eclipse amarelo a que as pessoas já chamavam “o vento da guerra”. Com nove dias de conflito, os aviões de guerra israelenses haviam bombardeado 55 pontes e dúzias de rodovias, matando 330 pessoas no Líbano, a maioria delas civis. Qualquer um que tivesse um passaporte estrangeiro tentava deixar o país. Os fuzileiros navais dos Estados Unidos tinham voltado para o Líbano pela primeira vez em 22 anos, para evacuar os cidadãos americanos a bordo de um navio oficial. Nasrallah jurou não entregar Ehud Goldwasser e Eldad Regev, os dois soldados israelenses que o Hezbollah havia sequestrado, mesmo se o “universo inteiro” viesse pegá-los. O Hezbollah disparava foguetes contra o norte de Israel quase todos os dias. E quase todos os dias aviões de guerra israelenses sobrevoavam Beirute e jogavam bombas antibunker sobre Haret Hreik, o bairro para o qual estávamos indo, onde um amigo fotógrafo havia dito que o Hezbollah estaria organizando um “tour”. Reconheci o cheiro na hora: cinzas molhadas, incêndios ardentes. Plástico queimando. E mais alguma coisa, menos definida, colisão e reorganização de todas as matérias orgânicas e químicas não percebidas que formam nossa vida diária. Oito quadras da cidade haviam sido bombardeadas e transformadas num gulache de concreto. Uma névoa de poeira de concreto cobriu os destroços, suavizando bordas afiadas e abafando todos os sons em sua triste luz crepuscular. Os prédios destruídos pareciam completamente abandonados. Exatamente às onze da manhã, o porta-voz do Hezbollah Hussein Naboulsi apareceu. Três combatentes em jaquetas e calças pretas largas seguiam-no de perto, lançando olhares de um lado a outro, com Kalashnikovs casualmente penduradas nos ombros como se fossem bolsas. Jornalistas corriam até eles e gritavam perguntas que pareciam tão retóricas quanto as falas de Umm Hassane: — Como você justifica os bombardeios sobre civis israelenses? — Onde está Hassan Nasrallah? Ele está morto? — Você está usando civis como escudos humanos? Naboulsi ignorou todas as perguntas. — Vou falar com vocês; vocês precisam me seguir! — gritou ele, em seu tom esganiçado monótono peculiar. — Se eu mandar que evacuem, vocês vão evacuar! Câmeras, não vão para onde quiserem, apenas me sigam. Vocês verão prédios, estradas, tudo! Levaremos vocês ao coração de Haret Hreik, onde o secretário-geral estava… Ele marchou em direção aos destroços e nós fomos atrás. As ruas eram um mar revolto de concreto.

Estávamos meio andando meio escalando os interiores das vidas das pessoas: um cavalo de balanço de plástico vermelho, um radiador, metade de um sofá. Pilhas e pilhas de CDs. Cadeiras de plástico, pijamas, blocos de concreto. Um livro de faculdade sobre diabetes. Naboulsi mantinha um fluxo de fala cada vez mais frenético. — Essa é a democracia israelense! — disse ele, esganiçado. — Essa é a justiça do mundo hoje! Se existe uma consciência no mundo, acordem! Acordem! Acordem antes que seja tarde! O concorrido tour do Hezbollah se dispersou em poucos minutos. Todos andaram em direção ao mar de concreto destruído, tirando fotos ou escrevendo em cadernos, e Naboulsi ficou movendo-se de um lado para o outro como um desesperado professor primário que perdeu o passeio. Mohamad e eu saímos sozinhos e encontramos nosso amigo Nadim. Ele estava parado no meio de um cânion que costumava ser uma interseção da cidade e olhava para cima de uma construção alta. O teto havia sido cortado fora, mas não caíra, e agora estava pendurado perigosamente como um chapéu absurdamente torto. — Porra, isso é absolutamente inacreditável — sussurrou ele. — Nunca vi nada igual. Durante os tempos de paz, quando precisávamos de metáforas, atacávamos a linguagem da guerra. Mas o idioma dos tempos de guerra é a comida: bala de canhão, carnificina, matadouro. Prédios e pessoas viram panquecas, são ensanduichados, ficam mais apertados que sardinha. Talvez isso se deva ao fato de que a destruição nos lembra do conhecimento que passamos a vida inteira evitando — que no fim todos somos carne. As ruínas enormes e desajeitadas de prédios parecem uma monstruosa mesa de banquete destruída: esse prédio aqui é um sanduíche, agarrado por um punho gigante, com camas, cortinas e aparelhos de TV escorrendo pelos lados, como maionese. Aquele outro, um bolo de casamento gigante, cada andar uma camada com cobertura, o lado cortado por uma faca cega. O Partido de Deus havia plantado moradores de Haret Hreik entre as ruínas. De quando em quando, um deles saía dos escombros e buscava as câmeras: — Minha casa está aqui; foi destruída, assim como as casas de todos — gritou um operário de construção chamado Muhammad. Ele falou a frase que ouviríamos tantas vezes antes que a guerra acabasse: — Vou reconstruir minha casa uma, duas, três, cinco e dez vezes, se Deus quiser. Eu, minha esposa e meus filhos estamos com Sayyid Hassan até a morte! Uma ou duas quadras adiante encontramos um grupo de jornalistas libaneses que conhecíamos reunidos em frente a um mercado. Patricia, do L’Orient-Le Jour, tinha desistido de tomar notas em seu caderno e estava simplesmente parada, atordoada e sem rumo. Rym, do The Daily Star, olhava ao redor, com os braços cruzados como se estivesse com frio. As portas de metal da loja estavam retorcidas na calçada, que brilhava com os estilhaços de vidro. Perto dali, uma caixa de doações para as escolas islâmicas do Hezbollah, instituições de caridade e hospitais estava intocada em seu pedestal, guardando a promessa em escrita árabe amarela: A caridade afasta a catástrofe. — Eu morava aqui — disse a jornalista de meia-idade do Daily Star. — Não dá mais para reconhecer. Mas olhando para cima, para os telhados estilhaçados, reconhecemos onde estávamos. Aquela pilha de escombros era a casa da tia Khadija, aonde havíamos ido no Natal anterior comer miglhi. Véspera de Natal, 2005. Hanan nos levava — eu, Mohamad e Umm Hassane — para a casa da tia Khadija para ver o bebê. O filho de tia Khadija, Hussein, casado havia pouco, acabara de se tornar pai de uma menina. Minha sogra e eu ficamos muito animadas, mas por razões diferentes, porque, se tivéssemos sorte, comeríamos mighli. Há um império que abrange o Oriente Médio, os Bálcãs e o Leste Europeu; um império não de

humanos, ou seus deuses, mas de pudins. Os habitantes desse Cinturão do Pudim — sejam eles muçulmanos, cristãos, judeus, armênios, turcos, gregos, russos, sérvios ou poloneses — criam uma fonte infinita de pudins comemorativos. Alguns são doces, outros são salgados e muitos são ambos. Todos têm duas coisas em comum: são feitos com sementes, símbolos antigos da morte e do renascimento — cereais, feijões, castanhas ou todas elas. E são feitos para serem compartilhados com pessoas de fora do círculo familiar, como uma oferta aos deuses, esmolas para os pobres ou um prato em agradecimento a um acontecimento bom e compartilhado com quarenta vizinhos — dez em cada uma das quatro direções. Esses pudins pertencem a uma tradição mais antiga e profunda que quaisquer das fés e nações que os usurparam. Alguns os consideram descendentes do pudim que Noé fez das sementes que levou para a arca; outros os descrevem como os alimentos dos descendentes do Profeta. Mas o que é irônico e até mesmo belo é que cada nacionalidade ou seita os considera igualmente sagrados. Sunitas turcos fazem ashura e dão aos vizinhos para comemorar a boa sorte. Católicos poloneses comem kutia na véspera de Natal para comemorar o nascimento iminente do Salvador. Cristãos ortodoxos gregos fazem kolyva e compartilham com as pessoas que passam por suas casas para celebrar os mortos. E famílias libanesas de todas as religiões fazem mighli para comemorar a vida — o nascimento de um bebê. Quando um bebê nasce em uma família libanesa, durante semanas pessoas vêm visitá-lo, como os reis magos, trazendo presentes e envelopes de dinheiro. Em troca, a família — independentemente de classe, geografia e seita — serve mighli, um pudim de arroz com aroma de canela coberto com castanhas. As pessoas acreditam que as especiarias do mighli ajudarão a nova mãe a “trazer o leite”. Mas o mighli transcende sua função física e entra no campo do simbolismo: quando o primo de segundo grau de Leena teve um bebê em Nova York, a mãe de Leena fez mighli lá em Beirute e serviu num jantar em família, cuidando de mencionar que era em homenagem ao bebê de Nova York. Ouvi todo o tipo de histórias sobre esse pudim. Então, quando soube que íamos visitar o jovem casal na casa de tia Khadija, perguntei a Umm Hassane se teria mighli. Ela lançou um olhar penetrante. — Você quer mighli? — perguntou. Eu conseguia ver as rodas girando dentro de sua cabeça: Mohamad e eu havíamos sido teimosos sobre a questão do bebê, mas talvez esse interesse pelo mighli traísse uma fome mais profunda. Se eu queria encher minha barriga com mighli, será que também não desejava enchê-la com meu bebê? E algum dia, logo, se Deus quisesse, servir mighli que eu mesma fiz? Ela colocou seu sobretudo preto e seu melhor lenço e, quando saímos do apartamento, vi um brilho de cobiça por um bebê nos olhos dela. Esperava que as decorações de Natal, os bicos-de-papagaio embrulhados em papel vermelho, os açougues e as lojas de doces decorados com luzes desaparecessem completamente quando passássemos pela pintura gigante de Musa al-Sadr que guardava uma das entradas de dahiyeh. Mas a primeira coisa que vimos ao passar pelo imame desaparecido foi uma fila de papais noéis infláveis gigantes. Trabalhadores diaristas sírios ficavam na beira da estrada, homens com olhos famintos e pele queimada de sol, todos usando gorros de Papai Noel de poliéster brancos e vermelhos. As lojas que vendiam chaleiras baratas de alumínio, cadernos chineses e flores de plástico estavam cheias de laços vermelhos gigantescos e bicos-de-papagaio em vasos. A parede externa de uma das lojas era invadida por um pelotão de papais noéis. Outra tinha um Papai Noel mecânico de quase dois metros de altura na entrada que ganhava vida de tempos em tempos, mexendo os quadris como uma dançarina de dança do ventre e rugindo “Ho! Ho! Ho! Fe-liz Na-tal!”. A guerra no Natal, que era como cristãos americanos estavam chamando as tradições ecumênicas e seculares naquele ano, não tinha chegado ao coração xiita de dahiyeh. Na sala da tia Khadija, sentamos com Hussein e sua cansada esposa Lina, que era professora.

Conversamos sobre o bebê antes de falarmos sobre a obsessão nacional — mais falada que os esportes ou o tempo, mais que a religião ou a política — com os feriados. No início daquele ano, quando Hariri foi assassinado, o governo imediatamente lançou seu plano de gestão de crises: não deu certo. Quando chegou dezembro, o primeiro-ministro decretou que todos tinham que abrir mão de uns dias do feriado para compensar os dias de trabalho perdidos. — Por que deveríamos sacrificar nosso feriado pelas ações dos sírios? — perguntou tia Khadija. — Mas o Natal não é nosso feriado — disse Hussein. — O que esse feriado tem a ver com a gente? — O Natal é um feriado nacional — disse tia Khadija, severa. — Pertence a todos. Um barulho vindo do quarto do bebê determinou uma pausa na discussão sobre o feriado. Hussein, Lina e tia Khadija correram para ver o que havia. Quando desapareceram pelo corredor, Umm Hassane aproveitou a oportunidade. — Devemos perguntar sobre o mighli? — disse, inclinando-se para a frente, lançando um olhar para a cozinha, como se essa fosse nossa chance de correr ali e roubar um pouco do prato. — Não, não! — disse Hanan, morrendo de medo de que a mãe nos envergonhasse perguntando sobre comida. Umm Hassane se acalmou, mas foi apenas um recuo tático. Seus olhos voltavam-se em direção à cozinha, onde o mighli estava à espera. Ela pode ter emitido algum sinal secreto de senhoras, ou talvez uma ligação clandestina entre senhoras já tivesse acontecido, porque, pouco tempo depois, tia Khadija voltou da cozinha com pequenas tigelas prateadas transbordando com o pudim da fertilidade e da vida. O mighli é tão firme quanto um flan, só que mais sólido. Não há ovos; o pudim fica trêmulo por causa da farinha de arroz. Geralmente fica com sardas marrons devido às especiarias — canela, cominho, às vezes anis, em algumas regiões até mais coisas. Mães à moda antiga mexem o preparo no fogão durante uma hora, até que engrosse. As novas fazem em um “Presto”, uma panela de pressão e o mighli ganha consistência em minutos. Você coloca na geladeira para firmar e aí vem a melhor parte. Você vai ao vendedor de castanhas do bairro e diz a ele que precisa de “mistura para mighli”. Ele venderá algo mais ou menos assim: nozes, amêndoas cruas descascadas, pinhões, pistaches sem casca, coco ralado e uvas-passas. Algumas pessoas também usam castanha-de-caju; outras colocam apenas nozes e coco. Salpique a mistura sobre o mighli e você está pronto para abençoar aqueles que lhe desejam o bem com sua generosidade. Tudo o que você precisa é de um bebê. — Ou você pode comprar um mistura semipronta — disse a esposa de Hussein, Lina, a jovem e prática professora, que ainda exalava a satisfação esgotada de nova mãe. — É só despejar água fervendo e está pronto. Umm Hassane não disse nada, mas se afofou como uma galinha no sofá e irradiou desaprovação. — É bom? — perguntou Hussein, lançando um olhar cauteloso entre mãe, tia e mulher. — Sim, é bom, é bom — sustentou a jovem mãe. Todos ergueram as sobrancelhas e disseram “Hum!” com o jeito cético de quem se pergunta “o que mais vão inventar?” Tia Khadija claramente sabia de alguma coisa. Quando saímos, ela me parou na porta, olhando primeiro para Mohamad, depois para Umm Hassane, e colocou três potes de plástico gigantes de mighli em minhas mãos. Virei a última esquina, passando pelo prédio achatado de tia Khadija, voltando para onde o tour havia começado. Um homem barbudo do Hezbollah armado e vestindo uma jaqueta preta esperava encostado contra a parede. — Yalla, yalla — gritava ele, sacudindo a cabeça para nos apressar.

— Você acredita que isso é o Líbano? — disse Rym, andando até nosso carro. — Onde estávamos sentados fumando narguilé há duas semanas? No aniversário de Rym havíamos nos encontrado no centro de Beirute com os amigos dela, um grupo misto de sauditas, libaneses, canadenses, americanos e até uma polonesa que ela havia conhecido em algum lugar, do lado de fora de seu restaurante favorito, que era o T.G.I. Friday’s. Esse dia parecia ainda mais distante que aquele Natal, que havia ocorrido apenas sete meses antes. Sacudi a cabeça: Não, não acredito que essa ruína esfumaçada é o mesmo Líbano. Ficamos parados perto do carro de Abu Hussein, com medo de estarmos ali, mas por algum motivo relutantes em ir embora. Finalmente o homem barbudo armado reapareceu. — Avião, avião! — gritou ele, batendo os braços como uma criança que imita um pássaro. Não havia aviões no céu, mas ninguém queria arriscar. Todos correram para seus carros e foram embora.

23 COZINHANDO COM UMM HASSANE

EU TINHA MJADARA HAMA. Tinha homus e tabule. Tinha um shish taouk, suculento e laranja, embaixo de um cobertor de pão quente embebido em molho de tomate, grelhado com cebolas e tomates escuros sangrentos. Eu havia ido a nosso restaurante favorito no bairro, Abu Hassan, que ficou aberto durante a guerra, e voltado com um banquete. Mas nada, nem mesmo o mjadara hamra, foi capaz de tentar Umm Hassane. Ela franziu a testa para a comida como se esta a tivesse traído. — Umm Hassane, coma alguma coisa — implorei, colocando o prato na mesa de café na frente dela. — A senhora precisa comer alguma coisa. — Não estou com fome — disse ela. — Como posso ter fome? O que quero com comida? À medida que o terrível mês de julho continuava, Umm Hassane ficava cada vez mais mdepress. Ela parou de comer. Ficava horas deitada no sofá, trocando da Al Jazeera para os canais via satélite libaneses e voltando, assistindo a cenas sem fim de bombardeios e aos discursos intermináveis de Nasrallah. Ela quase não falava. Certa noite, ela se sentou, olhou ao redor, sacudiu o dedo e anunciou: — Eles estavam esperando 1,6 milhão de turistas no Líbano para esse verão. Então voltou a se deitar e ficou em silêncio o resto da noite. Nos últimos dias, quando a eletricidade ia e vinha, os bombardeios trovejavam nas horas escuras antes do amanhecer e o rosto barbudo de Nasrallah brilhava na tela da TV, Umm Hassane havia parado completamente de comer. O apartamento dela era perto de Shiyah, que acabou sendo bombardeado, e ela não queria ir para casa. Uma revista pediu que eu fosse para o sul, mas não podíamos sair de Beirute porque precisávamos cuidar dela, e eu estava começando a ficar de saco cheio. Não queria ter um bebê, cozinhar e limpar, cuidar de uma casa. Queria ir para o sul, para a linha de frente, e contar a verdadeira história: civis dirigindo em meio às bombas, ou presos em suas casas sob bombardeio. Eu sabia que esse era um ímpeto puramente egoísta — evitar a culpa e o desamparo terríveis da guerra fingindo fazer algo útil, mas eu era jornalista, não dona de casa, e era a coisa mais útil que sabia fazer. O último lugar onde queria estar era presa em meu apartamento, cuidando de uma velha rabugenta que começou tentando me fazer engravidar e agora parecia estar tentando, algo ostensivamente, morrer de fome. No dia seguinte, Mohamad saiu para trabalhar. — Minha mãe é muito teimosa — reclamou antes de sair. — Eu disse para ela não dormir com o arcondicionado ligado, mas ela não me ouve. Ontem à noite ela ficou com tanto frio que estava tremendo. Naquela tarde, eu estava ao telefone com meu editor quando percebi que Umm Hassane estava tremendo. Ela estava encolhida no sofá, o corpo inteiro tremendo violentamente. Não tinha ar-condicionado na sala. Fazia no mínimo 27 graus; ela não podia estar com frio. No entanto, estava tremendo. Coloquei as costas da mão na testa dela e queimava como uma lâmpada quente. Seu rosto estava branco e contraído. Ela tinha perdido muito peso. Nós não tínhamos percebido. Estávamos cobrindo a guerra. Meu editor ainda estava na linha, falando sobre Nasrallah. Cobri o telefone com a mão e troquei de língua.

— Umm Hassane, a senhora está demais doente — disse eu, num árabe balbuciante. — A senhora tem que ir ao hospital. — Não, não — respondeu. Até sua voz era trêmula. — Estou bem. Não quero ir ao hospital. Ela não estava bem. Estava fraca demais até para se sentar. Eu tinha que levá-la ao hospital logo; tinha que falar com meu editor, com quem era quase impossível conseguir contato por telefone; e tinha que terminar minha história. Naquele instante, a outra linha tocou. Era Hassan ligando de Paris para saber se estávamos bem. — Hassan, você tem que… conversar com a sua mãe — disse eu, tentando com dificuldade manter o árabe e o francês em cantos separados. — Acho que ela está vraiment, vraiment malade… Ela precisa ir ao hospital. Fale você com ela. Ela tem que ir. Mas ela também não queria ouvir Hassan. — Shu baarafni, estou bem — insistiu. — O que eu quero com o hospital? Eles vão querer dinheiro! Implorei, amedrontei, ameacei. Usei palavras que nem sabia que conhecia. Ela não queria ir. A guerra havia despertado algum instinto de sobrevivência que se traduzia em recusa e imobilidade absolutas. — Eles vão querer dinheiro! — insistia. — Esqueça a merda do dinheiro! — finalmente gritei com ela, em inglês, sabendo que ela não entenderia. Esqueça a febre; esqueça a guerra; esqueça as Forças de Defesa de Israel, com seus Merkavas, bombas de fragmentação e óculos de visão noturna. Esqueça o Hezbollah, seus foguetes, sua “resistência” e seus uniformes de batalha pretos. Se ela queria ser uma mártir, eu mesma poderia matá-la. Nas cinco horas e meia durante as quais Mohamad ficou com a mãe no pronto-socorro, ele presenciou um desfile de pessoas com sintomas de estresse e choque: respiração ofegante, pulso acelerado, crises de pânico, ataques cardíacos. Transtorno do estresse pós-traumático. Pessoas doentes de guerra crônica. Quando os médicos atenderam Umm Hassane, descobriram que ela estava com uma forte infecção nos rins e a colocaram no soro e a mantiveram lá. Se não a tivéssemos levado ao hospital — se tivéssemos ouvido o que ela dizia e a deixado em casa —, provavelmente teria morrido. As semanas seguintes passaram em momentos desconexos, lascas de tempo que se destacam na minha memória como claros e nítidos cacos de vidro. Lembro de ter observado as crianças do bairro brincando em um terreno baldio. Antes da guerra, toda a Beirute tremulava com bandeiras de poliéster do Brasil, do Irã, da Alemanha e de outros times da Copa do Mundo, e as crianças jogavam futebol. Agora ficavam sobre pilhas de entulho da guerra civil, agitando rifles de plástico no ar e gritando: “Eu sou do Hezbollah! Não, você não é, eu sou do Hezbollah!” Também me recordo de estar lendo Versos satânicos tarde da noite, na madrugada, quando as bombas faziam com que fosse difícil e talvez indesejável dormir. As explosões distantes que balançavam o prédio com gentileza, fazendo-me lembrar que pessoas podiam estar morrendo enquanto eu estava em segurança na cama. Não me esqueço de Munir ligando e dizendo: “É como Esperando Godot, não é?” E de Paula ligando e dizendo: “Ele está em negação, não está? Pessoas sensíveis às vezes tentam fingir que são duronas. É muito útil, a negação. Eu não entendia isso até agora.” E me lembro de encontrar um amigo de um amigo no Baromètre, um jovem furioso que usava óculos e disse: — Se o país está sendo atacado, você acaba defendendo o Hezbollah. É uma organização fundamentalista! Eles são contra tudo aquilo em que acredito! Mas não defendê-los é dizer que concorda com Israel, com o que Israel está fazendo com o país. Quem mais vai defender o Líbano? Eu quero que o Partido Baath sírio derrote Israel? Para que ele possa me ferrar, como me ferrou antes? E quando estou sentada em outro café entrevistando o chefe de uma organização anticorrupção que

disse: — Estamos em guerra; mas agora estamos no coração de Beirute, em um café cheio de gente, todas muito bem-vestidas. Você pode pensar que isso é muito superficial, mas é o que faz o Líbano ser diferente. Isso foi o que nos fez sobreviver à guerra civil. É assim que resistimos a qualquer guerra. Ligações de amigos de fora do Líbano eram como ecos de um passado distante. A pessoa que entendia melhor como eu me sentia era minha amiga Cara. Ela já havia morado em Israel, ao norte de Kiryat Shmona, uma das áreas contra as quais o Hezbollah atirava foguetes, e me ligava quase todos os dias. Uma vez ligou para dizer que a casa de seu ex-cunhado havia sido atingida por um foguete. Outra vez para saber se eu estava bem, ao que respondi: — Acho que sim. Não posso conversar agora. Não tenho vinho em casa. Tenho que ir comprar vinho para cozinhar. O fato de eu não ter nenhuma lembrança dessa conversa me diz algo sobre memória, guerra e meu estado naquele momento. Liguei para Ali Fahs, o agricultor de Souq Al Tayeb, para saber se ele estava bem. Ele estava preso em Jibsheet, a pequena vila do sul, onde morava. O bombardeio fora muito intenso lá e ele não saía de casa havia quinze dias. Passava o tempo escrevendo um manifesto, uma carta aberta ao primeiro-ministro israelense Ehud Olmert, a George W. Bush e à Condoleezza Rice. Se eu queria ouvir? — Olmert, Bush e Condi Rice, não faz diferença — leu. Eu ouvia o barulho do papel enquanto ele falava. — Em nome da democracia, vocês estão matando crianças e pessoas inocentes. E estão destruindo todo o tipo de vida e humanidade. Em vez de parar a guerra, vocês estão colocando gasolina no fogo. Vocês mandam fundos e entregam bombas para matar cada vez mais pessoas inocentes. Sob sua democracia forjada, vocês sabem, e nós sabemos, o grande motivo para esta guerra é o Plano para o Novo Oriente Médio. Durante os primeiros nove dias, as pessoas do Líbano esperavam que os Estados Unidos fizessem pressão para que o governo israelense concordasse com um cessar-fogo. Então, no dia 21 de julho, o governo Bush anunciou que estava apressando uma entrega de bombas de precisão para Israel. Naquele mesmo dia, a secretária de Estado Condoleezza Rice disse que um cessar-fogo seria uma “promessa falsa” se acontecesse antes que o Hezbollah fosse derrotado. Não tenho interesse em diplomacia para que o Líbano e Israel retornem a seu status quo ante. O que vemos aqui, de certa forma, é o crescimento, as dores do parto de um novo Oriente Médio, e o que quer que façamos, precisamos ter certeza de que estamos indo em direção ao novo Oriente Médio, não voltando ao anterior”, disse Rice. Descrever a morte de civis libaneses como “as dores do parto de um novo Oriente Médio” alimentou as piores suspeitas em relação aos Estados Unidos: que o país mantinha projetos imperialistas secretos quanto à região, algum plano apocalíptico; que não valorizava as vidas árabes tanto quanto as israelenses. — Toda essa guerra, só para isso! — exclamou Ali. — Eles querem fazer um novo Oriente Médio, para que ele esteja nas mãos dos israelenses e dos norte-americanos. — Não havia mais conversa sobre a Califórnia ou postos de gasolina agora. Ele terminou seu manifesto. — Você publica isso em seu jornal? — perguntou. — É claro, você vai corrigir meu inglês. Não terminei ainda, mas gostaria de escrever mais. Queria fazer alguma coisa… estou em casa há quinze dias, não posso nem trabalhar. Eu não lhe disse que não tinha um jornal, ou que os editores americanos já estavam cansados dessa pequena guerra que parecia tão grande para ele. Perguntei se ele tinha água e comida suficientes, se ele e a família ficariam bem. — Sou profissional da comida — lembrou-me com dignidade. — Tenho labneh, tenho laban, tenho tudo. Dá para aguentar um bom tempo. É claro! Um cerco não era nada para alguém que fazia mouneh. Até que a guerra acabasse, Ali e sua

família viveriam de mouneh, comida para durar invernos inteiros ou grandes guerras; ele estava comendo o estoque que um dia sonhou que o levasse para a Califórnia. Ele estava alimentando os vizinhos, que não tinham mais nada. — Nas montanhas, temos comida suficiente para dois meses — disse. — Temos zaatar, temos burgul; viveremos por dois meses. Todos, até os refugiados que haviam deixado suas casas devido aos bombardeios, diziam a mesma coisa: — Não odiamos o povo americano. Apenas o governo americano. Um refugiado de Haret Hreik nos disse isso depois de voltar a seu apartamento bombardeado para recuperar o pássaro de estimação. Um refugiado do sul nos disse isso no hotel Berkeley. Um motorista de servees falante e rechonchudo chamado Muhammad Awada me disse isso enquanto fumava um cigarro atrás do outro, dirigia pela Fouad Chebab, a ponte, e tentava se virar para conversar comigo, tudo ao mesmo tempo: — Não odiamos os americanos — dizia sem parar. — Amamos a América. Meu carro, um Toyota Corona americano! Meus cigarros, Marlboro americano! Não expliquei que o carro era Corolla, não Corona, ou que a Toyota na verdade era japonesa. Ele já estava com muitas coisas na cabeça. No árabe libanês coloquial, você “bebe” cigarros em vez de fumá-los; tive a sensação de que talvez ele tivesse bebido algumas Coronas também, e não da Toyota, porque ele gritava: — Bebo Marlboros! Dirijo Toyota! Eu amo a América! Então ele virava para olhar para mim, tirando as mãos do volante para pontuar as frases com o cigarro, fazendo com que o carro cruzasse várias pistas, e exclamava: — Nós não odiamos a América! Nós amamos a América, amamos muito. Por que… a América… não… nos… ama? Depois de uma semana no hospital, Umm Hassane voltou com sua capacidade de reclamação totalmente restaurada. Ela desaprovava nossos hábitos alimentares antes da guerra, mas agora estavam ainda piores. Não tínhamos muita comida em casa, porque ficávamos sem eletricidade durante oito, dez, doze horas, e qualquer coisa que tivéssemos na geladeira estragaria. Eu estava começando a gostar da persistência do mouneh. A história de guerra e fome do Líbano havia mantido as antigas tradições tão à superfície que eram quase uma segunda natureza. Minha amiga Adessa estava presa em Bsharri, sua cidade de origem no norte do Líbano, e como não havia limões, sua família resgatou a antiga prática de temperar o tabule com agroça. (“Era isso o que nos mantinha sãos”, ela me disse mais tarde, “o tabule ter gosto de tabule”.) As idosas pegaram seus moedores e começaram a moer milho e trigo em casa. Minha professora de árabe, Hayat, recheava folhas de uva com sobras de tabule, outro costume antigo que sobreviveu por causa de tempos como esse. Em nossa casa, sobrevivemos a base de mouneh — queijo picón, homus pronto do Smith’s (escreviam “Homos” na embalagem) e latas de atum. Para Umm Hassane, essa alimentação caótica era o insulto final. Tudo estava ruindo: Hanan havia fugido para ficar com amigos nas montanhas, as casas de todos foram destruídas, o governo libanês fazia direitinho o papel de Estado falido. Até Nasrallah parecia perdido, sua barba havia crescido da noite para o dia num emaranhado cinza. Um dia, enquanto comíamos “Homos” e atum do Smith’s, ela disse: — Machuca meu coração comer essa comida. Perguntamos o que ela queria dizer. Queria dizer que dava azia? Ou estava lamentando o fato de não poder cozinhar? No fim, depois de muitas perguntas cruzadas, com Mohamad traduzindo seus pronunciamentos enigmáticos, concluímos que ela queria fazer tabeekh.

— Mas como posso fazer? — lamentou. Mohamad e eu olhamos um para o outro e nos sentimos culpados. — Quando a guerra acabar, quando não estivermos tão ocupados, vamos fazer comida de verdade — prometi a ela. Um ou dois dias depois, quando tive uma manhã de folga, fiquei com Umm Hassane. Havia um prato que apenas alguns restaurantes faziam — uma mistura cremosa e macia de batatas, cebolas e ovos mexidos. Era comida caseira clássica, a verdadeira comfort food — o equivalente libanês do macarrão com queijo americano. Mohamad e eu amávamos. — Umm Hassane — disse eu —, sei que você está doente, mas a senhora poderia, por favor, me ensinar a fazer batata wa bayd? Ela começou analisando minhas cebolas. Antes da guerra, eu havia comprado uma réstia gigante de pequenas cebolas espanholas de Ali Fahs, dúzias delas amarradas com as próprias hastes secas. Os bulbos ainda estavam firmes, a pele perolada listrada em tons esverdeados. Ela segurou o arranjo com o braço esticado, como se fosse um gato morto. Destacou uma cebola e tentou tirar a casca inteira. Estava muito fresca, a pele agarrando-se com força à carne, e ela jogou a cebola longe com desgosto. — O que são essas cebolas? — perguntou, ostentando uma mão acusatória na direção delas. — Por que você comprou tantas? Assumi a operação cebola, cortando-as na metade e descascando-as, marcando-as latitudinal e longitudinalmente, como um deus vingativo, até encher mais ou menos uma xícara e meia de cubinhos finamente picados. Agora precisávamos de uma panela. Peguei meu conjunto de panelas e frigideiras de aço inoxidável, presente de casamento de um amigo generoso, e alinhei algumas para que ela escolhesse. — Essas panelas não são boas — disse. — Tefal é melhor. — Umm Hassane, essas são panelas muito caras — comentei, indignada, e lancei o argumento irrefutável —, são da América! — Da América? — Ela fungou e levantou uma sobrancelha cética. Dizer que essas panelas inferiores, sem acabamento em Teflon, teriam vindo dos Estados Unidos, terra do Mazola e do Tylenol!, era uma alegação absurda. Era muito provável que Annia tivesse sido enganada de novo. — Coloque-as ali — disse, apontando com firmeza para minha Tefal tamanho médio. Ela despejou óleo de milho, depois cebolas, tampou a panela e abaixou o fogo o máximo possível. — Quanto tempo precisa ficar? — Eu estava escrevendo tempos, quantidades e medidas, curvada sobre um caderno como uma repórter iniciante em sua primeira grande matéria. Ela lançou em minha direção um daqueles olhares de Jesus, onde eles encontram esse tipo de gente?, do tipo de que eu me lembrava tão bem de minhas primeira incursões em cozinhas de restaurante. — Até ficar pronto! Enquanto as cebolas ficavam prontas, Umm Hassane picou as batatas em cubos de meio centímetro com o corte econômico de um chefe. Coloquei a avalanche de cubinhos em meu copo de medidas de vidro. Ela assistiu com indignação: aquilo era demais. — Por quê? — gritou. — Por que você precisa medir tudo? Só precisa de cinco batatas, duas cebolas e acabou! Meu árabe era insuficiente para transmitir o conceito de padronização de receita, sem falar das ambiguidades de um mundo com cebolas e batatas de tamanhos diferentes. Resmunguei algo sobre querer lembrar as quantidades para fazer na próxima vez.

— Só coloque duas cebolas e alguns pedaços de batata, e vai dar tudo certo! — disse ela, em tom de pena. Ela jogou as batatas com as cebolas, colocou mais sal e fechou a panela mais uma vez. — Vamos cozinhar isso — explicou lenta e claramente, como se estivesse ensinando para uma criança lerda — até ficar pronto. Eu havia passado horas incontáveis e destruído muitos sacos de batatas tentando fazer batata wa bayd. Cozinhava as batatas e depois as cortava, para no final vê-las desmancharem na panela formando um lodo empapado e oleoso. Tentei fritá-las e colocar as cebolas picadas depois, e acabava com batatas encharcadas e rígidas cravadas de cebolas pretas queimadas. Fritei as batatas e as cebolas separadamente, misturando-as depois, e também não deu certo: os sabores não se harmonizavam. Durante toda essa experimentação, nunca me ocorreu caramelizar as cebolas primeiro, depois cozinhar as batatas lentamente em uma panela fechada, fazendo com que as cebolas derretessem, misturando-se às batatas de um jeito lírico. — Estou aprendendo um jeito novo de fazer batata wa bayd! — falei, encantada por enfim aprender o segredo desse prato falsamente simples. Ela franziu a testa. Eu fazia de um jeito diferente antes? — Annia não costuma fazer assim — explicou Mohamad, que tinha acabado de entrar na cozinha. — Ela faz do jeito que seu irmão faz na Espanha — disse Umm Hassane, aflita. — Não, não, Annia faz batata wa bayd também, mas não assim. Umm Hassane saiu marchando da cozinha e se jogou no sofá em um desespero teatral. — Se você queria fazer daquele jeito — gritou —, então por que me pediu para fazer para você? Mohamad percebeu o erro e a seguiu até a sala. — Não, não, queríamos aprender a fazer desse jeito — suplicou ele. — Esse é o jeito certo. — Eu não sei como ele faz! — reclamou ela, inconsolável. — Eles chamam de tortilla. Você frita as batatas e depois coloca ovos… — Não, queremos desse jeito — disse ele apressado. — Quando a Annia faz, cozinha as batatas e depois frita tudo junto… — Ela cozinha as batatas! Umm Hassane estava horrorizada: isso era prova de que não queríamos do jeito dela. — Bom, se queria desse jeito, por que pediram para eu fazer? — Não, não queremos daquele jeito… queremos do seu jeito — implorou ele. — Bom, tudo bem. Só achei que vocês queriam do outro jeito. Ela se esticou no sofá e começou a girar o terço muçulmano. Nós nos entricheiramos na cozinha e ficamos olhando cautelosos para ela pela porta. — Por que ela queria fazer essa coisa complicada? — perguntou, dirigindo seu sofrimento à tela escura e silenciosa da televisão. — Seria mais fácil simplesmente fazer tortilla! Depois de mais ou menos dez minutos ela atendeu a algum relógio culinário interno que avisou com exatidão quando as batatas estavam prontas. Ela suspirou, levantou-se do sofá e voltou para a cozinha. Tirando a tampa da panela, levantou uma colher cheia de batata e me ordenou: — Experimente, experimente! Experimente! Se tenho um mau hábito, é não experimentar o suficiente enquanto estou cozinhando. Sou muito propensa a confiar em medidas, palavras precisas escritas no papel — e não na verdade de meus sentidos. Isso, também, não passava na cozinha de Umm Hassane. Ela sempre me forçava a experimentar, ajustar, temperar: confiar em minhas papilas gustativas e não em minhas palavras. Segurando uma colher com as batatas, ela insistiu que eu experimentasse “para que saibamos que está pronto”. Elas estavam derretendo, perfeitas, como risoto de batatas, macias como macarrão com queijo. As batatas estavam cremosas, sedosas com o óleo e cheias de sabor das cebolas caramelizadas quase invisíveis

em meio a elas. — Isso é melhor que tortilla! — comemorei. — Como sabe que é melhor? — Acabei de experimentar. Ela amaciou. Por um instante, pareceu feliz. Depois se recuperou. — Você experimentou antes de eu colocar os ovos — resmungou, e voltou para o fogão.

24 CEIA DE PEDRAS

EM APENAS 33 DIAS, A GUERRA no Líbano destruiu a infraestrutura do país, devastou a economia e fez retroceder dezesseis anos de reconstrução pós-guerra. Cerca de 1.200 pessoas morreram, a maioria delas civis, e o número crescia: Israel usou munições cluster, que deixaram para trás quase um milhão de pequenas bombas não detonadas, e conforme as pessoas retornavam para suas casas as vítimas das munições cluster já começavam a aparecer. O Hezbollah disparou cerca de 4 mil foguetes contra Israel, matando 43 civis israelenses e cerca de 120 soldados inimigos. Algumas semanas depois do cessar-fogo, Mohamad e eu fomos até Bint Jbeil com tia Nahla. Fomos buscá-la no prédio do irmão dela em Ras al-Nabaa. Eles nos esperavam do lado de fora quando chegamos, ambos em suas melhores roupas: ela com uma túnica preta bordada, o velho, ainda que não fosse conosco, camisa e calça social muito alinhadas. Ele nos cumprimentou e nós seguimos viagem. O Hezbollah havia coberto as laterais da estrada que levava ao aeroporto com outdoors. Suas cores eram cuidadosamente coordenadas, como as propagandas da intifada da independência, e escalonados como uma boa campanha publicitária. Eles anunciavam A vitória divina e Nasr min Allah, literalmente, “Vitória de Deus”, mas também um trocadilho com o nome de Nasrallah. Durante as muitas horas seguintes, passamos por campos de tabaco ressecado, olivais cheios de entulho, pontes partidas no meio. Em Ainata, um cartaz colado num posto de gasolina bombardeado e escurecido dizia: Parabenizamos você pela vitória. Em Tibnin, um pôster proclamava: C’est la victoire du sang, “é a vitória do sangue”, e pouco depois disso chegamos a Bint Jbeil. Depois de um tempo esgotam-se as alternativas para descrever os destroços da guerra. A coisa mais próxima de que consigo me lembrar é Nova Orleans embaixo d’água depois do furacão, mas em vez de água a cidade estava inundada por blocos gigantescos de pedra. Algumas passagens haviam sido limpas, os escombros empurrados para o lado e empilhados em grandes montes. Em algumas dessas montanhas de pedras, o Hezbollah havia plantado bandeiras amarelas esvoaçantes com a logo verde do grupo, uma mão levantada brandindo uma Kalashnikov. Pôsteres amarelos declaravam: Essa é sua democracia, Estados Unidos. Fomos até a cidade velha, as ruas estreitas onde os combatentes do Hezbollah ganharam sua “Vitória divina”. O caminho que um dia levou à casa de tia Nahla não existia mais, soterrado por uma pilha, de pedras e ferro e madeira de dois metros e meio de altura. Toda a metade de cima da casa havia sido destruída. O portão estava aberto e as pedras entravam pela casa como uma onda congelada que ia até a metade da altura da porta. Tia Nahla desceu do carro e andou em volta dos escombros. Ela parecia muito pequena cercada por todas aquelas pedras. Olhava ao redor com uma expressão quase de vingança — não de satisfação, mas também não de surpresa, como se quisesse que pensássemos que ela esperava por isso durante toda sua vida. Então seu queixo enrugou e seu rosto cuidadosamente controlado ruiu. — Tudo foi destruído — disse, e começou a chorar. Mohamad e eu escalamos os escombros e nos abaixamos para entrar na casa dela. A maioria das árvores tinha sido destruída pelo tsunami de pedras. Mas nos fundos do quintal, hibiscos e espirradeiras

floresciam, flores rosa e brancas em meio ao mar de cinza. Entramos na casa e tentamos salvar o que dava. Uma foto do pai de tia Nahla, avô de Mohamad. Um pequeno tapete. Peguei alguns sacos de musselina do mouneh dela, cuidadosamente etiquetado em árabe, que jogamos fora quando percebemos que talvez não fosse seguro comer. Mais tarde nos demos conta de que poderia haver bombas não detonadas nos escombros, mas naquela hora não pensamos nisso. Deixamos tia Nahla com seus vizinhos e fomos visitar Batoul. A casa dela também estava arruinada, mas não tão destruída quanto à de tia Nahla. O ar estava grosso de poeira e de um cheiro sutil, mas nauseante, de decomposição, que esperávamos ser de comida estragada. Na cozinha, a explosão havia arremessado um pote de tomates e o esmagado contra a parede, deixando uma mancha de Rorschach vermelho-sangue. Batoul fazia uma triagem das ruínas com a filha Zainab. Ela havia passado o dia separando qualquer coisa que pudesse salvar da cozinha e colocando tudo no quarto dos fundos, o único em que as paredes permaneceram intactas. Havia contratado alguém para recolocar a porta para que suas coisas não fossem saqueadas. Agora perambulava pelos escombros desesperada, como se não soubesse o que fazer em seguida, como uma pessoa andando em círculos, em estado de choque, depois de um acidente de carro. — Vejam o que eles fizeram conosco, o que Israel fez conosco — lamentou ela, deixando-se no chão e desmoronando sobre uma pilha de concreto quebrado. — A casa está destruída. Destruída! O que dizer a uma pessoa que perdeu a casa e quase tudo o que tinha? Hesitante, eu disse “oi”. Ela parou em meio a suas lamentações. Levantou a cabeça como se estivesse me notando somente naquela hora. Olhou para cima com olhos de Ashura, o queixo tremendo, 1.300 anos de desespero e desapropriação me observando através dos tempos. — Você emagreceu — disse ela, com uma fungada de reprovação. Batoul espalhou um tapete de plástico sobre os pedaços de concreto, gesso e vidro quebrado. Zainab foi atrás das rações de alimentos. Era disso que as pessoas do sul tinham sobrevivido no último mês: atum, homus enlatado, pão e água engarrafada distribuída pelos grupos de ajuda internacionais. Ela abriu a lata de atum e despejou o conteúdo em uma tigela, onde a forma da lata de metal se manteve. Não tinha alho, nem azeite de oliva — os potes na cozinha tinham todos estourado com as explosões das bombas. — Homus sem azeite — lamentou. Sentamos no tapete de plástico e pegamos punhados de atum e homus com o pão. Não estava tão ruim — ela tinha achado um limão e alguns tomates —, mas Batoul continuava inconsolável. — Ah, Mohamad Ali, veja o que sobrou de nós — disse ela enquanto comíamos. — Você e sua mãe vinham aqui e nós alimentávamos vocês. E agora não temos nem um teto sobre nossas cabeças! Batoul amava mesmo reclamar, como todos os Bazzi, mas isso era literalmente verdade: o teto estava aberto para o céu. Gatos famintos começaram a se reunir no quintal. Eles rastejavam mais para perto, esticando o pescoço e se preparando para correr — muito assustados para chegar mais perto, muito famintos para ficar longe. — Isso era o que eu costumava dar para esses gatos — disse Batoul, oferecendo a eles a última garfada de atum. — E agora nós é que temos que comer! — Não era realmente por causa do atum que ela estava tão chateada. Era pela casa demolida. Um vizinho apareceu, um idoso baixinho com apenas um dente. Ele trazia uma vasilha de plástico com uvas, nectarinas e peras. Sentou-se no chão a certa distância enquanto comíamos. Mas quando ofereceu algumas palavras de incentivo, alguns clichês sobre as coisas melhorarem, Batoul se virou contra ele. — Você ganhou dinheiro do Hezbollah, e nós não temos nada! — disse ela. Depois da Vitória Divina, o Partido de Deus começou a computar os danos e a registrar as famílias para

indenização. A distribuição desse dinheiro seria motivo de confusão e conflito durante meses e anos futuros. Israel e o governo Bush esperavam que os bombardeios implacáveis fizessem a população xiita ficar contra o Hezbollah. Mas por ter destruído suas casas e, para muitos, seus meios de vida, a guerra fez com que muitos xiitas ficassem ainda mais dependentes do Partido de Deus do que antes. Eles não tinham mais para onde ir. O vizinho havia conseguido um estipêndio para alugar um apartamento até que sua indenização fosse paga; mas apesar de sua casa estar inabitável e seu apartamento em dahiyeh estar completamente destruído, Batoul e Hajj Naji não tinham conseguido dinheiro para aluguel. Batoul acreditava que isso se devia ao fato de eles não serem “próximos” do Hezbollah — em outras palavras, não terem wasta. — Consegui o dinheiro porque minha casa foi destruída — disse o vizinho, afastando-se de Batoul, que não era uma mulher pequena. — Você conseguiu porque tem wasta — retrucou ela. — Veja nossa casa! Não está destruída? Ele começou a dizer alguma coisa, mas ela o interrompeu. — Hezb wasta! — gritou ela. — Hezb wasta! — gritou novamente, a voz rouca de raiva, e foi assim que a refeição acabou. Alguns dias depois, de volta a Beirute, eu estava sentada no Walimah com Munir. — Acho que depois dessa guerra vamos ter muitos novos crentes — disse Munir, acendendo um cigarro melancolicamente. — Muito mais frustração sexual. O sobrinho de Munir, Bashar, havia acabado de voltar de Tyre, a cidade litorânea do sul que foi invadida por jornalistas e trabalhadores humanitários e todos os outros subprodutos da guerra. Estava cheia de personagens novos e estranhos agora, de acordo com Bashar — instituições de caridade iranianas, dinheiro iraniano. Homens barbudos. — Eles querem nos ensinar a ser xiitas — disse ele, apertando os lábios. — Mas do jeito errado. — Qual é o jeito certo de ser xiita? — Amar a vida — disse Bashar. Ele era jovem. Munir riu, parecendo infinitamente cansado, e apagou o cigarro. — Sim, mas não pode ser um relacionamento unilateral, sabe — disse ele. — Para amar a vida, você precisa que a vida ame você. Na primeira Noite do Tango depois da guerra, Georges e eu nos sentamos com uma tigela de mlukhieh e conversamos sobre o último mês. Uma das coisas maravilhosas que aconteceram durante a guerra (talvez a única coisa boa) foi a maneira como a geração pós-guerra civil do Líbano preencheu o abismo deixado pelo fracasso do governo. Médicos jovens examinavam os refugiados, receitavam remédios e faziam partos. Jovens atores montavam peças e workshops de teatro para entreter crianças entediadas e assustadas. O grupo pelos direitos homossexuais e a associação anticorrupção alimentava os refugiados. Zico House e TMarbouta, dois dos melhores cafés de Hamra, converteram-se em centros para refugiados por todo o tempo que a guerra durou, e o Club Social superchique montou um show beneficente para arrecadar dinheiro. Georges passou esse período dirigindo pelas escolas de sua vizinhança, que estavam cheias de refugiados, oferecendo exames médicos gratuitos. — Annia, tenho uma pergunta para você — disse ele. — Durante a guerra, sempre vejo essas pessoas na TV, e às vezes nas escolas, dizendo que sacrificariam seus filhos por Nasrallah. A fala do partido: Eu e minha família estamos com Sayyid Hassan até a morte. Sacrificaria meus filhos por Hassan Nasrallah. — É verdade? — inquiriu, franzindo sua testa lisa. — Os xiitas pensam isso mesmo? — É claro que não — respondi.

Fiquei um pouco chocada com a pergunta. Não era da minha conta responder, mas Mohamad não estava lá e uma das razões pelas quais eu amava Georges é que ele perguntava as coisas que a maioria das pessoas achavam que já sabiam. Depois da guerra escrevi uma matéria sobre como o Hezbollah usava as ruínas de dahiyeh como propaganda. Mas jornalistas, israelenses e até mesmo muitos libaneses eram todos cúmplices de uma propaganda mais sutil. Eles estavam construindo um mito, um mito que juntava Hassan Nasrallah, Ehud Olmert e a CNN em uma mentira conveniente: que as pessoas do Oriente Médio — nesse caso, xiitas libaneses — não valorizam suas vidas como os ocidentais. Que amam ser mártires. Que ficam felizes em se sacrificar por alguma causa apocalíptica; que morriam porque gostavam disso. Dan Gillerman, o embaixador israelense das Nações Unidas, usava esse mito para defender os bombardeios israelenses contra civis libaneses em Qana, incluindo dezesseis crianças que, de acordo com ele, tinham escolhido “dormir com um míssil”. O escritório da Saatchi & Saatchi no Líbano empregou esse mito em seu slogan sectário pós-guerra, “Eu amo a vida”, que implicava que os xiitas escolhem voluntariamente a morte em relação à vida. E o próprio Nasrallah usou o mito antes, durante e, especialmente, depois da guerra, quando bradou: — Eles desejam tronos; enquanto nós queremos ser carregados em caixões. Mas quando as câmeras da televisão foram embora, quando os repórteres largaram seus cadernos e a alegria afiada da sobrevivência foi seguida da culpa e do ódio que só um derramamento de sangue é capaz de proporcionar, quando tudo tinha acabado, ninguém disse “Eu, minha mulher e meus filhos estamos com Sayyid Hassan até a morte”. Não se ouviu “Eu sacrificaria meus filhos por Hassan Nasrallah”. Eles diziam “homus sem azeite” ou “Hezb wasta” ou até “você emagreceu”. No entanto, não importava o que eles diziam em particular quando as câmeras eram desligadas. Ninguém, além deles, ouvia. A maioria dos civis vivenciou a guerra não como os combatentes e as vítimas que desfilam nas telas de televisão, mas como donas de casa cansadas descascando batatas e pensando, o tempo todo, na estupidez de tudo aquilo. Ficar presa dentro de casa com Umm Hassane me forçou a vivenciar o tédio terrível e humilhante da guerra sem a anestesia do perigo ou a importância narcótica do risco para ele mesmo — passar pela guerra não como testemunha, não como jornalista, mas como um ser humano. Foi isso que aprendi cozinhando com Umm Hassane: aquela era a história real. Você precisa comer o que lhe cabe. Na primeira vez que ouvi a história de Umm Paula sobre a ceia de pedras, pensei que fosse a história de uma mãe que alimenta a fome de seus filhos com imaginação e amor: Eles vão pensar que temos algo para comer, e não vão mais sentir fome. Era uma história sobre histórias — sobre como é possível dominar a fome e o sofrimento, transformar pedras em ceia assim como Jesus transformou água em vinho em Caná. Quando ouviu essa interpretação, Paula riu. — Bom, você pode encarar dessa forma — disse. — É uma história, afinal de contas. Nós realmente usamos essa frase, uma “ceia de pedras”. Mas não é assim que a usamos. Umm Paula disse que era “uma história cristã antiga”, então procurei por ela em coleções de histórias cristãs medievais. Nada. Perguntei a todos que conhecia sua origem. Muitos tinham ouvido a história, e todos disseram que ela era muito antiga; mas ninguém sabia quanto. Era como tentar descobrir de onde veio o masquf pelas águas turvas do passado. Muito tempo depois da guerra, um amigo disse que a história das pedras datava do Império Abássida. Contou que era um dos contos maquiavélicos de governantes e governados, de comedores e comidos, que os escribas árabes do século IX adaptaram de coleções de histórias anteriores durante a grande orgia abássida de traduções no Iraque. Kan ya ma kan, talvez fosse, talvez não fosse, mas a versão que ele me contou era assim:

No reino glorioso do grande califa Haroun al-Rashid, comandante dos fiéis, o povo de Bagdá estava morrendo de fome. Enquanto o califa bebia vinho com seus cortesãos, entregava o governo do califado para seus vizires, uma família esperta e brutal chamada os Barmakids. Eles desviaram milhões. Cobravam impostos do povo sem piedade. E garantiam ao califa que tudo andava bem: as pessoas o amavam, Bagdá era uma cidade de paz, a inveja da criação, o umbigo do mundo. Um dia (assim diz a história) o califa decidiu averiguar com os próprios olhos. Ele colocou roupas comuns e foi caminhar pela grande cidade para ver o que podia ver. Passando por uma casa humilde, enfiou a cabeça para dentro por cima do muro e observou a mulher cozinhando pedras. Quando o califa ouviu a justificativa da mulher, percebeu que os Barmakids estavam mentindo para ele — alimentando-o com uma mentira: uma tabkhet bahas, uma ceia de pedras. Então jogou os Barmakids na cadeia e cortou suas cabeças. E todos, como sabemos, viveram felizes e bem-alimentados daquele dia em diante.

Parte V DEUS, NASRALLAH E O SUBÚRBIO

“Na chamada Idade da Ignorância, anterior ao islã, nossos ancestrais montavam seus deuses com tâmaras e as comiam quando passavam por necessidade. Quem é mais ignorante, então, caro senhor, eu ou aqueles que comiam seus deuses? Você pode dizer: ‘É melhor as pessoas comerem seus deuses do que os deuses comerem as pessoas.’ Mas eu responderia: ‘Sim, mas seus deuses eram feitos de tâmaras.’” — Emile Habiby, The Secret Life of Saeed, the Pessoptimist

25 NÃO HÁ XIITAS NA VIZINHANÇA

A GUERRA HAVIA TERMINADO. As chuvas vieram, e com elas os trovões, e todos que ouviram a primeira tempestade acordaram em choque e acreditaram, por um instante, que a guerra continuava. No sul, as chuvas carregaram pequenas bombas não detonadas de árvores e campos, uma estranha colheita, e o número de fatalidades subiu para 26 naquele ano. Em novembro, seis ministros alinhados ao Hezbollah demitiram-se de seus gabinetes, paralisando o governo. Durante todo o outono, Nasrallah falou que o primeiro-ministro libanês Fouad Siniora e o que restava de seu governo eram fantoches americanos. Nasrallah dava a entender que daria sequência à “Vitória divina” com algo ainda mais inesquecível. Três meses e meio depois do fim da guerra, no dia 1º de dezembro, centenas de milhares de seguidores do Hezbollah e seus aliados marcharam em direção ao centro de Beirute. Descarregavam milhares de colchões de espuma cobertos com tecido, como aqueles em que meio milhão de refugiados dormia durante a guerra, e montaram uma cidade de tendas em sua versão da intifada da independência. Arame farpado e blocos de concreto dividiam manifestantes — os que não tinham, na iconografia dessa nova revolução — do resto do centro, os que tinham. Nos estacionamentos que Land Rovers um dia dominaram, fazendeiros de Nabatiyyeh plantavam vagem, tomates, abobrinhas, girassóis e pepinos. Homens faziam abluções e oravam na calçada em frente ao Buddha Bar. Cantavam “Allah, Nasrallah, wa al-dahiyeh killha”, Deus, Nasrallah e todo o dahiyeh, que os jornais nos Estados Unidos traduziam como “Deus, Nasrallah e o subúrbio”. Eles exigiam que Siniora renunciasse, para que o Hezbollah pudesse montar um novo governo em que o Partido de Deus e seus aliados teriam mais poder. Achavam que levaria um ou talvez dois meses até que a “Vitória divina” fosse seguida por uma conquista igualmente divina e prometiam ficar até que isso acontecesse. Ninguém sabia, naquele tempo, quanto tempo ficariam ou o que ia acontecer antes que saíssem. O primeiro mês foi estranhamente festivo. Multidões de mulheres de véu e homens vestidos de preto se misturavam a garotas em jeans de cintura baixa e calcinhas amarelo-Hezbollah à mostra. Homens distribuíam lenços laranja, a cor do Movimento Patriótico Livre, o partido cristão de maioria maronita liderado pelo ex-comandante do exército Michel Aoun. Meninos usavam perucas encaracoladas de palhaço de um laranja brilhante e carregavam garotas em seus ombros para hastearem a bandeira libanesa. Um cara do Hezbollah tentou pegar meu endereço de e-mail “para bater um papo”. Meninos distribuíam pequenas esponjas verdes que simbolizavam um governo “limpo” e muitas pessoas disseram a mim e Mohamad que queriam legislação sobre divulgação de financiamento de campanha. Alguns manifestantes — incluindo pessoas de Beirute ou do dahiyeh — disseram que não haviam estado no centro desde a guerra civil. — Se eu comprasse um sanduíche ali — disse um homem, apontando em direção à rua Maarad e ao amado T.G.I. Friday’s da Rym —, ficaria quebrado durante um mês. No Natal, o Hezbollah e seus aliados serviram um banquete digno dos abássidas: o Partido de Deus distribuiu centenas de perus assados, recheados com pistaches, passas e arroz temperado com canela, e o movimento do general Aoun serviu um bolo de doze metros. Os perus e o bolo faziam parte de uma longa tradição de comida como propaganda e poder: de simats (de uma antiga palavra árabe para “refeição” ou

“tecido sobre o qual a refeição é servida”), banquetes públicos massivos proporcionados por governantes, sultões e califas para garantir fidelidade. Essa comida mandava a mesma mensagem que os gêneros enviados aos estacionamentos subterrâneos: Allah Karim. Seu governo pode construir palácios de prazer para milionários do Golfo enquanto você sobrevive com duzentos dólares por mês. Pode impor uma taxa de imposto regressiva de 10% em tudo, exceto comida e remédios. Seus aliados podem mandar bombas para destruir suas casas e seus campos e mutilar ou matar seus filhos. Mas Deus — e Seu Partido — proverão. Quando o governo não distribuiu os cargos depois de quase dois meses, o Hezbollah invocou um “ataque” de um dia em 23 de janeiro de 2007. Naquela manhã, Mohamad e eu acordamos com o cheiro, agora tão familiar quanto um velho amigo, de metal queimando. A rua Najib Ardati fazia uma curva vazia em direção a Corniche. Na esquina, o esqueleto carbonizado de um carro ardia tristemente, parado no meio-fio como uma vaca cansada. Descemos para visitar nosso vizinho Rabih Baddous. Ele era um velhaco alto e bigodudo que gerenciava uma concessionária da Yamaha no térreo de nosso prédio. Ele disse que milícias se reuniam a algumas quadras dali: partidários do Hezbollah contra os pró-governo, e o exército permanecia em linha no meio dos dois. — Se isso continuar — disse ele, com firmeza —, amanhã de manhã teremos guerra civil de novo. Amanhã de manhã. Subimos a rua, depois viramos à direita e subimos a quadra comprida que levava ao alto da Corniche. Na esquina da frente do restaurante Abu Hassan, mais ou menos cem homens circulavam. Eles carregavam tacos de beisebol, canos de chumbo e ripas longas de madeira. Eram de todas as idades, mas na maioria adolescentes e jovens de vinte e poucos anos. Alguns usavam máscaras de esqui ou bandanas sobre a boca. Outros usavam chapéus ou lenços azuis, a cor do Movimento do Futuro, o partido político sunita de Saad Hariri e do primeiro-ministro Siniora. Alguns tinham fitas azuis em volta da cabeça, fazendo com que parecessem alguma tribo perdida de hippies sectários. O que fizemos não foi inteligente, mas já era tarde. Eles nos viram caminhando em sua direção, virar e ir embora faria com que parecêssemos suspeitos. Não havia nada a fazer a não ser abordá-los e tentar evitar a questão inevitável do sobrenome de Mohamad. — Oi — disse eu, andando até os dois jovens mais próximos. — Vocês falam inglês? Meu nome é Annia, sou uma jornalista americana, e este é meu tradutor. Posso fazer algumas perguntas? — Claro — disse um jovem musculoso com uma camisa do Real Madrid e um gorro azul-claro. Seu nome era Maher Amneh, tinha 32 anos e possuía uma loja na rua Hamra que vendia “roupa esporte casual unissex”. Eu tinha comprado várias camisetas lá. Seu primo Bahi era um estudante sério de dezenove anos e estava com camiseta verde e boné de beisebol. Bahi estava se formando em gestão da informação, com ênfase em finanças, na Universidade Americana Libanesa. Ele esperava se formar no ano seguinte. Ao acordar eles viram o bairro em que moravam cheio de barricadas e carros queimando, e sentiram que estavam sob ataque. Tinham saído às ruas para revidar. — A Síria e o Irã fizeram essa guerra em julho e sentimos como se não pudéssemos falar ao ver as ruas com barreiras — disse Bahi, sem fôlego. — Não podemos ter apenas xiitas com acesso… — Com acesso a armas! — disse Maher. — E os sunitas não têm — disse Bahi. Em 1989, quando assinaram o Acordo de Taif, todos os líderes de milícia do Líbano concordaram em entregar suas armas. Mas o Hezbollah tinha a permissão de manter as dele como “resistência nacional” contra a ocupação israelense no sul do Líbano, que acabou em 2000. Durante anos, o regime em Damasco

permitiu que armas iranianas chegassem ao Hezbollah passando por território sírio. Depois de 2005, o governo Bush começou a pressionar o governo de Siniora pelo desarmamento do Hezbollah. Nasrallah jurou que o grupo jamais usaria suas armas contra outros libaneses, mas muitos não acreditaram nele. — Então por que os xiitas têm armas — perguntei a Bahi — e vocês não?… — Armas ilegais! — gritou um homem que estava perto de nós, um homem de meia-idade com rosto de sapato velho e olhos dilatados e distantes. Ele segurava um cachimbo. — Terroristas! Terroristas! — E estão ocupando nossas áreas — disse Bahi, pacientemente, tentando retomar a conversa. — Temos que limpar nossa área. O Hezbollah pertence aos subúrbios e ao sul. — Hassan Nasrallah é um mentiroso! — gritou Maher. — Um grande mentiroso! — Eles pertencem ao sul e aos subúrbios — repetiu Bahi. — Estão ocupando nossa área. Então é nosso dever libertá-la. — Como? — perguntei. — Iremos até lá e pediremos pacificamente que o exército liberte a Corniche — disse Bahi. — E se não a libertarem, atacaremos. — Vocês acham que é uma boa ideia? — perguntei. — Só queremos viver em paz — disse Bahi. — Não deixaremos que eles ocupem nossas áreas. Nossas áreas. — Em que área vocês vivem? — perguntei. — Aqui, em Beirute — disse Bahi, dando de ombros. O Líbano era segregado por seitas, ele explicou. Cortando o ar com as mãos, dividiu uma cidade imaginária em metades, quartos: cristãos num quarto, muçulmanos em outro, sunitas e xiitas separados. Beirute, segundo ele, pertencia aos sunitas. — Aqui é dos sunitas, entende? — Ele desenhou com a mão uma parábola em torno do bairro. — Vocês são deste bairro? — perguntei. — Sim, sim, moro aqui — disse Bahi. — Todos os caras que você está vendo aqui — disse o mesmo homem de antes —, eles são deste bairro. Então: eles eram nossos vizinhos. Não falei isso. Em vez disso, perguntei sobre suas vidas. Quando a guerra de 2006 eclodiu, Bahi havia perdido seu emprego temporário numa empresa que patrocinava produtos para cabelo. Teve que trancar o semestre na faculdade porque não tinha dinheiro para pagar a mensalidade. Agora sua formatura atrasaria. O Irã tinha pagado aos xiitas que perderam seus empregos, ele nos contou. Quem pagaria a ele? — Eles são contra tudo, tudo que vá melhorar nossas vidas — ele disse. — Com certeza haverá mais guerras, mais danos — vislumbrou Maher, sorrindo amigavelmente. — Isso é certo. Atrás dos dois primos, o restante dos shabab do Futuro havia se espalhado na interseção. Estavam parando carros e pedindo às pessoas de dentro que se identificassem e dissessem aonde iam. E exigiam ver suas carteiras de identidade. Durante a guerra civil, quando a religião das pessoas estava escrita em suas carteiras de identidade, o documento ditava a diferença entre vida e morte. As milícias dos bairros paravam carros e exigiam ver os documentos das pessoas, exatamente como eles faziam agora. Se a pessoa fosse da religião errada, tivesse o sobrenome errado, se juntaria aos cerca de 170 mil mortos ou desaparecidos contabilizados durante os quinze anos de guerra. — Não queremos que eles entrem na nossa área — disse Maher. — É só esse o nosso objetivo. Não queremos lutar contra eles… só queremos proteger nossa área. — Mas esta não é uma área mista? — perguntei.

— Não — respondeu, com uma certeza tranquila. — Cem por cento sunita. — Não há xiitas aqui? — Não — disse ele novamente, com paciência. — E todo mundo sabe disso. Estávamos em frente ao restaurante Abu Hassan — um restaurante que era de um xiita e vendia mjadara hamra e frakeh, comida sulista clássica, no coração do que eles consideravam um bairro “sunita”. Mas não comentei nada a respeito disso: chamaria atenção para o fato de que nós comíamos ali. — Todos nos conhecemos — explicou Maher. — Então, se percebemos alguém estranho, significa que esse alguém não é da área. — O que vocês fariam se vissem alguém estranho? — Perguntaríamos a ele: “O que você está fazendo aqui, agora, a essa hora?” — disse, e fez uma cara séria, rígida, como um estudante de teatro entrando no papel, enquanto interrogava seu cativo imaginário. — “Então, o que você quer aqui?” Assim. E se ele não nos desse nenhuma resposta, significaria que ele vem deles, e quer dar uma olhada, quer contar quantos somos. Em outras palavras, ele é um espião xiita, enviado para infiltrar-se no bairro e informar sobre seus preparativos. Perguntei-me se Mohamad tinha trazido a carteira de identidade libanesa ou o passaporte americano. De qualquer forma, eles saberiam que ele era xiita no minuto em que vissem seu sobrenome. O passaporte americano superaria a religião, ou pensariam que ele era um espião? O que aconteceria se ele tivesse se deparado com essa barreira, a algumas quadras de nossa casa, sem mim? Uma SUV preta veio em nossa direção. Um dos vidros escuros baixou. Do lado de dentro, homens com fones de ouvido e walkie-talkies deram instruções aos homens na rua, um deles veio até nós e deu um tapinha no ombro de Maher. — Temos que ir — disse Bahi. — Vamos abrir esta estrada. — Bem — disse eu, sorrindo. Tremia e meu coração estava acelerado. Mas eles não conseguiam ver isso. — Boa sorte! Fomos saindo. Eles não perguntaram o sobrenome de Mohamad; não descobriram que havia pelo menos um xiita neste bairro. — Ai meu Deus! — exclamei, assim que ficamos a uns dez metros de distância. Mohamad não disse nada. Só olhou para trás, por sobre os ombros, para nossos vizinhos. A rua em que estávamos levava até a parte alta da Corniche. No fim de uma quadra bem longa cheia de prédios residenciais, hotéis e restaurantes, passamos por território mantido pelo Hezbollah e pelo Amal. Homens de preto descansavam em cadeiras de plástico em frente ao Kentucky Fried Chicken. Homens de expressão raivosa distribuíam-se em silêncio ao longo do canteiro central e da calçada. Uma fila de minivans, do tipo que partidos políticos usavam para transportar pessoas para as manifestações, estava estacionada ao longo da Corniche. A carcaça de outro carro queimado jazia abandonada no meio da rua. Andamos até um jovem sardento que segurava uma longa corrente de metal e perguntamos a ele o que estava acontecendo. — Estamos só matando tempo — respondeu taciturno e um pouco temeroso. Parecia ter dezesseis ou dezessete anos. — Não está acontecendo nada. — Pelo árabe ficava claro que ele era do sul. Ele usava sufixos como –fish, a sintaxe e o sotaque que conhecíamos de Umm Hassane. Conversamos com mais algumas pessoas; elas pareciam da mesma forma inseguras quanto ao porquê de estarem ali. — Podemos ir agora? — perguntou Mohamad. Mas quando atravessamos a rua de volta vimos que a situação havia mudado nos quinze minutos em que ficáramos conversando. Uma grande multidão de homens de preto havia se reunido na esquina. Alguns

usavam máscaras de esqui pretas. Um segurava uma picareta. Outros brandiam canos. Alguns coletavam blocos de concreto de um prédio destruído na esquina. Lá em cima, nos apartamentos com as paredes abertas, homens empoleiravam-se aqui e ali para vigiar a rua lá embaixo. A reconstrução por conta da última guerra de Beirute fornecia armas e lugares estratégicos para a próxima. De repente uma saraivada rápida de tiros ressoou. Os ecos ricochetearam pelas laterais de prédios altos e sacudiram a rua em direção ao mar. — Jesus! — gritei sem pensar. (Alguns anos antes, eu teria gritado “Jesus Cristo impropério”, mas uma das coisas que Mohamad me ensinou foi a não falar palavrões em zonas de guerra.) — Este é o exército — disse Mohamad, irritantemente calmo, como sempre ficava em situações como essa. — Eles estão atirando para o alto. Homens com as cabeças envoltas em kaffiyehs começaram a correr, uns em nossa direção e outros na direção contrária. Um homem vestido de preto com um walkie-talkie gritou para que voltassem. Mais tiros foram disparados ao longo da rua estreita. De volta pelo caminho pelo qual tínhamos vindo, uma fila de soldados libaneses corria por toda a extensão da rua. Passando por eles, do outro lado da fila, estavam os caras do Futuro com quem havíamos conversado na frente do Abu Hassan. Ao nosso lado, os homens de preto do Hezbollah e do Amal dispararam. Homens em ambos os lados da rua gritavam e atiravam pedras, tijolos e blocos de cimento uns contra os outros através da linha de soldados que ficava no meio segurando seus rifles e prontos para disparar. De repente, mais tiros foram disparados, uma enxurrada dessa vez, muito mais alto e muito mais perto que antes. Homens começaram a correr rua abaixo, em direção à Corniche, nós corremos com eles, e tive a sensação repentina de que não voltaríamos para casa novamente. — Precisamos sair daqui — soltei ofegante. Ficamos na esquina perto da Corniche olhando enquanto um corpo disforme de aproximadamente cem homens vinha em nossa direção. Todos tinham algo nas mãos: canos de metal, blocos de cimento, correntes, tábuas com pregos. As correntes faziam um barulho de cascavéis. Um homem balançou uma corrente de metal pesada com um nó na ponta. Eles gritavam, corriam, chutavam, batiam e arremessavam, reunidos por algum tipo de força centrípeta. Reuniram-se em volta de um carro, gritando. Bateram no carro com canos, levantando-os bem alto e proferindo golpes como se estivessem matando um animal. Um deles machucou a mão e gritou com raiva, como se o carro o tivesse atacado. Dois jovens fortes, bronzeados, com jeito de gângsteres, estavam na esquina próximos a nós. Usavam agasalhos da Puma e pequenos amuletos dourados da Zulfikar, a espada dupla de Ali, em volta do pescoço, um símbolo dos xiitas também usado pelo Amal como um símbolo de gangue. Eles estudavam o cenário com olhos felinos. — Isso não está bom, cara — disse eu. — Isso está acontecendo ao longo da rua da nossa casa — disse Mohamad. O tiroteio parou. Descemos novamente a rua, esperando chegar até nossa casa. Os dois grupos haviam retornado a seus respectivos lados da longa quadra. Os soldados mantinham as feições rígidas, nervosas, e as armas apontadas para o ar. Vidro quebrado, pedaços gigantes de concreto, pedras e pedaços de madeira e metal estavam em volta deles. Algumas crianças do bairro saíram de casa correndo e começaram a brincar sobre o vidro quebrado. Gritavam de alegria. Tiros ecoaram do final da rua. Os caras do Futuro estavam voltando, marchando da direção do nosso apartamento. Cantavam algo, um slogan que ficava cada vez mais alto à medida que se aproximavam: “Airi bi Nasrallah wa al-dahiyeh killha!”, fodam-se Nasrallah e todo o dahiyeh! O novo slogan incitou gritos de raiva do outro lado. Começaram a se aproximar da direção contrária,

batendo correntes e canos, gritando seu slogan sobre o ministro do Interior do governo: “Ahmad Fatfat é judeu!” — Talvez não devêssemos voltar para lá — disse Mohamad, começando a parecer angustiado. Viramos e corremos de volta para a Corniche, mais uma vez, para longe de nosso apartamento. Nunca chegaríamos em casa. Homens passaram por nós correndo e cantando na direção contrária. — Isso é terrível! — disse ofegante, enquanto percorríamos a rua. — É exatamente como quando você era criança! — Sim! — disse ele, triste. — Como gangues de bairros. Paramos na frente de um dos pequenos hotéis daquela quadra. Um casal que parecia aterrorizado com três filhos levava as malas para a recepção. Eles ficaram do lado de dentro da porta, esticando o pescoço para ver a rua. — Eles parecem aterrorizados — disse Mohamad —, e como não estariam? — Escolheram a época errada para férias em Beirute. Mais tarde naquela noite percebemos que eles provavelmente eram refugiados internos — famílias libanesas que tentavam escapar de bairros em que de repente sua seita era a errada. Na Corniche alMazraa, onde Leena morava, os confrontos eram ainda piores. Os shabab do Futuro seguravam fotos de Saddam Hussein, que tinha sido executado pelo novo governo liderado pelos xiitas havia três semanas. Nessa hora já estávamos seguros em casa, de volta à rua Najib Ardati. Mas nossa casa era outro país agora, principalmente para Mohamad. A guerra civil tinha ido e vindo, uma geração havia crescido, e ele ainda estava a apenas algumas quadras da Linha Verde. Em 1987, depois de doze anos de guerra civil, um cientista político chamado Theodor Hanf conduziu um estudo. Ao final, descobriu que a maioria dos libaneses queria uma “solução democrática” para a guerra — em outras palavras, uma paz negociada. Sem vencedores, sem vencidos. Teimosos 10% acreditavam que suas milícias poderiam triunfar sobre os oponentes, expulsá-los de seu país e governar para sempre. Essa minoria — e o sangue que estava disposta a derramar por suas miragens de vitória total — era o suficiente para manter a guerra. Vinte anos depois, em janeiro de 2007, o Líbano estava à beira de outra guerra civil. Retomar a vida normal ou voltar para a longa guerra civil do país ainda era uma escolha de uma fração inflexível da população. No dia seguinte ao ataque, os bloqueios de estrada e carros queimados tinham sumido. Uma rua que estivera cheia de pneus queimados na terça parecia absolutamente trivial na quarta, como se nada tivesse acontecido. O Abu Hassan reabriu. As pessoas foram para o trabalho, fazer compras, voltaram para casa, dormiram. Porém, na quinta, 25 de janeiro, por volta do meio-dia, uma mensagem silenciosa mas inconfundível atravessou a cidade. Confrontos explodiram simultaneamente em diversas universidades. Atiradores na Universidade Árabe de Beirute em Tareeq al-Jadideh. Combates na Universidade Hawai em Hamra. Brigas perto da Universidade Internacional Libanesa em Zuqaq al-Blatt. — Os caras do Futuro decidiram limpar os bairros — disse Rabih, erguendo a cabeça. Novas atualizações sussurravam em seu fone de ouvido via bluetooth. — Vai ficar pior… agora, veja, eles vão começar na AUB e na LAU. — Essas eram as duas grandes universidades americanas que ficavam nas extremidades de Hamra. De repente todas as ruas ficavam cheias de caminhões, carros e motocicletas. Carros colidiam uns com os outros em pânico. Motoristas colocavam a cabeça para fora da janela e gritavam. Pessoas presas do lado de dentro apertavam suas buzinas freneticamente, todas retumbando ao mesmo tempo, como uma banda de sopro insana. Todos se apressavam para fazer compras, voltar para casa e sair das ruas. O ar cheirava a

fumaça. Era hora de fazer compras de guerra outra vez: hora de estocar pão, sopa enlatada, macarrão, lentilhas e arroz. Hora de ir a nosso furn local para o manaeesh. O padeiro de nosso bairro era Abu Shadi, um homem corpulento com uma juba castanha ondulada na altura dos ombros que ele pintava periodicamente, fazendo luzes quase louras. Abu Shadi alimentava Manara de manaeesh desde 1988, e sua massa era perfeição firme, crocante e oleosa. Ele estava trabalhando dobrado, esticando os círculos elásticos de pão com as mãos enormes, untando-os com azeite de oliva e zaatar, deitando-os em longas tábuas de madeira e colocando-os no forno rugindo de quente todos de uma vez. Homens estavam em pé em frente ao furn esperando pelo manaeesh. Geralmente ficavam andando pela calçada, fazendo piadas e conversando sobre política e fofocando com a boca cheia de pão. Mas agora só ouviam o rádio e olhavam uns para os outros inquietos. O açougueiro ao lado puxou a grade metálica sobre a janela como uma trovoada. Lojas por toda a quadra fechavam as grades e trancavam as portas. Dois adolescentes, de treze ou quatorze anos, subiam no ciclomotor. Um deles tinha um taco de beisebol enfiado embaixo da jaqueta de couro. Um velho curvado enfiado em um cardigã subia a rua vagarosamente; parou e olhou para eles desconfiado. — O que estão fazendo com esse taco? — repreendeu. — Não temos nenhum taco — mentiu o mais velho, com um respeito sombrio. — Estou vendo, embaixo da sua jaqueta! O mais novo sorriu. — Estamos pastoreando ovelhas — disse ele. O velho deu de ombros desesperançado e continuou subindo a rua. A geração mais jovem, que não havia passado pela guerra civil, correu para se juntar à diversão. Naquela noite, o exército impôs um toque de recolher pela primeira vez desde 1996. Quatro pessoas haviam sido mortas e mais de 150, feridas. Havia barreiras como a de nosso bairro em outras partes da cidade e atiradores na universidade descendo a rua do prédio de Hanan. Atiradores, barreiras, toques de recolher: parecia que os dezessete anos desde o fim da guerra tinham simplesmente evaporado. No sábado, a cidade estava de volta à inércia paranoica e raivosa que era o normal naqueles dias. As pessoas foram trabalhar. Restaurantes e lojas ficaram abertos, mas tinham pouquíssimos clientes. As pessoas foram para casa e ficaram diante da televisão, esperando para ver o que ia acontecer. Todos menos nossa amiga Rym, que veio de Gemmayzeh com um carro e uma ideia. Toda a Beirute foi se entrincheirando, com medo de sair de casa. Mas o centro pertencia a nós, ela disse, tanto quanto a qualquer das facções sectárias que brigavam pelas ruas de Beirute. Ela queria ir ao centro, à área mais evitada por todos, almoçar. Concordamos. Por que não? — E Umm Hassane? — disse Rym, enquanto nos arrumávamos para sair. — Por que não a levamos também? — Umm Hassane, quer sair com a gente? — Acabei de começar a tomar chá! Vocês esperam até que eu termine meu chá? — Esperamos. — Vocês deviam ter me avisado antes de eu começar a tomar… — Vamos esperar a senhora! — Aonde vocês vão? — Vamos para o centro. Vamos comer.

— O que eu quero com comida? Já comi! — A senhora devia vir com a gente. A senhora pode andar por aí. Andar por aí? — Não saio faz tempo… — disse ela, pensativa. Nessa hora, Umm Hassane fez algo que talvez nunca tivesse feito antes na vida: abandonou o chá. Vestiu seu melhor manto preto, que Mohamad chamava de “super-haji” e ligou para Hanan para gabar-se de estar indo ao centro. — Olhem para ela, está radiante — disse Rym, quando nos enfurnamos no carro dela. Umm Hassane baixou o vidro do passageiro da frente. Mohamad e eu baixamos os vidros de trás e colocamos a cabeça para fora como cachorros. Rym dirigia e sorria ao mesmo tempo. Estacionamos perto da praça dos Mártires e começamos a andar. Umm Hassane mancava ferozmente em direção ao centro da cidade, agarrada ao braço de Mohamad. — Shu biddi bil balad?, o que eu quero com o centro? — perguntou alto, com um encolher de ombros que não enganava ninguém. No restaurante, discutimos sobre sentar do lado de dentro ou do lado de fora. Do lado de fora era mais agradável, mas Umm Hassane não ficaria com frio? Ela deu de ombros: — Mitil ma bidkun, como vocês quiserem. — Ela queria sentar lá fora? Ela deu de ombros. — Mitil ma bidkun. Sentamos do lado de fora, para aproveitar mais a vista do centro da cidade: as ruas de paralelepípedo, os gatos vira-latas. Havia um velhinho com síndrome de Tourette, uma figura do centro de Beirute. Ele andava pelas ruas vendendo pôsteres brilhosos da capital e gritando com os turistas. Parecia ser o único além de nós no centro naquele dia. Quando nos viu sentados do lado de fora do restaurante, uivou de alegria e correu até nós. Já tínhamos alguns de seus pôsteres, mas compramos mais um, uma fotografia azul da praça dos Mártires antes da guerra, com sua linha de palmeiras e os palácios de cinema em estilo art déco. Umm Hassane se superou naquele dia. A garçonete trouxe cardápios: — Não traga nada para mim — insistiu. — Não quero nada; já comi! A garçonete trouxe pratos e arrumou a mesa. — Por que ela me trouxe um prato? Não disse a ela que não vou comer? — Fique com o prato, só para garantir. — Já comi! — A senhora quer chá? — Já tomei chá! Pedimos mesmo assim. Ela tomou instantaneamente, apesar de estar escaldante, e reclamou que estava muito frio. Ela queria mais? “Shu biddi fi?” Demos a ela um pouco de meze frio — homus, folhas de uva recheadas, tabule. Ela devorou tudo enquanto protestava, com a boca cheia, que não estava com fome. Seus olhos se acenderam quando o batata wa bayd chegou. — Vocês vão comer batata wa bayd? — perguntou, jogando a cabeça para trás, apertando os olhos e olhando para o prato de lado. — O seu é melhor, é claro — disse eu, colocando uma porção grande de batatas fritas e ovos no prato dela. Ela comeu. — Taybeen, ma ishbun shi — comentou —, não há nada de errado com ele. Tendo elogiado a comida, ela olhou para os pratos desarrumados na mesa e suspirou. — Por que não ficamos em casa? — perguntou dando de ombros. — Eu teria feito batata wa bayd!

Rym virou-se para mim. — Ela é sempre assim? — perguntou em inglês. Mohamad e eu rimos. — Isso não é nada — respondi. — Geralmente — disse Mohamad, com orgulho — ela é pior. A garçonete parou diante de nós, com as mãos entrelaçadas, desculpando-se: eles fechariam mais cedo porque não havia nenhum outro cliente além de nós. Queríamos mais alguma coisa antes que a cozinha fechasse? Relutantes, decidimos ir para casa. Então Rym teve outra ideia. — Umm Hassane, a senhora quer ir ver a cidade das tendas? — Mitil ma bidkun, como vocês quiserem. — Mas depois ela acrescentou: — Se vocês vão para lá… — Em sua língua, o mais próximo a que chegaríamos de um “sim”. Andamos por Sahat al-Nijmeh e Rym comprou uma nuvem de algodão-doce rosa maior que sua cabeça. O velho gritou feliz ao nos ver, seus únicos clientes, novamente. — O centro está deserto — ficava repetindo Rym. — Está morto! Quando chegamos às barricadas de metal azul, paramos, de repente hesitantes quanto a nos aventurarmos do outro lado. — Bem, já que estamos aqui, vamos — disse Umm Hassane, dando de ombros, como se tivéssemos sido arrastados para lá contra nossa vontade. Ela atravessou a barricada, e nós a seguimos. Do outro lado da barricada, homens amontoavam-se em barracas de lona. Outros varriam lixo. O ataque havia matado o clima festivo, e tudo o que restava eram partidários hardcore do Hezbollah que nos encaravam e depois olhavam para o outro lado. Uma caixa-d’água estava coberta de frases raivosas e desenhos do primeiro-ministro abraçando Condoleezza Rice. Mohamad segurou o braço da mãe enquanto ela mancava pela rua. Ela balançou a cabeça em aprovação quando viu os homens varrendo lixo. — Onde eles fazem as grandes reuniões? — perguntou, olhando de um lado ao outro. Pela televisão ela tinha visto dezenas, centenas de milhares de pessoas, todas acenando e aplaudindo. Mostramos a ela o grande prédio rosa em que as pessoas antes se reuniam, mas não havia mais multidões felizes agora. Nada de crianças e famílias dançando dabke. Apenas homens raivosos sentados em tendas. Não estou certa quanto ao que estávamos exatamente esperando — um pouco de orgulho, talvez, no espetáculo dos xiitas assumindo o centro da cidade. Mas depois de um minuto ela parou, olhou ao redor e franziu a testa. — Olhem para eles! — declarou, com o volume de uma idosa que não ouvia bem. — Estão aí, sentados! Os homens do Hezbollah viraram e olharam para nós com expressão fechada. — Eles não estão trabalhando! — ralhou ela, abanando o braço livre para apontar para toda a cidade das tendas. — Sua mãe vai começar uma guerra civil! — sussurrei. Mohamad tentou pedir que ela fizesse silêncio, mas isso só fez com que ela falasse mais alto. — Estão sentados sem trabalho nem comércio! — gralhou, usando uma expressão sulista que significava indolentes preguiçosos e vadios. — Estão sendo pagos para ficarem sentados! O Hezbollah é famoso por muitas coisas, mas receber críticas com elegância não é uma delas. Fiquei imaginando o que parecíamos aos homens do Hezbollah agachados em suas tendas, ofendidos: duas mulheres sem véu, uma delas comendo algodão-doce rosa e usando uma jaqueta vermelho-cereja; uma

hajji velha rabugenta, que mal conseguia andar, apoiada no filho, que parecia tê-la trazido à cidade das tendas especialmente para que ela pudesse andar entre eles e dizer que eram vagabundos. Talvez o sotaque de Bint Jbeil de Umm Hassane e seu hijab preto a tenham salvado. Talvez tenha sido seu super-haji. Provavelmente, eles tinham ordens de não se intrometer com visitantes. De qualquer forma, os shabab se contentaram com olhares de esguelha e nós a levamos para casa o mais rápido que pudemos. No minuto em que entramos pela porta, ela foi ao telefone e começou a ligar para os parentes. Estava ansiosa para se gabar para eles: tinha estado no centro, tinha visto as tendas. Nós fomos para a sacada para aproveitar o sentimento de alívio. — Acho que a lealdade sectária dela tem limite — disse eu. Mohamad sorriu. — Como você bem sabe, ela não tem escrúpulos em dizer às pessoas o que acha delas — disse ele. — Ela não se segura. Ele olhou para mim com o canto do olho. — Acho que foi por isso que me casei com você — completou. — Talvez você não seja tão diferente dela. Uma semana depois, os militares fortificaram as barricadas que separavam um lado do outro. Arrastaram grossas paredes cinza de concreto, envoltas em curvas festivas de arame farpado. Todos pensaram na velha Linha Verde que um dia dividiu o centro da cidade em dois. As barreiras eram necessárias para impedir as pessoas de cruzar para o outro lado e brigar, eles diziam, e possivelmente começar uma guerra civil. — Mas você sabe o motivo real pelo qual eles montam essas barreiras, não sabe? — perguntei a Mohamad. — Eles as montam para manter sua mãe longe do centro.

26 MINHA EXPERIÊNCIA ANTERIOR COM A GUERRA

EU ESTAVA SENTADA EM MINHA escrivaninha, perto da janela, quando a explosão subiu a rua e bateu contra o vidro. A vidraça foi sugada para dentro e depois para fora e quase quebrou. Eu ouvia o tilintar do vidro quebrando nos prédios ao lado. A essa altura do campeonato, junho de 2007, isso era quase rotina: um carro-bomba no fim da quadra, no clube Sporting. Walid Eido era o quarto membro do parlamento a ser assassinado nos últimos dois anos. Ligamos para Leena e para o proprietário do nosso apartamento, Ralph, pois os dois iam ao Sporting regularmente, e nossos amigos nos ligaram com preocupação ainda mais porque dessa vez havia sido muito perto. Liguei para Georges naquela noite. Ele havia programado ir embora no dia seguinte, para uma residência médica de quatro anos em Cleveland, e esse carro-bomba de despedida não facilitava em nada sua partida. — Annia, não suporto isso — disse ele. — Você não sabe como machuca ver uma coisa dessas quando se está indo embora. Faz com que seja muito mais difícil partir. Contudo, eu fazia pelo menos alguma ideia de como ele se sentia. Nós também estávamos indo embora, e eu não estava feliz com isso. No verão de 2007, Mohamad recebeu duas propostas de emprego: uma bolsa de um ano como analista do Oriente Médio e um cargo de professor de jornalismo em Nova York. Ele aceitou ambas. E estava pronto para deixar o Líbano. Mas eu não. Eu estava furiosa. Ele tinha dois empregos como razões para voltar; eu não tinha nenhum. Eu tinha desistido de um bom emprego para ir com ele para Bagdá, e agora, depois de quatro anos como freelancer, estava finalmente conseguindo matérias de revistas. Não era só o trabalho, porém: tínhamos amigos em Beirute, pessoas com quem nos importávamos, e não parecia certo deixá-los para trás. Ele havia me arrastado de uma zona de guerra para outra, feito com que eu me importasse com essas pessoas irritantes, e agora, quando estávamos começando a nos sentir em casa, queria voltar para Nova York e esquecer o Oriente Médio. Mas Nova York não era mais nossa casa. Beirute era. Naquele agosto, tiramos nossas coisas do apartamento e carregamos todos os nossos pertences em um contêiner de navio. Achamos um novo lar para Shaitan, porque Mohamad não queria levá-la para Nova York, e demos adeus a todos os nossos amigos. Já havíamos até nos despedido de Umm Hassane, o que fora o mais difícil, e mandado-a para a França, para ficar com Hassan. Em Nova York, abrimos algumas caixas e arrumamos os itens mais essenciais em nosso novo apartamento. Empilhamos no canto o resto das caixas numa torre de dois metros e meio (onde ficariam fechadas pelos dois anos seguintes). E então, no final do outono, voltei a Beirute. Quatro anos antes, quando me casei com Mohamad e fui com ele para Bagdá, alguns amigos bemintencionados encheram os ouvidos de minha mãe. Eles invocaram o fantasma cafona de Nunca sem minha filha, o filme em que a inocente e superamericana Sally Field se casa com um médico iraniano. O médico parece agradável de início, mas quando eles se mudam para o Irã, ele sucumbe a algum desejo islâmico atávico e a transforma praticamente em prisioneira e escrava. Esse Mohamad pode parecer normal, os amigos alertavam minha mãe. Pode parecer um americano qualquer. Mas quando ela for para lá com ele,

em meio a seu povo, a superfície americana pode se gastar — pode, como eles diziam, começar a “mudar”. Minha mãe achava isso tudo engraçadíssimo. Ela nos contou, e todos nós rimos muito com a imagem de Mohamad virando um estereótipo moreno das páginas de um livrinho de aeroporto. Ninguém considerou a possibilidade de que a pessoa que mudaria poderia ser eu. De volta a Beirute, o Hezbollah ainda ocupava metade do centro. O governo permanecia paralisado e quando o mandato do presidente expirou, no final de novembro, as facções cada vez mais polarizadas do país não concordavam sobre um novo presidente. No Natal, quando Mohamad veio para uma visita, o país estava sem um chefe de Estado havia um mês. Na época, isso parecia muito tempo; mais tarde não pareceria. O preço dos alimentos estava subindo vertiginosamente e pequenos tumultos por gasolina e outros itens básicos aconteciam com frequência. Então, no dia 12 de fevereiro de 2008, Imad Mughnieh, um dos dirigentes do Hezbollah, foi assassinado em Damasco. Mughnieh era um dos três membros da organização na lista dos “23 terroristas mais procurados” do FBI. Oficiais americanos suspeitavam de que ele fosse o arquiteto do bombardeio aos quartéis da Marinha dos Estados Unidos em 1983 em Beirute. Todos esperavam por problemas. Umm Hassane ainda estava na França com Hassan e Annemarie. Todos queriam que ela ficasse lá e esperasse pelos “acontecimentos” inevitáveis. Sendo como é, ela insistia em voltar para Beirute. Eu pulava de apartamento em apartamento, ficando com um ou outro amigo enquanto procurava um quarto mobiliado que pudesse alugar por tempo indeterminado. Pequenos confrontos começavam a estourar, como sempre acontecia quando os partidos políticos entravam em um impasse. Era um jeito de aumentar a pressão. Havia uma atmosfera de medo e suspeita misturados à exaustão. Todo mundo parecia permanentemente cansado e irritado. Um motorista de táxi disse que eu era bem-vinda a Beirute, mas não meu marido, porque xiitas só queriam destruir a cidade. Conheci uma senhora em Walimah. Ela perguntou o que eu estava fazendo no Líbano. (Havia muitos americanos na capital, mas as pessoas sempre me perguntavam isso. “É que todos odiamos Beirute e queremos ir embora”, uma amiga libanesa me explicou.) Ela parecia tão doce, tão inofensiva, que cometi o erro de lhe contar que meu marido era libanês. — Ah! — disse ela e levantou as sobrancelhas. Ela entortou a cabeça e arrulhou: — E qual é o nome da família dele? — Ele é xiita — estourei. — Já que você perguntou. — Ah, não, não estou… Não queria… — terminou ela, enquanto se afastava de cabeça baixa, parecendo culpada. — Queria, sim — disse eu. E me senti mal, mas disse a mim mesma que ela merecia. Alguns dias depois, um terremoto pequeno, mas significante, chacoalhou o Líbano. — Isso é tudo de que o povo do Líbano precisa — disse Mohamad quando ligou para saber se eu estava bem. — Você devia vir para casa. Mas casa, para mim, não era Nova York. No fundo, apesar ou talvez por causa de tudo o que estava acontecendo, eu ainda esperava poder convencer Mohamad a voltar — se não agora, algum dia. A ideia de uma casa estável num lugar pacífico me deixava nervosa. A experiência havia me ensinado que essas casas podiam se desfazer em minutos. Mas se eu pudesse esculpir um lar temporário em qualquer lugar que estivesse, mesmo no meio da instabilidade, estaria segura independentemente de qualquer coisa. Casa era um banquete móvel; você a amarrava nas costas, enfiava num jarro, secava ao sol, desenterrava do chão. Casa era onde se compartilhava o pão com pessoas queridas. Era possível montá-la num hotel, no

porta-malas de um carro ou em sofás nas salas de amigos. Era possível trazer uma casa à vida lendo livros, cozinhando e aprendendo línguas, compartilhando refeições e palavras com os outros. Era possível carregála consigo, dobrada como uma toalha de piquenique, e espalhá-la onde quer que se estivesse. Mohamad me ligou de manhã depois de algum conflito de rua particularmente violento. — Você tem que vir para casa — disse ele. Eram três da manhã em Nova York. — Mas e a sua mãe? — Ela vai ficar bem. Ela não precisa que você cuide dela dessa vez. Eu estava perguntando algo muito maior e mais confuso: Por que era tão importante cuidarmos dela durante a guerra, mas não agora? Por que ela tinha ficado em Beirute e nós não? Mas não esclareci nada disso. — Estamos vivendo no limbo — disse ele. — Não podemos nos estabelecer enquanto você estiver aí. — Passamos o tempo todo aqui vivendo no limbo. Talvez eu tenha me acostumado com isso. Ele suspirou. — Você precisa voltar. Está ficando perigoso. — Não posso. Tenho que ficar aqui. É sobre o que estou escrevendo. Como posso escrever sobre isso se eu nem estiver aqui? — Sabe de uma coisa, Annia, você está perigosamente perto de parecer uma viciada em guerra. — Ah é? Como quando você esteve em Nablus ou Jalalabad? Ou em Bagdá logo depois da invasão? — Isso é mais perigoso. — É mesmo? Mais perigoso do que quando você estava em Istambul, cortejando com os merdas dos caras que mataram Daniel Pearl? — Isso é pior, Annia. — Foram só confrontos. Tem confrontos aqui o tempo todo. — Foi assim que a guerra civil começou. Com pequenos incidentes. Eu não disse nada. Estava muito frio no apartamento de minha amiga e eu estava com uma ressaca tão forte que mal conseguia enxergar. — Por que você gosta tanto daí? — perguntou Mohamad. Fiquei em silêncio por um instante. Ele havia me trazido para Beirute e depois decidido que odiava a cidade. Eu gostava dela por muitos motivos, e um deles era ele. Não fazia nenhum sentido. — Você se lembra de quando começamos a sair juntos? — perguntei. — Você ria dos americanos o tempo todo. Do fato de as pessoas ficarem tão paranoicas com seus pequenos traumas emocionais: seus pais os maltratavam, eles não ganhavam brinquedos o suficiente na infância, eles traíam as esposas ou os maridos e se sentiam mal. Eu chamava isso de Número de Durão do Terceiro Mundo do Mohamad. Mas ele não fazia isso havia anos. — Bom, talvez eu me sinta assim agora sempre que volto a Nova York. Talvez não queira ficar sentada em Williamsburg com nossos amigos trocando comentários irônicos sobre o último reality show. Talvez não queira ser uma dessas pessoas que acha que seus pequenos problemas narcisistas são as únicas coisas ruins que acontecem no mundo. Ele ficou em silêncio. — Annia, a história vai ter que acabar uma hora ou outra — disse ele, finalmente. — Alguma hora você vai ter que largar a caneta e aceitar que a guerra pode ainda estar acontecendo, quase certamente estará acontecendo, mas a sua história chegou ao fim. Quatro dias mais tarde, depois de três meses de procura, mudei-me para um apartamento. Ficava a uma

quadra do Smith’s, no fim da Makdisi, a rua paralela à Hamra. Era maior do que eu precisava, mas estava cansada de procurar, além disso, não havia contrato, então podia ir embora quando quisesse. O apartamento ficava em frente à igreja maronita Santa Rita que Umm Paula frequentava. Tinha uma sacada grande onde eu podia me sentar e assistir aos dramas da vizinhança: pombos namorando, pessoas entrando e saindo da igreja, os shabab do bairro conversando em frente à padaria. A padaria funcionava como clube social para a máquina política do Futuro, e os shabab passavam muito tempo lavando a SUV do chefe e depois polindo-a com um espanador gigante. Às vezes eles brigavam uns com os outros ou com os shabab de uma quadra vizinha e à noite arrastavam cadeiras para fora da padaria e se sentavam no meio da calçada fumando narguilé. Algumas semanas depois, um idoso no T-Marbouta, em Hamra, me perguntou o que eu fazia em Beirute. Ele era enrugado, grisalho, com um cabelo manchado de fumaça no formato de um capacete — um dos velhos esquerdistas que chamavam a atenção bebendo e fumando um cigarro atrás do outro o dia inteiro nos cafés da Hamra. Ele ficou me olhando, franzindo a testa, enquanto eu tentava explicar por que estava em Beirute se meu marido libanês vivia em Nova York. Tinha a ver com o que eu estava escrevendo, a situação, nossas vidas. Eu tinha ido a Bagdá havia quatro anos para ficar com o marido que eu amava. Agora ele estava em Nova York — uma cidade com parques, calçadas e leis contra locadores que perguntam sua religião. E eu estava num apartamento repulsivo e pulguento que periodicamente ficava sem água corrente, cercada por tensões sectárias, numa missão vaga em que eu mesma mal acreditava. Eu tinha meus motivos, mas não era muito boa em explicá-los. Quando finalmente desisti, o velho levantou o dedo indicador como um oráculo alcoólatra. Com a dignidade meticulosa de quem bebeu o dia todo, disse: — Não seja complicada. Eu sabia que aquele velho já tinha feito parte de uma milícia. E até sabia de qual, mas isso não importava na verdade: as milícias que juravam aniquilar umas às outras um dia seriam aliadas no seguinte. Eram só alianças estratégicas, casamentos de conveniência, e a única constante é que se fazia o que fosse preciso para ganhar. As pessoas fabricavam mentiras intricadas, negando que algum dia tivessem lutado umas contra as outras, ou inventavam justificativas complexas por terem matado pessoas que foram suas aliadas havia apenas alguns meses ou semanas. Eles ainda faziam isso: o general Michel Aoun fez oposição ao governo sírio até 2005; em 2008, aliou-se ao Hezbollah, grupo apoiado pelos sírios. Em 2004, Walid Jumblatt, líder da comunidade drusa, elogiava os atentados suicidas que resultaram em mortes de civis israelenses; um ano depois, o governo Bush e os analistas conservadores o alçaram a herói da “revolução dos cedros”. As pessoas podiam acreditar nessas mentiras nas primeiras vezes que as ouviam e tentar seguir alguma lógica nas alianças instáveis, mas depois de um tempo as contorções mentais elaboradas dos idealistas dos partidos se tornavam risíveis. Não era possível viver em Beirute sem ser complicado. Mas as pessoas estavam sempre me dizendo para não ser. — Simplicidade é uma virtude — disse-me um restaurateur libanês uma vez, assistindo horrorizado enquanto eu empilhava um ingrediente sobre o outro, zaatar, queijo, cebolinhas verdes, pimentões vermelhos, sementes de gergelim, em meu manoushi. — Sim — concordei —, mas não é uma das minhas virtudes. Mohamad veio me ver de novo em abril. Ele resmungou copiosamente sobre o fato de eu estar arrastandoo de volta ao Líbano, mas conseguiu avançar muito em seu trabalho e comecei a acreditar que talvez ele estivesse começando a gostar de Beirute.

Uma noite, fomos a uma peça chamada Como Nancy desejava que tudo fosse uma piada de 1º de abril. (A maioria das peças sobre a guerra civil tinha título complicado.) Quatro ex-combatentes, três homens e uma mulher, entalados num pequeno sofá como passageiros de um servees lotado, narravam sua própria transformação durante a guerra civil: podiam ter começado ambivalentes, mas alguma coisa acontecia e eles ficavam com raiva — “Meu sangue ferveu”, repetiam de tempos em tempos — e entravam na briga e acabavam morrendo. O esquerdista secular acaba se juntando à Falange Cristã direitista e morre. O comunista acaba se juntando ao Hezbollah e morre. O nacionalista sunita torna-se religioso e junta-se à jihad no Afeganistão e na Chechênia. (Ele morre muito.) Gradualmente percebe-se que as mesmas quatro pessoas ficam morrendo e voltando à vida, apenas para se juntar mais uma vez à luta (normalmente para uma facção diferente), morrer em seguida e fazer tudo de novo. Todas as vezes que voltavam, eles diziam: “De minha experiência anterior com a guerra, aprendi…” E ainda assim continuavam a lutar. Pouco tempo depois, estávamos andando pela Wadi Abu Jamil quando percebemos homens descarregando centenas de vasos sanitários brancos brilhantes num dos poucos terrenos que ainda estavam vagos. No início da noite havia seiscentos deles, todos em filas cuidadosamente ordenadas. Um pôster perguntava: Quinze anos se escondendo em banheiros já não foram o suficiente? O exército de vasos era uma instalação da artista libanesa Nada Sehnaoui. Durante a guerra civil, as pessoas se refugiavam em corredores, porões e principalmente banheiros — qualquer espaço pequeno e fechado que oferecesse abrigo do fogo iminente. Quando era criança, Mohamad passou muitas noites sem dormir amontoado no corredor com seus pais, ouvindo a artilharia e os tiros das metralhadoras. Quando a artilharia ficava muito pesada, eles arrastavam colchões para o corredor e os apoiavam contra as paredes. As pessoas estavam cansadas. Havia meses que se falava cada vez mais, no entanto, nenhum dos lados ousava fazer mais do que conversar. Noventa por cento das pessoas estavam cansadas de lutar. Ninguém além dos políticos tinha apetite por sangue. Então, nas primeiras horas de quarta-feira, dia 7 de maio, o governo emitiu uma ordem que tornava ilegal a rede de comunicação subterrânea de fibra óptica do Hezbollah. Desde que essa rede começou a fazer parte de sua infraestrutura militar, o Hezbollah acusava o governo de tentar desmontá-la em nome dos Estados Unidos e de Israel. Nasrallah anunciou que faria um discurso na quinta-feira às quatro da tarde. Naquela manhã, ou pouco antes do meio-dia, Mohamad saiu para comprar foul. Abu Hadi, nosso fawal da Hamra, estava atolado. Dezenas de clientes cercavam a frente da pequena loja, empurrando-se e gritando seus pedidos. Mohamad reconheceu o cliente à sua frente; era um dos atores da peça, o que havia se juntado à jihad na Chechênia. Ele pediu homus com carne, homus bi tahinah, fattet homus e msabbaha, e quando terminou seu pedido não havia mais nada na loja além do foul. Levou uma hora para que Mohamad conseguisse apenas duas tigelas de foul. Nesse momento percebeu que provavelmente era momento de estocar. Éramos macacos velhos nisso agora: nos separamos e coordenamos tudo por celular. Fui ao Healthy Basket, que estava repleto da generosidade de maio: morangos, tomates, alface, coentro, abobrinha. Mohamad me ligou do Smith’s: nada de carne, nada de água. Nada de laban e labneh. O leite estava quase acabando. O pão tinha acabado fazia tempo. No dia seguinte, o jornal Al-Akhbar publicou uma fotografia que ocupava a primeira página inteira de pessoas acotovelando-se freneticamente a caminho do furn local. A foto fora tirada do ponto de vista do padeiro: mãos vinham a ele de todas as direções, segurando pequenos maços amassados de dinheiro, o suficiente para um pacote de pão. O rosto de uma mulher se contorcia em pânico enquanto as pessoas atrás dela a esmagavam contra a janela. No alto da janela, acima das cabeças das pessoas, quase imperceptível, uma mão descia, balançando um maço de notas: um comprador ágil que decidiu ganhar da multidão

escalando o toldo da padaria. Às quatro da tarde, Mohamad foi assistir ao discurso com um amigo que morava do outro lado da Hamra. Eu estava ao telefone com uma amiga em Nova York, algumas horas mais tarde, quando ouvi o crepitar do tiroteio. Pensei que fossem os fogos normais que soltavam depois de discursos políticos. Nada de mais. — Que inferno! Essas pessoas não se cansam dos fogos? — disse, para que minha amiga de Nova York não ficasse preocupada. Fui até a cozinha. A sacada dos fundos dava para Sadat, a rua que marcava o limite da Hamra. Essa seria a direção da qual Mohamad viria. Olhei para ver se conseguia localizar os disparos — não que seja possível “ver” as balas, mas informação visual era sempre reconfortante. Nesse momento, mais ou menos às sete horas, ouvi um barulho alto, o soco de ar de repente preencheu o vácuo. Era um barulho do qual eu me lembrava de Bagdá — de lança-granada-foguete. Homens que desciam a rua Sadat começaram a correr. Desliguei o telefone. Onde estava Mohamad? Provavelmente se passaram uns dez minutos até que Mohamad chegasse, mas pareceram horas. A rua Hamra estava abandonada, segundo ele. Enquanto corria para casa, viu homens armados formando barricadas e disparando lança-granadas-foguete. Não sabíamos disso naquele momento, mas ele chegou em casa bem na hora. Fomos para a sacada para ver o que estava acontecendo. Na padaria, os shabab de nosso bairro estavam agitados. Um deles desapareceu para os andares superiores da padaria e reapareceu usando um capuz preto e segurando um rifle. Andava de um lado para o outro fingindo atirar. Segurava o rifle no quadril, apontando para cima, como um soldado-mirim da Libéria. Ninguém havia ensinado a ele como segurar direito um rifle. Dois meninos desceram a rua, passaram pela igreja e chegaram à esquina. Um deles arrastou uma lixeira até a rua e depois pescou duas portas francesas estreitas de uma pilha de entulho de construção. Colocou cada porta francesa em delicado ângulo de 45 graus contra as laterais da lixeira. Então foi ao hotel Mozart do outro lado da rua e pegou vários vasos de plástico com plantas parecidas com palmeiras. Mohamad e eu assistíamos a tudo espantados. Em 2006, o Hezbollah lutou contra os militares israelenses, um dos exércitos mais avançados do mundo em termos de tecnologia. O Partido de Deus possuía armas feitas no Irã, material capaz de desarmar um tanque Merkava. Os caras naquele momento estavam fazendo barricadas com portas francesas e vasos de plantas. Mais ou menos às oito horas, as luzes da rua se apagaram de uma vez. As únicas pessoas nas ruas eram adolescentes de ciclomotores. Ouvimos sons de metralhadoras e de foguetes vindos da Hamra, chegando mais perto. Fiz o jantar com o macarrão e os vegetais que tínhamos acabado de comprar, ervilhas, alho, tomatecereja, manjericão e salsa. Fiquei muito orgulhosa de mim mesma por pensar no futuro: podíamos levar um tiro, mas pelo menos comeríamos bem. Fomos dormir mais ou menos uma da manhã ao som de tiros e lança-granadas-foguete e granadas de mão. Não havia mais o que fazer. Durante toda a noite, dois gatos fizeram uma choradeira no terreno baldio embaixo da janela do nosso quarto. Houve uma tempestade terrível naquela noite e o combate foi suspenso por mais ou menos três horas, mas os gatos continuaram chorando; quando acordei na manhã seguinte, às sete horas, ainda estavam lá. Dava para ouvir granadas também. Voltei a dormir. Quando acordei novamente, às oito, o ar tinha um cheiro fresco e estranho, limpo pela fumaça, como no 4 de Julho. Fui até a sacada. A rua estava vazia, qualquer vestígio de lixeiras ou portas francesas havia sido varrido para longe. Havia tiroteio pesado e muito próximo, e reconheci o cheiro de pólvora. Eu ouvia

gritos: “Allahu Akbar!”, Deus é grande! Foi como se eu tivesse acordado em outra cidade. Eu ainda estava meio sonolenta, mas algum sentido primitivo de autopreservação me disse para sair da sacada. Voltei para o quarto e chacoalhei Mohamad. — Querido, acho melhor acordar. Havia uma janela horizontal comprida e estreita no alto da parede sobre nossa cama que dava para o hotel Mozart. Ficamos em pé na cama e olhamos pela janela. Do outro lado da rua havia um pequeno jardim arborizado onde as crianças geralmente jogavam bola. Três comandantes do Hezbollah de uniforme cinza-esverdeado estavam agachados no jardim naquele momento, apoiando Kalashnikovs nos ombros e firmando os canos das armas nos joelhos. Mais combatentes avançavam lentamente pela quadra em meio aos tiros. Eles andavam alguns passos, paravam e esperavam por um gesto de seus comandantes no jardim, que davam cobertura. Seguravam seus rifles nos ombros e os balançavam em arcos cuidadosamente coreografados, em direções opostas, enquanto desciam a rua em um balé lento e sinistro. Haviam sido treinados com esmero. — Não saiam de suas casas! — gritavam conforme avançavam. — Fiquem do lado de dentro! Não vão para as sacadas! — De tempos em tempos eles também gritavam: — Allahu Akbar! Um adolescente com um tufo de cabelos encaracolados na altura dos ombros correu pela calçada em direção ao jardim. Ele havia tirado a camiseta e os sapatos para mostrar que não estava armado. Ficou com as mãos no ar e correu em meio ao tiroteio. Os comandantes no jardim estenderam as mãos e acenaram, gritando que ele se apressasse. Ele se abaixou no matagal atrás deles. Um dos comandantes do jardim girou seu AK-47 na direção de nosso prédio. Meio estúpida, percebi que ele apontava diretamente para nós. A sensação começou na nuca — uma grande boca me levantando com dentes poderosos pela nuca e me chacoalhando como um gatinho. Meu pescoço disse a meu cérebro para prestar atenção ao que meus olhos observavam. Aos poucos, meu cérebro pegou as fotos isoladas que meus olhos enviavam e arranjou-as em sequência lógica: O menino se rendendo; os sinais de mãos; havia atiradores nos prédios. O comandante viu a vibração da cortina; achou que fôssemos atiradores: por isso apontava o rifle em nossa direção. — Saia de perto da janela! — gritou Mohamad. Mergulhamos na cama, depois nos arrastamos para fora dela, para longe das janelas, correndo meio agachados de volta para o corredor. O telefone tocou. Era nosso amigo Ben Gilbert, um radialista que morava na encosta da colina, do outro lado do jardim onde os homens armados estavam. A janela dos fundos do apartamento dele havia sido atingida pelas balas. Ele achava que havia atiradores em seu telhado. No início daquela manhã, olhou pela janela e viu um corpo estendido na calçada. Fui até a sacada e olhei para a rua. Não via nenhum atirador, mas atiradores não querem ser vistos. A caixa-d’água no topo do Mozart jorrava água. Devia ter sido atingido. — Venha para cá — disse eu. — Acho que nossa quadra é mais segura. — “Mais segura” era uma expressão relativa, havia atiradores no telhado de nossa vizinha Balsam também. Mas nossa quadra parecia mais segura. Comecei a encher garrafas com água da torneira caso nossa caixa-d’água fosse atingida também. Olhamos para fora um pouco mais tarde. Os homens armados estavam mais calmos, examinando a quadra. Então, mais ou menos às nove da manhã, houve outra rajada de tiros. Fomos para o corredor e

montamos nossos computadores lá. O apartamento tinha uma pia extra no corredor que levava aos quartos. Isso era comum em prédios antigos no lado oeste de Beirute, e se explicava que, assim, os visitantes podiam lavar as mãos sem entrar nos quartos da família. Mas também era conveniente em situações como essa, quando era perigoso aventurar-se até a cozinha ou o banheiro; pensei, de maneira ilógica, se esse era o real motivo para colocar uma pia no corredor. Ouvimos uma rajada intensa de tiros vindo da rua Sadat, a meia quadra de distância, e também da direção oposta, onde ficava o apartamento de Ben. Nossa amiga Deborah Amos, repórter da National Public Radio, ligou um pouco mais tarde. Ela estava em um pequeno hotel na rua Sadat chamado Viccini Suites. Os confrontos eram pesados na Sadat, que levava ao palácio de Hariri, e todos no hotel haviam passado a noite no porão. Olhei pela janela e vi dois homens armados parados na frente da porta do Viccini. — Vamos buscar você — disse a ela. — É mais seguro aqui no nosso apartamento. Era sexta-feira, o dia em que muçulmanos praticantes vão à mesquita para as orações do meio-dia. Ao meio-dia o almuadem começou a entoar o duaa, a invocação que marcava o início das orações, e o bairro soltou um suspiro coletivo. Homens desciam a rua até a mesquita. Mulheres iam à padaria. Notei que voltavam de mãos vazias e concluí que o pão havia acabado. Nossa rua estava calma, mas ainda havia tiroteios por toda a Sadat, e os mesmos dois homens armados ainda estavam em frente ao Viccini. Liguei para Deb de novo. Ela disse que os homens armados haviam descido até o porão e confiscado os celulares, checado as identidades de todos e então devolvido seus telefones e subido novamente. — Estou indo buscar você — disse eu. A rua parecia calma quando andei até a Sadat. Passei pelo irmão de meu locador a caminho da mesquita. — Olá, Hajj Salim — cumprimentei com um aceno de cabeça. Ele apenas me olhou pesadamente e continuou andando. Encontrei Deb e voltamos ao apartamento sem incidentes. Os homens armados haviam voltado uma segunda vez, ela disse, para se desculparem por ter pegado telefones. — Alguém treinou esses caras muito bem — comentou ela, balançando a cabeça. Ben veio até nosso apartamento e eu me ocupei em alimentar todos. Fiz uma enorme salada de atum com orrechiette, raspas de erva-doce, queijo feta, tomate-uva fatiado e azeitonas pretas sem caroço. Preparei um molho de alcaparras, suco de limão, azeite de oliva e mostarda. Piquei manjericão e salsa. Muita pimenta-do-reino. Estava sendo complicada de novo, mas não havia mais nada a fazer, e isso era algo útil. A comida sempre havia sido um conforto, um jeito de consolidar a vida normal. Mas quando uma vida normal era impossível, e quando a culpa disso era só minha, de ninguém mais — poderia estar vivendo pacificamente em Nova York, mas insisti em estar em Beirute —, a comida permitia que eu fingisse. Percebi que não fizera nada para Mohamad, que se recusava a comer atum. Comecei a ferver o restante do orrechiette para ele. Mais ou menos às 14h45, quando estava prestes a escoar a água, um tiroteio feroz irrompeu tão alto e tão perto que todos nós corremos e nos amontoamos no corredor ao lado da pia. Deb se agachou no chão com o celular, descrevendo a situação para alguém na National Public Radio. Mohamad estava agachado contra a parede, com o computador apoiado sobre os joelhos, escrevendo uma matéria. Eu estava encostada na pia. Ben escorregou para o chão. Ele fez sinal para que eu me agachasse, mas fiz que não com a cabeça. O tiroteio continuou por muito tempo e me peguei pensando em de onde vinham todas aquelas balas — centenas a todo minuto, como gotas de chuva em um telhado. De repente me lembrei do macarrão de Mohamad. Estava fervendo havia pelo menos quinze minutos!

Ficaria empapado. Não se podia desperdiçar comida numa situação como essa. Fui até a cozinha meio agachada, mantendo minha cabeça abaixo do nível das janelas. A cozinha era um lugar perigoso — a janela grande e a porta de vidro davam para a rua Sadat, de onde a maioria dos disparos estava vindo. Mas a certeza do macarrão empapado me parecia, naquele momento, muito mais terrível do que a possibilidade de ser atingida por uma bala perdida. — O que você está fazendo? — gritou Mohamad do corredor. — Tarde demais! — gritei. Desliguei o fogão, joguei o macarrão no escorredor que esperava na pia e voltei correndo para o corredor. Deb, Ben e Mohamad olharam para mim, chocados; eu não entendia por quê. Eles não sabiam que desde que estivesse cozinhando eu estaria segura? Depois de mais cinco minutos o tiroteio parou, e não me ocorreu até bem mais tarde que eu estivesse agindo de forma irracional. Na Hamra, os confrontos haviam acabado na tarde de sexta-feira. Mais tarde naquele dia, andamos pelo bairro. As ruas estavam cheias de vidro quebrado e cápsulas vazias. Na TV Future, as milícias haviam queimado os escritórios e destruído os arquivos, jogando as fitas numa fogueira na calçada e colocado pôsteres do presidente sírio Bashar al-Assad nas paredes dos escritórios. Em Sidani, a algumas quadras de nossa casa, todas as lojas de comida estavam abertas, até a franquia de sanduíches Subway. Homens armados estavam por toda a parte, olhando para nós com rostos frios e hostis, sem dizer palavra. Na rua Gandhi, algumas prostitutas andavam na calçada, vestindo pijamas, conversando com calma em árabe com sotaque marroquino e ignorando completamente os homens armados. Na frente do restaurante Abu Hassan alguém havia hasteado uma bandeira do Partido Social Nacionalista Sírio: uma suástica vermelha arredondada, como que girando e semelhante a uma lâmina circular, dentro de um círculo branco sobre um fundo preto. Olhando para o fim da Hamra, à luz dourada do sol do fim da tarde, víamos bandeiras vermelhas e pretas por toda a rua. As bandeiras ficaram em pé em meio à crise, que duraria por mais ou menos duas semanas e mataria pelo menos 71 pessoas. Na semana seguinte, as ruas seriam dominadas por homens armados, prostitutas e mulheres do Sri Lanka, da Etiópia e das Filipinas que as donas de casa de Beirute empregavam e mandavam fazer compras quando tinham medo de sair. Os civis ocasionais corriam de uma casa a outra e olhavam para estranhos com olhos desconfiados. No dia seguinte aos confrontos, as únicas lojas abertas eram aquelas que vendiam coisas essenciais como comida ou notícias. Grupos de cinco ou seis homens se reuniam em torno de vendedores de jornais. No Malik al-Batata (Rei das Batatas), famoso pelo shawarma e pelas batatas fritas, um pequeno grupo de homens havia se reunido para ler o anúncio fúnebre colado na parede. Era de um dos shabab de nosso bairro, os meninos adolescentes que tentaram lutar contra o Hezbollah. Ele havia sido baleado. De repente lembrei-me de ter cumprimentando Hajj Salim no dia anterior na frente da mesquita e do olhar terrível que ele lançou em minha direção. Haveria problemas no bairro, com certeza. Quando era uma hora da tarde, bateram à nossa porta. Eram nossos amigos Sean e Nizar, que moravam na porção leste de Beirute. Eles não tinham conseguido ir de carro ou pegar um táxi até a Hamra; os homens armados haviam bloqueado o bairro com barreiras e barricadas. Então vieram andando desde seu apartamento no fim da Gemmayzeh, mais ou menos uma hora a pé, para ver como estávamos. — Isso não é muito idiota? — disse Nizar. Ele marchou para dentro e começou a andar de um lado para o outro. — Eles não são muito idiotas? Isso tudo foi uma armadilha para fazer com que o Hezbollah usasse suas armas contra os libaneses. E o que eles fazem? Caem na armadilha. Eles não são muito, muito burros? … Kis ikhtak, hal balad!, Foda-se este país! Não quero mais saber daqui. Vou embora. Cansei disso.

Do lado de fora de nosso prédio, uma multidão de pessoas de luto se reuniu na padaria. Algumas gritavam, roucas. Enquanto olhávamos da sacada, dois homens armados do Partido Social Nacionalista Sírio desceram a rua Adonis vindo do Smith’s. Eles disseram aos enlutados para voltarem para suas casas. As pessoas começaram a gritar com os homens armados: — Como vocês podem fazer isso? Os homens atiraram para o alto. Os enlutados se dispersaram e a rua ficou limpa. Sean e Nizar decidiram voltar para casa antes que mais alguma coisa acontecesse. — Sabe, talvez vocês devessem vir ficar com a gente — disse Sean quando estávamos na porta nos despedindo. Fizemos que não com a cabeça: não iríamos a lugar nenhum. No dia seguinte foi o funeral de Ziad Ghalayini, o menino que havia sido morto, e de outro jovem que morrera com ele. Centenas de pessoas estavam nas calçadas e nas ruas. As sacadas estavam cheias de mulheres gritando e chorando. A mesquita murmurava orações. Um grupo de mais ou menos vinte homens subiu a rua correndo, carregando os caixões e cantando “Ziad, Ziad, habib allah!”, Ziad, Ziad, o amado de Deus!, e gritando, roucos. Sempre que um deles perdia o controle, outro tomava seu lugar. Os caixões estavam cobertos com panos de cetim verdes com escritos em amarelo, e um deles tinha um tarbush em cima, o pequeno chapéu vermelho que os otomanos exigiam que seus súditos usassem, o símbolo dos homens. Eles carregaram os caixões ao redor da quadra, de prédio em prédio, balançando-os gentilmente de um lado para o outro. As mulheres gritavam e ululavam, esbarrando umas nas outras, brandindo os braços e batendo no peito. Levaram o caixão de Ziad até o apartamento de sua família e deixaram o outro no carro fúnebre. O choro e os gritos saíam mais alto de dentro do apartamento. Todos na rua ficaram olhando e ouvindo os gritos de “Ziad! Ziad!”. Uma voz rouca masculina começou a gritar: — Todos eles deviam ir embora! Todos eles deviam ir embora! Abdelghanim, um dos quatro simpáticos irmãos que tinham uma pequena mercearia, veio nos cumprimentar. — Vocês o conheciam? — perguntou ele. Eu disse que o conhecia de vista. Ele balançou a cabeça. — Pobre garoto, era um menino muito bom, estava sempre por aí, na quadra, e ajudava a todos. — Ele esperava confusão depois do velório. Os homens trouxeram o corpo para baixo. As mulheres se despediam das sacadas, chorando, batendo as duas mãos na testa e depois erguendo-as. Quando o caixão chegou à porta da frente, as mulheres ulularam. Jogaram uma chuva de pétalas de rosas e arroz, como se faz para um mártir. Uma velha colocou lírios brancos no carro fúnebre. Homens saíram, chorando, apoiando-se nos ombros uns dos outros. Enquanto carregavam os caixões de volta para a mesquita para a oração final, uma vizinha xiita apareceu para prestar condolências à família. Mas as mulheres começaram a empurrá-la. — Saia daqui! — gritou uma delas, enquanto a escorraçavam. — Volte para Nasrallah! Mohamad e eu nos entreolhamos e decidimos que era hora de voltar para dentro. Uma idosa subiu no elevador conosco. Ela estava muito chateada e não conseguia parar de falar. Contou que sua irmã morava no prédio e tinha uma filha nos Estados Unidos estudando na universidade, e era importante dizer aos americanos que nem todos os libaneses eram como o Hezbollah. Ela seguiu-nos quando saímos do elevador, apesar de não morar em nosso andar, e ficou no corredor falando. Parecia maleducado deixá-la — ela estava quase em choque —, então ficamos no corredor ouvindo durante muito tempo.

— Estou muito triste com a morte de Ziad — disse. — Sempre que eu vinha visitar minha irmã, ele vinha até mim, pedia a chave e estacionava meu carro. Ele era um garoto muito bom. Ela olhou para Mohamad. — Qual é seu sobrenome? — perguntou ela. — Bazzi. — Ah! — exclamou, erguendo a sobrancelha. — Bazzi. Você é xiita. — Sim, sou. — Sou sunita, mas meu marido é xiita. Ele é médico na Universidade Americana de Beirute. Ele é contra tudo o que está acontecendo. Ela olhou para ele com expectativa. Ela ia fazê-lo dizer, fazê-lo provar sua lealdade à raça humana. — E você — perguntou —, o que acha de tudo o que está acontecendo? — Sim, rejeito também — disse Mohamad. — Todos rejeitamos essas coisas. Abdelghanim estava certo: haveria problemas naquela tarde. Em Tareeq al-Jadideh, durante outro cortejo fúnebre, sunitas atacaram comércios xiitas e um comerciante xiita abriu fogo contra uma multidão e matou duas pessoas. Um lado culpava o outro por sequestros, evacuações forçadas, genocídio sectário. — É muito perigoso — disse minha amiga Adessa, quando ligou para perguntar se estávamos bem. — Porque quantas vezes você já ouviu pessoas em guerras civis dizerem “Bom, eles iam acabar com a gente”? Os rumores pipocavam pela internet e por telefone: sequestros em Zarif, sequestros na Corniche. No Sporting, uma senhora falou para a cunhada da Leena que o Hezbollah estava sequestrando sunitas de Zarif. O vizinho de Umm Hassane disse a ela que avisasse a Hanan que não voltasse para casa, porque os sunitas estavam evacuando os xiitas de Tareeq al-Jadideh, onde Hanan morava. De repente, lembrei que Munir morava em Tareeq al-Jadideh. Eu tinha esquecido. — Annia, você devia ir embora — disse Munir quando liguei. — Esse é meu país, e essa é a merda do meu povo. Você não tem que tolerar isso. Eu não tenho que tolerar isso! Acabei de falar para Joseph: vamos sair daqui e vamos para a Índia. No final de 2006, Munir e vários parceiros de negócios, um dos quais era budista, abriram um bar e restaurante gay chamado Bardo. Bardo é “o lugar para onde sua alma vai depois da morte enquanto espera para renascer” em sânscrito — “um lugar encantado”, ele me disse certa vez. Combinava com a fantasia da Índia como o Oriente, uma terra feliz e mística de iluminação da alma embebida em açafrão. — Índia? Munir. Habiby. Eles têm confrontos sectários lá que fazem o Líbano parecer brincadeira de criança. Hindus e muçulmanos, milhares de pessoas matando umas às outras. Colocando fogo em trens inteiros. Matando todos dentro. Ele ficou em silêncio. Tarde demais, eu lembrei que Munir não tinha uma Nova York para a qual voltar. Ele precisava de sua Índia imaginária como eu precisava da Noite do Tango — como uma imagem de como o mundo poderia ser, o tipo de palácio dos sonhos de que todos precisamos, principalmente em Beirute, e era parte do que o ajudava a não odiar. — Então eles têm esse tipo de coisa na Índia também? — disse ele entristecido. — O mundo inteiro está doente. As retaliações começaram. Os confrontos se espalharam fora de Beirute, para batalhas no Chouf entre o Hezbollah e seu antigo aliado, o Partido Socialista Progressivo. Na cidade de Halba, no norte do país, combatentes do Futuro invadiram os escritórios do Partido Social Nacionalista Sírio e mataram nove homens. Eles filmaram as mortes com celulares e postaram os vídeos sinistros na internet. O Hezbollah

usou as imagens como propaganda, ressaltando que os sunitas agora matavam sunitas e avisando que a filmagem não devia ser vista por “crianças ou por fracos de coração”. Umm Hassane assistiu ao vídeo sangrento, apesar do aviso, e ficou triste. — O que é essa matança? Eles mutilaram os corpos e pisaram neles. Wallah, os israelenses nunca fizeram algo assim. O que são essas filmagens? Uma coisa que faz o coração chorar. O Hezbollah mantinha o aeroporto fechado. Sunitas armados montaram barreiras na estrada que levava à fronteira síria e colocaram pôsteres de Saddam Hussein. Eles checavam documentos de qualquer um que tentasse entrar ou sair do país e exigiam saber se eram xiitas. Vi as fotografias de homens mascarados, parados na fronteira armados com lança-granadas-foguete, sob pôsteres de Saddam, e entendi o desejo de Mohamad de voltar para Nova York. — Sinto muito por ter feito você voltar para cá — disse eu. — Bom, não posso ir embora agora — disse ele e deu de ombros. Naquela tarde, a família de Ziad colocou um pôster enorme de vinil do filho morto. Tinha mais ou menos três metros e meio de altura e ficava do lado de fora do prédio em que moravam. Dentro do apartamento, que ficava de frente para o nosso, as janelas estavam abertas revelando uma sala cheia de cadeiras para as condolências. As cadeiras eram ocupadas por meninos e meninas entre três e cinco anos. Uma mulher liderava-os em um canto: Li ilaha illa Allah Al-shaheed habib Allah! Não há nenhum Deus além de Deus O mártir é o amado de Deus!

As crianças levantavam os punhos minúsculos no ar, assim como seus irmãos e irmãs mais velhos vinham fazendo havia dias. Gritavam, felizes, como se aquilo fosse um jogo, uma rima infantil, e quem gritasse mais alto ganharia um doce. Quarta-feira, dia 14 de maio, líderes árabes chegaram ao Líbano para negociar. O Hezbollah liberou um lado do aeroporto para que eles pudessem se encontrar com todos os líderes políticos do Líbano. O aeroporto ainda estava fechado, mas mesmo assim parecia que um peso enorme havia sido tirado dos ombros da cidade. Por toda a Hamra, as pessoas diziam umas às outras al-hamdillah al-salameh, “graças a Deus por sua segurança”. Até o khadarji religioso dava um sorriso largo quando me via. Fui ao Abu Haidi comprar fatteh. Ele serviu o grão-de-bico fervente em minha tigela e reclamou alegremente de estar sozinho — seu assistente, que morava no dahiyeh, não conseguia vir à Hamra havia dias. — Você tem clientes? — perguntou um idoso, um dos frequentadores assíduos, debruçado sobre uma tigela enorme de fatteh. — Sempre tenho trabalho — disse Abu Hadi. — Graças a Deus. Na loja de queijos na rua Sidani, o vendedor sorria. — Tenho que perguntar uma coisa a você — disse eu, apesar de achar que sabia a resposta. — Por que você ficou com a loja aberta naquela sexta-feira, durante todo o tiroteio? Ele meio sorriu, meio deu de ombros. Era um ghanouj. — Porque as pessoas queriam queijo. Por quê? Por que, no meio de um tiroteio, as pessoas decidem que precisam de queijo? Ele sorriu com tudo dessa vez. — Porque acham que nunca mais poderão sentir o gosto de queijo novamente.

Naquela noite, Mohamad e eu caminhamos com uma amiga até sua casa. As ruas ainda estavam meio violentas e ela não se sentia segura de sair à noite sozinha. Estávamos voltando por Ain al-Mreiseh, à beiramar, quando ouvimos tiros. O mapa sectário que a população tem na mente é tal que sabíamos o resultado do encontro assim que o ouvimos: tiros para o alto em uma área controlada pelo Amal significavam que o governo devia ter rescindido as ordens. Os confrontos estavam acabados por ora. Mas a guerra jamais acabaria; como disse Mohamad, as próprias pessoas tinham que acabar com a guerra. Voltar para Nova York era o fim da guerra dele. Eu teria que achar o meu. Fomos para casa ao som dos tiros, evitando as áreas do Amal. Andávamos colados aos prédios, embaixo de marquises, assistindo a arcos vermelhos de tiros cruzarem o céu noturno. Quando nos aproximamos de nossa quadra, vimos um novo pôster de vinil esticado até o outro lado da rua. Escritos vermelho-sangue em árabe diziam: Mártir da traição. Embaixo havia um foto de Ziad em frente a Pigeon Rocks, as famosas falésias no mar da Corniche. Ele estava sorrindo e fazendo uma pose máscula que só fazia com que parecesse mais ainda uma criança: quadril arqueado, mãos nos bolsos do jeans, inclinando a cabeça para o lado. Estava com uma camiseta branca com letras grandes pretas que diziam, em inglês: Ainda virgem. — É tão triste… — disse Mohamad. Poderia ser você, pensei, mas não disse. Se tivesse ficado em Beirute quando tinha dez anos, em vez de ir para Nova York, poderia ter sido você, em frente a Pigeon Rocks, tentando parecer um guerreiro; poderia ter sido eu, se eu tivesse crescido aqui, ou qualquer um de nós. — É mesmo — concordei. Peguei a mão dele, e voltamos para casa.

Epílogo DOIS ANOS DEPOIS, QUASE NA MESMA DATA, conversava ao telefone com Umm Hassane. Ela estava em Beirute, eu, em Nova York. — Umm Hassane — gritei porque a ligação estava ruim, meu árabe ainda era sofrível e ela ainda era surda. — Estou fazendo mlukhieh. Como se faz mlukhieh com folhas secas? — Por que você quer fazer mlukhieh? — perguntou retoricamente. Milhares de quilômetros nos separavam entre chiados e zumbidos, mas juro que quase consegui ouvir seus olhos revirarem. — Você não consegue! É muito difícil. No início daquela semana, eu havia ido à Sahadi’s, a mercearia árabe na Atlantic Avenue, e tirado um número da boca de uma pequena máquina. A loja estava cheia de nova-iorquinos que esperavam para comprar azeitonas, queijos feta, homus e baba ganouj. Quando minha vez finalmente chegou, disse ao vendedor que queria mlukhieh seco. Ele lançou um olhar afiado de lado, cético, do tipo “quem é você?”, e eu me preparei para a pergunta inevitável. — Você faz mlukhieh? Eu ri. Não era a pergunta pela qual estava inconscientemente esperando. Mas gostei mais dessa. — Por que não? — respondi, e coloquei em prática meu melhor comportamento Umm Hassane de compras: um olhar de megera, uma levantada do queixo, um movimento das mãos, um dar de ombros de desprezo, como se tal pergunta fosse desnecessária entre nós. — Você é árabe? — Não — respondi e sorri. Alguns anos antes, eu teria me apressado em explicar que não era árabe, mas meu marido era libanês, e o mundo inteiro gosta de mlukhieh, não? Eu poderia destacar que mlukhieh era africano, falar sobre as semelhanças entre o mlukhieh egípcio e a couve-galega ao estilo do sul, ambos fervidos com carne e servidos com cebolas em conserva rápida de vinagre doce. Eu poderia ter oferecido meu pedigree grego ou confidenciado que um amigo iraquiano me apresentou ao mlukhieh, bem aqui na Atlantic Avenue, no verão de 2001. Mas por mais que essas coisas importem, sim, fazem de nós quem somos, sim, também existem tempos e lugares em que podemos deixar de lado nossas histórias particulares. Aprendi a valorizar isso. — Mas você sabe fazer mlukhieh? — Sim. Ele sorriu, triunfante, como se eu tivesse acabado de provar algo em que ele tivesse apostado alto. — Por que não? — disse ele, e encheu a sacola de mlukhieh. Meu retorno à terra natal não começou bem. Era o final de 2009, o inverno se aproximava e todo mundo que eu conhecia estava sendo demitido. Mohamad e milhões de outras pessoas estavam com gripe suína. Nosso governo continuava gastando centenas de bilhões de dólares e incontáveis vidas em duas guerras, sendo que ambas vinham se arrastando havia anos, mas as pessoas só pareciam falar de estrelas do cinema e dos esportes. Se falavam da guerra no Iraque, era com frases de efeito cuidadosamente organizadas que não tinham relação nenhuma com Roaa, Abu Rifaat, dra. Salama, Abdullah ou qualquer iraquiano que eu conhecia. Os nova-iorquinos estavam tão ocupados acariciando seus smartphones que pareciam ter esquecido habilidades básicas como “andar”. Amigos pediam que eu marcasse encontros com semanas de antecedência, alegando que estavam “lotados”, como se fossem quartos de hotel. As pessoas pareciam ter

medo de expressar opiniões fortes em particular, mas a internet estava cheia delas. Os percevejos tinham voltado também. Liguei para minha amiga Cara. Ela e Mohamad haviam conseguido me atrair de volta e eu estava deprimida, e a culpa era dela. Ela riu. — Já contei para você o que aconteceu quando voltei para cá com Amiram? Tínhamos voltado de Israel havia mais ou menos uma semana. Então um dia ele veio a mim e perguntou: “Não entendo. Por que os vizinhos não vêm aqui tomar café da manhã com a gente?” Eles fazem isso no Líbano também. É chamado de subhieh, de subuh, manhã. Um Intraduzível: pode significar qualquer coisa desde um café da manhã de gala beneficente a um grupo de senhoras almoçando. Mas na maioria das vezes se refere a um encontro informal de vizinhos ou amigos, idealmente todas as manhãs, para tomar café e conversar. Algo em dar nome a essas reuniões elevava comer, beber e conversar a status de instituição, um primo da milonga, da terlúlia, ou mesmo do clube do livro proibido de xeque Fatih e sua mãe. Não tanto um tempo e um lugar como uma comunhão, mas um momento em que as pessoas se reúnem para colocar o mundo de volta em seu eixo. Não temos isso aqui, pensei com amargura. Temos Starbucks. — Escuta, Annia — disse ela. — Pessoas como nós jamais se sentirão em casa em lugar nenhum. Nunca. Jamais teremos aquele sentimento reconfortante do pertencimento. A guerra muda seu metabolismo mental, fazendo com que parte de você esteja perpetuamente em guerra e desconfortável com a paz. Isso é uma reação tanto física quanto mental, da mesma maneira que viver durante a Grande Depressão tornou meus avós constitucionalmente incapazes de jogar qualquer coisa fora. Da mesma maneira que eu só me sinto em casa cercada de pessoas em movimento. Da mesma maneira que os libaneses estão sempre buzinando, atirando para o ar ou armando bombas, porque eles não se sentem bem sem barulho. Você jamais verá o ovo, depois de saber que ele se parte com facilidade, sem imaginá-lo quebrado. Uma parte de nós gosta secretamente do desastre: é uma prova de que estamos certos; as coisas são exatamente tão ruins quanto sempre imaginamos que fossem. Essa parte feia de nós (e tenho isso em mim tanto quanto qualquer outra pessoa) ressente-se das pessoas à nossa volta, das que parecem ver apenas a casca lisa e perfeita. O que se faz com essa amargura determina o tipo de pessoa que se é. Pode-se carregá-la consigo, mesmo num lugar pacífico. Ou pode-se colocá-la de lado, mesmo em uma cidade em guerra. Munir, no meio de uma discussão atipicamente pontual sobre religião e política, certa vez esticou o braço e pegou um copo de vinho. — Olhe para esta taça — disse, segurando-a para que pudéssemos admirar seu pescoço esbelto, seu corpo frágil. — Precisa-se de muito para fazê-la e precisa-se de muito pouco para quebrá-la. É possível quebrá-la num instante. Não parecia muito na época — um pouco de sabedoria de bebedeira. Mas agora nunca bebo vinho sem olhar para a delicada curva de vidro e pensar, sim, é possível quebrá-la num instante. E mesmo assim, ali está ela, inteira e cheia de vinho. Meses mais tarde, na primavera, falava ao telefone com Roaa. Eu ainda estava em Nova York. Ela, no Colorado. Tinha um marido agora e uma filha, e os três haviam viajado de Bagdá até a Suleimania, no Curdistão iraquiano, depois para a Turquia e finalmente para um apartamento semimobiliado no subúrbio dos Estados Unidos. Na última vez em que eu havia visto Roaa, em 2004, a violência sectária no Iraque parecia generalizada. Mas estava só começando. Em 2006, o país estava nas garras de uma guerra civil violenta.

Durante esse caos, ela enfim se apaixonou. Sendo como é, Roaa não fez isso do jeito fácil: ele era árabe, ela, curda. Muitas famílias se recusavam a aceitar tal união, mas a deles aceitou, e os dois tiveram uma filhinha linda chamada Rania. Em 2008, o marido de Roaa começou a receber ameaças de morte: referências anônimas a um comportamento “não islâmico”, como beber cerveja (o que dizer então dos sumérios antigos…). As ameaças vinham afiadas com alusões detalhadas a quem ele era, quem eram seus amigos e onde ele morava. Então Roaa e o marido juntaram-se à diáspora — quase três milhões de refugiados dentro das fronteiras do Iraque e mais 1,5 milhão em cidades dos países vizinhos; uma migração em massa que mudará para sempre o Oriente Médio, e o resto de nosso mundo interconectado. Ela e o marido se candidataram ao programa de reassentamento de refugiados dos Estados Unidos e, depois de uma série de entrevistas, foram aceitos. Agora aqui estava ela, nos subúrbios de Denver. Ela sempre quis ver o mundo. Conversamos sobre celulares e sobre o Facebook, que havia nos ajudado a manter contato; sobre empregos e papelada e se eles deviam mudar para Nova York ou tentar a chance no Colorado, onde não conheciam vivalma. Eles não tinham telefone nem internet ainda, não tinham carro nem emprego e muito pouco dinheiro. — Bem — disse ela e riu, como se de repente se lembrasse de que já havia vivido coisas muito piores. Então continuou com vontade: — Daremos um jeito de nos estabelecer. As coisas no Iraque melhorariam, devagar. O Café Shahbandar foi bombardeado pelos militantes islâmicos em março de 2007 e reconstruído em 2009. A Abu Nuwas foi remodelada e os restaurantes de masquf reabriram. Nos bairros cujas ruas o Exército de Mahdi de Muqtada al-Sadr antes governou, as pessoas faziam grafites que diziam: Estamos vindo com o exército de Umm Mahdi — o apelido de uma fawal, uma idosa que vende foul nas ruas. (Zombar de líderes políticos usando verduras não era um fenômeno novo: em 2003, Abu Rifaat me mostrou um grafite que dizia: Nada de Hakim, nada de Chalabi, só quero cerveja e lablabi — comparando tanto políticos religiosos quanto seculares, desfavoravelmente, a cerveja e sopa de grão-de-bico.) Salaam, o Comunista, teve que deixar seu bairro por três anos, enquanto insurgentes sunitas tentavam transformá-lo num miniestado islâmico. Ele voltou em 2009 e ficou surpreso em ver lojas de bebidas: garrafas de uísque alinhadas, bem ali nas janelas, uma coisa que teria rendido ao comerciante uma execução apenas um ano antes. Ele ligou para um amigo e disse: — Agora me sinto seguro, porque vejo lojas de bebidas. Mas então uma série de bombardeios rasgaria feiras, cafés e sorveterias, a guerra se reafirmaria e a maré cautelosa de civis recuaria mais uma vez. Youm aasl, youm basl, dia de mel, dia de cebolas. Em Beirute, os homens armados desapareceram tão rápido quanto haviam aparecido. O Hezbollah desmontou suas tendas do centro da cidade, houve uma eleição parlamentar e um novo governo que incluía todas as facções. Mas ainda era possível sentir o cheiro do ódio latente logo abaixo da superfície. Os partidos políticos o mantiveram em fogo baixo, mas poderiam aumentá-lo novamente para que fervesse sempre que quisessem. É possível quebrá-la num instante. Porém, por mais poderoso que seja o gosto do ódio, não nos lembramos dele com tanta vivacidade quanto das outras coisas. Quando pensava em Bagdá, pensava em como as pessoas de lá valorizavam os livros; do senso de humor, da história, de como alguém sempre trazia à tona a epopeia de Gilgamesh. Os cafés retro. O cheiro de masquf. Como todo mundo sempre acabava falando de poesia ou contando as mesmas histórias que contavam desde antes dos abássidas. Quando pensava em Beirute, não me lembrava dos homens armados, de nossos vizinhos checando documentos de identidade ou dos homens do Hezbollah de cócoras em suas tendas como hordas de beduínos de Ibn Khaldun. Eu me lembrava do cheiro

do carneiro sendo grelhado pelos vizinhos no domingo, misturado ao cheiro do café torrado e do cardamomo da loja de térreo do prédio. Os berros de galos ecoando no concreto, o grito de Kaaaaaaa-IIK! do velhinho que vendia kaak. Eu imaginava o momento durante o Ramadã, logo antes do iftar, quando as ruas ficavam vazias de repente, o bairro perfeitamente silencioso e calmo, enquanto toda a Hamra segurava a respiração e esperava a voz do almuadem para quebrar o jejum. Eu me lembro de ter assistido à previsão de um adivinho sobre os eventos do ano seguinte em certa véspera de Ano-Novo na TV libanesa, seguido da previsão do tempo anunciada por uma jovem vestindo um bustiê preto de couro. Eu imaginava o fattoush no Baromètre, uma pirâmide de vermelho e verde, e me ocorria que se eu entrasse no Baromètre naquele momento exato, provavelmente veria algum conhecido. Não sentia falta das bombas. Mas sentia falta dos meus amigos, de como ligávamos uns para os outros depois de cada bombardeio para ter certeza de que todos estavam bem. Sentia falta de como Umm Adnan ou Abu Ibrahim recitavam receitas quando eu comprava khubaizeh ou funcho silvestre; a adolescente no caixa do meu supermercado local em Nova York entediada era perfeitamente educada, mas não fazia isso quando eu comprava uma embalagem plástica de espinafre pré-lavado. Não havia motivo para ficar em Bagdá ou mesmo em Beirute. Nenhum motivo para ficar lá simplesmente porque nossos amigos não podiam ou não queriam ir embora — motivo nenhum, como Mohamad ressaltaria, para ficar numa zona de guerra por lealdade a amigos que não têm escolha a não ser ficar. Mas há algo a ser dito pela memória e pelo fato de levantar uma bandeira, por menor que seja, mesmo uma esfarrapada, contra o esquecimento. Sempre que batia a saudade de Beirute ou Bagdá, eu ia a uma feira. Encontrava algo conhecido, ou algo desconhecido, e preparava algo com aquilo. Ligava para amigos (os que não estavam “lotados”) e convidava-os para jantar. A comida sozinha não produz a paz. É parte da guerra, como todo o resto. Podemos partilhar o pão com nossos vizinhos um dia e matá-los no seguinte. A comida é só uma desculpa — uma oportunidade de conhecer os vizinhos. Quando a dividimos com os outros, ela se torna algo a mais. Espalhei o mlukhieh seco sobre a mesa. Escolhi as folhas, jogando fora as marrons e arrancando os caules. Tinha a aparência e o cheiro de chá. Fiz exatamente do jeito que Umm Hassane me ensinou e ficou terrível. — Umm Hassane — gritei na vez seguinte que ligamos para ela — o mlukhieh. Como a gente cozinha quando ele é seco? — É só ferver! — Sim, mas a gente cozinha as folhas primeiro, antes de colocar o frango? — É claro! — A resposta-padrão de Umm Hassane para qualquer passo que tenha esquecido de mencionar. — Por quanto tempo? — Até ficar pronto! Ela aproveitou a oportunidade para mencionar a impossibilidade de fazer tabikh na América. Os açougueiros nos Estados Unidos não eram capazes de moer a carne miúda o suficiente. Os tomates não tinham o gosto certo. O mlukhieh não era mlukhieh de verdade. Esse era o jeito dela de dizer que sentia nossa falta e de tentar fazer com que voltássemos para Beirute. Mas quando ligamos para contar a ela que estávamos indo visitá-la, ela bufou, como se só acreditasse quando nos visse. Cara estava certa: jamais encontraremos o sentimento de pertencimento. Não o encontrarei numa loja, ou uma cidade, ou mesmo em feiras de rua, porque não é algo que se encontra, mas algo que se faz. Planto um jardim, leio um livro. Tomo café com meus vizinhos. Preparo o jantar com meus amigos. Não espero para marcar um encontro. Ligo para Georges em Cleveland, Roaa em Denver ou Adessa em Beirute. Ligo

para minha mãe e pergunto o que ela está comendo. Compro um sanduíche e como na rua, lembrando de maravilhar-me com o fato de que as calçadas aqui estão cheias de gente, e não de carros, como em Beirute. Quando ando pelas ruas de Nova York, há momentos em que acontece de eu fazer contato visual com um cara no momento em que ele está mordendo um cachorro-quente, ou um burrito, ou um falafel, e ele olha para cima com um olhar repentino, quase como se de um cachorro, de vergonha, porque ele está com a boca cheia e comendo em público, e esta é a resposta-padrão americana ao fato de ser pego comendo em público. E, sem pensar, começo a dizer sahtein. Penso, pela milionésima vez, que é um crime não termos essa palavra em inglês; que comemos, sim, em público aqui, mas não celebramos o fato como se faz ao redor do Mediterrâneo. Então digo mesmo assim, apesar de o cara provavelmente pensar que sou louca: Sahtein! Coma, pelo amor de Deus!

Agradecimentos O MAIS DIFÍCIL EM AGRADECER AOS OUTROS é que eles se recusam a se comportar. Tradutores viram amigos (e vice-versa). Fontes se metamorfoseiam em mentores. Um leitor de manuscrito é também um detentor de segredos culinários. Tentei organizá-los em benefício do espaço, mas muitas das pessoas a quem sou agradecida transcendem categorias. Alguns dos que me foram mais prestativos não podem ser mencionados pelo nome, por sua segurança e de seus entes queridos. Eles sabem quem são e quanto devo a eles. Quando cheguei a Bagdá e Beirute como uma freelancer inexperiente em cobertura de zonas de guerra, colegas jornalistas foram generosos com fontes, telefones via satélite, sabedoria acumulada, álcool e carne grelhada. Entre eles: Chris Albritton, Jackson Allers, Anne Barnard, Nick Blanford, Kate Brooks, Andrew Lee Butters, Thanassis Cambanis, Charlie Crain, Babak Dehghanpisheh, Yochi Dreazen, Farnaz Fassihi, Kim Ghattas, Ben Gilbert, Christine Hauser, Betsy Hiel, Warzer Jaff, Larry Kaplow, Ashraf Khalil, Ibrahim Khayat, Rita Leistner, Joe Logan, Matt McAllester, Challiss McDonough, Andrew Mills, Diana Moukalled, Evan Osnos, Scott Peterson, Jim Rupert, Moises Saman, Kate Sleeye, Anthony Shadid, Tina Susman, Letta Tayler e Liz Sly. Em Bagdá, Betsy Pisik me deu um curso intensivo sobre cobertura de conflitos (“Ninguém quer ler sobre saneamento”, ela me disse, “mas todos querem ler sobre bebês”). Hazem Al-Amin e Maher Abi Samra forneceram áraque e traduções ocasionais do árabe para o francês. Rebecca BouChebel trouxe o espírito de Beirute para uma Bagdá destruída pela guerra; Manal Omar e Hassan Fattah fizeram com que fosse possível rir quando tínhamos todos os motivos para chorar. E o Institute for War & Peace Reporting criou uma ilha de civilidade, hospitalidade e ética jornalística na capital, graças às pessoas extraordinárias que conhecemos lá, incluindo Michael Howard, Salaam Jihad, Steve Negus, Hiwa Osman, Usama Redha, Maggy Zanger e o imortal peru tandoori de Ação de Graças da Hiwa. Amir Nayef Toma, o Virgílio de Bagdá, me mostrou a beleza na vida comum e incomum de sua cidade. Ele é um al-Jahiz dos tempos modernos e um verdadeiro cidadão do mundo. Reem Kubba e seu marido, Sadiq, maravilharam-nos com poesia em sua linda casa; Oday e Usama Rasheed, Ziad Turky, Basim alHajar, Basim Hamed, Faris Harram e Nassire Ghadire conversaram sobre B.B. King, as canções de alQubanshi, O Exorcista, Três reis, o poeta iraquiano al-Jawahiri e The Doors. A compaixão profunda de Alan King pelo povo do Iraque e sua dedicação em aprender tudo o que podia sobre sua história e religião, foi um exemplo para mim. Agradeço-lhe também por ter nos apresentado a xeque Hussein Ali al-Shaalan, com quem aprendemos muito, e Adnan al-Janabi, que me inspirou a procurar livros de Hanna Batatu, Ali al-Wardi e Ibn Khaldun. Agradecimentos especiais a dra. Salama al Khafaji, xeque Fatih Kashif al-Ghitta e dra. Amal Kashif alGhitta. Espero que fique claro por meio deste livro quanto sua amizade significa para mim. Beikum aamra, sufrah aamra. Todos os editores esplêndidos com quem trabalhei no The Christian Science Monitor e no The New Republic merecem minha gratidão. Mas devo um agradecimento especial àqueles primeiros editores cruciais — Josh Benson, Jeremy Kahn e Jim Norton — que leram as matérias e responderam solicitações de uma freelancer desconhecida no Iraque. Sem eles, eu jamais teria tido a sorte de trabalhar com Franklin Foer, Richard Just, Joshua Kurlantzick, Adam Kushner, Kate Marsh, Amelia Newcomb, Clay Risen e David Clark Scott. Adam Shatz e Roane Carey no The Nation incentivaram-me a produzir o tipo de escrita que eu

não achava ser capaz de produzir. James Oseland, Georgia Freedman e Dana Bowen no Saveur fizeram com que escrever sobre comida parecesse inteligente, realista e impiedosamente cosmopolita. Como jornalista, tive o privilégio de conversar com alguns dos mais brilhantes intelectuais, ativistas e analistas políticos do mundo. Tenho um débito intelectual com Charles Adwan, Khalil Gebara, Timur Goksel, Nadim Houry, Samir Kassir, Isam al-Khafaji, Chibli Mallat, Jamil Mroue, Amal Saad-Ghorayeb, Paul Salem, Nadim Shehadi, Lokman Slim, Fawwaz Traboulsi e Mai Yamani, que compartilharam sua compreensão profunda acerca da história, da política, das religiões, da cultura e da sociedade civil do Oriente Médio. Ahmad ElHusseini e Fouad Ajami fascinaram-me com seu conhecimento da história, da política e da teologia xiita ao longo de um almoço que durou sete horas, uma das refeições sempre memoráveis de Ahmad. Entifadh Qanbar revelou a secreta vida sectária da cozinha iraquiana. Rami Khouri e o Instituo Issam Fares destrancaram as portas da biblioteca da Universidade Americana de Beirute ao fazer de mim uma bolsista afiliada. Lizzie Collingham, Martin Jones, Nawal Nasrallah e Dani Noble compartilharam bolsa em alimentação e conhecimentos sobre a história culinária do Oriente Médio. Faleh Jabar e Sami Zubaida permitiram que eu gozasse de seus intelectos amplos e generosos e de suas memórias da velha Bagdá. Shadi Hamadeh, da Food Heritage Foundation, apresentou-me a Aunty Salwa, à “teoria dos esnobes” e à limonada com folha de laranja de Wardeh. Rami Zurayk conversou comigo sobre agricultura e poder, palavras que deveriam sempre caminhar juntas. Barbada Abdeni Massaad escreveu um livro (isso mesmo) sobre manoushi, e também sobre mouneh. Seu jornalismo intrépido é a essência deste livro, que sua paixão e curiosidade infinitas me inspiraram a terminar. Malek Batal e Beth Hunter também foram colaboradores inestimáveis. Malek compartilhou comigo narrativas culinárias, me ensinou provérbios, histórias e a esfregar minha frigideira de ferro com grãos de café. Beth compartilhou sua pesquisa econômica e seu senso de humor cínico. Como se isso não fosse o bastante, eles me apresentaram a Wassim Kays e Maha Nasrallah, que nos alimentaram com quibe de abóbora e melão numa tarde perfeita em Batloun. A todos que compartilharam receitas e segredos culinários, muita gratidão, Nelly Chemaly, Muna alDorr (mais conhecida como Umm Ali), Ali Fahs, Kamal Mouzawak e todos do Souk El Tayeb que dividiram receitas e outras formas de sabedoria. Adessa Tawk apareceu em minha casa com maçãs, tomates, pepinos, espinafre, azeite de oliva, mouneh e receitas de família. Georges Naassan, sua mãe e Katia (“Monique”) Medawar recitaram receitas enquanto tomávamos vinho branco no Bardo e no Walimah; e Samar Awada me ensinou o segredo do tabule de verdade. Bassam Badran (também conhecido por “O rei das favas”) e Rawda Mroueh de Matbakh al-Beiti deram receitas de seus restaurantes. Siad Darwish, Ali Shamkhi e todos os outros iraquianos com quem cozinhei em Beirute (não posso nomeá-los, mas eles sabem quem são) me ensinaram a alegria da cozinha iraquiana. Eliane BouChebel, Wardeh Loghmaji, Leena Saidi, Malek Batal (de novo!) e Umm Nabil contaram segredos do mlukhieh. E agradecimentos especiais a tia Khadija, tia Nahla e, como sempre, a Umm Hassane. “É normalmente presumido que sempre se perde algo na tradução”, Salman Rushdie escreveu certa vez; “agarro-me, obstinadamente, à noção de que também se pode ganhar algo”. Rayanne Alamuddin, Rassam Moussa, Usama Redha, Leena Saidi e um ou outro que não poso nomear abriram um mundo de conotações, duplos sentidos, verbos e provérbios, poesia e trocadilhos. Acho que eles sabem a sorte que tive de tê-los como tradutores e amigos. Hayat Shibl me ensinou a dizer “obrigada” de quatro maneiras diferentes; a Samar Awada, às vezes tutor e sempre amigo, ensinou-me a não ter medo do árabe escrito. Sirene Harb e Bassem Mroue nos contaram histórias, piadas e fatos históricos enquanto comíamos fattoush no Abu Hassan e no Baromètre. Paula Khoury me deu vodca, cigarros e livros. Rhonda Roumani me mostrou Damasco; Tania Mehanna sempre nos alegrava ao voltar para o Líbano; e Rym Ghazal, entre

outras coisas, encontrou um lar para nossa amada Shaitan. Jori Ose e Julia Zajkowski conseguiram o apartamento mais tranquilo de Beirute para mim; Ralph Schray e Riad Hanbali provaram que locadores também podem ser cavalheiros; e Rabih Dabbous me salvou da Bukhala de Ras Beirut. Bilal El Amine, Maha Issa e Abdulrahman Zahzah do T-Marboutta, que transformaram seu café num centro de refugiados, lembraram-me de que a raiz da palavra restaurante é restaurar. Maren Milligan me raptou para o Baromètre e foi minha guru de pesquisa. Romola Sanyal fez o melhor frango na manteiga que já comi. Munir Abdallah ganhou de mim no jogo Scrabble, fez mágica com cardamomo e criou a Noite do Tango, onde conheci Adessa Tawk e Georges Naassan, cuja amizade permeia cada página deste livro. Enquanto terminava o livro, fiquei nas melhores colônias de escritores: os apartamentos de meus amigos. Em Nova York, visitando Pamela Roberts foi como ficar presa na biblioteca de madrugada (meu objetivo secreto na vida). Victor Araman, o professor universitário mais glamoroso que conheço, procurou apartamento conosco. E adoramos nossas semanas tranquilas no apartamento gracioso de Les Payne, e sobre o jardim de Barbara e Gary Primosch. Em Beirute, pude ver Imma Vitelli ler tudo o que podia antes de sair para um novo trabalho e deixar seu apartamento para mim. Nahlah Ayed, uma jornalista destemida e amiga verdadeira, provou que é possível ser a mulher mais dedicada da televisão e ainda assim fazer um bom maqlubeh. E se tenho uma tribo, Nizar Ghanem e Sean Carothers Lee fazem parte dela. Dormi em seu sofá, assaltei sua geladeira e sua estante e me aproveitei de seus conhecimentos e de tudo o que é digno de se saber. E então temos Cara Hoffman, que me deu a coragem de dizer que sou escritora. Aprendi mais sobre a escrita ficando na casa de Cara por dez dias do que nos dez anos anteriores; jamais teria terminado este livro sem aquela viagem nervosa que fizemos pelo mundo da escrita. Eli Ben-Yaacov e Glenn Hoffman nos mantiveram humanos com jantares requintados; Hunter S. Thompson, Iggy Pop e gim Seneca Drums nos ajudaram a terminar o trabalho. Maren Milligan, Georges Naassan, Christa Salamandra e Robin Shulman leram o manuscrito e fizeram comentários inestimáveis. Suhail Shadoud passou horas corrigindo meu árabe e sugerindo transliterações, fazendo ambos com a eloquência de um poeta e a precisão de um dentista. E tive a sorte de encontrar Jennifer Block, uma repórter investigativa sensacional, para checar os fatos. Ela evitou que eu fizesse papel de idiota um sem-número de ocasiões que nem merece ser mencionado. Quaisquer erros foram inseridos por mim quando ela virava as costas. Este livro não teria sido possível sem nossos amigos e mentores de Nova York. William Serrin me inspirou a fazer um mestrado em jornalismo na Universidade de Nova York, onde Dick Blood me ensinou a contar os buracos de bala e a comer a comida. Brooke Kroeger me inspirou a acreditar que eu podia ser uma correspondente internacional e depois autora e a nunca ficar satisfeita com um trabalho que é apenas bom o suficiente. Jimmy Breslin e Ronnie Eldridge fizeram com que nos casássemos; Frankie Edozien, Bob Roberts e Hilary Russ cuidaram dos Estados Unidos enquanto estivemos fora; as visitas anuais de Rukhsana Siddiqui a Nova York eram motivo suficiente para voltar. Robin Schulman e Ethan Miller me ajudaram a imaginar este livro em ligações de longa distância lá de Beirute. Indrani Sen, Tracie McMillan e Kim Severson me fizeram ver o escrever sobre comida como uma forma essencial do jornalismo. Alyssa Katz, Robert Neuwirth, Azedah Moaveni e Jennifer Washburn me deram conselhos indispensáveis sobre agentes, propostas e contratos. Quando os maquinários estavam prontos, Mary Anne Waver me aconselhou a sempre subir a montanha; Deborah Amos, Laurie Garret, Tim Phelps, Scott Malcomson, Suketu Mehta, Dan Morrison, Fariba Nawa, Basharat Peer e Helen Winternitz me ajudaram a acreditar que os livros realmente são terminados um dia. Devo agradecimentos especiais a Flip Brophy da Sterling Lord Literistic. Ela encorajou minhas primeiras tentativas de conceber um livro e mais tarde me apresentou a minha agente e amiga querida,

Rebecca Friedman. Rebecca entendeu o que eu estava tentando escrever antes que eu mesma conseguisse; suas habilidades literárias e seu conhecimento transformaram uma ideia imatura sobre comida e guerra numa proposta e depois num livro. Ela traz livros à existência por meio de inteligência e fé. Dominick Anfuso e Marta Levin da Free Press acreditaram no Dias de mel desde o início. Wylie O’Sullivan, minha editora quieta, compassiva e formidável, me guiou pela feira psicológica que é escrever sobre a guerra com paciência quase bíblica. Sua edição criteriosa moldou um manuscrito numa história, e tive mesmo muita sorte em trabalhar com ela. Mara Lurie colocou as palavras no papel com a habilidade inabalável de quem sabe preparar um lanchinho de última hora. Ellen Sasahara desenhou o texto que faz do livro um banquete visual. Nicole Kalrin lidou com a publicidade e Eric Fuentecilla fez o design da capa para a edição americana, então é graças a eles que você está lendo este livro. A Sydney Tanigawa e a todos os outros que me aturaram: muito, muito obrigada e baclavas infinitas. Finalmente, família. Hassan, Hassane e Ahmad Bazzi me acolheram em suas casas e Hanan Bazzi fez com que eu me sentisse em casa em Beirute. Umm Hassane e Abu Hassane não precisam de apresentação, mas a eles gostaria de dizer pelo menos um obrigada. Minha mãe, Janina Ciezadlo, não piscou um olho quando contei a ela que estava de mudança para o Oriente Médio; ela ficou (fingiu ficar) calma durante todo o tempo em que estive em Beirute e Bagdá, mas eu sabia como era difícil ter uma pessoa amada em zona de guerra. Seu apoio emocional e intelectual inabalável me sustentou durante toda minha vida. Queria que meus avós, John e Constance Ciezadlo, ainda estivessem aqui para segurar este livro em suas mãos e dizer, com aquele tom descrente e maravilhado: Olha só para isso! E, finalmente, Mohamad. Uma das piores coisas em escrever um livro é quanto isso nos tira do convívio daqueles que amamos — uma ironia especialmente frustrante quando estamos escrevendo sobre quanto os amamos. Mohamad aguentou isso por três anos, durante os quais fez com que eu não parasse com sua combinação usual de força, inteligência, sagacidade e pura classe. Este livro é dedicado a ele.

Nota da autora A HISTÓRIA DO CALIFA E DO EMBAIXADOR bizantino nas páginas 115-116 vem de relatos do historiador do século XI al-Khatib al Baghdadi, belamente traduzidos para o inglês e anotados por Jacob Lassner em The Topografy of Baghdad in the Early Middle Ages. Os versos do poema de Abu Nuwas sobre o bar do bairro, na página 114, são adaptados de uma tradução do Princeton Online Poetry Project. Parafraseei os versos em discurso contemporâneo; gosto de pensar que Abu Nuwas aprovaria. E finalmente, para proteger sua segurança e preservar sua privacidade, mudei os nomes de algumas das pessoas neste livro.

Receitas FATTOUSH Salada de pão levantina Rende de 4 a 6 porções No Oriente Médio, pessoas de todas as religiões consideram um pecado desperdiçar pão. A necessidade de usar pães dormidos criou todo um universo de receitas — incluindo pratos árabes tradicionais como fatteh (veja Homus fattet, página 389), fattoush e as sopas de pão da península Arábica — que transformam sobras em algo magnífico. Ingredientes Molho (rende mais ou menos 1 xícara) 2 dentes de alho amassados (mais ou menos 1 colher de chá) ¼ de colher de chá de sal marinho grosso Suco de 1 limão (mais ou menos 3 colheres de chá) 1 colher de chá de melaço de romã* ⅔ de xícara de azeite de oliva extravirgem Salada 6 xícaras de alface romana picada (mais ou menos 340g) ½ xícara de folhas de hortelã picadas em pedaços grandes ½ xícara de folhas de salsa picadas em pedaços grandes 1 xícara de cebolinha picada (mais ou menos 60g) 2 xícaras de folhas de beldroega (mais ou menos 60g), sem os caules grossos** 2 pepinos persas (mais ou menos 115g), cortados ao meio no comprimento e fatiados em meias-luas (mais ou menos 1 xícara) ½kg de tomates suculentos (mais ou menos 4), picados (cerca de 2 xícaras) 1 rabanete grande cortado em quatro no comprimento e fatiado em quartos de lua 1 colher de chá de sumagre ou mais, para dar gosto 1 pão árabe grande ou 2 médios, preferencialmente dormidos Azeite de oliva extravirgem Pimenta-do-reino moída na hora Utensílios Gral (ou tigela pequena) e pilão Saladeira grande 1. Amasse o alho e o sal juntos para fazer uma pasta. Esprema o suco de limão sobre o alho, junte o melaço de romã e reserve, deixando macerar enquanto monta a salada. 2. Misture a alface romana, a hortelã, a salsinha, a cebolinha, a beldroega, os pepinos, os tomates e o

rabanete numa tigela grande. (Dica: você pode preparar a salada até esse ponto, tirando os tomates, e refrigerá-la até a hora de servir.) 3. Preaqueça o forno a 150ºC. Separe os dois lados do pão árabe e espirre ou pincele azeite de oliva levemente em todos os lados. Torre até que fiquem crocantes e marrom dourados, por mais ou menos 5 minutos (fique atento, eles queimam rápido). Tire-os do forno imediatamente. Quando estiverem frios o suficiente para poder tocá-los, quebre em pedaços médios. 4. Adicione os pedaços de pão à salada logo antes de servir. Complete o molho, batendo ⅓ de xícara de azeite de oliva com a mistura reservada e despeje-o sobre a salada. Borrife com sumagre e acrescente a pimenta moída. Lave bem as mãos e misture os ingredientes da salada com as mãos, certificando-se de que todas as folhas e todos os vegetais sejam cobertos de molho. Experimente e ajuste o sal e o sumagre. Sirva imediatamente. Variações Considere essa receita um modelo: o fattoush é uma oportunidade de não desperdiçar, de improvisar e de reinventar. Você pode prepará-lo com qualquer sobra de pão no lugar do pão árabe. Alguns gostam dos vegetais em pedaços grandes; outros preferem que estejam bem picados. Paladares diferentes preferem mais ou menos sumagre. Algumas pessoas adicionam ervas frescas (tente estragão ou satureja) e alguns corajosos ou descuidados adicionam objetos estranhos como couve-flor. (Recomendo queijo feta, pimentão fatiado, abacate e zaatar.) E assim por diante. Amo alho, mas algumas pessoas preferem o fattoush sem ele. Se você gosta de alho, mas quer um molho de salada mais suave, divida um dente de alho no comprimento. Se houver um broto verde, remova-o. Para um sopro de sabor, esfregue a parte interna de sua saladeira com as metades; para um pouco mais de sabor, coloque-as no molho da salada e deixe pegar o gosto (mas lembre-se de remover antes de servir). Algumas pessoas fritam o pão em azeite de oliva em vez de tostá-lo. Corte-os em quadrados ou triângulos do tamanho de uma mordida (tesouras de cozinha são boas para isso). Aqueça um fio de óleo de canola ou azeite de oliva puro (não extravirgem) em uma frigideira. Quando estiver chiando, frite os pedaços em pequenos lotes, virando-os com delicadeza, até que fiquem uniformemente crocantes e marrom dourados. Escorra em papel toalha ou em saco marrom de papel.

BATATA WA BAYD MFARAKEH Batatas amassadas e ovos Rende 4 porções generosas O cozimento lento é a essência desse prato. Alguns cozinheiros fritam as batatas, mas prefiro o método de Umm Hassane, que produz uma consistência de batata cozida e frita; a receita-padrão contém ovos, cebolas e batatas. Mas essa base simples é inacreditavelmente boa para improvisações: tente adicionar pimentões picados e/ou alho às cebolas; adicione salmão assado, creme ou seu queijo preferido aos ovos (gosto com feta, queijo de cabra ou cheddar). Também fica bom com cominho, sementes de mostarda preta e uma pitada de curry em pó. Ingredientes 300g de cebolas (mais ou menos 2 de médias para grandes), picadas (cerca de 2 xícaras) 2 colheres de sopa de óleo de canola ou azeite de oliva 1,5kg de batatas (mais ou menos 4 de médias para grandes) descascadas e cortadas em cubos de cerca de 1cm (mais ou menos 4 xícaras) 1 colher de sopa de sal marinho, e mais um pouco para saltear as batatas e dar sabor Opcional: 2 colheres de sopa de ervas frescas picadas, como orégano, alecrim e/ou tomilho 8 ovos Utensílios Panela média (pode ser de ferro) com tampa 1. Refogue as cebolas no óleo em uma panela pesada ou antiaderente em fogo médio. Mexa com frequência e não deixe que queimem. Quando as cebolas começarem a amolecer, depois de 2 ou 3 minutos, cubra a panela e abaixe o fogo para médio/baixo. Verifique o cozimento e mexa a cada 10 minutos mais ou menos para que elas não grudem ou queimem. Não deixe que fiquem marrons logo, elas devem caramelizar bem lentamente. Quando começarem a soltar muito líquido e a ficar transparentes, abaixe o fogo o máximo possível. 2. Enquanto as cebolas estiverem cozinhando, polvilhe os cubos de batata generosamente com sal, misture e deixe descansar por cerca de 5 minutos. Lave muito bem com água fria. 3. Depois de cerca de 30 minutos, as cebolas devem estar começando a ficar douradas. Aumente o fogo para médio e tire a tampa para evaporar o máximo possível do líquido. Adicione a colher de sopa de sal e as batatas e misture. Se estiver usando ervas frescas, adicione-as agora. 4. Abaixe bem o fogo e tampe a panela. Deixe as batatas cozinhando até que fiquem macias — em geral de 10 a 15 minutos —, mexendo gentilmente e experimentando de vez em quando. Se preferir as batatas crocantes, aumente o fogo, adicione um pouco mais de óleo e deixe-as fritar por alguns minutos entre mexidas. As batatas estarão prontas quando começarem a se desintegrar nas bordas e você puder espetá-las com facilidade com um garfo. Experimente e ajuste o tempero. 5. Quebre os ovos diretamente na panela. Mexa até que comecem a se separar em pedaços cremosos. Tire a panela do fogo e continue mexendo até que os ovos fiquem prontos (eles continuarão a cozinhar por 1 ou 2 minutos na panela. Experimente e ajuste o tempero com sal, pimenta ou o que mais você gostar.

6. Umm Hassane recomenda servir batata wa bayd com salada. Fica surpreendentemente bom com tomates fatiados regados com azeite de oliva e sal. Variação Para uma versão menos cremosa e mais distinta, frite as batatas enquanto as cebolas estiverem caramelizando. Despeje óleo de canola ou outro óleo neutro em uma panela ou frigideira funda e aqueça a 150ºC. Frite os cubos de batata em pequenas porções — não encha a panela — até que fiquem com um leve tom marrom dourado. Tire-as com uma escumadeira e deixe secar em papel toalha ou saco marrom de papel. Misture com as cebolas caramelizadas e quebre os ovos conforme as instruções anteriores.

SHAWRABET SHAYRIEH Sopa de macarrão Rende de 4 a 6 porções Essa sopa é um dos pratos preferidos da família Bazzi. Pensei que fosse uma invenção recente, uma adaptação em forma de sopa do clássico espaguete com almôndegas. Mas descobri que a prática de cozinhar almôndegas e espaguete em sopa data da Bagdá medieval (e provavelmente antes). Colonizadores árabes apresentaram o macarrão aos italianos, que aperfeiçoaram a arte de fazer massa grano duro; conquistadores mouros levaram as pequenas bolas de carne chamadas al-bunduqieh aos espanhóis, que as chamaram de albondigas; e os espanhóis completaram a receita navegando ao Novo Mundo e levando o tomate para o Mediterrâneo. Essa receita combina macarrão, almôndegas e molho de tomate em uma sopa do velho e do novo, da tradição e da inovação, da Europa, da Ásia e do Novo Mundo. Ingredientes 2 colheres de sopa de azeite de oliva puro (não extravirgem) 1⅓ de xícara de macarrão cabelo de anjo ou espaguete, quebrados em pedaços de mais ou menos 2cm 250g de cafta (receita a seguir), em pequenas almôndegas 2 dentes de alho, esmagados (mais ou menos 2 colheres de chá) 800g de molho de tomate ou tomates esmagados (ou 1kg de tomates frescos, ralados em um ralador ou 1 colher de sopa de extrato de tomate) Sal e pimenta moída na hora para temperar Opcional 2 colheres de sopa de tomates secos picados bem finos Vinho tinto (mais ou menos ¼ xícara) 1 colher de sopa de orégano picado na hora ou 1 colher de chá de orégano seco 2 colheres de sopa de manjericão picado na hora ou 2 colheres de chá de manjericão seco Utensílios Panela grande de sopa com o fundo grosso Prato ou tigela para reservar o macarrão Espátula para saltear o macarrão e as almôndegas 1. Aqueça o azeite de oliva em uma panela de sopa grande em fogo médio até que chie, mas não fumegue. Adicione o macarrão e salteie-o, por cerca de 2 minutos, mexendo constantemente, até que fique com cheiro de tostado e com uma cor uniformemente marrom dourada. Retire o macarrão deixando o máximo de azeite possível na panela e reserve. 2. Salteie as almôndegas no azeite que sobrou, por cerca de 3 minutos, chacoalhando com delicadeza, até que fiquem uniformemente marrons. Se grudarem, aumente um pouco o fogo e espere que se soltem; não tente separá-las. Adicione o alho amassado (e o tomate seco, se estiver usando) e salteie por mais ou menos 1 minuto. 3. Quando o alho começar a soltar aroma, adicione o molho de tomate (ou vinho tinto ou o caldo da cebola, se estiver fazendo sua própria cafta). Deixe ferver por mais ou menos 30 segundos, então adicione o macarrão e todos os outros ingredientes, exceto o manjericão. Salgue a gosto. (O orégano

pode parecer um pouco amargo de início.) 4. Cozinhe por 10 a 15 minutos. Se estiver usando manjericão, adicione-o logo antes de desligar o fogo e deixe cozinhar por 1 ou 2 minutos. Experimente novamente e ajuste o sal e as ervas. Adicione água se necessário. Sirva. Variação Caso esteja com pressa, pode fazer shawrabet shayrieh em mais ou menos 15 minutos usando ingredientes pré-prontos — molho de tomate em lata e almôndegas congeladas. Ou você pode fazer tudo com as mãos, do zero, e pedir a ajuda de amigos e da família. É um prato muito popular entre crianças de todas as idades.

CAFTA Rende mais ou menos 48 bolinhos pequenos, 24 grandes Geralmente faço uma receita dupla ou quádrupla desses bolinhos de carne e congelo o que sobra. Ingredientes ½ cebola média 2 colheres de sopa de salsinha picada 2 colheres de sopa de tomate seco picado 250g de carne bovina ou cordeiro, bem moídos* 2 colheres de sopa de pimenta-de-alepo ¼ de colher de chá de pimenta-da-jamaica ¼ de colher de chá de sal fino ¼ de colher de chá de pimenta-do-reino moída na hora ⅛ de colher de chá de cominho ⅛ de colher de chá de coentro ⅛ de colher de chá de canela Utensílios Ralador Processador se for moer a carne Peneira pequena Tigela 1. Rale bem a cebola e deixe escorrer em uma peneira pequena. 2. Amasse todos os ingredientes juntos com dois garfos ou à mão. Não misture demais — a carne não deve ficar muito maciça. 3. Separe uma colher de chá ou uma colher de sopa de carne de cada vez (dependendo do tamanho dos bolinhos de carne que desejar). Enrole gentilmente com as mãos até que forme uma bolinha. Repita por 24 a 48 vezes. É isso. Está pronto. Apenas certifique-se de limpar bem o processador e qualquer outro equipamento que tenha tocado a carne crua.

FOUL MDAMAS DE ABU HADI Favas enterradas Rende 4 porções Toda cidade, todo país e toda região têm seu jeito de servir favas. No Egito, elas são servidas com manteiga, entre outras coisas; em Alepo, com a pimenta vermelha famosa da cidade, e em Damasco, existe um tipo de fava coberta com iogurte chamada de “fava lactante”. Eu gosto das minhas com queijo feta derretido, pimenta e um ovo frito. Ingredientes 1 xícara de favas secas* 3 xícaras de água para deixar de molho e mais para cozinhar ¼ de colher de chá de bicarbonato de sódio ⅔ de xícara de grão-de-bico seco 2 xícaras de água para deixar de molho e mais para cozinhar ¼ de colher de chá de bicarbonato de sódio 1 colher de chá de sal marinho grosso 1 colher de sopa de alho amassado (mais ou menos 3 dentes) 3 colheres de sopa de suco de limão (mais ou menos 1 limão) ½ xícara de azeite de oliva extravirgem, dividida ½ colher de chá de cominho ¼ de colher de chá de páprica Pão, tomates picados, cebolinha verde, pimentões verdes crus e azeitona para servir Utensílios 2 tigelas de vidro ou cerâmica com tampa para deixar as favas de molho 2 panelas médias para cozinhar os grãos separadamente Pilão Tigela grande para servir Cozinhando as favas 1. Deixe as favas de molho em recipientes separados por 7 a 12 horas ou durante a noite. (A não ser que esteja muito frio, deixe-as de molho em recipientes fechados na geladeira.) 3. Leve cada panela ao fogo e deixe ferver por 10 minutos. Não mexa os grãos ou tire a espuma. Coloque apenas a quantidade de água suficiente para cobrir os grãos. Depois de 10 minutos, escorra a água das favas e coloque 3 xícaras de água fria. Abaixe o fogo para médio-baixo nas duas panelas. Cozinhe lentamente até que os grãos fiquem prontos — pode durar de 90 minutos a 2h30, dependendo dos grãos — acrescentando água suficiente quando necessário. Os grãos ficarão prontos em tempos diferentes, então experimente sempre e fique atento. 2. Despreze a água do molho e lave bem os grãos. Coloque cada tipo de grão em uma panela própria com ¼ de colher de chá de bicarbonato de sódio. Adicione água suficiente para cobrir os grãos —

pequenas ondulações na superfície da água devem ficar visíveis. 4. Os grãos-de-bico estão prontos quando o lado de dentro estiver macio, a pele começando a sair e alguns dos grãos começarem a partir-se pela metade. Quando os grãos-de-bico estiverem prontos, coloque a panela na pia sob água fria corrente. Incline a panela e deixe a espuma escorrer. Quando os grãos estiverem frios o suficiente para serem manuseados, pegue dois punhados. Muito gentilmente, esfregue-os uns nos outros, o suficiente para que a pele saia e os grãos permaneçam intactos. Continue tirando as peles com água fria. Quando tiver removido a maior parte das cascas, enxágue mais uma vez, para tirar todo o bicarbonato de sódio. (Dica: quando os grãos estiverem cozidos e sem casca, você pode guardá-los na geladeira por um ou dois dias até que fiquem prontos para fazer o foul. Ou você pode congelá-los por até 3 meses). Adicione 1½cm de água aos grãos-de-bico e cozinhe em fogo baixo — o suficiente para mantê-los quentes, mas não o bastante para que se desmanchem. Mantenha o volume de água em mais ou menos 1cm. 5. As favas estão prontas quando estiverem macias por dentro e a maioria das cascas começar a abrir. Quando estiverem prontas, escorra a água gentilmente, com cuidado para não mexer muito nelas. Adicione 1cm de água e cozinhe como os grãos-de-bico. Preparando o Foul 1. Amasse o alho e o sal até formar uma pasta em uma tigela grande com um pilão. Despeje metade do suco de limão e deixe descansar por mais ou menos 5 minutos. (O suco de limão “cozinhará” o alho; quanto mais tempo descansar, mais suave o sabor.) 2. Quando estiver se preparando para servir o foul, com uma concha, transfira toda a fava e metade dos grãos-de-bico, com um pouco da água do cozimento, para a tigela com o alho. Amasse gentilmente alguns dos grãos com o pilão enquanto os mistura ao alho. Regue com cerca de metade do azeite. Adicione mais água do grão-de-bico se parecer seco — gosto do meu aguado, com bastante alho e bem amassado, com a consistência de um bom chili. Experimente e ajuste o azeite de oliva e o sal. 3. Quando o tempero estiver no ponto, faça um buraco no meio do foul e despeje o restante do grão-debico. Regue com o azeite de oliva e depois com o resto do suco de limão. Coloque uma pitada de sal e páprica. Sirva com acompanhamentos opcionais e o que mais desejar. Variação Preparar os grãos do zero vale o tempo e o esforço (principalmente se você dobrar a receita e congelar o que sobrar). Mas se você não tiver muito tempo, pode fazer essa receita com grãos enlatados. Procure por favas e grãos-de-bico juntos, mas se não encontrar pode usar uma lata de cada. Lave bem os grãos com água corrente. Aqueça-os em uma panela (ou panelas, se estiver usando favas e grãos-de-bico separados) e siga as orientações de preparo desta receita. Reduza o sal para ¼ de colher de chá (grãos enlatados já têm bastante sal) e comece com 2 dentes de alho, 2 colheres de sopa de suco de limão e ⅓ de xícara de azeite de oliva. Ajuste o sal, as especiarias e outros temperos que lhe agradem.

HOMUS FATTET DE ABU HADI Fatteh de grão-de-bico Rende 2 porções generosas O segredo desse prato falsamente simples é deixar todos os ingredientes prontos o mais rápido possível. A versão de Abu Hadi desse famoso prato levantino é um pouco diferente da versão típica de Beirute, o que reflete sua infância em Damasco. Tomei algumas liberdades com essa receita, como aquecer o cominho e a páprica na manteiga e adicionar azeite de oliva. Tenho certeza de que Abu Hadi vai me perdoar, ele gosta de experimentar novos sabores. Ingredientes 1¾ de xícara de grão-de-bico cozido ou uma lata* 2 dentes de alho amassados (mais ou menos 2 colheres de chá) 1 colher de chá de sal grosso 2 colheres de chá de suco de limão (mais ou menos ¼ de limão) 1½ colher de sopa de tahine 2½ xícaras de iogurte integral 1 pão árabe grande ou 2 médios dormidos, as metades separadas 1 colher de sopa de manteiga 1 colher de sopa de azeite de oliva 2 colheres de sopa de pinhão ¼ de colher de chá de páprica ½ colher de chá de cominho ½ colher de chá de hortelã seca Utensílios Panela pequena Pilão 2 tigelas pequenas 1 ou 2 tigelas para servir (recomendo as de vidro) Frigideira pequena 1. Lave os grãos-de-bico e esfregue-os gentilmente entre as mãos para remover o máximo possível de cascas. Aqueça-os em uma panela pequena com 1cm de água em fogo bem baixo. Adicione mais água se necessário. 2. Em uma tigela pequena, amasse o alho e o sal com um pilão até que formem uma pasta lisa. Adicione o suco de limão e mexa até obter uma pasta solta. Reserve. 3. Pegue metade da mistura de alho e limão e coloque em uma segunda tigela. Adicione o tahine e misture até ficar homogêneo. Adicione o iogurte e mexa até misturar tudo. Reserve. 4. Toste ou frite as metades do pão árabe até que fiquem marrom douradas (para uma explicação passo a passo, veja a receita de fattoush, na página 375). Quando estiverem frias o suficiente para serem manuseadas, quebre-as em pedaços do tamanho de uma mordida, quadrados ou triângulos de mais

ou menos 1½cm. Separe metade. Coloque a outra metade no fundo da tigela em que vai servir o prato. 5. Despeje os grãos-de-bico com a água do cozimento na tigela com a pasta de alho e limão. Misture até que todos os grãos fiquem cobertos amassando mais ou menos metade deles com o pilão. Despeje na tigela em que vai servir, sobre o pão tostado. Cubra com o iogurte. 6. Derreta a manteiga em uma frigideira pequena em fogo médio com o azeite de oliva. Adicione o pinhão e toste, chacoalhando a frigideira para que cozinhe de maneira homogênea, até ficar marrom dourado. Adicione a páprica e o cominho e mexa gentilmente. Jogue o pinhão sobre o iogurte e cubra com o pão tostado que sobrou. Enfeite com hortelã seca e, se desejar, salpique mais cominho e páprica.

YAKHNE KUSA DE UMM HASSANE Ensopado de abobrinha Rende de 6 a 8 porções Esse é meu yakhne, ou ensopado de legumes, preferido — talvez por ter sido meu primeiro —, mas todos são excelentes. Quando se tem uma fórmula básica, pode-se variar substituindo por 1kg de qualquer vegetal que esteja na época. Amo aqueles com couve-flor assada ou vagens grossas cortadas em pedaços médios. Mohamad gosta com ervilhas e cenouras. Invente o seu. Ingredientes 4 colheres de sopa de azeite de oliva, separadas, e mais se necessário ½kg de acém ou paleta de cordeiro, cortado em cubos de mais ou menos 2½cm 18 xícaras de água, divididas 3 cebolas pequenas ou 2 de médias para grandes, descascadas e cortadas em 4 6 dentes de alho descascados 1 folha de louro 2 cravos 8 grãos de pimenta-do-reino 1 colher de sopa de sal e mais a gosto 1 fruto da pimenta-da-jamaica 1kg de abobrinhas pequenas 6 colheres de sopa de taqlieh (receita a seguir) Pimenta-do-reino moída na hora 3 a 4 limões Utensílios 2 panelas de ferro ou caçarolas de médias para grandes Pilão médio ou processador Coador ou peneira de arame Raspador de borracha 1. Aqueça duas colheres de sopa de azeite de oliva em uma panela de ferro ou caçarola em fogo médioalto. Adicione a carne e sele todos os lados até que fique marrom e perfumada, por mais ou menos 5 minutos. (A carne grudará no fundo da panela de início, não tente desgrudá-la. Depois de alguns minutos, ela deve se soltar sozinha. Se isso não acontecer, aumente o fogo.) 2. Adicione 6 xícaras de água, aumente o fogo até que a água ferva. Abaixe o fogo para médio e deixe ferver até a espuma parar de subir, por mais ou menos 5 minutos. Tire a água dessa primeira fervida e descarte. (Para uma explicação dessa técnica incomum, veja a receita de frikeh, na página 395.) Tire a espuma da carne com uma peneira ou coador. 3. Limpe a panela e coloque 12 copos de água fria. Adicione a carne, as cebolas, o alho, a folha de louro, os cravos, os grãos de pimenta, a pimenta-da-jamaica e 1 colher de sopa de sal. Deixe ferver novamente, depois abaixe bem o fogo. Cubra e deixe cozinhar até a carne ficar macia, por mais ou menos 2h30.

4. Enquanto a carne cozinha, corte a abobrinha em rodelas de 1½cm e prepare o taqlieh. Quando a carne estiver pronta, escorra o caldo por uma peneira em uma segunda panela. Reserve a carne e as cebolas. Escolha as especiarias e a folha de louro e descarte. 5. Lave a primeira panela. Coloque 2 colheres de sopa de azeite de oliva e aqueça em fogo médio-alto até que fique quente, mas não liberando fumaça. Adicione o taqlieh e refogue por mais ou menos 2 minutos, mexendo e raspando as laterais e o fundo constantemente para que não grude ou queime. 6. Quando o taqlieh soltar seu aroma, mas antes que fique seco o bastante para grudar na panela, coloque a abobrinha. Não pare de mexer. Refogue por 2 ou 3 minutos, chacoalhando a panela de vez em quando para cobrir cada pedaço de abobrinha com o molho. Adicione mais azeite de oliva se necessário. Não deixe ficar marrom. 7. Quando a abobrinha começar a ficar um pouco transparente, adicione o caldo e a carne e abaixe o fogo. Cozinhe, tampado, até que a abobrinha fique macia, mas não mole demais, de 25 a 45 minutos dependendo do tamanho. Experimente de vez em quando, enfiando um garfo na abobrinha para testar a firmeza desejada. Adicione sal a gosto. 8. Sirva com sal, pimenta e muito suco fresco de limão para temperar. Umm Hassane só servia esse prato acompanhado de arroz, mas gosto com pão, trigo bulgur ou mesmo como sopa.

TAQLIEH Pasta de alho e coentro Rende mais ou menos 6 colheres de sopa Ingredientes 1 cabeça de alho, descascada e amassada (mais ou menos 3 colheres de sopa) 1 colher de sopa de sal grosso 1 maço de coentro, caules grossos removidos, picados em pedaços grandes (mais ou menos 1½ xícara) Bata o alho e o sal em um pilão até formar uma pasta. Adicione o coentro e amasse até conseguir um molho espesso e perfumado. O taqlieh pode ser congelado. Sempre faço a receita dobrada, guardo o que sobra em potes pequenos e despejo azeite de oliva suficiente para cobrir (isso faz com que o sabor se mantenha). Em um freezer, pode ficar guardado por até 6 meses.

FRIKEH DAJAJ Trigo verde quebrado e torrado com frango Rende de 6 a 8 porções Para mim, fazer frikeh é muito parecido com fazer risoto. Durante a primeira etapa, você não precisa ficar na frente do fogão mexendo constantemente e adicionando pequenas quantidades de caldo (apesar de certamente poder fazer isso se quiser). Mas no fim, se quiser atingir um equilíbrio osmótico perfeito entre líquido e grãos, você deve fazê-lo. O ideal é que os grãos inchem gradualmente enquanto absorvem o líquido. Ao mesmo tempo, devem soltar glúten suficiente para fazer com que o restante do caldo forme um molho cremoso. A técnica de Umm Hassane de deixar descansar por um dia ajuda os grãos a absorverem o líquido e o sabor. Às vezes, o ingrediente mais importante é o tempo. Existem duas maneiras principais de preparar frikeh com frango: o jeito comum, em que o frango e o grão permanecem separados; e o estilo camponês de Umm Hassane, uma rica fusão de carne e grãos. Estou dando a vocês a versão de Umm Hassane. Uma nota final: o sabor acastanhado torrado do frikeh complementa belamente carnes fortes, sendo ideal para regar carne de peru, como molho ou caldo. Ingredientes 2 xícaras de frikeh* 1 colher de sopa de manteiga e/ou azeite de oliva 1 cenoura, cortada em cubos 1 cebola pequena, cortada em cubos 1 talo de aipo picado 4 xícaras de caldo de galinha, e mais se necessário (receita na página 399) 1 colher de sopa de sal (preferivelmente kosher ou marinho), e mais para temperar 1½ de colher de chá de canela ¼ de colher de chá de pimenta-do-reino moída na hora ¼ de colher de chá de pimenta-da-jamaica ⅛ de colher de chá de noz-moscada Pitada de cravo em pó 2 xícaras de carne de frango cozida (mais ou menos metade da carne do caldo de galinha) Utensílios Tigela Peneira de alumínio (opcional, mas facilita) Panela de ferro ou caçarola grande 1. Deixe o frikeh de molho em água gelada em uma tigela por mais ou menos 15 minutos. Lave na pia em água corrente. Pegue punhados de grão e esfregue-os entre as mãos, alternando entre esfregar e amassar, por mais ou menos 5 minutos. Alguns joios deverão subir à superfície enquanto você tira as cascas dos grãos esfregando. ( Já encontrei de tudo em meu frikeh, de pedras a lentilhas e pedaços de corda.) Incline a tigela para que a água e o joio escorram. Tire o máximo de água que conseguir. Se tiver uma peneira de alumínio grande, jogue o frikeh nela e lave em água corrente.

2. Aqueça a manteiga e/ou azeite em uma panela de ferro ou caçarola grande em fogo médio. Adicione os vegetais (gosto de adicionar as cenouras primeiro e deixá-las caramelizar um pouco, liberando um aroma açucarado de batata-doce, antes de colocar o aipo e as cebolas). Refogue por alguns minutos até que comecem a soltar aroma e um pouco de água. 3. Quando as cebolas começarem a ficar macias, adicione o frikeh e refogue até que comece a liberar seu aroma, por cerca de 3 minutos. Antes que queime, adicione 4 xícaras de caldo e o sal e aumente o fogo para médio. Deixe ferver. Assim que ferver, abaixe o fogo e adicione as especiarias. Cubra e deixe cozinhar por mais ou menos 30 minutos, checando e verificando com frequência. Em geral já juntou bastante caldo, mas adicione mais líquido se necessário. 4. Tire do fogo. O frikeh provavelmente não terá absorvido todo o líquido — os grãos ainda estarão al dente, e a coisa toda será uma bagunça melequenta, aguada e nada apetitosa. Deixe descansar, esfriar e absorver o caldo por mais ou menos 15 minutos enquanto faz outra coisa, como refogar nozes para a calda de nozes amanteigadas (opcional, mas altamente recomendada; receita a seguir). Depois de 15 minutos, experimente e ajuste o sal e as especiarias e adicione o frango à panela. 5. Se o caldo já tiver sido todo absorvido (improvável), adicione mais ¼ de xícara de cada vez. É aqui que entramos no território do risoto. 6. Coloque o frikeh em fogo médio-alto até ferver. Baixe o fogo para médio-baixo e deixe ferver por 30 minutos, mexendo com frequência e adicionando caldo conforme necessário. Continue experimentando os grãos para ver se estão duros. Quando estiverem mastigáveis e fofos, não mais al dente, estão prontos. Prove e ajuste o tempero. Umm Hassane serve o frikeh assim mesmo, e eu amo. Mas se você quiser impressionar as pessoas com uma apresentação elaborada, veja as instruções para a calda de nozes amanteigadas a seguir.

CALDA DE NOZES AMANTEIGADAS Ingredientes 1½ xícara de nozes picadas (uso partes iguais de pinhão, pistache e amêndoas escaldadas) 1 colher de sopa de manteiga 1 colher de sopa de azeite de oliva ⅓ de xícara de passas ½ colher de chá de canela em pó (e mais para servir) ¼ de colher de chá de pimenta-da-jamaica ¼ de colher de chá de pimenta-do-reino ⅛ de colher de chá de gengibre moído Pitada de noz-moscada Pitada de cravo moído ½ colher de chá de sal marinho Utensílio Frigideira pequena 1. Aqueça a manteiga em fogo médio até começar a espumar. Torre as nozes na manteiga, mexendo sem parar. Quando estiverem ficando douradas e marrons por igual e a manteiga começar a escurecer, adicione o sal, as especiarias e as passas. Mexa apenas o suficiente para que as passas inchem e as especiarias liberem aroma, então tire do fogo. Quando esfriar, experimente e ajuste o sal e o tempero. 2. Para uma apresentação elegante, unte uma tigela redonda para cada convidado com algumas colheres de sopa de calda de nozes no fundo. Coloque um pouco de carne de frango sobre as nozes e cubra com frikeh cozido, enchendo a tigela até o topo. Coloque um prato sobre a tigela, de cabeça para baixo. Segurando prato e tigela com firmeza, inverta-os para que a tigela fique em cima do prato. Gire a tigela gentilmente para soltar a comida que está dentro. Tire a tigela (pode ser preciso passar uma faca na borda e alavancá-la). Polvilhe com canela a gosto. Sirva para aclamação universal.

CALDO DE GALINHA Rende mais ou menos 8 xícaras Gosto da antiga técnica mesopotâmica, ainda muito usada no Iraque, de parboilizar a carne e descartar a água da fervura inicial ao fazer caldo. Descobri que faz um caldo mais claro com um sabor mais limpo e ressonante. Ingredientes 1 frango de 2kg cortado em quatro 1 litro de água dividido 4 ramos grandes de salsa (incluindo os talos) 2 ramos de tomilho fresco 1 folha de louro 3 cebolas médias ou 3 alhos-porós médios (apenas as partes brancas e verde-claras) 2 cenouras médias, cortadas ao meio no comprimento e então em pedaços de 2½cm 1 talo de aipo ou ¼ de bulbo de funcho picado 6 dentes de alho médios descascados 1 colher de chá de sal grosso 8 grãos de pimenta-do-reino 3 cravos Utensílios Panela grande, pelo menos 6 litros Peneira ou coador grande Corda culinária Panela para guardar o caldo Escumadeira grande ou pinça Coador fino 1. Coloque o frango na panela grande, adicione 2 litros de água fria (ou o suficiente para cobrir) e ferva. Ao ferver, abaixe o fogo e cozinhe até que a espuma pare de subir, por mais ou menos 5 minutos. Tire a água dessa primeira fervura e descarte. Lave o frango usando a peneira ou o coador. 2. Limpe a panela e coloque 2 litros de água. Amarre a salsa e o tomilho juntos com um pedaço de barbante. Adicione o frango, as ervas, os vegetais, o alho, o sal, os grãos de pimenta e os cravos e deixe ferver bem pouco (você só deve ver uma bolha por vez subindo à superfície) por mais ou menos meia hora. 3. Quando o frango começar a soltar-se do osso, tire os pedaços com pinças ou uma escumadeira grande e deixe esfriar em um coador limpo sobre uma panela. Quando estiver fria o suficiente para ser manuseada, puxe a carne do osso e reserve. Descarte os ossos e a pele (ou, se preferir um caldo mais rico, coloque-os novamente na panela e deixe cozinhar por até cinco horas). 4. Coe o caldo em um coador fino ou um médio forrado com gaze. Descarte os sólidos. O caldo pode ficar 2 ou 3 dias na geladeira (ferva por 2 minutos antes de usar). Ou você pode congelá-lo, deixando uma camada de gordura em cima para selar o sabor.

MJADARA HAMRA DE UMM HASSANE Mjadara vermelho Rende de 8 a 10 porções Tomei algumas liberdades com essa receita. Umm Hassane jamais colocaria especiarias porque em sua aldeia esse prato tem seu sabor unicamente das cebolas caramelizadas. O truque é fazer com que as cebolas atinjam o ponto de queima sem realmente queimá-las. Você mexerá sempre (no início, ocasionalmente, depois quase sem parar) por mais ou menos meia hora. Mas porque os tempos de cozimento variam de acordo com o tanto de água, o frescor e o tamanho das cebolas, recomendo que vigie bem de perto e confie em seus sentidos — olfato, audição e visão — mais do que no relógio. Sua cozinha terá o cheiro do céu quando terminar. Ingredientes 2½ xícaras de lentilhas marrons pequenas 2 xícaras de trigo bulgur* 2 colheres de sopa de sal, divididas, e mais para temperar 8 xícaras de água, e mais conforme necessário 2 xícaras de água fria ½ xícara de azeite de oliva puro (não extravirgem) ½ xícara de óleo de canola 1kg de cebolas (mais ou menos 5 grandes) bem picadas (de 5 a 6 xícaras) 1 colher de chá de coentro moído 1 colher de chá de cominho 1 colher de chá de pimenta-do-reino moída na hora 1 colher de chá de pimenta-de-alepo ¼ de colher de chá de pimenta-da-jamaica ¼ de colher de chá de canela Utensílios Panela média Panela grande de fundo grosso ou panela de ferro Preparando a lentilha Lave as lentilhas e o trigo bulgur separadamente e escorra. Coloque as lentilhas em uma panela média com uma colher de sopa de sal e oito xícaras de água. Deixe ferver e tire a espuma. Cubra a panela e abaixe o fogo. Cozinhe as lentilhas muito lentamente, por cerca de 40 minutos. Mexa de vez em quando, adicionando mais água se necessário. Preparando as cebolas 1. Deixe preparadas 2 xícaras de água fria para jogar em cima das cebolas quando estiverem prontas (no meio do processo você não terá tempo de fazer isso). Aqueça o azeite de oliva e o óleo de canola na panela grande em fogo médio-alto. Quando o óleo começar a chiar, coloque um pouco das cebolas; se chiar bastante, o óleo está pronto. Adicione as cebolas e cozinhe por mais ou menos 5 minutos,

mexendo de vez em quando. 2. As cebolas devem soltar bastante líquido, quase fervendo na mistura de óleo e caldo de cebola. Ainda terão um cheiro forte, parecendo um pouco cruas, por causa da evaporação de gás. Aumente o fogo e mexa o suficiente para que não grude. 3. Depois de 10 a 15 minutos, as cebolas devem ter soltado todo o líquido. Quando começarem a caramelizar, desenvolvendo manchas marrom-avermelhadas nas bordas, abaixe um pouco o fogo e continue mexendo. Agora é uma boa hora para checar as lentilhas. Elas devem estar cozinhando calmamente, inchando aos poucos com o calor. Se estiverem borbulhando, abaixe o fogo e adicione mais água se necessário. 4. Agora as cebolas devem estar douradas por igual e com um marrom mais escuro nas bordas. Comece a mexer com maior frequência — pode ignorar as lentilhas por enquanto — e aumente o fogo. Quando começarem a ficar marrom-avermelhadas e crocantes, quase queimando, certifique-se de que suas duas xícaras de água estão à mão. Não pare de mexer, os próximos minutos são cruciais. Se o telefone tocar, não atenda. 5. Em determinado momento, geralmente de 35 a 40 minutos depois de colocadas no fogo, as cebolas começarão a mudar muito rápido. Elas incharão bastante e começarão a ficar com uma cor marromavermelhada bem escura. Começarão a liberar um aroma parecido com o do bacon, quase de queimado, que caracteriza o mjadara hamra. Assim que isso acontecer, jogue a água fria imediatamente sobre elas, tire-as do fogo e continue mexendo. Elas continuarão a chiar furiosamente por mais ou menos 30 segundos. Continue mexendo até que isso pare. Preparando o mjadara 1. Verifique as lentilhas. Agora elas devem ter absorvido quase toda a água. Se estiverem macias e algumas estiverem começando a estourar, estão prontas. 2. Coloque as cebolas de novo em fogo alto. Quando estiverem fervendo vigorosamente, adicione as lentilhas, as especiarias e água suficiente para cobrir em mais ou menos 1cm. Leve à fervura e deixe fervendo por mais ou menos 10 minutos. 3. Cheque as lentilhas. Elas devem estar bem macias agora, quase desmanchando. Experimente o sal e ajuste. Adicione o trigo bulgur e abaixe o fogo para médio-baixo. Deve estar chiando baixinho, fazendo um barulho confortável conforme o bulgur absorve o líquido. Deixe cozinhar por 10 minutos. 4. Experimente o bulgur. Deve estar macio e mastigável, quase fofinho. Ajuste o sal novamente, cubra bem a panela e deixe descansar em um lugar quente — em fogo bem baixo ou em forno morno (algumas pessoas enrolam em uma toalha) — por pelo menos 1 hora antes de servir. Sirva com coisas ácidas: picles, limões, tomates, tabule. Amo com fattoush, limão e pão árabe integral. Variação Se você gosta muito de cebolas caramelizadas, adicione esse acompanhamento opcional: 2 cebolas grandes, fatiadas em anéis de ⅛cm ¼ de xícara de azeite de oliva ou óleo de canola Frite os anéis de cebola no óleo em fogo médio-alto até ficarem marrom-avermelhadas e crocantes. Cubra o mjadara com elas.

QUIBE NAYEH Quibe cru Rende de 4 a 6 porções Regra número um: não prepare esse prato se não confiar em sua carne. Regra número dois: não compre carne já moída, a não ser que confie muito, muito em seu açougueiro. O método mais seguro é moer você mesmo (veja a receita de cafta, na página 383, para instruções). Regra número três: jamais deixe esse prato descansar, nem mesmo na geladeira. Deve ser consumido imediatamente. Umm Hassane, que não confia nos açougueiros dos Estados Unidos, de início disse que eles não moeriam a carne o suficiente para fazer quibe. — Como você vai fazer quibe na América? — perguntou-me uma vez. — É impossível! Mas então ela descobriu que poderíamos moer nossa carne, em um processador, e desde então só faço quibe assim. Ingredientes 1 xícara de trigo bulgur fino, de preferência do marrom-escuro ½ xícara de cebolas picadas em pedaços grandes ¼ de xícara de folhas de salsa picadas em pedaços grandes ¼ de xícara de folhas de hortelã picadas em pedaços grandes 2 colheres de chá de kamouneh (receita a seguir) 1 colher de chá de sal marinho 1 colher de chá de raspas de laranja ou limão 250g de paleta de cordeiro ou acém bovino, sem gordura e músculo, picados em pedaços grandes Água gelada ¼ de xícara de nozes, pinhões, castanhas-de-caju ou nozes de sua escolha escaldadas Para servir 5 ou 6 ramos de hortelã Várias cebolas pequenas, descascadas e cortadas em quatro ½ xícara de azeite de oliva extravirgem, e mais para temperar Pão árabe Utensílios Peneira de malha fina Tigela pequena Processador Tigela média 1. Lave bem o trigo bulgur, livrando-se de qualquer joio. Escorra-o em uma peneira de malha fina e coloque em uma tigela pequena. Adicione água aos poucos, misturando com as mãos, esfregando os grãos para amaciá-los, até ficarem úmidos, mas não encharcados. Deixe de molho por uma hora. 2. Moa a cebola, a salsa, a hortelã, as especiarias, o sal, as raspas de limão ou laranja e ¼ de xícara de trigo bulgur no processador até obter uma pasta granulada perfumada. Tire do processador e reserve.

3. Limpe o processador, coloque a carne e moa até ficar lisa e quase amanteigada. (Dependendo do seu processador, talvez você precise picar bem a carne antes.) Misture a carne na mistura de bulgur com as mãos, pouco a pouco, amassando com o mesmo movimento que faria em uma massa de pão. Adicione um pouco de água gelada de tempos em tempos (algumas pessoas fazem essa parte no processador com gelo moído, mas Umm Hassane desaprova). O ideal é uma consistência firme e sólida, mas lisa, como argila molhada. 4. Quando tiver alcançado a suavidade desejada, molde o quibe em formato de hambúrguer e marque com um garfo. Coloque as nozes em cima, fazendo desenhos bonitos se estiver inspirado, e decore com ramos de hortelã, pimenta vermelha e pedaços de cebola crua. Despeje o azeite de oliva generosamente até que o quibe fique nadando em uma pequena piscina de azeite. Sirva com pão árabe para alternar mordidas de hortelã e cebola crua e coloque mais azeite de oliva quando começar a secar. Coma imediatamente. (Se sobrar — comigo nunca sobra — você pode fazer bolinhas pequenas, congelar e usar para fazer shawrabet shayrieh.) Nas montanhas do Líbano, onde as pessoas ainda fazem o próprio vinho e o próprio áraque, o quibe nayeh é lavado com uma dose do forte licor de anis. Se você não tiver áraque, experimente raki turco, ouzo grego ou sambuca italiana. Também fica bom com um vinho tinto forte, algo picante e não muito doce. Variações Quibe de tomate Este é um prato camponês clássico para pessoas que não podem comprar carne ou para aldeões que seguem o costume tradicional de luto de não comer carne após uma morte na família ou na vizinhança. 1. Substitua a carne por 2 xícaras de tomates maduros picados. (Você pode descascá-los e tirar a semente se quiser, mas em geral não faço isso.) Salgue um pouco os tomates e deixe descansar por alguns minutos. Coe o suco e reserve. Use o suco para umedecer o trigo bulgur em vez de usar água. 2. Misture o bulgur, as especiarias, as cebolas e as ervas como nas instruções do quibe nayeh. Amasse os tomates com um pilão, adicionando azeite de oliva bem devagar, enquanto mistura o bulgur com as mãos aos poucos. O ideal é que o azeite de oliva emulsione com o restante do suco do tomate, formando uma suspensão aveludada muito parecida com o gazpacho espanhol. Continue adicionando, experimentando o tempo todo, umedecendo com o suco de tomate reservado até conseguir uma mistura com a consistência de tapénade. Sirva como acompanhamento ou meze. Quibe de batata Substitua a carne por 2 xícaras de batatas cozidas ou assadas, amassadas. Use somente as primeiras 5 especiarias (cominho, pimenta-do-reino, pimenta branca, pimenta-da-jamaica e pimenta-de-alepo) no kamouneh e não inclua a salsa, a hortelã ou as nozes. Aumente as raspas de limão para duas colheres de chá e adicione suco de ½ limão. Você também pode ter que aumentar o sal e o azeite de oliva. Quibe de peixe cru Prepare como o quibe nayeh, mas substitua a carne por atum ou salmão cru. Use somente as primeiras 5 especiarias na mistura do kamouneh. Em vez de uma colher de chá de raspas de limão, adicione o suco e as raspas de 1 limão inteiro. Experimente com outras especiarias e temperos — esse prato fica muito bom com

capim-limão e gengibre fresco ralado.

KAMOUNEH Mix de cominho Rende pouco menos de 3 colheres de sopa Kamouneh é um diminutivo para kamoun, cominho. É uma dessas misturas de especiarias levantinas que têm tantas variações quanto o Líbano tem seitas rivais. Em certos bairros de Beirute, idosas vendem kamouneh nas ruas, por quilo, com pimenta separada, para que o comprador possa adicionar a gosto. Hanan compra o seu de um padeiro local, que coloca pétalas de rosa; o da tia Nahla é elegantemente simples: sementes de cominho e pimenta vermelha; e a receita da família de Adessa é ainda mais simples — cominho, pimenta-da-jamaica, pimenta-do-reino e pimenta branca. Eu compro o meu na loja de uma ONG chamada Earth & Company, que coloca dez especiarias, e Ali Fahs faz o seu com no mínimo treze ingredientes. Todos acreditam que a própria versão é a melhor. Estão todos certos. Ingredientes 1 colher de sopa de cominho moído 1 colher de chá de pimenta-do-reino moída na hora 1 colher de chá de pimenta-branca moída na hora 1 colher de chá de pimenta-da-jamaica 1 colher de chá de pimenta-de-alepo Opcionais (mas recomendados) ¼ de colher de chá de canela ¼ de colher de chá de coentro moído ¼ de colher de chá de pétalas de rosa culinárias secas ¼ de colher de chá de manjerona seca ¼ de colher de chá de orégano seco ⅛ de colher de chá de cravos moídos Em uma tigela pequena, misture as especiarias. Adicione ingredientes opcionais como desejar, amassando as pétalas e as folhas secas. Guarde em um lugar seco e fresco.

MLUKHIEH DA UMM HASSANE Juta Rende de 6 a 8 porções Este não é o mlukhieh normal de Beirute (folhas amassadas, carne cozida separadamente, servido com cebolas e vinagre). Este é um mlukhieh ardente, estilo sulista, picante e com bastante alho, com folhas inteiras e frango cozidos juntos e embebidos em suco de limão. Ingredientes 120g de folhas de mlukhieh secas* 4 xícaras de água 4 xícaras de caldo de galinha (página 399) ⅔ de xícara de taqlieh (página 394) 2 colheres de sopa de azeite de oliva 1 cebola picada 3 folhas grandes de acelga 3 colheres de sopa de suco de limão 1 cabeça de alho (de 8 a 10 dentes) descascada 6 pimentas-malagueta 1 colher de sopa de sal marinho, e mais para temperar 2 xícaras de carne de frango cozida do caldo de galinha (página 399) Limões fatiados para servir Opcionais (mas muito recomendáveis) para servir: Pimenta-de-alepo Arroz cozido Utensílios 2 caçarolas ou panelas de ferro grandes Coador Reconstituindo o mlukhieh seco 1. Espalhe as folhas sobre uma superfície limpa e escolha as melhores. Tire os caules e descarte folhas marrons e quaisquer objetos estranhos que encontrar. 2. Ferva 4 xícaras de água. Coloque as folhas em uma panela de ferro ou caçarola e despeje a água sobre elas. Cubra e deixe de molho até esfriar, por pelo menos 1 hora. 3. Lave bem as folhas em água corrente até que a água corra límpida. Escorra e coloque novamente na panela. Adicione o caldo de galinha e deixe ferver. Abaixe o fogo e cozinhe até as folhas ficarem macias, por mais ou menos 2 horas (isso pode variar de acordo com tamanho e idade). Pode ser preciso adicionar mais caldo ou água. Cozinhando o mlukhieh 1. Prepare o taqlieh (página 394). Aqueça as duas colheres de sopa de óleo de canola ou azeite de oliva em uma segunda panela grande em fogo médio-baixo. Adicione a cebola e refogue lentamente, sem

queimar, até ficar marrom e soltar aroma, por cerca de 30 minutos. 2. Aumente o fogo da cebola caramelizada. Adicione o taqlieh e as folhas de acelga e refogue até soltar aroma e começar a chiar, raspando o fundo frequentemente com a espátula para assegurar que não queime. Quando o taqlieh começar a ficar seco e a grudar teimosamente no fundo (cerca de 2 minutos), deglace a panela com o suco de limão. Adicione as folhas de mlukhieh com o líquido, o alho, as pimentas e o sal. Abaixe o fogo e cozinhe até as folhas ficarem bem macias, por mais ou menos 1 hora. Adicione a carne de frango e cozinhe por mais 15 minutos. 3. Como todos os ensopados, este ficará melhor se refrigerado por uma ou duas horas, ou de preferência durante a noite, antes de servir. Reaqueça um pouco e esprema suco de limão generosamente. Para amantes de pratos picantes, salpique pimenta-de-alepo. Geralmente é servido com arroz. Cozinhando o mlukhieh fresco ou congelado Use ½kg de folhas frescas ou congeladas. Pule os primeiros três passos e vá direto para “Cozinhando o mlukhieh”. Depois de refogar o taqlieh, adicione o suco de limão e então o alho, as pimentas e as folhas frescas, virando-as com a espátula para cobri-las com o alho e o coentro. Quando estiverem bem cobertas, adicione 4 xícaras de caldo de galinha e deixe ferver. Abaixe bem o fogo e cozinhe até as folhas ficarem macias, por cerca de 1 hora. Servir conforme instruções acima. Variação Pode ser difícil encontrar mlukhieh. Se você quer experimentar esta receita, mas não encontra mlukhieh, tente o yakhne de espinafre.

YAKHNE SBANEGH Ensopado de espinafre Rende de 6 a 8 porções Ingredientes 1½kg de espinafre fresco, sem talo 2 colheres de sopa de azeite de oliva ⅔ de xícara de taqlieh (página 394) 6 pimentas-malagueta 4 xícaras de caldo de galinha (página 399) 2 xícaras de carne de frango cozida do caldo de galinha (página 399) 1 colher de chá de sal, e mais para temperar Metades de limão para servir Opcional Arroz para servir 1. Se estiver usando espinafre recém-colhido, lave até que todos os traços de areia ou terra tenham desaparecido do fundo da tigela que está usando para lavar. Corte em pedaços grandes. 2. Aqueça o azeite de oliva em uma frigideira funda ou panela de ferro em fogo médio. Adicione o taqlieh e refogue até soltar o aroma e começar a chiar, raspando o fundo com a espátula para garantir que não queime. Quando começar a secar e a grudar no fundo (mais ou menos 2 minutos), adicione as pimentas e então o espinafre, um punhado por vez. Vire o espinafre com uma espátula, cobrindo com o alho e o coentro, até murchar e ficar um verde brilhante, de 4 a 5 minutos. 3. Adicione o caldo de galinha, o sal e a carne. Cozinhe apenas tempo suficiente para que os sabores se misturem, por mais ou menos 5 minutos. Experimente e ajuste o sal. Refrigere por uma ou duas horas, ou durante a noite, antes de servir. Para servir, reaqueça um pouco e esprema suco de limão generosamente. No Oriente Médio, é em geral servido com arroz (e às vezes com pão dormido e coberto com iogurte, como fatteh).

TEBSI BAITINJAN DO ALI SHAMKHI Ensopado de berinjela Rende de 6 a 8 porções Este é meu marga, ou ensopado, iraquiano preferido, uma forma de arte que merece um livro próprio. Algumas pessoas fazem com bolinhos de carne moída temperada (como a cafta, página 383); outros fazem com tiras de carne, como ensino aqui; e muitos fazem sem nenhuma carne. Para a versão vegetariana de Roaa, simplesmente pule a carne e diminua um pouco as especiarias. Ingredientes ½kg de berinjelas ½kg de batatas, descascadas e cortadas em rodelas de 2cm 1 cebola grande, cortada em rodelas de 2cm 1 pimentão verde, sem talo, sem semente e cortado em 4 1 pimentão vermelho, sem talo, sem semente e cortado em 4 ½kg de tomates grandes maduros, sem o miolo e cortados em rodelas de 2½cm Óleo de canola ou outro óleo neutro para fritar ½kg de picanha, cortada contra a fibra em tiras de 20cm de comprimento 1 dente grande de alho, cortado em oito ⅔ de xícara de extrato de tomate 2 tomates maduros, amassados ou ralados (opcional, mas dá ao molho um sabor fresco) 1 xícara de água, e mais se necessário 1 colher de sopa de sal grosso, e mais para salgar berinjelas e para temperar 1 colher de chá de Bharaat iraquiano (receita a seguir), e mais para temperar Utensílios Tigela e prato para deixar a berinjela salgada de molho Caçarola ou panela de ferro grande para fritar Escumadeira ou pinça Tigela para a carne Frigideira funda ou panela média Panela grande e funda que possa ir ao forno (pelo menos 6kg) com tampa 1. Descasque e corte a berinjela em fatias de 2cm. Coloque em uma tigela e tempere com sal. Encha a tigela com água fria e cubra com um prato invertido para que as berinjelas não flutuem (pode ser preciso colocar um peso sobre o prato para que ele afunde — uma tigela com água funciona bem). Deixe de molho enquanto corta o resto dos vegetais. Lave bem e seque com papel toalha. 2. Despeje óleo em uma panela grande para fritar e coloque sobre fogo alto até atingir 180ºC. Frite a berinjela e as batatas em pequenas porções, virando até ficarem douradas, por cerca de 2 minutos. Tire com uma pinça ou escumadeira e deixe secar sobre papel toalha ou saco marrom de papel. Repita com a cebola (90 segundos); o pimentão verde (1 minuto); o pimentão vermelho (1 minuto); e 1 dos tomates fatiados (15 segundos). Frite a carne até ficar marrom, por cerca de 30 segundos, e coloque em uma tigela para pegar o caldo.

3. Transfira 3 colheres de sopa do óleo para uma frigideira funda ou caçarola e aqueça em fogo médioalto. Adicione o alho e refogue até soltar o aroma, por cerca de 1 minuto. Adicione o extrato de tomate e cozinhe, mexendo, até ficar marrom, por cerca de 30 segundos. Adicione 1 xícara de água, a colher de sopa de sal, 1 colher de chá das especiarias, os tomates amassados e o caldo da carne que foi reservado. Abaixe o fogo e deixe cozinhar suavemente. 4. Preaqueça o forno a 180ºC. Coloque o restante do tomate cru no fundo de uma panela grande e funda. Coloque camadas alternadas de carne e vegetais até chegar ao topo, acrescentando uma pitada das especiarias que sobraram sobre cada camada. Experimente o sal conforme prepara. 5. Despeje o molho de tomate e deixe molhar bem. Se necessário, despeje água suficiente para alcançar a parte de baixo da camada de cima. Passe uma espátula pela lateral da panela para distribuir o molho até o fundo. Pressione suavemente o topo com uma espátula ou colher de pau. Leve ao fogão e deixe ferver, depois cubra e asse por 1 hora. Deixe descansar por 30 minutos antes de servir. Sirva com arroz se desejar.

BHARAAT IRAQUIANO Especiarias iraquianas Rende mais ou menos 2 colheres de sopa Ingredientes 1½ colher de chá de grãos de pimenta-do-reino 2 vagens de cardamomo brancas ou verdes 2 frutos de pimenta-da-jamaica 2 cravos inteiros ½ colher de chá de sementes de cominho ½ colher de chá de sementes de coentro 1 pimenta-malagueta, sem sementes e sem talo ¾ de colher de chá de pétalas de rosa secas ¼ de colher de chá de noz-moscada ralada ¼ de colher de chá de canela em pó ⅛ de colher de chá de cúrcuma moída Utensílios Frigideira pesada Moedor de tempero ou pilão Aqueça uma frigideira seca em fogo médio. Adicione os grãos de pimenta-do-reino, o cardamomo, a pimenta-da-jamaica e os cravos e torre até soltarem aroma, por cerca de 2 minutos. Adicione as sementes de cominho e coentro e cozinhe, chacoalhando a frigideira, até começar a tostar, por cerca de 2 minutos (confie em seu nariz — tire as especiarias do fogo se sentir que começaram a queimar). Transfira para um prato para esfriar. Moa a pimenta malagueta e as pétalas de rosa até formar um pó. Misture com as especiarias moídas.

MIGHLI LIBANÊS Rende 8 porções pequenas Esta receita é adaptada de dois cozinheiros espetaculares — a mãe de Georges Naassan, que compartilhou sua receita comigo em uma Noite do Tango, e Rawda Mroue do Côte de Veau (também conhecido como Beiti, que significa “minha casa”), um lugarzinho pequenininho que oferece a melhor comida caseira de Beirute. Ingredientes Pudim 2 xícaras de açúcar 1 xícara de farinha de arroz peneirada 8 xícaras de água fria 2 colheres de sopa de canela em pó 2 colheres de sopa de sementes de algaravia 2 colheres de sopa de sementes de funcho ou erva-doce Calda ¼ de xícara de nozes partidas ao meio ¼ de xícara de amêndoas fatiadas ¼ de xícara de pinhão ¼ de xícara de pistache ½ xícara de coco em flocos Utensílios Panela média Batedor de claras Oito tigelas pequenas Preparando o pudim 1. Misture o açúcar, a farinha de arroz e a água em uma panela média. Leve para ferver, mexendo sem parar com o batedor de claras. Deixe esfriar. 2. Adicione as especiarias e cozinhe, mexendo sempre, até engrossar, por mais ou menos uma hora. Despeje em 8 tigelas pequenas e resfrie, tampado, durante a noite. 3. Misture as nozes e o coco em flocos (você pode tostar um pouco o coco em flocos se quiser). Divida em 8 porções (mais ou menos 2 colheres de sopa cada) e cubra os pudins com elas. * Gosto da marca Cortas. Procure na seção de “comida étnica” em seu supermercado ou em empórios árabes e gregos ou pela internet. ** É difícil de encontrar, mas vale a pena procurar, pois é crocante e tem um gostinho delicioso de limão. É possível encontrar beldroega em feiras de rua, em mercearias étnicas (geralmente com o nome espanhol de “verdolaga”) ou em seu próprio quintal, onde pode crescer como erva daninha. Também é possível substituir por agrião, erva-benta ou quaisquer verdes selvagens que encontre em sua cidade. * Sugiro não comprar a carne já moída. Isso é fácil no Líbano, onde o açougueiro mói a carne na sua frente e adiciona o que você quiser. Nos Estados Unidos, onde nem sempre temos a sorte de ter açougueiros, existe uma alternativa simples e barata: comprar um bom corte de carne e moer em casa no processador. É assim que deve ser feito:

1. Compre qualquer corte de carne de sua preferência (recomendo acém bovino ou paleta de cordeiro). Tire qualquer cartilagem ou pedaço de osso. Você pode deixar um pouco da gordura se desejar ou pode deixar seus bolinhos de carne bem magros — essa é a beleza de moer a própria carne. 2. Corte a carne em pedaços pequenos o suficiente para seu equipamento. Pulse algumas vezes no processador, o suficiente para que comece a grudar. Moa um pouco mais se quiser um bolinho de carne mais denso e de grãos mais finos, ou deixe com pedaços maiores se preferir. Reserve o sumo para a sopa. Pique bem a salsa e o tomate seco (se tiver mais um pouco, guarde para a sopa). * O segredo mais importante do prato são boas favas. As favas devem ser pequenas, mais ou menos do tamanho de feijões-pretos, e de cor marrom-clara. (As que têm a pele vermelha são velhas; você pode cozinhá-las, mas leva muito tempo e o gosto não fica muito bom.) Os grãosde-bico devem ser os menores que você encontrar. * Aproximadamente ⅔ de xícara secos. Para método de cozimento, veja a receita de foul mdamas, na página 385. * Quando cozinheiros árabes preparam frikeh, eles quase sempre usam trigo verde tostado que foi parboilizado e quebrado — não o grão de trigo verde tostado integral que é geralmente rotulado nos Estados Unidos como frikeh. Essa receita exige o tipo quebrado. O melhor lugar para comprá-lo é em empórios árabes, mas também é possível comprar on-line (procure por freek, farik, frik, frick, fareek, freekeh, fareekeh, e quaisquer outras grafias em que você pensar). * A maior parte do trigo bulgur disponível nos mercados é do tipo dourado. O bulgur marrom-escuro (geralmente importado do Líbano ou da Síria) tem um valor nutricional maior e um sabor mais robusto que combina mais com esse prato. É possível encontrá-lo em empórios árabes ou on-line. * É possível encontrar mlukhieh em mercearias árabes e on-line com os nomes mlukhieh, melokhiya, melokhia, malikiya, ou escrito de várias outras maneiras; também é possível encontrar pelo gênero Corchorus. É conhecido nas Filipinas como saluyot.

Glossário DIAS DE MEL APRESENTA AOS LEITORES não árabes algumas das palavras que conheci e (na maioria dos casos) aprendi a amar. Muitas dessas palavras são do árabe coloquial, que varia em muito da língua escrita. Por esse motivo, quase sempre escrevi as palavras foneticamente, em vez de tentar representar as letras arábicas de maneira literal, algumas das quais não apresentam equivalente no alfabeto romano. Ao balancear a consistência ou a transliteração fiel com legibilidade, valorizei sempre o segundo. E pelo bem da compreensão traduzi expressões idiomáticas árabes para seus equivalentes mais próximos. ain Primavera, manancial ou olho (entre outros significados). ajnabi (masculino)/ajnabieh (feminino)/ajanib (plural) Estrangeiro, alienígena(s). akil Comida (da raiz akala, “comer”). allah Palavra árabe para Deus (literalmente, “o deus”) que data de antes do islã. Usada por muçulmanos, cristãos, judeus, bahaístas e outras religiões abraâmicas. áraque Uma bebida alcoólica límpida feita com anis e, às vezes, outros ingredientes. Em geral destilada de uvas no Líbano e tâmaras no Iraque. Tradicionalmente servida com meze, em especial quando feito com carne vermelha. arous 1. Uma noiva. 2. Um sanduíche de pão árabe enrolado em volta de labneh e pepino, zaatar, queijo ou outros recheios. balad 1. País, cidade, comunidade. 2. Centro (coloquial). banadura Tomate ou tomates. Do italiano pomodoro. beduíno Palavra inglesa, derivada do árabe, para membros ou descendentes de tribos nômades dos desertos do Oriente Médio ou do norte da África. boub al-kusa Dialeto do sul do Líbano para designar o interior de uma abobrinha oca. De lub, coração ou cerne. cafta Carne moída misturada com especiarias, cebolas e ervas e em formato de bolas, pastéis, tubos, kebabs ou outras formas. cafta bi saynieh No Líbano, bolas ou pastéis grandes de cafta assados em uma bandeja com vegetais (geralmente tomates, batatas e pasta de tomate). charia Lei islâmica. dahiyeh 1. Subúrbio ou periferia. 2. Em Beirute, abreviação de “o Cinturão da Miséria”, uma constelação de municipalidades ao sul dos limites da cidade, agora habitado majoritariamente por xiitas. dajaj Frango. daymeh Sempre (também se pronuncia dayman). Usado em expressões como “daymeh, inshallah”, sempre, se Deus quiser. diwan Entre outros significados, uma sala de visitas para entreter convidados ou ter reuniões com o público (coloquial). druso Uma seita heterodoxa do islã encontrada principalmente no Levante. Originada como ramificação mística do xiismo ismaelita, uma divisão do islã xiita. duaa 1. O ato de recorrer a Deus ou evocá-lo em uma variedade de situações. 1. A própria invocação. fallaheen Trabalhadores rurais camponeses ou arrendatários. faqir (masculino)/faqirah (feminino)/fuqara (plural) 1. Pobre, ou os pobres. 2. Pé no chão, que não é esnobe (coloquial).

fatayer Massa de pão assada recheada com carne, queijo ou vegetais. fattoush Salada levantina feita com pão árabe esmigalhado; (de fatta, esmigalhar ou quebrar em pequenos pedaços). fatteh Uma variedade de pratos de pão fatiado feitos com pão árabe esmigalhado; uma base de carne ou vegetais; e geralmente coberto com iogurte com alho. fawal Que faz foul. fesenjoon Um prato iraniano de carne (geralmente uma ave) ensopada em molho de nozes picadas e romã. Também comum no sul do Iraque e no sul do Líbano. foul 1. Favas, geralmente secas. 2. Abreviação comum de foul mdamas. foul akhdar 1. Favas frescas (literalmente, “favas verdes”). 2. O prato feito com favas frescas inteiras refogadas com cebolas, alho e coentro. foul mdamas O prato feito com favas secas cozidas até ficarem macias e amassadas com alho, suco de limão, azeite de oliva, especiarias e, às vezes, grão-de-bico ou outros ingredientes (literalmente, “favas enterradas”). frakeh Um prato de carne crua misturada com trigo bulgur e especiarias, comum no sul do Líbano. Da mesma raiz (faraka, “esfregar”) que o frikeh. frikeh (também freek, farik, farikeh etc.) 1. Trigo verde tostado ao fogo, geralmente quebrado para armazenamento e preparo mais fáceis. 2. O prato de trigo verde tostado cozido com carne, caldo e especiarias. furn 1. Um forno, principalmente de assar pão. 2. Uma padaria do bairro (coloquial). ghanouj (masculino)/ganoujah (feminino) Uma pessoa paqueradora, provocante. hadarah Civilização, principalmente civilização estabelecida; o oposto de nomadismo. Em geral denota modernidade ou vida urbana. hajj A peregrinação a Meca, um dos cinco pilares do islã, que todos os muçulmanos devem fazer uma vez na vida. hajj (masculino)/hajji (masculino ou feminino)/hajjieh (feminino) Títulos honoríficos dados a muçulmanos que fizeram a hajj (e geralmente usado para abordar pessoas mais velhas, mesmo que elas não a tenham feito, como sinal de respeito). No Iraque, um homem que fez a hajj é um Hajji, enquanto uma mulher é uma Hajjieh; no Líbano, os títulos mais usados são Hajj (para homens) e Hajji (para mulheres). halal Qualquer coisa admissível, principalmente de acordo com o islã (geralmente usado para comida). hamudh 1. Qualquer coisa azeda ou ácida. 2. Limões ou suco de limão (coloquial). haraam Qualquer coisa proibida, principalmente de acordo com o islã. hijab 1. Véu, tela, cortina ou outras coisas usadas para esconder, proteger ou fechar. 2. A peça de vestuário, geralmente um lenço, usado para esconder os cabelos, o pescoço e o corpo da mulher. hindbeh 1. Chicória, dentes-de-leão e outras verduras amargas silvestres. 2. O prato de verduras amargas salteadas com azeite de oliva, alho e cebolas caramelizadas. homus 1. Grão-de-bico. 2. Abreviação universal para homus bi tahinah, o prato de grãos-de-bico triturados com tahine, alho e suco de limão. homus fatteh Fatteh feito com grão-de-bico. iftar Literalmente, “quebrar o jejum”; o jantar que quebra o jejum do dia durante o mês do Ramadã. inshallah Se Deus quiser (literalmente, “in shaa Allah”, se for da vontade de Deus). jabalieh Literalmente, “vindo da montanha” ou “da montanha”. Geralmente usado para descrever frutas, vegetais ou pratos de região montanhosa. jajik Uma salada de iogurte, pepino, alho e ervas picadas (geralmente hortelã). Uma versão ligeiramente diferente aparece em livros de receita iraquianos medievais.

jazar Cenoura (coloquial). jizr 1. Raiz ou caule. 2. Raiz de três ou quatro letras da maioria das palavras árabes. kamouneh 1. A mistura de especiarias que tem por base o cominho, adicionada ao quibe nayeh; um diminutivo de kamoun (cominho). Também chamado de tahweeshet kamouneh. 2. No sul do Líbano, uma mistura de trigo bulgur, especiarias e vegetais amassados que pode ser comida sozinha ou adicionada à carne crua para fazer quibe nayeh. kan ya ma kan Tradutores e linguistas dão a essa frase origens e significados diferentes. Alguns traduzem como “kan yama kan”, que significa algo como “era uma vez” ou “há muito, muito tempo”. Outros consideram que seja “kan ya makan”, que seria algo mais para “houve um lugar”. Alguns a relacionam à velha frase clássica “kan fi makan fi qadim al-zaman”, que significa algo como: “Era uma vez um lugar”. Outros ainda traduzem como “kan ya ma kan”, “era e não era”. katab al-kitaab Um contrato de casamento islâmico. (Literalmente, “escrever o livro” ou “escrever o contrato”.) khadarji Um verdureiro. khubaizeh Malva sylvestris, uma malva verde de folhas grossas que cresce selvagem no Levante. Seu nome vem da maneira como suas folhas redondas lembram khubz Arabi, pão árabe. kubbet hammudh Kubba iraquiano é servido com uma sopa de vegetais azeda e limão. kunya Sobrenome; também apelido, geralmente derivado do nome de um filho primogênito ou uma característica pessoal. labneh Iogurte coado. lahmajin Pão do tipo pizza coberto com carne moída, especiarias e ervas e assado em um forno quente. (De lahme bi ajin, carne com massa.) maal asaf Literalmente, “com pesar”. No dia a dia usado com o significado de “sinto muito” ou “ai de mim”. makdous Berinjela baby recheada com nozes, alho e pimenta e conservada em azeite de oliva. manoushi (singular)/manaeesh (plural) Pão levantino tipo pizza assado com uma variedade de coberturas, sendo a mais comum a mistura de azeite de oliva e zaatar. (Literalmente, “o pintado” ou “o gravado”, devido aos recheios do pão.) maqlubeh Uma caçarola de vegetais, carne e arroz. Ingredientes variam de acordo com a região, mas é quase sempre servido de cabeça para baixo (literalmente, “o invertido”). marga 1. Caldo. 2. Em árabe iraquiano, qualquer um de uma variedade de ensopados feitos com carne, vegetais, frutas ou todos os três. (Também marag.) mashawi/mashweeyat Carnes grelhadas, em dialeto levantino e iraquiano, respectivamente. masquf Peixe grelhado iraquiano; literalmente, “o coberto”, de saqf, teto. mdepress (masculino)/mdepressa (feminino) Conjugação do árabe coloquial da palavra inglesa depressed (deprimido/a). metawali Um termo depreciativo para designar xiitas, que data dos tempos otomanos, e geralmente usado entre xiitas libaneses como forma de criar laços. meze Uma constelação de antepastos, tanto quentes quanto frios, parecidos com tapas. Geralmente servidos no início de uma refeição, em grupos grandes, ou em restaurantes e bares. mfarakeh Literalmente, “o esfregado” (da mesma raiz de frikeh). No Líbano, se refere a vegetais cortados em pedaços pequenos e salteados com ovos. mhalabieh Um pudim em geral feito com leite, açúcar e maisena, aromatizado com água de rosas, pistaches e cardamomo. Literalmente, “o leitado”. mjadara Um prato antigo de lentilhas e grãos (literalmente, “o pintado”, devido às lentilhas no meio dos

grãos). Também chamado de “o preferido de Esaú”, o que reflete a crença de que seria o “prato de lentilhas” mencionado na Bíblia pelo qual Esaú vendeu seu patrimônio para seu irmão Jacó. mjadara hamra Um mjadara antigo de vilarejo, comum em especial no sul do Líbano, feito com trigo bulgur e cebolas caramelizadas vermelho-escuras (literalmente “mjadara vermelho”). mlukhieh 1. Colchorus olitorius, a juta conhecida em inglês como Jew’s Mallow e nas Filipinas como saluyot. 2. O ensopado feito com folhas de mlukhieh e carne (geralmente frango ou cordeiro, mas em regiões costeiras às vezes com camarão ou frutos do mar). mtabal Termo árabe, comum no Líbano, do prato de berinjela assada também conhecido como baba ghanouj. (Literalmente, “o apimentado”.) mutah Literalmente, “prazer”; abreviação de zawaj mutah, ou “casamento do prazer”, uma forma de casamento temporário praticada em especial pelos xiitas. nafis Alma, psique, apetite, identidade, animação, desejo (entre outros significados). peshmerga Termo curdo que designa os combatentes de guerrilhas; literalmente, “aqueles que enfrentam a morte”. qarnabeet Couve-flor. qifa nabki Literalmente, “alto!, e choremos”. Uma frase que ficou famosa com o poeta pré-islâmico Imru alKays. Muito usada para zombar gentilmente da nostalgia ou do sentimentalismo, em especial por coisas que podem nunca ter existido. quibe Um prato levantino de cereal (no Líbano, geralmente trigo bulgur) normalmente misturado com carne moída bem fina. Pode ser feito em bolas recheadas com carne moída, pinhão e especiarias (quibe qras); em camadas de carne moída em uma bandeja (quibe bi saynieh); ou servido cru (quibe nayeh), entre outras formas. A versão iraquiana é chamada de kubba e pode ser feita com jécula ou arroz moído. sahtein Literalmente, “saúde dupla”. Usado como “a sua saúde” ou “bom apetite” para cumprimentar alguém que está comendo, prestes a comer ou acabou de terminar uma refeição. sayadieh Peixe servido com arroz apimentado e molho de tahine. sayyid 1. Um descendente masculino direto do profeta Maomé. 2. Um clérigo xiita. servees No Líbano, um táxi compartilhado. Da pronúncia francesa de “service”. shajar 1. Abobrinha, no dialeto iraquiano. 2. Uma árvore, no dialeto libanês. shawrabet shayrieh Sopa de macarrão. shish taouk Termo turco, muito usado no Levante, para kebab de frango. shu baarifni Literalmente, “O que eu sei?”. Em geral usado com o significado de “Não pergunte para mim!” ou “Como é que vou saber?”. souq (também souk) Um mercado ou bazar, principalmente uma feira de rua. suhoor A refeição feita de madrugada pelos muçulmanos antes das orações do amanhecer e para iniciar o jejum do dia durante o Ramadã. sujuk Uma linguiça pequena seca e temperada, de origem supostamente armênia, encontrada desde a Ásia Central até o Leste Europeu. tabeekh Refeições feitas em casa em uma tabkha por tradição, em geral uma panela. Literalmente, “cozinhar”. tabule Salada levantina de salsa, tomates, hortelã e cebolinha-verde picados e trigo bulgur. tanoor Um forno cilíndrico com o topo aberto, geralmente usado no Oriente Médio para assar pão. Quase idêntico ao tinuru mesopotâmico antigo, ao tanura iraquiano e ao tandoor sul-asiático. tashreeb Uma antiga sopa beduína, amada pelo profeta Maomé, feita com pão esmigalhado coberto com carne e caldo. Também chamada de thareed. walimah Banquete. Geralmente usado para casamentos ou celebrações que duram dias.

wasta 1. Um intermediário ou mediador para exercer influência em nome de alguém. yakhne Ensopado de vegetais de cozimento lento, com ou sem carne, encontrado desde o leste do Mediterrâneo até o sul da Ásia. yaprakis Termo turco para folhas de uva recheadas (de yaprak, folha). zaatar 1. Um termo abrangente para uma variedade de ervas mediterrâneas, desde o Origanum Syriacum (orégano sírio) até a Satureja Hortensis (segurelha). 2. O pó marrom-esverdeado feito com sal, sumagre, gergelim e as folhas secas de várias ervas conhecidas como zaatar (e outros ingredientes dependendo da região).

Bibliografia selecionada PARA ESSA BIBLIOGRAFIA SELECIONADA e muito subjetiva, deixei deliberadamente de lado os best-sellers de Thomas Friedman e de Robert Fisk em nome de livros menos conhecidos, mas da mesma forma importantes, de autores como Sami Zubaida, Zuhair al-Jezairy, Fawwaz Traboulsi e Hanan al-Shaykh. De maneira semelhante, quem está familiarizado com a culinária do Oriente Médio já conhece Claudia Roden e Paula Wolfert. Aqui estão incluídos livros de receitas de Sonia Uvezian, Nawal Nasrallah, Malek Batal e Barbara Abdeni Massaad. Sahtein. FICÇÃO E NARRATIVA PESSOAL ABINADER, Elmaz. Children of the Roojme: A Family’s Journey from Lebanon. Michigan: University of Wisconsin Press, 1997. AWWAD, Tawfiq Yusuf. Death in Beirut (Publicado em árabe como Tawaheen Beirute ou “Moinho Beirute”). Washington: Three Continents Press, 1984. FASSIHI, Farnaz. Waiting for an Ordinary Day: The Unraveling of Life in Iraq. Tennessee: Public Affairs, 2008. HAGE, Rawi. De Niro’s Game. Nova York: Harper Perennial, 2008. JEZAIRY, Zuhair al-. The Devil You Don’t Know: Going Back to Iraq. Londres: Saqi, 2009. KADI, Joanna (org.). Food for Our Grandmothers: Writing by Arab-American and Arab-Canadian Feminists. Massachusetts: South End Press, 1994. KING, Alan. Twice Armed: An American Soldier’s Battle for Hearts and Minds in Iraq. Minnesota: Zenith Press, 2006. MAALOUF, Amin. O rochedo de Tanios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. MAKDISI, Jean Said. Beirut Fragments: A War Memoir. Nova York: Persea, 1999. SAMMAN, Ghada. Beirut ’75. Arkansas: University of Arkansas Press, 1995. SHAYKH, Hanan al-. Beirut Blues. Nova York: Anchor, 1996. _______. The Locust and the Bird: My Mother’s Story. Nova York: Pantheon Books, 2009. STARK, Freya. Baghdad Sketches. Massachusetts: Marlboro Press, 1996. YAHIA, Mona. When the Grey Beetles Took Over Baghdad. Londres: Peter Halban, 2000. HISTÓRIA E NÃO FICÇÃO

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Lebanese

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Recipes

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Índice A abacates abayas Abdelghanim (merceeiro) Abdullah (professor) Abel abobrinha Abu Abed Abu Ghraib Abu Hadi (Bassam Badran) Abu Hassan (restaurante) Abu Hassane Abu Hussein Abu Ibrahim (Mohamad Ali Sadi Gul) Abu Nuwas Abu Nuwas (rua) Abu Rifaat Abu Shadi Abu Zeinab acadianos Acordo de Taif Adessa (amiga) Adnan (motorista) Aeroporto Internacional Rafic Hariri Afeganistão Afghan Kebab House agricultura Ain al-Mreiseh Ainata, Líbano akil nafis Al-Akhbar al-Amin Al-Balad (restaurante) albóndigas Albright, Madeleine al-bunduqieh álcool Al Dour, Iraque Alemanha Alexandria, Egito

Aley, Líbano Al-Hayat (jornal) al-hijab al-shaitany Al-Hilwa di Cou Cou alho verde Al-Hurra (televisão) Ali Ali (editor/poeta) Ali Babás Ali Fahs Al Jazeera (televisão) Al-Jezairy, Zuhair Al-Manar (televisão) Al-Mutanabbi (poeta) Al-Najeen Al-Qaeda Al-Rasheed (teatro) Alwiya Club Amã, Jordânia Amal, Dra. Amal (milícia) Amal (vizinha) Amiram (amigo) Amneh, Maher Andalus (hotel) An-Nahar Ansari, xeque Khidayer alAoun, Michel Apicius árabes Arábia Saudita Arab Tribes of the Baghdad Wilayat áraque Arasat (bairro) A revolução dos bichos (Orwell) Aristófanes Aristóteles arous Aruru Ashrafieh (bairro) ashura (pudim) Ashura (ritual religioso) Askari (santuário) As mil e uma noites Assad (família)

Assad, Bashar alassírios Assurbanípal Assurnasirpal atum Avenida da Morte Awada, Muhammad Awlad Haratina (Mahfouz, em inglês, Children of the Alley) Awwad, Tawqif Yusuf azeite de oliva B Baalbek (rua) baba ghanouj Bab Idriss babilônios baclavas Baçorá, Iraque badawah (beduinismo) Bagdá cafés cosmopolitanismo hotéis livrarias ocupação americana período medieval quedas de energia restaurantes trabalhadores estrangeiros vida intelectual Zona Verde Zona Vermelha bagre Bahi (demonstrador) balila Balsam (vizinho) bamieh banadura shamee (tomates damascenos) bananas Banco Mundial Bang & Olufsen banjan burani baqqals Barbar (restaurantes)

Barbara (amiga) barbo Bardo (bar) barganha Barmakids Baromètre (café) Barwari, Nisrine Batata wa bayd mfarakeh Batatu, Hanna Batoul (parente dos Bazzi) Bauhaus Bazzi, Ahmad Bazzi, Hanan Bazzi, Hassan Bazzi, Hassane Bazzi, Mohamad aniversário casamento com a autora como chefe da cobertura do Oriente Médio do Newsday como jornalista namoro com a autora personalidade beduínos Beirute abastecimento de água bombardeios cidade das tendas Corniche cosmopolitanismo dahiyeh população sunita população xiita Bekaa Valley Ben (radialista) berinjelas Berkeley (hotel) Berri, Nabih Betsy (amiga) bharaat Bíblia Bikfaya, Líbano bin Laden, Osama Bint Jbeil, Líbano Bishara al-Khoury (rua) bizantinos

Bliss (rua) bolani kashalu bolo de milho Boswell, James Bottéro, Jean boub al-kusa Bremer, L. Paul Bristol (hotel) Buda Buddha (bar) burgul burgul wa banadura Bush, George W. (filho) Bush, George H.W. (pai) C café cafta bi saynieh Caim Cairo calda de nozes amanteigadas califado abássida califa fatímida califas Canja de galinha para a alma Cara (amiga) carne cozida Carver, Raymond católicos cebolas caramelizadas Cedars (hotel) censura Central Intelligence Agency (CIA) Centro de Diversões Barbarella Centro de Mulheres Zainab al-Hawraa cerveja cesta de ovos cevada Chaghhayni, Mahmud bin Mohamed alChalabi, Ahmed Chandler, Raymond charia (lei islâmica) Chechênia Chez André (bar)

Chidiac, May Childe, Gordon Child, Julia Children of the Alley (Mahfouz) Chipre Christian Science Monitor, The. Ciezadlo, Annia aniversário casamento como freelancer cozinheira em Amã em Bagdá em Bloomington, Ind em Nova York em Overland Park, Kansas lua de mel no Iraque saudade de casa visitando Karbala Clinton, Hilary Rodham Club Social Coalizão cogumelos Commodore (hotel) comunismo Connie (tia-avó da autora) Conselho de Governo Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque contrato social cópias samizdat Corão cordeiro Corniche Corniche al-Mazraa Costa do Marfim Crescente Fértil cristãos cristãos maronitas Cruelty and Silence (Makiya) Cruzadas Cruz Vermelha curdos curry

D Dabbous, Rabih Damasco David, Elizabeth Death in Beirut (Awwad) Deb (radialista) decapitações Delights from the Garden of Eden (Nasrallah) De re coquinaria, Sobre a culinária (Apicius) Deus Didion, Joan Diógenes dispositivos explosivos improvisados divórcio dolma Dos Passos, John dotes E Economist, The Egito Eido, Walid elamitas Elwi, Laila emmer Enkidu ensopado de abobrinha ensopado de frango ensopados Era de Ouro do Islã Esaú escabeche Eufrates (rio) exército islâmico no Iraque Exército Mahdi Êxodo, Livro do F Fairbanks, Douglas Fairouz Faisal (tradutor) Faisal I, rei do Iraque falafel

Falange fallaheen Fallujah, Iraque faqirah Faqmah (sorveteria) farinha farro fatayer Fatfat, Ahmad fatiha Fatih Kashif al-Ghitta, xeque Fatima (refugiada) fatteh fattoush favas fawal Feast: Why Humans Share Food ( Jones) Federal Bureau of Investigation (FBI) feiras fesenjoon Few Things I Know About Glaf kos Thrakassis, The (Vassilikos) Field, Sally figo Filipinas Firdous (praça) firni Folhas de relva (Whitman) folhas de uva Food Heritage Foundation Forbes Forças de Defesa de Israel foul akhdar foul mdamas França frango frango tandoori frikeh dajaj funcho furn fuzileiros navais dos EUA G Gabriel (anjo) gergelim

ghanouj Ghazi, rei do Iraque Ghobeireh (interseção) Gilgamesh Gillerman, Dan Goldwasser, Ehud Grande Depressão grão-de-bico Grécia Gropius, Walter Guardas Republicanos Guerra do Golfo Guerra dos Hotéis Guerra do Vietnã Guerra Fria Guerra Greco-Turca Guerra Irã-Iraque Gula, Sharbat H Habib’s (restaurante) Habiby, Emile hadarah hadiths Hajar, Basim al- (dramaturgo) hajjis Hajj Naji (parente dos Bazzi) Hajj Salim hakawati Halabja (ataque com gás venenoso, 1998) hamudh Hamurabi Harder They Fall, The (Schulberg) Haret Hreik (bairro) hashishet albahar Hawza al-Ilmiya Hayy al-Jamia (bairro) Healthy Basket (mercado) Heródoto Hezbollah hijab hindbeh Hinkle’s Hamburgers History of Islamic Societies, A (Lapidus)

Hulagu Humbaba hush puppies husseinieh Hussein, Imam Hussein, Saddam Hussein, Uday I Ibn Khaldun Império Otomano Índia Institute for War & Peace Reporting internet iogurte Irã Iraque bandeira centros de mulheres governo Baath invasão americana mudança de regime população sunita população xiita sanções das Nações Unidas islã Israel J Jackson (radiorrepórter) Jacó Jadriyah (bairro) jajik Jamal Pasha Japão Jardim Sanayeh Jew’s mallow jihad Jordânia judeus julepo de hortelã K

kaak Kadafi, Muammar Kaf ka, Franz kamouneh katab al-kitaab kebab kebab de frango kebab de peixe kebab shish khadarjis (verdureiros) Khadija (tia Bazzi) Khafaji, Salama Hassoun alkhamsin khubaizeh King, Alan Kinshasa Kirkuk, Iraque kishk al-fuqara kubba kubbet hamudh Kuwait L labneh lança-granada-foguete La Perla (loja) Lapidus, Ira Lawrence, T. E. Layla (amiga) Laylak (filha de Reem) Leena (amiga) lei da exclusividade Lei de Estatuto Pessoal (1959) Lewinsky, Monica Líbano censo cessar-fogo guerra civil intifada da independência (Revolução do Cedro) invasão israelense (1978) invasão israelense (1982) Mandato Francês sistema de governo confessional terremoto Líbia

Liga Árabe língua árabe língua francesa língua inglesa língua persa Linha Verde Lisístrata (Aristófanes) Loghmaji, Wardeh Lurpak (manteiga) M macarrão macarrão à puttanesca maçãs Mahar (peixaria) Mahatma Gandhi (rua) Maher (diretor cinematográfico) Mahfouz, Naguib majlis taziyeh Makdisi (rua) makdous Makiya, Kanan Malik al-Batata (restaurante) Mallat, Chibli manaeesh Manara (bairro) Mansour (bairro) Mansur, califa almanteiga de maçã Marrocos Marrouche (sanduicheria) Marsh Arabs, The (Thesiger) mashawi masquf Massaya (vinho) mdepress Meca Medicine of the Prophet, The (Chaghhayni) Medina Mediterranean Feast (Wright) Melville, Herman Mesopotâmia mesquitas meze

mighli mjadara hamra mlukhieh Moby Dick (Melville) Moderne (açougue) Mohammed, Yanar Moises (fotógrafo) mongóis Monroe, Marilyn Morrison, Jim mouneh Movimento do Futuro Movimento dos Desapossados Movimento Patriótico Livre Movimento Slow Food msabbaha Mughnieh, Imad mulheres centros de iraquianas libanesas marroquinas salários Munir (amigo) Musafir (hotel) Museu Nacional do Iraque Mutanabbi (rua) N Nabatiyyeh, Líbano Naboulsi, Hussein Nabucodonosor Nações Unidas Najaf, Iraque Najib Ardati (rua) Natal National Geographic National Public Radio (NPR) Newsday New York Daily News New York Times Nixon, Richard M. Noé Noite do Tango

nômades noomi basra Nunca sem minha filha Nuvens, As (Aristófanes) O Ofensiva do Tet oferta de pão e sal Olmert, Ehud Omar, Manal Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) Oriente Médio Orwell, George Othman ibn Affan Oumashi, Salwa ovo apimentado P padarias Palestine (hotel) palestinos pão pão árabe pão de soda irlandês Paquistão Paris Partido Baath Partido Comunista Iraquiano Partido Socialista Progressivo Partido Social Nacionalista Sírio Pearl, Daniel pedintes peixe pesto Peterson, Scott Philby, Kim picles Pigeon Rocks pilafes pinhão Playboy Conspirador poços Poe, Edgar Allan poligamia

Polônia pombos pousada Porthole praça dos Mártires praça Riad al-Solh Primeira Guerra Mundial Produto Interno Bruto (PIB) programa Oil-for-Food prostituição Província de Al-Anbar, Iraque pudim de caqui Q Qadisiya (bairro) Qom, Irã queijo quiabo quibe quibe nayeh quibe qras qurus R Rahbani, Ziad Ramadã ramadas Ramadi, Iraque Raphael House Ras Beirut (bairro) Raw and the Cooked, The (Harrison) Reagan, Ronald Rebecca (amiga) Reem (amiga) Regev, Eldad Regulamento das Disputas Tribais Revolta Árabe Revolução do Cedro revolução islâmica Revolução Neolítica Rice, Condoleezza Roaa (tradutora) rocambole de frango romãs Royal Flush

Rubini, Daniel L. Runcible Spoon (café) Rutba Wells Rym (jornalista) S saaj Sadat (rua) Sadr City Sadr, Muqtada alSahadi (mercearia) Sahat al-Nijmeh (praça Estrela) sahtein Saifi Village Salaam (amigo) Salama, dra. saluyot Samarra, Iraque Sanatruq I, rei de Hatra sangria Sapos, Os (Aristófanes) Saura, Carlos Schulberg, Budd Secret Life of Saeed, the Pessoptimist, The (Habbiby) Sehnaoui, Nada Shaalan, Hussein Ali al- (xeque) shabab Shabab TV Shahbandar (café) Shaitan (gata da autora) Shamkhi, Ali shawarma shawrabet shayrieh Sheldon, Sidney Sheraton (hotel) shish taouk show de Truman, O Sidani (rua) sikbaj Simplon-Orient-Express síndrome de Tourette Siniora, Fouad sionismo Síria

Smith’s (mercearia) sohan Solidère Sonbol, Amira souq Souk El Tayeb Sporting (clube) Stahl, Lesley Stark, Freya Sting Burger subhieh sufrah suleiman’s pilaf sumérios Sumer Land (hotel) Sunnyside (bairro) T Taanayel (iogurte) tabeekh tabkhet bahas tabule tahine tahweeshet kamouneh Taif, Arábia Saudita Talibã tâmaras tamareiras tanoor tapetes de oração taqiyah Tareeq al-Jadideh (bairro) tashreeb Taurus-Express Tayuneh (bairro) Tchecoslováquia tebsi baitinjan Teixeira, Pedro terços terrorismo Thesiger, Wilfred Thomas, Bertram Tibnin, Líbano Tigre (rio)

tinuru Tito ( Josip Broz) T-Marbouta (café) tomates tomates jabalieh Torn Bodies (dra. Amal Kashif al-Ghitta) torta de banana tortilla tortura Triângulo da Morte Tueni, Gibran Tunísia Turquia TV Future tzatziki U Umm Adnan Umm Hassane Umm Paula Uncle John’s Bathroom Reader Universidade Americana de Beirute Universidade de Bagdá Universidade de Georgetown Universidade Hebraica Uruk Usama (amigo) V Vassilikos, Vassilis verdureiros Viccini Suites vinho W Wadi Abu Jamil Walimah (restaurante) Wall Street Journal Wardi, Ali alwasta Watergate (escândalo) Wendy (amiga) Western Queens Gazette

West, Kanye White Palace (restaurante) wilayat al-faqih Wolfert, Paula Women Accepted for Volunteer Emergency Service (WAVES) Women for Women International Wright, Clifford Y yakhnes yakhne kusa yakhne sbanegh yaprak Yazid youm aasl, youm basl (dias de mel, dias de cebolas) Younes (café) Z zaatar zaeems Zainab (parente Bazzi) Zaire Zaiter, Sheahdeh Zangas, Robert Zarif (bairro) Zico House Zona Verde Zubaida, Sami zuhurat Zulfikar (espada) Zuqaq al-Blatt

COORDENAÇÃO EDITORIAL Izabel Aleixo PRODUÇÃO EDITORIAL Mariana Elia REVISÃO DE TRADUÇÃO Ana Lúcia Kronemberger REVISÃO Ricardo Freitas Mariana Oliveira INDEXAÇÃO Marília Lamas PROJETO GRáFICO DA VERSÃO IMPRESSA Priscila Cardoso DIAGRAMAÇÃO DA VERSÃO IMPREESSA Filigrana
Annia Ciedzadlo - Dias de Mel - Uma História de Amor, Guerra e Pratos

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