Adolfo Casais Monteiro - A Palavra Essencial - Estudos Sobre a Poesia

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estudos sobre a poesia

A PALAVRA ESSENCIAL A

palavra essencial representa mais uma

importante

contribuição de

Adolfo

Casais

Monteiro à moderna crítica literária brasi¬ leira, à qual traz o fruto de suas pesquisas e estudos no campo da literatura, iniciados há mais de 30 anos, em Portugal. Crítico já consagrado, conhecedor do difí¬ cil e tantas vêzes ingrato terreno em que de¬ senvolve

sua

atividade

profissional,

Casais

Monteiro já de há muito se impôs com se¬ gurança ao público leitor brasileiro, através de sua extensa colaboração na imprensa. E é justamente dessa faina jornalística que par¬ tiu o Autor para a organização do presente volume, que reúne diversos trabalhos, enfei¬ xados

em

seis partes,

que guardam

si o nexo e o interêsse da poesia.

entre

Eis, pois,

reunidos em livro, revistos e prontos a de¬ sempenharem o papel que lhes cabe na for¬ mação de nosso moderno pensamento crítico, vários ensaios e estudos de inegáveis méri¬ tos e de interêsse que reputamos permanente. Não se trata de um conjunto de trabalhos esparsos,

arbitràriamente

colecionados

sob

um título; pelo contrário, mesmo em se po¬ dendo considerar cada parte como autônoma, subsiste o

laço comum entre elas, e, bem

assim, a coerência interna de cada subdivisão, sendo cada parte uma longa digressão sôbre determinado tema, caro ao Autor, sem dú¬ vida, mas exposto de

maneira

a interessar

verdadeiramente o leitor. Por outro lado, se algumas vêzes Casais Monteiro

se

coloca

vigorosamente

numa

posição eminentemente pessoal, isto só pode depor a

favor da profundidade

com

que

Digitized by the Internet Archive in 2019 with funding from Kahle/Austin Foundation

https://archive.org/details/palavraessencialOOOOmont

Obra publicada com a colaboração da UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor:

Prof. Dr. Luís António da Gama e Silva.

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO COMISSÃO editorial:

Presidente



Prof.

Dr.

Mário

Guimarães

Ferri

(Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras). Mem¬ bros: Prof. Dr. A. Brito da Cunha (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras), Prof. Dr. Carlos Silva

Lacaz

(Faculdade

de

Medicina),

Prof.

da Dr.

Miguel Reale (Faculdade de Direito), e Prof. Dr. Walter Borzani (Escola Politécnica).

A PALAVRA ESSENCIAL

COLEÇÃO ENSAIO Volume 2

ADOLFO CASAIS MONTEIRO

A PALAVRA ESSENCIAL Estudos sôbre a Poesia

COMPANHIA EDITORA NACIONAL EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SAO PAULO

A/ / / 3 6

-Ml

capa de Alceu Saldanha Coutinho

Exemplar

Direitos reservados COMPANHIA EDITORA NACIONAL Rua dos Gusmões, 639 SÃO PAULO 2, SP

1965

Impresso nos

Estados Unidos

do

Brasil

Printed in the United States of Brazil

La poesia es la palabra esencial en el tiempo. António Machado

A

criação poética consiste em

deixar

ouvir atrás de cada palavra a palavra essencial. Gerhardt Hauptmann

I12617

SUMÁRIO

Ao

leitor

.

Introdução — A idéia de modernidade

XI

.

1

I — Notas sôbre a poesia .

13

lí — Problemas da poesia moderna 1.

Poesia e linguagem

.

29

2.

Poesia e humanismo

.

32

3.

Poesia e forma .

34

4.

Benedetto Croce e a poesia .

37

5.

O mistério da poesia

.

40

6.

Utilidade, moral e poesia .

42

7.

A propósito de Pablo Neruda .

45

8.

Carlos Drummond de Andrade e a obscuridade ....

48

9.

Das idéias na poesia

51

.

10.

A poesia entre Freud e Jung

.

53

11.

Edgar Poe, falso precursor da poesia moderna ....

57

12.

A tentativa concretista

.

60

13.

Idéias de António Machado sôbre a poesia .

72

14.

Entendimento da poesia

75

IX

.

III — Perspectiva do surrealismo 1.

O surrealismo contra a literatura .

81

2.

Artistas e videntes

88

3.

Os objetivos do surrealismo

.

93

4.

Um heterodoxo do surrealismo: Henri Michaux .

99

5.

As presenças insuportáveis: Artaud

.

.

106

.

111

V — A superstição da forma .

119

IV — Dizer não dizendo

VI -— Supervielle 1.

A poesia de Supervielle

2.

Supervielle e um suposto mito

3.

Supervielle e

4.

O poeta que o tempo escolherá

5.

Ouvindo Supervielle sôbre a poesia

6.

Na morte do poeta

Valéry

.

141

.

163

.

166

.

171

.

175

.

178

AO LEITOR

Entre os livros que o autor “faz”, e aquêles que “se fazem”, há talvez lugar para os que participam de ambas essas manei¬ ras de vir à luz. É que, entre o propósito deliberado, a cons¬ trução prèviamente arquitetada, levada a cabo de harmonia com um esquema, e a reunião de materiais que não nasceram com o propósito de virem a constituir uma obra — entre um e outro tipo de livro cabe o de uma arquitetura não prevista, mas que se torna patente num conjunto de escritos de raiz comum. Entendo, como o leitor já está supondo, que A Pala¬ vra Essencial se enquadra neste terceiro tipo de obra. De todos os escritos aqui reunidos, nenhum previu a forma de livro. Acontece porém que, em anos sucessivos, êles como que se procuraram uns aos outros, foram impondo ao autor a sua identidade comum, quiseram ser livro. E o autor sentiu, assim, que êles lhe ditavam a escolha, e que o livro “o fêz a êle”, até ao descobrir (por seu intermédio) que achava bem ter como título aquelas palavras de António Machado — poeta que, por não ser estudado nestas páginas, nem por isso deixa de ser uma das personalidades que mais se impuseram ao autor, quando descobriu a poesia fora dos livros da escola, e fora também das leituras habituais dos seus contemporâneos. Há muitos anos, alguns (os mais antigos) dos escritos aqui reunidos já estiveram preparados para ser livro, então junta¬ mente com numerosas críticas e estudos sôbre poetas portu-

XI

guêses contemporâneos. O livro desfez-se, antes de chegar a sê-lo. E, com o passar dos anos, foram-se acumulando tra¬ balhos maiores e menores que, mesmo ao tratar com exclusivi¬ dade a obra de um poeta, são sempre sôbre o essencial da poesia, ou, pelo menos, a êle visam em última análise, não pertencendo nenhum ao tipo da análise obra-por-obra, textual ou não. Pequenos ou maiores, são ensaios, e não crítica. Por isso se excluíram daquele projeto de livro acima referido, e o autor respeitou-lhes a vontade. Os meus livros Considerações Pessoais (1933) e De Pés Fincados na Terra (1941), por uma grande parte constituídos por estudos sôbre a poesia como “palavra essencial no tempo”, têm neste a sua natural continuação, embora não sendo restri¬ tos à poesia, como êste é. Futuramente, a parte dêles sôbre poesia deverá constituir um tomo com êste, se tal vier a ser possível — para o que importará, sem dúvida, o acolhimento que venham a ter as páginas agora reunidas. Rio de Janeiro, janeiro de 1962.

XII

A PALAVRA ESSENCIAL

INTRODUÇÃO

A IDÉIA DE MODERNIDADE

\^_j AMiNHO por entre alas de palavras, fáceis ou difíceis, fixando uma e outra. Elas não respondem. Hoje não res¬ pondem. Suponho-as longe de mim, nada vejo de comum entre elas e o que pretenderia dizer. A idéia de modernidade não lhes agrada a elas, ou a esquisitice vem de mim? Elas e eu teremos razão, creio. Que interessa interrogar uma idéia, abrir caminho até ela por entre as alas de palavras? Mas quem sabe se não é êste mesmo um caminho que me poderá condu¬ zir até à sua caverna escura? É certo, é da modernidade o homem e as palavras não se entenderem. A modernidade começou talvez aí mesmo, precisamente. Não começaria? Não foi querendo tirar delas todos os acordes em potência, tôdas as harmonias possíveis, que a poesia quis fazer-se música? E não foi neste querer fazer-se música que elas começaram a perder os contornos, viraram magia, pedra, grito, e se tornaram afinal no grande instrumento da descrença do homem na ver¬ dade, na realidade, em qualquer forma de segurança?

A modernidade tornou-se um mito como outro qualquer. A modernidade já acabou. Já não é “O grande Pã é morto” que se ouve no fundo das florestas. Agora, por entre o rumor dos arranha-céus, ouve-se, sim: “A modernidade é morta”. Precisa-se de um nome, porque outra coisa nasceu. Se não nasceu, precisa de nascer, porque o homem da modernidade morreu, e enquanto a nova idade não tiver nome, como será

3

possível ela nascer? A modernidade morreu com a descoberta da bomba atômica. A modernidade não é suficientemente apocalíptica, nela não cabe a força, a persistência necessária a fazer o homem mais forte do que a bomba atômica. Morreu — de mêdo. *

Outrora existiam as maiúsculas. O Homem empequeneceu, num acesso de autoconsciência, e reconhecendo não estar à altura dela proclamou a sua falência. A totalidade sumiu, nasceu a fragilidade, a dispersão. É isso o retrato do homem moderno: da fragilidade ao nada. Entre estas duas palavras se contêm tôda a história da modernidade, a grandeza e a miséria da modernidade. Matou Deus, e não pôde ressuscitá-lo. Matou a Verdade, e não pôde ressuscitá-la. Não foi a Razão que o afogou, como julgam os idiotas reacionários, foi ela que não coube dentro do homem e o esmigalhou. Os explosivos eram potentes demais, e o homem não os soube controlar. Nada. E então descreveu o nada, os pequenos nadas. Agora é o tempo para os homens recomeçarem a par¬ tir do nada. Aos da modernidade faleceram as forças para tanto, e eis por que outra idade tem de começar. A modernidade é um conceito sem contrário. Não nas¬ ceu contra qualquer coisa, mas contra uma ausência. “Sob o céu vazio”, como diria Johan Bojer, foi a situação em que o homem se encontrou quando perdeu a Fé. Isto foi há séculos, pelo menos começou há séculos. Não é dum momento para o outro que se pode destruir uma era inteira. A maioridade da sua consciência como nada é ainda tão recente que nem todos deram por ela. Hoje mesmo se luta em Budapeste e à volta do Canal, entre duas formas de ilusão, como se tal luta não fôsse uma luta de fantasmas. Na realidade, não era pre¬ ciso matar por fora o que está já morto por dentro. Hoje parece-me ridículo falar em modernidade; sabe a cinzas, a dia de finados. Só como História se pode falar em modernidade. Os últimos decênios foram suficientemente eloqüentes, para quem quis olhar de frente a verdade. Quem pode, ainda honestamente, duvidar que o homem não presta? Esta condição de imprestável só podia valer, contudo, se o

4

homem tivesse sabido ressuscitar. Não soube. A História repete-se? Pois é isso mesmo: quanto mais ela se repete mais se verifica que o homem nem sequer merece ser destruído pela bomba atômica ou outra melhor. Creio que a maior prova da ineficácia do homem é o comunismo. Por uma vez na História, os homens tinham con¬ seguido, nalgum lugar do universo, começar realmente algo de nôvo. Pois não tinham passado 10 anos e já tinham feito vol¬ tar tudo ao que era antes. E isto também é modernidade, porque a falência da revolução russa é um dos atos, e um dos fundamentais, do drama. Na outra face do retábulo, está o seu complemento: a guerra de Espanha, que serviu para mos¬ trar que, entre o auxílio do comunismo e o auxílio do libera¬ lismo, a flor que nasceu foi essa lindeza que se chama o regi¬ me franquista, todo feito de sinais negativos, soma de todos os contras, onde não há um “por” que não seja mentira: mentira o seu catolicismo, sobretudo, perfeita imagem do que pode ser o amor de Cristo neste nosso tempo ao qual cada vez tenho mais razão de ter chamado “nosso tempo de cruzes e forcas desfraldadas”.

A modernidade é insubsistente. Quando o homem descobriu que era moderno esqueceu-se das responsabilidades que isso implicava. Não valia a pena tê-lo descoberto, e portanto a sua diferença, se não soube fazer a vida à imagem dela. Tivesse-se demitido. Mas não soube e não se demitiu. Tudo ficou em palavras, faltou a Palavra, ou seja, o Verbo, isto é: ação. É por isso mesmo que o surrea¬ lismo me merece um respeito único entre tôdas as expressões da modernidade: êle só reconheceu que não havia duas revo¬ luções, mas uma só. E ainda há quem se ria dêle. Claro! Ainda durante a guerra, creio, André Breton fêz um discurso — por ironia do destino leu-o, se não estou em êrro, numa universidade dos Estados Unidos — que é das raras expressões da consciência integral do homem perante o mundo. O dis¬ curso não era liberal, nem comunista, nem cristão. E por isso passou desapercebido. Claro!

5

A modernidade foi uma luta contra tudo — mas por nada. Por isso mesmo nenhum filosofo é mais da modernidade que Heidegger. É por isso a Nausée de Sartre um dos grandes livros da nossa época. Ao menos aí a anulação toma cons¬ ciência de si, não obstante as palavras abstrusas do primeiro autor citado, que não tem culpa de ter nascido filósofo e não poeta. Mas precisamente não faltaram poetas para falar por êle — antes e depois. Um chama-se Fernando Pessoa, e tam¬ bém ninguém tinha dado conta do que se tratava. E duvido que a situação tenha mudado, depois de êle ter passado do zero ao infinito quanto à consideração pública. Sim, não faltaram poetas para exprimir a fragilidade, e reconhecer que escavando sob ela só podia encontrar-se a pedra do nada, a irremovível pedra no meio do caminho, não é verdade, Carlos Drummond de Andrade? Mas a poesia foi sempre a verdade e a vida. A consciência do nada, na poesia, é uma esperança, uma absurda esperança, se quiserem, mas uma esperança, porque é pura consciência, e a pura consciên¬ cia duma situação cria por si própria uma solidez. Quem não entender isto que dê uma volta pelos poetas, e depois venha falar comigo. A única objeção ao fato evidente, que só por modéstia, decerto, a humanidade não quer admitir, de ser o homem o animal mais estúpido da criação, está realmente na poesia, e coisas adjacentes, ou seja, a música, certas (muito poucas) expressões de outras artes, alguns romances, alguma filosofia — nenhuma política, sociologia, teologia, economia, etc. E ela e essas adjacências constituem exceção precisamente porque são um protesto do homem contra si próprio. Está além disso nos sonhos dos homens. Nos de todos os homens que algum dia entreviram qualquer luz, esperaram alguma coisa. Mas a modernidade não é feita de sonhos, mas de não os poder ter. Do arrependimento de os ter tido, quando não venceu em si as ilusões persistentes. Isto é a modernidade. Saber real¬ mente que nada se sabe, e, sobretudo nada se pode. “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada”, eis a imagem da moderni¬ dade levada ao seu extremo limite. Mas Álvaro de Campos

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acrescenta “Â parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. E aqui já não é o retrato da modernidade, sem dú¬ vida, mas a reação do homem esmagado no fundo do poço, e que pelo sonho pretende eliminar a tampa do poço. Errei: isto também pertence à modernidade. Mas é um sonho que se sabe não-real, um sonho que cria o seu próprio universo — e não uma esperança. No nada não há esperança. A modernidade começa talvez em Rimbaud. Quero eu dizer: a modernidade como consciência da impossibilidade de ser. Concretamente, começa na Carta do Vidente. Não se fala aí de nada, sem dúvida: mas propõe-se ao homem um plano impossível. A distância entre êsse sonho e a capacidade de viver do homem é o próprio chão da modernidade, é o campo que tiveram de lavrar com os nervos ou com o sangue os homens que por qualquer forma olharam para si e quise-^ ram dizer “não”, um “não” total, de repulsa, repúdio e vômito. O Não. Um mundo insubsistente, um mundo não-mundo. Um mundo no qual “ninguém faria batota”. O fim do chamado idealismo, isto é, da amável convivência de Frei Tomás (que bem o prega e mal o faz), em que o mesmo chão de mentira sustenta as filosofias e as estéticas pretensamente antagônicas, mas que se opõem apenas na forma particular de cada uma mentir. Assim a modernidade começa também com a famo¬ síssima última das teses de Marx sôbre Feuerbach: “Os filó¬ sofos limitaram-se a interpretar o mundo de maneiras diversas, mas o que importa é modificá-lo”. Aquela graça de Kierkegaard sôbre Hegel, que tendo cons¬ truído um palácio esplendoroso vivia ao lado numa choupana miserável, é também excelente imagem do idealismo, daquilo que a modernidade recusa. E por isso a modernidade só alcan¬ çou autêntica expressão na poesia e nas já referidas adjacên¬ cias. Alcançá-la em pleno cerne da existência teria sido estar acabada a sua missão, seria a nova idade. E por isso também todos os impenitentes “idealismos” só podem ser, hoje, expres¬ sões erradas, falsas e indignas do homem, por quererem fundar ou fazer subsistir uma consciência de alguma coisa onde só pode haver autêntica consciência da infelicidade dela — do nada, ou do caminho para o nada.

7

Grande número de expressões poéticas do nosso tempo assumem a figura de imitações “classicas”, ou “realistas , ou revelam, de maneira geral, uma total disponibilidade em rela¬ ção a quaisquer formas. Stravinsky, Fernando Pessoa, Picasso aí estão como máximo exemplo da insubsistência das formas, que a modernidade recusa, pois aceitar “uma” seria acreditar nelas tôdas, e a modernidade não pode admitir qualquer espécie de preferência, pois seria reconhecer-se válida. E a modernidade é a desqualificação de si própria, só existe na medida em que prova a sua ineficiência para salvar o homem sob a forma de uma verdade, uma concepção do mundo, uma crença, uma SOLIDEZ.

A modernidade é a expectativa da nova criação do ho¬ mem. Mas todos os hipotéticos construtores da nova idade estão desempregados. Foram espatifados pela bomba atômica antes de ela ter explodido: morreram no afundar-se da revolu¬ ção russa, da guerra de Espanha, morreram em tôdas as gran¬ des e pequenas carnificinas da consciência humana — porque as dos corpos são perfeitamente secundárias, se nos dermos conta de que morreram muito mais consciências do que corpos, e que o desespêro de só haver causas indignas é muito mais terrível de que quaisquer biliões de cadáveres. O mau cheiro das consciências apodrecidas é muito mais pavoroso, e a terra inteira cheira a consciência putrefata. Pois aí têm a modernidade: é o que sobrou disto — por¬ que mesmo na putrefação não há absoluto. É o que sobrou disto, não como indiferença, mas como recusa. O que sobrou como indiferença é putrefação na mesma, percam as ilusões todos os aposentados da existência que se julgam a viver dos rendimentos do mundo antigo ou futuro, e que pensam não ter nada com isso. Façam versos bonitos, façam quadros boni¬ tos, ou façam deduções bonitas —• podridão. Estão na vala comum, sem a honra sequer de terem sabido morrer. A modernidade é uma acusação. No mundo do avêsso, é lógico que lhe venham pedir contas a ela. No fundo, é sempre a anedota de Picasso com o oficial alemão, diante de Guemica: “Foi o senhor quem fêz isto? — Não, foram os senhores!”. Entretanto, o bom cidadão entrincheirado por trás de quaisquer sagrados princípios, de 89 ou da Santa Madre

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Igreja, ou do Santo Mussolini ou do Santo Stalin, não só a julga culpada de ter pintado Guernica, como realmente de a ter feito, e até de ser responsável pela derrota da França em 40, ou etc., que os exemplos são em demasia. Comunistas, católicos, liberais e o diabo que os leve, são todos concordes em que pesa sôbre os ombros da modernidade a responsabilidade daquilo que a modernidade se limitou a exprimir. Então a modernidade não é uma época, ou era, ou coisa que o valha? Não é um período da história, da arte ou da lite¬ ratura? Pois claro que não é — mas um estado de espírito, de alma, de consciência, ou como cada um possa exigir para não se pôr a dizer que não percebe. A modernidade está na nossa época como o “Mane, thecel, pharès” nas paredes da sala de orgia de Baltazar. É o espinho cravado na carne do nosso tempo. É o seu retrato em negativo, é o marco zero de cnde o homem tem de partir se estiver realmente decidido a começar, para chegar a ser. "Noas ne somrnes pas vos ennemis Nous voulons nous donner de vastes et d’étranges domaines Ou le mystère en fleurs s’offre à qui veut le cueillir II y a là des feux nouveaux des couleurs jamais vues Mille phantasmes impondérables Auxquels il faut donner de la réalité Nous voulons explorer la bonté contrée enorme ou. tout se tait 11 y a aussi le temps qu’on peut chasser ou faire revenir Pitié pour nous qui combattons toujours aux frontières De 1'illimité et de 1’avenir.”

Mas não vamos pedir indulgência “A ceux qui furent la perfection de 1’ordre”, não, Apollinaire, não vamos seguir-te na humildade de nos desculparmos perante aquêles “. . .dont la bouche est faite à Vimage de celle de Dieu”. *

A modernidade não é o princípio de coisa nenhuma. Mas também não é o fim de coisa nenhuma. Esta chave é indis¬ pensável para todos os aflitos de boa vontade embora de inte¬ ligência curta e sentidos mais curtos ainda, para os quais “ha

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ali qualquer coisa”, mas não conseguem entender a moderni¬ dade senão como a falta da ordem, da medida, da certeza do sossêgo. A modernidade é uma nova consciência, uma nova situa¬ ção, na qual o homem se reconhece livre e cativo ao mesmo tempo: livre da era das ilusões e cativo da incapacidade de transformar o mundo. Dai, entre outras coisas, estar vedada à sua arte a simplicidade de aceitação das imagens aparentes do homem e da natureza que caracterizou tôda a história das artes durante uns poucos de séculos da Grécia e de Roma e alguns outros do Renascimento para cá. Essa inocência é impossível à modernidade, para a qual essa aparência é o próprio enjôo da vidinha confortável proposta pela hipocrisia confortável dos senhores do mundo ao aplauso universal. Como é que a modernidade poderia pintar o próprio idealismo? Assim pois, a modernidade surge como negativa na me¬ dida em que a julgam olhos em que a convenção idealista pôs e a mentira como medida de tôdas as coisas. Para quem escreve Beleza com maiúscula, tôda a autenticidade é feia. Para quem tem a Verdade tôda a autenticidade é falsa. Para os que falam no Bem, no Amor, etc., e que têm uma mentira pronta do outro lado da realidade para retorquir ao mal e ao ódio dêste, que pode ser tôda a autenticidade senão falsa? A modernidade não sabe bem se há de falar em beleza e em verdade ou não. Também os seus artistas não sabem muitas vêzes se os “clássicos” não estarão na razão, e por isso os poetas muitas vêzes pedem desculpa por não sorrirem à sociedade. A modernidade é uma consciência imperfeita, por¬ que não cabe ao homem ter uma consciência que, a ser total, lhe poria imediatamente um revólver na mão. Essa mesma imperfeição, essa mesma incerteza, essa dúvida da dúvida, não são forçosamente lucidez. Mesmo um Fernando Pessoa acre¬ dita ser ao menos real “o que nisto não é isto”. A moderni¬ dade só não é problemática em alguns raros que estiveram sempre, realmente, combatendo nas fronteiras do ilimitado e do futuro, como um Kafka, um van Gogh ou um Artaud. Mas a experiência absoluta dêstes já excede os podêres da condição humana. A pura consciência não é vivível, e por

10

isso êsses três monstros citados já eram como que de outro mundo aos que rondaram à sua volta, na ilusão de que seriam sêres humanos como êles. Não, a modernidade é agônica, mas de angústia, ou até apenas de incerteza. Os seus posses¬ sos não podem dar-lhe uma norma; iluminam-na, mas não são seus modelos. Já Rimbaud depôs o fardo, e foi negociar em escravos; a diferença está em que antes disso escreveu Une saison en enfer, enquanto os homens da ordem só venderam escravos tôda a vida, ou foram êles próprios os escravos, aten¬ tos, veneradores e obrigados da sua própria abjeção. (1956)

11

I

NOTAS SÔBRE A POESIA

Sucede por vêzes que, de tanto lhes perscrutarmos tôdas as facêtas que a nossa visão alcance, chegamos, ao abordar certos problemas, a falar dêles com aquela maneira elíptica, feita de alusões, com que numa família se evocam aconteci¬ mentos de todos muito conhecidos — linguagem sintética que para o estranho a quem suceda escutá-la soará como idioma desconhecido e só vagamente semelhante ao que fala. Pois a mim, com o problema da poesia, receio bem que me suceda o mesmo. Foi por isso que, depois duma tentativa para a redigir, me recusei a fazer uma conferência sôbre ela que já prometera. Realmente, tentando ser claro, nunca conseguiria entrar no verdadeiro tema da conferência, pois que uma hora não me seria suficiente para iniciar o público, que devia ser de estudantes, e de estudantes a quem a poesia moderna (era êste o tema) não devia ser, no geral, muito familiar, e muito menos os seus problemas teóricos, nos segredos do vocabulário. Por¬ que, na verdade, quando pretendemos expor um problema que temos estudado aturadamente, ao qual temos dedicado pági¬ nas e páginas, a maior dificuldade a vencer é a de não esque¬ cer que cada um dos auditores não acompanhou passo a passo os nossos esforços de longos anos, que o pêso que para nós ganharam determinadas expressões pode ser para êle inteira¬ mente estranho, e que, em suma, o que para nós já é simples pode ser para êles ainda muito complicado e obscuro.

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Mas o que para uma conferência pode considerar-se difí¬ cil, encontrará, quando se destine apenas a leitores, menos dificuldades de compreensão. O estilo do conferencista está muito longe do estilo do ensaísta ou do articulista. Mas, pre¬ cisamente, quanto não se vê o conferencista obrigado a perder? A tal ponto que, para mim, se põe êste problema: não haverá realmente determinados temas que o escritor não tenha o di¬ reito de reduzir aos moldes duma conferência, quando isso por¬ ventura o force a diluir de tal maneira o seu pensamento, que êste resulte diminuído e resulte uma traição àquela expressão que se obrigou a tornar tão clara? Como já uma vez tive oca¬ sião de dizer, precisamente no intróito duma conferência, o leitor pode parar e voltar atrás sempre que lhe apeteça e o entenda necessário. Ora, vá lá o auditor levantar-se e recla¬ mar: “Senhor conferencista, volta ao comêço do parágrafo, faz favor!” O efeito havia de ter graça. ..

Tenho diante de mim as notas que tomei para a redação dessa conferência (não pertenço, ai de mim, ao número da¬ queles que, com duas palavras num papelinho, ou mesmo sem papelinho, podem improvisar uma palestra, sem perderem o fio ao discurso). O que se segue, não são essas notas tais quais as escrevi (aliás, mais do que notas trata-se antes duma espécie de aforismos, constituindo um esqueleto sôbre o qual viriam os desenvolvimentos necessários). Não são êsses aforismos, nus e crus, o que trarei ante os olhos dos meus leitores; vou desenvolver um ou outro de entre êles. Será como que uma série de aforismos seguidos pelo seu respectivo eco discursivo. Em poesia, criar não é traduzir para uma língua à parte algo que lhe seja exterior. A poesia tem, portanto, um mundo próprio; não é uma forma. Esta afirmação inicial tem o seu quê de polêmica. Com efeito, ainda é moeda corrente em Portugal que a poesia con¬ siste em vestir duma bela forma um corpo sôbre o qual há dúvidas que todos o exijam belo; penso mesmo que à maior parte das pessoas desta espécie será indiferente que a poesia tenha qualquer espécie de corpo. Se são muitos, já, entre nós, os que sabem ler uma poesia procurando nela outra coisa

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além duma agradável e momentânea titilação do ouvido, muitos mais são ainda (e ao falar nestes muitos e nestes mais conto apenas as chamadas classes cultas) os que, perante a poesia moderna, declaram que não é poesia. .. por não ter forma. Ora, o que êles e qualquer pessoa têm a dizer, perante versos, é se são ou não poesia, e não se têm ou não têm forma, pois que a forma é um coisa que existe em tôda a expressão artís¬ tica. Se não a tivessem. .. mas como se pode conceber sequer arte sem forma?! Forma é o próprio corpo da arte, afinal: nesta, o espírito só se realiza desde que encontre a sua forma própria. Mas tais gentes ignoram isto, e quando falam em forma, essa forma dêles é apenas aquilo que muito se pode apreciar como prenda de sala, nas sociedades de recreio e em respeitáveis salões burgueses: é a “arte de fazer versos”... Mas, se a poesia tem existência independente, não signi¬ fica isso que ela exprima uma realidade à parte da realidade. A poesia tem um mundo próprio no mesmo sentido em que tal podemos dizer da física ou da matemática, que igualmente não existem senão porque o mundo existe, mas que dentro dêle são uma linguagem que o exprime de maneira inteira¬ mente incomensurável com qualquer outra maneira de o ex¬ primir. A afirmação inicial completava-se, de fato, com aquela referência ao mundo próprio da poesia, referência que pode parecer extravagante, e que aliás não resulta muito clara no “aforismo” que acabo de transcrever. Pretende ali dizer-se que a poesia não pode ser usada para corresponder seja a que forma fôr de quantas servem ao homem para se exprimir. Assim, por exemplo, será absurdo pedir à poesia que traduza um pensamento, que exprima determinada idéia, que cante determinado tema, que incite ao cumprimento de determinada virtude. Porque a poesia, que pode englobar tudo isto, não o englobará nunca senão como elemento secundário. Recipro¬ camente, tirar da poesia qualquer das coisas de que me servi como exemplo, dará em resultado que isso não alterará a poe¬ sia, isto é, que nada disso constitui a poesia. A expressão poética não é redutível a nenhuma outra — so ela se exprime a si própria.

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Assim, não há coisas que só à poesia pertença exprimir, nem coisas que à poesia seja vedado exprimir. A poesia de qualquer época é essa época, é essa época na poesia. Isto é, não será com as outras formas de expressão, artís¬ ticas ou não, que devemos procurar a medida comum da poe¬ sia. Não se pode pensar numa distribuição pelas várias artes, ou ciências, ou técnicas, dos elementos da realidade de que a cada uma cumpra tomar conta. Essa divisão supõe ser cada arte caracterizada por lhe caber a expressão duma parte da realidade, quando, de modo bem diferente, é cada qual uma forma diferente de apreender a realidade, sem compartimentação possível. Isto quer dizer afinal que entre a realidade e a arte não existe aquela relação de modêlo a cópia que foi durante séculos um princípio fundamental da estética. Cada arte nasce duma realidade, ou dum complexo de realidades, mas está relativamente livre perante ela, quer dizer, não lhe corresponde como um retrato ao original — nem sequer como uma prova à chapa da qual foi tirada. Depende dela na me¬ dida em que o próprio homem, e neste o artista, está condi¬ cionado pelo meio. A outra afirmação do “aforismo” acima, tem mais que se lhe diga, e o pouco espaço que me resta não me permitirá dedicar-lhe senão poucas linhas. Pode pensar-se que as maio¬ res criações da poesia, como as das outras artes, se caracteri¬ zam por superar o temporal. Para não irmos mais longe, sirva de exemplo o curioso ensaio de José Régio, Em tôrno da expressão artística, o ano passado dado a lume nos “Cader¬ nos Inquérito”. Aí diz o nosso grande poeta que “todos os pensadores, críticos, artistas (...) não são do seu tempo senão pelas partes mais visivelmente condicionadas da sua obra, por¬ tanto mais restritas ou efêmeras”. E com José Régio, outros o têm afirmado, e outros o virão a afirmar. Todavia, desde sempre que semelhante teoria me pareceu revelar um êrro pro¬ fundo, e digo profundo a todos os títulos, pois é um êrro que se acha oculto nas suas mais fundas raízes. Confunde-se, em meu entender, a elevação das obras criadas com a sua própria estrutura. É assim que, quando uma obra atinge uma altitude que a faz perdurar, que a torna capaz de desafiar as fronteiras e o tempo, se julga ver nisso uma conseqüência da sua intem-

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agônicas nem de revolta, sem que o imediato e os seus pro¬ blemas tenham nela um lugar de primeiro plano. Mas, em épocas como a nossa, épocas de combate, épocas cruéis para qualquer espécie de serenidade, dificilmente há lugar para as formas de poesia que em épocas “normais” têm ambiente pró¬ prio para florescerem, para essas formas preservadas da vida imediata, formas de superação e de alheamento. Sendo o poeta a mais vibrátil antena da terra, como não duvidar que haja diminuição voluntária, fingimento, e portanto inevitável enfraquecimento do poder de expressão, quando êlc parece ignorar que o mundo à sua volta está em convulsão? Como poderemos acreditar na sua sinceridade, se tudo aquilo que êle não pode deixar de sentir permanece alheio à sua obra? O poeta pode ter serenidade, pode ignorar os problemas da vida imediata, nas épocas em que o equilíbrio social cria a estabilidade necessária para que a sua própria vida seja um elo certo numa engrenagem certa. Mas, nas outras épocas, que valor poderá ter a poesia que parece criada num mundo sem sobressaltos, sem angústias e sem dolorosas experiências cotidianas? Por isso mesmo, a “nota” seguinte afirma: Não se pode estranhar que cada vez haja menos poetas que cantem as belas proporções dum edifício cujos alicerces cada vez estão mais abalados. “Cantar as belas proporções do edifício” é apenas uma metáfora. A frase não se refere apenas aos que realmente aplaudem a solidez do edifício (êsses, até, já não terão nada de intemporais, serão pelo contrário os serventuários do poder temporal), mas a todos os que cantam como se realmente o edifício não apresentasse fendas assustadoras e caruncho em todos os pavimentos. De fato, o poeta que neste momento canta como se estivesse no melhor dos mundos possíveis, põenos ante êste problema: Como pode êle ignorar o que é o mundo, mesmo que condições pessoais privilegiadas o te¬ nham isentado a êle de sofrer com os outros? E se sofre, como pode êle fechar os seus versos ao eco dêsse sofrimento? E se os fecha, como pode realizar essa mutilação de si próprio sem que nêle o poeta seja diretamente atingido, sem que a sua voz fraqueje?

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fato de ela ser imortal que leva a pensar-se em tal contrasenso. É esquecer que esta imortalidade terá de ter outra justificação que não. . . a sua própria imortalidade. Pensa-se: esta obra, se agora é imortal, é porque foi sempre imortal, é porque nada há nela que seja efêmero. Mas esquecem que êsse efêmero que foi a sua razão de vida não é a beleza dela, mas o alimento de que essa beleza recebeu o ar sem o qual não poderia respirar. E ao verem a beleza que perdura, os homens fàcilmente esque¬ cem que ela de alguma coisa havia de viver. Um José Régio, ou qualquer outro, não querem ver que, igualmente belas, as obras-primas de qualquer literatura não são, contudo, iguais umas às outras. E que vem a ser isso que em cada uma é diferente, senão a própria expressão da época? Mas mudemos de rumo, porque o problema é inesgotável. A “nota” que se segue é um corolário da anterior: Será portanto falso pretender-se distinguir como “mais poesia” aquela que apareça mais despegada das coisas terre¬ nas, mais divorciada dos problemas do homem de cada época. Pode, como é óbvio, haver uma poesia que nada, direta¬ mente, tenha a ver com quaisquer problemas da vida de cada dia. O caso é tão corrente que nem vale a pena apontar exem¬ plos. Mas sucede, por vêzes, que o próprio caráter de certas épocas quase impossibilita uma alta expressão poética que não seja precisamente uma reação ante os mais imediatos proble¬ mas da vida. É o que se indica na “nota” a seguir: A poesia correspondente a uma sociedade em que todos os valores ainda oficialmente válidos já não são tomados a sério por nenhum espírito lúcido e vivo, não pode ser senão uma poesia agônica ou de revolta: agônica na consciência da crise, de revolta, na medida em que os poetas se sintam chamados a abrir os seus cantos à voz dum mundo nôvo a construir. Creio que estas linhas são bem claras, e bem visível a sua ligação com as afirmações anteriores. Aqui já não se trata apenas, contudo, do fato de na poesia se exprimir ou não o espírito de cada época. Embora enquadrado neste, o caso apresenta características especiais que se devem apontar, tanto mais que estamos perante um dos problemas mais presentes, mais atuais da poesia de todo o mundo. Com efeito, a expres¬ são da época pode realizar-se, quando as épocas não sejam

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agônicas nem de revolta, sem que o imediato e os seus pro¬ blemas tenham nela um lugar de primeiro plano. Mas, em épocas como a nossa, épocas de combate, épocas cruéis para qualquer espécie de serenidade, dificilmente há lugar para as formas de poesia que em épocas “normais” têm ambiente pró¬ prio para florescerem, para essas formas preservadas da vida imediata, formas de superação e de alheamento. Sendo o poeta a mais vibrátil antena da terra, como não duvidar que haja diminuição voluntária, fingimento, e portanto inevitável enfraquecimento do poder de expressão, quando êlc parece ignorar que o mundo à sua volta está em convulsão? Como poderemos acreditar na sua sinceridade, se tudo aquilo que êle não pode deixar de sentir permanece alheio à sua obra? O poeta pode ter serenidade, pode ignorar os problemas da vida imediata, nas épocas em que o equilíbrio social cria a estabilidade necessária para que a sua própria vida seja um elo certo numa engrenagem certa. Mas, nas outras épocas, que valor poderá ter a poesia que parece criada num mundo sem sobressaltos, sem angústias e sem dolorosas experiências cotidianas? Por isso mesmo, a “nota” seguinte afirma: Não se pode estranhar que cada vez haja menos poetas que cantem as belas proporções dum edifício cujos alicerces cada vez estão mais abalados. “Cantar as belas proporções do edifício” é apenas uma metáfora. A frase não se refere apenas aos que realmente aplaudem a solidez do edifício (êsses, até, já não terão nada de intemporais, serão pelo contrário os serventuários do poder temporal), mas a todos os que cantam como se realmente o edifício não apresentasse fendas assustadoras e caruncho em todos os pavimentos. De fato, o poeta que neste momento canta como se estivesse no melhor dos mundos possíveis, põenos ante êste problema: Como pode êle ignorar o que é o mundo, mesmo que condições pessoais privilegiadas o te¬ nham isentado a êle de sofrer com os outros? E se sofre, como pode êle fechar os seus versos ao eco dêsse sofrimento? E se os fecha, como pode realizar essa mutilação de si próprio sem que nêle o poeta seja diretamente atingido, sem que a sua voz fraqueje?

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É necessário reconhecer que, excepcionalmente, pode um poeta sofrer tôdas as angústias da hora presente, a sua poesia continuar fechada à expressão delas — e ser, não obstante, um poeta. Êsse caso (excepcionalíssimo, insisto) é o dos mís¬ ticos. Não o dos católicos, porque falsa será a poesia dum católico que não vibre de angústia, embora talvez não de re¬ volta — e contudo até pode vibrar de revolta, que o diga parte da obra dêsse grande poeta que é Jorge de Lima. Não, o poeta que está em tal caso é o místico, seja êle católico ou não. Porque o místico encontra na dor um caminho para a salvação, vê nessa dor a carne que deve ser pisada para que a alma ascenda mais alto. Mais ainda, o místico não seria poeta se o transitório assumisse para êle a mesma importância que para os “homens da terra”. E é por isso que não estranho ao ver um José Régio fazer afirmações como aquela que vem transcrita ante¬ riormente. É que êle, não sendo propriamente um místico, luta contudo para vencer em si o mundo. E a sua poesia, pois, na medida em que ignora certos dramas, na medida em que não se faz eco do canto dilacerado da agonia duma socie¬ dade, é contudo alta poesia — e a sua voz uma das mais belas da nossa poesia atual. Contudo, mesmo admitindo que a sua poesia não podia deixar de ser o que é, põe-se o problema de saber se o místico nêle não poderá vencer o homem — e se a vitória daquele não significará a morte do poeta. Eis o que só o futuro nos poderá dizer (1). A nota derradeira dos meus apontamentos aborda a poe¬ sia dum viés que me permitirá constituir aqui um capítulo autônomo. Eis o seu teor: A nossa poesia moderna afirmou-se sob o signo do indi¬ vidualismo, porque era de individualidade que mais se carecia. De certo momento em diante, começou porém a ser combatido o “excesso de individualismo”, o que era uma forma deficiente de revelar a carência de ímpeto transfigurador que se sentiaj

(x) Escritas em 1941, quando Fado ainda não fôra publicada, e sua última obra poética era As Encruzilhadas de Deus, estas notas não têm portanto em conta uma feição da obra de Régio que doravante nos leva a encará-la diferentemente.

As duas tendências completam-se: se não fôsse o aprofunda¬ mento da primeira fase, haveria o risco de que a fase constru¬ tiva resultasse simples regresso ao espírito retórico. Espero que o leitor terá concluído imediatamente em que sentido particular se emprega acima a palavra “individualismo”. 1 rata-se aqui de poesia, e ao falar portanto em individualismo pretende-se indicar aquela tendência para valorizar a experiên¬ cia individual de cada poeta, para fazer dela o tema funda¬ mental, que marcou tão nitidamente aquela fase da nossa poesia que tem o seu primeiro “tempo” com a geração de Sá-CARneiro e de Fernando Pessoa, e culmina na da “Presença” (aliás, para nesta mesma começar o movimento em direção a uma renovação doutra raiz) — fase que, não o esqueçamos, teve, gerações à parte, o seu genial precursor em Antônio Nobre.

(Diga-se, entre parêntesis, que ao falar aqui em Nobre apenas, e não em qualquer outro dos precursores da nossa moderna poesia, o faço porque me refiro tão só ao individua¬ lismo desta, e não a quaisquer outros seus caracteres. Ora, do seu individualismo, é realmente Nobre, senão o único, pelo menos o mais significativo precursor). O individualismo dessa poesia é uma reivindicação do ser interior contra o formalismo, quer tal formalismo se manifeste sob o aspecto dum culto do formal pelo formal, quer por um uso dêste como veículo de aspirações que não tinham na pró¬ pria expressão poética o seu verdadeiro fim. É, pois, uma reivindicação do lirismo, pelo menos se entendermos por liris¬ mo aquilo que tradicionalmente é uso, ou seja, “o eu que se descreve a si próprio”, segundo as palavras de Gundolf, que aliás só dá esta definição tradicional para logo a combater (veja-se a sua admirável “Introdução” ao Goethe, págs. 35 e ss. da tradução francesa). Seja do lirismo, ou do que fôr, o certo é tratar-se duma reivindicação do poeta como ser para quem a experiência interior acima de tudo importa. Ora, num Eugênio de Castro, num Junqueiro, para apenas citarmos nomes que merecem perdurar, não se encontrava senão, preci¬ samente, a carência de qualquer autêntica expressão do indi¬ vidual, a não ser por um ou outro assomo, por si sós dema¬ siado insignificantes. Ambos êles, que são altamente repre-

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sentativos de dois tipos de poesia aparentemente nos antípodas um do outro, têm contudo em comum exprimirem igualmente uma época da poesia portuguêsa em que predominava a valo¬ rização do formal. A expressão da vida interior invadiu a poesia. Mas, du¬ rante longo tempo, essas vozes novas não constituíram senão uma expressão isolada, que não encontrava eco. Um Sá-CARneiro e um Fernando Pessoa esperaram longamente a chegada duma verdadeira geração (isto é, um conjunto de artistas e de público que se “encontravam” no que criavam êsses artistas), antes de saírem dum quase anonimato. Mas a poesia formalista desfazia-se aos poucos, mesmo sem esperar os golpes defi¬ nitivos duma geração completa — a da “Presença”, em que criação, crítica e existência de eco no público (é claro, o sempre relativamente reduzido público da poesia) implantaram defini¬ tivamente uma nova era na poesia portuguêsa. Referi-me já ao combate contra o “excesso de individua¬ lismo”, isto é, à reação contra a “Presença”. Infelizmente, tenho o dever de me considerar um tanto ou quanto suspeito ao abordar tal problema, já que, tendo sido um dos diretores da revista que deu à nossa geração êsse rótulo “presencista” que já agora lhe será difícil perder (e aliás, porque não pre¬ sencista? a palavra é bela — oxalá a geração tivesse continuado a merecer o qualificativo), bem difícil me será, receio bem, ser tão imparcial como quereria. Embora não possa tocar aqui em certas coisas senão pela rama, é contudo indispensável, para ser entendido, que não deixe de me referir a um caso que da poesia passou para a vida — e, provocando uma cisão, acabou de vez com essa bela experiência criadora que foi a “Presença”. O desaparecimento da “Presença” marca o momento em que a fase do indivi¬ dualismo lírico atinge o momento de máxima crise, porque é dentro da própria geração que vão ecoar as violentas marés que, entre os mais novos, começam a fazer vir até à superfície uma tendência para a qual aquêle individualismo interiorista não podia deixar de representar uma fase, senão morta, pelo menos moribunda da poesia. É que com o predomínio duma poesia de raiz interior, duma poesia em que o “eu” do poeta era forçosamente o eixo

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em tôrno do qual o mundo girava, fixaram-se também deter¬ minados valores que, postos em circulação através duma “ação crítica” intensa, nem sempre fugiam à aparência duma defesa da arte pela arte. E o pomo da discórdia não foi tanto o fato de a um pendor individualista se contrapor uma ambição de índice contrário, como a necessidade de encontrar uma ex¬ pressão destituída de quaisquer suspeitas de gratuitismo, de egotismo estéril. Fácil será, para quem tenha um conhecimento, superficial que seja, dos últimos vinte anos da nossa poesia, ver que não se nota realmente um choque brutal entre uma poesia do individual e do social, uma poesia “jôgo inútil” e uma poesia “forma de ação”. A poesia dos novos mais preocupados em afastarem qual¬ quer ilusão de solidariedade com o espírito da “Presença” está longe de ser uma poesia em que o individual não tenha a sua parte. Pelo contrário! Mas o que é nítido é não vermos já (embora aqui e ali subsistam ecos retardados em poetas jovens que não têm caminho próprio, e se servem do que lhes oferece a “jovem tradição” da “Presença”) uma poesia indi¬ ferente ao social, embora não seja “socialista”, isto é, embora o poeta de modo algum se limite a ser uma voz para exprimir o que lhe seja alheio. Ora, o êrro (mas poderia êle deixar de se dar?) daqueles que hoje ainda representam êsse espírito “desinteressado” da “Presença”, foi a meu ver o de terem aceito com demasiada facilidade o papel, que os novos lhes “impu¬ seram”, de defensores da arte pela arte, do alheamento da arte perante os problemas do homem de hoje. A meu ver, um José Régio e um João Gaspar Simões, aquêle como poeta, êste como crítico, foram demasiado de bom grado instalar-se no interior dos manequins que certos moços críticos fizeram passar pela verídica imagem dêles. Régio, analisando o fenô¬ meno artístico, tem afirmações como a que citei acima. Simões acaba por valorizar excessivamente certos poetas que noutras circunstâncias apreciaria com menos entusiasmo, só porque são poetas “puros”, em cuja obra as tendências da nova geração não se manifestam. Contudo, um e outro deixaram, ambos como críticos, e Régio também como poeta, o material sufi¬ ciente, nos seus escritos dos anos florescentes da “Presença”, para que fôsse legítimo lembrar-lhes que nem sempre foram

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os espíritos estreitos que parecem apostados em se mostrar. A época ameaça submergi-los, se não forem capazes de com¬ preender que têm em si com que serem mais abertos aos novos horizontes que se impõem. Com efeito, como é possível que a geração que sobe não veja um inimigo no espírito que lhes fala demasiado em arte desinteressada, se êles vêem que, por menos que o queiram, as condições atuais em que vive todo o artista lhes impõem uma visão do mundo na qual uma “atitude estética” é coisa impossível para o verdadeiro artista? Por muitas confusões la¬ tentes que se ocultem sob as fórmulas demasiado rígidas, co¬ mo não reconheceremos contudo à nova geração que a sua luta por uma poesia aberta ao clamor do mundo é um ponto de partida necessário, uma reinvindicação implícita em qual¬ quer autêntica expressão de elevada humanidade, neste mo¬ mento? (1941)

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II

PROBLEMAS DA POESIA MODERNA

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1) Poesia e Linguagem

A linguagem é um instrumento dúplice. Quando o ho¬ mem julgou ter dominado o Universo, traduzindo-o em leis, a linguagem passou evidentemente a ser tida ela própria como uma “medida exata” daquilo mesmo que pusera ordem no mun¬ do: a razão. E neste sentido as palavras serão realmente “si¬ nais”; a poesia clássica é a imagem desta “evidência”. Mas a não-evidência, isto é, todos os elementos que não é possível reduzir à esfera da razão, nem por isso deixaram de ser o fun¬ damento real, embora ignorado, dessa mesma poesia. O es¬ pírito da poesia clássica é assim teatro dum equívoco sôbre a própria essência da função que representa. A progressiva in¬ filtração da dúvida foi pondo em evidência a caducidade dos valores cuja eternidade era axioma básico. A poesia começou a reconhecer-se através das máscaras, mas tal reconhecimento não se realiza através duma evolução unívoca: enquanto por um lado a noção de poesia se vai divorciando da noção de perfeição formal, por outro lado é esta última que, estabele¬ cendo-se como realidade autônoma, se torna responsável por tudo quanto, generalizando, podemos considerar “gongorismo”. De fato, a perfeição, deixando de ser vista como o pró¬ prio espelho da razão, procura uma justificação em si própria,

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que só pode ser ainda concebida em têrmos racionais, mas que já não é espelho senão daquele mito que é lícito chamar da “poesia pura”. Temos, pois, que a linguagem da poesia tende a estabelecer-se em dois planos que, embora sob certo ponto de vista divirjam profundamente, não deixam por outro de ter em comum a idéia fundamental de não ser a poesia um veículo de transmissão de fundamento racional. O romantismo, no sentido restrito, é apenas um ponto de passagem no caminho para a libertação; e por isso há quem pretenda que “romantismo” deva ser a designação que inclua ainda a poesia dos nossos dias; contra isto podemos contudo levantar a objeção de nada ser tão pouco romântico como tôdas as tendências que, ao contrário do romantismo, e do surrealismo, não vêem na poesia uma libertação, mas uma criação formal, independente do que possa “acontecer” no poeta — isto é, que vêem nela um “objeto” que deve subsistir por si, jóia so¬ nora como a que Mallarmé pretendeu criar. O fato de estas duas tendências se acharem presentes na poesia do nosso tempo, e presentes até, por vêzes, no mesmo poeta, não significa senão que elas são os dois limites entre os quais oscila a pulsação poética do homem dos nossos dias, que não é tanto um desequilibrado, como um insatisfeito, ao qual a verdade não aparece já com uma única face, e que, através da poesia, ora se abandona à comunicação sob tôdas as formas com uma realidade pressentida, obscura, quer a ve¬ ja dentro ou fora de si, ora pretende opor a êsse desvario o di¬ que de objetos que possam emergir como faróis inamovíveis no meio do fluxo das emoções e dos instintos em liberdade. A libertação da palavra é o fenômeno mais marcante da evolução da poesia, de há um século para cá. “Libertação” é têrmo insuficientemente elucidativo, mas todos sabem que ao dizer isto se entende o reconhecimento à palavra de um poder que se acha presente, mas não reconhecido, na poesia clás¬ sica, poder que os românticos, afinal, não souberam distin¬ guir da eloqüência, na maior parte dos casos, e que só vem a afirmar-se sem equívoco com os grandes poetas que, como Whitman e Baudelaire (e cada um de forma tão diferente), são realmente os grandes libertadores da palavra.

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Julgar a linguagem de um Whitman ou de um Baudelaire como se as suas palavras não tivessem um poder “incantatoire”, segundo a expressão de Mallarmé, será ignorar um aspecto essencial da transformação da poesia, de expres¬ são “refletida” em expressão que cria o seu próprio sentido independentemente da significação nela contida. Tôdas as di¬ reções tomadas desde então pela poesia se fundamentam na admissão de que nela nasce alguma coisa que não tem defi¬ nição à luz de tôdas as idéias tradicionalmente admitidas sôbre a essência da poesia. Quando Breton e os surrealistas pre¬ tendem dá-la como a própria expressão do inconsciente, só er¬ ram por o entenderem duma forma demasiado sistemática, pre¬ tendendo atribuir àquele um lugar exclusivo que na realidade não pode ocupar. Mas, de fato, embora sem o tomarmos num sentido de¬ masiado técnico, como não reconhecer como fonte da poesia uma zona que se encontra aquém — ou além — da coinci¬ dência superficial do homem com a sua vida cotidiana? Como ignorar que o valor das palavras ganha, na poesia, um poder de comunicação que seria absurdo se através da linguagem não se restabelecesse qualquer entendimento do homem para o homem, e do homem para as coisas, que não existe nas palavras quando tomadas unicamente como sinais? É certo que, tal como a linguagem da razão, a poesia também procura uma verdade. Mas é uma verdade daquela dimensão humana em que dois mais dois não é igual a quatro. Nem por isso é uma linguagem do absurdo, muito menos do irreal. O mais estranho poder da poesia é que torna o mundo mais verdadeiro, exatamente porque, nela, as palavras não fun¬ cionam como sinais, ou como rótulos, mas como substitutos de alguma coisa que permanece por trás delas. Tôdas as afi¬ nidades que têm sido supostas entre a poesia e as mais diver¬ sas formas do ocultismo, resultam exatamente de ser a poesia uma operação mágica, de não poder deixar de se reconhecer na transfiguração da palavra que se opera na poesia, qualquer forma de alquimia, uma transformação do mais vil no mais nobre metal.

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2) Poesia e Humanismo Numa nota de crítica (*) sôbre dois dos mais notáveis poe¬ tas norte-americanos de hoje — E. E. Cummings e Wallace Stevens, cujas poesias completas acabam de ser reunidas em volume — o crítico inglês G. S. Frazer, depois de incisivas considerações sôbre o que lhe parece haver a menos na obra de cada um, conclui como segue: “Cada sociedade tem o poeta que merece, e a América mereceu, inegàvelmente, ter um poeta com a espontânea, do¬ lorosa sinceridade de Mr. Cummings, e um artista do verso de primeira ordem, um poeta reflexivo tão profundamente inte¬ ressante como Mr. Stevens. As falhas que nêles sentimos são falhas que também (tanto na Inglaterra como na América) cada um sente em si próprio. Não basta “mergulhar” na vida, ou então “transcendê-la”, estética e intelectualmente. Isto não quer dizer que alguém pudesse, colocado na mesma perspecti¬ va dêstes dois poetas, ter feito obra superior à sua. Somente uma sociedade mais humana do que aquela em que vivemos ou do que aquela que podemos esperar para êste próximo fu¬ turo poderia constituir terreno propício ao aparecimento do poeta inteiramente humanista”. Eis o que, com uma ou outra variante, se poderia repetir quanto a tôda a poesia atual de muitos outros países da Eu¬ ropa e da América — e só não digo “de todos”, pelo escrú¬ pulo em estender a generalização à daqueles países cuja lite¬ ratura desconheço. . . mas que poderia jurar não fugir a estas condições. Com efeito, o mundo ocidental é um todo cultural, e aquêle princípio dos vasos comunicantes que nos ensinaram na escola é tão válido para a literatura como para a física: o que acontece num país, -— embora por uma forma sôbre a qual sabemos menos do que os físicos sabem acêrca do nível do líqüido nos diferentes vasos —, irá dar-se igualmente nos outros; as idéias circulam de uns para os outros até atingirem o mesmo “nível”. C1)

“Partisan Review,” Spring 1955.

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E hoje, depois da última guerra mundial, acontece que, mesmo naquelas nações que não tomaram parte direta nela, certos problemas que dizem respeito à condição humana lhes deram uma unidade como nunca tinha havido no mundo oci¬ dental. Triste é que seja precisamente uma unidade negativa, se assim é lícito dizer; uma unidade de carência, uma identi¬ dade na crise — na tal “falha” a que G. S. Fraser se refere. Porque, note-se bem, não se trata de menor ou maior perfei¬ ção — êle registra precisamente como esta é extrema num Wallace Stevens —, mas sim de algo incompleto na figura de cada um, grave precisamente por se tratar de dois poetas tão representativos; carência que, para o caso de Wallace Stevens, êle exprime dizendo sentir que falta neste “a presença da co¬ mum paixão humana, no sentido do compromisso, do momen¬ to de concentração final”. Digamos, por outras palavras, que falta a expressão para aquilo que não é alheamento da realidade, ou reação violenta contra ela; e creio não trair o pensamento de G. S. Fraser concluindo que êsse “vazio”, essa carência que êle deplora, seria a expressão, não dum conformismo, mas da harmonia do homem com a sua condição, isto é; a consciência de que a vida vale a pena. E é para tal que, conforme êle próprio verifica, não há “perspectiva”, reconhecendo que só uma sociedade di¬ ferente o tornaria possível. No mundo da falsificação, como se poderia realmente pe¬ dir ao poeta uma atitude que não seja alheamento dêle ou vio¬ lência contra êle? Porque são essas as únicas formas sob as quais lhe será possível preservar a autenticidade, livrar-se da corrupção. Cantar um mundo ideal? Ainda há dias uma res¬ peitável dama se indignava diante de mim contra as expressões para ela chocantes contidas no famoso poema de Manuel Ban¬ deira, “Poética”, e reclamava que os poetas falassem “à alma”. Mas à alma de quem? Das pessoas a quem a autenticidade choca? Das pessoas que gostariam de ver os poetas a fingir que tudo no mundo é um doce idílio? Há tantos poetas para satisfazer essas necessidades das pessoas ansiosas por lhes fa¬ larem à alma! Porque não se deliciarem com êles, desistindo de querer ouvir os Manuel Bandeira falar também à alma? Mas a grande hipocrisia está aí: a tais delicadas sensibilidades

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importa sobretudo muito mais que não se fale em “lirismo sifilítico” do que ouvirem a tal linguagem da alma. . . Para se acreditar num mundo ideal é necessário que êle se possa realizar dentro de nós, quer dizer, que seja legítimo falar nêle sem corar de vergonha, que a fôrça íntima que o suporte possa alimentar-se algures; porque o ideal não vive de fanta¬ sia, mas de experiência e de conhecimento. O ideal só pode ser a forma superior duma realidade que tenda para êle; um ideal baseado no mundo em que vivemos só pode ser uma ca¬ ricatura, como há por aí tantas; e os cidadãos que pedem à poesia para lhes falar à alma, deviam pedir antes à sociedade que desse licença à alma para ter algum sentido falar nela; mas a experiência do poeta é apenas a de que mataram a alma, e sôbre ela só pode escrever cantos funerários — e dêle está justificadamente cheia a poesia contemporânea, desde o céle¬ bre “The Waste Land” de T. S. Eliot. Será bom não esquecer que as reflexões do crítico inglês sôbre Cummings e Stevens não pretendem diminuir o va¬ lor da poesia de um ou de outro: o que êle pretende é pôr em acusação o mundo em que à voz dos poetas tem de faltar um certo elemento humano, de participação, de “humanismo”, para usar a sua expressão; o que êle deplora é não haver lugar, entre a violência e o alheamento, para o equilíbrio. Mas êste equilíbrio não o podemos pedir à poesia de hoje — ou então desejaríamos que ela fôsse falsificação.

3) Poesia e Forma Num excelente estudo sôbre a poesia de Dylan Thomas, que aparece no último número de “The Kenyon Review” f1), refere-se o seu autor, Geoffrey Moore, às duas linhas de de¬ senvolvimento da poesia nos últimos 150 anos. E grande par¬ te dêsse estudo lida com o problema dessa duplicidade, a qual, por tantas vêzes deixar de se ter em conta, permite essas de¬ finições unilaterais como a de Herbert Read adiante referida,

C1)

Spring 1955.

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a qual, não sendo falsa, só inclui um aspecto, é certo que fun¬ damental, mas um só, da poesia moderna. Não pretendo “comentar um comentário”, mas unicamen¬ te aproveitar a sugestão que me deu o referido estudo, cujas conclusões de ordem geral acertam tanto com a situação da poesia inglesa como com a de muitos outros países — creio mesmo legítimo dizer que acertam com a de tôda a poesia contemporânea da Europa e da América. Herbert Read defi¬ niu a poesia moderna pela tendência para uma dicção mais natural e uma estrutura do verso menos rígida, para maior honestidade e eficiência. Ora, a verdade é que tal definição obrigaria a ter como não moderna tôda a poesia de estrutura “elaborada” que, na esteira de Baudelaire, de Mallarmé, e mesmo de Rimbaud, vale mais pela riqueza das imagens do que pela libertação de ordem formal indicada pelos têrmos usa¬ dos por Herbert Read, ou pela sua definição como “culto da sinceridade” (Yeats). Não precisamos sequer de procurar dois poetas para mos¬ trar as deficiências da definição: Fernando Pessoa oferece-nos um exemplo ideal. A sua poesia não só mostra a existência das duas linhas de desenvolvimento, mas até como elas podem coexistir na mesma obra, sem contradição. Na realidade, tal¬ vez até falar em duas linhas de desenvolvimento seja uma des¬ sas convenções inevitáveis a que conduz o desejo de clareza. Haverá realmente uma separação total entre ambas? A ver¬ dade será talvez o poder da imagem, da linguagem como símbolo, a que se refere Geoffrey Moore, não constituir tanto uma linha diferente, como a outra face da expressão poética, e não se trataria portanto de duas maneiras equivalentes, mas de duas metades, digamos assim, em ambas as quais estaria incompleta a autêntica expressão poética. A necessidade de recuperar o contacto com a realidade humana, que se perdera com a versificação de tipo parnasiano, explica, em grande parte, a tendência expressa na definição de Herbert Read, e da qual pode ser perfeita exemplificação a poesia de Walt Whitman. Restabelecer o contacto com a própria inflexão da voz humana, reaver a própria densidade da linguagem falada, humanizá-la, fazer novamente dela ins¬ trumento de comunicação, eis sem dúvida um dos traços fun-

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damentais de tôda a poesia que, como a de Whitman, como mais tarde a de Apollinaire, de T. S. Eliot, de tantos ou¬ tros, parece poder definir-se fundamentalmente nos têrmos da definição de Read. Mas — e é o que a poesia de Fernando Pessoa nos per¬ mite ver — essa recuperação não nega o valor duma poesia que não pode ter expressão direta, que não pode fluir como se fôsse o natural discurso duma voz que não conhece o mis¬ tério. A alternativa dos dois tipos de expressão corresponde, em Pessoa, à própria duplicidade da natureza poética, que oscila entre a luz e o mistério, entre a necessidade de clareza e a de obscuridade. Não quer isto dizer que haja uma aspiração de clareza pela clareza, de obscuridade pela obscuridade — mas que a poesia, que procura encontrar a própria voz da mais íntima realidade das coisas, tem que revelar igualmente o desejo de clareza e a consciência da obscuridade que são as virtualida¬ des fundamentais da natureza humana. Não há em Fernando Pessoa uma “preferência”: o au¬ tor do “Ültimo Sortilégio” e o de “Liberdade”, o do sonêto a Gomes Leal e o do “Poema em linha reta”, exemplifica igualmente a poesia que vive pelo poder mediúnico da imagem ou pela fôrça, ritmo e variedade da própria fala. Exatamente porque êle concentra os podêres aparentemente contraditórios da “manifestação” do imediato e da simbolização do oculto, o sentido da luz e o da treva. Se o deveu a essa “falta de sinceridade” que, segundo uma das tendências, o deveria con¬ denar, a verdade é que a autenticidade da sua obra, isto é, o seu valor poético, prova precisamente que ser sincero não de¬ fine o poeta, como aliás fàcilmente se verifica atentando na quantidade de sinceridades insignificativas e destituídas de qual¬ quer interêsse de que se forma o maior caudal dos versos em circulação. É certo que, sob uma ou outra das formas, encontraría¬ mos exemplos mais nítidos em poetas diferentes; se, por exem¬ plo, comparássemos um Mallarmé e um Whitman. Mas não deixa de ser curioso notar como tive que procurar êstes exem¬ plos bem nítidos fora da poesia portuguêsa. É que, com efei¬ to, uma das características que mais me parecem bem suas

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vem a ser a ausência de poetas que possam tipificar tendên¬ cias extremas. Se não estou em êrro, quererá isto dizer que a poesia portuguêsa procura instintivamente a verdade na acei¬ tação simultânea da luz e da sombra, que o racional e o irra¬ cional, o dia e a noite, partilham igualmente o seu conheci¬ mento do mundo. E isto pode explicar, só por si, que o surrealismo não tenha encontrado lugar próprio na poesia portuguêsa; pois se um Cesário Verde, poeta do real entre todos, o homem das coisas “naturais”, êle próprio está cheio de imagens surrea¬ listas! Impregnada de sentido do mistério, do sentido mágico que encerra o próprio cotidiano, o poeta português parece-me ser, realmente, sem esforço, aquêle que melhor pode justificar o famoso dito de Novalis: “A poesia é o real absoluto”.

4) Benedetto Croce e a Poesia Os poetas devem uma gratidão especial ao filósofo Bene¬ detto Croce. Porque a atitude tradicional dos filósofos pe¬ rante a poesia partilha-se, com bastante poucas exceções, en¬ tre a desconfiança de Platão, que acaba por lhes prometer a expulsão da cidade ideal, e um aprêço (que Platão tam¬ bém tinha, será bom lembrar, não obstante as suas ameaças) que não é sem dúvida o aprêço para o qual a poesia foi feita. Raramente os filósofos, embora seja muito freqüente fa¬ laram dela, a souberam ver “em si própria”. E essa é a vir¬ tude do muito que Croce escreveu acêrca da poesia, vendo nela uma passo no caminho da verdade. . . mas a seguir ao qual só ao filósofo competiría dar mais um para a atingir. Pe¬ lo contrário, Croce soube sempre reconhecer que, se a poe¬ sia dá qualquer passo em direção seja ao que fôr, não é pelo mesmo caminho que segue o filósofo, e que, se aquêle desco¬ bre alguma coisa, será bem diferente daquela que busca o se¬ gundo. Em La Poesia, livro que todos os poetas deviam conhecer, acha-se, entre tantas páginas admiráveis, esta breve e lumino¬ sa síntese da sua atitude: “À luz da relação estabelecida en¬ tre poesia e filosofia, nota-se desde logo, e quase com pasmo,

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a grande extravagância das teorias que, sem todavia identifi¬ carem poesia e filosofia, submetem a poesia à filosofia, a qual atribuiria àquela uma finalidade, e ordenaria racionalmente as suas partes. Não só a filosofia carece de qualquer poder so¬ bre a poesia (“Sorbonae nullum jus in Pamasso”), que nasce sem ela e antes dela; mas, quando a filosofia dela se aproxi¬ ma, ao contrário de a fazer surgir ou de a fortalecer, dá-lhe a morte; porque uma das maneiras de morrer, no mundo da poesia, é cair no mundo da crítica e da realidade”. A idéia da maior parte dos filósofos, e de muita gente que não é filósofo, consiste precisamente em não reconhecer que a poesia se basta a si própria; isto é, em a valorizar pelo que não a define, em reconhecer nela determinados elementos, e tomar êstes como a sua própria fisionomia. Mas não deixa de ser verdade que existe algum nexo entre poesia e filosofia, que dá motivo a tais confusões. Nexo tão íntimo que justifi¬ ca só por si a separação formulada por certas correntes da crítica entre poesia e literatura, e em primeiro lugar pelo pró¬ prio Croce, que define a primeira como “uma esfera de pura qualidade sem o predicado de existência, isto é, sem o pensa¬ mento e a crítica, os quais, discernindo, convertem o mundo da fantasia no mundo da realidade”. Ora, a verdade é que — admitindo como válida a defi¬ nição de Croce — essa pura qualidade é afinal a própria me¬ ta da filosofia. A atração exercida pela poesia sobre o filó¬ sofo está precisamente no fato de êle ver nela (quando vê) uma expressão realizada daquilo que êle pretende alcançar “pelo pensamento e pela crítica”. O filósofo estaria assim com um pé na poesia e outro na literatura, e a filosofia não será outra coisa que a conciliação da poesia e da literatura. Mas para ser legítima esta afirmação tornar-se-ia necessário, antes de mais nada, que pudéssemos admitir sem restrições a definição de Croce, e eis o que me parece difícil. Na realidade, sucede com a poesia um fenômeno muito significativo, que é tornar-se qualquer definição dela falsa logo que se pretende “fechá-la”.

E precisamente Croce não deixou

aquela porta que tem de estar sempre aberta, aquela conces¬ são à incerteza, que é exigida pelo caráter protêico da poesia, sempre pronta a encarnar sob as formas que menos se espera.

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Pela mesma razão me parece deficiente, embora certa nos seus fundamentos, a crítica de Croce às “falsas histórias da poesia”, e a sua condenação do que acontece “.. . quando a história extrapoética, política, moral e filosófica se torna cri¬ tério de juízo da história poética, reduzindo a poesia a repre¬ sentar povos e partidos, a tornar-se polêmica, hábil e astucio¬ sa, a ser um grito de revolta e de guerra, a arma de combate, e também uma exposição de idéias, de sistemas, de cren¬ ças ...” Ora, a verdade é não se poder negar que a poesia também seja tudo isso. Há talvez, apenas, uma deficiência de expressão da parte do filósofo, pois as suas palavras iniciais são bem claras, e é evidente que o único critério da história poética só pode ser a própria poesia; mas, e eis que surge a referida ambivalência, nem por isso a poesia deixa de ser, sem que se torne “menos poesia”, “grito de revolta e de guer¬ ra”, “arma de combate”, ou exposição de crenças, etc. Ora, se assim é, como podemos nós isolar a poesia do que com ela se consubstancie? Claro que só tenho em vista os casos em que tal suceda, e nem escolherei senão um exem¬ plo: A Divina Comédia, perguntando-me como podemos se¬ parar a sua “poesia” dos outros elementos cuja unificação com aquela fazem do poema de Dante uma unidade. E não vejo outra resposta que não seja reconhecer uma falha no pensa¬ mento de Croce, a qual não tenho, é evidente, a presunção de solucionar. O que me parece faltar na definição de Croce é uma articulação com a realidade; não se trata daquela reali¬ dade à qual Croce se refere no fim da primeira citação que dêle fiz, isto é, não se trata da realidade das “coisas”; mas trata-se, tem que se tratar e não pode deixar de se tratar da realidade que nós somos, isto é, da circunstância em que a poe¬ sia nasce; ora, na segunda citação, ao definir a poesia, Croce dá-a precisamente como “pura qualidade sem o predicado de existência”. Bastará dizer isto? Eu penso que essa “pura qualidade” absorve a existên¬ cia; penso que a poesia só existe desde que se dá tal absor¬ ção, ou seja, que a poesia só pode ser pura qualidade por obra e graça dessa absorção. O que é, reconheço, um paradoxo. Mas não será outro paradoxo pôr a um lado a “pura qua¬ lidade” e a outro a “impura existência”?

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5)0 Mistério da Poesia Embora possa ter tomado proporções de moda, com abu¬ sos nada favoráveis a generalizar-se o seu reconhecimento, a admissão de que há um “mistério da poesia” é, seguramente, um ganho que a nossa época tem no seu ativo, e graças ao qual abriu profunda brecha na fácil presunção das “explica¬ ções” que para tudo encontram causas, num impressionante à vontade em passar dos fatos conhecidos da vida, da cultu¬ ra, da experiência do poeta para qualquer coisa verificada na sua poesia. Todos os avisos da boa filosofia não serviram para na¬ da, por exemplo, como o de David Hume (“O acaso ou se¬ cretas e desconhecidas causas devem ter grande influência na origem e progresso das artes”), ou o de Diderot (“Só temos na memória palavras que julgamos entender pelo uso freqüente que delas fazemos, mas no espírito apenas vagas noções”), que eram, todavia, pensadores bem adversos ao “culto” do mistério. A recusa do mistério não constitui só por si a menor vir¬ tude. São precisamente aquêles que mais amor têm à clareza quem melhor sabe reconhecer as suas fracas forças para a le¬ var a tôda a parte — e quantos presumem de tudo ser racionalizável são, quase sempre, os que mais depressa se dei¬ xam iludir por “explicações” perfeitamente irracionais, como seja a de supor idêntico aquilo que apenas se assemelha, e con¬ tentam-se com sinais exteriores de parentesco que, afinal, não têm entre si outra ligação senão a que se opera no espírito dos rebuscadores de causas. É bem visível a ineficácia da análise literal da poesia, en¬ terrada nas pilhas de comentários por meio dos quais plêiades sucessivas de esmiuçadores do verso, sob todos os seus aspec¬ tos, têm tentado, pelos séculos afora, achar a causa dos mis¬ teriosos podêres que nela se contêm. Na realidade, só os fi¬ lósofos e os poetas sabem falar da poesia — exatamente porque não procuram o segrêdo nas linhas mas nas entrelinhas, e, muito menos do que explicar, aspiram a interpretar. E expli¬ car o quê? eis a pergunta que, se a soubessem propor a si próprios tantos explicadores, lhes e nos evitaria tanto tempo

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perdido à margem da questão. Explicar o “porquê”? explicar o “como ’? explicar o “para quê”? Só a esclarecida interro¬ gação sôbre êstes três problemas prévios, no íntimo fôro de cada aspirante a explicador, bastaria para diminuir a crise in¬ ternacional do papel. . . Na realidade, no verso não há mistério nenhum, quer di¬ zer, não é na rebusca de elementos que se pode encontrar a chave daquilo que de tais elementos parece compor-se. O segrêdo está precisamente em que os elementos deixam de fun¬ cionar como tais desde o momento em que há poesia. O verso é uma confluência imprevisível de causas que, mesmo reco¬ nhecidas, mesmo compreendidas, não nos poderiam dizer o segrêdo da sua transformação em poesia. Sabemos demasia¬ do pouco da correspondência entre as várias “regiões da rea¬ lidade” para estarmos habilitados a estabelecê-la entre o plano do entendimento e o plano em que sentimos estèticamente — pois nem sequer sabemos o que venha a ser êste sentir estèti¬ camente, não obstante ser uma “evidência” irrecusável. E é por isso mesmo que entendo serem os filósofos e os poetas os únicos capazes de nos desvendar perspectivas real¬ mente elucidativas sôbre o mistério da poesia, na medida em que se abstêm de tentar uma análise do que a constitui, acom¬ panhando antes o próprio movimento das formas, das emoções, de tôda a espécie de “conteúdos” que ela oferece, sem cuida¬ rem de descobrir a “matéria” de que seria feita, reconhecendo antes a sua realidade integral, impossível de ser desfiada. A análise literal trata-a como se fôsse um motor que, desmon¬ tado, desvendaria o segrêdo do seu funcionamento; o filósofo e o poeta “aceitam” a poesia como um todo que só existe co¬ mo tal, que, por assim dizer, não tem passado. Há um mistério da poesia tal qual há um mistério da vida. Um mistério que nada tem a ver com a propensão de certas tendências espirituais para ver na “inspiração” um sen¬ tido místico. O mistério da poesia é da sua própria essência, não lhe vem senão dela própria, isto é, de ser uma forma de comunicação entre os homens à margem das formas utilitárias da linguagem. Os homens entendem-se através dela para trans¬ mitirem, não um saber, mas o próprio sentido da perplexida¬ de que os habita, para passar de uns a outros as visões que

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os fizeram mergulhar mais fundo na consciência de existir. E esta consciência é um mistério, uma secreta comunicação que o homem sente mas só exprime como mistério que é. Todos os sentidos que a vida assume para o homem po¬ dem ter expressão na poesia, porque êste mistério não depende do que o homem crê ou quer, mas daquilo que êle vive, enten¬ dendo-se aqui por “viver” qualquer forma de experiência in¬ terior, e não a vida realizada. As idéias, os sistemas, as re¬ ligiões passaram sem que passasse a poesia que parecia fazer corpo com elas — é a poesia de Dante que é imortal, e não a sua teologia. E todavia. . . idéias, crenças, sistemas, opiniões, fazem indestrutivelmente parte da poesia. De que maneira? Tanto se tem escrito sôbre isso, e tão longe estamos de saber deslindar êste aparente paradoxo! Talvez haja em tôdas as idéias, cren¬ ças, sistemas, opiniões, uma parte de “verdade” que se salva para além da sua “morte”. Talvez a poesia seja exatamente “o que se salva”, e que, por não lhe sabermos dar outro no¬ me, chamamos mistério. E, precisamente, pretender “explicar” a poesia é reduzi-la a um plano determinado, é restringir êsse absoluto que ela é a um relativo, a uma aproximação que só deixa nas mãos do explicador farrapos do seu manto de astros. Por isso mesmo a poesia tem servido mal tôdas as causas, que tôdas são de¬ masiado pequenas para ela, que só conhece uma causa, a do homem, sem exclusões nem excomunhões. Aceitemos, pois, o seu mistério, que talvez seja o pró¬ prio sinal da sua incorruptibilidade, a prova da fraterna comu¬ nicação que ela constitui — dentro da vida, mas acima da con¬ tingência, eterna e cotidiana ao mesmo tempo.

6) Utilidade, Moral e Poesia O aparecimento da poesia moderna não ganhou êsses fo¬ ros de “escândalo” que todos sabemos unicamente por via de tudo aquilo que trouxe de nôvo; pelo menos aos olhos du¬ ma parte do público, as questões formais, para êle pouco me¬ nos do que inexistentes, não bastariam para provocar a onda

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de indignação com que foi recebida. A verdade é que se cria¬ ra um “falso público” para a poesia, o qual se habituara a encontrar nela uma espécie de satisfações que ela só ocasio¬ nalmente lhe podia fornecer — e que foram por êle identi¬ ficadas com a própria poesia. Isto, pelo menos quanto à poesia portuguêsa, parece-me evidente; e basta lembrar o nome de Junqueiro para sugerir ao leitor qual a espécie de público em que penso: aquêle que se entusiasmara com um autor cujos “discursos”, cuja dema¬ gogia tiveram um lugar importante na luta que precedeu a pro¬ clamação da República, cujos versos alcançaram setores da população para os quais, até então, a poesia não tinha qual¬ quer interêsse. Dá-se assim esta situação com seu quê de paradoxal: o que poderia ser tomado como uma vitória da poesia redunda afinal em prejuízo dela; a extensão do público vem afinal a significar uma diminuição do “poder” da poesia, pois aquela só fora alcançada graças às transigências dum autor cujo es¬ tilo grandiloqüente e verbosidade criara uma situação equí¬ voca da qual só adviriam à poesia novos equívocos. Um dos mais curiosos é aquêle que fêz condenar a mais dum crítico a poesia de António Nobre porque ela não cantava a alegria, a saúde, etc. É claro que não estamos longe das queixas que mais tar¬ de se iriam levantar contra o “subjetivismo”, contra uma poe¬ sia acusada de se alhear dos problemas cotidianos. Porque, no fundo, vamos encontrar sempre a velha querela contra a poe¬ sia “inútil”. Se nem todos os inimigos da poesia a medem pe¬ la reduzida bitola das exigências “práticas”, a verdade é ser sempre êsse utilitarismo que vamos encontrar no fundo das mais variadas reclamações para que ela se “interesse” por isto ou por aquilo. Mas o verdadeiro leitor dos poetas é o homem que tem, pelo menos, o pressentimento de algo para além dos gestos, dos atos, das emoções, das idéias necessárias e suficientes para a sua vida “prática”. Porque desdenharia êle a poesia que não lhe fala dos desejos, das ambições e das esperanças que for¬ mula para essa vida “prática”? Porque pediria êle à poesia precisamente o mesmo que à vida cotidiana? Para êle, que

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não a encara como “vantajosa”, a poesia nunca poderá ser dissolvente, perigosa, etc., como para os advogados da sua utilidade — e da sua moralidade. Existe um desentendimento que só terá fim no dia em que a humildade bafejar uma parte da humanidade que cons¬ titui ainda hoje a sua grande maioria. Pois como, na socieda¬ de em que vivemos, havia de se entender a poesia senão pelo que ela possa “render”? Os espíritos livres não perguntam para que serve o poema que os perturba, os exalta, os arranca ao condicionalismo da sua vida de todos os dias; é para êles um caminho de libertação, não da condição humana, mas da condição desumana em que a sociedade os encerra. Outrora, a sociedade pedia ao poeta que a distraísse; de¬ pois, reclamou que lhe fôsse útil. Mas a desagregação dum mundo em que ser útil significava apenas “lucro” ensinou fi¬ nalmente aos poetas que os seus fins eram os do homem, e não os duma classe — e a sociedade voltou-se então contra o poeta traidor, que se recusava a fazer o elogio do “melhor dos mundos possíveis”, porque descobrira, e passava a reivin¬ dicar, uma função específica da poesia. A coisa que não serve para nada não tem comprador — eis a máxima que está subjacente ao desdém por uma poesia que deixou de adular o homem, ao desdém pelos poetas que, em vez de glorificar o homem, começaram a dirigir-se ao “hi¬ pócrita leitor, meu semelhante, meu irmão”. E é ver como os regimes totalitários refinaram nesse desdém, por êles trans¬ formado em perseguição e autos-de-fé, “mandando” os poetas cantar a fôrça e a alegria, condenando a “arte degenerada”, com o que não faziam senão dar fôrça de lei aos sentimentos da classe de cujo mêdo nasceram. E se aparecem de vez em quando certos “intelectuais” a deplorar “desinteressadamente” que os poetas prefiram “con¬ templar o umbigo psíquico” a ser “construtivos” (que é a maneira moderna e totalitária de dizer “úteis”), como não ver que fazem afinal o mesmo jôgo, sejam quais forem os prin¬ cípios de que se reclamam?! Servem os mesmos interêsses, combatem a mesma reivindicação, fazem eco à mesma repulsa dá sociedade pela poesia autêntica — mesmo quando presu¬ mam de inimigos dessa sociedade.

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Compreende-se aliás que um espírito simplista, e uma sensibilidade de via reduzida, ambos acondicionados nas do¬ bras rígidas duma pseudo-cultura, julguem haver identidade en¬ tre atitude poética e atitude idealista, quando o poeta fala de si, isto é, quando descobre o mundo através de si próprio. Efetivamente, a frase acima referida sôbre o “umbigo psíqui¬ co”, lançada pelo mais conservador dos críticos, encontrou to¬ tal aplauso, e foi largamente reproduzida pela crítica que, ideo¬ logicamente, se situava no setor a êle mais adverso — prova de que, contra a liberdade da poesia, contra a sua “perigosa liberdade”, a crítica neo-clássica dava as mãos à crítica “ex¬ tremista”, que por sua vez não dizia outra coisa do que a crí¬ tica fascista. Grande lição para os que julgam suficiente olhar para a fachada, quando se quer saber o que está por trás dela; porque êsses anti-idealistas de intenção não passam de uma espécie de retaguarda dos moralistas, utilitaristas, etc. — na mesma inimigos, portanto, do que através de poesia expri¬ misse a ânsia de uma liberdade que põe sempre em risco qual¬ quer boa organização da sociedade. . .

7) A Propósito de Pablo Nemda Há certos temas que se tornam obsessivos, não tanto, mui¬ tas vêzes, pela importância que deveriam ter, mas à fôrça de os vermos desvirtuados pelos que mais cuidam em defender o seu nada do que alcançar aquela visão objetiva que deve ser a meta da reflexão. E assim, ao abrir há meses a admirável tradução que o poeta brasileiro Domingos Carvalho da Silva fêz dos Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada de Pablo Neruda, com que alegria não encontrei no prefácio de Jorge Amado uma pequena frase que vem ao encontro daquilo que me parece ser a única posição séria, a única posi¬ ção defensável, ante a dupla facêta individual e coletiva da poesia! Não me tenho cansado, e não me cansarei nunca de com¬ bater a favor de uma idéia da poesia totalmente oposta àque¬ la que pretenderia cavar um abismo entre uma poesia subjeti¬ va e uma poesia objetiva; entre uma poesia do indivíduo, e

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uma poesia coletiva. Sempre defendi, e não me cansarei de defender o ponto de vista segundo o qual a poesia não é fe¬ nômeno que se possa acorrentar a tais conceitos, capazes ape¬ nas de criar em quem aceite sem crítica o que lê a falsíssima convicção de existirem, por assim dizer, duas raízes da poesia, correspondendo cada qual a um mundo. Eis porque me alegra ter lido, da pena de Jorge Amado, esta afirmação: “Se Neruda não houvesse vivido as experiên¬ cias que resultaram neste livro talvez não tivéssemos o Neruda de depois, voltado para as dores coletivas. Um nasce do outro e se completam”. Chamo a atenção do leitor sobretudo para a última frase: “Um nasce do outro”; nada mais verdadeiro: onde está o autêntico poeta que possa estar no mundo antes de ter estado em si próprio? É certo: só à custa de se conhe¬ cer, é que o poeta pode conhecer o mundo; só depois de sa¬ ber quem é, o poeta pode incluir-se no mundo, achar a sua posição nêle, reconhecer-se como quem tem tudo a ver com o mundo de todos os homens. Que vemos no caso contrário (que nunca será, note-se, o de um autêntico poeta)? Vemos dispor das formas poéticas como instrumento passivo, vemos uma tentativa de lhes adaptar um discurso prèviamente conhe¬ cido do aspirante a poeta, vemos a canção ou o sonêto, a ode ou o poema encherem-se de palavras que pretendem di¬ zer muitas coisas, mas destituídas de fôrça criadora, sem poder de comunicação, sem a marca de uma personalidade a vin¬ cá-los . Diz ainda Jorge Amado: “Muito caminho percorreu na sua vida poética êsse poeta Pablo Neruda que é hoje o can¬ tor das grandezas e dos problemas do seu povo chileno. O ca¬ minho dessa lírica que pode ser comparada aos melhores so¬ netos de Camões, lírica que ressurge por vêzes em alguns dos poemas da Residência na Terra, como no Tango do Viúvo, foi depois o do homem abismado ante o mundo, tentando ex¬ plicá-lo subjetivamente, buscando dentro de si, no mistério do seu coração, a explicação do que ia pelo universo afora e na tragédia de não bastar o seu íntimo para tal solução” — e acaba falando da última fase da sua poesia, do grande poeta social.

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Sim, tal poeta não podia deixar de ter vivido profunda¬ mente a sós consigo, antes de ver surgir dentro de si o poeta da última fase. Como poderia ter personalidade a sua poe¬ sia “do mundo” se atrás dela não estivesse a poesia “do poe¬ ta”? Porque de personalidade se trata sempre quando uma criação literária está em causa. E como pode estar numa po¬ sição própria (sem a qual não há poesia) perante o mundo aquêle que não a teve perante si próprio? Não há poetas so¬ ciais, mas poetas que alcançam ser poetas sociais. Ora, crê muita gente, e, está claro, alguns pretendentes a poetas, que “glosar temas” seja coisa capaz de resultar em poesia. Quan¬ tos “poemas da resistência” tenho lido! E, contudo, que vejo em todos êles, senão a ausência de quem resista? E onde não há um quem, não há poesia. Se o homem não tem uma es¬ trutura espiritual, não há a lâmina em vibração que possa aco¬ lher as ondas magnéticas que vêm do mundo para os homens. Para estar com os outros, para responder ao mundo, é im¬ prescindível uma personalidade, uma consciência — e um poe¬ ta. E não quero outro exemplo, além do de Neruda, senão o de um Aragon. Crê alguém que o poeta do Crêve-Coeur não contém em si o surrealista do Paysan de Paris? Crê al¬ guém que houve em certa altura da sua vida um divórcio to¬ tal com a sua experiência anterior, e que êle podia ser tão grande nos seus poemas de combate se não tivesse amadu¬ recido a outros sóis que o da comunhão na luta contra o ini¬ migo? Ah, que bem pobre idéia da poesia terá quem tal pos¬ sa acreditar! Não defendo com tanto calor êste ponto de vista, não me alegra tanto encontrar-me de pleno acordo com Jorge Amado, senão porque se tem usado e abusado de confusões que a ne¬ nhum título me parecem justificáveis e que, sobretudo, só te¬ nho visto servirem para adulterar em certos espíritos, simul¬ tâneamente, o sentido do combate e o dos valores espirituais, ou como se queira chamar-se-lhes. Porque há uma dignidade da vida, que se corrompe simultâneamente. Aquêle que usa da poesia como de um instrumento, que faz versos que não amadureceram no mais íntimo de si, põe no mesmo plano a poesia e o artigo que se escreve à mesa de um café, as quadrinhas que se premiam nos jogos florais. Um falsário é sem-

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pre um falsário — mesmo quando se trata de poesia, e sem sanções previstas nos códigos.. . Ainda que não seja êste um artigo sôbre Pablo Neruda, não me seria possível terminar sem uma referência à quali¬ dade excepcional da tradução. Nem por um momento tive a impressão de se tratar de versos traduzidos — e sabe o leitor que coisa rara e excepcionalíssima isto é! A tradução dos Vinte Poemas enriquece a literatura de língua portuguêsa. Quan¬ tas vêzes tal coisa se tem podido dizer de uma tradução de poesia?

8) Carlos Drummond e a Obscuridade Há meses (Q, admitia Carlos Drummond de Andrade (no Jornal de Letras, em número que extraviei, pelo que a re¬ ferência é de memória) que a sua poesia podia ser obscura por ser pessoal. Atitude generosa, sem dúvida; mas generosa demais, porque pode dar uma consolada tranqüilidade de cons¬ ciência ao mau leitor de poesia. Êste, em vez de reconhecer a humildade do poeta, é bem capaz de se julgar no direito de atribuir àquele tôdas as suas incompreensões, pois que êle lhe facilita a preguiça ou a falta de receptividade. Realmente, o leitor não precisa saber se o poeta nasceu em Itabira, nem que emoções, encontros e paisagens marca¬ ram o seu itinerário, para ter a obrigação de penetrar o sen¬ tido daquilo que pode dever-se a tudo quanto colaborou na “formação” do poeta. Do que êle, leitor, precisa, é apenas de saber “reconhecer” na poesia um sinal de autenticidade, e ir ao encontro dum homem, duma emoção, saltando por cima das alusões que formam o vocabulário do poeta. O resto virá depois, ou não virá. O resto é com o crítico, com o historia¬ dor da literatura, é coisa a discutir ou a deixar de discutir, e que nunca pode adiantar nada sôbre aquêle juízo essencial e “em bruto”, sôbre o choque do qual o leitor sai enriquecido com alguma coisa que não tem nome (ou à qual só por apro¬ ximação podemos dar nomes, sempre impróprios e incomple(i)

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tos), que pode nem ter feições definidas: um frêmito que pas¬ sa, um imperceptível sôpro tocando os corações dos homens — e a sua inteligência, por que não? Claro está que a proporção em que os fatores pessoais intervêm na emoção do leitor varia segundo os poetas; embo¬ ra tôda a poesia de nível superior “fale” ao mesmo tempo à emotividade e à inteligência, ora se dirige mais a uma ora mais à outra. Admitamos, para o caso em questão, que a poesia de Carlos Drummond precise da inteligência, exija a colabo¬ ração desta para que se suscite a receptividade do leitor; mas isto não é admitir que a inteligência baste para suscitar a re¬ ceptividade. Porque, se a poesia nasceu dum determinado lu¬ gar, de determinada circunstância, isto se passa apenas entre o lugar e a circunstância, dum lado, e o poeta, do outro. O leitor não precisa percorrer o caminho inverso; nem pode: a passagem ficou irremediàvelmente vedada, um fôsso cavou-se entre o acontecimento da vida do poeta e êsse outro aconte¬ cimento, noutro plano, noutro mundo, que é o poema. As emoções transfiguradas já são do domínio da história. “Se a semente não morre...” Porque, lá no fim — ou princípio — não está nenhuma razão de ser da poesia que a possa “esclarecer”, estão apenas lugares, circunstâncias, emoções da vida, que um dia suscita¬ ram determinada emoção que não estava nêles, foram instru¬ mento, ou pretexto, mas não “origem”, de qualquer visão ful¬ gurante. Porque, quanto a esta origem, se não a “reconhece¬ mos” no poema, nada nos permitirá comunicar com ela. Tôda a poesia é pessoal na medida em que exprime algu¬ ma emoção, estado de espírito ou seja o que fôr. A modéstia do nosso poeta não lhe permitiria acrescentar, sequer, que a autêntica poesia se define pela transfiguração do que é pes¬ soal nessa emoção “significativa” e “impessoal”, “que vive no poema e não na biografia do poeta” (T. S. Eliot), e que a possível obscuridade das circunstâncias às quais o poema alu¬ da só será tal quanto à sua localização no espaço e no tempo, e que se transformará em luminosa evidência por essa espécie de contágio que se dá entre o poeta e todos os homens que algum dia “viveram” profundamente qualquer emoção da mes¬ ma raiz.

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A generosidade do poeta é muito mal empregada neste mundo de cegos e surdos — pois só os cegos e os surdos hão de achar insuficientemente claro o que dos acontecimentos da sua vida transparece nos versos de Carlos Drummond para êles próprios reviverem uma emoção que deixou de ser de um lugar e de um tempo, para ser de todos nós, que não pedimos à poesia a crônica duma vida, mas, sim, a comunhão na vida. A poesia moderna nasceu sobre as ruínas da unidade do homem, e contra a ilusão de que só teria valor a expressão do impessoal. O poeta sentiu a necessidade de se reintegrar no humano, e até na “anedota”, de se revelar através do efêmero, do aparentemente fugaz, do momento que passa, a fim de re¬ valorizar a poesia como instrumento de comunicação. As pa¬ lavras de T. S. Eliot que citei acima não estão de modo al¬ gum em contradição com isto, porque falam no resultado que o poeta atinge, não dizem como êle aí chega. A finalidade da poesia não mudou, quero dizer, aquilo que Eliot afirma é verdade em relação à poesia antiga e à moderna; — a dife¬ rença fundamental está em que o poeta moderno tem de refa¬ zer o mundo dolorosamente, porque já não acredita que êle possa existir independentemente de si próprio. E então, co¬ mo um Carlos Drummond, vai redescobrir a verdade nos seus próprios passos, porque mentiria a si próprio se fingisse igno¬ rar que o mundo não lhe foi “dado” como uma verdade inal¬ terada. A imagem tomou na poesia moderna o lugar que antes dela fôra ocupado pelo conceito. Outrora, o poeta já conhe¬ cia o mundo, entrava numa ordem preestabelecida; hoje tem que refazer o caminho inteiro à sua própria custa. Daí que êle pareça obscuro àqueles que não sabem ler as imagens, e estão à espera que elas lhes falem a linguagem dos conceitos. Cada poeta tem de inventar o seu mundo, o seu vocabulário, recolher os pedaços estilhaçados do grande espelho do mundo. Não nos convidam para a “reprise” dum espetáculo que já subiu muitas vêzes à cena, mas para uma improvisação, como a da “Commedia dei Arte”. Mas o tema não muda, pois é na mes¬ ma o homem e a sua aventura.

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9) Das Idéias na Poesia a A poesia é uma figura envolta em mantos, para todo aquêle que pretende forçar o seu mistério. Nua, só está para cada um de nós no próprio momento em que nela nos fundi¬ mos, nos absorvemos, e com ela nos identificamos. Mal que¬ remos tocá-la, prendê-la com as pinças da explicitação, logo porém ela começa a ocultar-se por trás dos seus mantos, dei¬ xando nas mãos de quem pretende investigá-la as migalhas da sua “verdade” com que alimentamos vãs pesquisas — como esta. A poesia é uma deusa incógnita. Não é justo, porém, condenar sem apêlo todos os sucessi¬ vos métodos que o amor da poesia tem levado a crítica a inven¬ tar. São errados — e necessários; decifrar o mistério da poesia é um sonho vão, mas uma tarefa imprescindível. Das aproxi¬ mações incompletas alguma coisa fica; essas veredas que vio¬ lentam a floresta impenetrável, as pequeninas verdades desco¬ bertas, não nos dando embora a chave do segrêdo, vão consti¬ tuindo marcos ao longo dos quais se forma, pelos séculos fora, uma cadeia de interrogações cada vez mais precisas; ela e a poesia são vidas paralelas — e que jamais se encontrarão — entre as quais se estabelecem vagas comunicações, vagas iden¬ tidades, mas jamais a completa assimilação que seria a poesia explicada. Das sucessivas ilusões que a crítica tem alimentado relati¬ vamente à sua capacidade de penetrar o segrêdo da poesia, uma das mais enraizadas é, sem dúvida, a da equivalência entre as idéias na sua expressão racional e as idéias que a poesia “parece” conter. Isto é: entre a reflexão conduzida segundo um nexo lógico, reflexão filosófica propriamente dita, e aquilo que, ex¬ presso ou subentendido, “se finge”, na poesia, o exato equiva¬ lente daquela. Que importância deve atribuir o crítico — e antes dêle o leitor — a essas “idéias” na poesia? O comum é serem elas tomadas como moeda forte discursiva, valendo seu pêso de ouro ao mesmo título que o pensamento filosófico. Um dos grandes choques produzidos pela poesia moderna foi, conforme é sabido, a quebra do nexo gramatical por parte de muitos repre¬ sentantes dela, quebra que, não alterando todavia essencialmente

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a expressão poética, foi tida não obstante como a subversão dela, prova de que a aparência discursiva desempenhava papel fundamental na aceitação da poesia, isto é, que o seu fingi¬ mento discursivo se sobrepusera, na receptividade de grande percentagem dos leitores (e dos críticos) à sua própria essência. Na realidade, a poesia infiltra-se na trama dos ideários filosóficos, da mesma forma que na das coisas cotidianas: é que numa e noutra procura uma autenticidade que é da filosofia e é do cotidiano, mas nem é a verdade (no sentido filosófico) nem a imitação da realidade. O seu fingimento camaleônico cessa no momento em que conseguiu introduzir o leitor nos seus próprios domínios, em que conseguiu enganá-lo, fingin¬ do-se idéia ou vida, intemporalidade ou existência. De fato, a poesia adota tôdas as formas de comunicação comuns às ou¬ tras linguagens por isso mesmo que ela é “a linguagem das linguagens”. Não é por outro motivo que a análise da “filosofia” dos grandes poetas se revela sempre decepcionante: tal filosofia não pode ser isolada; “traduzida” em discurso, falta-lhe, evi¬ dentemente, o valor próprio da reflexão filosófica; e nada mais certo e justificado do que a afirmação produzida pelo filósofo A. Koyré, em texto que infelizmente extraviei, de que é a má e não a boa filosofia que faz a boa poesia. Afirmação que decerto parecerá extravagante quando não se compreenda que Koyré pretende precisamente mostrar que a boa filosofia só pode ser boa filosofia, isto é, que sendo as idéias filosóficas um elemento, e não a raiz, da expressão poética, pretender en¬ contrar nos grandes poetas as grandes idéias seria afinal o mesmo que pretender encontrar, nos grandes filósofos... a grande poesia. Pretender relacionar as idéias dos grandes poetas com as dos grandes filósofos da mesma época será, pois, decepcio¬ nante, a menos de se ter em conta que, dêste ponto de vista, a diferença é mais importante do que a identidade. Tôda a grande obra poética contém um sistema de referências a um ou outro sistema filosófico, a uma ou outra concepção do mundo; mas não é êsse sistema, não é tal concepção que garante a au¬ tenticidade da poesia, exatamente porque a sua função é apenas

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introduzir o leitor, através duma linguagem comum, no mundo incomum da poesia. Através das idéias expressas o leitor, e o crítico, são cha¬ mados, não a um esforço de identificação da poesia com aque¬ las, mas, pelo contrário, pondo-as de parte, a avançar para o centro no qual brilha o poder oculto da palavra. Quer dizer que as idéias têm que ser, digamos assim, traduzidas para o sistema de linguagem específico do poeta. A “verdade filosó¬ fica” só pode ser, na poesia, um elemento de ligação, uma porta conduzindo ao centro luminoso que envolve aquela nos seus raios invisíveis, e assim a vivifica. Por isso a busca dos elementos de que a poesia seria cons¬ tituída nunca pode colhêr mais do que. .. elementos. A fór¬ mula estratégica de “dividir para vencer” não tem eficiência nenhuma na investigação da poesia, porque, dividindo, se anula a própria essência, que em vão iremos procurar nos fragmen¬ tos obtidos. Êsse é o risco das modernas tendências da inter¬ pretação poética que, embora por um lado acertem ao reconhe¬ cer o valor específico da poesia, desacertam imediatamente ao supor que tal especificidade pode ser captada pela análise verbal. Por isso insisto em que a poesia e o seu estudo são irremediàvelmente caminhos paralelos; a investigação, análise, crí¬ tica, ou como se queira chamar-lhe, é um admirável esforço, e tanto mais fecundo quanto melhor saiba reconhecer que a sua capacidade de franquear aos homens a compreensão da poesia, de elucidar os seus problemas, não vai ao ponto de lhes for¬ necer uma gazua universal capaz de abrir as últimas portas. Nestas apenas se entra pela porta secreta da comunicação intraduzível. Tôda a crítica é apenas um metáfora, e a sua maior virtude será não o ignorar.

10) A Poesia Entre Freud e Jung Não é para admirar que, entre Freud e Jung, a balança tenha pendido para o lado do primeiro, quanto à influência na interpretação da arte; até as boas razões o justificam, quanto mais as péssimas! Com efeito, o impacto da revelação de Freud, isto é, o direito de cidade ganho, graças a êle, pelo

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significado do inconsciente na vida humana, projetou durante longo tempo sôbre os restantes aspectos da sua teoria uma luz que a interpretação bem mais complexa de Jung só poderia receber quando os lados negativos do freudismo começassem a tomar vulto.

A poesia, e aliás a literatura e arte em geral receberam desde sempre de Jung um tratamento que, não fornecendo os elementos de fácil acesso (aparente, aliás) das idéias de Freud, não poderá deixar de lhe ganhar, pelo menos, o reconhecimento dos artistas; mas os críticos encontraram, nas idéias do genial médico de Viena que alcançam apreender, uma explicação que, tendo todos os prestígios da novidade, não os afastava afinal dos velhos caminhos da explicação da obra pelo homem, em especial pelas deficiências do homem, o que é uma tentação quase sempre irresistível para a crítica. Jung, com efeito, pelo fato de ter ultrapassado o mecanicismo de Freud, que reduz a criação artística a um “reflexo” de condições fisiológicas, pôde considerar a criação artística dando pleno valor à parte da criação, que, pràticamente, desa¬ parece em Freud, no qual tudo são “processos” e “resultan¬ tes”, sem que intervenha qualquer fator que possa dar conta do elemento estético. Assim, Freud, ao mesmo tempo que, pelas suas descobertas sôbre a função do inconsciente, fazia dar um passo enorme ao conhecimento do homem, ao mesmo tempo restringia a fecundidade das suas próprias idéias, pelo fato de, à semelhança da ciência do século XIX, manter o preconceito pseudocientífico dum causalismo simplista, e, dum princípio estabelecido quanto ao funcionamento da atividade psíquica, deduzir, sem ter em conta a intervenção de outros princípios, uma lei geral do espírito. O próprio Jung formulou em têrmos bem claros aquilo que o opõe a Freud: “Quando a escola de Freud mantém a tese de que o artista é um Narciso, isto é, uma personalidade limitada auto-erótico-infantilmente, é possível que formule um juízo válido para o artista como pessoa, mas que é inteira¬ mente inaceitável pelo que se refere ao artista como artista. Porque o artista como tal não é auto-erótico nem hetero-erótico, nem erótico seja em que sentido fôr, mas sim “objetivo”, “impessoal” no mais alto grau, e até inumano, pois que é.

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como artista, a sua obra, e não um homem. Todo o homem criador é uma dualidade ou uma síntese de qualidades parado¬ xais. Por um lado, é um processo humano-pessoal; por outro, um processo impessoal, criador” (“Psicologia y Poesia”, no volume Filosofia de la Ciência Literaria, Fondo de Cultura Economica, México). Igualmente, no ensaio “On the relation of Analytical Psychology to Poetic Art” (no volume Contributions to Analy¬ tical Psychology, Routledge, Londres) podemos colhêr abun¬ dantes referências a êste respeito, das quais me parece impor¬ tante destacar a seguinte passagem: “Admitamos que as deter¬ minantes da criação artística, do material e do seu tratamento individual, por exemplo, possam ser encontradas na relação pessoal do poeta com seus pais. Contudo, êste processo nada nos esclarecerá quanto à compreensão da sua arte, visto ser possível estabelecer idêntica relação em qualquer outro caso, muito especialmente nos casos de perturbação patológica. As neuroses e as psicoses são também redutíveis às re¬ lações infantis com os pais, tal como grande número de bons e maus hábitos, convicções, qualidades, paixões, interêsses espe¬ ciais, etc. Mas é evidente que não estamos no direito de afir¬ mar que tôdas estas coisas tão diferentes devam, conseqüentemente, ter uma única explicação; pois, se assim fôsse, sería¬ mos levados a concluir serem elas uma coisa só. Portanto, se uma obra de arte e uma neurose forem explicadas em têrmos inteiramente semelhantes, ou a obra de arte será neurose, ou a neurose uma obra de arte”. Creio desnecessário encarecer a importância dêstes tre¬ chos. Êles põem perfeitamente a claro o equívoco freudiano, e a incapacidade do seu método para nos fornecer uma inter¬ pretação (já não digo, sequer, uma explicação!) capaz de nos conduzir frutuosamente a qualquer descoberta efetiva e fe¬ cunda, tanto para a psicologia do artista como para a fenomenologia da obra de arte. A grande virtude de Jung, convém acentuá-lo, não está apenas na latitude e capacidade criadora do seu ponto de vista quanto à psicologia do artista, mas, e principalmente, no fato (veja-se a primeira transcrição) de êle ter reconhecido que os problemas estéticos não podem ser reduzidos aos da psicologia.

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Podemos aceitar ou não as idéias (muito mais complexas do que o podem deixar ver estas transcrições, destinadas a assi¬ nalar ünicamente os pontos básicos da sua oposição ao freudismo) de Jung sôbre a criação artística e o caráter “impes¬ soal” do fenômeno estético. Em qualquer caso, é importante assinalar, como de passagem já fiz num estudo sôbre Fernando Pessoa, que êle se revela em perfeito acordo com o espírito da crítica moderna — não, é claro, do filistinismo pseudocientífico, embora êste pareça afirmar também a “especificidade” da obra literária —, fundamentalmente adversa, não apenas à “explicação pelo inferior”, como, duma maneira geral, à con¬ fusão entre a pessoa que escreve e as obras que produz, e à explicação destas por aquela. Êste encontro do criador da psicologia analítica com mo¬ derna interpretação do fenômeno estético pelos especialistas desta matéria é daquelas convergências significativas que nos permitem esperar com otimismo que venha a ter fim o grave divórcio entre os rumos dos dois tipos de investigação que partilham os homens, quanto aos problemas do conhecimento. Que um cientista tenha chegado, pelos caminhos da sua espe¬ cialidade, às mesmas conclusões que outros pela análise do fenômeno estético, parece significar que não é apenas ilusória a esperança na conciliação das diversas formas da cultura humana — e que a verdadeira objetividade, em todos os planos desta, nos permitirá algum dia reconhecer que a ciência e as “humanidades” não são universos irremediàvelmente opostos. Freud, corrigido — e não seria melhor dizer: comple¬ tado? — por Jung, eis uma perspectiva mais fecunda do que o freudismo puro e simples, o qual, em matéria de investigação estética, nos faz recuar, em vez de progredir, pois que a suposta clareza do seu método deixa de fora o problema fundamental da criação, e restabelece um determinismo incapaz de reco¬ nhecer as características diferentes dos problemas nos diversos planos do conhecimento. De nada serve afirmar a identidade básica de fenômenos se isso fôr feito à custa do caráter específico dêles, isto é, se para a admitir tivermos, afinal, que omitir êsse caráter espe¬ cífico. Assim, o freudismo padece de todos os defeitos do idea-

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lismo, que supõe a realidade antes de a conhecer, e parte duma idéia do homem, e não do seu conhecimento. À grande idéia fundamental de Freud faltou a humildade que lhe teria permi¬ tido reconhecer tudo quanto ficara fora do alcance dela.

11) Edgar Poe, Falso Precursor da Poesia Moderna Em artigo sôbre “A doutrinação poética da geração da “Presença” (1), voltou Gaspar Simões a uma idéia que sempre lhe foi muito cara; desta vez, porém, atribuindo a tôda a sua geração pontos de vista que, de fato, foi êle o único a defen¬ der (2). Não há dúvida que Poe o “ajudou” a “penetrar (...) no terreno da poesia”. Mas só a êle. E não é difícil ver como isso não teria sido possível àqueles que, ao contrário de Gaspar Simões, cedo se tinham dado conta do equívoco de origem francesa que faz de Poe precursor da poesia mo¬ derna. Somente para faire le point, citarei apenas a passagem da já famosa obra de Wimsatt e Cleanth Brooks, “Literary Criticism — A Short Story”, em que é definida a estética de Poe: “Poe envisages the poet (...) as a craftman who brings his intelligence fully, and even coldly, to bear upon the problem of organizing words into specific literary structures”. As idéias falsamente claras têm atrativos evidentes para os espíritos confusos. No caso em questão, nada seria mais fácil do que verificar como, através de Valéry, sobretudo, o qual é essencialmente “antimoderno”, se estabeleceu essa con¬ fusão, absurda se pensarmos que a estética de Poe estabelece um hiato entre a “idéia” e a “forma”, que por si só deveria ter alertado qualquer crítico menos apressado sôbre os riscos

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Suplemento Literário do O Estado de S. Paulo de 21/6/58.

(2) O artigo em questão atribuía-me, e a todo o grupo da “Pre¬ sença”, os pontos de vista que, na realidade, só foram defendidos por G. S. Da resposta, em dois artigos publicados no “Jornal do Brasil”, respectivamente em 5 e 12 de Julho seguintes, eliminei aqui tudo o que não dizia estritamente respeito ao problema Poe-Valéry.

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de “deduções” que fariam duma estética do artifício, da “fabri¬ cação”, o eixo duma época que nada tomaria tanto a peito como recusar a submissão da poesia a processos intelectuais. Pelo contrário, tal estética só podia agradar a Valéry. E, se Baudelaire foi o promotor da fama de Poe nos países latinos, e se julgou encontrar em alguns escritos dêste a con¬ cretização do seu próprio pensamento, nada, na realidade, nos consente estabelecer um nexo de dependência dêle em relação a Poe, que só por paradoxo se pode ter como precursor da¬ quilo que era totalmente alheio ao espírito de Baudelaire. Não, Poe não é o, nem sequer um precursor da poesia moderna, quer como teórico da poesia, quer como poeta. O que a poesia moderna deve a Baudelaire não estava na poe¬ sia de Poe, nem nas idéias dêste sôbre poesia. E aquela mes¬ ma monumental mistificação que consistiu em inventar a poste¬ riori a maneira como teria elaborado racionalmente The Raven, só poderia, se não fôsse mistificação, provar que a poesia é cosa mentale — estando, portanto, em total oposição à idéia de que a poesia tenha as suas raízes no inconsciente, e que exprime mais do que o espírito analítico poderia conceber. Nada pode mostrar mais claramente como se estabeleceu o equívoco do que certos textos de Valéry, e, sobretudo, o prefácio, que sob o título Situation de Baudelaire escreveu para uma edição das Fleurs du Mal (v. Variété II). Quem leia essas páginas de Valéry, com prévio conhecimento tanto da poesia como dos escrito de Poe sôbre ela, não deixará de rir com a jactância do ensaísta francês, que acha Les Fleurs du Mal “notàvelmente conforme aos preceitos de Poe”, e, para o demonstrar, afirma que “tout y est charme, musique, sensualité puissante et abstraite. . .” Ora são precisamente três coisas que não se encontram na gélida poesia de Poe, que é notável, quando é, por qualidades inteiramente diversas. E então teremos de reconhecer que, ou a estética e a poesia de Poe nada têm de comum, ou que a poesia de Baudelaire . .. não corresponde àquela e não prolonga esta, restando-nos como prêmio de consolação verificar que a cor¬ respondência existe apenas entre certas das idéias por um e outro sucessivamente expedidas. Valéry verbera com grandes ares de superioridade os anglo-saxões, pelos quais Poe seria

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“étrangement méconnu”, diz êle. A verdade é que os anglosaxões tem tôda a razão em não ver na poesia de Poe ... o que os franceses lhe atribuíram; e não podem ter o otimismo de quem, lendo-a em tradução, leva as fraquezas à conta do tradutor, e não dum poeta que lhe asseguram ser genial. O que mais atrai Valéry é precisamente o menos autên¬ tico de Poe: “Nunca antes de Edgar Poe o problema da lite¬ ratura fôra examinado nas suas premissas, reduzido a um pro¬ blema de psicologia, abordado graças a uma análise na qual a lógica e a mecânica fôssem deliberadamente empregadas”. Ora, o que atraiu Baudelaire é coisa bem diferente, e aí, sim, podemos encontrar algo que importa para a formulação dum sentido moderno da poesia (mas não para “fazer” poesia mo¬ derna) : “A poesia não pode, sob pena de morte e de decadên¬ cia, assimilar-se à ciência ou à moral; o seu objeto não é a Verdade, mas Ela própria”. Vemos assim que há duas vias diferentes na introdução das idéias de Poe, graças a Baudelaire, na cultura francesa: a da “análise na qual a lógica e a mecânica (são) deliberada¬ mente empregadas”, que irá entusiasmar Valéry, e a que ad¬ mite a independência da poesia relativamente à moral ou à ciência, e era esta que mais podia entusiasmar Baudelaire, que aí encontrava a defesa contra todos os inimigos das Fleurs du Mal, que o acusavam sobretudo de não ser moral. Esta descoberta dum aliado podia, justificadamente, fazê-lo dar de barato, ou aceitar desprevenidamente, idéias que dificilmente vemos como integrar na sua estética. Mas os valores propriamente poéticos, êsses não os rece¬ beu Baudelaire de Poe, tanto mais que já se achavam pa¬ tentes na sua poesia antes que êle tomasse conhecimento da existência do autor de Ulalume. Se Valéry não tivesse dei¬ xado outros testemunhos da sua incompreensão relativamente ao poeta do Spleen de Paris, bastaria a falta de discernimento revelada pela transcrição atrás feita para ficar bem claro que os valores essenciais da poesia de Baudelaire lhe permane¬ ceram alheios. Mas acrescente-se esta outra amostra, para não restarem dúvidas: “La poésie de Baudelaire doit sa durée et cet empire qu’elle exerce encore, à la plénitude et à la netteté singulière de son timbre”. Sem dúvida que êste constitui um

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elemento de fundamental importância. Mas como é possível considerá-lo o principal?! Estreiteza bem compreensível, porém, da parte dum homem que tomou demasiado à letra a adesão de Baudelaire à afirmação de Poe, proclamando que a obra de arte só é idêntica a si própria. A verdade é que Baudelaire, como todo o grande poeta, não poderia valer simplesmente pela originalidade do seu tim¬ bre. Libertar os juízos sôbre a poesia da dependência relati¬ vamente à moral, não significa que a reflexão sôbre êsses mes¬ mos problemas não constitua um seu elemento de importância. Como esquecê-lo então quanto a Baudelaire, cuja poesia vive, pode dizer-se, da ambivalência do bem e do mal, aquela “pos¬ tulação simultânea para Deus e para Satã” de que falou nos seus diários íntimos? E nisso mesmo, precisamente, está o “moderno” Baude¬ laire, e não em quaisquer teorias estéticas. Moderno porque, num tempo de poetas cada qual devotado a uma filosofia ou a uma religião “feitas”, êle viveu a sua filosofia e a sua religião, em vez de pensar as dos outros. A sua poesia é um ato filosófico e religioso, na sua própria essência. Esse “timbre” é ainda mais importante que o outro, e ecoa mais profunda¬ mente no coração de todos os homens. Eis o que não se en¬ contrará na poesia de Poe — mesmo quando não se vá ao extremo de considerar pura e simplesmente absurdo o seu culto, como faz Pound (Literary Essays, p. 218). Mas, ainda que Poe fôsse um poeta extraordinário, nem mesmo assim haveria motivo para aceitar como boa uma filia¬ ção que, limitada a algumas idéias sôbre a interpretação da poesia, em nada alterou os elementos criadores da poesia de Baudelaire, e, por nada ter de comum com o espírito da poesia moderna, de modo algum poderia ser tida como uma das suas fontes.

11) A Tentativa Concretista Todos os movimentos que, neste meio século, desagrega¬ ram uma ou outra das tradicionais vigas mestras da poesia, quer somente tornando-as suspeitas, ou chegando mesmo a dar

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com elas no chão, não puseram em questão, de cada vez, todos êsses suportes. A sucessão dêsses movimentos pode, até, ser descrita como a progressiva inquirição delas, viga por viga, na procura da falha que, a cada investida, parece fugir sempre à inquirição e à fúria das brigadas de demolição. E realmente, o periclitante edifício mantém-se de pé, sem que se possa saber ao certo com que apoio, ou como se, na realidade, êle estivesse apenas firmado... no ar. Esta última hipótese é talvez a mais capaz de nos dar confiança na poesia. Mas os teóricos de tôda a espécie, quanQO procuram consolidá-la, nunca partem de tal suposição. Pen¬ sam, pelo contrário, que estando as vigas mestras em crise, o necessário é substituí-las. Essa é a fatalidade das soluções teóricas, que não podem viver sem programas. Ora, sucede com a poesia o mesmo que com a língua, que não é feita pelos gramáticos. E os teorizadores da poesia tornam-se fatalmente em gramáticos, convencidos, como aquêles, de serem êles quem a faz. Por escandaloso que tal possa ser aos olhos de muita gente, necessário é reconhecer que a poesia assenta, de fato, no ar. Que as suas vigas resistem ou caem independente¬ mente da sua fortaleza própria, mas precisamente quando, con¬ tra tôdas as leis da resistência de materiais, lhes falta uma coisa que tais leis não prevêem: razão de ser. Porque, no edifício que é cada poema, os elementos não se sustentam uns aos ou¬ tros, mas todos juntos são mantidos de pé graças a uma fôrça não codificável, flutuante e aparentemente caprichosa, que se pode realmente dizer que está. . . no ar, pois nenhuma das identificações até hoje tentadas com qualquer elemento defi¬ nível se mostrou universalmente válida. A poesia não é caprichosa, mas aos olhos dos teóricos não pode deixar de aparecer como tal, pois que os seus fundamentos desafiam as mais variadas tentativas de domesticação, e tanto mais quanto mais “científicas” elas se pretenderem. E é cada vez com mais pretensões científicas que se pretende resolver a sua crise. Veja-se só a diferença entre o dadaísmo e o concretismo, que quase dispensaria comentários. Enquanto os dadaístas se propunham desmoralizar, vá lá o têrmo, tôda a construção poé¬ tica, nada há mais importante para os concretistas do que a

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própria construção. Que ela seja poética, eis realmente o ponto discutível. Até agora ninguém, ao que me parece, pôs a questão da teorização concretista nos devidos têrmos, nem Antônio Houaiss, no seu magistral estudo (Q. A verdade é que, antes de mais nada, os concretistas, postos a fazer teoria, são incomensuràvelmente chatos. Falta-lhes de todo a graça de Ezra Pound, que diz com interêsse as maiores barbaridades — e pelo meio vai, aliás dizendo muito coisa séria e certa, tendo a mais o interêsse de que não faz poesia concreta. A chatice da teorização concretista revela a falta daquilo mesmo que, por exemplo, faz o valor dos diversos manifestos de Breton: a significação individual e intransmissível da sua afirmação surrealista, que é surrealista a partir das melhores páginas dos manifestos, que é, em suma, poesia, ou então crítica da poesia, válida independentemente da sua teorização para nos dar a “receita” do surrealismo. Onde está o interêsse da teorização concretista? Não está apenas nas possíveis derivações que venham a resultar do seu malogro. Estará na possível poesia que poderá aflorar por entre e contra as fórmulas, embora graças a ela. Porque na própria teorização, que se destrói a si própria, não poderá basear-se nada. Ela parte com efeito da estranha suposição de que na poesia teria dominado até hoje a estrutura lógicodiscursiva. Ora tanto a estrutura tradicional não a dominou que a poesia existe independentemente da prosa, distinção que não poderíamos realmente fazer se aquela identidade se veri¬ ficasse. Porque falamos em poesia, até hoje? Como pudemos falar cm poesia? Só, evidentemente, por ela existir. Ou seja, por ter uma estrutura própria. Se até hoje ficamos no domínio das hipóteses, pelo que toca à definição de tal estrutura distin¬ tiva, não impediu isso que a sua existência fôsse não só evi¬ dente, como descrita. Só para dar como exemplo autores que¬ ridos dos concretistas: por Mallarmé e por Pound. Mas os concretistas dão como coisa entendida que tôda a poesia ante-

f1) 1957.

Suplemento dominical do Jornal do Brasil,

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19 de

Maio de

rior ao seu próprio advento é discurso, esquecendo que não há identificação entre aquêle e a poesia, pois neste caso ela não poderia ter existido. A basófia pseudocientífica e pseudofilosófica dos concretistas já bastaria para nos pôr de sobreaviso, se outros motivos não houvesse. De tantas provas quererem dar em apoio dos seus princípios acabam por ficar sumidos sob uma avalanche de citações muito “modernas”, e um estendal de vocabulários especializados, desde o da psicologia da forma ao da lingüística, com pingos do da filosofia científica, e uso abundante dc palavras estrangeiras que não haveria dificuldade nenhuma em traduzir, se não fôsse perder-se assim o sabor de novidade, necessário para ocultar — sobretudo para os concretistas ocul¬ tarem de si próprios — que a sua teoria é puro equívoco, em que partem da negação duma aparência para formularem como princípio da poesia uma outra, substituindo têrmos, mas não encontrando maneira de explicar (pudera!) qual o motivo por¬ que à poesia haverá de se substituir uma nova forma de arte do espaço. Não é isto que êles afirmam? Pois claro que não! afir¬ mam que tempo e espaço são valores de igual importância na poesia. Mas esquecendo que o que estão fazendo (fazendo refere-se aqui concretamente aos seus poemas publicados) é realmente suprimir, não o discurso, mas a voz humana, ou seja, o elemento tempo. A sua linguagem concreta é afinal a mais pura das abstrações. Enquanto a poesia de “outrora” (isto é, antes do concretismo), aceitando ou não, usando ou não a sintaxe tradicional, era uma comunicação de homem para homem, de voz a ouvido (ouvido interior que seja, pois não estou tratando da leitura em voz alta, é claro), a poesia concretista pretende ser. . . uma linguagem nova ao serviço de nada, uma pura linguagem, uma invenção de objetos — em resumo: um lindo brinquedo. É certo: todo movimento que surge nega aquilo que o precede. Mas nega a realização, e não a essência. Os con¬ cretistas parece que não conseguem salvar poesia nenhuma an¬ tes de Mallarmé, ou, mais concretamente, do “Coup de dés”. Não será pouco demais? Mas é até muito! Porque a sua recusa da própria essência da poesia os autorizava realmente a dizer:

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a poesia começa em nós. Os seus brinquedos são perfeita¬ mente legítimos. Somente, seria mais lógico não os batizarem com o nome de poesia. Exatamente o fato de assim os clas¬ sificarem poderia servir-lhes como base de autocrítica: porque chamamos nós a isto poesia? E, se chegarem a sabê-lo, talvez lhes seja depois mais fácil explicar-nos o que vêm a ser os seus “objetos”, os quais, assim, só podemos classificar como péssima poesia. E quem sabe se não serão excelentes objetos? Mas que espécie de objetos? A grande luta que se trava neste momento tem como objetivo limpar a poesia de tudo quanto não seja poesia — assim se pode resumir, nos têrmos mais simplistas (simplistas, note-se bem) aquilo que está fundamentalmente em jôgo; tal é o problema com o qual se defrontam os concretistas, com melhor ou pior sorte, ou nenhuma, segundo as diversas reações de que o público tem tido conhecimento. Não é isto que pre¬ tendo discutir, mas apenas o que me parece inviável na sua maneira de procurar uma saída para a poesia. A poesia teve sempre como objetivo, confessadamente ou não, conscientemente ou não, exprimir “apenas” a poesia* Acontece porém que a palavra poesia é, como tôda a palavra que se preza, fundamentalmente equívoca, e pau para tôda a colher. Nunca ninguém se entendeu sôbre o seu significado “último”. Isto não impediu nunca, todavia, que ela existisse. E existisse “como podia”. É nisto que está, perdoem-me os concretistas, o seu grande equívoco, no qual têm, como é sa¬ bido, grandes predecessores; êstes, todavia, foram grandes, não por pensarem e quererem mais ou menos o que pretendem hoje os concretistas, mas por terem feito outra coisa. Isto não é gra¬ ça nenhuma, mas a pura verdade. Só por obstinação — inevi¬ tável obstinação partidária — é que se pode pretender que o grande Mallarmé esteja no “Coup de dés”; está, sem dúvida, no resto da sua obra. Mas não interessa discutir a antigüidade dos esforços con¬ cretistas. Nada mais ridículo do que vir alegar contra um mo¬ vimento que aquilo “já se fêz”. Ridículo e estúpido. É a maneira mais cômoda de não prestar atenção aos esforços sérios — e perfeitamente legítimos — dos que não gostam de dormir à sombra do estabelecido. O problema é outro: “Aquilo”

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ainda não se conseguiu fazer, e por isso é inevitável que se tente fazê-lo. O que não impede, porém, que seja irrealizável. Não é, porém, o “irrealizável em si” que prova o não valor dum movimento. Não sabemos o que pode sair do movimento concretista. O que estou escrevendo não é, portanto, de forma alguma, “contra” o movimento concretista. É, única e clara¬ mente, a discussão de um problema que julgo ter sido pôsto de forma errada. O concretismo quer a nudez da poesia. A poesia só. A opinião que lhe oponho é a de que não há poesia só. A de que a poesia é, essencialmente, uma fusão de elementos, uma depuração da experiência, uma transposição da experiência, e um salto para além da experiência, mas ligada fundamental¬ mente, a discussão de um problema que julgo ter sido pôsto gir uma autenticidade que não o pode ser, pois que não há pureza. A pureza da poesia é um ideal metafísico, é o resultado duma operação do espírito, é portanto, afinal, o Eldorado, o Paraíso Terreal, mas não é dêste mundo. Ora, a poesia é evidentemente dêste mundo, e só tem sen¬ tido e valor na medida em que não deixa de o ser. Não im¬ porta que fale ou não fale dêle, não importa que seja individual ou social. Tudo isto é secundário. O que ela precisa é de corresponder àquilo que o homem tem dentro de si. O con¬ cretismo, quer queira quer não, amarrou o seu barco a um experimentalismo que só poderá dar poesia na medida em que... o poeta esqueça o experimentalismo e deixe penetrai nos seus “exercícios” a sua própria e impura voz. Em resumo; a poesia não só não é feita de letras, mas não é feita apenas de sons; é bem sabido como êste caminho já foi procurado, por outros ansiosos de pureza, e como se chegou à chamada “poesia pura”, o que a colocava fatalmente na esteira da música, com a qual, sem dúvida, ela tem muito que ver, mas também muito que não ver; e agora o concretismo vai procurar outra pureza pelo caminho plástico, ou pelo visual, ou pelo exclusivamente mental, partindo em qualquer dêstes casos da suposição de que a palavra (reduzida a letra, ou mesmo tomada como valor simbólico) é uma construção mental. Os concretistas são os alquimistas da poesia, atualizados à medida da era atômica. Querem ignorar o imprevisível, isto

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é, tudo aquilo que não está nas combinações. Há também quem suponha ser possível fazer música, exclusivamente por processos mecânicos. Pois é: tudo se pode fazer por processos mecânicos, botando o homem para fora da questão. Mas não se faz música de Bach por tal processo, nem poesia de Baudelaire. Faz-se apenas “uma coisa como”, “uma aparência de”. Que falta? Falta a própria essência da poesia, que não anda pela mão de combinações, mesmo as mais inteligentes; de exer¬ cícios, mesmo os mais hábeis. O que não impedirá os concretistas de, quando lhes “acontecer” um belo poema, ficarem com a ilusão de êle ter resultado das combinações e dos exercícios. Tôda a poesia é impura e se torna pura. Tem barro humano e é barro humano. Tem aceitado sempre convenções? Pois tem — como sucederá se aparecer um grande poeta que se “suponha” concretista, e que atribuirá ao concretismo as virtudes que o fizeram poeta apesar da convenção concretista. Acontece que as convenções são, afinal, um resíduo. As con¬ venções não nascem tais. Ainda hoje, um grande poeta o pode ser, aceitando a sintaxe, se fôr mais forte do que ela. O mal está em que tôdas as formas se tomam fórmulas. Mas o mal do concretismo parece-me ser que não nasceu forma, mas fórmula. E o que não aconteceu nunca foi a fórmula transformar-se em forma. Vindo após o período de mais intensa atividade prescrutadora sôbre a estrutura da poesia, os criadores da “poesia con¬ creta” acham-se, por isso mesmo, em condições excepcionais tanto para acertar como para errar. Ganham, por um lado, com a eliminação de inúmeras suposições que durante séculos atribuíram ou não atribuíram à poesia determinadas qualidades e condições, e pretenderam fechar-lhe ou abrir-lhe, alternada¬ mente, campos de expressão tidos de cada vez como sua di¬ mensão única. Tudo o que, de Whitman aos surrealistas, de Mallarmé a Ezra Pound, de Baudelaire a Fernando Pessoa, constituiu uma “ilimitação” dos seus horizontes, sob os mais diversos pontos de vista, oferece agora aos concretistas a tábua rasa ideal para poderem “começar” sem a necessidade de re¬ cusar nada, pois os mitos estavam todos por terra — tanto os formais como os expressionais.

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Mas, por outro lado, o risco de errar aumenta precisa¬ mente na medida em que de tanto se saber possa supor-se que o eixo da questão esteja realmente em qualquer “saber”, me¬ reça êle ou não o nome de “ciência”. Os concretistas não têm apenas a seu favor uma experiência positiva: têm igual¬ mente, digamos assim, uma “experiência negativa”; creio que, mais do que assimilar as coisas que a poesia ganhou pelas tentativas de levar a poesia às últimas conseqüências — e aqui estou tendo únicamente em vista a linha Mallarmé-PoundCummings — seria importante, e direi mesmo necessário, verificar qual terá sido o passivo de tais experiências. Sem dúvida, a poesia é uma casa com muitas portas. Mas, como sucede com tôdas as portas de tôdas as casas, também estas servem igualmente para entrar e para sair dela. E acon¬ tece precisamente que a “experiência” tão celebrada pelos con¬ cretistas, o justificadamente famoso “Coup de dés” de Mallarmé, veio a ser o mais trágico malogro de tôda a poesia. “Un coup de dés” vem a ser, realmente, os destroços duma arquite¬ tura que Mallarmé quis e não pôde erguer. É um trágico monumento à aspiração de “meter” o absoluto num poema. “O Livro” que Mallarmé sonhou nunca foi escrito; o esforço de tôda a sua existência perseguiu a sua realização, e deixou-lhe apenas nas mãos uma coluna truncada, que êle próprio nunca teve como outra coisa senão fragmento da obra sonhada. Qual foi o “segrêdo” do insucesso de Mallarmé? Foi o de julgar possível “construir” a poesia com o que é apenas o seu instrumento; como se a palavra fôsse o próprio coração daquela. E não é. Sem dúvida que a palavra não é apenas veículo. Como Mallarmé dizia a Degas, a poesia não é feita com “idéias”, mas com “palavras”. Mas, ser “feita com” é uma coisa, “ser palavras” seria coisa bem diferente. Ora, poe¬ sia e palavra não se identificam, nem sequer como música. Os concretistas pretendem voltar ao “princípio” desmontando por assim dizer a palavra. Mallarmé foi só ao ponto de que¬ rer desmontar o discurso, mas para êle a palavra era ser vivo, no que tinha tôda a razão. Por isso mesmo é que as palavras não lhe deixaram levar a cabo o seu propósito, pois êste era demasiado racional — e analítico.

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Em ser por demais analítico eis precisamente onde está o grande obstáculo que se levanta diante do concretismo poético. Se Mallarmé tinha razão ao chamar Degas à realidade, o mesmo teria que fazer se outrem julgasse que poesia se faz “apenas” com palavras, isto é, tomando as palavras como um agregado de elementos que, separadas, continuassem a ser vivos. Isto é gramática, e não um princípio de criação poética. É a palavra da gramática que é formada de elementos. A palavra da poesia não tem elementos susceptíveis de serem analisados: é uma síntese irreversível. Os simbolistas quiseram pôr tôda a fôrça da poesia na música, e perderam o jôgo, porque a poesia os mandou compor música. A poesia mandará na mesma, aos concretistas, deixar a análise aos analistas, com a agravante de que nem sequer lhes dirá que a deixem aos gramáticos, pois os concretistas não pretendem analisar a palavra, mas a escrita. É isto que, supo¬ nho, ainda não foi dito, e me parece muito importante. A preponderância da visão sobre a audição, que é evidente em Mallarmé, e mais ainda em Cummings, tornando impossível ouvir poemas que são feitos também para se olhar, é levada ao extremo pelos concretistas, cujos poemas não podem ser ouvidos. Cummings “brinca” (é bom não esquecer a graça e a ironia predominante nos seus desfibramentos de palavras) de espalhar as palavras, mas sem nunca as “perder”; desfaz e re¬ faz, baseando-se na palavra inteira, e só aparentemente a “per¬ de” para logo a recuperar. (Conheço demasiado pouco e dema¬ siado mal a poesia de Ezra Pound para poder falar dela). Mas Cummings e qualquer outro préconcretista não julga en¬ contrar a poesia senão através da palavra, deformada embora; nenhum foi procurar a poesia fora do seu elemento essencial, que é realmente a palavra, e não as letras com que ela se escreve, as quais não passam de sinais tão puramente conven¬ cionais que até as Academias os podem modificar, sem dano maior para a palavra.

Com letras podem fazer-se coisas engraçadas. E não só isso: a brincar com letras os concretistas podem realmente ga¬ nhar alguma coisa para a poesia: não é como experiência que considero o concretismo inviável, mas como finalidade. O fato

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de se exporem essas experiências só pode ser motivo de louvor, porque sem coragem também na poesia não se avança. Acho — e quero insistir nisto, para evitar qualquer equívoco — que as tentativas concretistas que se estão fazendo no Brasil são extremamente “sérias” — mesmo quando sejam feitas a brincar. Quero eu dizer que pôr em questão os meios de expressão da poesia vale sempre mais do que “ir na onda” de qualquer espé¬ cie de facilidade. Aliás, tôdas as revoluções são, não aquilo que pretendem, mas aquilo que delas fica. Mas para ficar alguma coisa é preciso correr os riscos necessários. Êsses riscos, é digno de respeito que os moços concretistas os saibam correr, tanto mais que para êles não haverá prêmios. E, por outro lado, o mal da poesia são os falsos poetas que tôda a gente entende, e não os revolucionários que tôda ou quase tôda a gente consi¬ dera ininteligíveis. A poesia é uma presença ameaçada a cada momento, é um sôpro que a mais leve aragem é capaz de dispersar para nunca mais. Assim é a poesia na iminência de nascer: a poesia que é ainda nuvem imprecisa na mente do poeta, gesto sus¬ penso antes sequer da fôlha em branco. Era talvez melhor que tivesse escrito: o desejo de poesia, a esperança de poesia, a necessidade de poesia. Eis o que é preciso salvar e permitir que se cumpra. Mas para isso é necessário não assassinar o poeta. O poeta alimenta-se da realidade cotidiana —- como qual¬ quer um não-poeta. Mas enquanto neste último essa realidade passa, nêle fica, e prolonga-se. Sob as formas mais contradi¬ tórias, e mais absurdas. Prolonga-se e passa a ser outra reali¬ dade, uma realidade nova, com uma nova dimensão. No labo¬ ratório impenetrável, a vida propõe imagens da realidade que a realidade nunca teve. A vida inventa-se no poeta, e estende através dêle tentáculos imprevisíveis para se fazer mais vida, e para tornar a realidade mais real. O que importa na poesia não é a forma, mas o que a forma pôde guardar cm si, que é feita para guardar em si. A forma não é senão a condensação daquela nuvem imprecisa atrás referida. Sem a nuvem não há forma, ou, por outras palavras, não existe a forma antes da nuvem, ou ainda: não

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existe a poesia antes do homem. Como o leitor já entendeu, estou escrevendo contra a poesia à qual, por um lamentável abuso, se chama concreta, e que é a última em data das manei¬ ras que a história registra para evitar a poesia, em geral sob o aspecto de imitações da poesia, e agora como imitação da se¬ mântica e artes congêneres. Mais propriamente: não estou realmente a falar contra a poesia concreta, mas unicamente a pensar que é deplorável que haja pessoas assustadas com os falsos problemas com que os poetas concretos procuram iludir um problema humano, fingindo ser um problema de palavras. Na realidade, não ha¬ via crise nenhuma a resolver. A crise em que a poesia estava é aquela mesma em que sempre estêve, e sempre estará: a de não haver poesia que chegue para todos os que pretendem encontrá-la nos seus próprios versos, e que continuam com¬ binando as palavras segundo as receitas habituais. Desde sem¬ pre houve esta, aliás respeitável, ambição de se ser poeta por parte de muitos que apenas conseguem tirar mais uma cópia da última — ou da penúltima, ou da antepenúltima, porque há sempre uns de relógio mais atrasado — fórmula, que resul¬ tou do último encontro do homem com a poesia. E cada um dêstes encontros se torna fórmula porque assim o quer a hu¬ mana condição. E, portanto, é necessário que nos libertemos da última fórmula, para que a poesia e o homem se encontrem novamente, e a sua virgindade se renove maravilhosamente. Os poetas concretos quiseram fazer a receita antes de ter surgido tal nôvo encontro. Elaboraram a teoria do que ainda não existia. Quiseram fazer a gramática duma língua que ainda não tinha sido proferida pela bôca incerta dos homens, que ainda não se tinha debatido nas angústias da formação. Foram os gramáticos mais gramáticos que jamais existiram sôbre a terra, porque até aqui os gramáticos esperavam que a língua tivesse nascido para fingir serem êles que a tinham feito. Os jogos sutis da poesia concreta esqueceram que a poesia existe porque existe a voz, a voz humana. O seu êrro não consistiu apenas em supor que a poesia é apenas feita de pala¬ vras, mas sobretudo em supor que a palavra é uma “coisa”, e que as ligações entre as palavras são. .. ligações entre palavras.

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A poesia sem a voz humana é o mesmo que a vida sem o cora¬ ção batendo: não é. A forma, em qualquer sentido que se lhe dê, quando se trata de poesia, só vale na medida em que faz dum pressentir, dum imaginar, que por si não são comunicáveis, um “objeto” que reproduz, ou melhor, que ressuscita, numa dimensão ao alcance dos outros, o que foi pressentido e imaginado num espírito (ou alma, ou sensibilidade, ou consciência, ou razão) individual. A forma é, pelo milagre da voz humana, a quebra das paredes dentro das quais cada um de nós está encerrado. A palavra, na poesia, é um pouco de voz humana fundida em bronze — mas é a voz humana. As por vêzes bonitas combinações de palavras dos concretistas não têm maneira de comunicar nada porque pretendem quebrar o fio que liga a palavra à voz. Tira-lhes a inflexão, tira-lhes o ritmo, tira-lhes a música (no mais lato sentido que cada uma destas palavras possa ter). E tudo isto, segundo dizem, porque se tinham esgotado as possibilidades de expres¬ são da poesia anterior ao concretismo. É como se, para resol¬ vermos o problema da falta de água, decidíssemos tomar banho em pedra, ou beber areia. .. Desde o princípio da poesia, as suas crises e os seus des¬ vios, as suas recusas e as suas falsificações resultaram sempre da repetição duma forma, que deixara de ter uma voz humana atrás de si. A voz que passavam a “fingir” deixara de ter vida, porque nada pulsava nela, nem nenhum coração, nem nenhum sexo, nem nenhuma raiva. E, de cada vez, a voz humana restabeleceu o domínio da situação. E se a poesia acabar, é porque os homens acabaram. Se é isso que os concretistas querem dizer, se se demitem da humanidade, é uma responsabilidade que assumem por sua conta e risco. Se não têm nada mais para dizer, confessam portanto que nada mais têm para dizer. Mas não digam que só pode haver poesia com um xadrez de palavras mortas. Digam então que há um xadrez de palavras mortas, que gostam de jogar xadrez, e que ninguém tem nada com isso. Então passaremos a não ter nada com isso, o que é precisamente o mais ardente desejo de muita gente, entre a qual peço licença para fazer a minha inscrição.

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12) Idéias de António Machado Sôbre a Poesia Poucos poetas têm lugar tão grande no meu coração como António Machado, o entre nós tão pouco conhecido poeta espanhol. Êle é sem dúvida o primeiro grande poeta moderno da Espanha, moderno embora sem nenhuma revolução literᬠria, e tendo entrado na literatura da mesma forma mansa, dis¬ creta, como soube morrer, no exílio — pior: num campo de refugiados, na França — quando a vitória de Franco o arras¬ tou para fora das fronteiras, nas agonias da fuga precipitada. Êle inovou, purificando; renovou, não por novas formas, mas por uma voz nova: a primeira que, na poesia espanhola, estran¬ gulou realmente o gasganete da retórica. Ao prefaciar em 1917 uma nova edição de Soledades, escrevia êle, depois de reconhecer a dívida da sua geração para com Rubén Dario, ter pretendido seguir caminho bem dife¬ rente: “Pensaba yo que el elemento poético no era la palabra por su valor fónico, ni el calor, ni la linea, ni un complejo de sensaciones, sino una honda palpitación dei espíritu; lo que pone el alma, si es que algo pone, o lo que dice, si es que algo dice, con voz própria, en respuesta animada al con¬ tacto dei mundo”. Não era outra coisa, senão a mesma ex¬ pressa com mais densa significação, o que viria a escrever para a famosa antologia Contemporâneos, publicada por Gerardo Diego em 1931: “Pienso, como en los anos dei modernismo literário, que la poesia es la palabra essencial en el tiempo”. Sempre “entendi” muito bem António Machado. Há, para cada um de nós, além dos autores que nos merecem admi¬ ração, mesmo a maior, outros a quem damos um afeto parti¬ cular: são aquêles que falam realmente a mesma “língua”... interior, mesmo que tenham feito versos nos quais não pensa¬ mos reconhecer nada de nós próprios. A António Machado devo a revelação duma voz humana como nenhuma outra. Um seu poema — aquêle que começa “Mi infancia son recuerdos de un páteo de Sevilla” — soube-o de cor, eu que nunca soube mais de dois ou três. E creio bem que é pelo que sua poesia tem realmente de “honda palpitación dei espíritu” que me foi uma revelação única — e uma das grandes influên-

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cias que sofri, embora talvez não haja sinais visíveis dela nos meus versos. Mas não se trata agora dos meus versos, e nem sequer dos de António Machado. Ao encontrar seus prefácios e a referida “Poética” no volume demasiado pobre (gràficamente falando) das suas Poesias Completas, na edição argentina da Losada, o que me sugeriu êste artigo foi a resposta que êle dava, antes, durante e depois, aos formalistas seus contempo¬ râneos (inclusive um formalista de grande classe, como Jorge Guillén), e de certo modo aos concretistas de hoje. E a sua maneira de responder é lembrar-nos que a poesia é essencial¬ mente a voz humana, e que nenhumas sutilezas cultistas pode¬ rão substituir nela essa raiz única, pois só ela pode dar “rea¬ lidade” a tudo quanto se possa fazer no sentido de variar os seus meios de comunicação. Escrevi “sutilezas cultistas”, e poderia ter escrito “parna¬ sianas”, pois ao cultísmo, ao parnasianismo e ao concretismo, não obstante tudo quanto os possa diversificar, os reúne toda¬ via certo elemento que os define fundamentalmente: tudo são maneiras de querer inventar aquilo que a voz não é capaz de dizer. Por outras palavras: tudo são maneiras de apanhar a poesia à fôrça, quando ela não se “dá” espontâneamente, de a forçar nos seus redutos, de a querer “fazer” quando ela não “nasce”. Essas formas “hábeis” com que se pretende forçar a poesia aparecem sempre quando se perde o sentido da comunicação e da espontaneidade, quando se perde — porque não dizê-lo? — a capacidade de intuição, palavra que realmente não me agrada usar, pelos equívocos em que a envolveram, mas seria realmente a palavra própria. Não era outra, aliás, que empre¬ gava Machado na citada “Poética”: “El intelecto no ha can¬ tado jamás, no es su misión. Sirve, no obstante, a la poesia, senalandole el imperativo de su essencialidad. Porque tampoco hay poesia sin ideas, sin visiones de lo essencial. Pero las ideas dei poeta no son categorias formales, cápsulas lógicas, sino directas intuiciones dei ser que deviene, de su proprio existir”. Não há dúvida que na expressão da sua poética anda o dedo de Bergson, cujos cursos o poeta assistira em Paris, em

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1910. Mas a terminologia bergsonista só podia ter-lhe dado “uma” maneira de transmitir as suas idéias, que estavam já expressas na própria poesia, antes de êle freqüentar os filóso¬ fos: que estariam nêle, antes que êle freqüentasse fôsse quem fôsse, pois, antes de serem idéias, foram — e continuaram a ser — o próprio tecido da sua intuição do mundo, da sua maneira de o receber dentro de si e de lhe responder, dentro do tempo, porque “al poeta no le es dado pensar fuera dei tiempo, porque piensa su própria vida que no es, fuera dei tiempo, absolutamente nada”. António Machado “aprendeu” a desnudar a sua voz, en¬ quanto os cultistas de tôdas as épocas a quiserem vestir, esta¬ belecendo, implícita ou explicitamente, uma oposição entre a voz que se exprime e a forma em que ela se molda. E aqui surge, na teoria poética, uma perigosa encruzilhada. Com efeito, as modernas idéias sôbre poesia conduziram a uma no¬ ção que se presta fatalmente a equívocos, quando desviada — o que fàcilmente acontece — do plano em que é realmente válida. Refiro-me à descoberta de que o sentido do poema não se identifica com a pessoa do poeta, ou, por outras pala¬ vras, que a sua biografia não explica a sua poesia. Daqui, imprudentes teorizadores podem ser levados a pen¬ sar que o poema subsiste por si, em plena independência, quando tal afirmação de modo algum está implícita naquela idéia. Ainda noutro prefácio de Machado podemos encontrar uma bela expressão dela, na sua verídica acepção: “Si miramos afuera y procuramos penetrar en las cosas, nuestro mundo externo pierde en solidez, y acaba por disipársenos cuando llegamos a creer que no existe por sí, sino por nosotros. Pero si, convencidos de la íntima realidad, miramos adentro, entonces todo nos parece venir de fuera, y es nuestro mundo interior, nosotros mismos, lo que se desvanece. Qué hacer, entonces? Tejer el hilo que nos dan, sonar nuestro sueno, vivir; solo así podremos obrar el milagro de la generación. Un hombre atento a sí mismo y procurando auscultarse ahoga la única voz que podría escuchar: la suya; pero le aturden los ruídos extranos. Seremos, pues, meros espectadores dei mundo? Pero nuestros ojos están cargados de razón y la razón analiza y disuelve. Pronto veremos el teatro en ruínas, y, al cabo, nuestra sola

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sombra proyectada en la escena. Y pensé que la misión dei poeta era inventar nuevos poemas de lo eterno humano, histo¬ rias animadas que, siendo suyas, viviesen, no obstante, por sí mismas”. Palavras admiráveis, que na simplicidade da sua expressão, valem tratados de teoria poética. Porque nelas António Ma¬ chado pôs em equação a dupla identidade do poeta, criando, no solo que êle é, uma planta que se ergue acima do humo que lhe deu vida. Aquilo que, na voz do poeta, é mais que êle próprio — ou outra coisa que êle próprio —, vive todavia dessa voz. Realmente, “historias animadas que, siendo suyas, viviesen, no obstante, por si mismas”. Que mais se poderia acrescentar?

14) Entendimento da Poesia Há sempre duas maneiras de entender a poesia. Não digo duas maneiras de gostar, mas, únicamente e definidamente, duas de entender: refiro-me a tê-la como acontecimento isolado, ou como ponto de interferência e de convergência, de passagem, portanto, numa série de acontecimentos, os quais são a obra sucessiva dos poetas. É de supor que tais duas maneiras não se anulam respectivamente. Pelo menos temos que o supor, pois caso contrário daríamos como nulo todo o discurso que uma e outra suscitam. E, ao dizer discurso, digo aquilo mesmo de que êste não é senão o prolongamento: recebimento da poesia em nós próprios, como enriquecimento da nossa vida, e, portanto e conseqüentemente, da nossa visão da vida — da possibilidade de a entender. Não é fácil que poetas, e críticos de tout poil, cheguem a acordo quanto ao “direito” que haja de reconhecer várias dimensões, tôdas legítimas, tôdas verídicas, no entendimento da poesia. Porque as dificuldades bem conhecidas de todo o conhecimento só têm permitido assimilar parcialmente a ver¬ dade, e fazem com que uma verdade apenas nos seja acessível por amostras e fragmentos — e, sobretudo, por amostras e fragmentos que só conseguimos habitualmente assimilar como

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concepções contraditórias, e não como diversas significações ou faces duma única realidade. É assim, creio eu, que a diversidade dos poetas duma gera¬ ção não constitui apenas uma série de expressões isoladas, embora cada uma de per si seja autônoma e suficiente. O que se poderia exprimir por esta fórmula “absurda”: o todo é maior que a soma das partes, fórmula que me parece exprimir com suficiente clareza como que um princípio de Heisenberg da poesia que só parecerá esquisito a quem nunca tenha repa¬ rado no apoio que a microfísica veio trazer a um entendimento da poesia liberta dum formalismo cartesiano e mais ainda do determinista-positivista. Na realidade, se a poesia fôsse “uma coisa só” não faria sentido que a pudéssemos entender ora sendo cada obra um caso isolado, ora tendo um conjunto delas significação própria. Mas podemos entender. Então, ela não só não é a tal “uma coisa só”, como, e aqui está o principal, não é “coisa”. E não é coisa, continuo a supor, atrevo-me a presumir, porque existe fundamentalmente pelo reflexo de nós próprios nela, sôbre ela, dentro dela. Essa “impregnação” por nós próprios da poesia é a pró¬ pria comunicação, que não faria sentido se acontecesse entre uma coisa e gente, mas de gente para gente já se pode enten¬ der. E que a poesia funciona como gente quer dizer apenas ser ela a transfiguração de cada um de nós em fogo vivo, a reden¬ ção da humilhação individual no crepitar da fogueira da unidade. Coisa que se poderia exprimir em diversas outras linguagens, diferentes da um tanto ou quanto mística que me ocorreu; que se poderia dizer na linguagem da sociologia, ou da antropologia, ou da filosofia. Um mundo dentro de outro mundo (mas sem idéia de ser “conteúdo”), tal me parece que pode e convém entender-se a poesia de cada um dos diversos poetas duma geração. Como, evidentemente, e sucessivamente, se dirá em planos cada vez mais largos, da geração dentro da época, da época dentro das épocas. Mas como não quero perder de vista o tema con¬ creto aqui em vista, deixarei êsses círculos concêntricos (mas sem idéia de “conteúdo”) e ficarei apenas com a geração e os seus poetas.

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Não é talvez possível declarar o que se ganhe ou perca nestas transfusões de espírito (ou matéria, porque não?) entre a poesia de todos e a de cada um, isto é, entre a Poesia e os poetas. Mas, se nos libertamos — ou, pelo menos, nos esta¬ mos libertando — da tirania do psicologismo, e somos cada vez mais acessíveis à idéia de que a poesia é “objeto”, que isso não sirva para a desumanizarmos irrisòriamente, como sucede com certas tendências da interpretação atual, que per¬ deram o inicial ganho, ao supor que impessoalidade quer dizer atomização, que não ser a poesia confidência, mas verdade, significa ser uma “coisa”. O que é estabelecer uma distinção infantil entre a verdade e o homem, quando ela e êle só têm sentido quando mútuamente se explicam. A poesia duma geração é uma certa imagem do homem; por outras palavras: constrói uma figura determinada do ho¬ mem, com membros que são cada uma das vozes individuais. Mas nenhum dos membros é menos verdade. E cada um dêles vive autônomo, se comunica inteira e completamente sem pre¬ cisar do todo. Quando a atração, o entusiasmo, a comunhão num poeta nos faz procurar conhecer os seus contemporâneos, é porque queremos “o resto”, queremos completar o nosso en¬ tendimento, queremos absorver a totalidade da figura descoberta numa das suas faces. É certo que essa figura nos chega muitas vêzes mutilada. Mas nunca totalmente, precisamente porque ela já está em cada diversidade, já existe em cada um dos poetas, num só que seja. A mutilação diz, talvez, a difícil luta da figura para se exprimir. Talvez nenhuma figura exista completa, quer dizer, talvez nenhuma geração tenha podido conhecer-se e revelar-se como a unidade que é, totalmente. Ou, às vêzes, um só, como Dante, Shakespeare ou Goethe, é por si a figura inteira — milagres incompreensíveis, convergências estranhas de todos num só. (Não quis sugerir qualquer idéia de monumentali¬ dade, expressão cara a Charles du Bos, creio, mas perigosa. A palavra é perigosa demais, e tem sempre um sabor parna¬ siano, por mais que se faça...) Mas, como já disse, o nosso pendor é para entender me¬ lhor as contradições do que a unidade. Por isso costumamos lançar os contemporâneos uns contra os outros, só sabendo

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dar na medida em que tiramos, só reconhecendo à custa de desconhecer, quando melhor seria o entendimento da fecunda diversidade capaz de acrescentar cada um por meio de todos e o todo por meio de cada um — coisa que na realidade faze¬ mos no estado espontâneo da comunicação, e essa é a tristeza do crítico, sempre menos capaz do que o leitor que começou por ser; e, talvez, o leitor que será crítico, menos espontâneo receptor da comunicação do que o mais comum dos leitores, que nada sabe pôr em letra da fôrma mas talvez viva mais desprevenida e inteiramente a visão em que mergulhou e o embriagou. A crítica de “penetração” e a crítica da “integração” (não procurem as designações nos manuais: foram inventadas agora e circunstancialmente), isto é, a crítica que se empenha no aprofundamento de um poeta e aquela que tenta encontrar o sentido comum das vozes dispersas, são difíceis de conciliar pelos motivos já referidos, e ainda porque, também segundo as nossas convenções, ou hábitos, a segunda nos parece mais his¬ tória literária do que crítica. Mas nada nos obriga a confundir essa integração, no plano dos valores poéticos, com qualquer forma de redução a têrmos de história. O que compete à crítica de integração é reunir os traços dispersos da figura; seria, por exemplo, entender a relação Claudel-Valéry-Supervielle no sentido oposto àquele em que Christian SÉNÉchal e eu estudamos a poesia do último, que o levou um dia a lembrar-me f1), com a sua admirável humildade e amor dos poetas acima da tôla rivalidade, que defendera o primeiro con¬ tra Sénéchal e contra mim o segundo — pretendendo recusar a palma da vitória sôbre Claudel e Valéry que respectiva¬ mente lhe concedêramos, nos estudos sôbre a sua poesia; reco¬ nhecendo como mais importante o que era comum aos três do que as mútuas oposições. E acho que o poeta viu aqui melhor do que os seus dois apologistas, e lhes deu uma lição de neces¬ sidade de saber integrar, como complemento necessário do saber penetrar. .. (1955 - 1960)

C1)

V. neste livro Ouvindo Supervielle sôbre a poesia.

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III

PERSPECTIVA DO SURREALISMO

1)0 Surrealismo Contra a Literatura

Quando se dispa o surrealismo da anedota, do esnobismo pró ou contra, dos fluxos e refluxos da moda, do cretinismo que também vai atrás dêle, mas para lhe atirar pedras — em suma, quando se dispa o surrealismo de tudo aquilo que, nada lhe dando nem nada lhe tirando, prova contudo a extraor¬ dinária projeção que teve sôbre as idéias e as formas estéticas nestes últimos vinte e cinco anos f1), ficará ainda, receio bem, demasiada complexidade para o gôsto de todos aquêles a quem a simples menção desta palavra leva a um sinal da cruz escan¬ dalizado e sem apêlo. Essa complexidade é contudo, porventura, o segrêdo da vitalidade que permitiu ao surrealismo, nascido pouco depois da outra guerra, e após ter sido entre aquela e a última um fermento constante de saudável heterodoxia, revelar-se ainda, nos tempos da Resistência, uma das forças que permitiram a salvação da poesia francesa. Ao passo que as grandes figuras, vivas ou mortas já, que impuseram a sua dedada indelével sôbre a literatura entre 20 e 40 — os Proust, os Rolland, os Claudel, os Gide, os

t1)

Escrito em 1948.

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Valéry — já não ofereciam um poder de irradiação capaz de fazer avançar a literatura, o surrealismo — não Breton, não Tzara, não Péret, não Desnos, mas “o surrealismo” — insti¬ lou-se no âmago da própria realidade literária, foi a alavanca sôbre a qual a placa giratória da literatura passou, duma época a outra, morrendo e renascendo, tornando-se outra e conti¬ nuando a ser ela própria. Qual é então essa complexidade do surrealismo? Essa complexidade (aos olhos do literato, claro está, do prudente literato nacional que só pode encarar uma coisa de cada vez, e para quem literatura é só literatura), essa complexidade está em que o surrealismo é, ou pelo menos foi, uma doutrina de vida. Ainda não se falava em engagement, e já o surrealismo representava, contra a literatura, não digo oficial, porque tal coisa não existe na França, mas digo a acatada pelas opiniões “respeitáveis”, a negação do espírito literário. O surrealismo c, ou foi, uma espécie de ordem franciscana da arte e da lite¬ ratura (nem lhe faltaram as excumunhões, em que foi fértil quase desde a primeira hora), na qual se entrava repudiando, não só qualquer forma de profissionalismo literário, mas tam¬ bém, e sobretudo, todos os princípios da organização social vigente. E assim, embora sem chegar nunca a acordo satisfa¬ tório, o grupo surrealista procurou, desde muito cedo, alinhar na extrema esquerda. Embora êste aspecto não interesse aqui diretamente, era indispensável a alusão, tanto mais que nada estava mais longe do espírito surrealista do que confundir pro¬ paganda com poesia, mas, o que é muito diferente, identificar revolução e poesia. O surrealismo pretendeu ser o coveiro da literatura. Con¬ tudo, Breton é senhor de um dos mais belos estilos de que se pode orgulhar a literatura francesa, e Éluard será um clás¬ sico pela maravilhosa pureza dos seus versos . .. embora não rime. Esta contradição é real, e nela se contém, simultânea¬ mente, a razão da extraordinária vitalidade do surrealismo, e da sua inviabilidade como doutrina. Por extraordinário que pareça aos ferrenhos da coerência e da racionalidade, com uma doutrina falsa podem fazer-se admiráveis obras. É que as obras não se fazem com a doutrina. E, enquanto Breton e o seu grupo proclamavam o fim da literatura, com os seus poemas, e até 82

com os seus anseios, pois nem tudo era dogmatismo, iam constituindo a função mais viva da literatura da época, não obstante esta se recusar indignada a reconhecer-lhes categoria literária — do que, aliás, êles não podiam queixar-se, pois que a tal não aspiravam. E quem sabe se não teriam razão? Pois por quê se modi¬ ficou a literatura sob a sua influência? Não deixou de ser lite¬ ratura, é certo. Mas pretenderia Breton “liqüidar” em abso¬ luto a literatura, não seriam as proclamações oficiais do surrea¬ lismo algo que ia além, ou ficava aquém do que havia de mais fecundo na posição assumida? Sem dúvida. Não é novidade para ninguém ser desprezado, entre os escritores, aquêle espé¬ cime que êles próprios designam como “literato”; literato, nesta acepção acintosa, é aquêle indivíduo que por vaidade, por espí¬ rito de imitação, e às vêzes até por ingenuidade, se equivoca inteiramente sôbre a verdadeira essência da literatura, e se dá “ao luxo” de fabricar coisas que, na aparência, são exatamente o mesmo que a literatura verdadeira. Não sendo de estranhar que haja muito mais “literatos” do que escritores, igualmente se não deve estranhar que, nas bibliotecas e nas vitrinas das livrarias o ersatz se encontre em relação ao produto autêntico na proporção de 99 para 1. Ora, sucede que até ao verdadeiro escritor acontece por vêzes reduzir-se a um literato — e que sucede à literatura, periodicamente, reduzir-se a. .. literatice. Num dêsses momentos, um certo número de escritores fran¬ ceses em potência, e outros que já tinham publicado uma ou outra plaquette de versos, olharam à sua volta e, como assim o queria a tensão da hora — isto passa-se durante a Primeira Grande Guerra — acharam que já não havia outra coisa a fazer senão a certidão de óbito à literatura. As convulsões por que o mundo acabara de passar, e mais ainda talvez o pressentimento de outras, a angústia sobreviven¬ te à catástrofe, não eram propícias a que espíritos profunda¬ mente sérios (que o eram, pelo menos, os principais surrea¬ listas), pudessem considerar já como solução a criação duma nova “escola”; não, acabara o tempo das escolas, acabara o tempo de aprender, e o de transigir, e o de ter “ambições li¬ terárias”; morresse pois a literatura. Todavia, Breton e Tzara, PÉRET e Aragon, Éluard e Desnos, etc., etc., eram, de

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fato, escritores; quer dizer, se êles podiam pedir a morte da sua classe, não podiam pedir a do instrumento, a da função; êles escreveriam, pois. . . mas não escreveriam literatura. É fácil, hoje, rirmo-nos da ingenuidade dos surrealistas. É facil especular com esta contradição inicial. Mas, embora isto seja um artigo pela rama, em que por fôrça do lugar e da extensão não se pode ir além das generalidades, creio impossí¬ vel passar adiante, dando o caso por julgado. Realmente, o leitor precisa de saber que os surrealistas nunca fizeram ro¬ mances — e é nisto que está a chave de tudo, se quisermos entender aquilo que precisa ser entendido. Com efeito, a atividade surrealista, postas de parte as chamadas artes plás¬ ticas, que aqui deliberadamente esqueço (sabendo não obs¬ tante que pô-las de parte, mesmo por mera comodidade de expressão, resulta traiçoeiro), e tudo quanto seja polêmica, ma¬ nifestos, crítica — essa atividade é, essencialmeníe, poética. Não foram os surrealistas os primeiros a entender que poesia e literatura não são a mesma coisa. E, criando poesia, ou entendendo como poesia tudo aquilo que faziam (à parte as outras atividades já referidas), algum direito tinham de pen¬ sar que não estavam a fazer literatura — mas sim a procurar revelar as vozes mais íntimas do homem, antes e para lá da consciência, nos recessos ocultos em que se esconde a sua ver¬ dade. Nós é que podemos argumentar: sim, mas isso é pre¬ cisamente o objeto de tôda a verdadeira literatura. Se os sur¬ realistas reprovavam, em absoluto, tôda a idéia de composi¬ ção, de retórica, quer dizer, de qualquer trabalho sôbre a es¬ pontaneidade, êles próprios nos forneceram um argumento con¬ tra a sua tese, pois não tardou a verificar-se que, tal como em tôda a literatura, também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal entre a poesia espontânea de uns e a espon¬ tânea. . . vacuidade, dos restantes. Se é certo, como penso também, ser a poesia a forma de expressão (não cuidemos agora de saber se literatura ou não) em que mais imediatamente o homem se revela, através da qual mais profundamente êle se conhece e comunica, regis¬ temos, cem por cento no ativo do surrealismo, o bem que êle lhe faz, porque a despiu do arsenal de tradições sob o qual

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jazia atenuada, anestesiada — inerme. Reconheçamos que êles lhe devolveram a virulência, a agressividade, a força — e a inocência. Não considero todos os meus possíveis leitores na obri¬ gação de saberem que há pelo menos alguma legitimidade em estabelecer uma distinção fundamental entre a poesia e a li¬ teratura. Se as histórias desta ignoram o fato, e se, dum mo¬ do geral, é mais comum ignorá-lo que reconhecê-lo — reconhecê-lo, já não digo como verdade, mas pelo menos como opinião digna de registo, consideração e análise — o fato é que sem ter em conta tal distinção seria impossível valorizar a função do surrealismo como elemento fundamental na evo¬ lução daquilo que êle despreza e renega, isto é, a literatura. Por um processo que, como linha nítida, bem visível, po¬ demos seguir desde o romantismo, mas ao qual os próprios surrealistas têm ido buscar muito longe a origem e os pontos do afloramento, o lugar dos podêres da razão viu-se pôsto em discussão sob o assalto de outros podêres: os do inconsciente. Durante séculos, predominara no Ocidente, indiscutível e indiscutida, a idéia de que, num universo racional, o poeta e o artis¬ ta, melhor que ninguém, atestavam domínio da razão sôbre o caos dos instintos e dos sentimentos. Mas chegou a hora de se pôr em dúvida a solidez dêsse universo, de se perguntar se a verdade não estaria mais longe e mais fundo, e o sentido da vida não dependeria de forças que mais pareciam governar o homem do que ser governadas por êle. Êstes lugares comuns, que os leitores para quem o são espero me perdoem, tomava-se indispensável fixá-los em aten¬ ção a todos os outros que, na ignorância disto, poderiam supor (e tais suposições são de tal maneira correntes!) o surrealismo uma explosão tão súbita como inexplicável, quando se trata afinal de um momento longamente preparado. Com efeito, po¬ de dizer-se que só ao fim de um século de dúvidas se chegou à certeza; e só ao fim dêsse tempo se tiraram conclusões que, indiretamente, nos fazem compreender que a própria noção de literatura tivesse a sua hora de ser levada a julgamento, e con¬ denada sem apêlo. Durante séculos, os homens contentaram-se com a idéia de “inspiração” para explicar a poesia. Para a explicar, po-

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rém, como um “favor” dos deuses, como um luxo e uma dádi¬ va, e não como necessidade. Para a deixar na situação de pro¬ duto complementar, de coisa que se faz, que se fabrica, para completar a harmonia de um mundo em ordem — digamos, para ser o próprio espelho dessa ordem. E, sobretudo, sem que nem de longe se lhe atribuísse qualquer possibilidade de ser um “instrumento de ação”. O surrealismo tem, pois, de comum com outras tendências do nosso tempo esta tão defi¬ nidora característica de ser intervencionista. Ora, porque digo eu que o surrealista não pode escrever romances? Precisamente porque ser romancista supõe aceitarse a validade, não digo já da ordem social, mas do próprio mundo; um romancista admite implicitamente a racionalidade do universo tal como existe para êle, tal como lhe aparece. Ora, o surrealismo está apostado em provar que tal racionali¬ dade é ilusória, que êsse universo é falso. O surrealismo pre¬ tende, pois, destruir o homem artificial, e é assim incompatí¬ vel com êle qualquer espécie de literatura que aceita, ou, pelo menos, transige com a ficção da realidade. Cabe-lhe exprimir o que se oculta sob essa ficção. Cabe-lhe ir às fontes, pro¬ curar o verdadeiro rosto do homem. E por isso o vimos, su¬ cessivamente, servir-se dos mais diversos instrumentos de me¬ diação para o encontrar: a linguagem automática, os sonhos, a “arte” dos loucos, a “arte” primitiva, as experiências da psi¬ canálise, a magia, o espiritismo. Urge, porém, indicar que, sendo estruturalmente materia¬ lista, o surrealismo não adere, como decerto há quem supo¬ nha (pois que é uma suposição “fácil”) a qualquer das dou¬ trinas, ou métodos ou superstições direta ou indiretamente men¬ cionadas acima. Como não adere às teorias que possam ter sôbre os abismos que procuraram desvendar todos aquêles poe¬ tas, filósofos e outros, que Breton tem apontado como ante¬ passados, ou precursores, a vários títulos: Heráclito, Swift, Sade, Blake, Baudelaire, Rimbaud, Jarry, Saint-Pol-Roux, etc., etc., e, de um modo geral, os românticos alemães. Não, nas obras dos poetas, como nas teorias científicas, como em certas formas religiosas ou de superstição que pare¬ cem estar mais próximas da primitividade, o surrealismo só

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procura o fato que elas possam conter: o homem nu, o homem anterior ao condicionamento social, moral e religioso. E, por¬ tanto, também o homem anterior ao condicionamento estético, escusado seria acrescentar. Ora, a poesia é a voz do homem autêntico, ou tal se su¬ põe ser, enquanto a literatura seria a do homem corrompido, do homem feito já instrumento disciplinado, do homem redu¬ zido à roda da engrenagem. A literatura, para o dizer ainda de outra maneira, seria composição, aceitando as fundamen¬ tais disciplinas racionais; o discurso é, em si, literatura, neste sentido. Só a poesia se salvará pois, visto que ela não é por definição discursiva, e só dela seria, no primitivo, a sua nudez, no civilizado, a possibilidade de libertar o subconsciente. No¬ te-se, porém, que isto não se refere apenas ao que formalmen¬ te se designa por poesia, pois que os surrealistas tanto a en¬ contram nos aforismos de Heráclito, e nos “romances” de Sade, como nos versos de Rimbaud. A objeção imediata a essa situação de favor concedida à poesia é que, já o disse atrás, a diferença de qualidade entre bons e maus poemas parece demonstrar que o surrealismo, seja êle o que fôr, é como literatura que se nos impõe, e o valor por nós atribuído às suas produções não é, afinal, outro que o negado (por êles) valor literário (e coisa idêntica se passa com a pintura e a escultura surrealista). Dizer “Que belo poema!” — eis o que o surrealismo con¬ sidera uma complacência; se é belo, é porque é falso, dirá, ou deveria dizer, o surrealista. Pois que, se é belo, é porque men¬ te, porque esconde o real, porque é um arranjo. Arranjo do qual participa a verdadeira essência do homem? O surrealis¬ ta decerto o admitirá, mas para recusar êste senão que macula a autêntica nudez daquela. . . O leitor considerará decerto tal posição “excessiva”. Mas não será ela, pelo menos, uma espécie de exame de consciên¬ cia, necessário e saudável? Se considerarmos a que ponto a literatura se tornara numa fábrica de ilusão, servindo ao ho¬ mem para ocultar a ignomínia sôbre que assentara a falsa or¬ dem do seu mundo, para fingir a luz nas trevas, para negar as suas mais humilhantes experiências, para se forjar uma co¬ roa de rei dum universo em que cada vez se sentia mais impo-

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tente e mais ignorante — se tal considerarmos, não se nos tor¬ nará fácil compreender que a literatura tenha sido levada a voltar-se contra si própria, para se salvar, isto é, para provar a si própria que, como a fênix, podia arder, e renascer?

2) Artistas e Videntes Na primeira página dêsse “clássico” da crítica moderna que é De Baudelaire au surréalisme, Marcei Raymond, depois de classificar as Flores do Mal como a principal fonte da poe¬ sia contemporânea, reconhece nesta duas correntes — a dos artistas e a dos videntes. A importância que têm para tôda a poesia européia permite que, mesmo em relação a outras litera¬ turas, essas linhas de evolução possam ser consideradas igual¬ mente válidas, não obstante a existência de outros fatores, o mais importante dos quais me parece ser Whitman, apesar de com um pouco de simplificação o podermos incluir na linha dos videntes; mas o certo é a sua “vidência” possuir sentido bem diferente da que encontramos em Lautréamont ou em Rimbaud.

Artistas e videntes: bem certo é que a distinção só será perfeitamente inteligível quando já se saiba qual o gênero de distinção que Marcei Raymond tem em vista; pois, caso con¬ trário, podemos imaginar a reação aparentemente legítima do leitor indignado: então Rimbaud não é um artista? Ora, é evidente que Raymond, ao dizer “artista”, só pretende acen¬ tuar aquilo que num Mallarmé ou num Valéry há de fide¬ lidade ao tipo clássico do poeta, que vê na obra feita o próprio têrmo dos seus esforços, enquanto para um Rimbaud êsse têrmo se transfere para um plano de aventura humana. Os viden¬ tes querem ir, pela poesia, algures; um Mallarmé quereria que êsse algures pudesse ser criado e contido no “aboli bibelot dánanité sonore” — em relação ao que, aliás, a poesia de Valéry constitui já um recuo, porque lhe falta a profunda en¬ trega daquele ao poema como puro objeto. Não é só o fato de ter surgido na França essa plêiade ad¬ mirável que vai desde Gérard de Nerval a Verlaine que nos leva tão freqüentemente a tomar essa fase da literatura fran-

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cesa como o eixo de tôda a poesia européia do século XIX, e da viragem que, através dela, nos conduz do romantismo ao surrealismo; há outra razão, e é a clareza com que a evolução da poesia nos aparece através das suas experiências. Mesmo quando o ramo dos “artistas” chega a esse beco sem saída que é a poesia de Valéry, a abdicação que esta constitui vale co¬ mo a mais eloqüente explicação do drama em dois planos que se vem desenrolando até aos nossos dias, e do qual poetas co¬ mo T. S. Eliot, Pessoa, Rilke, são a viva encarnação. Com efeito, nem o artista nem o vidente procuram senão uma conciliação, ou antes, uma fusão daqueles planos contra¬ ditórios em que a sua condição situa o poeta: o artista quer transfigurar o real em ideal, o vidente quer anular o falso real e penetrar êle próprio até à última realidade. Mas um e ou¬ tro renegam a idéia da poesia como aceitação das cômodas aparências. As revoltas anárquicas, as extravagâncias boêmias, o insulto ao “burguês”, podem parecer-nos hoje um fácil desa¬ fio; mas não há dúvida de que representaram a maneira que êsses poetas tiveram de recusar qualquer identificação com o “sorriso da sociedade”. A aventura surrealista, que continua valendo como a mais forte recusa do nosso tempo em jogar com cartas adulteradas, pode ter sido um malogro como “movimento”; foi-o, creio bem que sim. Mas um malogro que marcou tôda a poesia contem¬ porânea digna dêsse nome. Porque é uma aventura que pre¬ tende libertar o homem do círculo vicioso em que gira, do¬ minado pelos tabus que a sociedade foi tecendo à sua volta até o ter bem reduzido à condição de escravo das “conveniências”. Não foi por acaso que, momentâneamente, o surrealismo seguiu lado a lado com a revolução; é que da vidência indivi¬ dual de Rimbaud se tinha passado à vidência pressentida por Lautréamont: “A poesia será feita por todos e não por um” — o que significa que a poesia se reconhece como aquilo que à revolução compete “tirar” de dentro de cada homem, para que todos assim possam vir a identificar-se. E não há dúvida de que, onde o surrealismo penetrou, vemos a poesia bem mais próxima de ser uma forma de vida do que uma “arte”, uma experiência, uma aventura do próprio homem do que o lançar de dados das experiências estéticas. Por mais adulterada que

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tenha sido a palavra aventura, não há dúvida de ser a ela que a poesia tem de salvar, num mundo cada vez mais sujeito às verdades estatísticas, que são a própria expressão da medio¬ cridade, da falência humana perante a realidade. Os grandes poetas pós-simbolistas, os Rilke, os Pessoa, os Eliot, os Apollinaire, conservam-se numa ambivalência característica entre o artista e o vidente. E nenhum, creio bem, representa com tão extrema veracidade como Pessoa o mo¬ mento em que o homem julga ainda possível a arte, mas já não julga possível a aventura, porque só a pode referir a um mundo de ambivalência real-ideal, cada um de cujos limites se tornara uma expressão falsa. Pessoa dá-se ao ocultismo como uma última esperança de salvação racional; outros regressam, como Eliot, a uma plataforma religiosa da qual esperam uma salvação que não sabem encontrar à sua frente. Rilke procu¬ ra ouvir os fantasmas de Duíno, mas são o eco da sua voz. Mas Pessoa, mais heroicamente, mostra o pó em que todos os conceitos se esfarelam entre os seus dedos, e deixa o cami¬ nho aberto para a reconstrução, porque a sua recusa a aceitar a mistificação varre os fantasmas dos caminhos da poesia. Pode a aventura surrealista que vem depois dêles ser, co¬ mo disse, um malogro, quando considerada em relação aos objetivos que o movimento se propusera; mas foi através de¬ la, isto é, pela recuperação do mundo autêntico no fundo da consciência humana, que foi possível a poesia não se afundar num mundo valeryano de convenções formais, fechado sôbre si, à espera do fim do mundo. A aventura surrealista, pelo con¬ trário, abre-se, pelo poder renovador da imagem, ao futuro im¬ previsível, abre janelas pelas quais não se sabe o que poderá entrar — mas que, indiscutivelmente, não podem dar para o saguão das confortáveis covardias. O pior do surrealismo foi ter um manifesto — manifestos, aliás, pois são três, para só mencionar aquêles que o são desig¬ nadamente. O melhor que teve foi êsses manifestos terem si¬ do escritos por André Breton. Daqui a dizer que o surrealis¬ mo é André Breton iria só um passo, mas não serei eu quem o dê. As palavras trazem consigo tentações às quais temos que saber fugir; queria dizer apenas, realmente, que, re¬ conhecendo embora a existência duma doutrina surrealista, me

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parece muito mais importante que tenha havido, e que conti¬ nue havendo, um

espírito

surrealista.

E,

ao mesmo tempo, que

o mau da doutrina se salva por nos ter chegado através da pro¬ sa admirável de Breton.

Realmente, o surrealismo não é André Breton. Mas Breton teve o condão de suscitar a consciência surrealista, is¬ to é, de provocar a concentração com fôrça explosiva de uma fôrça criadora até aí tida à margem dos “direitos da arte”. Traçando através dos tempos a genealogia do surrealismo, enu¬ merando os seus heróis e mártires, de Heráclito a Lautréamont, Breton veio pôr em relêvo, e, mais do que isso, deu a virtude da sua própria generalidade e autenticidade, ao po¬ der atuante da poesia. Pois o surrealismo não é outra coisa, depois de desvencilharmos o emaranhado de fios que envol¬ vem esta simples verdade, senão um método de vida. O que devemos ao surrealismo foi realmente ter pôsto a poesia a funcionar fora dos livros dos poetas. Pode talvez argumentar-se contra isto que, ao mesmo tempo, se revelou a sua ineficácia, pois o mundo não se tornou surrealista. Assim é, realmente: mas êste é o paradoxo inerente a tôda a intervenção da arte na vida: o que esta ganha em enriquecimento graças à arte não se revela sob a forma duma vitória, mas duma derrota aparente. O surrealismo como doutrina foi derrotado, mas aí está tôda a arte e literatura posterior revelando a sua marca indelével; mas aí está, sobretudo, o lugar ganho pela poesia como parte da vida do homem, a consciência de que nela se dá a mais au¬ têntica fusão entre o real e o imaginário, entre o visível e o invisível, entre o racional e o irracional. Talvez não haja uma grande obra de poesia surrealista — mas, mesmo depois de o terem abandonado e renegado, qual será o cego que não veja na poesia de Éluard e de Aragon que êles foram surrealistas? Mas uma “grande obra” propria¬ mente de poesia surrealista seria impossível — porque o sur¬ realismo não é uma verdade inteira e suficiente por si. O sur¬ realismo não pode ser uma experiência integral porque é aque¬ la parte sem a qual o cotidiano fica reduzido a um esqueleto sem vida — mas também não pode viver sem o cotidiano, pois a sua necessidade nasceu precisamente do cotidiano se ler tomado “vazio”.

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A doutrina surrealista é exclusiva, mas não o é o seu es¬ pírito. Para êste viver, aquêle tinha de morrer. “Se a semen¬ te não morre. . .” Mas a justiça mínima que se possa fazer a Breton é não o amarrar à doutrina, e não olhar a sua obra como exclusivamente teórica, direi mesmo: como exclusivamen¬ te surrealista. A prosa de Breton, quer em obras de “poesia” como Nadja ou Les vases communicants, quer nas páginas de crítica e de doutrina dos Manifestos, de Au point du jour, de La clé des champs, revela um dos espíritos mais esclarecidos do nosso tempo, se o soubermos ler como poeta e não como doutrinário, como crítico e não como profeta. O que êle quis é, como tantas vêzes sucede, o pormenor do que nos comuni¬ cou: a sua verdade é menos importante do que a sua intuição da realidade. Breton não foi o primeiro, não será o último poeta que quis fazer da sua “inspiração” um evangelho, e que ficará por motivos muito diversos dos que lhe pareceram fundamentais. A sua “verdade” errada não deixou de abrir “um” caminho, embora sob a forma de heresias. E até seria legítimo dizer, creio, que só graças às heresias a ortodoxia surrealista pôde cumprir a sua missão. Aliás, trata-se duma ortodoxia tão pes¬ soal que segui-la seria, afinal, seguir as variações de André Breton. E, por outro lado, o que sobretudo importa no sur¬ realismo excede de tal maneira os limites do receituário, de qualquer caracterização de escola, que bem podemos deixar em paz aquelas famosas definições do Manifesto de 1924. O que sobretudo importa é, na realidade, a tentativa de “abolir” a literatura, raiz indispensável da renovação desta.

Haverá decerto quem considere absurdo que a tentativa de destruir alguma coisa possa ser tida como a própria con¬ dição de sobrevivência dela. Seria realmente absurdo se se tratasse dum “objeto”. Mas a literatura não é um objeto, é uma potencialidade. Aboli-la significa pôr têrmo a uma idéia do que ela seja, significa libertá-la duma limitação, recomeçar a aventura, porque a precedente se transformara em hábito. Significa, sobretudo, no caso do surrealismo, libertar a imagina¬ ção, e não só a imagem (quando ainda fazia parte do grupo, Aragon definiu o surrealismo como “o emprêgo desregrado e passional do estupefaciente imagem'''’).

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Libertar a imaginação é precisamente, sob um ângulo que não é muito freqüentemente encarado, levar para a literatura o que no homem é mais atual, mais presente. Ao contrário de Reverdy, penso que a imagem não é uma criação pura do espírito, pela simples razão de não haver criações puras do espírito; a imagem é como que uma fusão dos elementos apa¬ rentemente mais díspares, é, em suma, a autêntica expressão das correspondências, e, portanto, uma afirmação de unidade. Mas essa unidade é precária. O drama do surrealismo é êsse mesmo: que o absoluto da poesia, da liberdade e do amor não seja, ainda, senão uma afirmação do espírito, sem tradu¬ ção na vida do homem. Mas não é menos verdade que, pela primeira vez, uma revolução se fêz na literatura, não para a renovar, mas para transformar o próprio homem. Se o sur¬ realismo tanto empenho manifestou sempre em não ser tido como um movimento literário, foi porque, como outro célebre manifesto, também o de Breton entendia chegada a hora de transformar o mundo.

3) Os Objetivos do Surrealismo Um panorama da arte e da literatura contemporâneas que omitisse o surrealismo daria uma idéia fundamentalmente de¬ formada e incompleta do nosso tempo, mesmo que mencionas¬ se tôdas as obras direta ou indiretamente por êle inspiradas, e todos os efeitos que dêle resultaram, inclusive nas artes aplica¬ das. É que a omissão do surrealismo como movimento dei¬ xaria por explicar aquilo mesmo que fêz a sua vitalidade: ser, dentro da arte e da literatura, um movimento cujo valor esta¬ va precisamente na sua recusa em ser arte e literatura. O surrealismo acabou por se cingir a estas duas formas de expressão, embora o seu objetivo as excedesse; ao verberar “a absurda distinção do belo e do feio, do verdadeiro e do fal¬ so, do bem e do mal” (Segundo Manifesto do Surrealismo), André Breton recusava-se a dar conta de que já a êsse tem¬ po (1930) o surrealismo tinha um belo e feio, um verdadeiro e falso, um bem e um mal seus; isto é, em vez de os destruir, criara novas relações de valores, nas quais as mesmas oposi-

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ções se restabeleciam. Sobretudo, falhou o seu projeto de trans¬ formar o mundo em têrmos marxistas, e modificar a vida, em têrmos rimbaudianos. Condenado a ser arte, literatura e filo¬ sofia, não pôde “agir”, a revolta não pôde caminhar de mãos dadas com a revolução. Pela primeira vez na história, um movimento pretendia a simultânea subversão dos fatos e das idéias. Tôdas as revolu¬ ções que conhecemos pretenderam, ou reformar as idéias para estas modificarem a sociedade, ou reformar a sociedade sem querer saber das idéias, ou finalmente reformar a socieda¬ de para que as idéias se transformassem. É a simultaneidade do projeto surrealista que lhe dá características inéditas; e, em¬ bora a “sua” revolução não se tenha dado, o “espírito” surrea¬ lista que sobreviveu a tal malogro foi mais do que um sim¬ ples acidente “literário”. Na realidade, o espírito do surrealis¬ mo abriu um nôvo caminho nas formas, não da atividade, mas da existência dos chamados intelectuais, criando, ao lado da¬ quele que continua a viver “como se” a obra fôsse independen¬ te dêle, um nôvo tipo de artista (ou escritor, ou filósofo) que se considera no dever de viver a sua obra, de fazer corpo com ela. Ou que, pelo menos, ainda que não realize êste objetivo, tem ao menos consciência de se estar traindo quando o não faz. O surrealismo aparece aos olhos da maior parte da gente, mesmo “ilustrada”, como uma aberração estética. É que a “ação surrealista” tem como programa fundamental a necessi¬ dade de violentar as máscaras do espírito para pôr o homem face a face consigo mesmo. Mas a verdade é que, salvo os casos de agressão e de ação no sentido corrente dêstes têr¬ mos, o surrealismo, não obstante a sua intenção de se situar para além do estético, se exprime afinal numa linguagem que, embora após fazer tábua rasa de todos os valores estabelecidos, é em última análise uma expressão de ordem estética. O horror à arte e à literatura fêz que o surrealismo pre¬ ferisse sempre falar em poesia. Entendamo-nos: tal horror não é a condenação de tôda a arte e de tôda a literatura, mas da¬ quela que não seja poesia. Não quer isto dizer senão que o surrealismo estabelece uma nova tábua de valores para uma e para outra. A recusa não é, pois, da arte e da literatura “co¬ mo tais”, mas de tôdas as formas de expressão estética que

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não sejam “revelação”, isto é, que não constituam uma ilumi¬ nação do “surréel” — e, portanto, que não sejam um caminho para a “verdadeira vida”. Esta não é de modo algum, para o surrealismo, transcen¬ dente. O surrealismo propõe-se a recuperação do homem pe¬ lo recurso a êle mesmo, não lhe propõe uma religião de salva¬ ção, nem uma verdade do além. A poesia — e por isso o surrealismo não quer ser “arte” nem “literatura” — tem como fim desvendar tôdas as potencialidades ocultas “no” homem; não se propõe criar uma beleza “desinteressada”; em suma, não busca a criação de objetos belos em si. Mas êste não é senão o propósito das supremas formas da arte de todos os tempos, pelo menos nos seus “momentos” de máxima intensidade. Di¬ gamos, então, que da arte e da literatura o surrealismo só re¬ conhece tais momentos, mas recusa tudo o que seja arranjo, obra do artífice, habilidade da inteligência que sabe tirar “efei¬ tos” da combinação das formas. Se um ponto crítico do surrealismo foi a impossibilidade de fazer encontrarem-se os caminhos da ação e do sonho, ou¬ tro foi, e continua sendo, êste da delimitação do poético e do estético. Se é certo que, ao longo da sua obra, André Breton, assim como os outros surrealistas, nem sempre mantiveram uma estrita recusa do “belo”, de qualquer modo resta saber se o fundamento da distinção é real, se não se trata na realidade dos mesmos valores, e se, quando chega o momento de esco¬ lher entre um melhor e um pior, não é final entre o belo e o feio que tem de se dar a opção. Não pretendo com isto desvalorizar o poético surrealista. Mas, se por ventura êle é, como já disse, a suprema arte, sem distinção de épocas, seria necessário rever as tábuas de valor surrealistas, para se chegar a uma idéia concreta à luz das suas exclusões e aprovações. E não há dúvida que um simples re¬ lance de olhos aos textos surrealistas em que se faz o balanço da arte e da literatura do passado — e até da contemporânea não surrealista — nos mostraria imediatamente singulares osci¬ lações de critério, bem próprias a nos fazer pôr em dúvida a possibilidade de demarcar o poético e o não poético, e a con¬ cluir em definitivo se o valor “belo” se determina exclusiva-

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mente, para o surrealismo, pelo critério da fidelidade à expres¬ são do “surréel”. Seja como fôr, o fato inegável é ter o surrealismo anexa¬ do uma nova zona da sensibilidade, descobrindo elementos poé¬ ticos que, embora aparecendo na arte e na literatura do passa¬ do em rápidas fulgurações, não tinham direito de cidadania estética por si próprios. Assim, o surrealismo, embora o seu projeto de conduzir o homem pelo caminho da verdadeira vi¬ da tenha falhado tanto como o de participar na transformação do mundo, renovou as formas da sensibilidade a um ponto que ainda nem saberíamos definir. Mas foi um alargamento dos horizontes do homem, ou apenas da visão subjetiva da rea¬ lidade? Também ainda é cedo para o sabermos. A generali¬ dade dos homens continua de olhos vendados para a realidade. O surrealismo ficou tão longe dos seus objetivos quanto a re¬ volução marxista — de nome. Uma vez mais, no impressionante panorama dos desen¬ contros entre a história e o espírito que é a própria imagem do mundo contemporâneo, se verificou, com o surrealismo, a covardia e a ignomínia da humanidade em geral perante as mais autênticas afirmações duma posição realmente humanística sem subterfúgios. Mais uma vez, a poesia se revelou mais verdadeira do que as verdades sob medida e para todos os gos¬ tos. Com tôdas as contradições que se queira, o fato é haver no surrealismo uma fidelidade fundamental ao espírito que se¬ rá inútil procurar algures. Num mundo de compromissos, só o surrealismo se manteve puro e fiel a si próprio. O surrealismo sobreviveu a todos os movimentos con¬ temporâneos. Coisa mais significativa ainda, sobreviveu à mais terrível das guerras. Enquanto as filosofias passavam, e, tal qual os homens, se entredevoravam, o surrealismo permane¬ ceu vivo e intacto — malgrado tôdas as suas crises internas, tôdas as lutas de pessoas entre aquêles que sucessivamente o representaram. Depois de cada aparente colapso o surrealis¬ mo lá estava, intangível, brilhando na escuridão. Por volta de 1925, o surrealismo procurou integrar-se no comunismo. A história dos seus esforços nesse sentido é um capítulo bem significativo da crise da consciência do homem contemporâneo dilacerado entre o espírito e a ação. Nessa ten-

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tativa malograda, revelou-se pela primeira vez um equívoco que estaria na base dos mais dramáticos problemas de cons¬ ciência; durante trinta anos, o melhor da inteligência debateuse, pelo menos no mundo ocidental, à procura duma plata¬ forma que pudesse fazer da libertação da consciência e da li¬ bertação social um movimento único, que, sem tornar uma subserviente da outra, pudesse unificar a consciência e a ação. Num discurso que Breton foi impedido de proferir, no Congresso dos escritores revolucionários realizado em Paris em 1935, afirmava êle: “Transformar o mundo, disse Marx, mu¬ dar a vida, disse Rimbaud, estas duas palavras de ordem são para nós uma só”. Comentando, no seu notável livro sôbre a filosofia do surrealismo, a posição dêste tal como se afirma em tantos dos seus textos, Ferdinand Alquié escreve: “Bre¬ ton afirma assim, como objeto da sua vontade essencial, a rea¬ lização da unidade do homem pela fusão dos dois caminhos opostos que o nosso desejo nos faz seguir: o do imaginário, da poesia, e talvez da loucura, o da ciência, da atividade prᬠtica e da realização política”, (*) Alquié entende que a ruptura entre o surrealismo e o comunismo não pode explicar-se, como em geral se pretende, pela “incompatibilidade da ação e duma revolta que conduz à evasão pelo sonho”. O que os tornou incompatíveis, pensa êle, foi o fato de o surrealismo crer na liberdade do espírito. E isto dá motivo a esta análise magistral de Alquié: “Sem querer, talvez sem o saber, o surrealismo incumbe-se da tare¬ fa que foi sempre a da filosofia: opondo-se a Hegel, que per¬ de a filosofia querendo fazer dela a consciência que a his¬ tória teria de si própria, subordina a história a uma consciên¬ cia capaz de julgar a história. Quando declara que a cons¬ ciência tem direitos imprescritíveis, que a verdade não deve abdicar perante a eficácia, que o fim não justifica os meios, Breton enuncia com efeito juízos cujo último princípio não pode deixar de estar na afirmação da infinidade do espírito, da sua superioridade sôbre qualquer objeto possível e sôbre qual¬ quer conceito definível”. “E, ao contrário de deixar de ser re-

(i) Ferdinand Alquié, La philosophie du surréalisme, Bibliothèque de Philosophie Scientifique, Flammarion, Paris, p. 80.

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volucionário, Breton dá então à idéia de revolução o único fundamento que ela possa ter: porque a própria idéia de revo¬ lução supõe a dimensão vertical pela qual o espírito, recusando-se a coincidir com a história de fato, a julga, a ultrapassa, afirma que o atual estado de coisas é inadmissível, declara que a revolução é um bem”. (2) Alquié coloca assim o debate no seu verdadeiro pé. E, de passagem, generalizando-o, escreve: “O drama vivido por Breton e pelos seus amigos não é exclusivo dos surrealistas: é o de todos os intelectuais comunistas ou atraídos pelo co¬ munismo (...): êsse drama não tem origem no conflito entre a ação e o sonho, como se tem pretendido muitas vêzes, nem, como declaram os comunistas, na oposição duma vonta¬ de revolucionária a um desejo de conservação social. Porque ninguém estabeleceu racionalmente, que eu saiba, a relação que o cogito cartesiano, a análise kantiana ou a livre criação em pintura, condenados pelos comunistas, possam ter com o so¬ nho ou a reação política; (...) O drama do intelectual ten¬ tado pela política comunista origina-se, de fato, na incompa¬ tibilidade entre as evidências interiores que se lhe impõem, co¬ mo a todo homem que conduz livremente e sinceramente os seus pensamentos, e uma doutrina externa toute faite, contrᬠria a estas evidências”. (3) O caso particular do surrealismo, contudo, é que não se trata, precisamente, de intelectuais no sentido comum da pa¬ lavra. Os surrealistas pretendem “agir”, como aliás o próprio Alquié não deixa de especificar. O surrealismo tinha em vis¬ ta, como tantos outros textos o revelam, além do que citei logo de início, reintegrar o homem na verdadeira realidade. Ora, para o comunismo militante não podia haver tal verdadeira rea¬ lidade. Êle encaminhava-se já a grandes passos para a hu¬ milhação e degradação do homem que é o stalinismo, para a mística da eficiência, que é um caminho tão direto para o va¬ zio da consciência como o seu equivalente norte-americano, com a diferença que, se virmos bem, não tem grande impor¬ tância, de que, neste, a técnica não presume de filosofia, e se

(2) (3)

Id„ p. 82 e 90-91. Id., p. 89.

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oferece na nudez da “eficiência pela eficiência”, enquanto no stalinismo é uma eficiência “para”. O universo stalinista é kafkiano, o norte-americano é apenas de opereta. Querendo ser ação, e supondo que os seus fins eram os mesmos do comunismo, o surrealismo pôs a nu o abismo que iria aprofundar-se de ano para ano até à derrocada final a que estamos assistindo. Entretanto, embora sendo uma fôrça po¬ sitiva, o surrealismo não podia “realizar-se” senão no plano da arte e da literatura. Não resolvia os problemas da ação, porque afirmava a autenticidade da consciência contra as evidências, a “verdadeira vida” (Rimbaud) contra a vida possível. Êle se¬ ria realmente ação caso a fusão dos dois planos pudesse reali¬ zar-se, digamos assim, no “cotidiano”. É certo que isto não o diminui a êle, mas aos homens, perdidos de si próprios, em¬ paredados nos seus pequenos universos de mesquinhos interêsses, nos seus projetos de vistas curtas, sóis apagados giran¬ do num espaço vazio.

4) Um Heterodoxo do Surrealismo: Henri Michaux Publicou-se em 1941, em Paris, um livrinho que, se o momento fôsse outro, talvez significasse a glória para o obscuro autor (pelo menos relativamente obscuro) a cuja obra as suas páginas são consagradas. “Découvrons Henri Michaux”, se chama a conferência, pois duma conferência se trata, a qual se destinava a ser lida, creio, no momento em que a França capitulou. É seu autor nem mais nem menos do que André Gide. Michaux não é a primeira “descoberta” de André Gide. Mas quando fêz outras, — a de Giraudoux, por exemplo, — Gide não era ainda a celebridade universal que se tornou depois. Confesso — e sem vergonha nenhuma! — que não dei¬ xei de sentir uma certa satisfação ao ver o livrinho de Gide: pela minha parte, já tinha descoberto Michaux há dez anos, ou melhor: tinha-mo feito conhecer êsse admirável “amigo da poesia” que é Supervielle. Fala-se muito nas invejas, nos ciúmes entre escritores: mas não seria nada mau falar-se ao

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menos de vez em quando nas admiráveis manifestações de so¬ lidariedade entre êles, quando um mais velho emprega o seu crédito em tornar conhecidos outros, que acabam de se revelar. Nem todos os poetas se comem uns aos outros — nem mes¬ mo em Portugal. . . Michaux é desde então, não direi um dos meus autores de cabeceira, porque não leio na cama, mas um daqueles ra¬ ros a que me posso dirigir sempre com esta certeza: os seus livros não precisam de disposição especial para me prenderem. Terá chegado para mim o momento de seguir o exemplo de Supervielle, e tentar alguma coisa para que Michaux deixe de ser um perfeito desconhecido entre nós? Para já não falar nos esnobes, (aos quais bastaria dizer-se que êle tem Gide por pa¬ trono para desatarem a admirá-lo) o crédito de Gide não se¬ rá suficiente, entre nós, para abrir alguns espíritos de boa von¬ tade à compreensão duma obra de tão profundo interêsse — mas de relativamente difícil acesso — como a de Michaux? Michaux não se situa com efeito num plano de fácil acei¬ tação para todos aquêles que põem como condição para “acei¬ tarem” uma obra que ela tenha um gênero definido. Muito menos para todos quantos recuam perante o que à primeira vista é abstruso, se exprime duma forma pessoal, e nada tem de comum, o mais das vêzes, com o plano da vida dos homens mais acessível à sua percepção: o da mais imediata e aparen¬ te realidade que lhes toca a consciência. Para êstes como pa¬ ra aquêles, apresenta a obra de Michaux uma barreira que tal¬ vez apenas se erga em dois dos seus livros: Ecuador e Uri barbare en Asie, livros que, tendo pelo menos na estrutura apa¬ rente a forma de notas de viagem, dão por isso mesmo ao lei¬ tor um ótimo pé para se familiarizar com o autor. Ao resto da sua obra, afete ela deliberada e claramente a forma de poe¬ sia, ou tenha muito ou alguma coisa de ficção, aparente ser diário ou confissão, pareça transcrição de sonhos alucinados ou balbuciar de um pensamento que logo se esvai sem se deixar fixar uma forma nitidamente intelectual — só uma designação parece convir realmente, e ainda assim com a reserva de que só por si não “designa” nada com suficiente clareza: poesia. Na obra de Michaux, a violência torrencial do seu po¬ der de invenção (mas duma invenção cujo caminho nunca é o

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da fantasia gratuita, e vai sempre, pelo contrário, ter a algu¬ ma parte), a fôrça e a justeza da análise, a sua espantosa ima¬ ginação verbal, estão demasiado inextrincàvelmente confundi¬ dos para ser natural uma dispersão que lhe tornasse possível fixar-se num gênero de cada vez. Além disso, Michaux não se classifica de modo algum entre aquêles autores cuja obra nos revela uma fisionomia arquitetônica; e, pese embora aos ho¬ mens de ordem, nem apenas aquelas obras de contornos níti¬ dos e definidos têm condições necessárias para serem grandes obras. Não deixam de o ser por isso os Ensaios de Montaigne, por exemplo. Não dei êste exemplo sem intenção: com efeito, mas num plano totalmente diverso, a obra de Michaux não deixa de ter, na sua forma de progredir, qualquer coisa de afim com a de Montaigne. Isto quer dizer que é daquelas obras cujo eixo se situa sempre no próprio autor; daquelas obras que, mais claramente, falam, não direi de si, mas do mundo a partir de si próprios e a si próprios regressando sempre. Não é preciso ir mais longe: só falta dizer que Michaux é, no fun¬ do, o autor dum diário íntimo, a sua obra uma confissão per¬ pétua; e talvez por isso ela nos fale tão direta, tão pessoalmen¬ te. Mas Michaux, note-se bem, nunca “se conta”. Michaux deixa a sua experiência do mundo depositar-se em pequenos trechos que a maior parte das vêzes nada têm a ver aparente¬ mente com êle, em que se fala das coisas mais extraordinárias, em que a imaginação parece à primeira vista ter domínio abso¬ luto, mas que acabamos por descobrir ao fim quanto têm a ver com a personalidade, com a vida, com a experiência do autor. Certos dos seus livros, contudo, e sobretudo êsses que já antes citei, oferecem-nos uma coerência exterior bem patente. Aí a forma de impressões anotadas dia por dia, segundo o pro¬ gresso da viagem, e seja ou não função direta dela, dão-nos pelo menos uma ilusão de solidez, de terreno conhecido e já palmilhado; e não é apenas ilusão, porque aí Michaux fala dos seus semelhantes, embora não procure nêles o pitoresco e a anedota, mas a verdade de cada povo e de todos os homens, sobretudo em Un Barbare en Asie. Ilusão, contudo, pois que a busca de Michaux vai para lá de tôdas as aparências e de todo o circunstancia], despreza o lugar-comum e a côr local,

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e não sai afinal da atmosfera de todos os seus outros livros; apenas, aqui, nos dá o dicionário que nos ajude a ler mais fun¬ do do que a côr da pele e a estranheza dos costumes. Não receio afirmar ser êsse um dos livros mais ricos de verdade profunda que um homem tenha escrito sôbre o seu se¬ melhante. Esquecer o que já foi pensado e dito sôbre as mais diversas civilizações, e pôr-se um homem a olhar para a sua realidade viva de hoje, sobretudo através dos indivíduos que a representam, e entre êstes sobretudo do homem da rua — mas, mais ainda, através das suas formas de vida, do seu com¬ portamento cotidiano — ao mesmo tempo que através das for¬ mas superiores da sua cultura, êste duplo ponto de vista dá à visão de Henri Michaux, se bem me parece, essa lumino¬ sa evidência que a caracteriza. Não recomendaria a ninguém — salvo a um poeta — que se iniciasse na obra de Michaux pela leitura de Mes Proprietés, de La Nuit remue ou de Voyage en Grande Garabagne. Mas quem leia Un Barbare en Asie, se o conhecimento do ho¬ mem não lhe fôr indiferente, sentir-se-á irresistivelmente atraí¬ do a penetrar mais largamente, e na sua direta expressão poéti¬ ca, essa obra inquietante, cheia de iluminações geniais — uma das mais belas imagens do Homem autêntico que conheço. *

A guerra fêz o milagre de abrir os olhos dos franceses à poesia em carne e osso, com prejuízo do prestígio da retórica, e de todos os subterfúgios formais com que se ilude a sêde de poesia. A guerra apenas, não: sobretudo o que se lhe se¬ guiu, o país invadido, a pátria como uma ferida em que o ini¬ migo remexia a seu bel-prazer a lâmina da crueldade, instilava o veneno da humilhação. Uma exigência de autencidade, e a correlativa desconfiança dos jogos verbais, das arquiteturas por demais acabadas — demasiado acabadas para não se sentir ao fim que essa perfeição de aparência só era conseguida à custa duma mutilação do homem —, vieram dar enfim o seu lugar a tendências e a poetas que até então viviam exilados do conhe¬ cimento da maioria, ou só conhecidos pela auréola do escân¬ dalo jornalístico. Foi a hora de se reconhecer no surrealismo, mesmo que se recusassem os seus fundamentos teóricos, um es-

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cape da imaginação e do sonho, uma recusa do formalismo, e que salvara a poesia francesa do preciosismo, facêta estrutural do espírito francês, sim, mas que só vale na medida em que seja contrabalançado por um apêlo a algo mais profundo. Meia dúzia de poetas que até essa altura estavam bem longe de ter alcançado lugar de destaque no conceito público, e que êste tinha por ininteligíveis, abstrusos, obscuros, extra¬ vagantes “por moda” — o que as gazetas não se cansavam de lhe repetir ser quanto havia a dizer de tais desmancha-prazeres —, essa meia dúzia de poetas veio a revelar-se precisamente como a voz necessária dessa hora porque era a voz da auten¬ ticidade; e o que dêles até aí afastara o “leitor comum” não era senão a própria preguiça dêste em ir ao encontro da per¬ sonalidade. Alguns, vindos do surrealismo, como Tzara, Aragon, Éluard e René Char, ou dêle afins, como Henri Michaux, ou vindos ainda de mais longe, como Supervielle e PierreJean Jouve, e bem assim aquêles que já surgiram depois do surrealismo — Pierre Emmanuel, La Tour du Pin, — reve¬ laram-se os únicos capazes de “ter o que dizer” a um povo que se via de súbito ante o abismo da crise mais trágica da Sua existência, os únicos que, por terem mergulhado bem fundo dentro de si próprios, estavam agora à altura dum momento em que as aparências se desvaneciam, os muros de cartão do gôsto fácil ruíam, e a cada um urgia construir a cidadela in¬ terior onde juntasse as forças necessárias para não sucumbir perante a onda de ignomínia e de crime que parecia prestes a submergir tudo e todos. Não se estranhe que a poesia de um Henri Michaux te¬ nha permanecido sem eco durante uma dezena de anos, e, com uma obra já considerável, André Gide tenha achado necessᬠrio, em 1939, “descobri-lo” f1); não era surrealista, e não par¬ ticipava, pois, sequer da “glória do escândalo”, largamente con¬ quistada por aquêles no decorrer do entre duas guerras. O seu caminho foi um caminho solitário — como solitária é a sua arte, se arte é legítimo chamá-la. Arte difícil? Tôda a arte é difícil! Nunca veio ao mundo qualquer “mensagem”

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Déçouvrons Henri Michaux (Ed. da N, R, F., 1941).

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(como foi moda dizer-se, e continua a ser cômodo) sem que houvesse a derrubar o alto muro da fatal acusação de “difi¬ culdade”, ininteligibilidade, obscuridade, etc. Assim como os curados da cegueira têm que “aprender”, antes de realmente poderem ver, assim também o homem pôsto diante de uma poesia ou prosa “nova” tem que abrir caminho até ela, refor¬ mando os seus hábitos, esquecendo as convenções que lhe em¬ panam a visão, e o impedem de reconhecer imediatamente uma expressão e um conteúdo que, à primeira vista, lhe parecem nada ter de comum com aquilo que se habituou a “saber ler”. Não se suponha que esteja em causa uma dificuldade “in¬ ventada” pelo poeta: um verdadeiro poeta, e é de um dêles que estamos a tratar, tem coisa mais séria a fazer do que preparar charadas — tal idéia é ainda um sinal da jactância lorpa de certos leitores. . . e autores. Aliás, no caso de Michaux, não se trata de nada semelhante à celebrada obscuridade de um Mallarmé, mas de algo que é legitimamente “chocante” para o leitor, porque a intenção é de fato, não propor-lhe charadas, mas... agredi-lo. O choque sofrido pelo leitor ao penetrar num mundo de violência e de absurdo será uma reação hu¬ mana, mais do que uma reação simplesmente estética. De fato, tal como os surrealistas, Michaux recusa ser incluído nas hos¬ tes dos “literatos”. Não está ali para fazer belos poemas, es¬ crever belas histórias, mas para agredir, para torcer o pescoço, já não apenas à retórica, como no tempo de Verlaine, mas à própria idéia de literatura — e ao próprio homem na sua suficiência de senhor do mundo. A estranha aventura de Michaux é que da sua coragem em saber recusar, nasceu afinal uma das expressões poéticas mais poderosas dos nossos dias — das mais poderosas e. . . das mais belas. É que essa fênix que é chamada beleza lite¬ rária, sempre inapreensível, nunca suficientemente nem clara¬ mente definida, ressurge das mãos daqueles mesmos que come¬ çam por recusar qualquer compromisso com ela. Quase pode¬ ríamos dizer: para encontrá-la é indispensável não a procurar, e até negá-la. A arte recomeça sempre a partir de zero. Mas, embora esta recusa seja comum a êle e aos surrea¬ listas, ousarei afirmar que Michaux teve desde o início da sua obra a superioridade de, embora achasse em si próprio a ma-

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téria-prima da sua poesia, ter sabido objetivá-la, isto é, em vez de simplesmente libertar a imaginação, e através dela o inconsciente, como queria o “credo” surrealista, ter sabido criar uma linguagem (e o problema do surrealismo “ortodoxo” é a impossibilidade de tal criação sem o trair), ter sabido introdu¬ zir nela o mundo, não apenas como imagem, mas como densi¬ dade contra a qual se dirigiam os golpes da sua negação. E enquanto a poesia surrealista é, com raras exceções, um des¬ fiar mole de imagens invertebradas, logo nos seus primeiros livros, sob a sua aparência informe, a poesia de Michaux tem contornos, tem um estilo, tem uma forma. Talvez por isso mesmo os poemas tenham acabado por dar lugar às his¬ tórias, se assim é legítimo chamar-lhes. E assim, ao fim de alguns anos surgia na obra de Michaux um “personagem”: Plume. Quem é Plume? Prefiro ceder a palavra a Claude Roy, que num belo artigo de Action assim o apresentou: “Plume est une réussite assez unique. Cest un homme dérisoire et écrasé, toujours en faute, et toujours le sachant, dont on trouve le reflet affaibli dans beaucoup de romans qui paraissent, au sujet duquel on peut invoquer Kafka, Chaplin et James Thurber mais qui, en définitive, n’est que Plume. L’enfant d’une nuit qui remue est d’Henri Michaux, comme d’autres les enfants d’une nuit dTdumée. “Les fourmis auront mangé sa maison, sa femme est coupée en morceaux, le juge questione. . . “Excusez-moi, dit Plu¬ me, je n’ai pas suivi 1’affaire. Et il se rendormit.” Au restaurant, Plume se sent mis en accusation par le garçon, en voyage les trains sont pour d’autres, mais pas pour lui, ou bien on lui jette dans les bras, et très inopinément, trois ou quatre Bulgares morts, et Plume est bien enbarrassé. Bien enbarrassé aussi par les femmes, et les villes, et la vie en général. Plume est Fembarras fait chair, et jamais il ne rencontre un regard secourable, jamais une aide, ni une bonne parole. Peut-êtrc ne viendrons-nous jamais à bout de la souffrance, ni de la mort, ni du mal.” Depois de Plume, inúmeros personagens invadiram a obra de Michaux. Personagens? A verdade é que essa designação se me afigura muito pouco indicada para essa população sub¬ terrânea de Grande Garabagne, do País da Magia, de Poddema.

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Países da imaginação, países do absurdo, e dos quais nem sem¬ pre sabemos bem onde acaba o cômico e onde começa o trᬠgico — ou não se tratará, talvez o leitor seja levado a supor, de “pura imaginação”, para lá do cômico e do trágico? Êsse seria o engano: é que tal pura imaginação não existe, não há imaginação senão a partir do real. Êste, Michaux não quer, ou não pode buscá-lo nas formas comuns que são a matériaprima do romancista. Dir-se-ia que Michaux lançou mão do ho¬ mem, do que se convencionou chamar “o homem”, e atirou aos quatro ventos a poeira que lhe ficou nas mãos. O homem? É coisa que Michaux não encontrou. Encontrou, sim, fechan¬ do os olhos, fingindo ir para muito longe de tudo o que seja humano, essas poeiras a boiar em perspectivas infindáveis, po¬ voando cidades, mundos que são e não são humanos, porque o seu comportamento não se assemelha ao humano. Mas que outros ingredientes os constituem, senão os mesmos que a tôda a humanidade? A sua imaginação, aparentemente à sôlta, re¬ constitui o homem partindo de outras bases. Como nos atre¬ veremos a afirmar que o seu mundo é irreal, se as suas descri¬ ções nos interessam prodigiosamente — precisamente como se se tratasse de nossos irmãos de carne e osso?!

5) As Presenças Insuportáveis: Artaud Folheando o recém-aparecido primeiro volume das Obras Completas de Antonin Artaud, pergunto-me o que farão os historiadores da literatura de tão insuportável presença. É um poeta? é um místico? ou apenas um louco? Quem o reclama¬ rá finalmente? Onde está o lugar certo para êle? E a sua obra, que melhor se diria desfeita do que feita, como a irão êles classificar, arrumar. . . e esterilizar? Artaud é inclassificável. Muitos outros, realmente in¬ classificáveis também, facilitaram a tarefa dos arrumadores con¬ sentindo em fingir-se romancistas, dramaturgos, sei lá o quê. Quem sabe se o único “gênero” indicado para nêle se classifi¬ car a obra de Artaud não será a epistolografia. Não só por muitos dos seus textos serem cartas, mas, e sobretudo, porque os gritos, as imprecações, as implorações, as confissões de que

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ela esta cheia são a mais direta tentativa que um homem dum mundo tão diferente do mundo comum dos homens jamais fêz para “se dizer”, para procurar um eco, uma resposta, uma compreensão para o seu mundo incompreensível. Mas, na realidade, se consulto a mim, e não a uma hipo¬ tética opinião mediana, não vejo senão uma designação que possa estar certa com êle, e é a de poeta. Poeta, aqui, tam¬ bém no sentido em que o povo, justificadamente, deformou a palavra: lunático. O mesmo é dizer que Artaud foi integral¬ mente poeta, sem as transigências de quantos fingem não ser realmente lunáticos. Insuportáveis lunáticos. Os homens como Artaud não têm lugar próprio em par¬ te nenhuma. São as testemunhas do impossível, e os forçados do indizível. Não podem criar uma “obra”, porque inteira¬ mente os absorve a tarefa de descer ao fundo do homem. Criar uma obra supõe uma resposta prévia, sincera ou falsa, às per¬ guntas que são, para os Artaud, um cabo impossível de do¬ brar. Criar uma obra é supor respondidas certas perguntas fun¬ damentais, e respondidas afirmativamente, em primeiro lugar o “quem sou?” e o “quem somos?” que achamos, nós míseros habitantes do cá em baixo, de algum modo respondidas pela própria existência do homem e das suas obras, implicitamente respondidas sem necessidade de se voltar ao princípio. Artaud é, suponho, tão pouco conhecido em Portugal como no Brasil. Só aquêles que se interessam por autores “es¬ quisitos” — como é o caso do Geraldo Ferraz, que conheci com as obras de Xavier Fornoret debaixo do braço, e agora me deu a tentação de lhe roubar êste Artaud, que ainda não consegui encontrar, neste Rio onde sou ainda demasiado estra¬ nho para saber onde se deve ir procurar certos livros — só uns tantos amadores (no sentido primitivo da palavra) podem dar-se ao luxo de descobrir autores que, além de não terem classificação possível, são profundamente “incômodos”, para os leitores e para a literatura. Incômodos nesta como um Kierkegaard na filosofia. Desmancha-prazeres que agridem o lei¬ tor em vez de lhe passar gentilmente a mão pelo lombo. O mais definível que há na obra de Artaud ainda são os seus poemas. Não que sejam menos agressivos, mas porque o leitor olha, e diz: são poemas. Mas, e o resto? Fragmentos

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duma consciência literalmente esmigalhada, como êle esmiga¬ lhava móveis nos seus acessos de fúria. Porque êste homem foi, leitor, realmente um louco. Com o que muitas pessoas — sobretudo as que, não o tendo lido, se poderão dispensar de ter remorsos de como tal o classificar sem mais inquérito — poderão dar o incidente Artaud por encerrado. Mas, para quem o leia, se lhe resta um pouco que seja daquela sêde de autenticidade sem a qual não há amor da literatura verdadeira, para quem o leia não haverá forma de fugir ao problema: acei¬ tá-lo ou recusá-lo? Bem sei que há a solução fácil de pôr o homem para fora da literatura reconhecendo-lhe embora qualquer mérito notável. Assim se faz muito freqüentemente com o citado Kierkegaard, remetendo-o para o grêmio dos poetas; o pior é que, se reme¬ têssemos Artaud para o dos filósofos, a grita seria insuportᬠvel, e êle, se pudesse ser ouvido, sem dúvida também não o teria como menos insuportável. Mas como fazê-lo caber dentro da literatura, já que, em última análise, não parece possível atri¬ buir-lhe senão essa condição? E quereria êle próprio ser um “literato”? Eis aí a pergunta mais difícil de responder. O surrealis¬ mo — e Artaud é porventura o único surrealista autêntico, se tomarmos ao pé da letra aquilo que o surrealismo se pro¬ punha ser — foi um movimento contra a literatura. Mas, ser contra a literatura não quer dizer que os surrealistas sejam contra a poesia, isto é, contra uma expressão que admitiam capaz de manifestar o homem no puro fluir do eu, capaz de ser a voz das próprias raízes do humano, “antes” da razão, digamos as¬ sim. Mas aqui se põe o problema, muito germânico, mas nem por isso menos verdadeiro, da distinção entre poesia e lite¬ ratura. Creio que sôbre êle não se chegará nunca a acordo. Por¬ que, em última análise, as formas superiores da literatura aca¬ bam por se definir por aquilo mesmo que pode definir a poe¬ sia. E, ao fim e ao cabo, acabamos por ver que a distinção tem o seu quê de sofístico, ou pelo menos envolve uma restri¬ ção de consciência um tanto jesuítica, já que a literatura não pode sofrer as culpas das suas formas inferiores, ou sequer me¬ dianas. E a verdade é que também a poesia, e também a poe-

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sia dos surrealistas, é impura, porque impuro é o homem, c sem a marca dessa impureza também não haverá autêntica poesia. Artaud, e outros como Artaud, podem não ser “lite¬ ratos”. Mas a profissionalização, ou, se se prefere, a estandar¬ dização da literatura, não é um mal da literatura, mas dos que fazem literatura. A verdade é que aquilo que um autor pode ter como pura espontaneidade nos mostra perfeitamente onde está a impossibilidade de se fazer a distinção: a pura es¬ pontaneidade dum gênio não é a pura espontaneidade dum es¬ crevinhador. Mas, poderá objetar-se, ao que um Artaud se recusa é precisamente a “organizar” o seu gênio. Certo; mas se a capacidade de realizar essa organização, graças à qual se constrói a obra, fôr. . . espontânea? Que dizer: se houver ape¬ nas uma questão de forma, e de temperamento, onde se quer ver a oposição entre uma autenticidade única aceitável e uma elaboração condenável? Perguntas que continuarão sem res¬ posta, e nem por isso Artaud deixará de ser um gênio, e Baudelaire outro gênio.

(1948-1956)

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IV

DIZER NÃO DIZENDO

O poder de alusão da poesia — que a tal se resume tudo quanto a tradição da análise literária clássica especificou sob os nomes dos vários tropos, (metáfora, perífrase, etc., etc.) — não coube nunca nessas prisões douradas que a crítica lhe foi tecendo pelos séculos fora. O poeta diz muito em poucas pa¬ lavras . . . e a análise literária diz de menos em palavras de¬ mais. Ai de nós, tentar compreender é uma doença incurável. Pois continuemos tentando. A poesia é esquiva. A multiplicidade de aparências em que se envolve (ou seria melhor dizer: em que a envolvemos?) permite tôdas as confusões, e supor-se-lhe dificuldades ou fa¬ cilidades que não tem, e nas quais se vão enredando inapelàvelmente todos quantos são dominados pelo desejo de ser poetas, sem que nada os disponha realmente para tal. A to¬ dos ela parece oferecer uma esperança, mas. . . são sempre poucos os escolhidos. A poesia moderna “permitiu” a ilusão de ser a poesia fácil. Foi mesmo êste um dos argumentos mais reproduzidos por todos quantos procuravam “razões” contra ela. É, aliás, um argumento sob o qual se revela profundo pessimismo acer¬ ca da inteligência humana: pois entenderão tais objetores que seja realmente difícil aprender a “fazer” um sonêto ou uma ode? Se tal fôsse difícil, como havíamos de classificar as coisas realmente.. . difíceis?!

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Na realidade, afirmar a facilidade em fazer versos “sem medida” nem rima será o mesmo que fazê-lo... em relação à prosa! De onde se conclui que tal argumento significa antes de mais nada o seguinte: ignorância de qual seja a dificuldade tanto de fazer verso como prosa. Valery Larbaud escreveu, falando do verso livre, que êle “estabelece limites e restrições (contraintes) mais sutis, e mais difíceis de manter”, do que o verso chamado “regular”. Mas, precisamente, não é isto coisa de aparência, que salte aos olhos dos profanos — e, entre êstes, há que contar todos aquêles que se dispuseram a fazer ver¬ sos “sem medida” porque agora era fácil fazer poesia. . . Mas, não nos iludamos! Como realmente também não era difícil fazer versos “regulares”, a situação não se modificou; somente que, antes de deitar versos no papel, os não-poetas de antigamente iam aprender nos tratados de versificação aquilo que lá está — ao alcance de qualquer pessoa com algumas letras. A poesia era, e não deixou de ser, difícil. A dificuldade nunca estivera na técnica de fazer versos, e continuou a não es¬ tar na suposta falta de técnica do fazer versos livres. Mas a poesia é difícil, realmente, embora por motivos de outra ordem. Entre outros, por ser uma maneira de dizer não dizendo, de insinuações por trás das palavras, de obscuri¬ dades por trás da claridade do aparente discurso. Isto deu, aliás, outro argumento aos antimodernos: acharem a poesia moderna difícil e daí a condenarem, por ela, freqüentemente, desprezar o discurso, rir-se da sintaxe “feita”, e, mostrar-se mais nua no seu corpo de obscuridade. Realmente, muitos amadores da poesia regular nunca en¬ tenderam dela senão... a gramática. E, como entendiam o nexo aparente, quando deram de cara com uma poesia sem êle, concluíram, compreensívelmente, que a poesia tinha deixa¬ do de o ser. Tal qual as pessoas que só entendem pintura quando há no quadro gente e coisas que se parecem com gente e coisas. Realmente, o que se revela com estas confusões é quanto tempo se perde na escola a não aprender nada; ou, pior, a aprender tudo trocado. Sim, a poesia é difícil de fazer e de entender, para quem ignore que a linguagem não está naquela aparência de serem

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sinais consentida pelas palavras quando se pensa apenas no seu uso, digamos, prático. O que a poesia revela, mais inequi¬ vocamente do que a prosa, é precisamente o que está para além dos sinais. Coisa que não se vê a ôlho nu senão quando se é... iniciado. De que não deve concluir-se nada contra ela, mas apenas que, para se entrar nos seus domínios, é necessária uma chave. E acontece que o chaveiro é fantasista, e só as fabrica capazes de funcionar para os clientes da sua simpatia. Ai de nós, não basta querer entrar por essa porta. É necessᬠrio — parece — merecê-lo. Como se merece entender a poesia é realmente segrêdo inviolável. Eu permito-me supor —- somente supor — que para merecê-lo é necessário uma espécie de sexto sentido, que não escolhe as pessoas pelo saber nem pela ignorância, e parece soprar onde quer, sem atenção aos esforços. E aqui a lei é igual para quem dá e para quem recebe; como ninguém se escolhe poeta, tampouco ninguém se escolhe capaz de entender a poesia. É preciso ter um ouvido especial, que não ouve apenas o que os dicionários explicam; ouvido para o outro lado das palavras, e sobretudo para as “séries” de palavras, para a sua organização em grupos muito particulares, que nada têm a ver com a sintaxe. Meu Deus! — é preciso adivinhar o que lá está não estando. .. Há nisto tudo uma grande injustiça. A não ser que haja uma justiça tão elevada que não a possamos entender. Será pelo amor que se ganha o dom? E porque não seria? O amor desinteressado pelas coisas do mundo e pelos sêres do mundo. Um amor que não pergunta “para que serve”, e que realmente também não pergunta “o que quer dizer”, por saber que há uma comunicação em que as palavras, embora significando, são mais do que significação, e na qual salta uma faísca de reconhe¬ cimento que em vão tentamos prender na rêde das explicações. A poesia é uma perpétua alusão. A quê? A tudo! Mas a tudo duma vez só, e não aos pedacinhos de realidade a que aparentemente o poeta alude. Daí a dificuldade para quem apenas vê na realidade pedacinhos soltos boiando num oceano de acasos. Que mais há de ver na poesia?! Palavras, ritmo, música, significação, sentir, quem os quiser separar, em vez de encontrar, só pode perder a poesia.

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Fácil? Difícil? Nenhuma destas palavras tem nada a ver com a poesia. *

Cada época tem o seu gênero particular de subprodutos, de falsificações, de arremedos daquilo que, ganhando prestígio, se impõe como modêlo. Atualmente, e no caso da poesia, assistimos a uma tremenda invasão de vocabulário abstrato, e não menos de palavras espetacularmente desusadas, quero dizer, de palavras “inesperadas” no contexto. Estas duas carac¬ terísticas são o preço que a poesia tem de pagar (e os nosso ouvidos também. ..) pelo fato de alguns grandes poetas terem sido particularmente felizes naquilo que talvez não seja errado chamar a emocionalização das idéias e a intelectualização dos sentimentos. Claro que esta síntese não pode tomar-se à letra, e pre¬ tende apenas sugerir de maneira aproximada uma transferência de valor expressivo, não querendo dizer de modo algum que os poetas tenham deixado, ou de sentir, ou de. . . ter idéias. Mas é nos subpoetas que, realmente, se verifica a ausência do sentir e do pensar, pela incapacidade em que se acham de, adotando a “maneira”, repetir a transmutação operada por um Fernando Pessoa ou um Carlos Drummond de Andrade — para citar os dois poetas de primeira linha que, na língua portuguêsa, mais significativamente representam essa forma de comunicação que pode ter como lema o verso célebre do pri¬ meiro: “O que em mim sente ’stá pensando”. Ora, a verdade é ser necessário, para que isso se torne poesia, uma fusão de sentir no pensar que só os grandes poetas alcançam. Os pequenos ficam com o vocabulário, têm a ilusão de que, empregando a “fórmula mágica” que êste lhes parece constituir, virá com êle a poesia. Daí a freqüência com que caem sôbre nós, pobres leitores, catadupas de “explicações” abstratas e abstrusas, cuja “profundidade” não passe da falta de nexo entre elas e aquilo que o poeta porventura tentou comunicar-nos. Porque, na verdade, não existe nexo entre êsse vocabulᬠrio e a emoção. Em si próprias, tanto a linguagem sentimental como a abstrata carecem de qualquer miraculoso poder expres-

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sivo. Para que a palavra deixe de ser mero “sinal” necessário é que alguma coisa lhe dê vida; e esta “alguma coisa” não está de fato nas palavras de per si, mas nos corpos vivos que elas passam a constituir pela sua combinação no verso. Não é por¬ tanto o uso dum tipo determinado de vocabulário de prefe¬ rência a outro que pode fornecer ao aspirante a poeta maior capacidade de expressão. E, pelo contrário, o recurso aos têrmos abstratos, infreqüentes na linguagem comum, ou dela total¬ mente ausentes, só pode dificultar-lhe a comunicação, a menos de êles lhe serem tão familiares que se tenham tornado, na sua bôca, uma “linguagem corrente”. Esta dificuldade é agravada pela adesão a outra caracte¬ rística dos poetas que triunfaram na “transferência” de vocabu¬ lários: refiro-me à aparência de rigidez, dada pela linguagem despida de ornamentos, e também à freqüência do verso curto, em que muitas vêzes uma só palavra ocupa o lugar que, por exemplo num romântico, corresponderia a uma inteira metᬠfora, senão a uma sucessão delas. Essa “vocação para a sín¬ tese” torna-se, no imitador, fonte de lamentável pobreza de expressão, porque as suas “sínteses” se reduzem a pobres pala¬ vras soltas no meio da poesia, sem nela conseguirem integrar-se, que ficam boiando à deriva, sem nenhum poder de comunicação. O problema central parece-me ser êste: os grandes poetas modernos podem não ser filósofos, no sentido próprio, mas, por um motivo ou outro, estão mais próximos do filósofo do que do “artista”, no sentido em que um romântico, um parna¬ siano e mesmo um simbolista o são, antes de mais nada. Quan¬ do José Régio nos diz que os seus poemas “desprezaram a beleza”, isto não quer dizer senão que “beleza” se tornou um têrmo desvalorizado precisamente porque o poeta quer ir mais longe do que a emoção estética, que não aceita esta como fina¬ lidade, embora, evidentemente, ela “tenha que vir” juntamente com o outro objetivo a que essencialmente aspira. Porque, ir mais longe que a emoção estética significa, evi¬ dentemente, não a supressão dela, mas sair da órbita romântico-simbolista para outra em que o sentir, aprofundando-se, enriquecendo-se, como que envolve o pensar, dá vida ao pensa¬ mento, o anexa e penetra de valor emocional, dum poder comu¬ nicativo que o pensamento, como filosofia pura, não teria. É,

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afinal, uma supressão de barreiras, e não uma substituição. O equívoco dos aspirantes a poeta está em suporem que, ado¬ tando um vocabulário, se apoderam ao mesmo tempo dum poder de comunicação que seria específico dêste, quando só existe por obra e graça da profundidade com que o autêntico poeta sente e dá nome ao que se passa dentro de si próprio. A linguagem só aparentemente se abstratiza, num Pessoa ou num Drummond; não são os têrmos que contam, mas a impregnação lírica ou dramática que lhe dão, forçados, digamos assim, a abandonar o esgotado vocabulário anterior, empobre¬ cido e degenerado pelas sucessivas repetições, a ponto de cada palavra dêle se ter tomado num perigoso equívoco, como o vocabulário hoje predominante se esgotará, quando, como vai sucedendo, as “palavras novas” se reduzirem novamente a “si¬ nais” sem poder de comunicação. O “segrêdo” que o aspirante a poeta devia aprender é que somente se essas palavras se tornarem parte da sua própria vida poderão vir a ser elementos ricos de expressão. De nada lhe servirá pretender “traduzir” por meio dum vocabulário abs¬ trato emoções que não são mais do que isso, isto é, coisas que sente, mas não “está pensando” ao mesmo tempo, e êle acaba, afinal, por exprimir como se tampouco as sentisse. Êsse obs¬ táculo — além de todos os outros, é claro, com que se defronta qualquer ambição de comunicar poèticamente — não poderá ser vencido enquanto se ficar à superfície das coisas, pois tanto é superficial a idéia vaga como o sentimento indistinto. Os grandes poetas “fazem mal” aos seus seguidores na medida em que êstes, maus leitores, afinal, deixam de se dar conta do que o poeta “lúcido e frio” acaba a sua luta contra as palavras “nas ruas do sono” (Carlos Drummond, “O Luta¬ dor”), ou que o “fingir que é dor” supõe nêle “a dor que deve¬ ras sente” (Pessoa, “Autopsicografia”). Tomam à letra a frie¬ za, o dom analítico, a nudez das palavras, que parecem tão só significar, e passam a desfiar no papel versos que não são frios, mas vazios, supostas análises dum eu incaracterístico, palavras que somente são nuas, porque lhes falta a densidade do poema de que receberíam a luz capaz de as fazer brilhar "... na es¬ cura / Confusão do pensamento” f1). O

Pessoa,

Obra Poética, p.124, Ed. Aguilar.

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V

A SUPERSTIÇÃO DA FORMA

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1

Tôda a história da literatura é a de uma luta para integrar na realidade, dando-lhes permanência, as invenções através das quais os homens tentam reconhecer o sentido da existência, impor a marca da sua presença num universo onde a cada passo se sentem à beira de um precipício. São invenções que não podem salvar o homem, e por isso mesmo Kant chamou à arte uma “finalidade sem fim”, no que muita gente apressada quis ver uma significação demasiado literal e rasteira, quando se tratava apenas de lhe reconhecer uma virtude intrínseca que a distingue de tôdas as expressões do homem cujo objetivo se acha fora de si, como sejam a filosofia, a política, a moral ou a religião, etc. A superstição da forma oculta ainda hoje a muita gente êsse poder de invenção sem o qual não existe literatura que valha a pena. A idéia de imitação, que durante tantos séculos iludiu os próprios autores, levando-os a tomar-se como copistas da natureza, deu raízes à suposição de existir uma dualidade fundo-forma, e à respectiva imagem que faz esta envolver, ves¬ tir, adornar aquela. Mas forma, neste sentido de invólucro, só pode corresponder a êsses princípios e modelos que os ho¬ mens foram transmitindo pelos séculos afora, sendo tidos como

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normas que não se podiam dispensar a fim de conseguir a “perfeição” literária. É talvez impossível que a literatura subsista sem princípios e modelos, porventura indispensáveis à sua continuidade. Mas são os píncaros, são os golpes de gênio que valem. As explo¬ sões em que, de quando em quando, a literatura se renova, são o seu próprio sangue; mas a cada uma delas surgem ime¬ diatamente as brigadas dos funcionários apostados em nos fazer crer que não aconteceu nada. E para êstes a forma é a salva¬ ção, e tudo o mais lhes parece anarquia. O “modernismo” foi tomado — e até certo ponto a res¬ ponsabilidade cabe aos próprios escritores que o fizeram — como a negação de qualquer espécie de “ordem”. Êle foi de fato o movimento mais ousado no sentido de acabar com a superstição de estar nos princípios que se aprendem o elemento que toma a literatura comunicável. Porque para os funcionᬠrios da literatura só é comunicável aquilo que fôr racionalizável e explicável; para êles, trata-se de arranjar sempre maneira de explicar o gênio pelas formas, ou de o negar se preciso fôr — a bem da ordem. Na realidade, não pode estar na forma nada que não esti¬ vesse já no conteúdo (admita-se, por comodidade apenas, e provisoriamente, o uso de ambos os têrmos), pois, caso contrᬠrio, quem quisesse, com paciência, faria sonetos tão bons como os de Camões; e, se tal não acontece, isto quer dizer que a perfeição da forma não lhe pertence a ela, mas a outra coisa. E, se o poder de comunicabilidade dependesse da forma, tería¬ mos de concluir que só se comunicam os elementos exteriores, conclusão perfeitamente absurda, como seria desnecessário acrescentar. A guerra ao modernismo baseou-se em grande parte na ignorância dos escandalizados, que não tinham olhos senão para o que não estava lá, nem era preciso estar, mas que, em¬ bora se encontrasse nas grandes obras do passado, não era o que delas fizera grandes obras. As querelas contra o moder¬ nismo foram, em geral, à margem da questão, e tudo porque os supersticiosos da rima se esqueciam de que o gênio de um Racine ou de um Antero não estava nas formas peculiares ao seu tempo, mas na própria essência da arte dêles.

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As acusações de incomunicabilidade, tão freqüentemente feitas à literatura atual, em particular à poesia, não são forço¬ samente identificáveis com as de anarquia, pelo que toca à forma; mas não é necessário procurar muito para se concluir que resultam da mesma preocupação de ir procurar os funda¬ mentos da arte à margem do que constitui a sua própria razão de ser. Assistimos hoje ao espetáculo cômico daqueles que já não se atrevem a dizer que a poesia de um Fernando Pessoa ou de um Carlos Drummond de Andrade seja incomunicável — dizendo que se trata de exceções, mas que “os outros” é que não se entendem. Covardia dos funcionários da literatura, que procuram arregimentar os grandes poetas, com a ridícula agravante de aceitarem precisamente os poetas mais represen¬ tativos, os que abriram caminhos, os que inicialmente mais chocaram o ouvido mal educado da maioria, que, em matéria de ritmo, não costuma ir além do tambor que lhe serve de medida de tôdas as coisas em matéria de poesia. A verdade é que, argumentar com os maus poetas moder¬ nos não adianta. Os maus poetas são sempre incomunicáveis porque nada têm a comunicar. Exatamente o mesmo que suce¬ dia com os clássicos ou os românticos. Precisamente acêrca dos grandes poetas modernos é que seria necessário fazer a prova da sua incomunicabilidade. Poetas obscuros e transpa¬ rentes houve-os sempre lado a lado, em tôdas as idades, e até, em muitos poetas, uma alternativa de obscuridade e transpa¬ rência. Nem uma nem outra definem a poesia, como tam¬ pouco um poeta é maior ou menor conforme seja claro ou difícil. A evidência de um conceito não prova nada a favor nem contra, tanto mais que não existe sequer um absoluto de obscuridade em poesia, pois toda a grande poesia, se o é, não pode deixar de ser comunicável. . . Porque tudo, afinal, se resume em afirmações teóricas, que caem pela base quando se trata da sua aplicação a casos concretos. Devemos exigir àqueles que ainda afirmam ser incompreensível ou incomunicável a poesia moderna (ou a prosa) a concretização de tais afirmações em referência aos poetas considerados representativos. Bem sei que êsses objetores se sentem desamparados, porque não existe um cânone

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que lhes permita explicar como se pode imitar a “Ode Marí¬ tima”. Mas podem crer que isso só acontece porque os fun¬ cionários ainda não decidiram tirar dela uma estética, coisa que nada os impede de fazer. A verdade porém, é que isso não adiantaria nada, nem à compreensão da obra de Pessoa nem à da poesia em geral — clássica ou moderna. . . *

Embora ainda se encontre aqui e ali algum sujeito segundo o qual fazer sonetos é mais importante do que fazer versos li¬ vres, não há dúvida de que, duma maneira geral, se aceita já como fato consumado o rejuvenescimento da forma que carac¬ terizou, tão escandalosamente, os movimentos que abriram, de um século para cá, novos horizontes à poesia. Passou-se mesmo a fase em que se via na adoção do verso livre uma con¬ dição inseparável da qualidade de “poeta moderno”. Também já não se pensa que o verso livre seja “mais fácil” do que o outro; saber que o verso livre tem “leis”, embora informuladas, é quase do conhecimento geral, e digo quase pensando sobre¬ tudo em pessoas que pretendem poetar desfiando má prosa em linhas irregulares, como noutra época desfiariam a mesma má prosa em sílabas cuidadosamente medidas. Mas isso são exce¬ ções. Em suma, é do conhecimento geral que a grande trans¬ formação tem a sua raiz noutra coisa, e que esta é mais impor¬ tante do que a regularidade ou irregularidade dos versos. É certo, porém, não haver unanimidade acêrca da essência dêsse rejuvenescimento, não obstante admitir-se que os proble¬ mas formais não podem ser mais do que, digamos assim, um fenômeno paralelo — e digo “fenômeno paralelo” para evitai a expressão “consequência”, que iria sugerir uma relação causaefeito que talvez não seja de considerar. O que rejuvenesceu, então? Sem dúvida, o seu poder de comunicação. Foram ou não as Leaves of grass de Whitman, foram ou não Les illuminations, de Rimbaud, foram ou não as Fleurs du mal de Baudelaire, essencialmente, instrumento de uma nova participa¬ ção do homem na poesia? Pois não é certo que tais obras, e muitas outras, vieram dentro dêstes últimos cem anos abrir novas perspectivas à reconciliação da poesia com a experiência humana, com o homem como ser que existe, quando nem a

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poesia romântica conseguira despi-la dêsse excessivo “refina¬ mento” por via do qual ela era predominantemente uma flor de cultura, em vez de uma expressão de vida? Que a poesia se torne “uma flor de cultura” nem é, em si, coisa para deplorarmos; não é disso que se trata, mas de ela ter ou não ter, desde que nasce, essas características; por¬ que tudo quando vale ganha, necessariamente, uma qualidade cultural; o fato é, porém, que a poesia nos importa essencial¬ mente antes de ser valor cultural, pela comunicação direta que estabelece entre nós e a vida, entre nós e a realidade — isto é, pela sua capacidade de nos integrar no presente. No seu famoso ensaio sôbre “A tradição e o talento indi¬ vidual”, escreve T. S. Eliot que “a melhor poesia contempo¬ rânea exerce sôbre nós uma ação estimulante e faz-nos sentir completos de uma forma diferente de qualquer sentimento que possa provocar a poesia de qualquer época passada, mesmo que esta seja superior”. A expressão “sense of fulfilment” diz muito mais do que o equivalente que lhe dei; “faz-nos sentir completos” não deixará, contudo, de sugerir ao leitor que se trata, no texto de Eliot, de atribuir à poesia, entre outros, um “valor” que a estética clássica nem por sombras poderia reconhecer. Mas poderia objetar-se que, para a época clássica, ou para qualquer outra época, seria válida igualmente essa maneira exclusiva de se ter com a poesia uma comunicação específica, que só existirá para a própria época que a poesia re¬ presenta, isto é, um “valor” reservado aos contemporâneos dela. Vejamos porque tal não sucede. A função da poesia em relação à vida do homem do nosso tempo não está condicionada por qualquer “objeto” exterior àquela; a lenta penetração da poesia moderna, a oposição que encontrou, que continua a encontrar em certos meios, resulta precisamente de haver quem continue a não a considerar senão como elemento de “transmissão”, recusando o seu valor essen¬ cial de “criação”. A poesia não é para nós, homens de hoje, o prolongamento de uma tradição; ou, pelo menos, não é sob êste aspecto que ela nos “toca” profundamente. Vemos ncla uma forma de ligação do homem com a natureza que não se realiza através de formas simbólicas, de alusões a um passado “construído” pelas formas de cultura de quaisquer épocas pas-

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sadas; toca-nos como direta comunicação, e não como alusão àquilo em que se estratificou uma experiência, uma cultura passadas. E é por êste motivo que com a poesia clássica, estrutu¬ rada numa experiência de cultura passada, regida por uma idéia do “belo” que fazia de tôda ela uma “alusão” a ideais estéticos formulados como se houvesse modelos definitivos, e não cou¬ besse ao poeta senão imitar, repetir um resultado prèviameute alcançado, é por êste motivo, dizia eu, que não podemos pensai que à poesia clássica fôsse possível dar aos seus contempor⬠neos êsse “sense of fulfilment” referido por Eliot. A própria idéia de contemporaneidade é uma idéia moderna; o homem clássico tinha uma noção de permanência que não lhe permi¬ tiria supor a existência de valores que pertencessem com exclu¬ sividade ao seu tempo; não tinha descoberto que era perecível, transitório, evanescente; as próprias formas eram para êie uma garantia de perenidade; nós podemos pensar que a obra dos grandes poetas que exprimem o nosso tempo permaneçam: mas não nos é possível “crer” na transmissibilidade do que nos permite encontrar nela a nossa própria imagem; não podemos supor que os homens do futuro se sintam “completados” por ela; essa emoção morrerá quando a nossa época morrer.

2 É na crise do assunto que talvez se encontre o sinal mais significativo de que os podêres da poesia implicavam fazer con¬ corrência às formas discursivas de expressão. Não é fácil — estou mesmo tentado a dizer: é impossível — estabelecer as fases através das quais se terá processado esta evolução; peio menos, parece-me impossível estabelecer a prioridade para qual¬ quer dos seus múltiplos assuntos, e dizer onde surgiu a primeiia “fêlure” do sistema em que assentava a poesia tradicional. Mesmo assim, não será talvez errado supor que um dos pontos mais vulneráveis dêsse sistema se encontrasse no papel até então reservado à imagem, até aí com a função bem nítida de traduzir, de equivaler, isto é, estreitamente na dependência das idéias que ajudaria a exprimir. Ora, como no seu famoso

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De Baudelaire au surréalisme diz muito agudamente Marcei Raymond, “em vez de permanecer sujeita (ao objeto), com a missão de o fazer ver e sentir, (a imagem) serve-se dêle como de um trampolim para dar o salto no vazio. Precisa de se libertar cada vez mais, até fazer esquecer as suas origens, até ela própria se tornar objeto” (págs. 259-60). “Até ela própria se tomar objeto”: tenha esta transfor¬ mação precedido ou seguido tôdas as outras, tornou-se evidente a sua fundamental importância, a ponto de ser possível dizer-se que a libertação da imagem constitui a própria definição da poesia moderna, mesmo quando não se tenha em conta o seu lugar essencial no surrealismo, pois não é preciso esperar que êle chegue para essa libertação se realizar; ela está já a cami¬ nho tanto no “realista” Cesário Verde como no pré-simbolista Baudelaire. A imagem abandona o objeto porque êste con¬ substancia aquilo mesmo que está agonizando na concepção do mundo que servira até então de suporte à poesia. O objeto esvazia-se de realidade porque se revela o seu caráter conven¬ cional, ou melhor: porque se torna patente que a validade da concepção deixara de corresponder a qualquer necessidade. Com efeito, a equivalência entre uma realidade c os con¬ ceitos que lhe corresponderiam deixa de ter sentido: êsses con¬ ceitos já não valem nada, porque a experiência os superou; o mundo em que se entra agora exige uma reconstrução da rea¬ lidade, ou seja, daquilo que a exprime, pois a realidade sc existe na medida em que o homem a julga presente na sua linguagem. E como podia a linguagem do equilíbrio ter sen¬ tido desde que êsse equilíbrio se revelou um lôgro? Não há dúvida de que sucessivos esforços para restabele¬ cer o equilíbrio foram realizados; mas todos êles — tanto a reação neoclássica como a procura, na simplicidade da poesia popular de um antídoto contra a poesia “obscura” (caso, em Portugal, do “Nôvo Cancioneiro”, cujos valores reais signifi¬ cativos, afinal, só na prosa vieram a encontrar o seu autêntico meio de expressão, e, mais recentemente, dos pálidos líricos da “Távola Redonda” que se distinguem do grupo anterior poi nem sequer terem de comum com êles a aspiração de “servil’' a causa do povo), — tôdas estas tentativas, dizia eu, constituí¬ ram mais uma prova de que já não podia correr sangue ao

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longo de uma poesia incapaz de exprimir a consciência da crise, poesia que, ou cante o mundo de amanha, ou faça como se não houvesse mundo nenhum, constitui em ambos os casos um desacêrto com a própria experiência do homem atual. Ora, o assunto não desapareceu da poesia; mas podemos dizer que desapareceu a narração no sentido que tinha tradicionalmente, isto é, como o desenvolvimento duma história segundo os mesmos trâmites que teria numa narração em prosa. E isto sucedeu porque há um tipo de objetividade que a poesia repeliu desde que a concentração, o poder de síntese da ima¬ gem, desvalorizaram o estilo analítico como evidentemente me¬ nos expressivo. A narração supõe aceita uma objetividade que a poesia deixou de reconhecer como sua função exprimir, por¬ que se trata dessa linguagem da razão que forças vindas de mais fundo subverteram. Assim, o assunto possível à poesia moderna encontrar-se-á mais próximo do coração da realidade, será o momento significativo, será a visão, será tudo aquJo que não inclua a descrição, só admissível numa poesia que se identifica com o discurso em prosa. Grande parte das acusações de obscuridade feitas à poesia moderna provêm dêste desaparecimento do assunto tal como tradicionalmente era aceito. Já não é a primeira, e não será certamente a última vez que ofereço esta explicação: o leitci afeito a entender uma frase “transcrita” em verso, e mantendo tôdas as características do discurso, identifica poesia e tema, e além disso acha agradável a música que o vai embalando. Mas esta música que êle ouve é apenas um acompanhamento, e não a melodia que lhe permaneceu oculta. E assim, quando lhe suprimem a “história” que êle estava habituado a “seguir”, acha, òbviamente, que a poesia se tornou obscura. Para que havemos sequer de lhe dizer que tal não acon¬ teceu? Tudo é obscuro para quem só cuida de aparências. Guando a poesia deixou de ter “enrêdo”, perdeu forçosamente aquêles leitores que nunca tinham encontrado nela mais nada, e que, atentos à sua moral, ao seu conceito, nunca tinham dado conta de haver alguma razão para a poesia. . . não ser prosa rimada. Ao meu leitor de poesia não há outra coisa a dizer senão que se volte para a prosa, pois se não en
Adolfo Casais Monteiro - A Palavra Essencial - Estudos Sobre a Poesia

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