181 Sara Craven - Brincadeira Perigosa (Sabrina 181) - ARF

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Brincadeira Perigosa Sara Craven Summer Of The Raven

Digitalização e Revisão: Gisacb4

Para Curt, Rose era uma menina, e aquele jogo de sedução, uma brincadeira. Mas no peito de Rose batia um coração de mulher... Antônia Winslow, a madrasta de Rose, era uma mulher egoísta e sem escrúpulos, do tipo que não se detém diante de coisa alguma para atingir seus objetivos. Ao ficar viúva, lançou seus olhos cobiçosos para Curt Maitland, um homem fascinante, pintor famoso e rico. E tanto fez que se instalou na mansão dele. Como Rose precisava viver com a madrasta até completar a maioridade, foi arrastada junto, obrigada a mentir que era uma adolescente de dezesseis anos. Mas Rose tinha dezenove e um coração ingênuo... e morreu de amores por Curt, que a excitava, mas a tratava como um pai.

CAPÍTULO I

Cansada, Rose transferiu o peso da sacola de compras para a outra mão e pensou, com saudade, no elevador luxuoso do prédio em que moravam antes. Na verdade, não gostava daquele apartamento nem o considerava um lar. Mas era bem melhor do que o que tinham agora. Olhou em volta, para a pintura gasta, o papel de parede em péssimo estado, o revestimento barato do chão e da escada. Fez uma careta. — Então, é isso que chamam de lar? Infelizmente, a resposta era sim. A casa em Surrey, onde vivera os melhores anos de sua vida, tinha sido vendida para comprar o apartamento de Knightsbridge. Mais tarde, até esse haviam perdido. Entrou em casa, esperando que Antônia tivesse deixado pelo menos uma xícara de café para ela. Mas duvidava. Antônia nascera para ser a mulher mimada de um homem rico, e Victor Winslow, o pai de Rose, desempenhara muitíssimo bem esse papel. Rose sempre pensou que nunca teria problemas de dinheiro, que seu futuro estava garantido. Até o dia em que o avião de seu pai teve um acidente, a caminho de Nova York. Junto com Victor, morreram suas ilusões de tranqüilidade. Depois de conversar com advogados e contadores, descobriu que restava muito pouco da fortuna da família. Havia algum dinheiro da herança de sua mãe, mas ela só receberia ao completar vinte e um anos. E o que o pai deixara para ela e Antônia estava ligada ao cumprimento de algumas condições. A mais importante e difícil era que as duas vivessem juntas até ela completar a maioridade, ou que uma delas se casasse. Não importava o que viesse primeiro. Antes de casar com Victor Winslow, Antônia era uma atriz razoavelmente bem-sucedida, embora nunca tivesse participado de espetáculos importantes. E foi numa festa dada pelo elenco depois de uma das apresentações que conheceu o futuro marido. Rose pensou que, ao enviuvar, Antônia pretendesse voltar ao teatro, mas nem passava pela cabeça da outra. Ser a esposa de um magnata tinha sido o seu papel favorito. Aos trinta e sete anos, ainda bonita, era vaidosa demais para se conformar em ser novamente uma atriz de segunda categoria. Ao contrário da enteada, Antônia ficou feliz em aceitar as condições do testamento e lançou mão de todo o tipo de chantagem emocional para que o desejo de liberdade de Rose não a privasse daquela renda. — Seu pai queria que você ficasse sob os meus cuidados — declarou chorosa. — Foi sua última vontade, Rose, você não pode ignorá-la. Era difícil compreender o motivo daquela condição do testamento. Victor sabia que as duas nunca haviam se dado muito bem. Quando ele se casou com Antônia, Rose tinha doze anos. Era uma garota magra, alourada, de pele muito clara e olhos cor de avelãs. Usava aparelho nos dentes e roia as unhas. Ninguém podia dizer que fosse uma criança bonita. Desde o início, a madrasta não se interessou por ela e mostrou isso claramente. A menina, por sua vez, logo percebeu que, dentro daquelas roupas caras e sofisticadas, havia uma mulher interesseira e mesquinha. Agora, aos dezenove anos, Rose era um pouco mais tolerante. Não tinha nenhuma ilusão a respeito da madrasta. Sabia que Antônia era preguiçosa e egoísta, que gastava muito mais do que podia, mas também reconhecia nela uma qualidade curiosamente infantil: Antônia precisava ter

sempre alguém para cuidar dela. Primeiro, tinha sido o marido; agora, era a própria enteada, dezoito anos mais moça. No começo, não foi fácil se adaptar à nova realidade. Agora, a vida começava a entrar nos eixos. Uma certa ordem surgia do caos provocado pela morte de seu pai. É claro que o dinheiro estava sempre faltando, graças aos gastos desenfreados de Antônia. Para impedir isso, Rose preferia fazer as compras ela mesma, quando voltava para casa, depois das aulas. Fazia também uma boa limpeza e a comida. Era quase milagre que conseguisse algum tempo para enfrentar o curso intensivo, numa escola local. E quase impossível tentar depois a faculdade, como sempre sonhara. De vez em quando, Antônia ia perturbá-la com projetos mirabolantes e sem qualquer futuro. Falava em trabalhos temporários, grandes peças. Mas nenhuma proposta concreta aparecia. Todos sabiam que ela não era realmente uma profissional, uma atriz com quem se pudesse contar. Até que Antônia conseguiu sociedade numa butique que estava para reabrir. Rose não fazia a menor idéia de onde ela havia tirado o dinheiro necessário para o investimento, e se preocupava muito. Era uma aventura perigosa. Antes de venderem a loja, os antigos proprietários viviam às voltas com o imposto de renda. Tinha quase certeza de que havia um financiador por trás de tudo, uma dessas pessoas que não se importam de arriscar dinheiro. Antônia tinha sido tão evasiva sobre o assunto, que Rose suspeitou de que se tratava de um homem. Isso não a chocou nem a perturbou. Seu pai tinha morrido há dois anos e Antônia, sem dúvida alguma, não era mulher que conseguisse ficar sozinha. Talvez esse novo relacionamento da madrasta fosse até uma coisa boa. A esperança de Rose de ficar livre logo daquela convivência com a madrasta era Antônia conseguir um marido que pudesse lhe dar o estilo de vida a que estava acostumada. E aquele financiador misterioso, fosse quem fosse, parecia um forte candidato. Pelo visto, tinha dinheiro a rodo para arriscar no projeto de uma futura mulher de negócios. Rose esperava a falência da sociedade como uma coisa inevitável. Nem Antônia nem Alix Clayton, sua sócia e também ex-atriz, tinham qualquer conhecimento do ramo. Haviam metido na cabeça, ingenuamente, que teriam sucesso porque eram mulheres de bom gosto e com paixão por roupas. E que as amigas as prestigiariam. Não levou três meses para serem obrigadas a colocar o cartaz na porta da loja: "Liquidação para Acabar". Rose imaginou que Antônia ia ficar num péssimo humor, mas ela não fez qualquer comentário sobre a falência. Talvez o namorado estivesse mesmo preparado para aquela espécie de risco; ou só tivesse investido o dinheiro para efeito de impostos. De qualquer forma, Rose pensou, enquanto entrava em casa carregando a sacola de compras, o incidente serviu para uma coisa: Antônia foi obrigada a encarar a realidade e não inventará mais esquemas mirabolantes para ganhar dinheiro. O ar da sala estava pesado de fumaça. Deitada no sofá, Antônia acendia um cigarro no outro. — Já fumou tudo isso? — Rose perguntou, colocando as compras sobre a mesa e apontando para o cinzeiro. — O que você trouxe de bom? — Nada de especial. Carne para assar, cenoura, cebola, batatas, ervilhas... essas coisas. — Minha nossa! Você devia procurar emprego numa cantina. Bem, divirta-se com seus legumes, queridinha, porque eu, graças a Deus, não estarei aqui para o jantar. Vou sair. — Você podia ter me avisado!

— Não podia, porque só soube há uma hora. Provavelmente vou demorar, não me espere acordada — acrescentou com indisfarçável alegria. Rose foi para a minúscula cozinha. Guardou a carne na velha geladeira e empilhou os legumes no engradado que ficava ao lado da pia. Para ela, bastava um ovo mexido, mais tarde. Lavou a louça que Antônia usara e fez uma xícara de café instantâneo, levando-o para a sala. Pousou a xícara sobre a mesa e tirou as apostilas de dentro da bolsa, junto com os livros que pegara na biblioteca.  Mais trabalho? — Antônia perguntou, sem interesse. — Sabe o que o povo diz? Trabalho sem diversão, faz...  ... Do tolo um bobalhão — Rose terminou por ela. Mas o estudo e o trabalho eram o que a mantinha viva. Se ficasse dentro de casa, sem levantar um dedo, sua vida seria tão monótona e vazia como a de Antônia.  Você devia sair mais, divertir-se. Também devia cuidar mais da aparência. Do jeito como anda, ninguém diria que tem dezenove anos. Rose já ouvira aquela conversa inúmeras vezes. Abriu um dos livros e consultou o índice, com exagerado interesse. — Não faço a menor questão de ser a garota dos sonhos dos rapazes. Estava acostumada com os comentários da madrasta e não deixava que a perturbassem. Depois, sabia muito bem que Antônia adorava que ela parecesse mais moça do que realmente era. Ter uma enteada adulta a faria parecer bem mais velha. Rose tinha absoluta certeza de que, ao se mudarem para aquele apartamento, a outra dissera aos vizinhos que eram irmãs. Se isso a fazia feliz, por ela, tudo bem. Antônia levantou-se e olhou-se no espelho. — Estou engordando. Só pode ser essa comida cheia de amido que você faz. Vou ter que começar uma dieta de salada verde. — Sabe quanto custam as saladas, nesta época do ano? Antônia não respondeu. Rose franziu a testa e continuou lendo. Quando mergulhava na leitura, Antônia se contentava em fazer algumas observações maliciosas sobre seus dotes intelectuais e depois caía num tenebroso silêncio. Mas naquele dia parecia disposta a discutir. Demorou, mas respondeu; e com outra pergunta irritada: — Será que você só sabe ficar falando no preço das coisas? — Bem, alguém tem que pensar nisso. Se formos cuidadosas e economizarmos, tudo bem. Senão... — Estou cheia de me controlar e ser econômica. Trancada neste maldito buraco, sai dia, entra dia! Pelo menos você tem aquele colégio para ir. Pelo tom, Rose percebeu que uma tempestade se aproximava. — Você podia tentar se interessar por alguma coisa, achar algo para fazer. E não reclame de ficar trancada aqui. Pode ir onde quiser, e sabe disso. Você joga bridge toda semana com Célia Maxwell e aquela turma... — Não tenho jogado com elas há meses. — Eu não sabia. — Rose olhou para ela, surpresa. O bridge era uma das paixões de Antônia. — Há muita coisa que você não sabe. Célia pode perder. Tudo o que tem a fazer é estender a mão para o velho Tom, que ele paga sem abrir a boca. Ela não imagina que não é assim tão simples para nós. Rose deixou o livro de lado e encarou a madrasta, perplexa e preocupada. — Antônia, você deve dinheiro a Célia Maxwell?

— Claro que devo. E muito, se você quer mesmo saber. Continuei jogando, porque pensei que minha sorte ia mudar. Mas não mudou. Ou melhor, mudou para muito pior. E se você não paga as dívidas para essa gente, é logo excluída da turma. Com muita sutileza, mas sem perdão. — Seu tom era amargo. — Por favor, não me olhe assim. Você sabe que eu jogava por dinheiro. Rose passou a mão na cabeça da madrasta, consolando-a.  Desculpe, isso nunca me ocorreu. O que vai fazer agora? Pedir ao sr. Tomlinson para adiantar sua próxima mesada?  Já pedi, e a resposta foi não. Em vez disso, ouvi um sermão sobre minha extravagância. Meu Deus, ele nunca ousaria fazer uma coisa dessas, se seu pai fosse vivo!  Talvez fosse melhor se ele tivesse feito: evitaria problemas desse tipo. Acha que a sra. Maxwell vai pressionar você para pagar a dívida?  Ainda não sei. Estamos, digamos assim, estremecidas. — De repente, Antônia tomou-se petulante. — Vou arranjar esse dinheiro de qualquer jeito. Célia pode tornar as coisas bem difíceis para mim, se quiser.  Gostaria que você tivesse me contado isso antes — Rose disse, com tristeza.  Para quê? De que adiantaria? Para agüentar o seu olhar acusador e, talvez, ouvir mais um sermão? Não, obrigada. O que mais você teria feito? Me arranjaria o dinheiro? Vou me virar sem a sua ajuda.  É aquele homem? — Rose sentiu-se acuada diante do olhar hostil que a outra lhe lançou, mas não se deixou intimidar. — Estou falando daquele homem da butique. O que adiantou o dinheiro para você entrar como sócia. É a ele que vai pedir ajuda?  Se quer saber, é isso mesmo. — Antônia jogou-se no sofá, acendendo outro cigarro.  Acha que é prudente envolver-se tanto com ele? Pode ser uma dívida ainda mais perigosa do que a do jogo.  Meu Deus! Você até parece a heroína de uma novela vitoriana! A senhorita puritana em pessoa. Minha querida, a sociedade permissiva já se instalou há alguns anos entre nós apesar de você não ter notado. Tudo neste mundo tem que ser pago. Mesmo o casamento com o seu adorado papai. — Isso é vulgar e detestável! Antônia não pareceu ofendida. Estava apenas divertida com o reação de Rose. — A verdade, docinho, é sempre vulgar e detestável, como você vai descobrir quando for mais velha. Eu era mais moça do que você quando entendi isso sobre a vida. — Espero nunca chegar lá. — É uma esperança inútil. Você não parece só uma criança, Rose; você é uma criança. Mas vai ter que crescer um dia. Agora, preciso fazer algo pelas minhas unhas. Quem me dera poder pagar uma manicure decente. — Levantou-se e foi para o quarto, deixando um rastro de cinza no carpete. Rose continuou sentada, sentindo-se miserável. Sabia que não tinha nada a ver com o que a madrasta fazia; que não tinha direito de interferir na maneira como conduzia sua vida. Ao mesmo tempo, achava que deixar passar comentários como aquele seria um desrespeito e uma traição à memória do pai. Quando ficou pronta para sair, Antônia já tinha recuperado o bom humor. Usava um de seus extravagantes vestidos de seda — aquele era lilás e ouro — e muitos colares e pulseiras, além de brincos. — Boa noite, queridinha. Não leia muito, porque dá rugas em volta dos olhos. Obedecendo a um impulso, Rose foi até a janela. Havia um carro esperando pela madrasta, estacionado do outro lado da calçada. Recuou quando Antônia se virou para o prédio, e voltou aos

estudos. O orgulho a impedia de se deixar ver fiscalizando a outra, como se fosse uma vizinha indiscreta e fofoqueira. Ouviu o carro se afastando. Começou a divagar sobre onde teriam ido. Jantar fora, como Antônia tinha dito, num restaurante onde as luzes eram baixas, e os preços, altos. Em qual deles? Provavelmente numa daquelas casas noturnas onde Victor Winslow costumava levar a esposa. Antônia tinha paixão por todos os jogos de azar. Rose não conseguia se concentrar no estudo. Empurrou os livros de lado e foi até o espelho. Começou a se examinar. Antônia tinha razão: sua aparência era a de uma criança. Puxou os cabelos para cima e se olhou, com ar crítico. Nas outras moças de sua idade, o cabelo preso daquele jeito parecia gracioso e displicente. Ela ficava parecendo desarrumada. Fez uma careta e deixou os fios caírem. Era muito magra, toda ossos, e com busto muito pequeno. Ficava bem de jeans porque tinha quadris estreitos e pernas compridas. Mas, no geral, achou que a imagem no espelho era muito sem vida, sem colorido. Lembrou-se, com amarga nitidez, do comentário que Antônia tinha feito para uma amiga, poucos dias depois de casada: "Não ligue para a criança, querida. Ela não incomoda, é quase como se nem existisse. " Essa sou eu, a senhorita coisa nenhuma... pensou com um peso no coração. Fez um ovo mexido, que comeu sem apetite, enquanto assistia a um velho filme na televisão. Depois lavou a louça, apagou as luzes e foi para a cama, com um copo de leite quente. O apartamento ficava numa casa antiga e tinha sido originalmente sótão e quarto de empregados. Além da minúscula cozinha, da sala e do banheiro com boxe, havia dois outros cômodos. No maior, Antônia dormia. O outro era o quarto de Rose, e mal tinha espaço para alguém se mexer. Ali, pelo menos, ela conservava a sua privacidade. Detestaria ter que dividir um quarto com a madrasta. Trocou de roupa e enfiou-se sob as cobertas. Depois, pegou debaixo do travesseiro um caderno e uma caneta. Aquele era seu segredo. Rose escrevia. Tinha começado na escola, encorajada pelo professor de inglês. Escrevia contos e sempre à noite, escondida de Antônia, porque sabia que a outra não entenderia. Estava acostumada com o escárnio da madrasta, mas não suportaria nenhuma crítica sobre uma coisa que, para ela, era tão importante. Além do mais, não sabia se o que escrevia era bom ou não. Algum dia compraria uma máquina de escrever de segunda mão e mandaria seus contos para alguma revista. Mas não agora. Não queria se decepcionar. Não estava preparada. Esperaria. Ficou satisfeita com o trabalho que fez. Depois de algum tempo, mergulhou num sono profundo. Não soube logo o que a acordou. Apenas viu-se sentada no escuro, o coração batendo forte. Aos poucos, percebeu que era Antônia, andando na sala. Se bem que Antônia não tem um passo tão pesado e não faria tanto barulho, pensou, com certo mal-estar. Depois, ouviu uma voz de homem e, sem pensar no que estava fazendo, empurrou as cobertas e pulou da cama. Abriu violentamente a porta e entrou na sala. Viu-o imediatamente: era alto e magro, cabelos escuros e pele bronzeada, contrastando com os olhos cinzentos, quase prata. Estava bem vestido e tinha uma elegância displicente. Teve a nítida impressão de que já o conhecia, que já o vira em algum lugar. Talvez num jornal ou revista. Mas não lembrava quem era, nem o que dizia a notícia. Custou a perceber que Antônia estava na sala, deitada no sofá e muito pálida. Curvado sobre ela, com o copo na mão, o homem parecia tentar obrigá-la a beber alguma coisa.

Rose aproximou-se. — O que você fez com ela? Ele ficou olhando-a dos pés à cabeça, com um descaramento que a fez corar. Mas Rose não se deixou intimidar, apesar de sentir-se ridícula, de repente, com cara de sono e usando camisola.  Afinal, quem é você, garota?  Sou Rose Winslow. — Sua voz tremeu ao olhar para Antônia.  Rose? Ah, a menina. Tinha esquecido... Antônia mexeu-se e murmurou alguma coisa, fazendo com que ele se virasse para ela. — O que aconteceu? Está doente? Desmaiou? — Se quer que eu diga de uma maneira delicada, ela passou da conta. Os olhos incrédulos de Rose foram de um para o outro. Pela primeira vez, percebeu que ele tinha uma pequena cicatriz no canto da boca. — Você quer dizer... está querendo dizer que... O homem confirmou com um movimento de cabeça.  Quer me mostrar qual é o quarto dela, para que eu a ponha na cama? Seria melhor você também ir se deitar, antes que pegue um resfriado.  Você saiu com ela e a trouxe bêbada! — Rose acusou, furiosa. — Não é justo. É uma coisa suja, que não se faz! Ele a encarou mais uma vez. — Saí com ela, sim. Mas posso lhe garantir que a tolerância de sua madrasta ao álcool é pura ilusão. Curvou-se e pegou Antônia nos braços. Ela não era magra, mas ele a carregou com facilidade, como se fosse uma boneca. Havia alguma coisa erótica, quase indecente, em suas pernas nuas e sua cabeça apoiada no peito dele. Rose engoliu em seco, desconfortável.  O quarto dela é por aqui. Basta colocá-la na cama, eu cuido do resto.  Você não é muito jovem para lidar com essas coisas? Ou isso costuma acontecer com freqüência? Rose ia negar com veemência, mas imaginou que, se Antônia tinha bebido a ponto de ficar naquele estado, ele dificilmente estaria sóbrio. De que adiantava discutir, então? Era muito tarde e estavam praticamente sozinhos. Mas também não podia deixar que aquele homem ficasse com idéias erradas. — Não é de forma alguma uma coisa normal. Se você puder esperar um pouco, vou vestir um robe. Era o penhoar mais deselegante do mundo, de lã azul, de sua época de internato. Talvez por isso mesmo, por saber que a deixava ainda mais sem graça e pouco feminina, sentiu-se estranhamente segura dentro do tecido grosso. Quando chegou ao quarto da madrasta, ela já estava entre os lençóis. O homem olhava para Antônia, sombrio e ansioso. — Quer que a ajude com o vestido dela? Você é uma garota muito franzina, vai ter dificuldade para virá-la. — É melhor deixá-la dormir vestida como está, obrigada — respondeu com dignidade, escondendo ainda mais o que ele chamara de corpo franzino dentro do robe. — Como quiser. Mas, se ela passar mal durante a noite e estragar o vestido, não vai apreciar essa sua decisão. — Está tudo bem, obrigada. Sei cuidar dela.

Ele sorriu inesperadamente e Rose sentiu-se atraída por seu charme. De repente, não era mais um estranho. Rose virou-se, com medo de, que percebesse como ficara perturbada. Que idade teria? Provavelmente a mesma que Antônia. Talvez um ou dois anos mais moço. — Sabe de uma coisa? — ele falou. — Acho que é mesmo capaz de se sair bem sozinha. Mas a pergunta é: e quem cuida de você? Ela estava corada de novo, sem saber exatamente por quê. Sorriu, sem jeito, e voltou a olhar para Antônia.  Sinto muito por tudo isso... — E sentiu-se mais acanhada ao dizer isso.  Aceita um conselho de amigo? Antônia vai acordar com uma tremenda ressaca, sentindo a cabeça explodir. Se eu fosse você, sairia da frente dela, para não levar as sobras. Saiu do quarto e Rose o seguiu. * — Até logo, garota. Rose ficou atordoada, depois que ele se foi. Imaginou que era por causa de sua saída brusca. Ou por ter sido acordada no meio da noite. Encostou-se na porta e respirou fundo. Foi aí que lembrou que nem sabia quem ele era. Voltou para o quarto da madrasta e ficou olhando para ela. O desconhecido tinha razão: era uma pena deixar que dormisse com aquele vestido tão bonito e caro. Foi uma luta, mas conseguiu tirá-lo. Cobriu Antônia e pendurou o vestido no armário, com cuidado, lembrando da zombeteira oferta de ajuda que ele tinha feito. Devia estar acostumado a despir mulheres, estivessem elas inconscientes ou não. Pelo menos, tinha tido a decência de trazer Antônia para casa. Mas, pensando bem, para onde mais poderia levá-la? Nas condições em que ela estava, o máximo que ele ia conseguir era bancar o enfermeiro o resto da noite. Normalmente, Rose dormia feito uma criança, mas dessa vez ficou se debatendo na cama, sem encontrar posição nem pegar no sono. Socou o travesseiro, com raiva de si mesma por estar sendo tão ridícula. Droga! Por que ficar tão perturbada? Tinha apenas conhecido um homem atraente. Não era o primeiro que encontrava, nem seria o último. E, como todos os outros, ele mal percebera a sua existência. Se as circunstâncias fossem outras, duvidava que sequer tivesse falado com ela. Nada havia mudado. Muito menos, sua própria aparência. O espelho lhe mostrara isso, poucas horas antes. Continuava a mesma magrela sem graça de sempre. Aquele homem tinha quase o dobro de sua idade e era experiente. Só a olhara com insistência por curiosidade. Depois de analisá-la, chegara à mesma conclusão que todos chegavam: ela não passava de uma criança. Talvez eu seja isso mesmo, pensou, levantando-se sem acender a luz e indo até a janela. A luz pálida da madrugada já começava a surgir. De que adiantava se preocupar, se seus hormônios se recusavam a transformá-la numa mulher? Aos dezenove anos, era uma menina com seios pequenos, unhas roídas e tudo. O jeito era se conformar em ser o patinho feio e voltar para a cama. Acabou adormecendo, de puro cansaço, mas foi um sono agitado por pesadelos, daqueles que a gente não consegue lembrar no dia seguinte, mas que deixam uma dor de cabeça como lembrança. Felizmente era sábado e Rose não tinha aula. Mas não podia se dar ao luxo de ficar deitada até mais tarde. As compras de fim de semana precisavam ser feitas e havia uma montanha de livros para devolver à biblioteca. Engoliu uma xícara de café com duas torradas e foi até o quarto de Antônia, ver se ela precisava de alguma coisa. Mas a madrasta ainda dormia profundamente.

Na volta da biblioteca, comprou legumes e frutas. Parecia que, finalmente, o inverno tinha acabado. Sentia-se mais animada ao chegar cm casa. O sr. Fawcett, o senhorio, estava parado diante da porta do apartamento. Rose estranhou.  Bom dia. O senhor deseja alguma coisa? Se é por causa do aluguel...  Já recebi o aluguel — o homem respondeu num tom sombrio. — Vim saber sobre a mudança. Sinto muito que estejam nos deixando. Não é sempre que se encontra inquilinas tão boas. Rose olhou-o, incrédula.  Não entendo. Se não tem queixas de nós, por que está nos mandando embora?  Eu? Pelo contrário, srta. Winslow. Por mim, vocês nunca sairiam daqui. Foi sua madrasta quem me disse, pessoalmente, que as duas vão se mudar no fim do mês. — Não, deve haver algum engano. Por favor, sr. Fawcett, não anuncie o apartamento ainda. Minha... minha madrasta não tem estado muito bem ultimamente e... — Não tenho dúvida de que ela não anda bem. — Será que ele tinha visto Antônia chegar bêbada na véspera? — Mas não houve nenhum engano. A sra. Winslow já rescindiu o contrato. É melhor a senhorita conversar com ela sobre o assunto. Rose estava sem fôlego quando entrou em casa. Encontrou Antônia ajoelhada no chão, procurando alguma coisa na prateleira debaixo do armário.  Você viu aquele inventário que o velho Fawcett nos entregou, quando mudamos para cá? Não consigo lembrar onde guardei. Você sabe o que é: aquela lista com todas as coisas que já estavam no apartamento. Não quero levar nada dele, mas também não vou deixar nem uma colherzinha de chá nossa neste buraco.  Então... é verdade? Você rescindiu mesmo o contrato? Por quê? Sei que o apartamento não se compara com o que a gente morava antes, mas é limpo, calmo e barato. E o sr. Fawcett não se mete na nossa vida...  Não precisa ficar me lembrando das dúbias vantagens desta porcaria. É claro que é barato. Infelizmente, até este aluguel é mais do que podemos pagar no momento. — Desde quando? — Rose começou a sentir o mundo ruir à sua volta. — Desde ontem à noite. — Antônia sentou-se, encarando a enteada. Estava muito pálida e apertava os olhos, como se a luz a incomodasse. Deu um sorrisinho malicioso, ao perceber a angústia de Rose. — Mas não se preocupe, queridinha: nós não vamos dormir embaixo da ponte. Ainda. Temos outro buraco parecido com esse para ir. - Um que podemos pagar?  Sem aluguel. Vamos pagar com o nosso trabalho. Só que não é aqui em Londres.  Não é em Londres? Mas, Antônia, você sabe que não posso sair daqui. Não posso!  Não fazia idéia de que era tão apegada a esta cidade. Sempre tive a impressão de que preferia morar lá em Surrey.  Bem, eu preferia. É para lá que vamos? Para Surrey? Oh, não seria tão mau assim. Eu poderia...  Sinto muito decepcioná-la, menina. Nosso destino fica a centenas de quilômetros de Surrey. Vamos para Lake District. Para um lugar chamado Ravensmere. Você nunca deve ter ouvido falar. É uma cidade tão pequena que nem está no mapa. Rose ouviu tudo num silêncio mortal. Depois, engoliu em seco e disse: — Não acredito. Você detestava Surrey. E agora vem me dizer que quer ir para uma cidade de interior menor ainda? — Eu não quero nada. Simplesmente, não tenho outra escolha. Vou para lá e você vai comigo.

— Não posso. Tenho que terminar meu curso e prestar os exames, caso você tenha esquecido. — Não me esqueci de absolutamente nada. — Antônia pegou o maço de cigarros e acendeu um, irritada. — Você é que parece ter esquecido daquela cláusula, superimportante, aliás, do testamento de seu pai: temos que morar juntas até você fazer vinte e um anos. — Só o que temos que fazer é procurar o advogado de papai e explicar que é absolutamente impossível cumprirmos essa exigência. — Não vamos fazer nada disso. Não vou abrir mão desse dinheiro e garanto que você ia se arrepender amargamente, se desistisse da herança. — Eu posso me virar. — Rose levantou o queixo, teimosa. — E você também, se resolver trabalhar para valer. Podemos dizer ao sr. Fawcett que mudamos de idéia e... Antônia agarrou o braço dela, sacudindo-a. Rose pensou que a madrasta ia ter uma de suas explosões de gênio, mas, em vez disso, a outra disse, num tom de derrota: — Infelizmente, não é tão simples assim. Lembra-se de todo o problema que eu e Alix tivemos, quando fechamos a butique?  O que há para lembrar? O negócio não deu certo, como eu já esperava, mas tive a impressão de que vocês duas saíram da aventura sem grandes prejuízos.  Não foi bem assim. Como sabe, arranjei um empréstimo para entrar na sociedade. Pensei que meu financiador estava preparado para bancar os prejuízos. — Fez uma pausa dramática. — Acontece que ele não estava. E, agora, começou a exigir que eu pague o que lhe devo.  Esse tempo todo, você não parecia preocupada. Quando foi que ficou sabendo disso?  Ontem à noite. — Antônia esmagou o cigarro no pires de café. — A propósito, quem foi que me colocou na cama? — Eu, claro. — Não há nada de claro nisso.. Não seria a primeira vez que Curt me vê sem roupa. Acho que ele me trouxe para casa, não? Não acredito que tenha me colocado sozinha num táxi.  Havia um homem aqui, ontem à noite Rose disse, sentindo um rubor traiçoeiro lhe subir ao rosto.  Havia? Conheço Curt há anos. A mãe dele e a minha eram primas afastadas, ou algo assim. Um parentesco muito complicado para explicar. Nem lembro direito. Nós dois nos víamos bastante. Chegamos até a ficar noivos. Ele era doido por mim. Rose tentou imaginar aquele homem másculo e orgulhoso perdido dei amor por alguém, mas não conseguiu. Sem pensar no que dizia, perguntou: — Como foi que ele conseguiu aquela cicatriz? — Meu Deus! Você prestou mesmo atenção no homem, hein? — Antônia não parecia muito contente com isso. — Para falar a verdade, não faço a menor idéia do que é aquela cicatriz. Deve ter sido coisa de alguma mulher. Mas não fique com a cabeça cheia de fantasias, menina. Ele é um homem de verdade, não é para você. Agora, Rose estava vermelha feito um pimentão.  Não diga bobagem. Nem pensei numa coisa dessas. Foi só curiosidade. De qualquer maneira, é muito pouco provável que nos encontremos novamente. Melhor esquecer o assunto.  Aí você se engana. É para o querido primo Curt que estou devendo. E, como não posso pagar em dinheiro, ele insiste em que tem que ser com trabalho. Curt tem essa casa em Ravensmere, onde mora uma tia velha. Mas ela sofre de artrite. Então, a idéia é eu ir para lá, como uma espécie de governanta.

Houve um longo silêncio, enquanto Rose olhava para a outra, sem acreditar no que tinha ouvido. Custou a recuperar a fala. — Oh, meu Deus! Essa não! É sério isso?  Claro que é sério. Esse foi o nosso trato. Vou para aquele buraco com ele e fico lá o tempo necessário para pagar a minha dívida. Curt também se ofereceu para acertar as minhas contas com aquela emproada da Célia Maxwell. Ninguém pode dizer que foi uma proposta desonesta.  Não é esse o problema. Você não entende nada de trabalhos domésticos. Como é que vai dirigir uma casa? Ele já sabe disso?  Nem tocamos no assunto. Curt pensa que dirigi a casa de Surrey e o apartamento. Naturalmente, não faz idéia de que a coisa não era bem assim. Ele quase não ia lá em casa, porque seu pai, minha querida, morria de ciúme. — Deu uma risada que fez Rose se sentir doente. — Não totalmente sem motivo, devo dizer. Rose tentou controlar a raiva.  Se é assim, a última coisa que você vai querer é me ter por perto. Sinto muito que esteja metida nessa complicação, Antônia, mas é problema seu e não há nada que eu possa fazer. De agora em diante, vai cada uma para um lado.  Ficou maluca? — seus olhos brilhavam de raiva. — Era só o que me faltava! Minha querida, não tenho a menor intenção de cumprir o trato com o meu adorado primo. E, menos ainda, ficar sem um centavo por sua causa. Além do mais, falei com ele sobre a última vontade de Victor e ele foi muito compreensivo.  Mas que bonzinho! Não quero ser um peso para ninguém e prefiro não me afastar de Londres agora. Posso muito bem dar um jeito de me sustentar nos próximos dois anos e...  E quanto a mim? Seu pai queria que ficássemos juntas. Não pode me deixar, Rose! — Isso é chantagem barata, e você sabe. Mas Antônia estava chorando de verdade. — Rose, você tem que vir comigo. Será só por seis meses, no máximo. Pode continuar seu curso depois e fazer o que quiser de sua vida. Se não vier comigo, não poderei cumprir o trato: não entendo nada de organização de uma casa. E Curt vai me levar à falência. Ele me ameaçou, ontem à noite. Por que pensa que bebi tanto? — Mas ele mal sabe que eu existo... — É lógico que sabe. E há outra coisa também. — Nervosa, Antônia rodava a aliança apertada no dedo. — Eu... eu deixei que ele pensasse que você é mais moça. Você não aparenta mesmo a idade que tem. Não seria difícil fingir por algum tempo, não é, Rose? Só por um tempinho. — Quantos anos ele pensa que eu tenho?  Dezesseis — Antônia respondeu, depois de hesitar por alguns momentos.  Dezesseis?! Você é mesmo incrível! Não podia fazer uma coisa dessas comigo. É inacreditável!  E você pode fazer o que quiser comigo? Sabe o que acontece, quando a gente vai à falência? Tiram até o nosso último centavo, metem o bedelho em tudo. Depois que seu pai morreu, houve comentários sobre certos negócios que andou fazendo, não sei direito. Se Curt me processar, essa história que foi abafada pode recomeçar. Você quer ver o nome Winslow arrastado na lama?  É lógico que não. Mas não acho que seu primo leve as coisas a esse ponto. — Oh, pode apostar que sim. Por um único motivo: Curt nunca me perdoou por eu ter casado com Victor. Quando me ofereceu o empréstimo para a butique, pensei que era um gesto de

amizade, mas depois percebi que ele queria me prender de algum jeito. Parece que sabia que a butique não tinha muito futuro. — Bem, ele não precisava ser nenhum gênio financeiro para sabei disso — Rose argumentou, com frieza. — Quem ele é? Alguém conhecido? Acho que já o vi em algum lugar. Antônia fez uma careta. — Garanto que não foi na seção de economia dos jornais. É mais provável que tenha sido nas colunas sociais. Já deve ter ouvido falar dele, claro. O nome todo é Curt Maitland. — O pintor? Rose nem podia acreditar. E o mais incrível era sua madrasta ser aparentada com um dos maiores retratistas da Inglaterra e nunca ter mencionado isso. — O próprio. — Antônia sorriu, esquecendo-se das lágrimas. Notou como está bronzeado? Passou muito tempo fora, num desses países do petróleo, fazendo o retrato de um xeque. Os milionários árabes são praticamente os únicos no mundo que podem pagar os preços dele. Naturalmente, Curt não precisa de dinheiro. Os pais lhe deixaram uma fortuna, e ele ainda controla os negócios da família. A pintura sempre foi um hobby, quando criança, e todos se espantaram quando Curt resolveu levar a arte a sério. Quem disse que você precisa passar fome num porão imundo para ser um artista de sucesso? E que sucesso ele era! Um de seus últimos retratos, da rainha, recebera! críticas entusiasmadas. O homem era talentoso e importante. E um ex-amante de Antônia, ao que tudo indicava. Rose foi até a janela e olhou, para a rua lá embaixo. De repente, sentiu-se presa numa armadilha. — Então? Posso dizer a ele que está tudo bem? Posso dizer para nos esperar? — Antônia perguntou. Havia ansiedade em sua voz. — Diga o que quiser. É o que tem feito até agora, não é? Irei por causa de papai, Antônia, não por você. A última coisa que Rose queria era ficar perto de Curt Maitland novamente. Ainda sentia o efeito daquele olhar prateado e perturbador. Mas jamais admitiria quanto ele mexia com suas emoções. Nem a si mesma confessava isso. Não que tivesse algo a temer. Ele vivia num mundo onde só existia lugar para mulheres ricas e elegantes. Para Curt, ela não passava de uma criança tola, tão atraente como um saco de batatas. Esse poderá ser o verão mais difícil da minha vida, pensou. Terei que tomar cuidado. Muito cuidado, mesmo.

CAPÍTULO II

Antônia dirigia e Rose, sentada a seu lado, consultava o mapa que tinha aberto no colo. Mas a estrada era tão bem sinalizada, que poucas vezes precisou dele. Assim, podia apreciar tranqüilamente a paisagem e o que via era de tirar o fôlego. Nunca tinha estado em Lake District e não podiam ter escolhido um dia melhor para chegar. O céu de abril estava de um azul forte e ensolarado. Os últimos resquícios de neve desapareciam das encostas das montanhas e os narcisos floresciam por toda a parte, até onde a vista alcançava.

Rose tinha lido um poema de Wordsworth sobre a região, mas nunca pensou que toda aquela beleza existisse realmente. Teve vontade de rir alto e a depressão que a perturbava nos últimos dias sumiu como por encanto. Gostaria de ter com quem compartilhar aquilo, mas Antônia havia deixado bem claro que não era do tipo que se emocionava com flores e uma bela paisagem. As últimas semanas tinham sido difíceis. Foi com o coração pesado que Rose comunicou na escola que não voltaria às aulas depois dos feriados da Páscoa. Os professores não ficaram nada satisfeitos com a notícia. Tentaram convencê-la a desistir da idéia de largar o curso. Ela explicou que eram problemas de família, sem entrar em maiores detalhes. Não tinha visto Curt Maitland novamente, embora tivesse certeza de que ele visitara Antônia. O aroma dos charutos que fumava ficava no pequeno apartamento por muito tempo, depois de ele sair. Todas as vezes que Rose fez perguntas sobre a casa onde iam morar, a madrasta era vaga e indiferente: — Mas você devia saber, se vai cozinhar e tomar conta de tudo. A outra dava de ombros. — Não tenho a mínima idéia. Vou me preocupar com isso quando chegar a hora. Rose tinha insistido:  Mas você não sabe cozinhar. Será que seu primo não percebe que não vai dar certo?  Se ele percebe ou não, não é problema meu. A idéia foi dele, não minha. De qualquer forma, se a velha Sybila conseguiu dar conta d trabalho esse tempo todo, tenho certeza de que também podemos.  Nós? — Rose olhou para ela, desconfiada. — Deixe-me fora disso Antônia. Estou indo para Ravensmere sob protesto. Só para você não perder a sua parte na herança. A madrasta inclinou-se e deu um tapinha amistoso em seu rosto. — Eu sei, anjinho. Você nunca me deixaria em apuros, não é? Mas também sei que é orgulhosa demais para se transformar num peso morto Não aceitaria ser sustentada por Curt e morar na casa dele, sem pagar de alguma forma. A propósito — abriu a bolsa e pegou alguma coisa —, isto é para você. Era um cheque. Quando Rose olhou para a quantia e para a assinatura sentiu o sangue ferver de indignação. — Para que é isso? — Para você fazer umas comprinhas. Curt dá muitas reuniões em casa, recebe gente importante, e não vai querer você por perto, vestida feito um espantalho. — Entendo... Aquilo era um desaforo que Rose não ia suportar. Fez menção de] rasgar o cheque, mas Antônia, alarmada, arrancou-o de sua mão.  Ficou maluca? Está bem que não ligue pra dinheiro, mas não pode passar o resto da vida de jeans e suéter. Dê um jeito no cabelo, vá cuidar dessas unhas horrorosas...  Quer que eu aparente a idade que tenho? — Rose perguntou, irônica, e a outra ficou embaraçada.  Não é bem isso. Mas também não precisa parecer um bicho do mato. Pelo amor de Deus, você não tem nem um pingo de vaidade? Deve haver alguma coisa que queira comprar. E havia, claro. Apesar de Rose duvidar de que Curt Maitland estivesse pensando em uma máquina de escrever portátil, quando lhe mandou aquele cheque.

Antônia não tocou mais no assunto. Aliás, seu humor piorou muito, à medida em que a viagem se aproximava. Agora, dirigia com um ar abatido, perdida nos próprios pensamentos, como se Rose não estivesse ali. Ela imaginou que aquela fossa era por causa de Curt. É claro que a madrasta teria preferido viajar com ele, naquele carro esporte que tinha visto da janela, em vez de na caminhonete que comprara para elas. Rose, ao contrário, dava graças a Deus por não estarem num carro mais possante. Antônia não era má motorista, mas desatenta demais. E sua desatenção aumentava na mesma proporção em que seu bom humor diminuía. — Bem, lá está Ravensmere, finalmente. Que lugar morto! Que fim de mundo! Bela droga! Para Rose, o lugarejo pareceu bastante pitoresco. Era bem pequeno, sem dúvida. Poucas casas de ardósia com trepadeiras nas paredes, um bar, uma loja, espécie de empório, e o correio. Mas tudo era limpo e bem cuidado, com muitos jardins floridos. Pena que ali fosse também o lugar onde Curt Maitland morava. Olhou em volta. — A casa de seu primo fica na cidade? Só pensar que tinham chegado deixava Rose nervosa, com as palmas das mãos úmidas de suor. Queria estar a salvo, de volta a Londres. Queria ter ignorado as queixas e as chantagens emocionais de Antônia. Por que havia concordado em vir de tão longe para tomar parte naquela história maluca? Instintivamente, soube a resposta. Sentiu uma onda de calor invadir seu corpo, e não tinha nada a ver com o dia ameno de primavera. Era mesmo uma tola! — A casa se chama "Ninho dos Corvos" — Antônia respondeu. — Abra a janela e pergunte a algum desses caipiras. Está ficando tarde e não quero dirigir à noite por essas montanhas. Parecia não haver ninguém por perto para perguntar. Antônia parou o carro e pediu para Rose ir até o empório e aproveitar para comprar cigarros para ela. Apesar de pequena, a loja tinha uma variedade inacreditável de mercadorias. Principalmente, bebidas. Rose nunca tinha visto tantas marcas. Uma mocinha de avental branco estava atrás do balcão, transferindo balas de uma caixa para uma bandeja de plástico. Sorriu para Rose. — Pois não? Era muito azar! Com toda a variedade, não tinham exatamente a marca de cigarro que Antônia fumava. Rose comprou outra, sabendo que ia ouvir um rosário de queixas, quando voltasse para o carro. Depois, perguntou onde era o Ninho dos Corvos. A mocinha olhou para ela de alto a baixo, sem esconder a curiosidade. — Você quer dizer a casa do sr. Maitland? Bem, tem que pegar a estrada de baixo e depois dobrar à direita. Então, siga sempre em frente. É uma subida e tanto. Cuidado. O sininho da porta tocou, quando Rose saiu e se dirigiu para o carro. Olhou para trás e viu que a moça a observava pela vitrine. Uma mulher mais velha se juntara a ela e também parecia muito interessada na forasteira. Rose franziu a testa. Verdade que Ravensmere ficava fora do roteiro normal dos turistas, mas não era possível que os habitantes estivessem assim tão pouco acostumados a ver pessoas estranhas. Ia comentar isso com Antônia, mas o escândalo que a outra fez por causa dos cigarros a impediu.  Que porcaria! Este lugar é um lixo! A vontade que me dá é voltar agora mesmo para Londres.  Bem, por que não? — Rose aproveitou imediatamente a deixa. — Esse trato com o seu primo nunca vai dar certo. Você jamais dirigiu uma casa na vida. Sempre teve alguém para fazer isso por você.

 Não, queridinha, vamos ficar. Meu esperto primo Curt pode estar com a faca e o queijo na mão agora, mas essa situação não vai durar para sempre. De governanta para dona da casa não é um passo tão grande assim. Antônia deu partida no carro e saiu cantando pneu. — Você pretende casar com ele? — Rose perguntou, atônita. — Ainda não sei se ele é do tipo que casa, mas isso não faz muita diferença hoje em dia. O importante é que sempre houve uma ligação entre nós. Em Londres, há muitas distrações, mas aqui, neste fim de mundo, não será difícil fisgar o homem e manejá-lo do jeitinho que quero. — Entendo. Antônia lançou-lhe um olhar malicioso. — Espero que entenda mesmo, queridinha. Estou contando com sua discrição e diplomacia. Também conto com você para tirar Sybila do meu caminho. Fosse qual fosse o plano da madrasta, Rose compreendeu que devia deixar as fantasias e sonhos para as histórias que escrevia. O que esperava, afinal? Cenas hollywoodianas com Curt caindo aos pés de uma menininha que ele pensava ter dezesseis anos, sem um pingo de experiência e sofisticação? Quando ele quisesse uma mulher, evidentemente seria alguém como Antônia. Que papel lhe estava reservado naquela história toda? Não se sentia apenas uma tola cheia de ridículos sonhos românticos. Não, sua situação era mil vezes pior. Por mais que odiasse admitir, ela inspirava pena. Quando aquele verão terminasse, teria que recolher os cacos e tentar recomeçar tudo de novo. Era um futuro incerto e sombrio. — Que estrada desgraçada! — O comentário de Antônia desviou sua atenção. — Mais parece um atalho. Você consegue ler o que está escrito naquela placa? — Diz que a estrada é muito perigosa no inverno. — Graças a Deus! Pretendo estar muito longe daqui antes do próximo inverno. — Mas você falou... — Nenhum dos meus planos inclui viver neste fim de mundo. Nem Curt costuma passar muito tempo por aqui. Mas onde, diabos, fica essa maldita casa? — Lá em cima. Só pode ser aquela. Mas Rose preferia que não fosse. Era imponente demais. Uma casa construída com enormes blocos de pedras esculpidos em forma de corvos. Antônia manobrou o carro e passou pelos portões, pegando um caminho margeado por rododendros. O Ninho dos Corvos parecia uma extensão da montanha rochosa. Acima, uma plataforma imensa sustentava um terraço com telhado e paredes de vidro, dominando todo o vale abaixo. Degraus de pedra levavam à entrada. Rose olhava, meio hipnotizada.  Que lugar fantástico!  Espero que haja alguém para carregar as nossas malas.  A vista, pelo menos, não tem. Não é melhor subir e tocar? Antônia estacionou o carro e acendeu um cigarro. — Que idéia luminosa! Não sei o que faria sem você, queridinha — disse, azeda. Rose subiu os degraus dois a dois, feliz por poder esticar as pernas depois da viagem. Não encontrou nenhuma campainha, mas havia uma aldrava de ferro maciço, em forma de corvo. A batida ecoou dentro do casarão e foi seguida por um longo silêncio.

Pareceu passar uma eternidade, até Rose ouvir passos se aproximando e um farfalhar de tecido. A porta foi aberta e ela viu-se diante de uma mulherzinha elegante, de cabelos muito brancos. Ela se apoiava numa bengala e tinha olhos muito azuis e muito vivos.  A porta não estava trancada, mocinha. Vocês eram esperadas. — Analisou Rose de cima a baixo, não deixando escapar nenhum detalhe. — Onde está Antônia? Por que não veio com você?  Ficou lá embaixo, no carro. Estávamos pensando se havia alguém para ajudar com a bagagem — respondeu, desanimada.  Acho que vocês terão que se arranjar sozinhas. Não há mais ninguém na casa. Se me desculpa, tenho que entrar agora. Não posso ficar muito tempo de pé. Talvez queiram tomar um chá comigo. Estarei na sala de visitas, à direita. — Sorriu para Rose e retirou-se. Rose voltou para o carro, já adivinhando a cena que Antônia ia fazer. Para acalmá-la, apressou-se em dizer que havia chá à espera das duas. Ao que a madrasta respondeu que ia precisar de coisa bem mais forte do que chá, depois de um dia daqueles. Como já esperava, Antônia carregou a menor das malas, deixando o resto da bagagem para Rose, que teve que subir e descer a escada duas vezes para levar tudo até a sala. Mas não se importou. Pelo menos, teria a chance de dar uma boa olhada na casa. O pé-direito do hall era altíssimo. Uma escada em espiral levava aos andares de cima. Havia também um velho móvel de carvalho maciço ao lado da lareira. Rose entrou na sala de visitas, onde a velha senhora tinha dito que seria servido o chá. Também era muito ampla e clara, com uma das paredes de vidro e enormes portas de correr que davam para o terraço. Um lindo tapete persa forrava o chão. Havia três sofás em tom pastel e uma mesinha baixa, onde estava arrumado o aparelho de chá de prata e louça finíssima. Antônia já estava lá. — Espero que você tome um pouco de chá para agradar a velha. Eu já entrei para a lista negra de Sybila por ter preferido gim. Ela está muito estranha. Quando perguntei sobre o pessoal da casa, fingiu não entender e desconversou. Sim, porque ela não vai querer me enganar que faz tudo sozinha. Já reparou como a casa brilha de tão limpa? — Ora, fale baixo. Ela vai ouvir. Rose detestava a mania que a madrasta tinha de fazer comentários desagradáveis, sem se importar que as pessoas envolvidas ouvissem. — E daí? Ela nunca me aprovou, mesmo. Nem quando eu era criança. Sybila aproximou-se e Rose tentou ajudá-la. A velha senhora agradeceu, dizendo que ainda não estava inválida nem caduca. Depois, virou-se para Antônia. — Assim que terminar sua... seu refresco — frisou bem a palavra —, quero mostrar-lhes a casa. Era mais do que evidente que as duas não eram bem-vindas ali. Será que Sybila se sentia ameaçada de perder o seu lar? Se estava amedrontada com o futuro, não demonstrou, pois continuou, no mesmo tom de dona da situação: — Não tenha dúvida de que levará um ou dois dias para vocês se familiarizarem com o esquema da casa. Vão notar que foi desenhada para tirar o máximo proveito da luz. No primeiro andar há uma galeria central e duas alas, partindo dela. Você e Rose vão ocupar os quartos da ala leste e dividir o banheiro. Os aposentos de Curt são na ala oeste e seu estúdio fica bem em cima. Lá, seus serviços não serão necessários. Curt cuida sozinho do estúdio e ninguém entra sem ser convidado. Quando ele não está aqui, a sala é mantida fechada. Antônia acendeu um cigarro. Não parecia nem um pouco perturbada por ser tratada praticamente como uma criada.

— E os outros quartos?  Quartos e banheiros de hóspedes. Curt recebe bastante. Espero que tenha avisado vocês duas disso.  A propósito, onde ele está? Esperava encontrá-lo aqui, à nossa espera.  Curt foi para as Bahamas. E, mesmo que estivesse em casa, duvido que se envolvesse em assuntos do pessoal. Dessas coisas, cuido eu. Pensei que ele tivesse deixado bem claro a sua posição nesta casa.  Oh, está claro. Até demais. Você pode se considerar parte do pessoal por aqui, Sybila, mas eu não. Vim para cá porque me pareceu conveniente para ambos no momento. Se Curt se diverte fazendo você acreditar que sou mesmo apenas uma governanta, eu não acho isso nada engraçado. Não pense que vai ficar fiscalizando o que faço. Estou certa de que é a última coisa que nós duas queremos.  Não tenho nenhuma intenção de bancar o fiscal. Mas receio que você também não tenha entendido o motivo da minha presença nesta casa. Tenho um pequeno apartamento no andar térreo. Este é o meu lar, e sempre será. Antônia reagiu com agressividade.  É um acordo, então, Sybila. Você sai do meu caminho, que prometo ficar fora do seu.  Como quiser. — A velha virou-se para Rose. — Quer um pouco de chá, minha criança? Receio que não foi uma boa acolhida essa que lhe demos. Há alguns bolos fresquinhos na cozinha, se quiser ir apanhar. Rose agradeceu e aceitou mais uma xícara de chá.  O que você vai fazer o dia inteiro, menina? Pelo que entendi, só tem dezesseis anos. Vai continuar os estudos?  Deixei a escola. Aliás, já passei no exame de nove matérias.  Deixou? E uma pena. Acha que conseguiria convencê-la a continuar, Antônia?  Oh, Rose faz o que quer. Nunca foi muito interessada pelos livros. Não é, queridinha? — Sorriu, provocadora, acendendo outro cigarro.  Nunca, mesmo — Rose falou, tomando um grande gole de chá para ajudar a engolir a raiva.  Realmente, não precisa se preocupar com ela, Sybila. Os jovens de hoje sabem tomar conta de si mesmos. A velha retesou o corpo, indignada. — Se a mocinha não se interessa por coisas mais sérias, talvez seja capaz de, pelo menos, ajudar você no trabalho da casa. Agora, vou mostrar os seus quartos. Aquela foi a melhor parte do dia. Rose achou o seu quarto encantador. O papel de parede era verde e branco, e o forro da cama, num verde mais escuro. A mesma cor, só que bem mais pálida, se repetia nas cortinas. As janelas davam para o vale e podia ver o brilho das águas do rio, a distância. Era um quarto jovem, como o que tinha em Surrey, e sentiu-se nostálgica. Antônia ficou no aposento ao lado, mais sóbrio e em tons de marrom e ouro. Assim que se viu a sós com a madrasta, Rose foi direto ao ponto:  Por que quis dar a Sybila a impressão de que sou uma irresponsável meio apalermada? Qual é a sua intenção?  Se ela não for com a sua cara, talvez a deixe em paz e não fique fazendo milhões de perguntas. Esse é um dos grandes defeitos de Sybila.  Não vejo qual é o problema. Não tenho nada a esconder. A idéia de dizer que sou três anos mais moça foi sua. Aliás, até agora, não entendi o motivo disso.

 Ah, não? E muito simples. As pessoas tratam uma criança de um jeito, e uma mulher adulta, de outro completamente diferente. Além do mais, Curt não sabe tudo a respeito do testamento de Victor. Tive que dizer que você estava sob meus cuidados. Ele não teria engolido isso, se eu contasse a sua idade. Então... Rose estava cansada das tramas da madrasta.  Está bem, está bem. Não vou estragar os seus planos, desde que não estejamos mais nesta casa daqui a dois anos, quando vou fazer vinte e um. Senão, caio fora, Antônia, e você vai ter que contar qualquer outra história para o primo Curt.  Não se preocupe, querida. Se eu ainda estiver aqui, dentro de dois anos, será como esposa dele. Quando esse dia chegar, você estará livre para ir onde bem entender.  Então, tenho o melhor motivo do mundo para querer que esse dia chegue logo. Pode contar com a minha ajuda.  Que bom. Vamos precisar mesmo nos unir. Sybila disse que deixou frango e salada na geladeira para nós, mas, de amanhã em diante, estaremos literalmente por nossa conta. Os poucos criados foram dispensados, o que significa que teremos que dividir todo o trabalho da casa, meu benzinho. — Havia ironia em seus olhos. — Estou começando a achar que talvez tivesse sido preferível a falência. Se Rose tinha alguma ilusão de que Antônia podia realmente manobrar Curt Maitland, tudo mudara agora. Ele não havia usado as dívidas da prima como um mero pretexto para levá-la para sua casa. Esperava mesmo que tomasse conta da mansão e, ainda por cima, cozinhasse. E Rose, que não tinha nada com isso, é que ia acabar se matando de trabalhar. Seria um completo desastre deixar a madrasta à frente de tudo. Ainda mais, quando houvesse hóspedes. Aquela maldita butique! Antônia devia estar enterrada até o pescoço, devendo uma fortuna. Rose tentou não pensar mais no assunto. Não queria estragar sua primeira noite no Ninho dos Corvos. Mas bastava andar pela casa para perceber que os próximos meses ali seriam duros. Com o passar dos dias, percebeu que as paredes de vidro, que tanto apreciara, perdiam todo o encanto quando se tem que mantê-las limpas e brilhantes. Antônia reclamava o tempo todo, o que irritava Rose ainda mais, já que o trabalho da madrasta se limitava a tirar o pó, arrumar as flores e, de vez em quando, ir fazer compras em Keswick, a cidade grande mais próxima. Uma das mais óbvias desvantagens da falsa idade de Rose era que, para todos os efeitos, não podia dirigir, apesar de ter carteira de motorista. Quando Antônia ia à cidade, raramente a levava, já que as duas tinham opiniões muito diferentes sobre o que comprar. Antônia nunca trazia as verduras e frutas que a enteada pedia; em compensação, a despensa estava cheia de comida enlatada — muito mais prática, em sua opinião. Rose não queria discutir com ela, já que só tinham a companhia uma da outra. Sybila cumprira a promessa de não se meter e fazia isso de uma forma tão ostensiva que Rose se sentia pouco à vontade. As vezes, gostaria de procurar a velha para conversar um pouco, mas o acanhamento a impedia. Achava profundamente incômodo o papel de adolescente desmiolada que Antônia inventara para ela. As explicações da outra para ter mentido sobre sua idade não a convenciam. Aquilo era ir longe demais para preservar a imagem da eterna juventude. Evidente que Antônia não podia considerá-la uma ameaça a seus planos para o futuro. Não uma magrela desajeitada igual a ela. Futuro... Essa era outra coisa que preocupava Rose cada vez mais. Se os projetos da madrasta dessem certo, ficaria inteiramente sozinha no mundo. Queria a sua independência, mas solidão era coisa muito diferente. Na verdade, sempre tinha vivido protegida pelo dinheiro do pai. Sabia que aquela absurda cláusula do testamento era uma maneira equivocada que ele havia encontrado para continuar a protegê-la. E a Antônia também. Mas forçar uma convivência não resolveria o

problema de nenhuma das duas. Em vez de apoiarem uma à outra e se fazerem companhia, estavam acorrentadas. O problema com Curt Maitland só havia piorado a situação. Se a madrasta tivesse recebido a sua parte na herança, não precisaria ter recorrido a ele. Mesmo que recorresse e perdesse todo o dinheiro, não haveria nenhum motivo para arrastar Rose junto. Cada uma estaria, enfim, cuidando da própria vida. Percebia que a inquietação de Antônia aumentava a cada dia. Esperava uma carta ou mesmo um cartão do primo, mas o carteiro trazia apenas correspondência para Curt, as contas de costume e circulares. O telefone também permanecia mudo. Nas poucas vezes em que tocava, era no apartamento de Sybila. Será que Antônia não confiara demais em si mesma? Será que não tinha cometido um grande erro, ao pensar em Curt como o mesmo rapaz que se apaixonara por ela, anos atrás? As pessoas costumam mudar. Não conseguia imaginar Curt Maitland como escravo do amor de nenhuma mulher. Com aquele charme e aquele fascínio, rico e famoso, ele podia ter tudo o que quisesse da vida. Sentiu um súbito aperto no coração. Tinha sido uma louca de ir para lá. Podia ter ficado em Londres, arranjado um emprego de dia e continuado os estudos à noite. E, agora, mais aquela de ser considerada apenas uma criança idiota! Seus devaneios foram interrompidos pela chegada da madrasta, elegantíssima num duas-peças de tricô, reminiscência dos tempos da butique. — Vou a Keswick fazer compras. Quer alguma coisa?  Outra vez? Pensei que tinha feito as compras na terça-feira, quando foi descontar o cheque. Hoje, tínhamos que fazer faxina nos quartos.  Muito bem. Quer mesmo saber a verdade? Vou fazer o cabelo. E um dos poucos luxos que me restam. Não quer me privar disso também, não é?  Não quero privar você de nada. Não tenho esse direito — Rose respondeu, esforçando-se para não estourar.  Então, qual é o problema?  Nenhum. Eu cuido dos quartos. Não se preocupe. — Pode deixar, queridinha. A última coisa que faço é me preocupar com esse maldito buraco. — Você não gosta da casa? — Rose estava curiosa, apesar de tudo. — Se fosse em algum outro lugar, seria tolerável. Mas, neste fim de mundo, no topo da montanha... E com este clima miserável! Já percebeu que tem chovido todos os dias? — E daí? Tudo aqui é muito verde e lindo. E temos tido sol, também. — Até parece que está querendo me vender o lugar. Não vai dar certo. Quando Curt e eu estivermos casados, vou convencê-lo a mudar para uma cidade mais civilizada e mais próxima do movimento. Não sei o que deu nele para comprar esta casa, quando poderia morar em qualquer parte do mundo. Rose pensou na beleza da região. Na neve das encostas. No colorido das flores. No perfume do jardim. Entendia muito bem por que Curt escolhera aquele lugar. Ouviu o carro de Antônia se afastar e foi até o quarto de limpeza pegar o material para a faxina. Começou pelos quartos das duas. O dela estava sempre arrumado, exceto pela mesa da máquina de escrever, geralmente abarrotada de papéis. Começara um novo conto e só conseguia trabalhar naquele caos.

Refez a cama, trocando os lençóis que tinha apanhado no armário di roupas do primeiro andar. O quarto de Antônia era outra história. Rose suspirou, ao entrar. Cosméticos sem tampa espalhados por todo lado, roupas de baixo jogadas pelas cadeiras, o vestido da véspera no chão. Casando com ela, Curt ia ter que contratar uma babá para a esposa. Arrumou tudo e depois abriu as janelas para que o ar primaveril dissipasse o cheiro forte de cigarro. Limpar os quartos de hóspedes foi bem mais fácil e rápido. Resolveu que merecia uns minutos de descanso Desceu, pegou pão, alface e queijo, fez um sanduíche e foi fazer um lanche no jardim. Sentou-se sob uma árvore e tentou imaginar que aquele almoço rápido era um piquenique. Tinha deixado a pior parte do serviço para o fim: ainda faltava arrumar a luxuosa suíte de Curt Maitland, na outra ala da casa. Mas estava desanimada. Aquele era um dia para se trabalhar no jardim. Não que entendesse muito de jardinagem, mas costumava cuidar das flores em sua antiga casa em Surrey. De má vontade, levantou-se e foi para a suíte de Curt. Eram três aposentos bem espaçosos — quarto, banheiro e quarto de vestir —, com paredes inteiras ocupadas por armários embutidos. Estavam, na maioria, vazios. Mas as poucas roupas e os produtos de toucador eram todos caros. Por curiosidade, Rose abriu alguns vidros de loção. Cheirou. Sem dúvida, ele tinha bom gosto. No quarto de dormir, havia um tapete tão espesso que seus pés afundavam. A enorme cama era invariavelmente feita com lençóis de seda marrom. Na primeira vez que tinha estado ali, pegou Antônia lançando olhares maliciosos para a cama e ficou embaraçada. Sem querer, pensou também em quantas mulheres já teriam estado ali. A cama ficava de frente para uma janela panorâmica, que ia do teto ao chão, com vista para todo o vale e os campos mais além. Havia um enorme espelho na parede e, enquanto o limpava, Rose analisou sua imagem refletida. Parecia completamente deslocada naqueles trajes, naquele quarto. Ao terminar, estava exausta, louca por um bom banho e para esticar o corpo, antes que Antônia chegasse. Olhou em volta. Por que não? Num impulso, tirou as sandálias e deu um pulo bem no meio do colchão macio, coisa que se sentia tentada a fazer desde a primeira vez que entrara naquele quarto. Se todos a tratavam como criança, tinha direito de fazer pelo menos uma pequena travessura. Ficou deitada, olhando para o teto, com uma gostosa sensação de relaxamento. A casa era muito silenciosa. Silenciosa até demais. Mas, quando Curt e Antônia casassem e tivessem filhos, isso mudaria. Perdida em seus pensamentos, começou a sentir-se sonolenta. Onde estava a coragem de levantar e ir tomar banho? Pelo janelão, viu nuvens pesadas cobrirem o sol e, pouco depois, uma chuva grossa começar a cair. Aconchegou-se aos lençóis, prestando atenção no barulho da água lá fora. Água — foi isso que a acordou. Só que o ruído vinha de dentro do quarto. Será que tinha deixado as outras janelas abertas? Oh, não! Pulou da cama e foi verificar. Nada. Talvez o tal barulho viesse do banheiro. Uma torneira mal fechada ou um problema no encanamento. Mas o chão estava seco. Ia sair, quando notou uma sombra se mexendo no boxe. Rose tapou a boca para não gritar e, antes que tivesse tempo de fugir, Curt Maitland saiu do chuveiro para pegar uma toalha. Ele a viu imediatamente. Por um segundo, ficaram imóveis. Ela, paralisada pela timidez e pelo susto. Curt, incrédulo. Depois, num gesto rápido, enrolou-se na toalha e a surpresa em seu rosto transformou-se em raiva. — Fora daqui, menina! Já! Rose saiu correndo para o quarto, para pegar o material de limpeza. Olhou para a cama, apavorada. Era óbvio que alguém tinha se deitado lá. Se ele não sabia que ela estava na suíte,

devia ter entrado pela porta do quarto de vestir e ido direto ao banheiro. Já estava numa situação constrangedora e não queria ser apanhada em outra. Tentou arrumar os lençóis, mas era muito tarde. Curt vinha entrando no quarto e Rose teve vontade de morrer. Seu rosto pegava fogo e o corpo todo tremia. Não sabia o que fazer ou dizer. Nem teria tempo para nada, porque ele avançou em sua direção. — Afinal, o que você é? Meu presente de boas-vindas? Fico lisonjeado, claro, mas não acha que ainda é um pouco jovem para esse tipo de brincadeira?

CAPITULO III

Hesitante e trêmula, Rose conseguiu responder: — Eu não sou... quero dizer, não é o que está pensando. — Fico muito aliviado em ouvir isso. — Começou a secar o cabelo. — Então, que tal me contar o que está fazendo no meu quarto? Ela se abaixou para pegar o aspirador. — Ah, entendo — ele disse. — Onde está Antônia? — Em Keswick, fazendo compras. Eu vim... vim fazer as camas, Sinto muito. — Ela costuma deixá-la sempre sozinha assim para fazer o serviço? A verdade não ajudaria em nada os planos da madrasta. Por isso — e também por um pouco de orgulho —, mentiu: — É claro que não. Antônia trabalha bastante e não me incomodo de ajudar.  Quando é que ela volta?  Não sei. Quer alguma coisa? — Queria comer. De preferência, algo leve. Foi um vôo péssimo e essa estrada, com chuva, é o fim. Ovos mexidos está ótimo. — Certo — Rose concordou, com falsa segurança. Só então percebeu que estava descalça. Envergonhada, procurou as sandálias. Tinham ficado do outro lado do quarto. Foi até lá e calçou. Curt observava cada um de seus movimentos. Perguntou, entre intrigado e sarcástico: — Você sempre limpa a casa descalça, ou tirou - os sapatos especialmente para entrar aqui? Meu quarto por acaso é alguma espécie de templo sagrado? — Nem uma coisa nem outra. Foi só um impulso. — Foi só outro impulso — ele corrigiu, olhando para a cama. — Acho que teremos que fazer alguma coisa para refrear esses seus impulsos, srta. Winslow, antes que alguém interprete mal o seu comportamento. Ela concordou com um gesto de cabeça. Sabia que merecia aquilo. Reuniu as forças è a dignidade que lhe restavam e caminhou na direção da porta. — Só mais uma coisa, antes que saia, mocinha. Quero café também. Forte e sem açúcar. Descerei em dez minutos. Rose estava sem fôlego quando chegou à cozinha. Preparou o café, seguindo as instruções de Curt, e tentou ganhar alguns pontos com ele, fazendo também uma salada, além dos ovos. Não seria nada difícil para aquele homem acreditar que só tinha dezesseis anos, depois da prova de criancice que acabara de dar.

Acho que Freud explica esse meu comportamento tolo, pensou, com ódio de si mesma. Estava acabando de preparar o lanche, quando ele chegou e se sentou no comprido banco de carvalho da cozinha. ' — Não prefere comer na sala de jantar? — Não. Aqui mesmo. Como é? Vai continuar me torturando muito tempo com esse cheiro delicioso? — Oh, desculpe... — Está ótimo — ele disse, depois da primeira garfada. — Você não vai comer? — Não. Já almocei. — Colocou o bule de café ao lado dele. — Então, pegue outra xícara e tome café comigo. Você pode ser uma arrumadeira cheia de... impulsos, mas, sem dúvida, sabe cozinhar. Acho melhor explorar mais esse talento. De agora em diante, limite-se à cozinha. — O que quer dizer? Curt suspirou.  Será que preciso soletrar? Não costumo usar pijama, nem tenho robe. Para não repetirmos a cena do nosso encontro no banheiro que foi chocante, pela sua cara de espanto e pavor, prefiro que Antônia cuide dos quartos, a partir de agora. — Depois acrescentou, mais gentil: — Não fique tão embaraçada, amor. Estou só tentando poupar a sua inocência. Sabe que ficou vermelha feito um tomate? E já está ficando de novo. É até charmoso. Para ser franco, não sabia que as garotas de hoje em dia ainda conseguiam corar desse jeito.  Mas como é que vou explicar isso a Antônia? Está querendo dizer que devo contar o que aconteceu?  Por que não?  Acho que ela não vai aceitar isso muito bem.  Será que minha prima perdeu o senso de humor?  Não creio que ela ache graça nenhuma nessa situação. A verdade era que Rose sabia que a madrasta ficaria furiosa por não ter estado lá para recebê-lo. O incidente não só a desagradaria profundamente, como despertaria seu ciúme. Felizmente, Curt não fazia a menor idéia disso. — Antônia me contou que vocês eram muito amigos. — E, nos víamos muito, quando jovens. Mas ultimamente andamos um pouco afastados, por motivos que prefiro não comentar.  Acho que posso adivinhar.  Se conhece bem Antônia, deve poder, mesmo. Ainda tem café? — Claro. Quer mais alguma coisa? Acho que sobrou queijo. E frutas. Se soubéssemos que vinha... — Nem eu sabia... — Rose podia ver os sinais de cansaço no rosto dele. — Vou querer queijo e uma maçã, por favor. Ela serviu a sobremesa e encheu a xícara dele. — Continue trabalhando bem assim, garota, e vou me sentir novamente um ser humano. — Sorriu para ela e tocou sua mão, ao pegar a xícara. Rose sentiu-se tão atraída por aqueles olhos prateados que teve que se controlar para não fugir correndo. Ou, pior ainda, não se atirar nos braços de Curt. E ele nem sequer estava tentando fazer charme.  O que achou de Ravensmere? — Cortou um pedaço de maçã e ofereceu a Rose na ponta da faca.  Gostei muito do que vi até agora — ela respondeu, recusando a maçã com um meneio de cabeça.  Aqui não temos muito o que oferecer. A não ser, para quem gosta de alpinismo.

— E possível chegar ao topo?  Oh, sim. Há uma trilha. Mas não é qualquer um que consegue subir. É preciso se exercitar muito antes. Como você é minha hóspede, sinto-me na obrigação de avisar: não pegue nenhum dos atalhos. Não são bons lugares para passear. O tempo por aqui muda em questão de minutos e você ainda não conhece os sinais do caminho. Pode se perder no meio de uma tempestade. Também não saia nunca sem agasalho. Vamos fazer disso um regulamento, por favor. Não quero ter que chamar o serviço de salvamento da montanha porque você não se comportou como uma boa menina.  Não precisa se preocupar tanto comigo. Esse tipo de passeio não é das coisas que mais gosto no mundo — disse, ofendida com o tom paternal dele.  Vou ser honesto com você, Rose. Eu realmente não incluí você no convite que fiz a Antônia para vir para cá. Só depois é que soube que estava sob custódia de sua madrasta. Senão, teria feito outro tipo qualquer de acordo, para não obrigá-la a viver num lugar tão isolado. Isto não é para uma garota de sua idade. — Londres pode ser tão isolada e solitária como Ravensmere.  É, mas de um jeito diferente. Lá, pelo menos, você teria mais chance de se divertir e levar uma vida normal. Não sei o que vai fazer para preencher o seu tempo.  Isso não me preocupa nem um pouco — respondeu, pensando nas horas e horas de limpeza que tinha feito, desde que chegara. Tempo livre era coisa que nunca lhe sobrava. E, se sobrasse, não teria ânimo para pensar em se divertir. — Sinto muito ser uma carga para você. Farei o máximo para não atrapalhar. — Não foi isso o que eu quis dizer, criança sensível. Quem está aqui para pagar uma dívida é Antônia. Você não tem nada a ver com a história. — Você fala como se ela fosse uma condenada cumprindo pena. — Não tenho a menor dúvida de que é assim que ela encara a coisa — disse seco. Olhou para o relógio, impaciente. — E acho que essa viagem a Keswick, pelo jeito como demora, é uma espécie de livramento condicional por bom comportamento. Rose corou. — Acho que sim... — Você não quis ir com ela ou já viu tudo o que há para ver por lá? — perguntou, casualmente. — Um pouco das duas coisas. É melhor lavar esses pratos agora. Ele sorriu. — Deixe. Estamos na história errada, amor. Você não é Cinderela. Mas não tema, princesinha, seu segredo está bem guardado comigo. Se acha tão importante, não conto a Antônia que você dormiu na minha cama. — Levantou-se. — Vou cumprimentar Sybila. Como é que vai ela? — Acho que bem. Não nos vemos muito. — É uma pena. Antônia e ela nunca se entenderam. Acha que o tempo não mudou a situação? — Nada. — Sybila é teimosa. Não quer reconhecer que a artrite a impede de dirigir a casa como fazia antigamente. Por isso eu queria mais alguém morando aqui. Não posso ficar sempre de olho nela. — Gosta muito dela, não é? — Minha mãe morreu quando eu era pequeno. Sybila praticamente me criou. Pretendo cuidar dela até o fim. — Lançou um olhar atravessado para Rose. — Não fique tão surpresa, amor. Não sou totalmente desprovido de sentimentos decentes, apesar do que Antônia deve ter dito de mim.

— Oh, mas ela não disse nada. — Não acredito. Deve haver algum motivo para esse seu mal-estar, sempre que estou por perto.  Talvez eu não esteja acostumada com homens.  Na sua idade, não é mesmo de esperar que tenha uma grande experiência. Mas também não é nenhuma donzela vitoriana. Como vamos viver sob o mesmo teto por algum tempo, você vai ter que se acostumar comigo, não é?  Você... vai ficar aqui? Não vai embora novamente?  Vou ficar, sim. E você, Rose Winslow, fará o melhor que puder. Quando passou por ela pegou seu queixo carinhosamente, e cada músculo de Rose ficou tenso. — Obrigado pelo almoço, amor. E lembre-se do que eu disse: fique quietinha na cozinha, longe do meu quarto. Será melhor para você. Antônia parecia feliz, quando chegou, uma hora depois. Seu humor mudou, ao saber que Curt tinha voltado.  Ele podia ter nos avisado — reclamou, pousando duas sacolas sobre a mesa da cozinha. — Graças a Deus a casa está em ordem. Você se lembrou de fazer o quarto dele?  Acho que me lembrei de fazer tudo.  Tenho certeza que sim, queridinha. Guarde a comida para mim, sim, enquanto vejo o patrão.  Ele ainda deve estar com Sybila.  Nesse caso, vou esperar que me procure. Faça um pouco de chá. Ficar na fila do açougue não foi um grande programa. Estou morta.  Ah, trouxe carne fresca? Que bom. Vou preparar um goulash para o jantar.  Faça o que quiser. Por que será que ele voltou assim tão de repente?  Não disse. Mas falou que pretende ficar por algum tempo. Antônia abriu um sorriso.  Ótimo! Até que enfim, uma boa notícia!  O que é tão bom assim? — Curt perguntou, da porta.  O quê? Querido! O fato de você ter voltado para casa, claro. — Passou o braço pelo dele.  Se eu soubesse que as boas-vindas seriam assim, teria voltado muito antes. — Puxou-a contra o peito e Antônia deixou-se abraçar e beijar. Rose não tinha a menor intenção de ficar assistindo àquela cena. A bolsa, as luvas e o casaco da madrasta estavam amontoados numa pilha no hall de entrada. Rose pegou tudo e guardou no quarto de Antônia; depois foi para seu quarto. Teve o pressentimento de que passaria um bom tempo lá. Os dois no andar térreo não iam querer companhia. Olhou em volta e dirigiu-se para a máquina de escrever. Estava tentando escrever uma história de amor para uma revista feminina. Agora, deprimida como se sentia, o enredo lhe pareceu, de repente, pobre e ridículo. Sentiu a brisa pela janela aberta e foi fechá-la. Ouviu vozes lá embaixo e viu o casal passeando abraçado. Formavam um belo par. Começava a entender por que o pai nunca foi capaz de negar nada a Antônia. Imaginava que satisfazer todas as suas vontades era uma espécie de tributo que os homens costumam pagar à beleza de uma mulher. Achou que o caminho estava livre para descer e começar a preparar o jantar. Na vida real, a história de fadas era bem diferente. O príncipe ™ estava com a madrasta, enquanto a jovem enteada devia ficar com o fogão e as panelas. Caprichou no goulash e acabava de colocá-lo no forno, quando Antônia entrou. — Pode descansar esta noite, queridinha. Curt vai me levar para jantar fora. — Mas já fiz o jantar...

— Então, tenha um ótimo apetite. Se está tentando impressionar meu querido primo com sua comidinha caseira, esqueça. Não vai adiantar nada. Ele está acostumado com a melhor cozinha internacional, como já deve ter percebido. — Ele parece cansado. Não pensei que quisesse sair. — Pensou errado. Curt não pode ficar enterrado aqui. E eu, muito menos. — Fez uma pausa e acrescentou, com desdém: — Não precisa esperar por nós com chocolate quente. — Não tenho a menor intenção de esperar vocês dois acordada. Divirtam-se. — Vou me divertir. Sabe, querida, se eu não a conhecesse muito bem, diria que está com uma pontinha de ciúme. Mas seria uma grande perda de tempo, não é? — Sorriu novamente e partiu. Rose teve vontade de jogar toda a comida fora. Mas seria um desperdício. Além do mais, estava com fome. Tinha planejado transformar aquele jantar numa pequena comemoração pela volta de Curt, com castiçais e tudo mais. Era mesmo uma idiota! Olhou para seu jeans e suéter velhos e achou que precisava melhorar de aparência. Aqueles dois que se danassem. Ia ter um jantar especial. Não precisava de ninguém mais para isso. Subiu para mudar de roupa e maquilar-se. O banheiro que dividia com a madrasta estava embaçado de vapor e saturado com o cheiro adocicado de seu perfume. Rose tomou um banho rápido e colocou um vestido longo, de mangas compridas, um tanto sofisticado para uma menina de dezesseis anos. Esperou que os dois saíssem e desceu. Mas como era triste sentar-se sozinha à mesa! Não devia se sentir tão decepcionada. Afinal, Antônia não tinha escondido as suas verdadeiras intenções. Sabia que a outra ia aproveitar todas as oportunidades que aparecessem para ficar a sós com Curt. Mesmo assim, era duro perceber que não podia contar com ninguém. A menos... Decidida foi até o apartamento de Sybila. A velha demorou um pouco para abrir e ficou parada na porta, apoiada na bengala, olhando-a atentamente.  Você quer alguma coisa, garota? — Sua voz não estava muito amistosa.  Não é nada demais. Só que preparei um goulash para o jantar, pensando que todos iam comer em casa, mas Antônia e Curt saíram. Há muita comida e... bem, pensei se a senhora não gostaria de jantar comigo. Houve um breve silêncio, durante o qual Sybila a observou de alto a baixo, mas com uma expressão diferente. Uma expressão de simpatia. Depois, respondeu com um sorriso: — Obrigada, Rose, seria muito bom. Não me diga que fez o jantar sozinha. — Gosto de cozinhar. O apartamento de Sybila era um prolongamento da casa. Rose estava numa enorme sala, muito bem mobiliada, num estilo mais antigo do que o resto da mansão. Havia muitos quadros, porcelanas e objetos antigos e curiosos. Num canto, uma mesa redonda de pau-rosa estava arrumada com uma toalha de linho branco, talheres de prata pesada e, no centro, um jarro com narcisos muito perfumados. Uma pequena lareira ardia em frente e, junto dela, havia uma grande poltrona de espaldar alto, onde Sybila se sentou. — Que lindo lugar! — disse Rose, olhando em volta. — Eu gosto muito daqui. Sou muito feliz de poder ter todas as minhas coisas por perto. Curt insistiu nisso, quando mandou construir a casa. — Agora, falava toda animada. — Mas isso que trouxe na bandeja é o seu goulash, querida? É melhor comermos, antes que fique frio. Foi o jantar mais agradável que Rose teve, desde que chegara ao Ninho dos Corvos. Achou Sybila formidável. Interessada, sem ser curiosa. Bem ao contrário do que Antônia tinha dito. Só

não ficou mais à vontade porque todo o tempo teve que se patrulhar para não cair em nenhuma contradição que desmentisse a história que sua madrasta inventara. A velha fez perguntas sobre o pai de Rose e foi sincera ao lamentar sua morte súbita.  Se quiser, posso pedir para Curt se informar a respeito do testamento de seu pai. Essas coisas são muito complicadas para uma garota de sua idade.  Oh, não, obrigada. Eu sei que Antônia e eu temos que viver juntas até os meus vinte e um anos. A menos que eu me case antes... ou ela.  

Se ela casar antes da sua maioridade, o que será de você? Rose tomou um gole de café. Não sei bem. Talvez ela não queira casar novamente.

 Não acho que Antônia goste de ser viúva. A menos que fosse uma viúva rica. Então, seria diferente.  É, talvez a senhora tenha razão. Além do mais, é muito bonita e jovem ainda para ficar sozinha. Enquanto conversavam, notou que os olhos de Sybila vagavam pela sala. Rose sabia que a velha estava pensando que, se Curt casasse com a prima, Antônia tentaria se livrar dela. — Quero que me desculpe, minha querida, por falar desse jeito de sua madrasta. Não pretendo, de forma alguma, abalar sua confiança e sua lealdade por ela. E, por favor, não roa as unhas. É um hábito feio. Antigamente a gente costumava colocar pimenta nas mãos das crianças que faziam isso. Antônia nunca pensou em fazer isso? — Acho que Antônia nunca notou que rôo as unhas. Também não faço isso com freqüência. Só quando estou nervosa. — Meu Deus! Sinto muito ter deixado você tão nervosa assim. — Não é isso. Não foi a senhora. Tive um dia cheio e difícil. A chegada de Curt... e tudo o mais. "Tudo o mais" significava, entre outras coisas, que a madrasta estava certa: sentia, sim, uma pontinha de ciúme. E tentava se convencer de que aquele jantar fora era apenas uma maneira que ele encontrara para agradecer a Antônia pelos serviços prestados. Se soubesse que ela não era capaz de levantar um dedo em casa! Com medo de que a velha percebesse o verdadeiro motivo de seu nervosismo, comentou:  Curt me disse que vai passar algum tempo aqui.  Você parece surpresa. Por quê? Afinal, é a casa dele.  Claro. Mas, pelo que sei, não costuma vir para cá com freqüência. Está sempre viajando.  Ele tem sido muito bem-sucedido como homem de negócios e artista, mas sua vida não é tão glamorosa como as pessoas pensam. Pode ser bastante cansativa. E ele não é mais nenhum garoto, você sabe. Curt comprou esta propriedade e mandou construir a casa porque queria criar raízes. Talvez tenha chegado a hora. Então, por isso ele tinha convidado Antônia? Ainda devia amá-la, depois de tanto tempo. Pensando bem, seria um casamento perfeito, já que os dois se conheciam muito bem e não havia a barreira da idade para atrapalhar, como acontecera com o pai de Rose. Sybila começou a recolher as xícaras de café. — Minha querida, está ficando tarde. É melhor lavarmos a louça. E não se preocupe: tudo vai dar certo. Para tudo há um jeito nesta vida. Mais tarde, já de volta ao quarto, Rose tentou se convencer de que seria ótimo se Antônia e Curt casassem. Dessa forma, ganharia a sua independência. Poderia ir embora e nunca mais ver os

dois novamente. Ao mesmo tempo, esse pensamento a fazia sofrer. Sabia que nunca conseguiria apagar da lembrança a imagem daquele homem. Já passava bastante da meia-noite quando ouviu o carro chegar. Ficou muito quieta, os nervos tensos, tentando escutar os dois, e odiando-se por isso. Pouco depois de a porta da frente bater, percebeu que Antônia subia a escada. Ouviu-a passar por seu quarto e abrir e fechar a porta ao lado. Estava sozinha. Rose ficou um longo tempo esperando, mas Curt não foi ao encontro de Antônia.

CAPÍTULO IV

Quando Rose desceu para a cozinha, na manhã seguinte, havia sinais de que alguém tinha tomado café e saído. Mas Antônia é que não podia ser: ela raramente acordava antes das nove e meia. Fez algumas torradas e coou um pouco de café. Para sua surpresa, a madrasta apareceu logo em seguida. Estava com ótima aparência e usava um robe de seda verde-clara. —É café? — perguntou, acomodando-se no banco. — Por favor, Rose, sirva um pouco para mim. Não quero torradas. Nunca pude entender essa mania que as pessoas têm de comer pão queimado. Que pobreza! Se pudéssemos conseguir croissants... — Maravilha! E onde sugere que procuremos?  E claro que eu sei que essas coisas finas não existem por aqui. Mas isso não me impede de sonhar, se não se importa.  Por falar no assunto, como vai indo sua campanha para convencer Curt a se mudar?  Ainda não comecei. Achei melhor deixar passar umas semanas, para que ele mesmo descubra como a vida no campo é terrivelmente monótona. Não vai levar muito tempo para chegar à mesma conclusão que eu. Curt está habituado demais com a boa vida para se acostumar com o isolamento. Apesar de que devo confessar que fiquei impressionada com o restaurante onde fomos ontem à noite. Absolutamente inacreditável, num lugar como este. Até parecia um cenário de teatro, queridinha. Imagine que até diminuíam as luzes, entre um prato e outro. Entusiasmada, começou a descrever o que tinha comido. Mas Rose não estava nem um pouco interessada e não conseguiu esconder. Aos poucos, o entusiasmo de Antônia foi desaparecendo e ela caiu num pesado silêncio. Talvez por notar que a enteada não prestava atenção; talvez porque a verdade sobre a. noite anterior não fosse tão agradável como tentava aparentar. Rose percebeu que sua expressão havia mudado. Conhecia aquele olhar. Já o tinha visto antes, pelo menos duas vezes. Quando o testamento de seu pai foi lido e quando a butique teve que ser fechada. Mas, o que quer que estivesse acontecendo, acabaria sabendo, mais cedo ou mais tarde. Antônia lhe contaria. Não era da natureza da madrasta guardar más notícias por muito tempo. De repente, a outra disse, servindo-se de mais café: — Curt queria mandar você de volta para a escola. Tive um trabalhão para tirar essa idéia da cabeça dele. — Posso imaginar. O que foi que você disse?  Oh, inventei que você tinha sofrido um grande choque por causa da morte de seu pai e que precisava de cuidados especiais — Antônia respondeu, evitando olhar para ela.

 Isso chega a ser revoltante. Não seria melhor a verdade? Não teria sido mais fácil e limpo? — Talvez. Mas agora já menti demais. Para todos os efeitos, você é uma adolescente problemática e precisamos manter essa imagem. Pensa que é mais fácil para mim? Ontem à noite, ele praticamente me fez um interrogatório sobre você. Deus sabe o que Sybila andou buzinando no ouvido dele. — Por que acha que ela contou alguma coisa? — Porque aquela velha adora se meter em tudo. E nada lhe daria mais prazer do que atrapalhar meus planos. — Pode ser que tenha medo de que você atrapalhe a vida dela. — Bem, essa é uma outra história de que terei que cuidar mais tarde. No momento, o que interessa é que Curt está mudado. Sempre foi o diferente, a ovelha negra da família. Agora, se comporta igualzinho aos outros Maitland, com a mesma teimosia e tudo. Sybila não será grande problema para mim. É óbvio que tem piorado da artrite e que, não demora muito, ficará inválida. E lugar de gente velha e inválida é o asilo. — O caso é: Curt também acha isso tão óbvio? — Não. Aí é que a situação se complica. Não estou disposta a bancar a ama-seca daquela velha e sei que ela quer isso tanto quanto eu. — Mas Curt espera que você cuide dela? — Mais ou menos. Não falou claramente, mas é o que vai acabar acontecendo, se Sybila continuar vivendo aqui, como ele pretende.  Não esqueça que a casa é de Curt e que ele gosta muito da velha. Antônia encarou-a, desconfiada.  Parece que você está muito bem informada sobre o assunto. — Ele mencionou isso ontem. Mas nem era preciso. Basta ver a preocupação que teve, mandando construir um apartamento especialmente para ela.  Também mencionou isso?  Não. Eu mesma vi. Jantei com Sybila. — Sério? — Antônia deu um sorrisinho amarelo. — Você tem andado um bocado ocupada, hein, garota? E o que foi que aquela cadela falou de mim? — Nada de mais.  Duvido. Bem, queridinha, você não pode lutar em duas frentes. É melhor decidir agora de que lado está.  Não seja ridícula! Não há nenhuma luta e não estou tomando partido de ninguém. Acontece apenas que fiz um monte de comida e achei uma pena jogar fora. Só isso.  Está falando do jantarzinho caseiro que preparou com tanto amor? Para o seu bem, espero que seja só isso mesmo. Mas, caso comece a fantasiar, é bom saber que já preveni Curt contra você. Com muito tato, claro. Insinuei que, se não for cuidadoso e lhe der muita trela, você pode criar uma fixação paterna por ele. Garanto que não gostou nem um pouquinho da idéia.  Há mais alguma coisa que você tenha dito ou insinuado e que eu deva saber?  Não. Acho que foi tudo. E não olhe para mim desse jeito, queridinha. No meu lugar, você teria feito o mesmo. — Teria? — Rose disse, com ironia. — Teria, sim, se significasse tanto para você quanto significa para mim. Acha que tenho gostado da vida que estamos levando, desde que Victor morreu? Não quero mais viver assim. E farei tudo... tudo, entendeu, para me certificar de que não preciso mais passar por tudo aquilo. — Oh, entendo. Só queria não ter sido envolvida.

 Como se eu tivesse escolha! Como se você tivesse escolha! Para esse novo Curt, todo cheio de bons propósitos e defensor dos fracos e desamparados, você e Sybila são exatamente iguais: duas infelizes que não têm onde cair mortas. Antigamente, ele não gostava de responsabilidade. Não ligava a mínima para o que a família queria ou deixava de querer. Haja vista, o curso de arte que resolveu fazer. Metade dos antepassados deve ter se virado nos túmulos. Era isso que o tornava tão atraente para mim.  Era o que importava para você? O fato de ele não ser um típico Maitland?  É lógico que não! Você não pode ser tão ingênua. O que estou dizendo é que ele era cheio de imaginação, impetuoso e atrevido. Muito... satisfatório, mesmo, para qualquer mulher. — Seu tom de voz e o brilho nos olhos não deixavam dúvida sobre o significado das palavras. Só espero que as mudanças que notei nele não tenham sido... bem, mio tenham sido muito radicais. — Provavelmente não foram. Rose não sabia mais o que dizer. Não estava gostando nada do rumo que a conversa tomara. — Ora, não me venha com esse ar puritano. Não estou falando de nada que uma garota de sua idade não saiba. Está levando muito ã sério o papel de adolescente boboca. Basta apenas não esquecer que, para Curt, você é uma menina problemática que sente falta de um pai. Assim, não terá limita dificuldade para manter distância dele.  Se é o que você quer... Estou surpresa por não ter dado força à idéia de me mandar de volta para a escola. Ou ainda não ficou nada decidido sobre isso?  Mas não quero que você vá, queridinha. É suficiente que fique no seu lugar e não alimente nenhuma idéia tola sobre ele. Depois, como é que eu ia me arranjar, sem você?  Não faço a menor idéia. Mas talvez fosse interessante descobrir. Antônia, vamos mandar para o inferno a herança. Afinal, nenhuma de nós vai passar fome. Você teria Curt e eu... eu me arranjaria, de um jeito ou de outro. Estou certa de que você poderia inventar uma de suas histórias para explicar meu desaparecimento.  Não! Você prometeu ficar comigo e me ajudar. Não pode me deixar. Não pode! — Começou a chorar de desespero. — Você não pode me deixar, Rose, não pode! E não podia mesmo. No fundo, achava que devia isso ao pai: cuidar de Antônia, como ele queria. Olhou para a madrasta, com pena e resignação. A outra estava descontrolada.  Não vou conseguir me arranjar sem você. Curt está planejando festas, jantares, e espera que eu colabore. Não posso, Rose. Nem mesmo com a ajuda de pessoal especializado. Tentei contar isso a ele, juro que tentei. Mas mudou de assunto. Começou a falar do nosso acordo. Se eu não conseguir realizar esse trabalho, vai fazer com que pague de outro jeito. Os Maitland podem ser terrivelmente frios, quando se trata de dinheiro e de negócios.  Mesmo com os próprios parentes? Mas não se preocupe, Antônia. Vou ficar aqui o tempo que for preciso.  Deus te abençoe, minha querida. Reconheço que não tenho me esforçado muito, até agora. Mas vou tentar. Prometo. Quando Rose se virou para responder, Antônia não estava mais lá. Talvez tivesse ido retocar a maquilagem estragada pelas lágrimas. Não acreditava em uma palavra do que a madrasta tinha dito. Ela jamais conseguiria trocar os robes de seda pelo avental e o pano de prato. Suspirou. O bom senso repetia sem parar que deixasse de ser louca e fugisse dali. Mas o coração dizia para ficar. Senão ia haver dor, ciúme, desespero. Se partisse, seria como morrer um pouco. Passaria o resto da vida se perguntando como teria sido, se tivesse ficado. Achava que a única maneira de não se sentir presa ao passado e seguir seu caminho sem olhar para trás era enfrentar a situação. Por mais que doesse, precisava ver Curt apaixonado por Antônia,

abraçando-a, beijando-a, talvez até casando com ela. Depois, não seria por muito tempo. Apenas um verão. Um verão de sofrimento, que poderia salvar uma vida inteira de angústia e remorso. A cozinha estava quente e abafada. Rose saiu para o jardim, respirando fundo e sentindo-se melhor por ter tomado uma decisão consciente, em vez de ceder apenas às chantagens de Antônia. Seguiu pelo caminho ao lado da casa, que ainda não conhecia. Ali, a vegetação era mais selvagem, com muitos arbustos onde os pássaros cantavam. Havia um portão de ferro. Foi difícil abri-lo porque as dobradiças estavam enferrujadas pela falta de uso. Finalmente, depois de muito esforço, ele acabou cedendo, com um gemido. A voz de Curt, atrás dela, fez com que tivesse um sobressalto: — Você tem memória bem curta, hein, menina? Rose agarrou-se ao portão, tentando colocar uma barreira entre os dois, mas ele a segurou.  Pensei que tínhamos combinado que não haveria passeios sem roupa adequada e sem acompanhante.  Eu... eu não ia me afastar muito. Precisava dar um passeio, respirar ar puro, fazer um pouco de exercício. — Olhou-o, desafiadora. — Acho que não é contra o regulamento, é?  Não seja atrevida, menina. Vou ficar aborrecido de verdade, se tiver que repetir minhas ordens. Se quiser andar por esses atalhos, vista uma roupa mais conveniente. Melhor ainda: fale comigo, que vou com você.  Não acho que seja necessário. Posso ser a chata que Antônia diz, mas não preciso de guarda.  Não é esse o problema. Enquanto estiver sob o meu teto, siga minhas instruções ao pé da letra. Será que deixei isso bem claro, agora? — Claríssimo. E é evidente que não tenho outra alternativa.  Exatamente. Mas, se é só de exercício que precisa, então pode me dar uma mãozinha com a jardinagem.  Não tem medo que eu me suje toda de terra e fique subindo nas árvores? — Mordeu o lábio ao perceber a expressão aborrecida dele. — Desculpe, foi uma piada de mau gosto. Não estou acostumada a obedecer ordens.  Isso é mais do que óbvio. E explica muita coisa, também. Bem, vai me ajudar ou não?  Não entendo muito de jardinagem — respondeu, com o coração aos saltos. — Mas imagino que saiba, pelo menos, a diferença entre uma urtiga e um dente-de-leão, quando vê, não é? — Ah, é só isso? Então, tudo bem. Mas não tinha tanta certeza, pensando na provável reação de Antônia.  O seu entusiasmo me contagia. Olhe, Rose, essa pode não ser uma situação ideal, mas as coisas ficarão bem mais fáceis se houver um clima de cooperação entre nós.  O que significa que, na sua opinião, não tenho cooperado muito, até agora — disse, em voz baixa e amargurada. Sem dúvida, Antônia tinha feito muito bem seu trabalho.  Tire as conclusões que quiser. Estou decidido a virar a página e apagar o passado. É o futuro que me preocupa e me diz respeito. Antônia não vai conseguir se sair bem no serviço aqui, se ficar o tempo todo preocupada com seu comportamento. Você entende, não é?  Entendo. É melhor me mostrar logo de uma vez o que você quer que eu faça no jardim. Ele lhe mostrou os canteiros e Rose notou que tinha estado trabalhando lá.  Não quer proteger as mãos? Tenho luvas.  Não acho importante. Ele olhou para as mãos dela e sacudiu a cabeça. — Roer as unhas é outro hábito que precisa abandonar.

— Quer parar de me criticar? Por hoje, pelo menos, já chega, está bem? Ele lhe deu um sorrisinho de simpatia e não fez mais nenhum comentário. , Trabalharam em silêncio por um bom tempo. Curt preparava as covas e Rose, de joelhos, ia colocando as mudas de tanaceto e dente-de-leão. Depois de algum tempo, ele tirou a camiseta, pendurando-a num arbusto ao lado. Sua pele era mais bronzeada e o físico mais musculoso do que Rose tinha notado no dia em que o vira saindo do chuveiro. Aquela lembrança fez com que corasse. Que tolice! Não havia nada demais nem no incidente do banheiro nem no fato de estarem agora ali. Não era nenhuma puritana. Então, por que se sentia toda confusa e agitada? Tinha que evitar a todo custo que ele percebesse. Não queria acrescentar a precocidade sexual à lista de rótulos que Antônia tinha arranjado para ela. Podia ser bobagem, mas queria partir do Ninho dos Corvos, no fim do verão, com a certeza de que Curt ficava com uma boa impressão dela. Isso era terrivelmente importante. Distraída, Rose pegou um punhado de sementes e, ao fazer isso, roçou o braço em folhas de urtiga. Ardeu como fogo. Deu um grito e sentou-se esfregando o pulso.  O que foi? — Curt aproximou-se e pegou sua mão. — Fique calma, você vai sobreviver. Tem que prestar mais atenção no que faz.  Não perde a chance de me passar um sermão, não é? Eu não tinha visto, até que foi tarde demais. — Cuidado para isso não se transformar na história da sua vida, Rose. - Soltou-a e levantou-se. Mesmo sabendo que era uma infantilidade, ela tentou se defender atacando: — É um absurdo deixar o jardim nesse estado.  E o que você sugere? Que eu mande Sybila até aqui, com a enxada na mão?  É lógico que não. Mas podia ter contratado um jardineiro. Não me diga que ela cuidava sozinha da casa toda, antes de ficar com artrite.  Não. Tínhamos alguns criados. Mas se pensa que vou contratar mais gente para dar boa vida a você e Antônia, está muito enganada. Quanto ao jardim, o último jardineiro não fez nada para merecer o salário. Além do mais, gosto de tratar das plantas eu mesmo.  Mas por quanto tempo? Um jardim não é feito um brinquedo que a gente pega e larga quando quer. — E quem falou que pretendo fazer isso?  Claro que não — ela disse, sarcástica. — As pessoas que quiserem ser retratadas pelo famoso artista virão até aqui, de tão ansiosas que estão de serem pintadas pelo gênio.  Meu entusiasmo pela pintura já não é o mesmo de antigamente. Duvido que aceite mais encomendas. Pelo menos, não do tipo das últimas que aceitei. — Por que não? Você é famoso, é um tremendo sucesso. — Talvez tenha resolvido me tornar um jardineiro famoso. Rose puxou o cabelo para trás e o encarou.  Não acredito numa palavra do que diz. Não acredito que pretenda se enterrar aqui pelo resto da vida.  E assim que você encara o Ninho dos Corvos? Como um lugar onde uma pessoa vem se enterrar? Ela ficou sem jeito.  Não. Estou falando isso do ponto de vista de uma pessoa como você.  E que diabo sabe uma criança de sua idade sobre o ponto de vista de alguém como eu?

O olhar prateado de Curt estava gelado e Rose estremeceu, quando seus olhos se encontraram. — Sinto muito. Talvez eu tenha sido um tanto presunçosa, mas... — Não há talvez. Agora, respondendo à sua pergunta impertinente, pretendo ficar aqui até que alguém me prove que há um bom motivo para sair. Este é o meu lar, lembra? — Não parece. Até hoje, você mal apareceu por aqui. — É exatamente isso que estou querendo remediar. Sinto, se minha decisão atrapalha os seus planos. — Não tenho planos. — Essa é outra coisa que também quero remediar. Não concordo inteiramente com a teoria de Antônia de que você está presa ao passado e sem interesse pelo futuro. Parece apenas uma desculpa para não fazer nada.  E qual é a sua desculpa? — perguntou, com frieza.  Para quê? — Para não fazer nada. Acabou de dizer que vai desistir da sua carreira. — Não é verdade. A pintura nunca foi minha única atividade. Não sei o que a levou a pensar isso. — É lógico que não. Você também é um homem de negócios. — Do jeito como falou, parece até uma coisa indigna. Mas eu entendo. Durante muitos anos, eu me senti do mesmo jeito a respeito. — Não se sente mais? — Vamos dizer que, agora, sou indiferente. Houve muitas pressões para que eu fizesse algo mais do que apenas ocupar um cargo na direção das empresas da família. Talvez tenha chegado a hora de me curvar a essas pressões. Antigamente, pensava que isso seria um sacrifício. Não queria ser responsável por coisa alguma, além de mim mesmo. — E o que sente agora? — Não estou muito certo. Só sei que ando decepcionado com minha carreira de pintor. Essa história de retratos... Meu último cliente era um sujeito cheio de dinheiro e sem um mínimo de sensibilidade ou cultura. Tudo que queria era um retrato da mulher. O artista não importava, desde que fosse o mais caro. Eu já estava no meio do trabalho, quando percebi que grande farsa era aquela. E não foi a primeira vez. Sempre pintei porque gostava e não porque precisava. Mas, ultimamente, o prazer diminuía mais e mais. Marcela foi o ponto final. — Ela era bonita? — Na superfície, sim. Muito. Mas por trás do invólucro havia uma alma mesquinha. — Você terminou o retrato? — Oh, sim. Todos acharam que a semelhança era impressionante. Mas não passava de um quadro tecnicamente bem feito e frio. No fundo, foi uma boa experiência: me ajudou a tomar certas decisões em que vinha pensando há muito tempo. — Mas você não pretende abandonar a pintura de vez, não é? — Vou pintar para meu próprio prazer. Vivendo aqui, isso não será difícil. — Certamente, vai querer pintar Antônia. — Não sabia que Antônia queria ser pintada. Mas não creio que ela possa pagar o meu preço. Ele estava se fazendo de desentendido de propósito. Evidente que ia querer fazer o retrato da mulher com quem se casaria. Rose podia até visualizar o lugar onde o quadro ficaria, na enorme sala. Depois, lembrou-se de que a madrasta estava firmemente resolvida a convencê-lo a mudar dali.

 Parece que você está perdendo a briga com essas sementes — Curt disse, olhando as mãos dela cobertas de terra. — É melhor ir fazer um café para nós. Pode deixar que eu me arranjo sozinho por aqui. Quando voltar, tentaremos descobrir quais são os seus interesses na vida. Se é que existem.  Não há nada para discutir. Deixei a escola e não consegui trabalho. Há milhares como eu.  Não me convence. Pelo que soube, você não tentou conseguir trabalho. E não me parece que seja assim tão desprovida de talento. — Muito obrigada, caro senhor. — Seu tom era amargo. — Ironias não ajudam, amor. Você por acaso pretende viver às custas de Antônia pelo resto da vida? A injustiça daquela pergunta fez com que ela hesitasse por um momento. — Vou embora... — disse, numa voz irreconhecível. — Para onde? Não estou tentando me ver livre de você, Rose. A única coisa que quero é que saiba que tem um futuro pela frente e que precisa pensar nele. Se precisar de liberdade, ajuda, conselhos, basta nos pedir. — Não banque o meu tutor. Não você, que nunca aceitou que alguém lhe dissesse ó que devia fazer com sua vida. Não acha que é muito tarde para descobrir o senso de responsabilidade? Houve um pesado silêncio. — Você tem uma língua afiada, menina, e um temperamento que combina com ela. É feito uma vespa. No verão, as vespas passam a maior parte do tempo voando e são absolutamente inúteis. Geralmente, têm um triste fim, como vai descobrir, se tiver o atrevimento de especular sobre a minha vida particular e fazer julgamentos morais. Meus parentes ou qualquer outra pessoa das minhas relações não são de sua conta. É melhor se lembrar bem disso. —Sim, senhor. —- Jogou a cabeça para trás, em desafio. — Há mais alguma coisa?  Não me provoque. Pelo seu bem, não se meta em coisas que não pode entender e fique fora do meu alcance.  Eu gostaria de poder fazer isso... para sempre. — Sentiu que engasgava com as lágrimas.  Infelizmente para nós dois, ainda não tem idade para tomar esse tipo de decisão. — Curt parecia exausto de repente. — Enquanto esse dia feliz não chega, trate da sua vidinha e não faça nada de útil, se é o que deseja. Era um bom conselho. Embora, em parte, impraticável. Seria bem melhor mesmo ficar fora do alcance daquele homem. E mais seguro. Pelo menos, não teria nenhuma ilusão de reviver aqueles poucos minutos de companheirismo que acabavam de partilhar. Enquanto trabalhavam, ele havia até esquecido que ela só tinha dezesseis anos. Falou como se fosse uma mulher. Ainda bem que não tinha durado. Qualquer tipo de relacionamento mais íntimo com Curt seria muito perigoso. Rose achava cada vez mais difícil desempenhar o papel que Antônia lhe destinara. Principalmente porque, no princípio, pensava que seria apenas por algumas semanas. Mas as semanas se transformaram em meses. Não sabia se conseguiria passar tanto tempo fingindo ser uma criança birrenta, enquanto a madrasta roubava tudo o que mais queria na vida, bem debaixo de seu nariz. O nó que sentia na garganta ia crescendo. Olhava para Curt, desamparada, mas ele parecia ter se esquecido de sua existência. Muito concentrado, abria covas na terra escura. Dava para perceber, pelos músculos, que era um homem acostumado com exercícios físicos. Trabalhando no jardim, nadando nas Bahamas, fazendo amor...

Curt virou-se de repente e seus olhos se encontraram, antes que ela pudesse disfarçar o desejo. Sentiu um calor estranho pelo corpo. Ele aproximou-se... ou talvez tivesse sido ela. Não saberia dizer. Estava hipnotizada por aquele peito forte e queimado de sol. Sentiu a mão de Curt em seu cabelo e estremeceu, levantando o rosto, ansiosa por aquele beijo. Estava se oferecendo, mas não importava. Não conseguia nem pensar direito. Mas o beijo não foi nada do que esperava. Foi cruel, como uma punição, um castigo. Rose agarrou-se a ele, transtornada pela emoção selvagem e nova que a paixão violenta daqueles lábios despertava nela. Sentiu medo, sim. Não era a princesinha dos contos de fadas. Nem ele era o príncipe encantado. Estava à mercê de um dragão. Havia perigo. Mas também havia excitação e fascínio. Desde o momento em que o vira pela primeira vez, na sala de seu apartamento, tinha sido dominada por uma estranha compulsão, e não estava preparada para resistir à envolvente sensualidade daquele homem. Mesmo assim, mesmo sabendo os riscos que corria, sentia-se feliz por ser o primeiro a fazê-la vibrar como mulher. Tudo terminou tão de repente como havia começado. Curt afastou-a, violentamente, e ela quase caiu. Ele nem sequer tentou ajudá-la a se equilibrar nas pernas trêmulas. Seu rosto estava tenso. E, quando falou, foi com inesperada frieza. — Se espera que eu me desculpe, Rose, vai esperar para sempre. Quando mandei você fazer o que bem entendesse, não estava pensando nesse tipo de brincadeira perigosa. -— Sorriu. — Mas você tem um talento inato para criar problemas, não é? Não vou perguntar onde aprendeu. Não quero saber. Mas tome cuidado comigo: não vai me apanhar desprevenido novamente. — Curt, não sou tão criança como... Precisava esclarecer o mal-entendido, mas ele não deixou. — Meu Deus! O que andam ensinando nas escolas, hoje em dia? Há muitos anos-luz entre nós, minha bonequinha. Não se esqueça disso, pois eu não vou esquecer. Agora, saia desse jardim, Eva, pois já suportei todas as tentações a que tinha direito. E pensar que nosso encontro no chuveiro foi casual! — Foi, sim. Fui eu, juro! Oh, Curt, por favor, ouça... — Já ouvi mais do que o suficiente. Saia daqui, se sabe o que é bom para você. E fique longe de mim. Rose tentou salvar, pelo menos, o que restava de seu amor-próprio.  Não se preocupe, vou ficar. Ou será que está pensando que tenho alguma vontade de repetir a ceninha nojenta de ainda há pouco?  Não há perigo. Nem razão para bancar a virgem ofendida. Se eu não tivesse parado, estaríamos fazendo bem mais do que apenas nos beijar, e sabe disso. — Você é um selvagem! — Sou um homem. Mas você está longe de ser uma mulher. Portanto, poupe-me de seus impulsos sexuais, de agora em diante. Não tenho a menor intenção de satisfazer esse tipo de curiosidade de uma adolescente maluquinha. Aquelas palavras feriram fundo. Instintivamente, Rose revidou, esbofeteando-o no rosto. Ele não fez nada para se defender, pois não esperava tal reação. Horrorizada, ela viu a marca de seus dedos na pele bronzeada. Abafando um grito de medo, saiu correndo. Mas sabia que era inútil e tarde demais para fugir.

CAPÍTULO V

A salvo em seu quarto, Rose tentou se recuperar daquela tempestade de emoções. Curt tinha sido amargo ao falar de tentações e de ser apanhado desprevenido. No entanto, ela é que havia fracassado. Gostaria de saber qual seria a reação dele, se lhe contasse quais eram seus verdadeiros sentimentos. Pelo menos, tinham terminado suas fantasias, seus sonhos tolos. Não podia esperar mais nada agora, concluiu, enterrando o rosto no travesseiro. Do jeito como as coisas estavam, talvez sua vida ali até melhorasse, pois passariam a se evitar. Não haveria mais motivo para procurá-la oferecendo ajuda e conselhos. Teriam poucas chances de sé encontrar e, menos ainda, de ficar a sós. Rose rolou na cama, olhando para o teto. Ao mesmo tempo em que tentava descobrir alguma coisa positiva naquela situação, só conseguia ver as desvantagens. Seria muito mais difícil a convivência agora, com Curt morando lá permanentemente e enfrentando uma crise. Se ao menos não estivesse tão decepcionado com sua pintura... Mesmo Antônia teria problemas para continuar fingindo ser uma governanta eficiente... Ouviu passos se aproximando. Ainda bem que tinha trancado a porta. — Rose, você está aí? E o almoço? — Não estou com fome, obrigada. Estou morrendo de dor de cabeça. Sabia que a madrasta não estava interessada em seu apetite. Mas nada iria levá-la para a cozinha. Havia pão, queijo e comida congelada. A outra que improvisasse alguma coisa.  Dor de cabeça? Mas você não costuma...  Estou com uma terrível, hoje. — Não é nada sério, é? Você vai descer mais tarde, não vai? Pelo amor de Deus, não posso dar conta de tudo sozinha. — Vocês não vão jantar fora novamente? — Não sei. Curt entrou para tomar café de péssimo humor. Não entendo. Se ele detesta jardinagem, por que não contrata alguém para fazer isso? Rose ficou imaginando se a marca no rosto dele teria desaparecido. — Está bem. Daqui a pouco eu desço para providenciar o jantar. Assim que melhorar. — Deus te abençoe, queridinha! — Aliviada, Antônia afastou-se. Rose sentiu-se gelada e doente, só de pensar que teria que enfrentar Curt novamente. Seu único consolo era saber que ele estava tão interessado como ela em esconder o que havia acontecido entre os dois. Tudo que podia fazer agora era tentar salvar as aparências e o resto de dignidade que lhe restava, agindo com toda a naturalidade possível. Se Antônia desconfiasse de alguma coisa, aí é que sua vida ia se tornar um inferno completo. Não era a criança que Curt imaginava, mas também não se sentia suficientemente madura para enfrentar aquela crise como gostaria. Tinha agido levada pelas emoções e não sabia se teria a frieza necessária para levar adiante aquela comédia. Não era de seu temperamento fingir. No entanto, as circunstâncias a obrigavam a interpretar vários papéis. Agora, nem mesmo com a madrasta podia falar abertamente. Levantou-se e foi até o espelho para estudar sua aparência, Se não havia marcas no rosto de Curt, não podia dizer o mesmo de si mesma. Era a própria imagem da culpa. Cada linha do rosto era uma evidência que poderia incriminá-la. Seus olhos estavam inchados das lágrimas, e a boca, ainda avermelhada do beijo violento. Examinou os braços. Felizmente, Curt não a segurara com força bastante para deixar marcas.

Por ironia, sua mentira começava a se tornar verdade: estava sentindo uma terrível dor de cabeça. Foi até o banheiro, tomou algumas aspirinas, despiu-se e tornou a deitar. Ao tirar a blusa, sentiu no tecido o cheiro da colônia de Curt. Era tudo tão recente. Deitada, tentou sem muito sucesso todas as técnicas de relaxamento que tinha aprendido num rápido curso de meditação que fizera no colégio, uma eternidade de tempo atrás. Como gostaria de ser aquela Rose Winslow novamente. Aquela que só se preocupava com a prova de amanhã e a pesquisa de depois de amanhã. Tinha sido uma boa estudante. Mas aquela Rose não existia mais. Sonhara em ser uma assistente social. Agora, essa idéia parecia até engraçada. Como é que poderia ajudar a vida de outras pessoas, se não conseguia dirigir nem a própria? Apesar da confusão mental em que se encontrava, foi relaxando aos poucos. Sonhou que estava no jardim, nos braços de Curt. E os lábios dele em sua boca eram delicados como pétalas de flores. Acordou com lágrimas nos olhos. Estava calma e sem traços de amargura quando foi para a cozinha, providenciar o jantar. Antônia já tinha descongelado algumas costeletas para fazê-las com batatas fritas. Mas Rose achou melhor fazer à provençal, com cebolas, alho e tomate. Preparou também um pudim como sobremesa. A comida estava no forno, cheirando maravilhosamente, quando Curt apareceu.  Cadê sua madrasta?  Acho que está se trocando para o jantar.  Coisa que não lhe ocorreu fazer também, não é? Pensou em responder que o jeans e a camiseta que usava não eram os mesmos daquela manhã, no jardim, mas mordeu a língua.  Você quer alguma coisa com Antônia?  Não. Só avisar que uns amigos vêm tomar uns drinques, depois do jantar. Os Lister. Fale com ela. O estoque de bebidas está em ordem?  Tem o bastante. Curt sacudiu a cabeça e foi embora. Antônia não ficou muito feliz com a novidade.  Quem são os Lister? Com toda a certeza, uns vizinhos caipiras. Que chateação!  Rose resmungou:  Curt só falou que eram amigos. Não é melhor eu separar alguns copos e cálices? — Sim, ótimo. São um casal casado? — Não faço a menor idéia. É capaz. Por que você não pergunta a ele? — Porque não quero que pense que estou me intrometendo. Ainda não sou a dona da casa, lembra? Antônia acariciou o queixo dela e sua mão cheirava a perfume francês, listava muito bonita, num vestido de jérsei âmbar drapeado. Rose observou o cabelo e as unhas da madrasta. Impecáveis. Pensou em sua própria aparência, no cabelo dividido ao meio e preso com um elástico, nas unhas roídas até o sabugo. Apesar do comentário maldoso de Curt, decidiu que não iria se trocar. Se parecia relaxada e rebelde, essa era a imagem que ele tinha dela, de qualquer maneira. Além do mais, mesmo que ficasse uma hora se arrumando, nunca poderia competir com Antônia. Os Lister chegaram a tempo do café, que Rose preparou e a madrasta serviu, cheia de floreios. Eram casados e mais velhos do que Curt, pois disseram que tinham filhos adultos: uma moça de vinte anos, que trabalhava em Paris, e um rapaz, David, um ano mais moço do que Rose.

Grace Lister usava um cáftan em tons de marrom e ouro e uma profusão de anéis de pedras preciosas nas mãos bem cuidadas. Os dois estavam longe de ser os caipiras que Antônia tinha pensado. Eram donos de uma cerâmica e uma loja de presentes na cidade e tinham uma conversa animada e interessante. Ficou claro que eram velhos amigos de Curt. Também ficou claro que pareciam saber tudo sobre Antônia e que consideravam Rose apenas uma criança que não devia-se intrometer em conversa de adultos. Depois que Curt a apresentou, fizeram-lhe algumas perguntas sobre o que estava achando do novo lar e coisas assim, e foi deixada de lado. Sentindo-se desprezada, Rose pegou o copo de suco de frutas que Curt lhe deu e foi sentar-se perto da janela, deixando Antônia desempenhar — e muito bem, por sinal — o papel de anfitriã. Depois de se certificar de que as visitas sabiam que eram primos, Antônia fez o possível para dar a impressão de que havia algo mais entre Cia e Curt, chegando mesmo a comentar os planos que tinha para a casa e o jardim. Rose observava Curt e achou que ele se divertia com os esforços de Antônia. Depois da primeira rodada de drinques, Rose foi buscar mais gelo. Ao voltar da cozinha, ouviu que Grace se queixava da falta de empregados na loja, porque uma de suas vendedoras estava grávida e tinha se demitido.  E David? — Curt perguntou. Grace levantou as mãos, horrorizada.  Pior do que inútil, querido. Nunca sabe o preço de nada e quebra mais do que vende. Além disso, trabalho parece ser um palavrão para ele. Principalmente, em se tratando dos negócios da família. Os olhos de Curt encontraram os de Rose, e ela soube, imediatamente, o que viria a seguir. — Aqui está outra que pensa igualzinho a David — ele disse. — Oh, não posso acreditar. — Clive Lister sorriu para ela, com simpatia. Foi então que a idéia lhe ocorreu. Falou calmamente: — Não entendo nada a respeito de cerâmica, sra. Lister, mas, se precisa de uma vendedora, gostaria de aprender. Pode me dar esse emprego? — Minha querida criança, eu realmente não quis dar a entender...  Mas eu quis. Preciso de trabalho e não deve haver muitas outras oportunidades por aqui. Gostaria que me considerasse, desde já, como parte de seu pessoal.  Bem, a decisão não é só minha. — Virou-se para Antônia. — O que acha de sua enteada trabalhar na loja, sra. Winslow?  Na verdade, isso não tem muito a ver comigo. Rose sempre fez o que quis. — A resposta foi calma, mas Rose sabia que ela estava fervendo de raiva. Grace estudou Rose por um momento. Finalmente disse:  Ora, por que não? Vou fazer o seguinte: dou a você uma semana como experiência. O ambiente é muito bom. Vamos ver como nos damos e se gosta do trabalho.  Posso começar amanhã? A que horas a senhora quer que eu esteja lá?  Digamos... por volta de nove e meia. Não se preocupe com roupa. Minhas vendedoras usam aventais. São muito bonitinhos. Devo ter algum que sirva em você.  Bem, que bom que está tudo arranjado. Posso servir-lhes mais um drinque? — Antônia perguntou, com falsa animação. Rose escovava o cabelo, quando a madrasta entrou em seu quarto, sem cerimônia.  Que brincadeira é essa? Seu trabalho é aqui, comigo. E não vendendo lembranças para turistas numa lojinha qualquer!

 Então, talvez seja melhor explicar isso a Curt. Ele deu a impressão de achar que sou alérgica a trabalho.  Se você pensa que, bajulando os amigos dele, vai ganhar pontos com Curt, está muito enganada.  Há momentos, Antônia, em que você se torna terrivelmente vulgar. Agora, se não se importa, quero dormir.  Sinto muito, não quis ser agressiva. Mas... o que vou fazer sem você? Está cansada de saber que não consigo dar conta de tudo sozinha. Ainda mais, com Curt por perto, fiscalizando. Como é que vou cozinhar e lazer a limpeza?  Já pensei nisso. Nas minhas horas livres, preparo a comida e deixo no freezer. Você só terá o trabalho de esquentar. Isso você pode fazer, não é?  Mas não precisava se oferecer para o tal emprego. Deve ser muito cansativo. E tenho certeza de que ela vai pagar um salário de fome. Essas lojas sempre pagam mal.  Não faz mal. Acho que será um trabalho interessante. Eu aceitaria, mesmo que não recebesse nada. — Não entendo você! Se tiver que explicar para Curt...  Não. Chega de explicações. Já tivemos o suficiente. Depois, a sra. Lister pode achar que não sirvo para o emprego.  Isso é muito pouco provável. Ela disse que é impossível achar vendedoras por aqui. Você caiu do céu. Fazia frio no dia seguinte. Rose vestiu uma saia pesada com um suéter de gola alta e escolheu os sapatos mais confortáveis que tinha. Encontrou Curt tomando café na cozinha e lendo jornal. Levantou a cabeça, quando ela entrou. — A intrépida voluntária. Pelo menos, está vestida de acordo com o papel. Parece que vai para a guerra. — Vou trabalhar de avental, de qualquer forma. — Acha que agüenta? São muitas horas de trabalho e a loja está sempre cheia, na estação. — Vamos ver.  É exatamente isso que me preocupa. Grace é minha amiga e não quero que você a deixe na mão, no momento em que mais precisa de ajuda. Seria melhor telefonar agora e dizer que mudou de idéia.  Mas não mudei. Nem vou mudar. Pretendo fazer o melhor que puder.  Bem, então corra. Não quer causar uma má impressão, chegando atrasada no primeiro dia, não é? Enquanto Rose vestia o casaco, ele comentou: — Ah, outra coisa. Não esqueça que os Lister são meus amigos. Quando se sentir tentada a bancar a ninfeta, escolha David como vítima, e não Clive. Não é pedir muito, é? — Meu Deus! Como você é sujo! — Palavras pesadas, benzinho. Mas, guarde bem isso: uma queixa de Grace e vou lhe dar a maior lição de sua vida. Aquela conversa deixou Rose sem um pingo de vontade de trabalhar na loja, mas Grace a esperava às nove e meia e não ia faltar com sua palavra. Fez o caminho até a cidade quase correndo. A cerâmica ficava em dois sobrados conjugados. A oficina e o depósito ocupavam o andar térreo. Os Lister moravam em cima. Grace devia estar muito ansiosa, pois abriu a porta antes mesmo de Rose tocar.

— Você chegou cedo. E um bom começo — disse, com um sorriso de alívio. Rose desconfiou de que a outra não estava muito certa de que ela realmente iria trabalhar. Com certeza, depois que havia subido para o quarto, na véspera, Antônia e Curt tinham feito comentários sobre sua irresponsabilidade. Sentiu-se ferver de raiva, só de imaginar o tipo de coisas que deviam ter dito. Mas não ia deixar que aquilo atrapalhasse seu primeiro dia. Agora, mais do que nunca, queria acertar no trabalho. Eles iam ter que engolir as críticas. Grace mostrou-lhe onde as mercadorias ficavam estocadas, levou-a à loja e deu-lhe a lista de preços. Os Lister não eram apenas ceramistas tecnicamente competentes; faziam peças criativas e de muito bom gosto. Rose adorou os objetos vitrificados e as formas rústicas dos utensílios de cozinha. — É uma pena colocar este cartaz, pedindo aos fregueses para não tocarem na mercadoria. Algumas dessas peças são irresistíveis. Dá vontade mesmo de pegar. Grace ficou encantada. — Você sente isso? Que bom! Acho que uma peça bem-feita tem que dar essa sensação em quem a vê. Depois, vou lhe mostrar como é que trabalhamos. Mesmo não tendo experiência, você não deve ter grandes problemas na loja. A menos que cheguem dois ou mais fregueses ao mesmo tempo. Nesse caso, basta pedir ajuda a Clive ou a mim. — Há muitos fregueses no verão? — Bastante. Mas não vendemos só para turistas. Também fornecemos para lojas de Keswick e Windermere. — Fez uma pausa e encarou Rose, ansiosa. — Então, Rose, acha que pode dar conta? Você é a vendedora mais jovem que já tivemos. Lynne, que saiu para ter nenê, também era mocinha, mas já tem quase vinte anos.  Estou acostumada a ter responsabilidades, sra. Lister. Desde que meu pai morreu.  Pobrezinha! Que adolescência triste! Bom, mas a vida é assim mesmo, a gente tem que seguir em frente da melhor maneira. Vamos, quero lhe mostrar onde guardo os aventais e onde fica o café. Aliás, o café não é trabalho de ninguém em particular. Quem estiver menos ocupado faz. Os aventais eram realmente muito graciosos: azul-escuros com pequenas flores coloridas. Rose deu um giro pela loja, examinando os potes e jarros, tentando sé familiarizar com os preços, para o caso de ter que atender uma enxurrada de turistas. Não era provável, pois ainda estava cedo e começara a chover forte. Foi até a oficina e Clive lhe deu as boas-vindas como se a considerasse uma velha amiga. Estava trabalhando no torno, protegido por um avental de couro. Rose já tinha arrumado e tirado o pó das prateleiras. Conversou rapidamente com ele e voltou para a loja. Agora, só preciso de um freguês, pensou, sentando-se diante da caixa registradora: No entanto, quando a campainha da porta tilintou, foi apanhada de surpresa e sorriu, desajeitada, para o recém-chegado. Era alto, de cabelos e olhos castanhos. — Oi, onde está nossa Lynne, a grávida mais charmosa da Inglaterra?  Se é amigo dela, posso perguntar para a sra. Lister — Rose disse, descendo do banquinho.  Esqueça. E só curiosidade minha. Sou David Lister, a ovelha negra da família. Deixe minha mãe pra lá: ela pensa que estou enfiado nos livros, estudando para os malditos exames. Se bem que algo me diz que não dá para recuperar dois anos de vagabundagem em seis semanas de estudo.

— Acho que não dá, mesmo. Sou Rose Winslow, a nova vendedora. Ele fez uma reverência gaiata. — Se me permite dizer, linda donzela, estou encantado com a mudança. Espero que não seja casada nem esteja grávida — acrescentou, tingindo desespero. Rose riu. — Nem uma coisa nem outra. — Então, hoje é o meu dia de sorte. — Jogou para cima a sacola que estava carregando, passando rente da vitrine.  Pelo amor de Deus, cuidado! Você vai derrubar alguma coisa.  Falou igualzinho à nossa querida Lynne. Nesse momento, Grace apareceu na porta dos fundos.  Oh, Deus! Não é de estranhar que esteja chovendo. Rose, esse é meu filho David, cuja companhia não recomendo. Ouvi você gritar. Imagino que ele já esteja fazendo a bagunça de costume.  Mamãe, isso é coisa que se diga de um filho adorado? — Passou o braço pelos ombros dela*e deu-lhe um beijo estalado no rosto. — O almoço está pronto? Escalar a montanha dá uma fome danada, sabia?  Não me diga que passou fome na casa dos Mason. O almoço sairá dentro de uma hora. Se não puder esperar, vá fazer um sanduíche e pare de amolar nossa nova funcionária. Não quero que Rose desista, antes mesmo de começar.  Nem eu. — Sua expressão era de zombaria. — A propósito, onde foi que a encontrou, se não é segredo?  Segredo nenhum. Ela é uma parente distante de Curt Maitland. Está passando o verão na casa dele e precisava de um emprego.  Ora, então Curt está de volta? — Seu tom não era dos mais amigáveis e Grace lançou-lhe um olhar de reprovação. — Muito bem, vou fazer um sanduíche e tomar um banho. — Sorriu para Rose. — Vejo você mais tarde... espero. Finalmente, estão acontecendo novidades por aqui. Quando ele saiu, Grace virou-se para Rose.  Desculpe o atrevimento do meu Casanova. Não hesite em colocá-lo no lugar, se sair da linha. Não há muita gente jovem nas vizinhanças e David é um animal social. Por isso o deixei ir fazer essa escalada com os amigos. Devia estar estudando, o malandro. Felizmente, é um garoto bastante inteligente. Um desses felizardos que aprendem as coisas sem fazer o mínimo esforço. E você? Não tem vontade de continuar os estudos? Talvez, irá para a faculdade ou para uma escola de arte?  No momento, não estou em condições de decidir o que quero fazer da minha vida. Mas, certamente, não seria uma escola de arte.  Não? Que bobagem a minha. É que pensei que, sendo aparentada com Curt...  Mas não sou. De jeito nenhum. Minha madrasta é que é prima dele. Uma prima afastada. Só isso.  Entendo. Desculpe, querida. Tive a impressão, ontem à noite, de que Curt era responsável por você. Quando me conhecer melhor, vai descobrir que sou a rainha das conclusões apressadas, como diz Clive. Bem, vou voltar ao trabalho. Até logo. Rose sentou-se novamente no banquinho. Grace estava errada. A última coisa que Curt queria na vida era aquele tipo de responsabilidade. O interesse da David por ela só ia piorar as coisas. Com certeza, ele a convidaria para sair e, se recusasse, podia ferir os sentimentos do rapaz. Não tinha nem como explicar que era jovem demais para ele.

Olhou para as janelas molhadas de chuva e para as ruas desertas e suspirou. Mesmo que David fosse um homem feito, não faria a menor diferença. Só queria um homem no mundo... e ele estava fora do seu alcance.

CAPÍTULO VI

Apesar de seus maus pressentimentos, as semanas seguintes passaram tranqüilamente e Rose começou a gostar muito do trabalho. Não era um serviço que exigisse grande esforço intelectual, mas compensava isso procurando aconselhar os fregueses e explicando como as peças eram feitas. Seguindo os conselhos de Grace, ia à oficina sempre que podia e já sabia manejar razoavelmente o tomo. David estava ocupado demais com os estudos para incomodá-la. Mesmo assim, todo dia aparecia na loja, para um bate-papo, quando voltava da escola. Tudo seria quase perfeito, se Rose não começasse a perceber, preocupada, que Clive e Grace torciam para que os dois saíssem juntos. Não tinha dúvida de que os Lister aprovavam o interesse do filho pela nova vendedora e esperavam que aquela amizade se transformasse em namoro. Com o tempo, Rose descobriu o motivo. Ficou sabendo, por Grace, que David estava saindo com a garota do empório da cidade, Beth Wainwright, o que não agradava à família. Beth era uma boa menina, mas o irmão, Jeff, parecia estar sempre metido em problemas. Um arruaceiro, segundo a sra. Lister. Curt tinha contratado o rapaz para cuidar dos jardins do Ninho dos Corvos, mas, por algum motivo que Grace não sabia, a coisa não funcionou e Jeff foi demitido. Maggie Wainwright, tia dele, era quem costumava ajudar Sybila no trabalho da casa, até Antônia e Rose chegarem. Assim, de uma só vez, tinha havido dois desempregados na família.  Oh, Deus! Foi por isso que achei as duas tão esquisitas, quando fui à loja delas, pedir informações, no dia em que chegamos.  Pode ser isso e pode ser também só esquisitice da parte delas. As duas sempre foram estranhas, mesmo. Rose costumava conversar muito com Grace e sempre tinha que tomar cuidado para não esquecer que devia se comportar como uma menina de dezesseis anos. A outra achava que, por causa da morte prematura do pai e da vida difícil que levava, Rose havia amadurecido mais cedo. Isso resolvia, em parte, o problema. Às vezes, no entanto, quase se traía. Como no dia em que, sem pensar, se ofereceu para dirigir o caminhão até Windermere, para fazer uma entrega urgente. Na última hora, percebeu a gafe e corrigiu: — Isto é, adoraria ir, se tivesse idade para dirigir. — Mesmo que tivesse, precisaria tirar uma carteira especial para guiar o caminhão. Já passamos por isso com David. O examinador ficou tão feliz de ainda estar vivo depois da viagem, que acho que o aprovou, só para agradecer a Deus pela sorte que teve. Rose ficou furiosa consigo mesma pelo deslize. Naquela tarde, chegou em casa de mau humor. E ficou ainda mais irritada ao encontrar Antônia sentada, calmamente, lendo uma revista:  Não estou sentindo cheiro de comida. Não vamos jantar, hoje? — perguntou, jogando a bolsa em cima da mesa.  Vou sair com Curt. Estou simplesmente exausta. Trabalhei feito um burro de carga o dia inteiro.

Rose olhou em volta, procurando alguma evidência do tal trabalho estafante, mas não encontrou nada. Manter aquela casa bem-arrumada exigia muito mais esforço do que sua madrasta estava preparada para despender. — Recebeu o salário hoje? — Antônia perguntou, quando as duas foram para a cozinha preparar um café. — O dia do pagamento é amanhã. Por quê? Rose abriu a geladeira, verificando se ainda sobrara um pouco de torta de limão.  Me ocorreu que era hora de você contribuir com alguma coisa pelo seu sustento — disse a outra, com a maior tranqüilidade.  Meu sustento? Pelo amor de Deus, Antônia! Olhe em volta. Já aprontei a lista de cardápios para a semana inteira e o congelador está entupido de comida. Pensei que isso fosse o meu sustento. — Como quiser. Só achei que não ia querer continuar vivendo às custas de Curt agora que tem um emprego. Quanto é que vão lhe pagar? Você ainda não me disse.  Não, não disse. Não acho que seja de sua conta nem da conta de ninguém. Por acaso foi Curt quem sugeriu para que eu contribua com o orçamento?  Não com essas palavras. Mas imagino que deva estar surpreso por você ainda não ter se oferecido. Não sei o que faz com o seu salário. Não sai nunca nem compra nada.  Estou economizando. Clive teve a gentileza de me levar a um banco de Keswick, quando comecei a trabalhar. Abri uma conta e deposito quase todo o meu dinheiro. E, por falar em surpresas, ele também ficou intrigado por você não ter lembrado de fazer isso para mim.  Mesmo? Tenha a bondade de informá-lo de que não sou sua guardiã.  Mas foi essa a impressão que você fez questão de dar a todo mundo, lembra? De acordo com sua própria história, tenho dezesseis anos, querida madrasta. Então, não pode se queixar quando as pessoas me tratam como uma adolescente. Mas não pense que isso também não me cria problemas. Hoje, por exemplo, Clive e Grace precisavam com 'urgência de alguém para dirigir o caminhão. Por causa de sua mentira estúpida, tive que ficar quieta. Não pude dizer que tinha carteira de motorista e me oferecer para ajudar.  Pobrezinha! Sabe que acho isso muito engraçado? A mentira devia ser sua segunda natureza. Seu pai mentiu um bocado, no fim da vida. Por exemplo, me fez acreditar que era um homem podre de rico.  Sua vagabunda! Rose tremia de raiva. Bateu a porta da geladeira e avançou para a madrasta, disposta a dar uns tapas naquele rosto bonito e sonso. Com um grito, Antônia deu um pulo do banco. — Afaste-se de mim, Rose! Curt, ainda bem que chegou... Oh, querido, me ajude! Tire essa menina daqui. Parece que ficou maluca. Rose sentiu-se agarrada pelos ombros. Encarou-o, com os olhos cheios de lágrimas.  O que pensa que está fazendo? — ele perguntou, furioso.  Eu mencionei o pobre querido Victor e ela ficou histérica. Não consegue aceitar o que fomos um para o outro. Rose deixou-se cair no banco, incapaz de reagir. — Oh, Deus! - Acho melhor subir para o seu quarto e ficar lá, até se controlar. Já é tempo de crescer, Rose, e saber que certos comportamentos são inaceitáveis. E fazer cenas de ciúme com a viúva de seu pai é um deles. Concorda? — Não espera mesmo que eu responda, não é?

— Não espero muito de você a respeito de absolutamente nada. Está sempre me desapontando, garota. Quando é que vai começar a se comportar como um ser humano normal? — Provavelmente, quando for embora daqui. — Pegou a bolsa e saiu da cozinha. Tremia de raiva, quando chegou ao quarto. Sua vontade era ir a Keswick na manhã seguinte, tirar todo o dinheiro do banco e voltar para Londres. Mas, depois, pensou nos Lister. Contavam com ela para ajudá-los naquela estação. Não podia deixá-los na mão. Quem sabe, então, não poderiam acomodá-la no quarto de hóspedes? Logo afastou essa idéia também. Eram amigos de Curt e, se ela abandonasse a casa, iam querer saber por quê. Apesar de tudo, tinha que admitir que a chegada dele fora oportuna. Não sabia o que seria capaz de fazer, se pusesse as mãos em Antônia, naquele momento. Os homens eram todos uns idiotas. Acreditavam em qualquer mentira, desde que fosse dita por uma mulher bonita. Primeiro, tinha sido seu pai; agora, Curt ia pelo mesmo caminho. Queria odiá-lo. Queria desprezá-lo por não conseguir enxergar o que Antônia realmente era. Frívola e egoísta. Mas não conseguia. Pelo menos dessa vez não seria testemunha de um casamento infeliz. Não estaria lá para ver o quanto ele ia sofrer. Quem sabe, tendo dinheiro, a madrasta se tornasse melhor esposa do que tinha sido para seu pai. Resolveu ficar no quarto, até sua raiva passar. Trancou a porta, com medo de que Antônia aparecesse e acabasse perdendo a cabeça novamente. — Amanhã eu enfrento mais essa — disse a si mesma em voz alta. — Hoje, não. — Mudou de roupa e dormiu. Quando acordou, a casa estava silenciosa e, lá fora, muito escuro. Pressentiu que uma tempestade se aproximava. Saiu da cama e desceu até a cozinha. Fez ovos mexidos, torradas com manteiga e café forte. Pouco depois, começou a trovejar. Pensou que Antônia poderia aproveitar aquele pretexto para se agarrar a Curt, fazendo-se de fraca e indefesa... seu papel favorito. A temperatura tinha caído muito e logo gotas grossas começaram a bater na janela da cozinha. O temporal veio logo depois, com muitos raios e trovões que ecoavam pela casa. Rose encolheu-se toda. Desde criança, tinha pavor de tempestades. Para piorar as coisas, pouco depois as luzes se apagaram. Não estava completamente escuro, mas logo estaria. Sabia que havia lanternas guardadas na cozinha, mas não lembrava onde. E nunca tinha visto velas por lá. Talvez Sybila tivesse algumas. A pobre velha bem podia estar assustada. Foi até o apartamento e bateu. — É Rose. Você está bem? Não houve resposta. Só se ouvia o barulho do vento nas árvores lá fora. Rose bateu novamente, com mais força. — Sybila, por favor, responda. Tudo bem? Silêncio. Preocupada, tentou a maçaneta e a porta se abriu. O apartamento estava mergulhado na escuridão. Entrou e chamou. Mais uma vez, não teve resposta. Será que a velha tinha saído com Antônia e Curt? Era a coisa menos provável do mundo. Sentindo-se uma intrusa, vasculhou a sala. Quem sabe, Sybila tinha tomado uns comprimidos e ido dormir mais cedo. Na sala, não encontrou nenhum sinal de que ela tivesse passado, por lá recentemente. Nem um livro aberto, nem uma xícara de café. Talvez Sybila tivesse saído para seu passeio habitual pelo jardim e a tempestade a surpreendera. Nesse caso, não teria onde se abrigar. Ficar naquela chuva já não era nada agradável para uma pessoa jovem e saudável, quanto mais para uma velha que sofria de artrite.

Foi até o armário e pegou uma capa, colocando-a sobre a cabeça. Depois, saiu. A chuva caía com violência e estava fria como gelo. Mais adivinhando o caminho do que propriamente vendo, Rose fez a volta na casa, chamando por Sybila. Já estava desanimando, quando ouviu a resposta, numa voz muito fraca. — Sybila? Já estou indo... Espere. Mas a velha não poderia mesmo fazer nada, além de esperar. Horrorizada, Rose encontrou-a caída no chão, toda encolhida. A pobre gemia de dor. Rose correu até ela e ajoelhou-se a seu lado. Era de cortar o coração. O cabelo branco e as roupas estavam encharcados, e o rosto, contorcido numa máscara de sofrimento. Mesmo assim, Sybila tentou sorrir. — Minha querida criança. Parece que a terra cedeu sob os meus pés, escorreguei e caí. Quando tentei me levantar, torci o tornozelo também. — Está tudo bem, agora. Estou aqui. Rose tentou controlar o pânico que a dominava. Sim, estava ali, mas o que podia fazer? Será que teria força para levantar a velha e carregá-la para casa? O tornozelo torcido não a preocupava; o perigo era que pegasse uma pneumonia. Era preciso levá-la para um lugar abrigado e seco e procurar socorro médico. — Não sou muito forte, mas vou tentar levantá-la, Sybila. Passe os braços pelo meu pescoço e se agarre bem; farei o possível para não machucar você. —- Sou muito pesada, minha querida. Vá chamar Curt.  Ele saiu. E Antônia também. Estamos sozinhas. Temos que nos arranjar sem ajuda. Agora, faça o que mandei e tenha calma. Vamos conseguir, prometo. Você não pode ficar nem mais um minuto aqui. Está ensopada.  Curt mandou nivelar esta parte do jardim para fazer um gramado. Eu só vim dar uma olhada no trabalho. — Sybila tentava não se queixar. — Tentei correr de volta para casa, quando ouvi os trovões. Rose nunca suspeitara de que tinha tanta força. Com dificuldade, mas sem parar para descansar, conseguiu levar a velha para casa, pendurada como um fardo em seu pescoço. Foi a caminhada mais longa de sua vida. Às vezes, parecia um daqueles pesadelos em que a gente anda, anda e nunca chega. Entraram pela porta da cozinha, para evitar os degraus da entrada principal. Ajudou a velha a se sentar no banco e percebeu, apavorada, que ela tremia convulsivamente. — Precisa tirar essa roupa molhada, Sybila. Vou pegar sua camisola e o robe e depois telefono para o médico. Isso, se o telefone estiver funcionando. Quando tirou o fone do gancho, deu um suspiro de alívio. Funcionava. Por sorte, encontrou o médico em casa e ele prometeu ir imediatamente. Antes de voltar à cozinha, subiu e pegou um cobertor. — Esse deve ser o lugar mais quente da casa para você ficar. Mas trouxe mais alguma coisa para aquecê-la. Sinto muito que esteja tão escuro, não consegui encontrar uma lanterna sequer. Sybila sorriu para ela.  A tempestade está passando, minha querida criança. Talvez possam ligar logo a eletricidade.  Nem posso preparar uma bebida quente — Rose reclamou, desdobrando o cobertor e colocando-o sobre os ombros magros da velha.  Já fez bastante por mim. Agora, precisa ir tirar essa roupa molhada. Eu insisto. Destranque a porta da frente para que o Dr. Mortimer entre, quando chegar.

Rose não protestou. Estava mesmo precisando tirar aquela roupa encharcada. Esfregou o corpo gelado com a toalha, até sentir a circulação voltar ao normal. Tinha os braços e as pernas um pouco dormentes. Vestiu-se rapidamente e desceu. O médico já havia chegado. Era um homem de meia-idade. Muito calmo e prático. Elogiou Rose por sua ação pronta e rápida, examinou o tornozelo de Sybila e, apesar dos protestos da velha, disse que ia chamar uma ambulância.  Vou levá-la para Heatonbank, para observação — falou, colocando o termômetro entre os lábios de Sybila. — E uma clínica particular, onde poderá ficar por uns dias. Imagino que queira acompanhá-la, srta. Winslow. Vou deixar um bilhete para Curt, explicando o que houve.  Isso é ridículo, George. Essa criança não vai querer ir até uma casa de repouso.  Não me parece que ela tenha se comportado de uma maneira infantil, esta noite — o médico cortou, seco. — Agora, diga o que você quer levar, para preparar sua mala. E pare de dar palpites. Rose voltava com a maleta quando ele a parou, junto da escada, e disse baixinho:  É com o coração dela que estou preocupado. Teve dois ataques leves há um ano e eu a preveni de que não devia se emocionar nem fazer nenhum esforço. Mas é teimosa e orgulhosa, não quis deixar de cuidar da casa. Pensei que a idéia de trazer a prima de Curt para cá, como governanta, fosse ajudar, mas...  Acho que ajudou. Sybila agora só cuida do próprio apartamento. Isso mesmo, porque não houve jeito de impedi-la. Mas não se dá muito bem com minha madrasta. Acredito que está vivendo sob tensão, desde que chegamos. — Mas parece gostar muito de você. Na verdade, não temos muito contato, mas tem sido sempre muito amável comigo. — Então, você deve ir com ela, para evitar que fique muito agitada. Além disso, nessas circunstâncias, é sempre bom ter um rosto familiar por perto. — Sim, claro. Sybila protestou o tempo todo, insistindo em que não estava doente. Quando a ambulância chegou ao hospital e a maca era retirada, pegou a mão de Rose. — Querida menina, o que eu faria sem você? Parecia tão frágil e desprotegida! Rose foi instalada num quarto ao lado do dela. A chuva estava passando e, pouco depois, a luz voltou. Só então lembrou que tinha deixado tudo ligado em casa. Mas, afinal, era uma emergência; não podia pensar em tudo. Uma enfermeira trouxe-lhe uma xícara de chá, que tomou, devagar. Não vira mais o Dr. Mortimer nem sabia como voltaria para o Ninho dos Corvos. Então, a porta foi aberta e Curt entrou. — Como está Sybila? — Estava quase dormindo, quando a trouxeram. Ainda não me deixaram vê-la nem disseram nada. — Deus, como isso foi acontecer? O que ela estava fazendo no jardim?  Tinha ido dar uma olhada no seu gramado. Costuma sair para dar uma voltinha todas as tardes, você sabe. Foi apanhada pelo temporal, escorregou e caiu.  Então, de agora em diante, só vai sair para passear em sua companhia. Não creio que se oponha a essa idéia. — Fez uma pausa. — Foi ótimo você estar por lá, Rose. — Você fala como se eu tivesse outra alternativa.

 E você fala como se estivesse sendo mantida como prisioneira. Pensei que era exagero de Antônia, quando me dizia isso. Naturalmente, é um mundo muito limitado para você, Deve sentir falta do movimento de Londres.  Não tive muito tempo para aproveitar o movimento de Londres, mesmo que quisesse. Mas não se preocupe comigo. Dei um jeito na minha vida por aqui mesmo. — E, você deu. Acho que até hoje nunca lhe dei o devido valor. Rose sentia-se mais segura quando ele a julgava mal e a censurava. Ficava menos vulnerável.  Já que tocou no assunto — disse, procurando manter a voz num tom frio —, vamos esclarecer uma coisa. Não aceitei o emprego na cerâmica para receber aplausos ou mudar sua opinião a meu respeito. Foi só para ganhar algum dinheiro e poder ir embora o mais cedo possível. Não preciso da caridade nem da vigilância de um tutor.  Em todo o caso, enquanto estiver morando na minha casa, não vejo motivo para não poder levar uma vida social normal. No momento, parece que anda brigada com sua madrasta, e essa não é uma situação agradável para ninguém.  E também não é de sua conta. Posso perfeitamente cuidar da minha vida social, como chama. Do mesmo jeito como faço com todo o resto.  Então, espero que seja David Lister o rapaz em quem está interessada, e não Jeff Wainwright. David tem um temperamento meio irresponsável, mas nunca se meteu em problemas sérios.  Não preciso de seus conselhos e, muito menos, de sua licença para me interessar por quem quer que seja. Por que não me deixa em paz?  Gostaria de poder, mas sou responsável por você, Rose, e não quero que esqueça isso. Não estou acostumado a lidar com meninas de sua idade. Num momento, você é uma sereia, e, no outro, parece um garoto arruaceiro. Por um instante, seus olhos se encontraram, em desafio. Rose baixou a cabeça e foi até a janela, procurando controlar o nervosismo. A simples presença dele a deixava nervosíssima, lembrando como tinha se sentido em seus braços. De costas para Curt, falou: — Sinto muito. Não sei por que me comporto dessa maneira. Também não estou acostumada a homens de sua idade. Ouviu que ele suspirava. — Então, feitas as nossas confissões, vou até o quarto de Sybila, ver se ela precisa de alguma coisa. Você vem comigo? — Não... se quiser falar com ela em particular. — Não há nada que eu queira dizer que você não possa ouvir. Além do mais, ela deve querer ver você. Acho que percebe que lhe deve a vida. — Isso é exagero.  Não, pelo recado que o Dr. Mortimer deixou. Segundo ele, você é a heroína do ano.  Foi muito gentil da parte dele. Só fiz o que qualquer pessoa teria feito.  Duvido muito, Rose. Você dá a impressão de total fragilidade, mas suspeito que é falsa... como outras impressões. Ela ficou paralisada. Aquelas palavras eram uma ameaça aos cuidadosos planos de Antônia, que poderiam ruir como um castelo de cartas. — Eu... não entendo. — É claro que não. — Havia um tom zombeteira na resposta. — Agora, vamos ver Sybila. No corredor, encontraram a enfermeira que vinha procurá-los. A sra. Maitland estava acordada e chamava por eles.

— Você teve um dia difícil, criança. Que tal um copo de leite morno e um bom sono? — disse, assim que Rose entrou. Deitada naquela cama, Sybila parecia muito pequena e pálida. O cabelo branco tinha sido repartido ao meio e caía em trancas dos lados do rosto enrugado. A velha estendeu a mão para ela. — Fico tão contente por você ainda estar aqui, minha querida. Queria pedir um favor. Meu apartamento... minhas plantas... será que pode dar uma olhada para mim? Não quero... — Parou e olhou para Curt. Mas tanto ele quanto Rose sabiam o que ia dizer: não queria que Antônia tocasse em seus tesouros.  E claro que posso — Rose disse, apertando-lhe a mão. — Não se preocupe com coisa alguma. Logo vai estar de volta. Muito antes do que pensa.  Que menina gentil! E que tola que eu sou! A enfermeira aproximou-se, avisando que a sra. Mailand precisava descansar. Depois, explicou quais eram os horários de visita e entregou a Rose as roupas que Sybila usava, ao ser internada. Ela teve a impressão de que Curt não tinha escutado uma palavra. A chuva havia parado, mas nuvens pesadas escondiam as estrelas. — No entanto, elas estão lá. Só que a gente não pode ver — Rose murmurou para si mesma. — O quê? Curt inclinou-se, olhando-a dentro dos olhos, e só então ela percebeu que tinha falado mais alto do que pensava. — As estrelas, ora. — Então, inexplicavelmente, começou a chorar. Sentiu que Curt a abraçava, mas não teve forças para se afastar. A tensão das últimas horas explodia em lágrimas incontroláveis. Deitou a cabeça no peito dele, soluçando. Quando conseguiu se controlar, percebeu que Curt a levara para o carro. Agora, acariciava seu cabelo, murmurando palavras de consolo. Tudo que queria era ficar ali, nos braços dele, mas seria arriscado demais. Enxugando as lágrimas, afastou-se e entrou no carro. Devia estar parecendo a criança que ele pensava que era.  Sinto muito'...  Por quê? Deu-lhe um lenço que tinha o perfume quente de sua colônia. — Por ter chorado tanto. Os homens detestam essas cenas... -— Este homem aqui seria um grande ingrato, se ficasse incomodado com suas lágrimas. Você tinha direito a cada uma delas, Rose. — Pareço uma idiota. — Pelo contrário. Você parece a encosta da montanha lavada pela chuva — disse, brincalhão. — Só a paisagem não é adequada. Você devia estar numa clareira da floresta, uma verdadeira dríade com flores e frutos no cabelo. Gostaria de pintá-la assim. Afastou a mecha loura que caía sobre o rosto dela e depois acariciou o queixo delicado. Rose sentiu a garganta seca e a respiração difícil. Ficou tentada a pegar a mão dele e beijar. Mas o bom senso lhe dizia que não devia se deixar dominar pelas emoções, como da outra vez. Curt estava apenas sendo gentil. Tentando consolá-la e, ao mesmo tempo, mostrando-se grato. Nada havia mudado. Não podia esperar que alguma coisa tivesse mudado. Sacudiu a cabeça, fazendo com que Curt a soltasse.  Não acho que queira ser pintada. Não é preciso ficar imóvel durante horas? Isso não é comigo. Além do mais, dríades não roem unhas.  Provavelmente, não. Então, terei que procurar outra modelo. Alguma sugestão? — Não devem faltar voluntárias.

 É verdade. E algumas delas já me pediram um retrato. Depois de um momento de hesitação, Rose perguntou:  Você vai começar a pintar novamente? — Tudo indica que sim. Pensei que podia desistir, mas as pressões são muito grandes. Acho que vou ter que deixar de lado meus pudores. — Deu partida no carro e pegou a estrada. Era a primeira vez que ficavam juntos assim, de noite, e Rose sentiu-se perturbada, como se um grande perigo a rondasse. Mexendo banco, desconfortável.  Onde vamos?  Para casa, naturalmente. Ela percebeu que Curt também estava tenso. Talvez lamentasse ter permitido outra chance de contato físico entre os dois. Começou a chover novamente. O barulho da água no vidro e do limpador de pára-brisa fez com que Rose adormecesse. Acordou com uma freada brusca e deu um grito. Curt inclinou-se para ela, dizendo: — Calma, menina. Chegamos em casa. Rose abriu a porta mas, antes que tivesse tempo de descer do carro, Curt pegou-a no colo. — O que está fazendo? — Carregando você, claro. Não vá me dizer que está em condições de andar, porque não é verdade. Ele tinha razão, mas ela começou a se debater. Preferia ir se arrastando. — Largue-me! — Só quando eu quiser. Esta é a minha casa e eu dou as ordens, lembra? — Você não me dá uma chance de esquecer. Ouviu que ele ria. Tinham chegado à porta da frente e, certamente, ia colocá-la no chão. Mas Curt continuou segurando-a. Entrou, atravessou o hall e dirigiu-se para a escada em espiral. Rose não queria mais lutar. Sabia agora que o que sentia por ele não era mais apenas uma forte atração física, mas algo muito, muito mais profundo, que a assustava demais. Inconscientemente, passou os braços pelo pescoço dele. Curt parou e a encarou. Em seus olhos cor de prata não havia ironia nem divertimento. Apenas, uma pergunta que exigia uma resposta franca. Sem sequer tentar se defender, Rose retribuiu o olhar, sabendo como estava vulnerável naquele momento. Ouviram um barulho, uma porta que se abria, e depois a voz de Antônia, cheia de ironia e despeito: — Seduzindo menininhas, querido? Você não tinha esses apetites estranhos. Não costumava assaltar berços. A magia estava quebrada. Rose viu a expressão perturbada de Curt, quando se virou para olhar para a prima.  Assaltando não é bem a palavra, minha querida. Ao contrário: estou devolvendo a garotinha ao berço. Rose teve um dia muito difícil e cansativo.  E acha, naturalmente, que eu tive um dia muito agradável. Esse temporal miserável, uma tremenda ventania no restaurante e depois, na volta para casa, o caos. Pelo amor de Deus, ponha Rose no chão! Ela não é nenhum bebê. E, pelo que sei, você não tem a menor vontade de se tornar o centro de uma fixação adolescente. — Oh, não sei, não. Pelo menos, seria uma novidade. Por alguns momentos, Antônia o encarou, incrédula. Depois, voltou para o quarto, batendo a porta.

Curt tornou a olhar para Rose, com aquela expressão que fazia seu coração disparar feito louco. Depois, como se nada tivesse acontecido, continuou a carregá-la pelo corredor.

CAPÍTULO VII

Curt não falou nem olhou para ela, enquanto a carregava para o quarto. Colocou-a na cama, ajeitando o travesseiro. Mas não a soltou.  Pronto. Você está em sua casa, Rose — falou suavemente.  Não... — protestou, num sussurro.  Sim. Você quer dizer sim. Não finja mais. Seja honesta comigo. Segurou o queixo dela com firmeza, impedindo que se virasse para o outro lado.  Solte-me! Está se arriscando muito. Esqueceu o que Antônia disse sobre fantasias de adolescentes?  Mulheres também têm fantasias. Você não gostaria de descobrir qual é a diferença? Beijou-a de leve na boca e no pescoço, e Rose sentiu cada nervo de seu corpo vibrar. Fechou os olhos novamente, para fugir do poder hipnótico daquele olhar prateado.  Não. Nem quero ser o alvo de nenhum apetite estranho. Ele ficou tenso e apertou-a tanto, que chegou a machucar.  É mesmo? Então, azar o seu, garotinha. Começou a beijá-la, com insistência, e a abrir os botões de sua blusa. — Curt, por favor! — Você vai gostar, minha querida. Vou lhe dar prazer e ensiná-la a me dar prazer. Assim... Seus dedos já haviam soltado o pequeno colchete do sutiã e Curt acariciou os seios de Rose com as mãos e os lábios. Ofegante, ela o puxou mais para perto. — Pelo amor de Deus, Rose, toque em mim... Ela obedeceu e começou a desabotoar a camisa dele, cheia do desejo que Curt tinha despertado. Passou os braços por dentro da roupa, e o contato de suas peles foi como fogo. Curt beijou-a novamente e, dessa vez, a resposta foi apaixonada. Agora, as mãos dele desciam por seu ventre, procurando o zíper da calça jeans. Rose virou o corpo um pouco de lado para ajudá-lo. Não conseguia pensar nem desejar mais nada. Apenas, pertencer a ele. A princípio, o som pareceu vir de muito longe. Só quando Curt se afastou, com um gemido abafado, e olhou para a porta, ela compreendeu que Antônia estava batendo. O medo gelou seu sangue. A qualquer momento, a madrasta podia entrar e ver os dois juntos. Sentou-se, puxando a blusa para cobrir os seios. — Curt? Você está aí? — Antônia chamou. Sua voz era calma e controlada, mas Rose já conhecia aquele tom e sabia o que a esperava. — Telefonaram da clínica, querido. Curt pareceu despertar de um sonho. — Sybila — murmurou. — Meu Deus! Vestiu a camisa rapidamente, enfiou-a para dentro da calça de qualquer jeito e saiu. Rose ouviu sua voz tensa fazendo perguntas, e depois, silêncio. Ficou deitada no escuro, sentindo-se tonta e enjoada. Há um minuto, estava a meio caminho do sétimo céu. Agora, de volta à Terra, tinha medo e remorsos. Levantou-se, cambaleante, vestiu a camisola e foi ao banheiro. Parou diante do espelho e viu desaprovação e desgosto nos próprios olhos. Se não fossem interrompidos, teria se entregado a

Curt sem a menor hesitação. Apesar de estar apaixonada, sabia que não suportaria a vergonha de acordar nos braços dele no dia seguinte. Para Curt, ela era apenas uma novidade. Quando a possuísse, perderia todo o interesse e se tornaria mais uma igual às outras. Escovou o cabelo com força, quase como se quisesse se punir. Além do remorso, seu coração estava pesado de pressentimentos. O tempo todo tinha a impressão de ouvir passos no corredor. Se alguma coisa tivesse acontecido a Sybila, alguém viria avisá-la. Ir até lá embaixo e enfrentar Antônia seria terrível. Mas ficar lá em cima, esperando a notícia, o resto da noite, era insuportável. Vestiu o robe, calçou os chinelos e desceu. A porta da sala estava entreaberta. Parou, prestando atenção, mas não ouviu nada. Então, escancarou a porta. Deitada no sofá, fumando um cigarro, Antônia sorriu para ela quando a viu entrar.  Se está procurando Curt, ele saiu, queridinha. A pessoa que telefonou era mesmo da clínica. Sabe, se Sybila fosse quarenta anos mais moça, eu teria ficado muito enciumada. Você precisava ver como ele saiu correndo por causa dela. Quanta devoção! Bem, não fique parada aí, feito um fantasma. Venha, vamos ter uma conversinha de... digamos, mãe para filha. Sinto muito se interrompi sua ceninha romântica, mas não foi inteiramente minha culpa. Então, o que achou dele?  Você... você quer dizer que não se importa que ele estivesse me amando? Antônia olhou-a, entre tolerante e divertida. — Ora, não seja ingênua! Não vai querer que eu acredite que a coisa foi assim tão longe, em tão pouco tempo. Curt tem classe demais para se atirar sobre uma mulher e fazer amor com ela em poucos segundos, feito, um selvagem. Não se esqueça de que eu o conheço muito bem. — Espreguiçou-se com um suspiro, como se estivesse recordando o quanto o conhecia. Depois, deu uma risada. — O querido priminho estava muito aceso, hoje. Louco para fazer umas diabruras. Senti isso, quando saímos juntos. Sempre que fica assim, é uma dificuldade para fazê-lo sair da minha cama... - Não estou interessada em ouvir intimidades de vocês dois. Acho que deve, queridinha. Assim, vai parar de fantasiar. Garotas na sua idade são cheias de tolices românticas. Não quero que interprete mal o que aconteceu esta noite. A verdade, nua e crua, benzinho, é que até eu me canso de sexo. Curt anda muito exigente. Insaciável. Por isso, achei que seria interessante... só por um tempinho... se ele se divertisse com você. Pensei que não havia nada de mais, porque você lutaria feito uma leoa pela sua virgindade. Mas, já que não o fez, resolvi dar um basta na brincadeira. De qualquer forma, tenho certeza de que Curt não ia gostar. Com a experiência que tem, duvido que as virgens façam seu gênero. - Você é uma suja, Antônia. E o telefonema? - Pura invenção, como você já deve ter adivinhado. — Fez cara de inocente. — Um terrível erro da minha parte. Também, com tantas emoções num dia só, quem poderia me culpar? Ele não vai voltar de muito bom humor, claro. Mas não é de admirar. Infelizmente, foi a única coisa que me ocorreu para separar os dois. Do jeito que ele estava, só mesmo o cadáver de Sybila o faria recuperar o controle. Sabe de uma coisa? Fico muito feliz de não ter nascido homem. São umas criaturas tão primitivas! - E você acha que fazendo esse tipo de coisa vai conquistar Curt e levá-lo a casar? — Rose não conseguiu esconder o desprezo que sentia pela outra. - Oh, eu não acho. Eu sei. Além do mais, casamento foi a única coisa que ele ainda não me propôs. Já fez todas as outras propostas. Mas não demora. Onde vai? - Para a cama.

- Sábia decisão. Mas não sonhe acordada: não fique esperando por ele. Ir e voltar de Heatonbank deve ter esfriado o furor de Curt. Mas, mesmo que não tenha esfriado, você não vai querer ser a segunda escolha, não é? - No momento, não quero nem mesmo ser a primeira. Só muito mais tarde Rose conseguiu dormir. Depois de repetir mil vezes para si mesma que era ótimo estar sozinha naquela cama gelada. Saiu para trabalhar no dia seguinte sem que ninguém a visse. Grace notou seu abatimento e perguntou se estava sentindo alguma coisa. Deu uma resposta evasiva e foi para a loja. Felizmente, houve bastante movimento e Rose ficou ocupada demais para ter tempo de pensar em seus problemas. Estava almoçando, quando David chegou. — Acho que sou capaz de gritar, se vir outro livro didático pela frente — disse, sentando-se ao lado dela. — Você vai passar nos exames. — Gostaria que os professores tivessem o seu otimismo. — Fez uma pausa. — Olhe, vamos dar uma festinha antes das provas. Não quer vir comigo? Apesar de já esperar por um convite assim há muito tempo, Rose hesitou, sem saber o que responder. David ficaria ofendido, se recusasse. E ela, afinal, estava precisando se divertir um pouco. Ou, pelo menos, tentar. — Obrigada. Gostaria muito.  Ótimo! Maravilha, mesmo. Vou pedir o carro do papai emprestado. A festa é na sexta-feira. Vou pegar você às oito horas. Não tem problema? Quer dizer, não precisa pedir pra ninguém?  Ninguém. — Pensou nos comentários irônicos que Antônia faria por ela sair com um garoto tão mais moço. David parecia disposto a ficar conversando, mas Rose sentiu-se aliviada quando viu dois casais entrarem na loja. Correu para atendê-los. O movimento estava grande naquele dia, pois, assim que saíram, ouviu a campainha da porta tilintar novamente. Virou-se para cumprimentar o freguês, e Curt estava parado junto dela, observando-a. Ele usava uma calça de lã preta e um pulôver de gola alta. Rose estava tão acostumada a vê-lo de jeans e suéteres velhos que tinha se esquecido de como era elegante. Nervosa, começou a torcer a ponta do avental. Por sorte, Grace chegou naquele momento. — Alô, estranho. O que o traz aqui?  Queria dar uma palavrinha com Rose. Pensei que fosse hora do almoço mas, pelo que vejo, estão ocupados.  Oh, tudo bem. Posso me arranjar sozinha. Leve-a com você. Essa menina bem que precisa de um pouco de ar puro. Chegou tão pálida, hoje, coitadinha! — Mas eu já almocei... — Tolice! Não temos regulamentos tão rígidos aqui. Ande, vá pegar o casaco, não deixe Curt esperando... — Grace falava num tom severo, como se ela fosse uma criança desobediente. O carro de Curt estava estacionado diante da loja. — Entre — disse, segurando-lhe o braço.  Onde vamos? — perguntou, tentando se soltar. — Eu devia estar trabalhando.  Grace disse que você precisa de ar puro. Vou levá-la até o lago. Vamos de carro, porque não tenho muito tempo. Ela sentou-se ao lado dele, em silêncio. Curt manobrou e desceu pela rua estreita.

— Não posso demorar. Grace precisa de mim. — Ela não vai morrer só por causa de alguns minutos. — Lançou-lhe uni' rápido olhar. — Você está parecendo uma daquelas personagens desbotadas das novelas vitorianas. — Muito obrigada. Curt sorriu. — Pelo menos, quando fica zangada, aparece um pouco de colorido nesse rosto. Tinham saído da cidade, por uma estrada que ela não conhecia, e contornavam o lago. Curt parou o carro, desligou o motor e tirou a chave da ignição. Rose saltou, sentindo a brisa suave no cabelo e tentando relaxar. Foi até a beira da água. O lugar era muito calmo. Não havia muita gente por perto. Só alguns casais com crianças, fazendo piquenique, a vários metros de distância. E, no meio do lago, um barco com um solitário e esperançoso pescador. Curt seguiu-a. Não se aproximou muito, mas sua simples presença perturbava Rose quase tanto quanto como se estivesse nos braços dele. Estremeceu.  Está com frio?  Não. O sol está gostoso hoje. Como... vai Sybila? — Passou bem a noite e está melhorando. Foi o que disseram, hoje de manhã. Aquele telefonema de ontem... — franziu a testa — não era da clínica. — Isso é muito bom.  Não foi assim que eu me senti, ontem à noite. Apesar de que acho que foi melhor termos sido interrompidos. Tenho certeza de que você concorda. — Rose não respondeu e ele continuou: — Foi por isso que não voltei para casa, depois de passar na clínica. Achei que você tinha tido tempo suficiente para pensar melhor e lembrar-se de todos os seus preconceitos, e eu não estava disposto a encontrar portas trancadas.  Não estava trancada — Rose disse, impensadamente, e depois corou. — Não? Então, essa é uma omissão que terá que ser corrigida de agora em diante. Apesar de que você estará a salvo nos próximos dias. Tenho que ir a Londres. Aliás, já devia ter partido. Mas quis falar com você, primeiro,  Está bem. Você não tem que se desculpar ou explicar nada. Eu entendo.  Acho que não. Não tenho a menor intenção de me desculpar. Me arrependo do que aconteceu, mas não me desculpo. Quanto à explicação... sou homem e você é mulher. Isso é tudo a ser dito. — Compreendo — respondeu, com amargura.  Duvido. Em todo caso, não dê a isso mais importância do que realmente tem. Está tudo bem. Não fui bem-sucedido no meu "apetite estranho", como você disse, e talvez nós dois devêssemos estar agradecidos por isso.  Oh, sim. Em outras palavras, seus preconceitos também levaram a melhor.  Acho que pode chamar assim. Não tenho tempo, agora, para discutir meus padrões morais. Vamos deixar essa conversa para quando eu voltar.  Não, obrigada. — Sua voz tremeu um pouco. — Não há nada para discutir. Não tenho ilusões sobre o motivo do seu comportamento. De alguma forma, acho que eu o provoquei. Minha curiosidade juvenil era um tanto óbvia. Mas você a curou completamente. O que foi, aliás, o objetivo da ceninha que tivemos. Esperou por alguma reação. Talvez, protesto. Ou raiva. Como não veio, continuou:  Acho que devo estar mesmo agradecida. Poucas meninas da minha idade têm a oportunidade de uma aula de amor com um especialista, mesmo que tenha parado na primeira lição. Mas foi o suficiente para me ensinar uma coisa muito importante: a ficar no meu lugar, de agora em diante. Não sei se sabe como pode ser envolvente, quando quer. Fiquei... fiquei impressionada!

 Então, escondeu muito bem. — Era a vez de Curt ser irônico. — Essa foi a última coisa que pensei ter provocado em você. Mas uma coisa eu sei: fui muito mais longe do que pretendia. Só queria dar um beijo de boa-noite. — Um carinho paternal distorcido? — Não banque a boba. Se quer mesmo a verdade, eu queria apenas confortá-la. E também achei que você desejava ser beijada. Estava tão errado assim? — Não. Você estava inteiramente certo. Eu quis... e agora não quero mais. Não quero mais ter esse tipo de fantasia a seu respeito, Curt. É muito perigosa. Posso não estar muito cotada no seu conceito, mas acho que não mereço ser seduzida, só porque você está amolado ou frustrado. Sua voz falseou e morreu. Quando ousou olhar para Curt, deu um passo para trás e tropeçou. Imediatamente, ele a amparou, impedindo que caísse. — Não me toque! — Uma reação instintiva. Não vai acontecer outra vez. Minhas frustrações podem revelar meu lado pior e, quando me sentir assim novamente, não vou tentar seduzir você. Vou lhe dar a surra que seu pai nunca deu. — Você não pode negar — Rose disse, desafiando — que tudo isso faz parte do joguinho sujo de gato e rato que você e Antônia estão fazendo. Como não pôde ir para a cama com ela, tentou puni-la através de mim. Bem, não funcionou. De agora em diante, gostaria que limitasse suas atenções a ela... e me deixasse fora disso. Curt de repente ficou muito pálido. — Obrigado pela brilhante conclusão que tirou da situação. A partir de hoje, prometo que nem você nem Antônia terão nada do que reclamar. Agora, é melhor levá-la de volta ao trabalho. Virou-se e foi para o carro. Rose o seguiu, sentindo vontade de morrer. Curt já estava sentado ao volante, quando ela se aproximou, hesitante. — Se preferir, posso ir a pé... Curt virou-se para ela, muito frio.  Preferia que você saísse da minha vida de uma vez por todas, Rose, mas não podemos ter tudo o que queremos. Agora, entre no carro e vamos embora.  Eu quero sair da sua vida. — Sua voz era um sussurro. — Você nem imagina quanto eu quero. Mas não precisa se preocupar. Assim que puder, irei embora. Não importa o que tenha que fazer para conseguir isso. — Então, está ótimo para mim. Deu partida, e parecia que toda a sua ira estava concentrada na direção. Parou diante da cerâmica e virou-se para ela, dizendo com voz gelada e o rosto inexpressivo: — Considerando que ainda vai ficar algum tempo por aqui, talvez possa dar alguma assistência a Sybila. Um telefonema diário será suficiente. Não precisa se cansar. — Gosto de Sybila. Pode contar comigo. — Ela também gosta de você. Mas até Sybila pode se enganar, ao que parece. Muito depois que o carro desapareceu, ela ainda estava olhando para a rua vazia. Pensou, desesperada: Oh, meu Deus, o que foi que eu fiz? Rose sentiu-se física e emocionalmente exausta naquela tarde. A loja esteve cheia de fregueses o tempo todo, o que a impediu de pensar em seu sofrimento e impediu Grace de procurá-la com perguntas que teriam sido muito indiscretas. Mas, na primeira oportunidade que teve, comentou que aquele passeio não parecia ter feito muito bem a ela. Quando voltou para casa, encontrou a porta da cozinha trancada. Teve que procurar a chave na bolsa. A casa estava silenciosa e havia um bilhete em cima da mesa: "Espere só até me ver. Antônia".

Qual será a loucura que Antônia está preparando agora, pensou, enquanto passava um café. Como seria agradável voltar do trabalho e encontrar uma boa refeição e alguém que lhe perguntasse como tinha sido o seu dia. Gostaria que Antônia a levasse a Heatonbank, mas sabia que teria que se contentar com um telefonema para saber notícias de Sybila. Onde ela teria ido? Sem dúvida, não jantar fora. Havia pratos sujos dentro da pia. O relacionamento das duas nunca tinha sido dos melhores, mas em Londres, morando naquele apartamento minúsculo, não podiam se evitar. Ali, no entanto, como futura dona da casa, a outra não se sentia mais obrigada a aturar uma enteada da qual nunca havia gostado. Além do mais, Rose tinha concordado em ir para o Ninho dos Corvos por conveniência. Não podia se queixar. Queria preparar uma boa refeição, mas o cansaço não deixou. Pensou em dar um pulo até o apartamento de Sybila, depois de telefonar para a clínica. A enfermeira informou que a sra. Maitland passara um ótimo dia e que tinha mudado para outro quarto, com uma senhora mais velha que também gostava de palavras cruzadas, xadrez e bridge. As duas estavam se dando muito bem, virando a clínica de pernas para o ar. Rose não devia se preocupar e Sybila não precisava de nada. Sorria, quando desligou o telefone. Foi até o apartamento da velha e fez uma rápida arrumação, limpando os móveis e trocando as roupas de cama. Era um lugar agradável. Em cada objeto, sentia a personalidade calorosa de Sybila. Isso a reanimou um pouco. Saiu para levar a roupa para a lavanderia. Estava trancando a porta, quando a voz de Antônia a assustou:  O que faz aí?  Sybila pediu que eu desse uma olhada no apartamento. Uma perda de tempo, não é? — Pelo contrário. Sybila está muito bem hoje. Ela... — Poupe-me os detalhes. A saúde da velha não me interessa em nada. Só o que me interessa é que pode resolver um sério problema. — Não entendo... — Querida, você é mesmo muito ingênua. A velha teve um colapso, certo? Isso quer dizer que vai ser uma inválida pelo resto da vida. Se fosse mais moça e tivesse um coração mais forte, seria diferente. Mas, sendo as coisas como são, ela está no lugar certo. E não sinto nem um pouco por isso. — Mas ela vai voltar para casa. — Vai? Vim para cá dirigir a casa para Curt, minha querida. Não para ser a enfermeira de uma velha doente. Provavelmente, acabará numa cadeira de rodas. Curt tem se desincumbido muito bem da responsabilidade que pensa ter para com ela, mas vai chegar uma hora em que até ele perceberá que esta casa é totalmente inadequada para uma inválida. — Curt não faria isso.  Acho que o conheço melhor do que você, queridinha. Ele gosta de gente jovem, sadia e bonita. Não tem temperamento para suportar aleijados físicos ou morais. — Rose sentia-se mal. — Acho que ele fará o que eu quiser. Se não fosse essa viagem a Londres, já teríamos chegado a um acordo. Quando voltar, farei com que pinte o meu retrato. Uma espécie de presente de noivado. — Deu uma risada. — Vai ser um ótimo verão. Portanto, seja uma boa menina trabalhadora. Vá visitar Sybila, limpe o apartamento dela, banque a escrava de todo mundo e veja onde isso vai levá-la. Você e a velha são as perdedoras, meu bem.  Não entendo por que faz essas coisas. Nenhuma de nós é ameaça para você. — Não são, não. E pretendo manter as coisas assim.

Antônia virou-se e subiu a escada. Usava um terninho de lã italiano, uma de suas melhores roupas. Onde teria ido, tão elegante? Não tinha nada com isso e a madrasta nunca lhe contaria, mesmo. O melhor que tinha a fazer era levar a roupa para a máquina de lavar. Foi desconcertante chegar em casa no dia seguinte e, novamente, não encontrar Antônia. O pior é que não tinha como ir visitar Sybila na clínica. Não recebera ainda o salário; portanto, um táxi estava fora de cogitação. Se a madrasta voltasse cedo, como na véspera, teria tempo para uma rápida visita. Mas já fazia mais de uma hora que estava deitada, quando ouviu o carro. Antes de sair para trabalhar, na manhã seguinte, foi ao quarto de Antônia.  Vai sair novamente hoje à noite?  Vou. Por quê? Faz alguma diferença?  Muita. Não tenho transporte e preciso ir à clínica. Tenho que levar camisolas limpas e alguns livros para Sybila.  Então, terá que dar outro jeito qualquer de chegar lá. Eu não fiz nenhuma promessa idiota de perder meu tempo em Heatonbank e não tenho nenhuma intenção de bancar seu chofer. Você leva as coisas muito a sério, Rose. — E sua última palavra? — Claro que é. Se quer ser a boa samaritana, terá que fazer isso por sua conta. Rose virou-se e saiu do quarto, em silêncio. Não esperava mesmo que Antônia a acompanhasse. Se ao menos pudesse pegar o carro. Sybila estava esperando por ela e, na véspera, tinha confirmado para a enfermeira que iria. O único jeito era desfalcar sua conta bancária e ir de táxi. A manhã estava cinzenta e apareceram poucos fregueses na loja. Rose fazia o café, quando David chegou.  Você parece triste — disse, pegando uma xícara. — Não é muito lisonjeiro. Pensei que a encontraria animada com o nosso encontro.  Oh, desculpe. É que estou com um problema. Tenho que ir a Heatonbank esta tarde, visitar Sybila, e minha madrasta não pode me levar. Não sei o que fazer.  Compreendo. Tem que ser hoje? Papai e mamãe ficaram de ir vê-la qualquer dia desses. Quem sabe, não posso convencê-los a fazer a visita esta tarde?  Não, por favor, É problema meu. Não devia ter prometido nada sem antes ter certeza de que podia cumprir a promessa. Não quero incomodar seus pais.  Não diga bobagem. Você os tirou de um aperto, não foi? Eles ficariam contentes em poder ajudar. Antes que Rose dissesse qualquer coisa, ele correu para a oficina. Minutos depois, Grace apareceu, parecendo zangada. — Quando precisar de ajuda, peça. E para isso que os amigos existem, mocinha. — Mas a culpa de estar nessa situação foi toda minha. Grace lançou-lhe um olhar estranho. Foi mesmo? Não acredito que a sra. Winslow não pudesse perder um tempinho para levá-la à clínica. Mas não quero me meter onde não sou chamada. — Depois disse, animada: — Vamos pegar você às seis e meia. Se Sybila precisar de algo, pode comprar amanhã em Keswick e Clive levará para ela. E, sempre que quiser ir até Heatonbank, basta avisar que um de nós lhe dará uma carona. Ouvi dizer que você e David vão a uma festinha na semana que vem. — Vamos, sim. Não se importa, não é?  Por que deveria? Se achasse que estavam levando essa amizade muito a sério, eu me importaria. Mas sei que David não está... Lá estou eu falando demais novamente!

 Tudo bem. Sei que me comportei como uma tola. Os amigos são para essas coisas também. Grace disse, com ternura: — Rose, não vou esconder que estive muito preocupada com você. Gosto demais de Curt, mas... se você está tentando ver nele a figura de um segundo pai... Bem, não combina. Na sua idade, é só isso que ele pode ser para você. É claro que, sendo um homem normal e sadio, Curt poderia se sentir tentado. Não sei se está me entendendo, é um assunto delicado. Pode não acreditar, querida, mas você é muito bem-feita de corpo e tem um rostinho adorável. Não é nada difícil que o artista que existe nele a ache irresistível. Sem querer, Rose lembrou que ele a havia comparado a uma ninfa dos bosques. Foi uma lembrança perturbadora, mas conseguiu se controlar e dizer, aparentando calma: — Ele vai pintar o retrato de Antônia. — Imagine só! Enfim, ele a conhece há tanto tempo. Talvez seja mesmo o tipo de mulher de que precisa. Entre os dois não haverá qualquer tipo de ilusão romântica. — Sacudiu a cabeça: — Agora, que tal tomarmos aquele café, antes que esfrie? Rose não ficou ofendida. Ao contrário, achou que Grace tinha demonstrado amizade e tato, ao tentar alertá-la contra o perigo que Curt representava. A conversa, no entanto, fez com que percebesse que precisava aprender a esconder melhor suas emoções. Chegou quase a desejar ser tão cínica como Antônia. Ou Curt. Como ele teria sido, quando mais moço? Quando só tinha cicatrizes interiores, que ninguém podia ver. Antes daquela cicatriz no rosto. O que o teria feito escolher uma vida de riqueza e ócio, pintando retratos de gente" que não era capaz de apreciar seu talento, procurando prazeres fáceis? Quanto a Antônia, sabia o suficiente. Era uma mulher ambiciosa, que tinha decidido casar com um viúvo rico. E continuava a colocar o dinheiro em primeiro lugar. Os dois estavam prontos um para o outro. E se pertenceriam para sempre, quando aquele terrível verão chegasse ao fim.

CAPÍTULO VIII

Os Lister cumpriram a palavra: Rose não teve problemas para visitar Sybila. A velha estava muito bem. Tinha feito grande amizade com a companheira de quarto, a sra. Patterson, e as duas faziam planos de se visitar, quando saíssem da clínica. Rose quase não via Antônia, que passava fora a maior parte do tempo, e a casa começava a ter uma aparência de abandono. Todos os dias, depois do trabalho, Rose fazia uma limpeza rápida e às segundas-feiras, sua folga, cuidava das compras e preparava a comida para a semana. Uma tarde em que David a levou ao banco em Keswick, pensou ter visto a madrasta numa das casas da montanha e ficou surpresa e aliviada. Não esperava que a outra fizesse amizades por ali, mas, se tinha acontecido, era um ótimo sinal. Talvez estivesse finalmente se adaptando e esquecesse a idéia de insistir com Curt para se mudarem, depois do casamento. Não fez perguntas. Nem Antônia perguntou como é que estava se arranjando para visitar Sybila. Sequer voltou a tocar nesse assunto. Assim, não ficou sabendo das novidades: o Dr. Mortimer tinha dito a Rose que, com cuidados e atenções, a velha poderia em breve voltar para casa. — Que ótimo. O apartamento está prontinho, esperando por ela.

Claro que, para Antônia, a notícia não seria nada bem-vinda. Por isso, achou melhor esperar que Curt voltasse para tocar no assunto. A medida em que o dia da festa com David se aproximava, percebeu que se sentia ansiosa. Não fazia outra coisa, além de trabalhar, e já esquecera até como era ter uma noite divertida. Parecia uma adolescente que ia ao primeiro baile. Por insistência de Grace, acabou comprando um vestido de algodão indiano em tons de verde e ouro. Uma extravagância que desfalcou sua conta no banco mas lhe deu prazer. Ficaria ótimo com os brincos indianos que comprara em Londres, nos bons tempos. Na sexta-feira, acordou animada, disposta a fazer o cabelo, depois do trabalho. A cidade estava movimentada e, diante do empório, havia várias motos paradas. Um dos motoqueiros era Jeff Wainwright, o ex-jardineiro do Ninho dos Corvos. Já tinham se cruzado algumas vezes e ele nunca pareceu prestar atenção nela. Mas naquela manhã foi diferente. Quando se aproximou, Jeff barrou a passagem, olhando-a de um jeito esquisito, que ela não gostou. Rose tentou se desviar, mas ele insistiu em não deixá-la passar. Sentiu uma pontinha de medo mas imaginou que o rapaz não se atreveria a fazer nada de mal com tanta gente por perto e bem em frente à loja da irmã e da tia. Além do mais, que motivo ele teria para não gostar dela? — Quero falar com você — disse, imperioso.  Se é sobre o trabalho na casa, terá que falar com o sr. Maitland, quando ele voltar de Londres.  Não quero nenhum trabalho nojento com ele. É com você que preciso falar. Escute, é verdade que vai à festa dessa noite com aquele sujeitinho? — Apontou para a cerâmica. — As novidades se espalham — respondeu friamente.  Cidades pequenas são assim mesmo. As pessoas não têm mais o que falar, a não ser umas das outras. Mas você deve saber muito bem disso.  O que sei é que está me atrasando para o trabalho. Posso passar, por favor?  Pra que essa pressa, boneca? — Olhou-a da cabeça aos pés, fazendo com que se sentisse nua. — Que tal ir comigo?  Com você? Mesmo que eu quisesse, não poderia... já combinei ir com David.  Isso significa que não pode ou que não quer?  Que não quero. — Já que está sendo tão franca, vou ser também. O negócio é que David costumava sair com minha irmã, e ela ainda está a fim dele. Os dois tiveram uma briguinha, mas já teriam voltado se você não aparecesse. Agora, se disser a ele que prefere ir comigo, David acabará convidando Beth e todos vão ficar felizes. Rose já estava cansada de pensar sempre no bem dos outros e nunca no seu próprio. — Sinto muito, mas não posso. Não o conheço e não tenho a menor intenção de ir a uma festa ou a qualquer outro lugar com um desconhecido. Além do mais, se David quisesse levar sua irmã, não me convidaria. Suas intenções podem ser as melhores, mas a gente não tem o direito de interferir na vida dos outros. Ainda não descobriu isso? Um dos rapazes nas motos imitou o que ela tinha dito com uma voz de falsete e todos caíram na gargalhada. Rose sentiu que corava. A situação estava se tornando insustentável, mas o orgulho a impedia de fugir dali correndo. Jeff continuou insistindo: — O que há? Não sou bastante bom para você? Comigo, você vai se divertir muito mais do que com o palerma do David. Ou com aquele bastardo lá de cima.

O colorido no rosto de Rose tornou-se mais forte. Não era possível que as pessoas estivessem fazendo mexericos sobre ela e Curt! Tentou se controlar. Não, Jeff só tinha dito aquilo para irritá-la. Era pura maldade. Ele não sabia de nada. Ninguém sabia. — E só uma festinha. Você está fazendo barulho à toa. Não estou namorando David nem nada. Não tenho direitos exclusivos sobre ele. Pode dançar quantas vezes quiser com sua irmã. Agora, quer fazer o favor de sair da frente? Tenho que trabalhar. Jeff devia ter percebido a determinação em sua voz. Sem uma palavra, deixou-a passar. Rose ouviu as gargalhadas atrás de si e suspirou, aliviada. Tinha sido um incidente desagradável, mas acabara. Mesmo assim, se arrependia de ter aceitado o convite de David. Não que achasse que ele convidaria Beth Wainwright, mas para evitar se envolver em pequenos dramas amorosos. Já bastavam os que tinha. Estremeceu, ao lembrar o olhar de Jeff, uma mistura de sensualidade e antagonismo. Pode ser que a tivesse convidado como um ato quixotesco, para ajudar a irmã. Mas o rapaz não parecia ter nada de quixotesco. Na verdade, ele a amedrontava. Pensou em comentar o incidente com Grace. Depois, mudou de idéia. A família inteira estava mobilizada e ansiosa por causa dos exames de David. Para que lhes dar mais uma preocupação? Além disso, Clive podia resolver bancar o pai durão e proibir o rapaz de ir à festa. E o pobre precisava de um pouco de diversão. Nas últimas semanas não tinha feito outra coisa, além de estudar. Tiveram muitos fregueses naquele dia e não houve tempo para conversar com Grace. David também não apareceu. Rose imaginou que devia estar com o professor particular. Quando a cerâmica fechou, estava apressada para sair. Precisava arrumar o cabelo, correr para casa, tomar um banho e se trocar. Mas hesitou diante da porta. Temia encontrar Jeff Wainwright esperando por ela. Era um medo ridículo, sabia disso; no entanto, não conseguia evitar. Felizmente, ele não estava lá. Foi a irmã, Beth, que Rose encontrou diante do empório. A garota arrumava algumas maçãs na banca que havia na calçada. Sorriu para ela, mas o que recebeu em troca foi um olhar hostil e inimigo. Oh, Deus!, por que as coisas tinham que ser tão difíceis? Fizera um belo dia ensolarado e a noite prometia ser também agradável. Pensava nisso ao passar pelos portões do Ninho dos Corvos. O céu estava claro e havia apenas poucas nuvens, no topo da montanha. A perspectiva de se fechar numa sala de baile abafada e cheia de fumaça não era das mais tentadoras. Rose subiu a alameda, que fazia uma curva antes de chegar à casa. Então, parou, sem acreditar no que via. O carro de Curt estava parado na porta: ele tinha voltado sem avisar. Nem Sybila sabia, pois não dissera nada, quando a visitou, na véspera. Sentiu-se apreensiva. Não havia sinal do carro de Antônia. Mais uma vez ela não estava para recebê-lo com a casa limpa é comida decente. A menos que a madrasta estivesse tão segura de si que achasse desnecessário cumprir o acordo. Tensa, Rose abriu a porta e parou, dando uma olhada em volta. Mordeu o lábio. A casa estava descuidada, relaxada, negligenciada. Por todo lado havia poeira. Tentou ouvir algum sinal da presença de Curt. Nada. Se não tivesse visto o carro, pensaria que a mansão estava vazia. Foi até a cozinha. Pelo menos lá podia dar uma rápida arrumação e lavar a louça que Antônia sempre deixava dentro da pia. Nem isso a outra fazia. Abriu a porta, suspirando. Curt estava sentado à mesa, diante de um prato com restos de comida e uma xícara de café. — Bem-vinda ao banquete. Posso lhe oferecer uma bebida e um sanduíche de queijo? — Sorria, mas havia raiva em seus olhos.

Como de hábito, ela ia levar a culpa pela falta alheia. — Sinto muito. Se tivesse avisado que vinha, teria deixado o jantar pronto.  Onde está Antônia?  Não sei. Pode não acreditar, mas não sei mesmo.  Me dê uma boa razão para acreditar.  Não consigo pensar em nenhuma. — Foi o que pensei. — Pegou a xícara e despejou o café na pia. — Tem certeza de que não quer um pouco dessa bebida deliciosa? — perguntou, irônico. — Não quero nada. — Não a culpo — falou devagar, os olhos vagando pelas prateleiras empoeiradas e a pia gordurosa. Depois, fez uma careta. — E incrível! Duas mulheres em casa, e veja o que encontro. Pelo menos você poderia fazer um trabalho melhor do que este. O resto da casa não está diferente. Com exceção do meu estúdio e do seu quarto, porque eu olhei. — Você esteve no meu quarto? — perguntou, indignada. — O acordo era você ficar longe do meu, lembra? Além disso, não é a primeira vez. Ou esqueceu?  Não esqueci nada.  De quem é a máquina de escrever? — Minha. Eu a trouxe de Londres. Comprei com o dinheiro que você deu a Antônia para mim... antes de virmos para cá. Espero que não se importe. Os olhos de prata estavam fixos nela.  Costuma usá-la? Não me lembro de ter visto. Mas, claro, naquela noite minha atenção estava desviada para outras coisas.  Estou tentando escrever contos. Não tenho trabalhado muito, ultimamente, porque ando muito ocupada. — Rose percebeu o sorriso de sarcasmo dele e acrescentou, na defensiva: — Trabalho bastante na cerâmica e tenho visitado Sybila todas as noites. Não sobra tempo para outras coisas.  E o que você escreve, quando sobra? Redações escolares? Histórias de fadas? — Sentou-se, esticando as pernas e cruzando as mãos atrás da cabeça.  Apenas histórias... contos. Bem... histórias de amor, se quer mesmo saber.  Que garota precoce! Você deve ter uma imaginação muito fértil, minha criança. Eu devia ter lido o que estava na máquina. Assim, saberia algo a seu respeito. O coração dela batia descompassado. — Não acho que tenha muito a aprender sobre mim. — Não acha? Bem, você deve saber melhor do que eu. — Curt levantou-se, espreguiçando-se, e estendeu a mão para ela. — Vamos deixar essa conversa para depois. Agora, quero levar você para dar um passeio pelo atalho.  Agora?  Por que não? Pensou em qualquer desculpa plausível para dar, sem se trair. — Você... disse que eu não devia andar pelo atalho sem roupas adequadas. Ainda não tenho nenhuma. — Estou convidando para um passeio rápido e não para uma escalada de quilômetros. O tempo está bom. Mesmo que mude de repente, posso trazê-la de volta para casa num instante. Não queria que você se aventurasse a sair sozinha e acabasse se perdendo. Comigo, não há perigo. Então, vamos? — Quando segurou a mão dela e Rose não o seguiu, seu rosto endureceu. — Isso não é um convite, Rose, é uma ordem. Preciso de companhia. Já fiquei bastante sozinho por hoje.

— E acha que sou tão disponível? — Se é assim que quer encarar a coisa... De qualquer forma, você vem comigo. Seria um tormento sair com ele. Será que Curt não percebia? Não fazia a menor idéia de como se sentia? Resistiu novamente e um pesado silêncio caiu entre, os dois. Curt aproximou-se e ela teve medo de que a agarrasse e levasse para fora à força. Só pensar nisso fez suas pernas enfraquecerem. Respirou fundo e passou por ele, saindo para o jardim. Depois de um instante, Curt a seguiu. Caminharam lado a lado, mas Rose tentou manter o máximo possível de distância. Seguiram sob as copas baixas das árvores, num silêncio gostoso, quebrado apenas, de vez em quando, pelo canto de um passarinho. Pouco depois do portão, uma árvore tinha caído, bloqueando a passagem. Curt tentou removê-la, sem resultado. Tiveram que passar por cima e Rose recusou sua ajuda.  Aquele quadro da ninfa podia dar certo — ele disse, de repente. -— Tem certeza de que não quer posar para mim?  Absoluta. Como já disse, acho que você não terá dificuldades para encontrar outros modelos.  Mas nenhuma outra ninfa igual a você. Sabia que seu cabelo brilha como as folhas de uma amendoeira, quando o sol bate nele? — Não. Nem estou interessada. — Quanta modéstia! Muitas meninas de sua idade ficariam encantadas de ter a sua aparência. Você, não. Você prefere escrever contos, cozinhar e vender cerâmicas. Que outros segredos e talentos está escondendo? — Nenhum. E não gosto desse tipo de conversa pessoal. — Conversa pessoal... Você raramente age como uma pessoa de carne e osso, Rose. Cada vez que nos encontramos, está sempre bancando a heroína de um conto de fadas. Agora, é Bela Adormecida. Só espero que não pretenda dormir cem anos e deixar sua vida passar.  Até que não seria má idéia, as pessoas parariam de me atormentar.  E o que eu faço? Gostaria que fosse gentil com você? O problema é que nossas idéias sobre o que é gentileza podem não ser exatamente as mesmas.  A crueldade é tão mais fácil, não? Ainda mais, quando o alvo é alguém que não pode se defender.  Acha que sou mau? Não me conhece direito, garota. E se eu lhe disser que ainda nem comecei?  Então, Deus ajude... as pessoas de que você não gosta. — Sentia-se perigosamente perto das lágrimas. — Acho que já andamos demais.  Dando para trás? Você realmente não gosta de ficar sozinha comigo, não é, Rose? — Preciso mesmo responder? — Talvez não. Será que tornaria as coisas mais fáceis, se eu dissesse que não tenho nenhuma segunda intenção? Que percebi que estava indo pelo caminho errado? E injusto pressionar você ou exigir coisas que não tem idade nem maturidade suficientes para enfrentar. — Obrigada — falou, um tanto irritada. — Oh, pelo amor de Deus! Não me venha agora dar uma de ofendida. Será que nunca consigo acertar? O que quer, afinal? Não estou acostumado a lidar com garotas. Já lhe disse isso. Muito menos com garotas que acham que podem tomar atitudes de mulher. Estou tentando fazer um favor a nós dois, porque não há o menor futuro para um homem da minha idade e uma menina da sua.

Rose ouviu aquilo, sentindo uma enorme agonia crescer dentro do peito. Queria correr para os braços dele e dizer que só o presente importava e que o amor não era compromisso: valia a pena, enquanto durasse. Mas controlou as emoções. Curt podia rejeitá-la. Na verdade, era quase certo que o faria. E isso ela não suportaria. Limitou-se a dizer: — Você pensa que sabe tudo, não é? Mas, neste caso em particular, está certo. Meus planos não o incluem, também. Tentou passar por ele, sem olhá-lo. Mas Curt barrou o caminho e segurou seu queixo, obrigando-a a encará-lo.  De que planos está falando?  Nada que seja de sua conta.  É claro que é da minha conta. Não consegue entender que, por enquanto, sou responsável por você?  Mas não quero que seja. Posso passar muito bem sem a figura de um pai. Mesmo que não pudesse, você seria o último homem do mundo que eu escolheria. Também não quero viver às suas custas. Essa nunca foi a minha intenção, acredite. — Acho que compreendo. E com quem você gostaria de estar? Com os Lister? Será que esses planos de que falou incluem o jovem David?  Gosto de David, sim. Por que não deveria? Além do mais, ele é da minha idade.  Ele nunca será da sua idade. Vá devagar com David, Rose. O rapaz sempre foi superprotegido pela família. Não tem maturidade. Você pode ser demais para ele.  Saberemos isso amanhã de manhã.  É uma maneira sutil de me dizer que vai sair com ele esta noite?  Vamos a uma festa em Arnthwaite. Por quê? Eu devia ter pedido permissão a você?  Não. Mas pediu à sua madrasta, não? Ela tem todo o direito de decidir o que é bom para você. Como ele era cego! Antônia não se importava nem se ela estava viva ou morta. Mas não podia dizer a verdade. — Minha madrasta não fez nenhuma objeção. — Então, não há problema. Agora, vamos admirar a vista, que foi o motivo do nosso passeio. Saíram da sombra das árvores para uma pequena plataforma. Lá embaixo, via-se o vale com sua vegetação selvagem e suas rochas cinzentas. À direita, um pequeno atalho que levava a uma cachoeira. À esquerda, a escarpa da montanha, que descia quase em linha reta. Era uma linda vista e, com o dia tão claro, descortinava-se o vale até a linha do horizonte. Ravensmere ficava nas montanhas em volta, como um lenço branco que alguém deixara cair. Um pássaro negro voou por sobre suas cabeças e voou na direção do vale, com um grito estridente que ecoou pelas rochas. Rose deu um passo atrás, amedrontada. — Ele a assustou? Curt estava parado a seu lado e aquela proximidade a fazia desejá-lo mais ainda. — Um pouco. O que era? Um corvo? Uma gralha?  Por aqui há várias espécies de aves de rapina, sabe? Agora, estamos no fim da estação de procriação e muitos dos filhotes mais novos estão aprendendo a voar. Esse que passou por nós era um corvo adulto. Provavelmente, nos avisando de que não devemos chegar muito perto dos ninhos.  Oh, como eu gostaria de dar uma olhada. Os únicos corvos que vi roçam os da Torre de Londres e não parecem nem um pouco selvagens e perigosos.

— É verdade. — Curt riu. Aparentemente, a tensão entre eles tinha diminuído. — Mas esses são domesticados. A lenda diz que foram para a torre tomar conta da cabeça de um dos reis celtas que está enterrada lá. Dizem que os corvos daqui ajudam as pessoas que se perdem na montanha por causa da neblina. — Mesmo?  Não passa de superstição. Aconselho você a não experimentar. Mas são pássaros interessantes. Na última primavera em que estive aqui, passei horas observando-os. O ritual do acasalamento merece ser visto. Os machos fazem acrobacias incríveis, enquanto as fêmeas se esquivam, fingindo que não querem nada com eles. — Fez uma careta. — Parecem até humanos. — Depois de uma pausa, continuou: — Preste atenção na festa, hoje à noite, e veja se não estou certo.  Vou prestar. Mas tenho que voltar para casa, agora. Preciso me trocar.  Está certo. Acha que consegue encontrar o caminho sozinha? Vou ficar aqui mais um pouco. — Sim, claro que consigo. Rose afastou-se devagar, não querendo demonstrar pressa nem medo. Quando alcançou as árvores, virou-se para trás. Curt estava no mesmo lugar em que o havia deixado. Tinha um físico tão musculoso e sólido que parecia parte da rocha à sua volta. Parado ali, na beira da plataforma, dava uma sensação de solidão tão grande que ela ficou comovida. Abafando um soluço, continuou a descer por entre as árvores, em direção à casa. Olhando-se no espelho, naquele vestido verde e dourado, Rose achou que não era assim tão sem graça como imaginava. O único problema é que não tinha mais a menor vontade de ir à festa com David. Pegou o batom e passou uma camada mais forte nos lábios pálidos. Mas não existia cosmético capaz do milagre de fazê-la parecer menos tensa. Só esperava que David não notasse. A porta do banheiro foi aberta e Antônia entrou. Como há muito tempo a outra não a procurava, Rose imaginou que estava querendo algum favor. Talvez, que preparasse uma refeição para Curt. Conhecia aquele olhar de falsa doçura que a madrasta usava sempre, antes de pedir alguma coisa. Nem deixou a outra falar. Foi logo avisando: — Não precisa se preocupar porque vou sair. Há bastante comida no congelador e... — Quem foi que disse que estou preocupada com comida? Meu Deus, - Rose, você só sabe pensar nessas coisas tão prosaicas? Queria apenas que me fizesse um pequeno favor. Rose suspirou. — Mas vou sair daqui a pouco, Antônia. Não tenho tempo... — Não quero nada agora, neste momento. Pode fazer o favor a qualquer hora. Claro que, quanto mais cedo, melhor. O problema é que... Bem, preciso de algum dinheiro e sei que você tem. Esta economizando o salário da cerâmica e não mexeu na droga de mesada que seu pai deixou. Não tem comprado nada, a não ser esse trapo que está usando. E isso não pode ter custado uma fortuna. — Você é tão educada e gentil que me deixa embaraçada, Antônia. Virou-se e encarou a madrasta que, para sua enorme surpresa, corou um pouco. Não fazia idéia de que fosse uma atriz tão boa.  Ora, querida, é o meu jeito de falar. Não tem nada de pessoal e você sabe. — Estava se esforçando para bancar a boazinha. À sua maneira, claro. — Não vamos discutir, só porque temos gostos diferentes para roupas, não é? O que quero saber é o seguinte: você pode me ajudar?

 Só isso? Depende. O que é que vai mal? Por que precisa de dinheiro assim de repente? Você também tem sua mesada.  Aquilo! Meu Deus, quase não sobrou nada. Já peguei vários pagamentos adiantados. Tive que comprar roupas. Nenhuma das minhas roupas de Londres serviriam neste fim de mundo.  Não pode esperar até o próximo pagamento? — Rose estava irritada. — Seja lá o que queira comprar, a loja reserva para você, se fizer um depósito. O que é, dessa vez? Outro vestido?  Não, nada disso. Se quer mesmo saber, estou devendo dinheiro a algumas pessoas. Pensei que poderia pagar, mas a dívida cresceu muito e a situação está se tornando embaraçosa.  Você deve dinheiro? — Rose sentiu como se um antigo pesadelo estivesse começando de novo. — Mas, Antônia, por quê? Como? Não é possível!  E mais do que possível. Pelo amor de Deus, Rose, eu tinha que me divertir. Curt não podia me trancar aqui e esperar que eu só vivesse quando ele está por perto, sem conhecer ninguém, além daqueles odiosos Lister.  Tem algo a ver com Keswick, não é? Pensei ter visto você lá, há alguns dias. Numa casa enorme.  Isso mesmo. Não queria me envolver, dessa vez. Pensei que tinha aprendido a lição, depois daquele desagradável incidente com Célia Maxwell. Mas as coisas fugiram do meu controle. — Bridge, novamente? Oh, Antônia! — Não precisa fazer essa cara de piedade. Não é nenhuma tragédia. Acontece que não posso viver isolada. Tenho que estar entre pessoas alegres e coisas bonitas. Pensei que ia enlouquecer neste lugar, até que encontrei Louise no cabeleireiro e começamos a conversar. Depois, ela me convidou para ir à sua casa e me apresentou às amigas. Jogamos, só como diversão, e eu ganhei. Nas primeiras vezes, tive muita sorte. Mas aí, a sorte virou, e tem sido assim desde então.  Quanto você está devendo?  Por volta de quinhentas libras.  Oh, meu Deus! — Rose sentiu um frio no estômago. — Não tenho tudo isso no banco.  Então, me dê o que tiver. Eu devolvo, juro. Quando receber as próximas mesadas. Só que Curt não pode saber de nada. Estragaria tudo. Rose olhou para as mãos crispadas no colo. Pareciam ter voltado no tempo, quando moravam em Londres. Sabia que Antônia nunca pagava o que lhe pedia emprestado e que quando dizia que sua dívida era "por volta de" alguma coisa, isso significava que podia ser até mesmo o dobro. Não agüentava mais tanta irresponsabilidade! Será que algum dia ia se livrar de tantas mentiras? Falou, num sussurro:  Antônia, eu trabalhei duro para juntar esse dinheiro. Se os credores esperaram até agora, podem esperar mais um pouco. E você não deve continuar escondendo coisas tão sérias de Curt. Se ele vai ser seu marido, precisa saber o que se passa por aqui.  Nas contas das lojas, dou um jeito. Mas Louise e os outros já estão me tratando com frieza. Com toda razão. A sra. Winslow, do Ninho dos Corvos, tinha enganado todo mundo, com suas roupas caras e importadas.  Se eu lhe desse o dinheiro, você pararia de jogar e de ver essa gente? Papai costumava dizer que um bom jogador precisa de sorte, além de habilidade. Não acho que você tenha sorte, Antônia.

 Mas é claro que não vou parar de vê-los. São meus amigos. São o que torna minha vida aqui mais suportável. Não venha me pregar sermões, garota! E não meta seu pai nessa história. Ele não é nenhum exemplo para ser seguido. Se tivesse tido mais sorte nos negócios, eu não estaria nesta situação, agora. — Sua voz tinha uma nota de histeria.  Talvez. O que quer dizer que não somos uma família de sorte.  Isso não importa. Como é? Vai me ajudar ou não? Rose sentiu-se gelar. Mas não tinha como adiar mais aquela decisão.  Não creio que possa. A única pessoa que está em condições de ajudá-la é o homem com quem vai se casar. Tente ser honesta com ele. Fará bem a você e deve funcionar.  Se você pensa assim... — Antônia levantou-se — então é mais imbecil do que eu imaginei. Nenhum homem gosta de ver seu ideal de mulher cair do pedestal. Nem mesmo o cínico bastardo do Curt. Lembre-se disso.  Felizmente, não sou seu ideal de mulher.  Resumindo: você não vai mesmo me ajudar? — Não posso. Não tenho a soma de que você precisa e tenho que pensar no meu futuro. Quando o verão terminar, quero ser auto-suficiente. Vou precisar de cada tostão que economizei e ainda mais. — Seu tom de voz era firme mas, no íntimo, Rose sentia-se muito fraca. Aquela era a primeira vez que não tinha deixado que Antônia a enrolasse com suas súplicas e chantagens. Teria sido muito mais fácil ir a Keswick, tirar as economias do banco, entregar tudo à outra. Mas, dessa vez, a situação era diferente. O futuro de Antônia estava garantido, ao lado de Curt. O dela não podia ser mais incerto. E, em nome do passado e do presente, precisava pensar em si mesma, antes de mais nada. Era terrivelmente importante — vital, mesmo — conquistar a independência, quando o verão terminasse. Houve um silêncio carregado de ressentimento. Depois, Antônia disse, venenosa: — Você vai se arrepender por isso. Vou fazer com que se arrependa amargamente por ter vindo para cá. — Agora é muito tarde, Antônia. Já estou arrependida. Mas a madrasta tinha ido embora, batendo a porta.

CAPÍTULO IX

David não notou que Rose quase não falou, quando se dirigiam para Arnthwaite. O rapaz estava sempre brincando e muito do que dizia não exigia resposta. De vez em quando, ela sorria para ele, sem ter a menor idéia do comentário que tinha feito, e mergulhava novamente em seus pensamentos sombrios. Não tinha gostado nada da ameaça de Antônia, mas, na verdade, não havia mais muita coisa que a madrasta pudesse fazer para prejudicá-la. Se começasse a persegui-la, só lhe daria um motivo extra para sair para sempre daquele lugar. Duvidava de que a outra contasse toda a verdade a Curt. Sem querer, lembrou-se dele, tão solitário no alto da montanha, olhando para o vale que tanto amava e que Antônia detestava. Será que contornariam os problemas, quando se casassem? Ou ele sacrificaria seus princípios em nome do amor? Isso significaria sair do Ninho dos Corvos e abandonar Sybila. Mas não era problema dela. Tinha que parar de se preocupar com a vida dos outros e cuidar de si mesma..

Quando chegaram, havia muitas motos estacionadas em frente ao clube. Só então, lembrou-se de Jeff. Já teria chegado? O dia tinha sido tão cheio de encontros estranhos... Esperava esquecer tudo com a música e a dança. Deixou o casaco no hall e foi ao encontro de David, que a esperava no bar.  Quer beber alguma coisa?  Ainda é cedo. Vamos dançar para dar sede?  Grande! No salão, a música tocava tão alto que Rose levou as mãos aos ouvidos, um pouco tonta. — Você vai se acostumar,— David disse, quase berrando. — Vamos tentar conseguir uma mesa, enquanto é tempo. Cerca de uma hora depois, o salão estava lotado. Apesar da confusão, Rose viu Jeff Wainwright chegar. Passou bem perto de sua mesa, mas não a notou. Ou fingiu não notar. Até então, não tinha dançado. Divertia-se apreciando os outros. Só quando a música enlouquecedora acabou e começaram a tocar algo mais lento e romântico, David pegou sua mão e foram para a pista. Ele a abraçou muito forte e Rose ficou sem saber o que fazer. Não queria dançar tão junto, mas também não queria afastar o rapaz e ferir seus sentimentos. Finalmente, conseguiu, com muito jeito, convencê-lo a voltar para a mesa, com o pretexto de que estava com sede e queria a bebida que ele tinha oferecido. — Uma coca, por favor — pediu. Pensou que ele também fosse tomar um refrigerante — afinal, não tinha idade para coisa mais forte —, mas David voltou do bar com um copo de bebida alcoólica. Não ficaram sozinhos na mesa. Outros casais jovens, provavelmente colegas de escola, juntaram-se aos dois. Eram divertidos, embora barulhentos. Assim que a música recomeçou, um dos rapazes a convidou para dançar. Ficou aliviada: era sinal de que ninguém ali a considerava propriedade exclusiva de David. Ele também foi dançar, com uma menina muito bonitinha, que o olhava como se fosse a oitava maravilha do mundo. Rose só não gostou de ver que ele não parava de beber. Ao voltarem para a mesa, David já estava no terceiro copo, preparando-se para o quarto.  Trouxe outra coca para você. Ou será que prefere algo mais forte?  Não. O refrigerante está ótimo. O rapaz conversava e brincava sem parar, mas Rose sentia que, no íntimo, não estava tão animado. Talvez tivesse percebido que inventara uma desculpa para não dançarem tão abraçados. Paciência! Não podia arriscar a se meter em mais complicação. Nem queria estragar o relacionamento que tinham. Eram bons amigos e a coisa devia ficar assim. Ele era jovem, viril e fisicamente atraente. Não devia estar acostumado a ser rejeitado. Vaidade ferida — seu aborrecimento não passava disso. Dançaram novamente e houve um certo constrangimento entre os dois. Foi um pouco depois do jantar, oferecido e servido pelo clube local de fazendeiros, que Rose percebeu que David tinha desaparecido. Não conseguia vê-lo em lugar nenhum. Perguntou às moças que haviam dançado com ele e pediu aos rapazes que fossem procurá-lo no vestiário. Nada. Olhou para o relógio, preocupada, e foi até o bar. David também não estava lá. Depois de uma ligeira hesitação, pediu um drinque, que tomou de um gole só. Agora, só faltava procurar lá fora. Depois do salão cheio e abafado, o ar da noite pareceu gelado. Rose estremeceu. Onde procurar primeiro? Uma voz às suas costas assustou-a:

— Boa noite, majestade. Rose virou-se e viu Jeff Wainwright. Ele a olhava e sorria daquele jeito detestável. — Saindo tão cedo? Ainda nem dançamos... — Não tenho a menor intenção de dançar com você. Saí só para respirar um pouco. — Oh, é claro. Ficou parado na frente dela, com as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta de couro. Rose tornou a virar-se, resolvida a voltar para a festa. Jeff não fez um movimento para impedi-la, Quando se aproximou da mesa, percebeu que a conversa parou, de repente, e teve certeza de que falavam dela e David. Começou a se sentir humilhada. Esperou ver, H qualquer momento, o rapaz entrando com Beth Wainwright. Pelo menos, saberia onde ele tinha estado e com quem. Mas outra hora se passou e nada aconteceu. Irritada, Rose achou que já era o bastante. Tinha ido ali para se divertir e não para se preocupar com um garoto irresponsável e ser alvo de comentários. Despediu-se do grupo — que estava tão embaraçado quanto ela — e foi pegar seu casaco. Havia um telefone no hall e resolveu chamar um táxi. Antes, porém, veria se o carro dele ainda estava no estacionamento. Para sua surpresa, o carro continuava no mesmo lugar onde o haviam deixado. Aproximou-se e viu movimento. Pensou que talvez David estivesse com uma garota que não se importava com seus avanços. Ia voltar, quando ouviu um gemido. E não era, absolutamente, o tipo de gemido que esperava ouvir. Correu e abriu a porta do carro. David estava estendido no banco da frente, os olhos fechados e o rosto muito pálido. — David! Meu Deus, o que foi que aconteceu? O rapaz fez um esforço incrível para tirar a chave do bolso e começou a tatear, procurando o contato. Rose inclinou-se sobre ele e tirou a chave de sua mão. — Você não vai dirigir para lugar nenhum. Certamente, aquilo era efeito da bebida. Pegou um lenço na bolsa e amarrou na testa dele. Seu hálito cheirava fortemente a álcool e havia uma garrafa vazia caída no assoalho do carro. — Quem lhe deu esse uísque, David? — Fez o possível para que o tom da pergunta fosse amistoso.  Je... o bo... Je... — O rapaz enrolou a língua.  O bom Jeff, não é? Claro. Quem mais podia ter sido? Agora, o importante era levá-lo para casa o mais rápido possível. Será que havia perigo de coma alcoólico? Aquele maluco do Wainwright não seria capaz de ir tão longe. Ou seria? Lembrou-se do jeito insolente como a tratara e dos risos de seus amigos. Certos tipos covardes são capazes de tudo, quando estão em turma. A primeira providência, no momento, era puxar David para o outro lado, o banco dos passageiros. Não conseguiria isso facilmente, mas não quis chamar ninguém, porque ele era menor. Quanto menos gente soubesse de sua bebedeira, melhor. Só procuraria ajuda se visse que era totalmente impossível continuar sozinha. A dificuldade maior não foi arrastar o rapaz. Mas, toda vez que se inclinava sobre ele, tentando segurar seus braços, ele interpretava como um gesto amoroso e procurava abraçá-la. Acabou tendo que lhe dar uns tapas, para acalmá-lo. Depois disso, ele ficou quieto e Rose pôde trabalhar em paz e rapidamente. Então, o rapaz começou a chorar; a seguir, sentiu-se enjoado; finalmente, vomitou e caiu para o lado, desmaiado.

Quando conseguiu arrastá-lo para o banco, Rose estava encharcada de suor. O vestido novo prendera na maçaneta da porta e havia rasgado. Sua cabeça doía e sentia-se nauseada, com vontade de chorar e vomitar também. Apertando os dentes, entrou e ligou o motor, que só pegou depois de várias tentativas. Teve dificuldade com o câmbio duro e com o acelerador. Mas conseguiu manobrar entre os outros carros, sem bater em nenhum deles, e pegar a estrada. David jazia no banco ao lado, feito um boneco de pano. A viagem de volta para Ravensmere foi um verdadeiro pesadelo. Havia sua ansiedade por ele, o problema de dirigir a caminhonete depois de meses sem treino e o fato de não conhecer a estrada direito. Felizmente, o trânsito era pouco. Mesmo assim, estava tensa. Suas costas doíam e a roupa tinha colado ao corpo quando, finalmente, chegou à cerâmica. Estacionou um pouco afastado, desligou o motor e preparou-se para o passo seguinte de sua aventura: tentar levar David para casa sem fazer barulho para não acordar nem preocupar Grace e Clive. Ia ser a parte mais penosa, pois já se sentia esgotada. Abriu a porta, zonza, e teria caído no chão se mãos fortes não a tivessem segurado. Ouviu a voz fria de Curt: — O que pensa que está fazendo? Rose nunca o tinha visto tão zangado. — Eu fiz uma pergunta, mocinha! Sei que você não se enquadra nos padrões normais de educação, mas nunca pensei que fosse bastante louca para infringir a lei e ainda por cima arriscar se matar por essas estradas. Como é que David permitiu uma maluquice dessas? O que é que esse rapaz está pensando da vida? É outro irresponsável! Rose queria sentar na calçada fria e poeirenta e chorar. Fez um gesto, indicando o carro.  David não está em condições de pensar nada. Veja você mesmo. Curt fechou mais a cara.  Você o deixou ficar nesse estado? — Não sabia? E o meu passatempo favorito. Adoro seduzir menores e despejar-lhes álcool goela abaixo.  Não tente bancar a espertinha comigo. Isso é muito sério. Quanto ele bebeu?  Não faço a menor idéia. Eu não estava lá, quando isso aconteceu. Por que não vai perguntar aos amigos dele? — Também posso lhe dar uma surra! — Agarrou-a pelos ombros. Rose deu um grito de dor e ele sorriu, sem diminuir a pressão dos dedos.  Dói, não é? Acredite que isso não é nem a décima parte do que eu gostaria de fazer com você. Podia ter morrido, sua tola irresponsável. Não percebe isso, garota idiota? O que teria feito, se a polícia parasse você?  Muito pouco — Rose estava trêmula de raiva. — Não bebi nada a noite toda, a não ser refrigerante. Tenho uma carteira de motorista que está em ordem e acredito que o carro tenha seguro contra terceiros. E podia dizer que David estava dormindo, se a polícia perguntasse. Certas mentiras são necessárias, não acha? Por isso, pretendo mentir para Grace e Clive também, quando me perguntarem como foi a festa. Satisfeito? Agora, pelo amor de Deus, pare de me torturar com esse interrogatório e me ajude! Precisamos levá-lo para dentro. Curt soltou-a. Sem uma palavra, foi até o carro. Rose respirou fundo e o seguiu. David estava semiconsciente, murmurando coisas incompreensíveis e respirando com barulho. Assim que o tiraram do carro, para o ar puro da noite, sentiu-se mal novamente. — Diabo! Vamos ter que acordar os pais dele — Curt falou, irritado. — Não podemos deixá-lo sozinho nesse estado a noite toda.

A espera na sala pareceu uma eternidade, Curt tinha colocado David no sofá e Rose estava a seu lado, observando-o. Continuava nauseado, mas tinha recuperado um pouco da cor. Finalmente, Grace desceu. Veio apressada, amarrando o cinto do robe. — David! O que foi? Inclinou-se para o filho e depois olhou para Rose. Sua voz falhou, quando percebeu o estado em que ela estava: o vestido rasgado, pálida e abatida. Seu rosto se contorceu, numa expressão de desprezo. — Não sei qual foi a sua participação nessa história, mas não quero nunca mais ver você, Rose. Por favor, saia desta casa e não volte. Mordendo o lábio para não chorar, Rose correu para a porta. Poderia ter protestado e obrigado Grace a ouvir a verdade, mas a mãe de David tinha assuntos mais urgentes para tratar. Além disso, sentia-se cansada demais. Fisicamente exausta e farta de tantos mal-entendidos. Continuou correndo pela calçada, tropeçando, sem enxergar direito. Atrás dela, Curt perguntou:  Onde você vai?  Voltar para casa. Passou as mãos no rosto, desesperada; não queria que ele visse que estava chorando.  Meu carro está na esquina.  Prefiro andar. — Não seja tola. Você vem comigo. E não leve a sério as palavras de Grace. Ela está muito nervosa e perturbada. Clive vai lhe mostrar como foi injusta, expulsando você de lá. Ele estava chamando o médico, quando saí. Ela não respondeu e Curt continuou: — Rose, precisamos conversar.  Acho que já ouvi o bastante. De todo mundo. — Limpou as lágrimas com as costas da mão.  Pelo contrário, ainda nem começamos. Você insinuou que os amigos eram os responsáveis por tudo que aconteceu com David hoje. Que amigos?  Jeff Wainwright. E a irmã... talvez.  O que a faz dizer isso? — David me contou. Ele sumiu da festa durante uma hora e, quando fui procurá-lo, Jeff estava lá.. Parece que ficou furioso com o fato de David não sair mais com a irmã dele. Hoje de manhã, nós nos encontramos na rua e ele quis me convencer a não ir à festa com David, para que ele saísse com Beth. Eu... recusei. Acho que o que fez agora à noite foi uma espécie de vingança. Tinham chegado ao carro e ele abriu a porta do lado do motorista. — A não ser que você queira dirigir. Rose afundou no banco, sem responder. — E claro que não vou pedir para ver sua carteira de motorista. Acredito que ela exista e que tenha sido obtida legalmente, mas isso não combina com certos fatos que pensei saber a seu respeito. Rose, exatamente que idade você tem? — Tenho dezenove. Vou fazer vinte em outubro. Satisfeito? — Nem um pouco. — Havia um tom ameaçador em sua voz que a fez estremecer. — Por que fingiu ter só dezesseis? É alguma piada? Se é, escolheu a pessoa errada. Essa não é a minha diversão predileta.  Não foi uma piada. — Então, foi o quê?

 Parecia mais seguro. — A verdade incriminaria Antônia. Por isso preferiu dar uma outra versão. — Sua reputação de conquistador é conhecida e Antônia ficou preocupada por mim. Pensamos que, se eu fingisse ser mais jovem, você me deixaria de lado. Mas parece que estávamos enganadas. Ele não respondeu. Fizeram o resto da viagem em silêncio. Quando chegaram em casa, Rose saiu do carro depressa e subiu a escada correndo. Mas tropeçou na saia rasgada e quase caiu. Novamente, ele estava lá para impedir. — Oh, não, benzinho, você não vai escapar de mim tão fácil assim. Pegou-a no colo, entrando na casa. Rose esperneou e esmurrou seu peito, mas o máximo que conseguiu foi ficar ainda mais cansada e perder os sapatos.  Me põe no chão!  Quando eu quiser. Entrou na sala e jogou-a, como um fardo, em cima do sofá. — Você estragou seu vestido. Como já está rasgado... — Inclinou-se sobre ela e puxou o tecido, que rasgou da gola até a cintura.  Não... por favor!  Por que não? Ela tentou esconder os seios, mas Curt afastou suas mãos, com violência.  Não há nada que possa me fazer parar agora, querida. Nenhuma regra moral. Nenhum remorso em relação à sua juventude e inocência. Tive você nos braços antes e sei como sua boca e seu corpo respondem. Fiquei mais faminto ainda... mais faminto do que nunca.  Curt, não! Sinto muito ter mentido para você. Mas pareceu a melhor coisa a fazer, no momento.  Sente? Você nem sabe o significado dessa palavra, querida. Mas vai saber... amanhã de manhã. O beijo dele foi violento e insolente, dominando-a e destruindo sua resistência. Mas Rose não correspondeu. Daquele jeito, ele nunca conseguiria despertar seu desejo.  Não lute, Rose. A batalha está no fim e você vai perder, de qualquer maneira. Sabe disso. Então, por que não gozamos juntos a minha vitória?  Porque não sou sua conquista. — Sua cabeça girava e ela o via através das lágrimas.  Não chore. — Curt aproximou-se mais e passou a língua em seu rosto. — Lágrimas não são argumentos que funcionam comigo. Está perdendo o seu tempo... e o meu. Podíamos aproveitar esse tempo de um jeito muito melhor. Rapidamente, rasgou o resto do vestido, que caiu no tapete. — Verde e dourado. Cores de ninfa. Mas acho que quando começar seu retrato, vou querer pintá-la como está agora. As mãos de Curt deslizaram por seu corpo, provocando, fazendo-a estremecer e perder o fôlego. Ele sorria, e Rose ficou cada vez mais amedrontada. Sua boca explorou todos os segredos que antes eram só dela. Rose debatia-se, inutilmente, lutando mais contra o próprio desejo do que contra o dele. Aquele toque era mágico, era um tormento, era loucura. Sussurrou, numa voz irreconhecível:  Por favor, você tem que me deixar, Curt.  Nem no inferno! E não acho que você queira mesmo isso.  Antônia... — Está dormindo. Dessa vez, ela não virá salvar você. Não que você queira ser salva. Ou quer? Não mais do que da outra vez. Você quer tudo aquilo e mais ainda.

Curvou-se e beijou seus seios, demorando-se nos bicos rosados, até que ela se sentiu enlouquecer de prazer. Puxou-o pelo cabelo e ele a esmagou sob o próprio peso. O que estava acontecendo era inevitável. Sabia disso, desde a primeira vez que o viu. Talvez por esse motivo não tivesse resistido à idéia de vir morar no Ninho dos Corvos. Mas, se desejava tanto que a possuísse, por que aquela estranha sensação de desgosto e perda? A resposta era uma só. — Você não me ama — disse, com um soluço. Curt levantou a cabeça e encarou-a, cínico. — Não sabia que isso era indispensável. Aceite o fato de que eu a desejo violentamente, Rose, e deixe o sentimentalismo para as historinhas que escreve. Aquelas palavras foram como uma bofetada. Rose começou a empurrá-lo. — Desejar não é o bastante.  Então, vou fazer com que seja. Não banque a ingênua. Não tente esconder seus desejos com emoções tolas.  Emoções nunca são tolas e não posso deixar de ser ingênua. Não estou acostumada a situações como esta. — E qual é a próxima desculpa? Que ainda é virgem? — Deu uma risada. — Nem tente isso, minha querida. Pensei que a brincadeira tinha acabado e estávamos jogando limpo. — Não é um jogo. E terrivelmente sério. Se você me possuir, serei sua para sempre, e isso você não vai querer. No momento, sou apenas uma novidade. Mas logo o seu desejo vai se transformar em constrangimento. Porque, depois desta noite, não serei mais capaz de esconder o que sinto por você... se me tornar sua amante. Ele deu de ombros, e Rose continuou:  Eu não disse que não ia brincar. Mas deve haver um preço no mercado para a virgindade — acrescentou, petulante. — Se deseja tanto a minha, é justo que pague. Além do mais, é artigo raro, hoje em dia.  Muito raro. Mas, se estamos negociando, que tal trocarmos sua dádiva preciosa por um quadro? Um Curt Maitland original, assinado pelo artista. Um quadro de uma ninfa, naturalmente.  Prefiro em dinheiro. Pintar um quadro demora muito e não pretendo passar nesta casa uma hora além do necessário. Bem, sr. Maitland, quanto está preparado para pagar para satisfazer seus instintos? Espero que não ofereça menos do que o suficiente para que eu possa voltar a Londres e me sustentar, até achar um emprego.  Estranho, mas parece que perdi o apetite. Até hoje, nunca tive que comprar uma mulher. E não pretendo começar com você sua cadelinha mercenária. O desprezo machucou-a, mas Rose tentou sorrir. — Então, posso pegar o que sobrou do meu vestido?  Com prazer. — Pegou o tecido rasgado e entregou a ela. — Espero que eu não tenha que pagar um novo.  Não quero nada de você. — Sentia-se degradada e humilhada, à beira das lágrimas.  É bastante ajuizada... em algumas coisas. Diga: está pensando em oferecer sua mercadoria a mais alguém?  Acho que não. — Não se atreveu a encará-lo. — Você é o único que conheço que poderia pagar o meu preço. Não aceitaria um tostão a menos. — Você não vai chegar a nada, agindo desse jeito, Rose. Se quiser sair daqui, terá que trabalhar para ganhar sua liberdade. — Vou trabalhar, vou trabalhar. Oh, meu Deus, vou fazer tudo para sair deste lugar e nunca mais olhar para a sua cara. Será que fui clara?

— Como cristal. Agora, caia fora. Quando Rose chegou à escada, mal pôde subir, de tão trêmula que estava. Teve medo de que Curt viesse atrás dela, mas ouviu o tilintar de uma garrafa num copo. Quem dera que ela também pudesse encontrar consolo no álcool. Quando acordou, na manhã seguinte, o sol entrava pela janela. Ainda zonza de sono, pensou que estava atrasada para o trabalho. Sentou-se na cama e, aos poucos, as lembranças da véspera começaram a voltar. Precisava recolher os cacos de sua vida e tentar seguir em frente. Vestiu o robe e foi ao banheiro. Depois de escovar os dentes e o cabelo, foi até o quarto de Antônia. Não havia sinal de que ela tivesse dormido lá. Voltou para o quarto, colocou um jeans com suéter e desceu. Toda a casa estava em silêncio. Ao chegar perto da escada, encontrou Antônia. A outra olhou-a de alto a baixo e abriu um sorriso triunfante.  Bom dia, meu benzinho. Você está horrível. Sua noite não foi um sucesso?  Antônia, sinto muito o nosso desentendimento sobre o dinheiro, mas quero que entenda que, se eu pudesse, ajudaria. Só que é impossível...  Não se preocupe com isso. — Puxou um bolo de notas do bolso e mostrou, desafiadora. — Mas você disse... — Acho que me precipitei um pouco. Mas dinheiro não í mais um problema. Realmente, não é... — Enquanto falava, olhava na direção do quarto de Curt. — Você estava certa, meu anjo. Foi a melhor solução, afinal. — Estou contente por você, Antônia. Imagino que vão se casar logo.  É só uma questão de resolver todas as formalidades, papeladas, essas coisas. — Fez uma pausa. — Suponho que você não vai mais querer perder seu tempo por aqui. Deve estar ansiosa para voltar para Londres.  É. — Será que Antônia podia imaginar a agonia que sentia e estava fazendo aquilo de pura maldade? — Bem, não há mais nada que a prenda aqui. Antônia sorria e tinha uma aparência fantástica. Talvez a maioria das mulheres ficasse assim, depois de uma realização: suave e relaxada e não se importando que os outros notassem. Ela continuou:  Tentei convencer Curt a nos perdoar, mas você o deixou muito zangado, queridinha. Curt não perdoa com facilidade.  Tenho todos os motivos para desaparecer, assim que puder. — Fez uma pausa. — Curt contou a você que perdi meu emprego na cerâmica? — Não. Como foi que aconteceu? — É uma história comprida e não vou chatear você. Tenho que conseguir outro emprego ou não vou poder continuar as aulas, no inverno. — Mas você certamente pode encontrar trabalho em Londres.  Talvez. Mas acho que terei mais chances em Keswick. As lojas sempre precisam de uma ajuda extra na época das férias. Se você for até lá, gostaria que me desse uma carona. Quero começar a procurar imediatamente.  Eu não vou — Antônia falou, distraída. — Ainda acho que você faria muito melhor voltando agora para Londres. Pensei que era isso o que mais desejava no mundo. Será mais fácil esquecer o incidente com Curt, se estiver longe dele.  Antônia, vim até aqui por conveniência sua, mas vou embora quando for conveniente para mim. Não tenho a menor intenção de partir para Londres feito uma alucinada, sem trabalho, sem ter onde morar e quase sem dinheiro. Nem você devia esperar isso. Sinto muito se a minha

presença a incomoda tanto, mas vai ter que agüentar. Devo lembrar-lhe que jamais quis vir para cá.  Não, você não quis. Pena eu não ter deixado que apodrecesse naquele apartamentozinho imundo. Acredite que eu teria feito isso, se pudesse.  Oh, estou bem certa disso. Eu só servia a um propósito. Agora que vai casar com um homem rico e ainda salvou sua herança, sou inteiramente dispensável. Infelizmente, ainda vai ter que me suportar por algum tempo. E o mínimo que pode fazer. Por sua causa, minha vida está toda enrolada. Da próxima vez, vou tentar me sair melhor.  Como quiser, benzinho. — Antônia levou a mão à boca, bocejando. — Só achei que seria menos humilhante se você fizesse uma retirada estratégica. — Como Rose se virou para descer a escada, ela continuou: — Ah, querida, se for fazer café, eu gostaria de tomar uma xícara. Acho que Curt também. Rose teve vontade de gritar que ela mesma fizesse seu café. Mas não queria mais confusão, já que sabia que Antônia tentaria fazer de sua vida ali um inferno. Preparou o café, deu um jeitinho na cozinha e abriu a porta que dava para o jardim. Como ficou triste em pensar que teria que trocar a beleza daquele lugar pelo concreto e pela fumaça de Londres. Era incrível como tinha se adaptado àquele lugar e se tornado parte dele. Lembrou-se da liberdade dos corvos. De repente, sentiu que não estava mais sozinha. Virou-se e viu Curt. com uma aparência sombria. — Bom dia. Quer... um pouco de café? — Quando eu pensar nesse miserável verão, vou me lembrar sempre de você me oferecendo café. — Sinto muito, mas Antônia disse...  Estou certo de que ela disse. Não precisa se desculpar. Vou querer café, sim. E aspirina também, se você sabe onde está guardada.  Não tenho certeza se temos aspirina. Espere um minuto, acho que vi algumas, quando arrumei o banheiro de Sybila, no outro dia. Foi até a porta, mas Curt barrou seu caminho.  A aspirina pode esperar, Rose. Nós temos que conversar. Rose não conseguiu olhar para ele.  Não há nada a falar.  Acho que há. — Aproximou-se mais dela. — Depois de ontem à noite...  Sobre ontem à noite, quero falar menos ainda. Pelo amor de Deus, me deixe ir e viver em paz. Houve um longo silêncio. Depois, ele disse: — Se é o que você quer... está bem. Rose pensou que tudo o que ela queria era Curt Maitland. Ela o queria agora e para sempre, na doença e na saúde, como dizia o padre na cerimônia do casamento. Queria estar perto dele de corpo e alma. Queria ter um filho de Curt e viver só para ele. Disse, com o coração pesado: — É o que eu quero. — E saiu da cozinha.

CAPÍTULO X

Sozinha no quarto. Rose começou a divagar sobre sua vida e onde tudo aquilo a levaria. Depois, sentou-se à máquina de escrever e tentou criar um conto. Não conseguiu nada que a satisfizesse. Escrever histórias de amor com final feliz não fazia mais sentido. Não queria contar mentiras cor-de-rosa. Devia aproveitar sua própria experiência. Fechou os olhos e deixou germinar a história que lhe tinha ocorrido, ao conversar com Curt sobre os corvos do vale. Era muito simbólica e mais difícil do que tudo que escrevera até então. Foi o sol, brilhando nas penas negras dos pássaros, que fez com que pensasse no que aconteceria, se um dia os corvos da Torre de Londres trocassem de lugar com os da montanha. Teria que pesquisar muito sobre eles, sobre o que comiam, como faziam seus ninhos, seus hábitos de procriação, etc. Teria também que ler mitos e lendas a respeito. Achava que seria o tipo de história que faria sucesso com o público jovem. Mas, mesmo que jamais a publicasse, serviria pelo menos para mantê-la ocupada nos dias difíceis que ainda tinha pela frente. Trabalhava já há duas horas no esboço do conto, esquecida de sua infelicidade, quando Curt bateu e entrou no quarto, sem esperar que o convidasse. Parecia cansado e abatido. Foi muito formal. Queria apenas avisá-la de que uma nova governanta chegaria no dia seguinte. Será que se importava de mostrar o serviço à empregada e explicar que ninguém devia entrar no estúdio quando estivesse trabalhando? Rose arriscou a pergunta: — Quer dizer que vai voltar a pintar? Fico contente. — Fica mesmo? Resolvi aceitar o seu conselho e vou começar um retrato de Antônia. — Isso é bom. Imaginou como a madrasta devia estar vaidosa. Um quadro era um tributo à sua beleza. Curt também tinha vindo avisar que Grace estava esperando lá embaixo, para se desculpar. David lhe contara tudo o que tinha acontecido na festa e a mãe ficara mortificada. Mas Rose recusou-se a descer e pediu que ele inventasse qualquer coisa. Que estava com dor de cabeça, por exemplo. — Não vou dizer nada disso. Por mais injusta que Grace tenha sido, aconteceu num momento de desespero. Ela gosta muito de você e veio oferecer seu emprego de volta. Acho que deve, pelo menos, ouvir o que tem a dizer. Vingancinhas infantis não levam a nada. Ele tinha razão, claro. Pouco depois que saiu, Rose o seguiu. Grace começou a falar, assim que ela apareceu.  Sinto muito, querida. Tirei conclusões precipitadas. Será que você me perdoa e volta a trabalhar conosco? Não podemos ficar sem a vendedora e sem a amiga.  Volto, sim, Grace. Só não prometo ficar todo o verão. Logo que tiver economizado o suficiente, irei para Londres. Se você me quiser nessas condições...

— O que foi? Você brigou com Curt? Foi por nossa causa?  Claro que não. O que aconteceu ontem à noite me obrigou a contar a ele que não sou tão criança como imaginava. Ficou furioso, pensando que tentei fazê-lo de bobo.  Ora, nós suspeitamos disso assim que a vimos. Só não entendemos por quê. Você é moça demais para precisar esconder a idade.  Vamos dizer que pareceu uma boa idéia, no momento.  Ele fica uma fera, quando perde a esportiva...  Mas isso não importa. Foi apenas a gota d'água. Eu já tinha mesmo resolvido ir embora. Como vai David?  Péssimo, desejando estar morto. Teve a pior ressaca que já vi. O médico acha que não passou disso, mas ele esteve bem perto do coma alcoólico. Meu Deus, não quero nem pensar! — E Jeff Wainwright? — Clive foi até lá e assustou tanto o rapaz que ele viajou ontem mesmo para Manchester. Aliás, parece que a família inteira vai embora. A tia e a irmã colocaram à venda a casa e a loja. Mas não vamos falar dessa gente. Então, minha querida, está combinado, não está? Você volta ao trabalho na segunda-feira? — Pode esperar por mim. Pouco depois, Grace saiu. Rose olhou em volta e achou que poderia dar uma ordem e uma limpeza na casa, antes que a nova governanta chegasse. Já estava com sua história toda na cabeça e esboçada no papel; podia deixar para começar a escrever no dia seguinte. Trabalhou duas horas. O resultado não foi o que esperava. O Ninho dos Corvos estava longe de ter a aparência imaculada de quando chegaram, mas, pelo menos, perdera o aspecto de negligência e descuido. Antônia encontrou-a às voltas com o aspirador. — Não precisa mais bancar a empregadinha, queridinha. Curt já contratou alguém. Foi o carro de Grace que saiu daqui ainda há pouco? — Foi. Ela veio me oferecer o emprego de volta. — Grande coisa... — Parou um momento, para acender um cigarro. -— Você aceitou? — E claro. — Não tem nada de "claro". Está cansada de saber que não quero você por aqui muito tempo, lançando olhares melosos para Curt. Pensei que ia procurar trabalho em Keswick. Podia encontrar uma outra moça para dividir um quarto com você. — Obrigada pelo interesse e pelo conselho. Você é engraçada. - Antônia me azucrinou para vir para cá e agora age como se tivesse sido uma péssima idéia.  E foi mesmo. Tudo não passou de um grande erro. Devia estar maluca... tanta preocupação, por causa daquela miséria de herança que seu pai deixou. Graças a Deus, não preciso esperar mais.  Antes, você falava como se aquela "miséria de herança" fosse a coisa mais importante do mundo.  Nem me lembre. Felizmente, o tempo de contar níqueis já passou e... Antônia parou, de repente, pois Curt tinha chegado e estava de cara fechada.  Qual é o problema, agora? Espero que vocês duas saibam se comportar. Vamos ter uma empregada nova morando aqui e não quero que ela veja discussões e gritarias.

 Oh, sinto muito, querido. — Antônia levantou-se do sofá e foi até ele, toda lânguida. — Ficamos um pouco exaltadas, mas não foi nada sério. Ele nem olhou para ela. Dirigiu-se a Rose. — Não precisa ficar fazendo o trabalho da casa. Mas gostaria que desse uma olhada no apartamento de Sybila. Ela deve voltar dentro de alguns dias e quero que tudo esteja em ordem por lá. Rose percebeu que a notícia era novidade para Antônia e que a outra não tinha gostado nem um pouco. Não fez comentários, para não piorar a situação. — Claro. Vou ver se o apartamento está em ordem. Na verdade, nem precisava olhar. Vinha mantendo o apartamento arrumado, desde que a velha fora para a clínica. Mas, olhando em volta, sentiu que havia algo estranho. Como se faltasse alguma coisa. Não conseguiu descobrir o quê. Os dias seguintes foram razoavelmente tranqüilos. A sra. Ramsden, a nova governanta, era uma mulher alta, com um corpo enorme, mas, apesar disso, trabalhava com rapidez, como se tivesse um corpo de bailarina. Não gostava que ficassem lhe dando explicações e não aceitava a interferência de ninguém. Na tarde de domingo, Rose, pela primeira vez, ficou livre para passear. Aproveitou para seguir o atalho até o alto da montanha, onde tinha estado com Curt. Na segunda-feira, Rose voltou à cerâmica. O movimento de fregueses aumentara muito e quase não tinha um minuto de folga. Mas gostava daquilo. Quase não via David, que parecia envergonhado dos problemas que lhe dera, e desinteressado, agora que sabia que era bem mais velha do que ele. Também não via Antônia, que devia estar ocupada, posando para o retrato, no estúdio de Curt. A princípio, perguntou como estava indo o quadro, mas desistiu pois, toda vez que tocava no assunto, a madrasta insinuava que faziam coisa bem diferente de pintar. Se o que Antônia dizia era verdade, duvidava de que o retrato fosse desculpa para fazer amor com a noiva. Podiam passar o dia inteiro na cama, se quisessem. Não fosse a próxima chegada de Sybila, Antônia estaria radiante. Rose também quase esquecera os próprios problemas, entusiasmada com a idéia de escrever o conto sobre os corvos. Seria uma história juvenil, que Grace aprovou e sugeriu que publicasse com ilustrações. Escrevia todas as noites e começava a achar que não era um sonho tão impossível assim encontrar um editor que se interessasse pelo livro. Uma tarde, ao voltar para casa, viu uma ambulância parada na porta. Correu para abraçar Sybila, mas ficou chocada com a palidez e a aparência abatida da velha. Imaginou que fosse o cansaço da viagem ou a excitação da volta. Mas logo desconfiou que havia algo mais: Curt também estava estranho. — Sybila, que bom que chegou! A casa estava tão vazia sem você! Antônia deu uma risadinha nervosa, que ela não entendeu. E entendeu menos ainda ao notar lágrimas nos olhos da velha. — É você quem diz isso? — Sybila perguntou. Sua voz tremia. — Como é que tem coragem de ficar aí parada, com essa cara de criança inocente, depois de tudo o que fez? Eu confiei em você... Rose olhou para os três, atônita. — Não entendo. O que foi que aconteceu? Curt respondeu, num tom acusador:

 Muita coisa aconteceu. Todas elas erradas. Não preciso perguntar se reconhece isto, não é? — Mostrou duas miniaturas de prata que costumavam ficar sobre a lareira.  É lógico que reconheço. — Tomou a olhar em volta e depois o encarou. — O que é isso? Não vai me dizer qual é o problema? Por que vocês todos estão me olhando como se eu fosse uma criminosa?  Não propriamente uma criminosa, querida — Antônia retrucou, a voz carregada de maldade. — Só uma pequena ladra que acaba de ser apanhada em flagrante.  Não pensei que você chegasse a esse extremo, Rose. O que fez com o resto das coisas que pegou? O choque foi tão grande, que ela mal conseguiu falar:  Coisas que... peguei? Do que estão falando? O que sou acusada de ter roubado?  Alguns castiçais, uma caixa de música, estátuas de marfim,., enfim, você sabe o que falta melhor do que eu. Pensou que Sybila não notaria? Ou estava contando que não voltaria mais para casa e seu roubo nunca seria descoberto? Era um pesadelo e logo acordaria. Tinha que ser. Rose dirigiu-se para a velha, que estava sentada na cadeira de espaldar alto, e tão abatida que parecia ainda mais franzina.  Sybila, eu nunca peguei nada seu. Eu não faria uma coisa dessas... Não poderia! Tem que acreditar em mim.  Não adianta fingir — Curt interrompeu. — Talvez nós até acreditássemos na sua inocência, se eu não tivesse encontrado as miniaturas de prata escondidas no seu armário. — Você procurou no meu quarto? Por quê? — Porque você tinha livre acesso aqui. Era a única que tinha as chaves de Sybila — Curt respondeu calmamente. — Seu extrato do banco chegou hoje de manhã, Rose. Acho que, considerando as circunstâncias, tenho o direito de pedir para ver. Uma sensação de náusea tomou conta dela, mas tentou a todo custo manter o controle.  Veja, se quiser. Não vai descobrir nada, porque não há nada a descobrir. Eu vinha aqui fazer a limpeza, e não roubar. Não tinha motivo para roubar.  Nenhum motivo... exceto, seu desejo obsessivo de voltar para Londres. Eu teria dado tudo o que você quisesse, para poupar esse desgosto a Sybila. Quando Antônia voltou com o envelope do banco, Curt mandou-a abrir e verificar. Só o que queria saber era o saldo. O ódio e o orgulho ferido fizeram com que Rose arrancasse o papel das mãos da outra e jogasse na cara dele. — Não tenho nada a esconder. Vamos acabar logo com isso! Mas a reação de Curt não foi a que esperava. Depois de ver o saldo, sua expressão foi de surpresa. — Economias do seu salário na cerâmica? Sinto muito, mas não posso acreditar, Rose — disse, arrasado. Espantada, ela pegou o papel e constatou a enorme quantia de seu saldo. Ficou confusa por um momento. Só então lembrou que tinha dado ordem para o advogado de Londres depositar em sua conta as últimas mesadas que não recebera. Antônia sabia disso. Levantou os olhos para a madrasta, pedindo ajuda, mas não encontrou nem sombra de apoio. Ela não diria uma palavra para salvá-la.

De repente, a verdade surgiu à sua frente com incrível nitidez. Confiante de que Sybila não voltaria mais para casa, Antônia tinha roubado suas coisas e vendido para pagar as dívidas de jogo e nas lojas. Sabia que ela faria qualquer coisa, até pior do que isso, para que nada atrapalhasse seus planos de casamento com Curt. Todos os mistérios estavam esclarecidos. Toda aquela pressa da madrasta para mandá-la de volta para Londres estava explicada. Rose era a única pessoa que podia perceber os roubos e incriminá-la. Quanto às miniaturas, talvez não tivesse tempo de se livrar delas e colocou-as no quarto de Rose de propósito, para levantar suspeitas. Depois, deixou que Curt fosse buscar as chaves do apartamento de Sybila, para encontrar as peças. Era um plano diabólico e muito simples, que dera certo. Estava presa na armadilha e não sabia como se libertar. Os dois homens que mais amara na vida gostavam daquela mulher sem escrúpulos. Revelar a verdade não podia mais ferir seu pai, mas machucaria Curt profundamente. E não queria machucá-lo. Não tinha coragem de destruir as ilusões dele sobre a futura esposa. Com dificuldade, tomou a decisão mais difícil e dolorosa de sua vida. — Sinto muito, Sybila, você nunca deveria ficar sabendo. A velha a encarou, com hostilidade.  Posso saber o que fez com as minhas coisas? Só estou perguntando porque talvez seja possível recuperar algumas. Gente velha é muito apegada a objetos.  Não tenho idéia de onde estão agora — Rose respondeu, cabisbaixa.  Não se preocupe, Sybila, vamos dar um jeito de encontrar. Você quer dar parte à polícia?  Não, Curt, acho que não. Devido às circunstâncias, é melhor manter isso em família. Mas quero que essa moça vá embora daqui imediatamente. — Sim, é o mínimo que ela pode fazer. Rose evitou olhar para Antônia, para não ver o triunfo em seus olhos. Por mais penoso que lhe fosse, preferiu encarar Curt. — Sinto muito — murmurou. — Eu também. Você nunca saberá o quanto sinto. Agora, vá. Pegue apenas o indispensável. Providenciarei para mandar suas coisas, quando estiver estabelecida em Londres. Depois daquela cena de pesadelo, Rose foi procurar abrigo e consolo nos braços de Grace, contando-lhe toda a história e toda a sórdida mentira desde o começo. Tive dificuldade para impedir que a amiga, indignada, corresse até o Ninho dos Corvos para desmascarar sua madrasta e revelar a Curt com que espécie de mulher ia casar. Grace hospedou Rose, que se sentiu agradecida e reconfortada.  Você é uma tola, querida. Antônia só lhe criou problemas, nunca se importou com seus sentimentos. Não merece o seu sacrifício. Não acha que, mais cedo ou mais tarde, Curt vai mesmo descobrir tudo?  Talvez. O importante é que não vai descobrir por mim. E ela pode mudar... quando conseguir o que quer. — As pessoas não mudam tanto assim. Grace conseguiu lugar para Rose, provisoriamente, em casa de parentes de Clive em Londres. A única condição que Rose impôs foi não contar a ninguém no Ninho dos Corvos onde ela estava.

— Pode ficar tranqüila, eu prometo. — A amiga estudou o rosto abatido dela. — Mas está certa de que é isso o que quer? Não sou cega, sabe? Posso ter prometido ser muda, mas cega eu nunca fui. Rose forçou um sorriso. — É o que eu quero. Liwy, a parente de Clive, era uma mulher simpática, de muito senso prático. Rose gostou de morar com ela. Pouco depois de chegar a Londres, conseguiu emprego em uma pequena agência de viagens, vizinha do apartamento. O salário não era dos melhores, mas, com a mesada que o pai lhe deixara, dava para se sustentar, enquanto não aparecia coisa melhor. Recebeu duas cartas de Grace, contando mil novidades sobre a família, a cidade, a cerâmica. Sobre Curt e Antônia, nem uma palavra. Talvez já estivessem até casados. Rose respondeu, pedindo que a amiga fizesse o favor de mandar suas coisas de volta. As mais importantes eram a máquina de escrever e o conto que deixara começado. Trabalhava o dia inteiro e passava as noites vendo televisão na sala de estar de Liwy. Os colegas do novo emprego a convidaram para sair várias vezes, mas Rose não se sentia disposta. Muito ferida ainda, não queria se envolver com ninguém. Além do mais, emagrecera e andava pálida, de modo que desconfiava que, no fundo, só a convidavam por pena. Certa noite, Liwy bateu à porta de seu quarto, avisando que havia uma visita para ela. — Desço já. Deve ser o advogado de papai. Escrevi dando meu endereço. Imaginou que houvesse algum problema com a herança, já que ela e Antônia não estavam mais morando juntas. Mas, ao chegar na sala, parou, petrificada. Curt levantou-se do sofá e aproximou-se. — O que está fazendo aqui? — Procurando por você. E, antes que tire conclusões precipitadas, não foi Grace quem contou. Soube onde você estava pelo advogado de seu pai.  Mas acabei de entrar em contato com ele...  Pedi que me avisasse, assim que você desse notícias.  Entendo. Acho que você o procurou para avisar de seu casamento com Antônia, não é?  Não me casei com Antônia. Nunca tive intenção de fazer isso, apesar de os planos dela serem bem diferentes. — Havia tristeza em sua voz. — Então... você sabe? — Tudo. Ou acho que sei. E você pode completar os detalhes que estiverem faltando. — Olhou para aquela figurinha pálida, com lágrimas saltando dos olhos. — Sua tola, pequena orgulhosa! Por que me deixou pensar que estava roubando as coisas de Sybila? Por que não mandou Antônia para o inferno e contou toda a verdade sobre ela?  Porque achei que você não gostaria de ouvir. Pensei...  Você pensa demais. No minuto seguinte, estavam um nos braços do outro e sua boca procurava a dele, com paixão e ternura. Curt beijou o rosto molhado de lágrimas e perguntou: — Meu amorzinho, me perdoa por ter duvidado de você?  Antônia me fez pensar que vocês se amavam e que eu estava atrapalhando.  Ela não mudou nada. — Levou-a até o sofá. — Desde menina, tem o hábito de torcer as coisas da maneira que mais lhe convém. Emprestei o dinheiro para a butique porque queria

ajudar, mas, quando percebi que interpretou isso como uma fraqueza minha, resolvi lhe dar uma lição. Não adiantou nada, não é? Sybila me contou que era você quem fazia todo o serviço da casa. Ficou em silêncio por um momento. — Sybila gosta muito de você, querida. Mesmo quando todas as provas a acusavam, ela me disse que não conseguia acreditar que fosse culpada. Chamou minha atenção para o fato de você, em nenhum momento, ter confessado o roubo. Então, fiz uma lista de tudo o que desaparecera e percorri todos os antiquários da região. Até que, num deles, o dono lembrou que tinha vendido os castiçais e me fez uma descrição completa e detalhada de Antônia. Quando a levei até. lá, minha querida prima confessou tudo. Até que tinha forçado você a ir para a minha casa. — Ela ainda está lá?  Não. Parece que está com amigos em Keswick. Um dos parceiros de bridge é um industrial aposentado e ouvi dizer que ela o escolheu como vítima, agora.  Pensei que você a amava. Antônia é tão bonita... e você pintou o retrato dela.  Não pintei. Fiz uns esboços, mas Antônia é péssima modelo. — Beijou-a novamente. — Volte para mim, ninfa. Deixe-me pintar a única mulher que desejo. — Pensei que você tinha trazido as minhas coisas. — Suas coisas ainda estão no Ninho dos Corvos, esperando por você. Sybila também está à sua espera, sem falar na sra. Ramsden, que diz que você era uma "garota muito boazinha" e ficou muito triste por ter ido embora sem se despedir dela.  Foi? Mas eu não estava com cabeça para nada...  Nenhum de nós estava.  Mas, Curt, você era amante de Antônia. Eu a vi saindo do seu quarto, na manhã depois da nossa briga.  Talvez tenha passado a noite lá, não sei. Estava bêbado e não me lembro. Mas não dormi com ela. Houve época em que estive apaixonado por Antônia, mas logo descobri que ela era vazia, sem calor e sem generosidade. Quero muito mais de uma mulher, além de sexo. Muito mais do que o direito de usar seu corpo, em troca de um teto e do meu dinheiro para gastar. Depois de uma pausa, ele falou, rouco de emoção:  Você não está curiosa para saber o que eu quero? — Ela sacudiu a cabeça, sorrindo. — Quero tudo o que você tenha para me dar, Rose, e mais. Quero você toda. Agora e para sempre. Sei que sou muito mais velho e fiz você sofrer com meu mau gênio, mas me dê uma chance e vou remediar todos os meus erros.  Curt, como é que pode dar certo? Sou ingênua e estúpida e rôo as unhas. Não estou preparada para casar com ninguém. Ainda mais com um homem como você, famoso e que circula entre gente rica e sofisticada. Seria um peixe fora d'água. — Vou ensinar você a nadar. Você se arrependeria, em menos de um ano. Ele a acariciou novamente e os protestos de Rose morreram na garganta. Sentia-se fraca, mas era uma fraqueza gostosa. — Querida, minha vida sem você não tem mais sentido. E meus dias de colunas sociais chegaram ao fim. Agora, meu futuro é no Ninho dos Corvos, com você... se me quiser. Beijou-a, e Rose se aconchegou em seus braços.  De qualquer forma, você não pode me dar o fora. Clive e Grace até já fizeram nosso presente de casamento. Um aparelho de jantar em cerâmica vitrificada, uma beleza.  Ah, então você estava tão certo assim sobre mim?

— Nunca estive certo de nada. Só estarei quando você usar a minha aliança. — Pegou uma pasta que estava encostada ao lado do sofá. — Não fique zangada, querida, mas o conto que você começou a escrever ficou no seu quarto e não resisti à tentação de ler. Era um jeito de conhecer melhor você. Abriu a pasta e sacudiu o conteúdo no colo dela. Rose começou a rir. Havia uma revoada de corvos coloridos. Corvos da cidade, de paletó, chapéu-coco e guarda-chuva, corvos camponeses, com camisas floridas e chapéus de palha. Desenhos lindos e muito bem-humorados.  Curt estão maravilhosos! São exatamente o tipo de ilustração que eu estava imaginando para o livro. Como soube?  Eu não sabia. Li o que você escreveu e o esboço da história e achei que precisava de uns desenhos. Viu como nós nos entendemos bem? É um bom sinal, não acha? — Puxou-a para si. — Case comigo, amor. Não sou nada sem você.  E tenho sido tão infeliz... — Deu um sorrisinho. — Nem posso acreditar que isso esteja acontecendo. É melhor acreditar. No doce abrigo dos braços de Curt, Rose entregou-se ao sonho que se tornava realidade.

FIM
181 Sara Craven - Brincadeira Perigosa (Sabrina 181) - ARF

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