Segredos de Menina - Maitena Burundarena

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  mesmo   tempo   que   descobre   o   mundo,   a   protagonista   de   'Segredos   de Ao     Menina'  descobre  a  si  mesma.  Com  doze  anos,  :ilha  de  uma  família  católica   numerosa  e  de  direita,  vive  num  bairro  de  classe  média  e  mudou  de  colégio  quatro   vezes   em   sete   anos   -­‐   e   acha   di:ícil   que   exista   um   mais   chato   que   o  atual.  A  única  coisa  que  faz  sentido  em  sua  vida  é  :icar  o  dia  todo  na  rua  com   os  amigos.  Enquanto  o  tempo  passa,  e  ela  não  é  mais  tão  menina,  seguimos  seus  passos  pela  movimentada  Buenos  Aires  dos  anos  setenta,  entre  a  morte  de   Perón   e   a   Copa   do   Mundo.   A   mãe   depressiva,   o   pai   ausente,   as   brigas  entre   os   irmãos,   o   internato,   a   primeira   vez,   a   experiência   com   alucinógenos  -­‐   tudo   vai   desenhando   o   per:il   dessa   adolescente   que   se   exila   por   vontade própria  de  seu  colégio,  de  sua  família  e  até  de  si  mesma.

“Tudo o que acontece é adorável.”

LEÓN BLOY

O céu está radiante e faz calor, embora ainda não sejam nem oito da manhã. Ando pela calçada de casa rumo ao ônibus com tanta vontade de ir para o colégio quanto de me matar. O sol queima minha cabeça. Eu levanto o rosto, fecho os olhos e respiro fundo. As aulas acabam em três meses e não posso mais faltar. Para pedir um abono eu precisaria ter umas notas que não tenho nem em sonho (embora, por sorte, eu nunca sonhe com o colégio). Quando chego à avenida Libertador, em vez de atravessar para pegar o ônibus, viro a esquina e continuo andando. Através dos cabelinhos dourados da minha franja comprida demais vejo o 62 passar sem mim. O caminho até o Misericórdia é um campo minado. Em qualquer esquina é possível que estejam os garotos do Sarmiento buscando cúmplices para matar aula. No meu colégio, que eu saiba, ninguém mata aula, talvez alguma aluna do segundo grau. Minhas colegas da sétima série brigam para entrar no quadro de honra ou serem eleitas a melhor amiga. Tem uma menina com sardas, neta de um prêmio Nobel e mais branca que bicarbonato, que se gaba de nunca ter faltado. Mudei de colégio quatro vezes em sete anos, mas duvido que consiga encontrar um mais chato do que esse. Para não atrair os fatos com a mente, tento pensar em outra coisa. Os dois alfinetes que seguram a bainha da frente do meu jumper estão mal colocados e ela fica um pouco avolumada. Na porta da casa de Bioy Casares tem uma ambulância. Subo pela praça sombria dos umbuzeiros de raízes gigantes e quando saio de novo para a luz fico cega, bem na hora de atravessar a rua. O cara do carro que quase me atropela buzina durante quarenta metros. Com passo rápido, piso na graminha e procuro a sombra do muro de tijolos alaranjados do cemitério. Meu coração começa a bater como se tivessem dado corda nele, mas fixo a vista nas calçadas quebradas e no muro pichado e nas bordas sujas dos canteiros de árvores e repito quatro vezes que daqui a três meses as aulas vão acabar e eu não posso mais faltar. Tento manter o ritmo, mas meus passos avançam cada vez mais rápido e, embora esteja pensando nisso há seis quarteirões, quando ouço o assobio me assusto. O perigo está sentado fumando nos bancos multicolores da sorveteria Saverio. Lucio sorri e Pato fica em pé no banco, acenando para mim. Enquanto ando os quarenta metros que nos separam, somo todos os argumentos que justificam que eu falte à aula, como a prova de matemática para a qual não estudei nada ou o mapa com a divisão política da Argentina

que não fiz. Demoro quarenta segundos para me convencer: é melhor faltar. A sorveteria está fechada porque é muito cedo. Lucio está brincando com o elástico preto que prende suas duas pastas sem grampos e me pergunta: você vai? Seus lábios estão mais carnudos do que nunca. Digo: não, acho que já ficou tarde. Pato desce do banco com um pulo e me abraça como se eu tivesse acabado de ganhar um prêmio. Ele cheira a bode. Não digo isso a ele, pois é muito suscetível, mas carrega um bode debaixo do braço. Desfaço o nó da faixa verde ao redor da cintura e o da gravata com o escudo do colégio e as guardo enroladas nos bolsinhos do blazer azul. Os uniformes dos meninos não têm mais escudo, e seus bolsos estão descosturados e pendurados. Os dois têm o cabelo muito mais longo do que o centímetro e meio acima da gola da camisa recomendado pelo regulamento, porque abandonaram o colégio uns dois meses atrás. Andamos alguns quarteirões para nos afastar um pouco do bairro e conseguir um dinheirinho. Um bom lugar é onde as pessoas descem dos ônibus, na frente da faculdade que parece uma catedral. Pedimos principalmente para os velhos, dizemos a eles que fomos roubados e que precisamos voltar para casa. Primeiro duvidam, mas quando veem o uniforme se tranquilizam e nos dão moedas, compadecendo-se de nós e queixando-se de Perón. – Antes essas coisas não aconteciam; vou te dar dinheiro, mas vá para o colégio, menina – uma senhora me diz, fechando sua bolsa de couro de crocodilo. Às vezes, quando alguém olha meu uniforme com insistência, fico pensando se ele seria capaz de ligar para o instituto e me descrever, ou de começar a gritar socorro, polícia. Por via das dúvidas, às vezes ponho a faixa de prender o cabelo, que me deixa com uma tremenda cara de idiota – embora pelo mesmo motivo eu prefira não usá-la na frente dos meninos. Com os sessenta e quatro pesos que juntamos, entramos num bar e pedimos três chocolates quentes e seis croissants. Uma máquina de alguma coisa faz o mesmo som que uma locomotiva a vapor. Tssss. Gosto de ver como o leite vai se tingindo de rosa à medida que a barrinha de chocolate derrete. Os três homens sentados no balcão leem o caderno de esportes do jornal. Na mesa ao lado está sentada uma moça que parece mais jovem do que eu, com um barrigão de trigêmeos. Sinto vergonha quando Lucio, que não a vê porque está de costas para ela, diz: uma cadela pode ficar grávida

de vários cachorros diferentes ao mesmo tempo. Pato sorri sem entusiasmo e retruca: duvido que Deus permita uma coisa assim. Lucio, que acabou de tomar um gole do seu chocolate, ri tanto que o leite sai por seus ouvidos. Metade do bar se vira para nos olhar – a moça grávida desapareceu –, e eu, que nem uma imbecil, acho graça e rio até chorar. Pato se ofende de verdade. Sua família faz caridade nas favelas e edita uma revista que é uma chatice, Cristianismo y Sociedad, ou alguma coisa do gênero. Durante todo o trajeto de volta até a praça – outra vez a sombra do muro alaranjado do cemitério –, tentamos fazer as pazes, mas é como se um vidro tivesse se quebrado. Tudo o que dizemos para Pato soa falso ou puxasaquismo e, além disso, ele responde forçado, então paramos de falar com ele. Conversamos entre nós sem sequer olhar para ele e, numa hora em que abaixa para amarrar os sapatos, ele acaba ficando para trás. Peço fogo para a mulher da barraca de flores, que só vende cravos, e deitamos para fumar no barranco abaixo do muro do asilo de velhos, onde os raios do meio-dia caem como uma lâmpada de um milhão de volts. Tiramos os blazers e os suéteres porque está fazendo muito calor. Eu fico de jumper e camisa de mangas curtas e ajudo Lucio a desfazer o nó da gravata e arregaçar as mangas longas da camisa. Estamos deitados de bruços um do lado do outro, com os rostos tão próximos que quase não nos vemos. Sem dizer nada nos olhamos fixamente, com a pupila de um cravada na pupila do outro, vinte minutos sem pestanejar e sem nos mexer, até que de repente fecho os olhos e o beijo. O beijo dura três ou quatro beijos, todos encadeados, sem desgrudar os lábios nem para respirar. Lucio abre minha boca com a ponta da língua até que nossos dentes se chocam e sinto que alguma coisa da minha parte de dentro está dentro da parte de dentro dele. Não tenho coragem de abrir os olhos para não quebrar o encanto. Ficamos nos beijando um tempão, debaixo do sol, morrendo de calor dentro dos uniformes de sarja cinza, com o cabelo da franja grudado na testa e a meio metro do cocô de um cachorro que comeu alguma coisa imunda. Até que um senhor grita em inglês get up! e levantamos de imediato, suados e sonolentos, ajeitando a roupa e o cabelo como se tivéssemos acabado de acordar depois de uma viagem. Pato aparece de repente, como se tivesse saído da fonte encostada contra o muro. Dá um soco no bíceps de Lucio e diz a ele: fui à missa, man. Os padres da igreja do Pilar deixaram que ele subisse até o campanário, onde roubou uma peça de bronze, uma parte da engrenagem

do relógio que está quebrado há anos, mas que se funcionasse marcaria neste momento quinze para a uma da tarde, hora em que minha carruagem vira abóbora.

Quando chego no hall de casa, antes mesmo de abrir a porta, sinto a tensão flutuando na escuridão como um cheiro forte. Torço para não ter nada a ver comigo, mas tem: ligaram da escola para avisar que se amanhã eu não for acompanhada por um de meus pais não poderei entrar em sala. A empregada me avisa isso baixinho quando entro pela cozinha. Peraí, vem cá, diz ela me puxando pelo cotovelo até a área de serviço. Meu pai está viajando por conta de um seminário sobre educação a distância, tema no qual certamente deve ser uma eminência, pois não para em casa. Meu irmão Javo aparece de repente e me diz, sorrindo: a maluca vai te matar. Faz um huic com a boca e passa os quatro dedos pelo pescoço, retos como uma faca. Nada o deixa mais feliz do que a desgraça alheia. Uma das coisas que minha mãe mais odeia no mundo – e é páreo duro, porque ela reclama sem parar – é ter que ir ao colégio. Por sorte é quase a única coisa em que nos parecemos. Ela vive repetindo: eu já fui ao colégio; e não vai a um evento escolar nem morta. Nem se algum dos seus seis filhos talentosíssimos for atuar. Não ia nem mesmo quando Mercedes, minha irmã mais velha, sua preferida e uma chata que adora estudar; era quem levava a bandeira nacional. Muito menos quando é alguma coisa que tem a ver com os meninos ou comigo. Os meninos são meus quatro irmãos homens, com quem me dou muito melhor do que com a minha irmã, que se acha adulta porque já está na faculdade. É difícil para minha mãe levantar cedo, ela acorda de mau humor e trata mal quem cruzar o seu caminho, seja uma pessoa ou um sapato. Toma comprimidos para dormir e também para acordar, mas a nossa empregada nova, que é mais boazinha do que um canário, faz chá de camomila para ela porque diz que é isso que vai acalmar seus nervos. Uma vez fizeram uma terapia do sono que a deixou bastante tranquila, mas minha mãe disse que o que a ajudava a ficar de olhos fechados era a clínica, que era muito feia. Todo dia de manhã, um minuto antes de ir para o colégio, entro na escuridão de seu quarto e vou até a beirada da cama para pedir com um sussurro que ela assine a caderneta diária: é que ontem à noite esqueci de

pedir, mamãe, digo a ela com doçura, eu que nunca a chamo de mamãe. Ajeito a caneta entre seus dedos e guio um pouco o traço, porque a mão dela está pesada, mas ela segura a caneta com leseira e antes de chegar até o final da assinatura as letras se soltam da palavra e caem numa rubrica longa de caneta azul que se perde no lençol. O que fica no espaço reservado da agenda é um garrancho tão descarado que ninguém no colégio teria coragem de questionar que seja dela. Eu teria que ser louca para falsificar uma assinatura fazendo aquilo. Desde que nos mudamos para Buenos Aires, dois anos atrás, minha mãe quase nunca se levanta antes do meio-dia, quando a empregada leva para ela o café da manhã e corre a cortina, deixando a persiana um pouco aberta. O quarto fica na penumbra, invadido pelos raios de luz que atravessam as madeiras horizontais da cortina de enrolar e iluminam as partículas que flutuam no ar como pó mágico. À uma, quando chego do colégio, sua cara ainda está inchada e ela cheira a sabonete, mas finge que está acordada há horas. Ela está reclinada na cama arrumada, recortando uma receita de uma revista. O abajur está aceso, mesmo com a persiana aberta, e ela ainda está de camisola e robe, mas com meia-calça de náilon. Aos pés da mesinha de cabeceira, em vez dos chinelos azuis, os mocassins brancos. Não está deitada nem levantada. Tira os óculos e olha para mim, apontando-me com a tesoura: o que foi que você fez dessa vez? Devem ter descoberto que matei aula, mas digo: eu não quis me confessar. Silêncio. Ontem, quando no último horário uma freira abriu a porta da sala e avisou que o padre Miguel estava esperando na capela as meninas que quisessem se confessar, fiquei pregada na minha cadeira sem levantar o olhar, assim como das últimas seis vezes que haviam passado com o mesmo convite. Não aproveitei a meia hora que você demora para se confessar e voltar para fugir da aula de matemática, porque matemática não tem mais jeito: vou para a recuperação estando ou não na sala. Mas, na hora da saída, quando estava na fila do corredor, pronta para ir para a rua, a irmã Inês, a mesma que na intimidade de um acampamento me contou que as freiras também depilam as pernas, se aproximou de mim para me avisar que o padre Miguel queria falar comigo imediatamente. Ajeitei o rolinho de notas no elástico da meia e corri pelos corredores fazendo shuick shuick com a sola de borracha de umas botinas pretas que herdei quase novas de Javo, três anos mais velho do que eu. A capela da

escola fica na parte nova do prédio, escondida no fundo e rodeada de silêncio. Tudo muito moderno, paredes brancas, mantos engomados e nas paredes uma via-crúcis incompreensível. O confessionário é um quartinho num canto. Uma mesa e duas cadeiras frente a frente, numa das quais estava sentado o padre com um Novo Testamento nas mãos: passe, minha filha, sente-se. Pela janela atrás do padre, fininha como uma listra, recortava-se um pedaço de céu. À contraluz quase não dava para ver seu rosto, mas suas pupilas dilatadas se sobressaíam. – Faz muito tempo que não vens te confessar. – É que não tenho nada para dizer, padre… Ele olhou para mim como uma coruja e eu abaixei o olhar. Às vezes, quando ia me confessar, inventava mentiras para demorar o máximo possível para voltar para a sala. Dizia que espiava meus irmãos quando eles tiravam a roupa ou que algum deles tinha me apalpado. – Ou será que há alguma coisa que te é especialmente difícil dizer? Alguma coisa que gostarias de me contar, mas… – Não, de jeito nenhum, juro que não tem nada a ver. – Tu mesma – porque o padre Miguel usava “tu” em vez de “você” –, tu mesma me disseste que um de teus pecados mais frequentes é a mentira. Diz-me a verdade. – A verdade? A verdade é que sempre minto para o senhor, padre, porque, quando penso nos pecados dos quais deveria me arrepender, nunca encontro nenhum. A coruja pestanejou devagar. – Filha minha, teu pecado é a soberba. Juro que nesse mesmo instante uma nuvem tampou a luz que entrava pela fresta e ficamos no breu. Como ato de contrição, tínhamos que rezar juntos o “Meu Deus, eu me arrependo…” em voz alta. O padre Miguel pegou minhas mãos manchadas de tinta azul entre as suas, perfumadas com colônia de pinho, e recitou com os olhos fechados: “Meu Deus, eu me arrependo de todo coração de ter-Vos ofendido, perdoe-me pelo inferno que mereci e pelo céu que perdi, mas muito mais porque pecando ofendi um Deus tão bom e tão grande como Vós. Preferia haver morrido a ter-Vos ofendido e me proponho firmemente a não pecar mais e a evitar todas as situações próximas ao pecado, amém”.

Enquanto ele rezava, sozinho, porque eu não abri a boca, tentei livrar minhas mãos das suas algumas vezes, mas a pressão dos seus dedos não me deixava. Quando terminou, eu me levantei e fui direto para o banheiro lavá-las, mas mesmo assim continuaram cheirando a pinho um bom tempo. Minha mãe olha para mim incrédula. Deixa a tesoura sobre a cama. – Acordar às oito da manhã porque você não quis se confessar? Nem morta. Vou ligar para eles. E depois, quando seu pai voltar, ele vai, já que é ele que se importa com sua formação religiosa. Ela tem razão, mas encontrar meu pai em casa é mais difícil do que deixar um saco de leite em pé. Ele trabalha feito um escravo para a Universidade de Buenos Aires. É professor titular da faculdade e, além disso, membro do Conselho Superior e também dá conferências sobre educação, vai a coisas com nomes como “colóquio” e faz parte de organismos que nunca dá para saber a que se dedicam, porque seus nomes são siglas. Minha mãe diz que devemos ficar orgulhosos dele porque meu pai está fazendo coisas pela sociedade, coisas muito mais elevadas do que ser um simples pai de família. De qualquer maneira, quando ele se atrasa para o jantar, ela o xinga como se viesse de um bordel. Como todos os pais, o meu trabalha para fugir de casa, mas ele se preocupa de verdade com o bem comum e o Homem, com maiúscula, e tem ocupações muito mais importantes do que sua família. Também, com a família que tem: meus cinco irmãos e eu, que brigamos o tempo todo e por qualquer coisa, e uma esposa maníaco-depressiva que está meio maluca. Todas as suas secretárias alguma vez já tiveram que atender minha mãe chorando ou gritando ou pedindo socorro porque Mercedes queria estrangulá-la. Todas alguma vez tiveram que anotar o recado de que ele fosse para a puta que o pariu e de que, se não viesse jantar em casa naquela noite, não precisava voltar nunca mais. A revista está aberta sobre o colo da minha mãe numa dessas receitas que ela depois nos obriga a comer, sob ameaças: uma torre de panquecas e espinafre coberta com calda de caramelo. Ela vira as páginas molhando a ponta do dedo com a língua, coisa que meu pai acha muito vulgar, mas sem olhar nada: passa as páginas cada vez mais rápido, com tanta força que parece que vai arrancá-las. Levanta o tom de voz, e com isso ele fica mais fino e sua pele, vermelha como uma fruta venenosa.

– De qualquer maneira, você está de castigo, entendeu? Chega de ficar vagabundeando por aí a tarde inteira. Você vai ficar em casa e não vai sair até eu mandar! Vá arrumar seu quarto, leia um livro, converse com seus irmãos, mas daqui você não sai e vai ter que obedecer nem que você não quei… Ela fica sem ar e tosse como se fosse morrer ali mesmo, mas não atino com fazer alguma coisa, nem sequer lhe passar o copo d’água que está na mesinha de cabeceira ou bater nas suas costas. Olho, impávida, como seus olhos se enchem de lágrimas e o rosto se contorce, até que ela inspira muito profundamente e para, ofegante, suspira, assoa o nariz com um lenço e limpa as bochechas com o dorso da mão. Não me recrimina por ter deixado que ela morresse e volta ao assunto do colégio. – Você não tem nada para estudar? Nunca tem dever de casa, mas depois traz umas notas de dar vergonha! Fecha a revista com violência e a joga pelos ares. Olha para mim com fúria. Seus olhos cinza brilham como uma estrela formada pelas pontas de muitas facas. Ela arqueja e inspira, com um tremor. – Sabe o que você é? Uma mentirosa. É verdade. E, nessa mesma tarde, quando ela se enfia na cama para dormir a sesta, três horas depois de ter levantado, fujo de novo para a rua. Desço correndo pela escada os cinco andares antes de perceberem que fui embora. Ao chegar no térreo, como uma rocha que cai de uma ladeira, esbarro com o porteiro, que está saindo de costas do quartinho de máquinas com um balde cheio de água suja na mão. Ele se surpreende e derrama um pouco de água, mas não chega a se molhar, pois inclina o dorso a tempo, empinando a bunda como um toureiro. Ele me xinga entredentes, mas dá para entender perfeitamente “filhadaputa”. Além de ser desagradável, ele tem um olho de vidro e o nariz vermelho e gordo, cheio de buracos. Para ele somos os do quinto andar, a praga do prédio, e nos odeia desde a primeira vez que nos viu, no dia em que chegamos de Bellavista na caminhonete suja. Ele nos despreza porque somos inquilinos, porque não somos da cidade e porque somos muitos. Só para chateá-lo, saio pela porta da frente, atravessando o hall de entrada que ele acabou de encerar com as solas de borracha das botinas de Javo, que deixam umas marcas de pisadas com listras grossas iguais às de Armstrong na lua.

Vou buscar Sumi na casa dela, mas a jararaca da empregada me diz pelo interfone que ela não está. Não acredito, e vou dar uma volta pelas galerias da avenida Santa Fé porque não me atrevo a ir até a pracinha e encontrar com ela na frente de Lucio. Na avenida ainda há restos dos enfeites do desfile da primavera ao qual fomos todos juntos na semana passada, Sumi, Lucio, Pato, eu e até as irmãs Rimoldi, que nunca topam nada que fique a mais de dois quarteirões da pracinha, porque acham longe. Sumi tinha trazido sua irmã caçula, que tem dez anos, mas ainda brinca de boneca, porque é meio boba ou algo do gênero. Dá para notar no olhar um pouco vesgo e nas coisas que ela faz. No dia do desfile, ela ficava se cobrindo com guirlandas de flores de papel que encontrava rasgadas no chão e tirando Lucio para dançar, deixando-o morto de vergonha. Não era para menos, mas me lembro que nesse dia pensei: quem diria, a boba… Porque, apesar de não gostar de Lucio ainda, eu achava que ele era o mais bonito, com os lábios muito vermelhos e os cachos de Mark Lester. E acho que eu não gostava dele porque ele não gostava de mim, e não gosto de me apaixonar por ninguém que não esteja apaixonado por mim. Mas agora era diferente. De manhã, deitados no barranco da praça, a gente tinha se olhado como se estivesse mergulhando numa piscina, e agora eu gostava dele pra caramba. Eu ainda fecho os olhos e chupo os lábios, saboreando a lembrança daquele beijo que a gente deu com a boca aberta… E sei que tenho que contar isso para Sumi, porque ela é a minha melhor amiga, mas não sei o que dizer. Uns dias atrás jurei para ela que não gostava de Lucio. Não menti, quando disse para ela era verdade, não gostava de ninguém, eu ia para a pracinha que nem todo mundo, para ficar com meus amigos e passar tardes inteiras vagabundeando pelo Retiro. E Sumi sabe disso. Agora menos do que antes, e eu não sei por que, mas até uns meses atrás a gente se encontrava todos os dias na volta do colégio e íamos juntas até as galerias da rua Florida para fazer amizade com os hippies. Mudávamos nossos nomes e dizíamos que éramos duas primas órfãs, filhas de uns irmãos milionários que tinham morrido juntos num acidente com um jatinho quando ainda éramos muito pequenas. Morávamos no prédio Kavanagh com nossa avó rica, que mimava a gente, e não íamos ao colégio porque tínhamos tutoras. E como era divertido quando a gente fingia que era hóspede do Sheraton! Para ir lá a gente vestia a roupa que usava nas

festas de aniversário, eu colocava meu kilt escocês e Sumi, seu sobretudo vermelho. Uma vez até consegui que minha mãe me desse dinheiro para comprar um presente para a aniversariante! No início, o eterno porteiro vestido de fraque caía na armadilha e abria a porta para a gente com um sorriso e suas famosas costeletas longas, mas durou pouco; no quarto ou quinto dia, os porteiros dos três turnos já sabiam quem a gente era e não nos deixaram mais passar. Mas a gente entrava do mesmo jeito, pela galeria de baixo, e ia passear de elevador do terceiro subsolo ao vigésimo quarto andar, sem parar, apoiadas na parede de aço, de mãos dadas até subir e subir, aspirando essa vertigem que entra pela boca e esvazia o estômago e que dá vontade de fazer xixi e de gritar. Uau, que rumble! Nos quadrinhos, rumble é o som da terra vibrando sob os pés, ou quando as pedras caem pela ladeira ou um vulcão está prestes a explodir, rumble!, rumble!, escrevem em letras vermelhas com as bordas em ziguezague, mas eu e Sumi usamos isso para descrever a sensação que arrepia tudo dentro do corpo e você tem que apertar e morder os lábios para os dentes não caírem. A gente tem uma lista de coisas que nos causam rumble, de unha no quadro-negro a gilete no tobogã, passando por morder isopor ou cortar rolha com faca. E também coisas muito mais comuns, como desfazer o nó apertado do laço do tênis – pior ainda se além de tudo você acabou de roer as unhas – ou o barulho que uma porta faz ao abrir quando arrasta uma pedrinha. Uma tarde no hotel, a gente conheceu um senhor do Panamá que pediu que fôssemos com ele comprar sapatos na rua Florida. Os sapatos eram para sua mulher, que calçava quarenta e quatro que nem ele, então ele os experimentou na frente do espelho, negro e engraçado, e desfilou mexendo os quadris em cima dos saltos na frente de todo mundo. Número quarenta e quatro de mulher só tinha sobrado um verde. Eu nunca tinha visto couro verde, nem de crocodilo. Também nunca tinha visto um negro de verdade, muito menos com sapatos de mulher. Antes de voltar para o hotel, tiramos fotos dos três juntos na Torre dos Ingleses. Fomos expulsas do hotel logo depois por um cara que pegou a gente assinando uma conta no bar da piscina com um número falso de quarto. A primavera desta manhã virou um inverno que não acaba nunca e eu continuo de mangas curtas, mas com o jumper do colégio. Cansada de ficar perambulando, me encho de coragem e vou até a pracinha, ou talvez sejam

meus pés que me levam sozinhos, acostumados a ir lá todos os dias, sem faltar nunca. Quem dera fosse assim com o colégio, mas nada a ver, essa pracinha debruçada sobre a rua Posadas é o centro do mundo e o marco zero da minha existência. Não tem nada que eu goste mais do que ficar sentada em seus bancos de pedra que congelam a bunda, fumando e tomando picolé – sempre nessa ordem e sem nunca chupar o palito, porque me dá rumble – com meus amigos do quiosque de Dorita. O quiosque é um lugarzinho de dois metros por dois que fica do lado da pracinha, um buraco de quinze metros quadrados que é o meu verdadeiro lar. Soa um exagero, mas passo muito mais horas aqui do que na minha casa, e Dorita sabe muito mais sobre mim do que qualquer um da minha família. Ela é uma mulher que se veste com roupas apertadas e tem cabelo preto, longo, liso e brilhante como uma peruca com a risca no meio. Está sempre rindo, mesmo sem estar contente, com uns dentes grandes como os da avó da Chapeuzinho, mas o bom é que deixa a gente ficar ali sem fazer nada, dividindo entre quatro uma coca-cola debaixo do toldo da fanta. Ela tem um amante grego cheio da grana, casado com uma mulher supostamente doente, que ele não pode abandonar. O grego abriu o quiosque para ela ter o que fazer, mas Dorita não quer trabalhar. Ela diz isso em voz alta quando fala pelo telefone com a sobrinha: que vontade de estar em Carlos Paz, dar uma boa trepada e fazer a sesta. Mesmo havendo na parede atrás do caixa o típico cartaz “Fiado só amanhã”, nós, que vamos todos os dias, temos uma conta anotada no caderno forrado com papel com textura de teia de aranha e, em troca, fazemos favores para Dorita, principalmente os mais velhos, que carregam caixas e vão com ela ao banco. A mim ela pede para pegar coisas com a escada ou para discar os números do telefone, para que suas unhas, enormes como seus dentes, não rachem. Ela se refere ao grego como seu marido. Quando ele entra no quiosque, a gente sai e fica na calçada, em pé debaixo do toldo da fanta. Uma porta no fundo da loja dá para um quartinho do tamanho de um armário, usado como depósito. Ele tem um banheirinho coberto de caixas desarrumadas e mostradores velhos. De um fio no teto pende um pedaço de fita isolante preta. As caixas ocupam todo o chão, a não ser por uma trilhazinha que vai de uma porta à outra para entrar no banheiro, que também está cheio de caixas de mercadoria, como Dorita as chama, e de pilhas de jornal velho e empoeirado, que eu não toco

nem com um pedaço de pau, porque também me dá rumble. Algumas vezes ela me pede para cuidar do quiosque e se tranca com o grego no depósito. Dez minutos, cinco. Eu pensava que faziam isso para passar dinheiro um para o outro, mas os meninos dizem que eles fazem outras coisas, ali em pé, entre as caixas. Vejo Sumi logo, patinando em volta da árvore elástica. A luz da tarde banha de caramelo seu cabelo acobreado e longo até a cintura. Lucio não está. Quando me aproximo, Sumi vem até mim e freia fazendo um giro em “U” que a deixa a trinta centímetros de meu rosto. Ela olha para mim com seus olhos pretos de cavalo-marinho e, em vez de me cumprimentar, pergunta: quer dizer que você ficou com o Lucio, maluca, ainda bem que você não gostava dele, hein? Os orifícios de seu nariz são grandes e redondos, com uma borda muito delicada, mas se abrem e fecham como os de um búfalo. Durante os cinco segundos que ela aguenta séria, sem rir, eu sinto falta de ar. Adeus, companheira de estrada, nunca mais vagabundearemos juntas até escurecer, nem sairemos em busca de aventuras pelas praças. Adeus também aos nossos cochilos no sítio do pai dela, caindo as duas pelo buraco no meio da cama. Mas, antes que eu me ajoelhe aos seus pés para pedir desculpas, Sumi solta uma gargalhada, como se uma garrafa de coca-cola fosse aberta, e eu rio com ela para disfarçar, mas também contagiada pelo seu riso. Ao lado dela, tudo no cosmo se ajeita, por isso ela ganha tudo que joga e sempre está no lugar certo e na hora certa. Ela faz uma bola imensa de chiclete bazooka, estoura-a com um ploc perfeito e enfia o chiclete de volta na boca em meio segundo, sem sobrar nem um tiquinho da goma rosa nos lábios. – Vou para a aula de inglês – diz com a voz rouca e suave. – Você não vai mais? Eu parei de ir faz dois meses, porque estou devendo quatro mensalidades, embora não tenha dito nada em casa e continuem me dando o dinheiro. O dia em que ficarem sabendo vão me matar. – Não, minha mãe disse que se eu não quiser ir mais não preciso. Ajudo um pouco Dorita no quiosque, até a chegada de Lucio e de Pato, das meninas do prédio novo e de quase todo o bairro. Lucio tenta me beijar na frente deles, mas eu não deixo porque tem gente demais. Então ele me leva para trás da árvore elástica, contra o paredão de hera, mas eu sinto

que estão olhando a gente e, em vez de aproveitar os beijos, fico o tempo todo segurando as mãos dele. Vou para casa, embora só esteja começando a escurecer e eu nunca volte antes de ficar tarde, mas está frio e Lucio está cada vez mais excitado. Quer me acompanhar até a esquina da minha casa, mas digo que não porque tenho medo de que alguém nos veja. Ele me acompanha do mesmo jeito, mas do outro lado da rua, e vai jogando beijos entre os carros que passam como um rio separando a gente. No elevador me olho no espelho: magra e desalinhada, com o rosto oval e os olhos pequenos e juntos demais. O cabelo parece uma bola de poeira que acabou de sair de baixo da cama, um emaranhado desarrumado, opaco e cinzento de ondas cheias de pontas, que bate nos meus ombros. Ultimamente cresci tanto que tudo fica curto, mas talvez esteja virando mulher, porque também me apareceu um bigode. Antes de entrar em casa, escuto do corredor a televisão ligada na sala. A porta está destrancada e a casa na penumbra. Minha mãe está vendo televisão e do lado dela, em outro sofá, Javo fala ao telefone. Ao me ver, tampa o fone e diz sua sem-vergonha, mexendo os lábios mas sem emitir som. Assim como Obelix quando era pequeno caiu no caldeirão da poção que dava força, meu irmão Javo caiu no poço da sabedoria. Não tem nada que ele não saiba. É tão seguro de absolutamente tudo o que diz que às vezes você até acredita, mas, quando você não concorda com ele, é seu inimigo, porque quem não está com ele está contra ele. Minha mãe tem o olhar cravado na tela, mas está fora do ar. Viro e continuo andando no corredor, mexendo-me devagar para não tirá-la do transe. Entro no meu quarto pisando leve como o ar e, tanto para abrir como para fechar a porta, seguro a maçaneta como se ela fosse derreter. Mas meia hora depois minha mãe vem me buscar no quarto como se não tivesse me visto entrar. Abre a porta que nem uma louca e me sacode pelo cabelo: vagabunda, rueira, eu disse para você não sair de casa! Completamente fora de controle, aproveita para gritar por todas as tragédias da sua vida. Javo, em pé do lado da soleira, diz encolhendo os olhos: olha o que você faz com ela, imbecil. Minha mãe continua me sacudindo até que eu a empurro, para afastála de mim, e ela escorrega na ponta do cobertor que se arrasta pelo chão, caindo de bunda do lado da porta. Ela esperneia, puxa o cabelo, bate a cabeça contra a parede, perguntando-se por que tem filhos como a gente, e se joga no chão, teatral. Chora um pouco, xinga meu pai, xinga sua mãe, até que se cansa, como uma coisa prestes a acabar a bateria.

– Você vai para a cama –, Arturo me ordena da escuridão do corredor, e na manhã seguinte vai comigo até o colégio. Arturo é meu irmão mais velho, o que vem depois de Mercedes. Como ela, já começou a faculdade e também nunca está em casa. Depois dele vem Javo, o que caiu no poço da sabedoria, que ainda está no segundo grau, e depois eu, Félix e Bernardo – os gêmeos –, os três ainda no primeiro grau, mas Bernardo frequenta uma escola especial porque é surdo. É surdo de nascença, mas ninguém percebeu até ele fazer quatro anos. Minha mãe diz que ele era um santo porque brincava sozinho no cercadinho sem pedir nada, mas como ele não falava meu pai o mandou a uma escola para retardados, onde descobriram que era surdo. Na escola para surdos ele aprendeu a falar, mas minha mãe diz que ele não fala porque meu pai olha para ele com cara feia. Ele se sente tão mal ao ouvir Bernardo balbuciar os sons das letras sem entonação nem colorido que prefere que ele fique mudo. Nunca dirige a palavra a ele e muito menos o olha de frente, que é o que todos nós temos que fazer para que ele possa ler nossos lábios. Meu pai fala com os gêmeos como se fossem uma mesma pessoa, para quem, é claro, nunca tem nada para perguntar. Félix, que não aguenta o silêncio, fala sem parar. Sozinho e em voz alta, ele explica para Bernardo tudo o que passa pela sua cabeça. Como ele também não consegue parar de se mexer, sempre quebra alguma parte do corpo ou precisa costurar o supercílio ou o queixo. Ainda estava se recuperando da fratura do metatarso que sofreu em um jogo de futebol – levou um chute porque roubou a bola – quando fraturou o cúbito e o rádio trepando num muro para fugir de um terreno baldio. Passou os três meses seguintes com um gesso que ia até acima do cotovelo, dobrado como um “L” . Com os dedos imobilizados fazia as mesmas coisas que sem o gesso, que ia ficando com uma cor suja – escrito com caneta e desenhado com Pilot – e se desfiando nas bordas como uma múmia velha. Entre o traumatologista de Félix e a fonoaudióloga de Bernardo, minha mãe fica o tempo todo levando-os e trazendo-os do Hospital Alemão. O tio Rolo diz que um dia minha mãe vai fugir com um médico. Que Deus o ouça! De qualquer maneira, é uma sorte que os gêmeos se comportem pior do que eu. Cada vez que entro em casa e eles estão levando uma bronca, sinto um grande alivio.

Não a alegria que Javo sente, mas um alívio. De pé, um do lado do outro na frente da parede grande da sala, parecem dois anões de jardim, com as calças curtas e a cara de duendes, mas são dois vermes que gostam de subir no terraço e jogar pedras no velho teto de ferro e vidro da garagem e lançar ovos da varanda do quinto andar no jardim da nunciatura que fica do outro lado da rua. Se acertam na quadra de tênis, vale o dobro. Félix também gosta de jogar dardos e de atirar bombinhas dentro dos carros no carnaval. E, talvez por alguma aversão por todos os instrumentos de comunicação que não servem de nada para ele, Bernardo destrói telefones públicos. Eles parecem muito simpáticos por um tempinho, mas depois de meia hora se tornam insuportáveis. E estão cheios de tiques, que são de Bernardo, mas que Félix copia sem perceber. Há épocas em que mexem um dos cantos da boca para o lado, como se alguém puxasse um fio imaginário que levanta a bochecha deles. Em outras, arregalam os olhos como quem tomou um susto e ficam uns segundos com o olhar perdido, em lugar algum. Há épocas em que piscam sem parar ou sacodem uma mão boba na altura do peito, como se estivessem apressando alguém, e épocas em que enfiam a mão dentro da calça e mexem naquilo na frente das pessoas…

***

Rafael não parece um adulto, mas tem vinte e três anos. Sinto como se ele fosse da minha idade, mas sei que é muito mais velho, muito mais do que minha irmã, que não me dá nenhuma bola porque acha que sou uma pirralha. Rafael sempre chega no quiosque assobiando, com o cabelinho longo preso atrás da nuca e uma bolsinha de couro debaixo do braço. Lá em casa acham cafona homem que usa bolsa, ainda que também possa ser coisa de veado. Rafael tem um pouco dos dois, mas não é nem um nem outro. Guarda o maço de jockey club na manga arregaçada alguns centímetros acima do cotovelo, mas não é cafona. E usa calças boca de sino e botas pretas com zíper e um pouco de salto, mas gosta de mulher. Dá para perceber quando olha para elas, e ele olha para todas. Elas também sorriem para ele, que não tem nada de especial, mas é bonito, com os olhos castanhos como o cabelo e lábios bem fininhos. É um pouco mais alto do que eu e de perfil tem alguma coisa feminina, por causa do nariz arrebitado e dos cílios grossos. Seu sobrenome francês também confunde um pouco as coisas, mas o fato de ele dirigir um ônibus esclarece todas as dúvidas: qualquer um percebe que ele não é um filhinho de papai. Provavelmente na França seu sobrenome Ducret seja como se chamar Silva. Ele passa pela pracinha porque é amigo de Dorita. Qualquer um nota que não rola nada entre eles, porque um não tem nada a ver com o outro; não sei quantos anos ela tem a mais que ele, mas parece cem, e dá para perceber que ele gosta de estar entre os mais novos. Chega para cumprimentar Dorita e depois fica conversando com a gente lá fora, debaixo do toldo da fanta, ou nos convida para comer misto-quente no bar da esquina, onde a gente se diverte fazendo piadas com o garçom, que conta as melhores piadas em três atos do mundo. Primeiro ato: uma mulher grávida e um bolo queimado. Segundo ato: uma mulher grávida e um bolo queimado. Terceiro ato: a mesma coisa. Qual é o nome da peça? “Quem mandou não tirar a tempo?” Um amigo de Boedo (em vez de dizer o nome das pessoas sobre quem fala, Rafael sempre usa o nome do bairro ou da rua onde elas moram) empresta para ele o táxi com que nos leva para passear com o taxímetro desligado, e vamos até o Rosedal para andar de barco ou comer choripanes na Costanera Sur.

Não entendo de onde Rafael tira a fortuna que gasta com a gente, mas ele nos leva o tempo todo ao cinema e para comer pizza. Muitas tardes também vamos ao Ital Park sem ele, porque fica no nosso bairro, e procurarmos fichas perdidas, que sempre encontramos (as melhores são as pretas, porque servem para todos os brinquedos). Chegamos no final da tarde, quando o céu fica azul-claro e acendem as luzes de todos os brinquedos. Sempre há promoções especiais para entrar sem pagar, e no dia do seu aniversário você ganha de presente um talão cheio de passes livres. Cada um de nós já foi lá com sete documentos diferentes. Numa manhã em que Sumi, Lucio e eu matamos aula, andamos no túnel do trem-fantasma. Entramos pulando por um canto, porque não tinha ninguém, os brinquedos estavam cobertos e as bilheterias com a persiana abaixada. Lucio ergueu a lona para entrar no trem-fantasma e Sumi o seguiu decidida, rindo. Eu entrei para não ficar sozinha do lado de fora, parada ali como em uma aldeia abandonada. Dentro, sem luzes, o túnel era muito mais sinistro do que iluminado. Por entre as paredes de latão penetravam uns raiozinhos de luz que recortavam as figuras contorcidas nas sombras. Eu disfarcei o medo o máximo que pude, até que alguma coisa pendurada no teto roçou meu cabelo na escuridão, na mesma hora em que um gato fugiu do seu esconderijo no meio do cenário do carrasco, e eu comecei a chorar. Sumi e Lucio, vinte metros na frente, gritavam histéricos, felizes da vida e da morte. Eles também adoram ficar de cabeça para baixo na montanha-russa ou sentir no corpo todo a vibração dos karts de Indianápolis, que os faz tremer como uma corrente elétrica. Quando a gente vai com Rafael, eles dão mil voltas em tudo. Eu fico esperando embaixo, em terra firme, porque a minha vida já tem emoções suficientes. Rafael insiste: vai, quero que você se divirta. Então, de brincadeira, a gente anda até o fundo do parque, onde estão os brinquedos de quermesse, os mais idiotas, mas mesmo assim… não acerto nem um aro na garrafa. Minha mãe e meu pai, na verdade principalmente meu pai, desconfiam de Rafael. O que um marmanjo está fazendo brincando com crianças? Ele acha divertido? O que é que ele acha divertido? Meu pai custa a acreditar que alguém procure nossa companhia por livre e espontânea vontade; alguém com um gosto tão estranho deve estar escondendo alguma coisa. E que eu defenda Rafael com tanta devoção o torna ainda mais desconfiado. Eu tinha contado em casa que Rafael às vezes levava a gente para

andar de barco no Rosedal ou ao zoológico, mas não contei que a gente ia o tempo todo ao Ital Park ou aos cinemas da rua Lavalle. Mas agora Rafael convidou todos nós para ir no domingo ao estádio do River, o clube do seu coração (quando o time joga, ele veste a camiseta debaixo da camisa azulclara de motorista), e se ofereceu para pedir autorização ao pai que for preciso. Sumi ri, sempre ri: se eu contar na minha casa que tenho um amigo motorista de ônibus, viro picadinho.

Fico mais calma quando o interfone toca exatamente na hora em que Rafael me disse que viria: às duas e meia da tarde. Abro o portão pelo botão do interfone e ele sobe pelo elevador assobiando “Michelle” baixinho. Meu pai abre a porta da frente no momento exato em que o elevador para no hall; minha mãe fica um metro atrás dele. Rafael cumprimenta ambos de maneira formal e tranquila: muito prazer, ele diz, e fala dessas chatices sobre as quais os adultos conversam. Meu pai pergunta de onde sua família é e minha mãe, quantos anos ele tem. Conversam um tempo sobre alguma coisa da Universidade de Rosário (aí fico sabendo que Rafael é dessa cidade) parados sobre as franjas da borda do tapete da sala, até que Félix e Bernardo aparecem. Eu já contei mil coisas sobre os gêmeos para Rafael, e Félix já topou com ele uma vez no quiosque de Dorita. Rafael cumprimenta os dois com um aperto de mão, depois toca o ombro de Bernardo, pede que ele o olhe e, na linguagem de sinais, pergunta alguma coisa, que Bernardo entende perfeitamente e responde logo. Minha mãe abre os olhos como se lhe tivesse caído um cisco. Em casa a gente não fala com ele em linguagem de sinais porque na escola de surdos dizem que isso não ajuda que ele aprenda a ler os lábios, mas ao que parece Bernardo sabe mesmo assim. Ele está tão nervoso e contente que ri que nem um idiota, fazendo aquele barulhinho insuportável. Mas na frente de Rafael eu não ligo, sinto-me à vontade, embora esteja na minha casa. Félix, cara de pau total, abusando de seu charme, pergunta: posso ir? Os olhos brilham, suplicantes. Rafael olha para meu pai e diz que por ele não há nenhum problema em levar os três. Bernardo bate palmas, louco de felicidade. A partir desse momento, minha mãe resolve que Rafael não tem nada de ruim e que é uma boa pessoa, e que se fala muito prazer ao se apresentar ou bom proveito na mesa é porque é um rapaz mais simples, o que afinal de contas não é nenhum pecado. Atravessando a rua, em frente à pracinha, existe uma escada de

mármore que leva até uma travessa de má fama que vai dar nos arcos do Bajo. Para percorrê-la é preciso andar entre paralelepípedos desiguais e ziguezaguear entre os carros cheios de garotas de programa. É uma travessa com portas meio escondidas e lampiões quebrados. Do parapeito da escada na frente da pracinha, ao entardecer, parece um túnel que se perde na escuridão. A única luz que se vê é a do lampião vermelho do Can Can, um cabaré que às vezes se esquece de desligá-la durante três dias seguidos. Lucio e Pato, que passam a vida na pracinha, dizem que muitas vezes viram as putas entrando e saindo, mas eu nunca vi ninguém. Rafael está sentado do meu lado em um dos bancos de pedra que congelam a bunda, contando as piadas de um programa humorístico que passa na televisão e que na minha casa não me deixam ver, porque tudo de que eu gosto meu pai acha pouco edificante. Imita Rucucu, um dos personagens, e depois me diz: – Você não viria comigo até a casa de um amigo? Na pracinha a gente costuma ir junto para todos os lugares; eu e Sumi vamos juntas até a esquina da casa uma da outra até sete vezes seguidas. Rafael agita o calcanhar sem perceber e sua perna toda treme. – Meu amigo Humberto, aquele que a mãe tem um salão em Temperley, aquele que mora aqui na frente, na travessa. Aquele que eu te contei que deixa lasanha para mim na geladeira e passa até minhas toalhas. Ele segura o joelho com a mão para parar de mexer o pé. – A Humbertina, você quer dizer. – Vamos lá? É aqui pertinho. Daqui a pouco a gente volta. Ele fica contente quando digo que sim. Inspira meio ofegante, como sempre que está inquieto, o que é quase sempre. Humberto mora no meio da travessa, numa pensão que parece um cortiço. Atravessamos uma grade e andamos por um corredor que vai dar em um pátio escuro, cheio de quartos, com plantas em vasos e roupa pendurada por toda parte. A casa de Humberto fica no primeiro andar, no fundo. Rafael toca a campainha. Uma voz de mulher responde de dentro: pode passar que está aberta. A casa toda é do tamanho do meu quarto. Em um canto, há um fogareiro com forno que parece de brinquedo, mas percebo uma chaleira com água fervendo sobre o fogo aceso. No centro, há uma mesa com duas cadeiras e do outro lado uma pequena cama e uma cômoda de madeira entalhada com flores. A cama está cheia de almofadas, entre as quais descansa um cachorro salsicha velho. Humberto é careca e está usando um avental de cozinha. Sorri e diz: Rafael.

Ele se parece com a minha tia Elena, a irmã do meu pai, uma professora de latim solteirona que vive com a vovó. Nas paredes, há quadrinhos com retratos de damas, cachorrinhos ou flores em molduras ovais, coladas sobre tiras de veludo verde-musgo ou amarelo-ovo e arrematadas com um laço ou uma franja. Do lado da caminha, uma vitrola com discos de Maria Martha Serra Lima e um vaso chinês com uma mariasem-vergonha. O banheiro fica do lado de fora, antes da escada. Se você quiser ir eu vou com você, fala Humberto, mas prefiro segurar, porque imagino que o banheiro é desses que têm um buraco no chão e duas marcas para apoiar os pés do lado. Rafael se senta à mesinha com Humberto e eu, na beira da cama, para poder fazer carinho no cachorro, que na verdade é uma cadela. Uma salsichinha velha e quentinha, com as orelhas muito macias. As vozes deles se misturam com as do rádio e ressoam no teto, que é desproporcionalmente alto. Eles tomam mate e falam sem parar. Não entendo do quê, mas rio quando eles riem. É estranho ver Rafael como um adulto, e também essa mulher que está com ele como Humberto. Uma hora começam a falar em código para que eu não entenda, porque estão falando de mim. Escuto alguma coisa de linda e maravilhosa e digo que se eles quiserem eu vou embora, e me levanto da caminha me fazendo de incomodada, porque prefiro parecer uma idiota a suportar que falem bem de mim na minha frente. Rafael jura que não estão debochando de mim, e fico com mais vergonha ainda. Assim como fico ao perceber que ele me levou até a casa de Humbertina para que me conhecesse como se estivesse me apresentando à sua mãe. Nessa noite me enfio na cama e tento sonhar com Mark Spitz. Na parede tenho um pôster gigante dele com as sete medalhas de ouro que ganhou nos jogos olímpicos de Munique penduradas no peito nu. Está com uma sunga com listras verticais com as cores dos Estados Unidos e sobre a do meio há três estrelinhas brancas que ficam bem onde eu quero sonhar com ele. É tarde e, tirando Mercedes, que para variar não está, e meu pai, que não veio jantar, todos já estão dormindo há muito tempo. Eu tento dormir, mas não consigo, e de bruços esfrego o peito dos pés no lençol procurando o céu das três estrelinhas brancas. De repente escuto no quarto ao lado o rangido que o beliche de Javo faz quando ele desce da cama de cima e ouço seus passos descalços quando ele abre a porta ao se

dar conta de que meu pai chegou. Da cama ouço os cochichos com que ele o intercepta no corredor e o faz retroceder até a sala. Eu me levanto e vou até o hall; minha mãe ronca devagar, com a porta encostada e suponho que alguns miligramas de valium no sangue. Dou uns passos e me escondo na escuridão do interminável corredor de taquinhos que chega até quase o tapete da sala. No fundo do túnel, ouço a voz de Javo, falando baixinho, mas em um tom forte, como se gritasse em segredo. Não dá para entender direito o que ele diz, mas se trata de alguma coisa terrível que Mercedes escreveu numa carta. Entre os murmúrios chegam palavras soltas: grávida e aborto. A única coisa que escuto meu pai dizer é: a sua mãe não pode ficar sabendo disso. Falam por mais alguns minutos e depois ficam em silêncio. Quando ouço os passos do meu pai se aproximarem pelo corredor, volto para minha cama como um relâmpago e cubro a cabeça com o lençol como se houvesse um monstro ali. Mas não prego o olho a noite inteira: Mercedes grávida, não é possível. Como sempre que meu pai diz que minha mãe não pode ficar sabendo de alguma coisa, ele é o primeiro a contar para ela. E, quando minha mãe fica sabendo, o prédio inteiro também fica sabendo pelo vão da área de serviço, onde fica o quarto de Mercedes, que na verdade é o segundo quarto de serviço deste apartamento imenso e cinza, que minha mãe chama de estilo racionalista e meu pai, de caixa de sapato. Quando volto da escola na hora do almoço, Mercedes está trancada no quarto chorando aos berros enquanto minha mãe bate na sua porta e berra que ela é uma puta. Na cozinha, a empregada tira o avental como se estivesse indo embora. Os gêmeos estão parados na sala, prontos para sair correndo se o abominável homem das neves aparecer no corredor, e Javo ainda não voltou da escola. O ambiente está carregado de tragédia e apocalipse, e minha mãe solta uns bramidos direto da garganta, sem tomar ar, trocando seu tom de voz de sempre, agudo e estridente, por uma coisa rouca que ela parece cuspir como um escarro. A cara inchada pelas lágrimas e os olhos cinza sem brilho, com o globo branco rosado e venoso. Aperta na mão um lenço molhado e baba. De dentro do quarto, Mercedes grita: odeio você, filha da puta, quero que você morra. Recuo pelo mesmo caminho por que acabei de entrar e saio pela porta da sala. Félix faz cara de órfão: posso ir com você? Faço que não com o dedo. Fico com pena, mas, se Bernardo vier com a

gente, eu faço um harakiri. Fecho a porta devagarinho e desço as escadas correndo. Do lado de fora, na rua, a luz vibrante das três da tarde me espera com os braços abertos. O barulho dos carros acelera minha pulsação. As duas palavras, grávida e aborto, ecoam na minha mente. Não podia ser com Mercedes. E quando será que foi? Mercedes nunca ficava em casa. E seu namorado? E Deus? Lucio e eu entramos num cinema para ver um filme-catástrofe que não sabíamos que durava mais de duas horas e acabo chegando em casa bem mais tarde do que de costume, mas o clima está tão pesado que ninguém nem percebe. Dá para ver que não houve jantar e que minha mãe está dormindo faz tempo. Meu pai está num evento no círculo militar. Como sempre que há confusão, a gente vai deitar cedo e quase ao mesmo tempo, como se tivéssemos combinado. O que não impede que na manhã seguinte Javo e Arturo caiam na porrada por causa de uma vitamina de banana. Mas Mercedes não está grávida. Esse papel amassado com a tinta desbotada que Javo encontrou bisbilhotando caixas (um dos seus hobbies favoritos: em busca de profissionalização, também manda os cupons da Continental School que aparecem nas revistas de quadrinhos para receber informação sobre o curso de detetive por correspondência) é uma carta velha que ela escreveu para o namorado há mais de um mês, desesperada porque sua menstruação estava duas semanas atrasada. Mas depois veio e ela se esqueceu de jogar fora a carta, e agora todo mundo sabe que ela transa com o namorado. Coitada de Mercedes, em dois dias ela perde sua falsa reputação de boa filha e ainda por cima fica sem namorado, porque, quando propõe ao bonitão que eles se casem do mesmo jeito e morem juntos, ele diz que faltam três anos para se formar e ela o deixa porque não pode esperar tanto. Meu pai está contente, porque não gostava nem um pouco do namorado dela. Segundo ele, é o tipo de aluno que vai para a faculdade para fazer política. Que nem você, comentou minha mãe, que conheceu meu pai quando os dois estudavam na Manzana de las Luces e ele militava na Alianza Libertadora. Mas meu pai acha que não tem nada a ver com aquele rapaz arrogante que o olhava com desprezo. E a verdade é que não tem, porque o exnamorado da minha irmã era mais parecido com Alain Delon. Mercedes chora sem parar durante quatro dias seguidos. No quinto, de camisola e com o olhar meio perdido de uma donzela prestes a cometer

um ritual de sacrifício, para ao lado do incinerador no corredor da área de serviço, com sua mochila de lona de acampar cheia de cartas de amor, e joga uma por uma no lixo. Sem pestanejar; corta as fotos em pedacinhos e rasga em tiras uma bata indiana listrada que ele deu para ela de presente de aniversário. Do ódio para o amor é só um passo, diz o ditado, mas parece que do amor para o ódio o caminho é bem mais curto. Nessa mesma tarde, chega milagrosamente uma carta dos Estados Unidos, confirmando que Mercedes foi aceita num programa de intercâmbio no qual tinha se inscrito fazia muito tempo, mas sem nenhuma esperança. Como ela tem mais vontade de sumir do que Houdini, não hesita nem um minuto, e meu pai a ajuda a acelerar as coisas, para afastá-la quanto antes do namorado, que voltou a ligar para ela. Mas, antes da viagem, escuto Mercedes falando com uma amiga no telefone do corredor. Ela está sentada no chão, fumando, porque meu pai ainda não chegou do trabalho, e usando a caixinha de fósforos como cinzeiro. Estou com medo de ir embora – ela diz –, mas se ficar sei que vou acabar transando com ele de novo, e não quero, porque ele também me dá um pouco de medo… Duas semanas depois, ela entra em um avião e vai embora. No fim de semana seguinte, Arturo não só se coloca no lugar de irmão mais velho, como se muda para o quarto de Mercedes sem perguntar nada para ninguém. Agora os gêmeos são seus lacaios com quarto próprio e ficam levando e trazendo coisas para ele de um aposento para o outro. Principalmente Félix, que também virou seu office boy: compra seus cigarros ou a gilete para ele se barbear. Bernardo engraxa seus sapatos e eu mesma, mas porque quero, limpo seus discos com um vaporizador transparente e uma flanela. Adoro o da Carly Simon e não consigo deixar de olhar a foto da capa, na qual ela veste uma camiseta azul-clara que marca os bicos dos seios e não está nem aí. Depois do que aconteceu com Mercedes, Javo ficou com fama de dedoduro, embora ele se defenda dizendo que quem vai para o inferno é ela. Mas a eterna briga entre eles piorou, porque, agora que Mercedes, a quem Arturo era unido só pelo amor ao tênis e pelo ódio a Javo, foi embora, ele ficou sozinho e Javo se dedica claramente a incomodá-lo. Ele procura Arturo para brigar por qualquer motivo; rouba o elevador, fechando a porta na sua cara, e deixa seus discos no sol para que derretam.

Não avisa que ligaram para ele e deixa rastros de suas inspeções de propósito. Fuma seus gitanes escondido, mas sabe que será esquartejado se



ele ficar sabendo. Por muito menos Arturo corre atrás de Javo pela casa inteira até alcançá-lo e dá tapas na sua cabeça enquanto o empurra até um canto com seus três anos e sei lá quantos quilos a mais e dá socos no corpo e joelhadas no estômago até que Javo o chama de veado; aí Arturo bate na cara dele até sangrar pelo nariz ou pelo lábio, nada sério. Mas uma vez ele levou três pontos na bochecha. Javo sempre acaba chorando, e, se você comete o erro de olhar para ele, pode levar um soco mesmo sem ter nada a ver com aquilo. Depois vem a vingança. Porque, por mais que meu pai tente nos fazer acreditar na ideia de dar a outra face, Javo costuma preferir enchê-lo de socos quando ele menos espera, principalmente se Arturo estiver com algum amigo, algo que acho incompreensível, porque ele sempre acaba perdendo. Não entendo como Javo não tem vergonha de que o vejam chorar e se arrastar depois que Arturo o enche de porrada. Por via das dúvidas, passo o maior tempo possível fora de casa. É fácil, porque, quando as batalhas atravessam seus pontos mais ardorosos, meu pai e minha mãe nem sequer percebem que eu não estou, e os meus irmãos, que são os que percebem, ficam na deles para não piorar as coisas. Eu tento dormir na casa das minhas amigas sempre que posso. O problema são as mães, que na terceira noite consecutiva que me veem ali perguntam se tenho a permissão dos meus pais. Até na casa de Sumi, onde as brigas entre a mãe e as irmãs são quase piores do que as de lá de casa, suspeitam da minha presença. A jararaca não demora mais de duas horas para ameaçar ligar para minha casa e perguntar se sabem que estou ali. Por isso, em algumas noites, do jeito que as coisas estão, prefiro dormir no carro estacionado na garagem do subsolo, um polara azul elétrico que o pai de Sumi deixou esquecido num canto atrás de uma coluna, com os pneus vazios e coberto de pó. Rafael dirige um ônibus da linha 102 e às vezes eu faço o percurso com ele. Ele me diz o horário em que mais ou menos deve chegar à esquina da Guido com a Montevideo e eu o espero apoiada no poste com listras azuis e brancas. Deixo passar todos os 102 que não têm o número catorze pintado no lado direito da porta. Fico na mesma fila que o resto das

pessoas, mas quando Rafael chega subo a escada empurrando todo mundo para entrar primeiro. Subo e fico em pé atrás do banco do motorista. Assim que ele me vê, olha para mim pelo espelho com os olhos brilhando. O volante está forrado com fitas vermelhas e brancas, e, pendurada no espelho, há uma imagem de São Cristóvão, o padroeiro dos motoristas e viajantes, levando nos ombros um menino desconhecido, que ele ajuda a atravessar o rio sem saber que é o menino Jesus. É a mesma imagem que eu tenho na cruz pendurada no meu pescoço, presente de comunhão do tio Rolo, e essa coincidência me parece um sinal. Rafael destaca os bilhetes e dá o troco enquanto dirige com um cigarro na boca. Eu me acomodo no poço, esses três degraus ao lado do motorista que dão para a porta da esquerda, que está sempre fechada. Ou então me apoio sobre a outra ponta do painel, atrás da porta da direita, por onde as pessoas sobem, e o ajudo a cortar os bilhetes quando há muita gente. Pergunto para os passageiros de quanto é e lhes entrego na mão o bilhete cortado, enquanto Rafael acaba de dar o troco para o passageiro anterior. Rafael cumprimenta cada passageiro que sobe e fala oi, neném para as moças bonitas. Para o ônibus bem perto da beira da calçada para que as velhas não tenham que descer na rua e deixa quem vai para a escola viajar sem pagar. Sobem muitos vendedores ambulantes que deveriam trabalhar em um teatro. Outro dia um grandalhão montou um show incrível e eu aderi do poço fazendo réplicas, para dar uma de engraçada. O cara tinha que inclinar a cabeça para não encostar no teto. Levava uma bolsa transpassada, caindo pelas costas, e usava uma camisa azul-clarinha. Subiu depois do último passageiro, secando o suor da testa com um lenço, e cumprimentou Rafael com um e aí, chefia. Todos os bancos do ônibus estavam ocupados e havia umas quatro ou cinco pessoas em pé no corredor. O grandalhão se acomodou na escada, na frente da fila de bancos duplos, para deixar o corredor livre, e ficou se segurando no corrimão do teto. Eu estava sentada num lugar muito difícil de descrever, a ponta do painel à esquerda, em cima do poço, um canto envidraçado e apertado do lado do motorista, onde só alguém com uma bunda tão pequena como a minha pode se sentar. Estava do lado de Rafael e a um metro do grandalhão. Boa tarde, damas e cavalheiros, venho lhes oferecer diretamente da fábrica um produto que vai mudar a sua vida. Dinheiro, eu comentei da esquininha, e o cara escutou, mas continuou falando como se não tivesse me ouvido. Um inovador produto químico que limpa todo tipo

de mancha, sem deixar o menor rastro. Não sobra nem um fiapo, eu gritei sem levantar demais a voz, mas claramente me fazendo de esperta. Vou fazer a prova na minha camisa, ele disse, tirando do bolso direito da sua ampla calça de gordo um conta-gotas com um líquido azul-marinho que extraiu de um cartucho de caneta e derramou de propósito na barriga. Ih, isso você não vai fazer com a minha, comentei do poço. Algumas pessoas riram. Uma mancha azul cresceu sobre a camisa azul-clara mais ou menos na altura do terceiro botão. O grandalhão levantou a voz. Quantas roupas vocês já perderam por causa de uma mancha de tinta? Hein? Nem precisa ser uma mancha, às vezes basta um respingo de nada! Ele tirou do bolso esquerdo outro conta-gotas com o produto e, com a ajuda de um paninho que pegou no bolso traseiro da calça, esfregou a mancha de tinta azul até que a apagou completamente. Na camisa ficou apenas uma auréola úmida. As pessoas fizeram ooh. Do bolso esquerdo da calça ele tirou outro conta-gotas com um liquido vermelho e espesso que nem ketchup e jogou na camisa, agora no lado direito, porque no outro a auréola ainda não tinha acabado de secar. A plateia o escutava com a boca aberta, enquanto ele a encarava fixamente. Quantas roupas vocês já perderam por causa de uma mancha de molho, uma sopa que escorreu, um respingo de mostarda? Use um guardanapo, fofa, eu disse do fosso, com a voz da Tita Merello. As pessoas riram às gargalhadas, algumas aplaudiram. Em um ponto, subiu mais gente, que entrou no ônibus meio pedindo desculpas, agachada e com a boca fechada, como quem chega atrasado no cinema e leva bronca dos que já estão sentados. Para encerrar o show, o grandalhão passou batom, beijou a gola da camisa e de novo tirou um vidrinho com a poção mágica. Não queriam que ele descesse. Compraram um monte de vidrinhos, que ele tirava da bolsa acomodada sobre a barriga. Antes de descer ele me disse, sentido, despedindo-se com uma reverência teatral: adeus, minha rainha. Princesa, eu respondi, minha mãe ainda está viva. Tchau, linda, adeus, disse ele para terminar, não morra jamais… E assim que pisou na rua, no mesmo instante em que apoiou a ponta dos sapatos no asfalto com esse pulinho freado dos que sempre caem em pé, e antes de se perder entre as filas dos passageiros do próximo ônibus que ia tomar, virou-se e acrescentou para todo mundo ouvir, olhando para mim de longe: – Fique agonizando a vida inteira! Rafael fala com os passageiros enquanto dirige, ameaça mandar descer os que chateiam e, quando sobe uma grávida ou uma mãe com um

bebê no colo e ninguém cede lugar, ele freia o ônibus no meio da rua, levanta do banco de motorista e o oferece para que ela se sente. Ele se parece com a raposa que faz o Robin Hood no filme da Disney.

Uma ponta do percurso é em Barracas, numa esquina com calçadas três ou quatro degraus mais altas do que a rua, para conter as cheias da água podre do Riachuelo. Em volta, há galpões enferrujados e fábricas fechadas com todas as paredes pichadas com as palavras volte, Perón e o desenho da estrela federal, de oito pontas. Os motoristas param para tomar café apoiados na única parede onde o sol bate. A outra ponta do percurso é em Palermo Chico, atrás de uma pracinha entre os bosques. Bancos de madeira, caminhos de saibro e lampiões franceses. Empregadas de uniforme passeando com velhos. Nas duas pontas, mais ou menos a mesma coisa: Rafael estaciona ao lado de outros ônibus vazios e a gente caminha até onde ficam reunidos os outros motoristas, que no começo olham para mim de um jeito estranho. Ele me apresenta com um gesto geral – minha amiguinha Recoleta – e eu cumprimento cada um deles com um beijo; mas a minha presença os inibe e na minha frente eles não contam nenhuma piada nem esboçam a perspicácia que Rafael lhes atribui quando fala deles. São só um grupo de motoristas fumando numa esquina, e de repente não sei o que estou fazendo ali. Mas com Rafael sou capaz de ir até o fim do mundo. É a primeira pessoa que me vê como eu realmente sou. Nunca ninguém ligou tanto para mim. Ele acha tudo o que eu digo genial e lembra frases inteiras minhas. De cada um dos meninos do quiosque Rafael seleciona sua palavra favorita, aquela que detecta que a pessoa fala com muita frequência ou de um determinado jeito. Ele gosta de como eu digo tenhuquimbora quando preciso voltar para casa antes que escureça, e eu gosto de que ele me faça repetir isso duas ou três vezes, embora finja que estou cansada da piada. Rafael adora os jogos de palavras e as piadas idiotas do tipo você conhece o Mário? Que Mário? Aquele que te comeu atrás do armário. Ele se diverte fazendo você cair mil vezes até se zangar; e mistura com astúcia em qualquer conversa a frase você conhece o Brás, para você perguntar que Brás? e ele te responder aquele que te comeu por trás. Cinco minutos depois ele faz você cair de novo, dizendo que o Marcelo te ligou, que

Marcelo? o irmão do Mário. Todas essas coisas que não dá para dividir com as pessoas que não sabem o que há em comum entre uma privada e uma moto e que, quando alguém pergunta se você viu aquele negócio, você nunca tem que perguntar o quê. Lucio e Pato também estão sempre prontos como escoteiros para ir com Rafael ou com quem quer que seja para qualquer lugar, e quanto mais longe melhor mas, como Sumi tem medo de ser vista na rua quando mata a aula, vamos sempre para o cemitério. Não é o lugar mais divertido do mundo, mas a gente fica perambulando numa boa entre os mausoléus, fumando pelo meio da “rua”, porque não tem ninguém vivo ali além da gente, enquanto lemos as lápides. Se a senhora Erpilia de Avellaneda ao morrer, com vinte e dois anos, já tinha cinco filhos, certamente se casou antes dos catorze, e coisas assim. Com o tempo, criei um percurso de cinco ou seis túmulos pelos quais sempre passo, e se entro no cemitério e não vou vê-los me sinto culpada, como se fossem da minha amília. Para a menininha de mármore que está deitada na sua caminha em um mausoléu na entrada, às vezes até dei flores, roubadas de outra tumba, mas flores de todo modo porque sinto que ela é minha irmãzinha morta. Sei que isso é impossível, porque minha irmã morreu ainda bebê, mas principalmente porque a gente não tem um mausoléu na Recoleta. Mesmo assim eu sinto que é ela. Até porque também parece impossível que sejam de mármore o lençol que a cobre e as florzinhas silvestres que ela segura entre as mãos, assim como o cabelo esparramado pelo travesseiro e a transparência das pálpebras fechadas para sempre.

Às vezes a gente brinca de ter medo e se assusta de verdade, por algum movimento invisível, um barulho rápido ou a imagem tenebrosa de um mausoléu violado durante a noite. Os ladrões deixam os caixões empoeirados com as tampas abertas, pelas quais dá para ver pedaços de tecido amarelado entre teias de aranha e cabelos ressecados. Vemos também vidros quebrados e velas derretidas apoiadas em qualquer lugar para levar candelabros, os puxadores de um féretro ou míseras chapinhas de bronze. Nunca roubei nada, porque, embora saiba que o inferno não existe, acredito na vingança do além-túmulo. E também porque minha coleção é só de plaquinhas de carro. Aquelas plaquinhas com a marca ou o modelo que todos os carros têm

coladas na carroceria. Tenho uma coleção bastante grande, com algumas peças realmente valiosas. O bairro ajuda, pois é uma mina permanente. Dos arredores da embaixada da Argélia e dos fundos da nunciatura, na esquina lá de casa, juntei uma boa quantidade de falsos símbolos da paz de carros mercedes benz, mas também chapinhas de ford futura e chevrolet 400, ou os três números do peugeot 404 que vêm soldados na mesma chapinha. E lá embaixo, na travessa, uma vez o brilho de um jaguar que estava no capô de um carro chamou minha atenção, e o retirei intacto. Houve uma época em que eu levava uma chave de fenda no bolso interno do blazer da escola, que estava com o forro rasgado e às vezes eu tinha que procurá-la pelas costas da roupa. Era uma chave de fenda larga e curta com o cabo de acrílico verde, com a qual eu arrancava as plaquinhas sem quebrá-las. É preciso ter muito cuidado, porque elas racham por qualquer coisa; primeiro tem que soltar os parafusos, se possível, e depois enganchar a extremidade plana da chave de fenda por trás e fazer uma ligeira alavanca para que se soltem com cuidado, com os parafusos no lugar. Na maioria das vezes é preciso fazer isso de costas, apoiado no para-choque, com as mãos escondidas atrás, fingindo que não está fazendo nada além de estar encostado num carro. Se der para levar os parafusos, melhor, alguns são longos como um dedo e outros perdem a cabeça assim que você mexe neles. Eu guardo a coleção como um tesouro, escondida numa caixa de papelão no fundo do armário do meu quarto, debaixo de uns patins enferrujados que eram de Mercedes.

***

A empregada do chá de camomila, que mais do que um canário era um apóstolo, teve que voltar para sua cidadezinha, porque sua filha de quinze anos ficou grávida. Agora temos uma moça nova, do Chaco, de vinte anos, mas que parece ter mais porque é enorme. O uniforme fica curto nela, e ela deixa o último botão aberto, por onde dá para ver suas coxas morenas de guerreira indígena, lisas como as de uma boneca. Chama-se Zulma e, como a cidade a sufoca, usa o uniforme rosa com bordas brancas só com calcinha e sutiã por baixo e anda de chinelo, ou descalça, quando minha mãe não está. Ela vagueia pelo quarto de Arturo, que fica na sua zona de influência, ao lado da área de serviço. O quarto dela fica na frente, no corredor que dá para o vão de ar e luz, onde ela passa horas espiando os vizinhos. Apoiada no batente da porta do quarto de Arturo, conversa com ele enquanto ele estuda. Faz e desfaz a trança que chega até a cintura e lhe passa o relatório do dia enquanto fuma os gitanes importados dele. A novela a que ela assiste todas as tardes lhe faz pensar que o mocinho da casa pode se apaixonar por ela, mas Arturo me disse que ela parece um mamute. O melhor de Zulma é que ela aguenta a louca com um sorriso. Minha mãe é capaz de obrigá-la a fazer a cama quatro vezes seguidas (e é claro que, para mostrar a dobra que ficou malfeita, ela a desfaz toda com um puxão). Ela a manda comprar tomates redondos e suculentos ou ovos grandes e frescos, e Zulma repete assim mesmo para o verdureiro. Minha mãe disse que no ano que vem vai mandála para a escola noturna, para terminar o primeiro grau. Tomara que ela dure até lá. Eu duvido. Uma casa com seis crianças é uma máquina de espantar empregadas, e o caráter instável da minha mãe não ajuda. A maioria não dura nem uma semana. Até as meninas que o Opus Dei mandava quando a gente morava em Bellavista, que estavam acostumadas a ser tratadas como escravas, saíam correndo quando minha mãe pirava. Agora ela contrata quem vier, sem pedir referências nem documentos, mas assim mesmo todas nos abandonam. Muitas vezes vão embora sem avisar. Como dormem em casa a semana toda, aproveitam a folga do sábado à tarde para ir embora e nunca mais voltar. Minha mãe só percebe na segunda de manhã, quando elas não chegam. Fica esperando zanzando pela casa, arrumando e fazendo camas, enchendo a máquina de lavar roupa e preparando o almoço, zangada e resmungando baixinho: você me paga quando chegar, mulherzinha

ensebada, cara de pau. Mas à medida que as horas passam, e depois de ter limpado banheiros, estendido a roupa e estar prestes a sair para fazer as compras, não vê a hora de vê-las aparecendo na porta para perdoar o que quer que seja. A bagunça deixa minha mãe muito nervosa; bom, qualquer coisa a deixa muito nervosa. E ela se deleita limpando as torneiras dos banheiros com sapólio e bombril, duas coisas que não acredito que não deem rumble nela. Esfrega com a palha de aço até cortar a ponta dos dedos. Estas torneiras estão encardidas, ela diz, enquanto as deixa brilhando como as das propagandas. É uma pena que meu pai acredite que todos os psicólogos são comunistas, porque o problema da minha mãe não se resolve com comprimidos. Ninguém nunca fala sobre esse assunto, mas eu acho que minha mãe está assim por causa da história da neném. A neném foi uma irmãzinha que nasceu entre Javo e eu. Ao nascer, ela teve uma diarreia estival e ficou internada na incubadora do hospital quase três meses. Isso coincidiu com uma viagem do meu pai para a Alemanha, quando ainda morávamos em Bellavista e não tínhamos telefone. Como minha mãe não dirigia, para ir ver a neném no hospital tinha que pegar dois ônibus e um trem, e antes precisava conseguir alguém com quem deixar seus outros três filhos de menos de quatro anos. A última vez que a viu foi numa sexta à tarde. Na segunda seguinte, quando chegou no hospital, entregaram a neném dura e gelada em seus braços, recém-tirada de um freezer. Ela tinha morrido no sábado de madrugada e não haviam conseguido avisar minha mãe. Ela comprou sozinha o pequeno caixão e a enterrou sem contar para ninguém. Não que ela tivesse muitas amigas, muito pelo contrário, e também não lhe haviam sobrado muitos familiares, a não ser seu irmão Rolo. A família basca do meu pai nunca a aceitou, porque ela era pobre, embora a desculpa sempre tenha sido sua nacionalidade lituana, uma cultura tão diferente. Porque para os bascos é muito importante ser basco, eles levam isso muito a sério. Meu pai se apaixonou porque ela se parecia com a Greta Garbo no filme Ninotchka. Eles se conheceram na faculdade e se casaram meses depois de se formarem, embora minha mãe já tivesse se formado no ano anterior, mas não tivesse ido buscar o diploma para esperar por ele, que ficava o tempo todo fazendo política no bar da esquina. Ela trabalhava na Fundação Evita, desenhando móveis para os grandes hospitais. Ela gostava,

porque desenhavam os planos em tamanho natural, um por um, o que quer dizer em tamanho real, uma mesa do tamanho de uma mesa. Mas, quando se casou, teve que sair, porque meu pai era antiperonista ferrenho, ou “gorila”, como diz o tio Rolo, irmão da minha mãe. Depois tiveram tantos filhos que ela nunca mais pôde retomar sua carreira. Seis filhos, sem contar os oito que perdeu, ou os sete, porque a neném nasceu, mas morreu com três meses. Se fosse pela minha mãe, eles não teriam tido mais do que dois ou três filhos, Mercedes, Arturo e Bernardo, como ela mesma me disse uma vez, me excluindo da lista sem perceber. Mas meu pai é muito católico, e para os católicos se cuidar é um pecado muito grave. É preciso ter os filhos que Deus mandar, porque o sexo é para procriar (que palavra nojenta). É claro que sei que eles fizeram muito mais sexo do que nós seis e os oito bebês que minha mãe perdeu, e tenho certeza de que ainda fazem, embora tenham mais de quarenta anos, porque às vezes fecham a porta do quarto com chave. Minha mãe sabe que não é simpática e reconhece isso quase com orgulho. Nunca diz nada amável, e quando diz o faz com um tom tão forense que só nós que a conhecemos bem percebemos que aquilo significa um elogio ou uma cortesia. A maioria das pessoas fica chateada, porque minha mãe vê primeiro o lado ruim de qualquer coisa. De cara, cumprimenta com uma agressão: você engordou? ou seu cabelo está com as pontas duplas. Se derem um beijo nela, fica preocupada em não ser manchada de batom. Quando recebe um presente, pergunta o preço. Ela se zanga se você fica doente e odeia os fins de semana, porque a gente não vai ao colégio, e as férias, porque não leva a empregada. Assim como há pessoas que sempre veem o lado bom das coisas, minha mãe vê defeito em qualquer virtude, inclusive as próprias, ou principalmente as próprias, porque segundo ela, que cozinha divinamente, tudo o que faz fica ruim. Mesmo assim, ela gosta de receber visitas para comer, e meu pai sempre tem alguém à mão, que ele convida para jantar em casa para continuar falando de trabalho mais um pouco. Nessas noites, a gente come um pouco antes na cozinha e só aparece na sala para cumprimentar, exageradamente educados e formais. Minha mãe prepara pratos com nomes em francês e coloca a mesa com três taças para cada um. Ela compra flores, fantasia a empregada com uniforme preto e avental engomado e se maquia, coisa que, como ela nunca faz, dá errado e ela fica parecendo uma menina pintada para brincar de mamãe. Além disso, ela se maquia cedo

demais e quando as visitas chegam não sobrou nada, porque passou horas na cozinha suando e secando a cara com o pano de prato. Dois minutos antes de os convidados entrarem, meu pai faz a sua parte e apoia a agulha sobre a primeira faixa do disco que preparou há horas, mas que escolheu ao léu e geralmente não tem nada a ver: é barulhento demais para começar, uma orquestra sinfônica que dá nos nervos, ou é triste demais, um concerto de violino insuportável que deixa o clima cada vez mais para baixo. Um segundo antes de receber as visitas com um sorriso, minha mãe pode estar enxugando as lágrimas porque as coxas de frango encolheram demais ou porque o pudim desmoronou ao tirá-lo da forma. Os jantares são longos e sempre em algum momento sua sinceridade desaforada lança no vazio uma frase ofensiva e cruel, de preferência contra meu pai, que depois de algumas taças costuma se transformar em seu alvo favorito, a quem é capaz de dizer qualquer coisa



na frente de qualquer um. E tudo o que parece normal de repente se transforma em drama, e o drama passa a ser a coisa mais normal do mundo. Vivemos em um bom apartamento no Bairro Norte, mas é alugado, meus cinco irmãos e eu estudamos em escolas particulares, temos duas empregadas, mas somos pobres, pois nunca temos dinheiro para nada. E não é que eu esteja vendo o lado ruim das coisas, como minha mãe, porque não acho tão grave que a gente seja pobre. Mas, como meu pai também não se interessa por carros, a gente sempre tem carros feios e em estado lamentável. Não temos nem fazenda nem sítio, nem somos convidados aos dos nossos parentes, pois somos muitos. Eu teria preferido ter mais irmãs, porque os meninos vivem caindo na porrada; mas Sumi, que tem três irmãs, diz que as meninas caem na porrada do mesmo jeito e ainda por cima gritam o dobro. Se for por isso, lá em casa temos a lituana, que quando está deprimida dorme o dia inteiro, mas quando está maníaca grita sem parar. Sumi não sabe o que é morar com os pais. Eles se separaram antes de ela nascer. Até nisso ela tem sorte. Quem não tem sorte é a mãe dela, que já se divorciou duas vezes. Lá em casa pensam que uma divorciada que se casa de novo é uma puta, mas a mãe de Sumi é uma mulher muito elegante, que usa chapéu de aba larga e fuma com piteira. Ela trata as empregadas por “senhora”, mesmo que tenham quinze anos, e está sempre um pouco acelerada; fala muito e num tom alto e revira os olhos por qualquer coisa. Já cruzei com ela várias vezes, sempre entrando ou, saindo de casa. Da única

vez que ela me olhou, pousou os olhos bem no único botão da camisa que estava faltando e fez com que eu me sentisse uma pedinte. Meu cabelo emaranhado, como se eu tivesse acabado de acordar, não ajudou. Não sou o tipo de amiga que lhe interessa para sua filha; não foi à toa que a mandou para um colégio francês. No mesmo tom frontal e acusatório que minha mãe poderia ter usado, ela perguntou: se não é sua colega da escola, de onde vocês se conhecem? E, antes de sair, vestindo umas luvas de pelica azul França com a borda de pelo branco, disse para a jararaca da empregada: por favor, faça com que Sumi não fique tanto na rua. Depois abriu a porta e chamou o elevador. A empregada encostou a porta, mas eu a ouvi com meu ouvido de tísica: e essa amiguinha, dê um jeito de mandá-la embora, mmm? Alguns domingos, depois do almoço, também vou ajudar Dorita no quiosque, quando está fechado ao público. Fico com ela lá dentro com a persiana de metal abaixada e a luz fosca da lâmpada fluorescente, tirando tudo das caixas e colocando onde dá. As réstias de fio de sisal e as fitilhas de plástico das embalagens ficam serpenteando como cobrinhas sobre o piso laminado. Dorita, de calça e corpete, sua como um atleta, mas não mexe um dedo, ou melhor, é a única coisa que mexe, para dar ordens, embora disfarce. – Está vendo aquelas pastas ali em cima? – aponta para uma estante mais alta do que o Everest e olha para mim. – Será que você não colocava lá no quartinho? Eu sei que ela abusa um pouco de mim, me fazendo trabalhar como um presidiário, mas não me importo, porque qualquer coisa é melhor do que ficar em casa. Ela se dedica principalmente a falar pelo telefone, sentada numa banqueta alta do balcão. Liga para o atacadista, para o contador, para o grego e para a sobrinha, e toma coca-cola com um canudinho que ela morde até muito depois de o líquido ter terminado. Dorita foi me dando cada vez mais atribuições. Fico atrás do balcão e atendo os fregueses. No início, eu não mexia com dinheiro, mas agora cobro e dou o troco. Abro o caixa com o botão que faz plim e arrumo as notas debaixo dos clipes. E nunca roubei um centavo. O que aconteceu foi que comecei a me esquecer de anotar no caderno as balas que comia sem que ela me visse e

os cigarros filados que eu escondia nos bolsos. Também deixei de anotar no caderno o que as pessoas pegavam fiado e acabei dando coisas de presente para todo mundo. Mas eles não têm nada a ver com isso, a culpa é minha, sou eu que insisto quando os vejo olhar a bandeja cheia de balas sem ter um centavo no bolso. Você quer um sorvete? Depois você paga, vai. Como sou especialista em detectar confusão, percebo que tem alguma coisa errada assim que entro pelo buraco da porta metálica de correr. Em vez de estar sentada como sempre, atrás do balcão e em frente ao caixa, Dorita está de pé do lado de cá do balcão, com o caderno forrado com papel com textura de teia de aranha na mão. – Eu confiei em você – ela me diz. – Pensei que você era uma pessoa honesta, uma pessoa bem-educada, incapaz de uma baixaria dessas. Ela enrola o caderno com as duas mãos e fico achando que vai me bater. – Tratei você como uma filha e olha como você me paga. Eu sei que você tem muitos problemas em casa e a sua mãe não precisa ficar sabendo de uma coisa dessas, mas você não vai me sacanear, sua pirralha de merda. Antes da sexta-feira você vai me trazer nove mil pesos, ou vou dar queixa à policia. Saio andando como um autômato para o lado da igreja do Socorro. Mesmo que eu roube mil pesos por dia da minha mãe, não vou conseguir de jeito nenhum pagar nove mil pesos a Dorita antes de sexta-feira. Nem saqueando todos os dias a bolsa e a primeira gaveta da mesinha de cabeceira da minha mãe conseguiria essa quantia. Além disso, roubá-la todos os dias é impossível. Alguns dias é a vez de Javo, e outros, de Arturo; até os gêmeos juntam suas migalhas, mas o dinheiro não dá para que todos nós roubemos, porque, como eu disse, somos pobres. Ultimamente minha mãe paga até o açougue com cheque. E do meu pai é melhor se esquecer; a sua confusão é tal (porque ele não está nem aí para dinheiro, ele se interessa por coisas muito mais elevadas do que dinheiro) que ele pode ter um maço de notas altas ou nem um centavo no bolso, que dá quase no mesmo, e roubar notas altas é muito perigoso, principalmente quando os que roubam são muitos. Outras vezes levantei bastante dinheiro vendendo livros didáticos da escola em livrarias especializadas, mas na metade do ano não sobrou nada para conseguir nove mil pesos. Já vendi todos os livros do ano que estou

cursando e também alguns dos meus irmãos – menos os de Javo, porque não pego os dele nem morta, ou ele me mata. Tenho pendurada no pescoço uma corrente grossa com uma cruz de prata da joalheria Belgiorno que deve valer uma fortuna. Foi presente de primeira comunhão do meu padrinho, o tio Rolo, o único presente que recebi nesse dia deprimente. Sempre que tenho medo lhe peço ajuda. Desta vez beijo a imagem de São Cristóvão, que carrega o menino nos ombros, a mesma que Rafael tem pendurada no espelho do ônibus, como se fosse meu namorado, e rezo para ele de verdade, com o coração. Prometo as mesmas coisas que depois nunca consigo cumprir, mas juro que agora vai ser diferente. Vou completar todas as apostilas e começar a estudar, vou parar de mentir e de roubar e, é claro, vou parar de me tocar todas as noites, como uma obsessiva. Volto para casa e busco nos classificados o anúncio que já vi mil vezes. As letras maiúsculas brancas grandes sobre fundo preto COMPRO OURO, joias, relógios, relíquias. A maioria das lojas fica na rua Libertad, a quinze quarteirões de casa. A partir da avenida Corrientes, a rua Libertad sobe as três quadras seguintes com uma loja depois da outra de compra e venda de relógios, correntes e coisas que brilham, em caixinhas de veludo. As calçadas são estreitas e têm muita gente. Busco alguma loja em que haja só uma pessoa atendendo, mas em todas há pelo menos dois ou três judeus barbudos atrás do balcão e ando várias vezes as três quadras pelas duas calçadas sem ter coragem de entrar em nenhum lugar. Uma moça grávida sai de uma loja de braço dado com um homem que pode ser seu pai e sobra apenas um cara sozinho sentado no fundo, mas passo pela porta e continuo andando. Está escurecendo e há cada vez menos gente na rua. Como vão fechar a qualquer momento, volto para a loja do cara que ficou sozinho e entro. As vitrines não têm nada com cara de valioso, a não ser um relógio velho num estojo creme que se parece com o relógio de ouro do vovô. Vejo isso como um sinal. O atendente tem forma de berinjela, com uma auréola escura ao redor dos olhos verde-esmeralda. Ele está sentado em uma cadeira giratória de escritório e disca um número segurando o fone entre a bochecha e o ombro. O balcão é uma vitrine vazia sobre a qual há uma balança, um conjunto de pesos de bronze de diferentes tamanhos e o telefone. Na

parede, um calendário do Clube Armênio com o 1974 em dourado. Sem deixar de apertar a corrente com a cruz que trago no punho nem tirar a mão do bolso do blazer da escola, espero que ele termine a ligação rezando para que se apresse antes que chegue alguém. Conto para ele o que eu tenho para vender e o cara me diz que a única coisa que ele compra é ouro, e só se for de dezoito quilates para cima e estiver selado. Faz um círculo no ar com o dedo indicador: assim como todos os meus vizinhos. A única coisa que eu tenho de ouro são duas medalhinhas de batizado e uma fivela com as minhas iniciais, que minha mãe guarda na terceira gaveta da mesinha de cabeceira fechada com uma chave que ela esconde na primeira. Quando você tem muitos irmãos, acontece com as coisas de ouro o mesmo que com as fotos: vão decrescendo de acordo com o número de filho que você for. – E tem que vir um maior de idade, com documento. Ele fala isso na mesma hora em que o telefone toca. Pega o fone com uma das mãos enquanto com a outra fica segurando abaixada a tecla do sinal, deixando-o tocar duas vezes antes de soltá-la e atender. Rafael é a única pessoa maior de idade que conheço capaz de me ajudar. Quando conto a ele, ele diz que nem louco, mas não preciso me esforçar muito para convencê-lo: juro que, se meu pai ficar sabendo, vai me mandar para o colégio interno. Depois de jantar, sento com minha mãe e Javo para ver televisão. Não faço nenhum comentário, mas acho graça que Javo esteja vendo Nureyev dançar. Antes de os comerciais terminarem, levanto-me como se fosse ao banheiro, mas entro no quarto da minha mãe para buscar as coisas de ouro. Deixo a porta encostada e não acendo a luz porque a persiana ainda está aberta e a claridade da noite entra pela janela. Ao abrir a primeira gaveta, buscando a chave da terceira, rodam até mim dois vidrinhos marrons de comprimidos. Ao abrir a terceira gaveta, várias caixinhas fúnebres vêm me receber. Pego minhas duas medalhinhas de batizado, com sua corrente, e a fivela com minhas iniciais e, já que estou com a mão na massa, levo também um jogo de canetas de ouro, porque há vários e se faltar um ninguém vai perceber. São presentes que meu pai ganha e para os quais não dá nenhum valor. Num estojo tem uma caneta de ouro com um rubi na ponta da tampa e o nome do meu pai gravado com umas letras cafonas: Pedro Belaúnde. Se não fosse pelo nome gravado, eu levaria, porque é o tipo de coisa que ele nunca vai usar na vida. Os bascos não usam canetas de ouro.

Rafael vai comigo à loja do armênio e vendemos tudo. Como não me dão nada pelas canetas, boto de volta na gaveta e, em seu lugar, pego as medalhinhas de batizado dos gêmeos e um anel de platina com uns brilhantezinhos que minha mãe odeia porque é um presente da sua sogra. Como me dão mais dinheiro do que devo para Dorita e já que estou na região, compro para mim um relógio digital casio de plástico vinho.

Pago Dorita, que diz que não quer me ver nunca mais na vida, e depois cruzo a pracinha para fumar um cigarro, sentada num galho da árvore elástica. Os meninos já ficaram sabendo de tudo e se sentem um pouco cúmplices. Aproximam-se de mim penalizados, mas não dizem nada. Pato quebra o silêncio: obrigado por cuidar disso sem dedurar a gente. Depois dele, todos tomam coragem: a mais alta das Rimoldi diz que não é justo, e o menino que tem um olho verde e o outro azulado de verdade faz um carinho no meu ombro. Nunca tínhamos sido todos tão amigos. Por isso me contam, para me devolver o favor: – Vimos Lucio sair algumas vezes com Dorita do depósito do fundo. Eu dou risada para fingir que não estou nem aí, como se já soubesse. – É que no fundo ela é boa! Todos dão risada. Hahaha. Mas volto para casa chorando pela rua e continuo chorando sentada no banquinho do banheiro. Não tenho vontade nem de olhar as minhas lágrimas no espelho. Um tempo depois minha mãe me obriga a abrir a porta e sair. Estou com os olhos vermelhos e os cílios colados formando biquinhos, como se tivesse acabado de nadar numa piscina. – Baita besteira que você deve ter feito para chorar assim. Chega, por favor, você vai gastar o rolo inteiro de papel higiênico. Arturo me pergunta dez vezes o que foi que aconteceu, mas não conto nada porque tenho medo de que ele vá procurar Lucio para bater nele. E tento não pensar mais nisso, mas não consigo pensar em outra coisa. Fico imaginando os dois naquele depósito imundo, até que seus rostos perdem a forma e esqueço como são realmente. Dói como se tivesse levado uma surra. Ainda por cima ela teve a cara de pau de ameaçar contar para meus pais que eu a tinha roubado. Bem que

ela merecia. Isso e muito mais. Não tinha que ter devolvido nem um centavo e devia ter contado para o grego o que ela fazia com o meu namorado. Lembro da boca de Dorita e sinto nojo. Seus dentes de cavalo manchados de batom. Odeio os dois. Nunca mais quero vê-los de novo. Não quero ver de novo os meninos que sabem disso, nem voltar à pracinha.

***

Talvez o pessoal lá em casa dê por falta das medalhinhas, mas sei que, mesmo que descubram, posso guardar segredo para sempre, e vai acabar acontecendo como com a caixa de bombons, que nunca ninguém ficou sabendo quem foi. Ainda éramos pequenos e morávamos em Bellavista. Meu pai tinha voltado de uma viagem a Paris com uma caixa de bombons para minha mãe. Os bombons vinham numa lata dourada, embrulhados em papeizinhos marrons. Minha mãe havia tentado guardá-los só para ela, mas meu pai interveio a nosso favor e, no sábado, depois do almoço, conseguiu que ela desse um bombom para cada um de nós. Ela deu dois para meu pai, comeu três e escondeu a lata, que era bastante grande. No domingo à noite, a bomba estourou. Dentro da caixa dourada só restavam os papeizinhos marrons com as beiradas dobradinhas, amontoados e vazios. Alguém tinha comido todos. Minha mãe gritou como se a casa estivesse caindo. Já tínhamos acabado de jantar e nos levantado da mesa quando meu pai nos chamou na sala. Minha mãe andava atrás dele, agitada como uma capa ao vento, e repetia: isso não tem nome, isso não tem nome, isso não tem nome. Meu pai pediu para ela, por favor, se trancar no quarto e não se meter, mas ela ficou na cozinha, escutando pela porta da sala de jantar. Meu pai nos colocou um do lado do outro, do mais velho ao mais novo, na frente da estante de livros que ocupava a parede inteira, e perguntou quem tinha sido. Todos e cada um dos seis – ou melhor, dos cinco, porque Bernardo não devia ter mais de quatro anos e apenas chorava aterrorizado – demos um argumento razoável para demonstrar nossa inocência, mas meu pai ficou ainda mais zangado e nos chamou de mentirosos. Algum de nós não estava dizendo a verdade e ninguém ia sair dali enquanto não aparecesse o culpado. Os minutos passavam, lentos como um pêndulo, sem que ninguém assumisse o atentado. Meu pai andava na nossa frente, como se revistasse uma tropa, de uma ponta à outra da estante. Depois ficou de pé diante de cada um e perguntou: foi você? e todos nós dissemos que não. Mas era impossível que não tivesse sido ninguém. Alguém tinha que confessar. Ele começou de novo a caminhada e disse que tinha todo o tempo do mundo. O barulho dos passos dele era tão enervante que Bernardo fez cocô na calça. Meu pai por pouco não o matou, mas não encostou um dedo nele. Minha mãe apareceu de repente, descalça e de camisola, e o levou. Sobramos Mercedes, Arturo, Javo, Félix e eu, embora o último da fila

fosse Félix, que estava meio sentado numa prateleira baixinha da estante. Todos olhávamos de viés para ele, que, cada vez que meu pai ficava de costas prestes a se virar, olhava para a gente desesperado, saindo do seu lugar, com a cara cheia de lágrimas, dizendo não fui eu sem emitir som, sacudindo as mãos à altura da cabeça. Eu achava que podia ter sido ele e o olhava com desprezo, para ele confessar de uma vez. Mas a única que falou foi Mercedes, para dizer que tinha uma prova importante na manhã seguinte. Meu pai continuou andando de uma ponta à outra, com os braços cruzados e o queixo afundado no peito. O silêncio era asfixiante. De pé, com câimbras e as costas doendo, as horas não passavam mais. A cabeça pendia e nos acordava. Perto da meia-noite meu pai já tinha mudado a atitude ameaçadora do início e falava em perdoar. Mas ninguém disse nem ai. À uma da manhã minha mãe entrou chorando, arrebatada e furiosa, para levar Félix para a cama, coitadinho. Félix roncava com a cabeça apoiada num dicionário etimológico do tamanho de um travesseiro. Antes de levá-lo – pendurado no ombro como uma mochila –, xingou a gente de tudo quanto é nome. Filhos ruins, irmãos ruins, miseráveis, egoístas; crie corvos e eles lhe comerão os olhos. Ela deu um toque de humor à coisa, mas estávamos cansados demais para rir. Arturo olhou para meu pai, desafiador, e disse: não dá para acreditar. Javo de vez em quando chorava. Já era quase de madrugada quando meu pai falou em lealdade, solidariedade, bem comum. Sem chegar a falar de delação como uma virtude, disse o vergonhoso que era não ser capaz de liberar os outros das penas sofridas injustamente por nossa culpa. Fomos caindo no chão de cansaço e sono, até que Arturo sacudiu meu pai, que estava adormecendo na poltrona, e disse: vai, velho, fui eu, vamos para a cama. Nunca ninguém soube quem comeu os bombons. Com as medalhinhas de batizado pode acontecer exatamente a mesma coisa. O dia está horroroso, cinzento e escorregadio. Cai uma garoa fininha e faz muito frio. E todo mundo está assistindo à televisão, consternado. Meu pai, que sempre odiou Perón, está tão sério que parece que foi um amigo dele quem morreu. O cortejo fúnebre vai passar a algumas quadras daqui de casa, subindo a rua Callao. Ligo para Sumi. – Vamos ao velório?

– Ele já morreu? – Vou esperar você aqui na esquina de casa daqui a dez minutos. – Não posso, estou com a minha irmãzinha e não tem ninguém para ficar com ela. – Então vem com ela. Meu pai passou o fim de semana inteiro na frente da televisão da sala, acompanhando as notícias sobre a saúde de Perón. Sentado na poltrona com um livro, um caderno e uma caneta, finge que lê, mas não desgruda da tela. Vai nervoso de um lado para o outro da janela da varanda e se senta de novo. Sempre que está em casa, parece um bicho enjaulado, coisa que sem dúvida herdei dele. Mas esta tarde, além disso, ele está irritado como um leão velho. Toda vez que alguém fala alto ou passa a menos de quatro metros de onde está escutando as notícias, diz com raiva: – Um pouco mais de respeito, por favor! Não fica claro para quem ele pede esse respeito, se para o pai de família que não tem sequer o direito de ver um pouco de televisão em paz na própria casa ou para o presidente que acabou de morrer. Também não sei quem são os mocinhos e quem são os bandidos, mas não estou nem aí. As únicas notícias que me interessam são as que falam de Patricia Hearst. É óbvio que meu pai acha que ela é imbecil e metida. Já para mim, ela é genial; uma garota rica e mimada que passou para o lado do bando que a sequestrou e que, uns meses apareceu com os bandidos assaltando um banco, totalmente doutrinada, com o cabelo cortado como o da cantora dos Carpenters; acho a coisa mais feia do mundo. Nas fotos preto e branco dos jornais, usa uma boina de soldado caída e aponta um rifle para a câmera. No fundo, a uma bandeira do Exército Simbionês de Libertação, um pedaço de pano vermelho com uma espécie de monograma chinês em forma de cobra. Se eu tivesse que me unir a algum movimento, escolheria o dela sem pestanejar. A morte de Perón não me interessa nem um pouco. Desde que Isabelita confirmou oficialmente a morte do general, até o pai está de pé diante da tela da televisão, duro feito pedra. De vez em quando, minha mãe se senta no sofá, folheia uma revista Para Ti e faz um ou outro comentário. – E agora? Vamos ficar na mão dessa vagabunda? Garota de programa comparada com esta, Evita era uma dama.

– Não fala besteira, por favor – responde meu pai, olhando com preocupação a imagem de López Rega. E acrescenta: – Que perigo! Esse aí, sim, tinha de ser fuzilado. Na televisão aparecem militares uniformizados, homens com gomalina no cabelo, velhas muito sérias e elegantes e centenas de coroas de flores com faixas com letras douradas. Meu pai se aproxima e se afasta da televisão, seja para aumentar ou para diminuir o volume. Fica zangado por não escutar o que estão dizendo, mas não aguenta ouvir falarem do morto, que para ele foi um demônio, como o excepcional líder da Argentina. Cada vez que um jornalista diz algo como o povo inteiro chora, meu pai bufa coisas incompreensíveis num tom prepotente, que nem um maluco falando sozinho, enquanto anda com os punhos cerrados enfiados nos bolsos. Ele odeia o peronismo. Odeia Perón. Odeia também saber que um pedaço do seu lado cristão o admira por suas inclinações sociais. Nada o deixa mais zangado do que quando Arturo fala que no fundo ele gosta do toque de Mussolini que Perón tem.

Quando desço, Sumi já está me esperando na esquina com a irmãzinha. A menina está contente e seu cabelo brilha, em um dia em que nada brilha em lugar nenhum. Pegamos o caminho de sempre para as galerias da avenida Santa Fé, só que desta vez seguimos adiante, até o Congresso. De vez em quando a garoa fina se transforma em uma chuva de gotas grossas como grandes lágrimas. Quando nos aproximamos, as ruas estão fechadas para o trânsito pelos policiais ou simplesmente pela quantidade de gente que, em vez de andar pelas calçadas, ocupa a rua. Todos levam uma roseta ou uma flor contra o peito e choram. Muitos andam como se fossem sonâmbulos. Outros se abraçam mesmo sem se conhecer e andam juntos como se fizessem parte da mesma família, da qual nós três nos sentimos primas muito distantes. Todos nos apertam, mas não temos medo, porque o sentimento predominante é a tristeza, uma tristeza densa como uma manta de asfalto. Achávamos que ia ser divertido, mas é muito triste. Eu e Sumi tentamos disfarçar a emoção e não nos olhamos, para não amolecer, mas o nariz da irmãzinha está escorrendo como nunca e ela chora, causando ainda mais pena do que normalmente. Ela abraça as pessoas mais pobres como se fossem íntimas, os gordos, os negros, as velhas sem dentes. Quando chegamos na praça do Congresso, as coisas se

complicam. Somos levadas como numa tempestade de areia. Vamos as três juntas, formando uma massa compacta com centenas de pessoas que sofrem uma dor que, de repente, sentimos também, como se fosse nossa. Somos todos irmãos, todos companheiros. As filas estão cada vez mais apertadas e confusas. Fica cada vez mais difícil se mexer, mas ninguém quer voltar para casa. Quando nos aproximamos dos últimos quarteirões, encontramos uma série de filas mais organizadas, com pessoas orientando o trânsito incessante e apressando a multidão. Uma cerca divide o acesso para a entrada. De um lado, entram os funcionários públicos e os militares com o uniforme de gala; do outro, os soldados vão parando as pessoas comuns, fazendo com que abotoem a camisa e arrumem o cabelo. Se estiverem muito molhadas, não as deixam entrar. As pessoas se queixam, porque estão há horas na fila debaixo de chuva. Os alto-falantes pedem silêncio. Para qualquer lado que se olhe há repórteres de rádio e televisão, com seus microfones e câmeras portáteis, entrevistando os convidados importantes. De longe, vemos entrar um líder sindicalista que meu pai diz que é um criminoso. Todo mundo empurra a gente sem querer e não dá para respirar direito. Gritos soltos e brutais: Viva Perón. A vida por Perón. Perón ou morte. Ao contrário do que acontece em um sonho, tudo me parece muito rápido, mas dura horas. Há um momento em que até nós três nos abraçamos e cantamos o hino peronista. Começa a correr o boato de que não vamos conseguir entrar e resolvemos voltar para casa porque já está ficando muito tarde. À nossa volta, as pessoas apertam punhados de flores desfeitas, tristes demais para dizer alguma coisa. Mas não se mexem. Ficam paradas debaixo da chuva, mortas de frio, na fila, com os olhos marejados. Por sorte, a irmãzinha de Sumi, que tem a força sobrenatural dos idiotas, consegue abrir passagem no meio do povo, como se fosse uma broca. Sair é quase tão difícil quanto entrar, mas muito mais rápido. As primeiras quadras da Callao até a minha casa estão vazias. A chuva amainou um pouco, mas faz muito frio e o céu está com cor de água suja. Andamos no meio do lixo molhado e de algumas pessoas que caminham a esmo, perdidas e inconsoláveis. A irmãzinha de Sumi não para de chorar. Treme, mesmo vestindo meu casaco por cima da jaqueta, e fica repetindo: papai, papai. Na Alvear viramos à direita e na esquina da Montevideo cada uma segue seu caminho. Sempre que voltamos para casa paramos de nos falar algumas quadras antes, para a despedida ser mais

fácil, mas desta vez não falamos nada porque não sabemos o que dizer.

No domingo seguinte, às cinco da tarde, meu pai já está fazendo sua ronda pela casa em busca de fiéis que o acompanhem para a missa das sete. Todos os domingos, juro que vou dizer a ele que não vou mais, porém, quando ele me pergunta, sempre minto. Se é de tarde, digo que fui de manhã; se é de manhã, digo que vou à tarde. Meu pai fica de pé ao lado da geladeira sem cadeado e me pergunta a que horas eu pretendo ir. Estou de costas, tingindo uma camiseta branca com anilina em uma panela da cozinha, com a mesma concentração que um cientista da Nasa. – Não, não vou, não posso. – Respondo sem me virar nem parar de mexer na blusa, que flutua no líquido cor de beterraba. Parece o borsch que minha mãe faz. – Sua trapaceira – diz meu pai. Algumas faíscas de seu olhar enfurecido queimam minhas costas. Continuo remexendo a panela em silêncio e agradeço quando ele vai embora sem dizer nada. Mas me sinto culpada. Uma leve paranoia de que posso estar indo direto para o inferno me assalta de vez em quando, principalmente quando dou de cara com a reprodução do São Pedro de El Greco no final do corredor, com a cara sofrida e as chaves do céu nas mãos cheias de veias, desse céu no qual pretendo entrar sem tanto sofrimento, porque tenho certeza de que o Deus verdadeiro é amor, perdoa, não castiga. Só não acredito mais é na religião. Dos dez mandamentos, já risquei cinco. Acho a Bíblia cada vez mais delirante, como os contos de fadas cheios de feitiços. Virgens com filhos e mortos que ressuscitam. Não vejo muita diferença entre a história da mulher de Ló, que se transformou em estátua de sal só porque virou para olhar o incêndio, e os sete casacos de urtiga sobre os cisnes que viram príncipes. Prefiro não imaginar Abraão, com cem anos de idade, engravidando Sara, de noventa, mas é demais para mim que ainda por cima Deus depois ordene ao pobre ancião matar seu primeiro e único filho, que ele tanto ama. Agradeço que um anjo nunca tenha aparecido diante de meu pai ordenando-lhe que me mate. Bem que ele deve ter vontade, sem que ninguém o obrigue. De qualquer jeito, às vezes sinto falta da época em que entrava numa igreja e sentia a presença do além, o poder do Espírito Santo. Um tempo em

que as palavras do sermão me emocionavam e me serviam. Quando rezar me acalmava. Mas cada dia que passa sinto mais medo, e das coisas mais insignificantes, como atravessar a rua e achar que um carro vai me atropelar. Ou trancar a porta do banheiro e achar que acabei de ficar presa para sempre. A história da masturbação também influiu. Não é um negócio que eu tenha vontade de contar ao padre toda semana. E confessar sem contar isso é mentir. No colégio de Javo há um padre que a primeira pergunta que faz aos meninos quando se ajoelham no confessionário é: toca punheta? e pede até para contarem os detalhes. Nem louca que eu conto para um padre desses que gosto de encostar coisas frias no meu corpo e que às vezes até ponho umas moedas no congelador. Independentemente de o inferno existir ou não, é claro que isso é pecado, embora eu não saiba se é venial ou mortal, e nem me preocupo, porque não acredito em purgatório. E, como dizia o vovô, tomara que eu vá direto para o inferno, que é onde as pessoas mais divertidas vão estar. A partir de agora, nos domingos à tarde, quando meu pai começar a zanzar pela casa em busca de fiéis, vou tentar não cruzar com ele. Que ele vá com Javo, que está cada dia mais beato. Ele vai pular de felicidade: meu pai só para ele! Fico imaginando os dois com suas jaquetas de veludo, sentados um ao lado do outro, no banco da igreja de San Martín de Tours. Minha mãe parou de ir à igreja faz muito tempo, quando éramos crianças, e foi um alivio para todos nós, porque ela adorava ir à missa para cantar e desafinava o cancioneiro inteiro, sem piedade, na frente de todo mundo. A família lituana dela é católica, mais como uma posição anticomunista do que religiosa. O vovô não ia à missa nem com um revólver apontado para a cabeça. Ela entrou na onda cristã por causa do meu pai, que foi criado pelos jesuítas, aluno num colégio interno desde os seis anos. Por muitos anos, ela cumpriu todas as suas obrigações religiosas, porque as regras do catolicismo coincidiam com as dela – não mentir, não roubar, não matar, honrar pai e mãe, tomar cuidado com a preguiça e a gula –, mas parou de ir à missa alguns anos depois da história da neném. Meu pai argumentou pelo lado filosófico, como uma incapacidade de ela entender a religião, mas para minha mãe esse Deus tão bom e tão grandioso como vós, que preferia morrer a nos ofender, podia muito bem ir à merda.

Peço um café ao nosso garçom fazendo um “C” no ar com o indicador e o polegar e me sinto uma perfeita adulta. Ao meu lado, Rafael tenta dobrar um papel em dois mais de oito vezes. Desde que deixei de ir à pracinha, a gente se encontra na lanchonete da esquina, com as luzes baixas, as paredes revestidas com madeira até a metade e sobre cada toalha um cinzeiro triangular. Sempre nos sentamos na mesma mesa do fundo, no canto que fica ao lado dos banheiros –o esconderijo perfeito para fumar tranquilamente com o uniforme do colégio e os treze anos que acabei de fazer. Um canto escuro e espelhado, com assentos verdes imitando couro que me lembram o panamenho que conhecemos no Sheraton. Às vezes Pato aparece – ele também brigou com Lucio e com Dorita, e dizem que o quartinho do fundo tem algo a ver com isso –, assim como as irmãs Rimoldi, para comer sanduíche de salame com manteiga ou para fumar escondidas de seus maravilhosos pais. Sumi não gosta nem um pouco da lanchonete. Quando vem me buscar, ela nem sequer entra; espera-me do lado de fora, em pé na calçada. Ela quer passear pelas ruas ou ir à exposição rural, juntar decalques e ver vacas, porcos, cavalos, subir nos tratores e roubar choripán na churrasqueira da CAP. Eu prefiro ficar aqui, olhando a rua pela janela e fumando um cigarro atrás do outro com Rafael. Pela cortina de voal bege, vejo o porteiro do meu prédio passar com um pacote embrulhado em jornal e, por um segundo, sinto que o que ele está carregando pode ser uma cabeça. O rádio toca uma música de José Luis Perales superbrega que está na moda. Yo sé que times nina herida el alma… yo sé muy bien que te has sentido feliz, sentada junto a mi hoguera, dejando tu primavera pasar… y sé también lo mucho que me has querido e alguna vez he sentido dolor… 1

recuérdame y vive tus quinze anos, yo te prometo sonarlos, adiós… Os olhos de Rafael brilham mais do que de costume e ele sorri para mim, sem abrir os lábios. Não sei por que pergunto se ele tem namorada. Como sempre faço a mesma pergunta, ele nega com a cabeça, balançando-a de um lado para o outro, sem dizer nada, com os olhos fechados como num juramento. Nunca fala de nenhuma namorada, mas parece um beija-flor, e sempre que fala de outras amigas, principalmente de duas irmãs adolescentes de San Justo que ele visita todas as semanas, fico com ciúme. Perceber isso me dá mais ódio ainda. Tento fazer com que ele não note e

fico calada um tempão, sem dizer nenhuma palavra. Uma coisa bem rara, que chama ainda mais a atenção. Mas minha cabeça se enche de perguntas que me envenenam. Ele as visita tanto quanto a mim? Leva-as para passear? Existe uma pracinha em San Justo também? Quantas vidas diferentes Rafael tem? Aonde ele vai quando não aparece por semanas inteiras? A mais velha das irmãs adolescentes se chama Natalia e faz patinação artística no clube River. Segundo Rafael, ela tem olhos cor de violeta com pontinhos prateados, como se fossem de purpurina. A única pessoa no mundo que tem olhos violeta é Elizabeth Taylor, mas não digo nada. – E vai fazer quinze anos… Foda-se quantos anos ela vai fazer, penso. – Vai deixar de ser um neném – diz Rafael, mexendo um cappuccino com resignação. O ciúme, que é incompatível com o humor, não me deixa perceber que ele faz isso de propósito, para ver como eu me mordo por dentro. Alguma coisa na minha cabeça está a ponto de estourar. Sua amiguinha Natalia vai fazer quinze anos e estão preparando uma festa como se ela fosse se casar. Rafael me conta todos os pormenores e eu escuto mordendo o lábio inferior. Mas tento sorrir. – Você está rindo de quê? – De nada. – Está com ciúme. – Não. É outra coisa. – Está com ciúme! – Nada a ver. Não quero falar que festejar quinze anos me soa vulgar, coisa de filha de açougueiro. Mas Rafael insiste em me contar todos os detalhes dos preparativos da festa e vejo quanto ele está envolvido. Quando ele descreve o açucarado vestido longo de organza e o penteado de velha que Nati vai usar no dia, não aguento mais. – Não tem nada mais brega que fazer uma festa de debutante. – O quê? Tem umas festas de debutante incríveis. Em salões caríssimos, com serviço de bufê de cair para trás.

– O que eu estou dizendo não tem nada a ver com grana, Rafael. Você pode ter dinheiro e ser brega. Festejar os quinze anos é brega. – Tá louca. Estou falando de uma festa como a do Marcelo. – Que Marcelo? – O irmão do Mário. É difícil para a gente falar sério. Ninguém consegue. O humor também serve para esconder as coisas. Por isso, quando Rafael me diz que Humbertina tem que se mudar porque confiscaram o edifício em que ela mora para demoli-lo, acho que é piada. Mas não é: vão aumentar a maior avenida do mundo para que chegue até o Bajo. Humberto foi despejado de verdade e tem que abandonar sua casinha de bonecas que fica na travessa e ir para uma tão pequena quanto aquela, mas muito mais longe. De lá, irá para um lugar maior e definitivo, que não entendi onde fica nem de onde surgiu ou como foi que o conseguiu, porque, para me explicar, Rafael usa tantos nomes de bairros, de ruas e de pessoas que só gravo as palavras Pedro Goyena, que não sei se é uma rua ou um amigo dele. A questão é que, até que Pedro Goyena fique pronto, Humbertina precisa que Rafael guarde algumas coisas em seu apartamento. Vamos buscá-las no táxi do amigo de Boedo, um Peugeot 504 novinho. Humberto chora feito homem e a casa está muito diferente. Sem os quadrinhos das flores e os cachorrinhos, parece um quartinho de depósito. A cadela não está, nem o vaso de maria-sem-vergonha. Levamos as caixas no táxi com o taxímetro desligado até Almagro, cantando junto com o rádio “Eu te proponho”, de Roberto Carlos. Rafael mora em um prédio barato. O elevador se abre num corredor estreito e escuro, cheio de portas. O número do apartamento é de um metal opaco na porta sem olho mágico, com fechadura dupla. Quando acendemos a luz, a lâmpada explode. Rafael entra no escuro e acende a luz do banheiro, que fica no fundo do apartamento. A única janela fica com a persiana abaixada, porque dá para um vão de ar e luz que não é alcançado por nenhuma das duas coisas. Deixamos as caixas no chão atrás da porta. É um ambiente estreitinho com uma pequena cozinha no fundo, em frente ao banheiro, atrás de uma paredinha horrível de tijolos baianos pintados de branco, que tenta dividir

um espaço indivisível. Quase não há móveis. Uma cadeira com uma televisão portátil e uma cama de bronze impressionante, com dossel e tudo. As colunas sobem dos quatro cantos da cama quase até o teto, enfeitadas com flores e folhas de parreira como a de Adão, mas fundidas em dourado. Elas brilham como se tivessem sido lustradas há pouco. Penso em Humbertina e me vem à mente meu pai me perguntando se Rafael não é homossexual e também alguma coisa do cemitério. – Não tem nada que me dê mais nojo do que uma toalha úmida – diz Rafael, saindo do banheiro com uma toalha seca na mão. A cama ocupa quase todo o cômodo, como um barco dentro de uma garrafa. Era de Humberto, tinha sido de sua avó italiana e pode ser toda desmontada. Rafael está com ela porque não entrava na casa de Humberto. Veio de um buraco anterior e a ideia é que acabe também em Pedro Goyena. A gente se joga na cama, um do lado do outro, porque não tem nenhum lugar para sentar. Olhamos, na penumbra, uns parafusos de bronze do teto presos por umas porcas ridículas em forma de laço. De repente, e do nada, estamos frente a frente, abraçados e nos beijando. Rafael rola e fica em cima de mim, sem separar seus lábios dos meus nem abrir os olhos. Abro a boca, mas não sei o que fazer; porque com Lucio os beijos nunca foram tão profundos. Agora sinto uma língua enorme se enfiando inteira dentro da minha boca e não sei onde colocar a minha. Rafael tem a língua áspera como um morango com gosto de saliva e sua pele cheira diferente, porque ele se barbeia. Molha minha cara de beijos e me arranha. Não me atrevo a dizer que não quero, porque não sei se não quero. Abandono meu corpo, sem resistir nem dar um pio. Rafael suspende minha blusa e toca minhas costas. Seus dedos tremem e se atrapalham procurando o fecho do meu sutiã branco. Sorte que está escuro, porque ele está sujo. Sinto o calor maciço de sua calça se enfiando entre minhas pernas. Ele me aperta, se mexe, abre minha blusa. Não falo nada, porque não sei o que falar. Rafael se desespera em cima de mim, dizendo a si mesmo para parar já com esta loucura, que temos de ir; mas não vamos. Num pulo, apaga a luz do banheiro e ficamos na mais absoluta escuridão. Depois abre o botão e baixa o zíper do meu jeans, sem parar de me beijar. Morde, sem morder, o meu pescoço e o contorno do meu rosto. Em algum apartamento próximo um cachorro late. Rafael treme cada vez mais e posso escutar seu coração pulando. Apoia a palma da sua mão em concha

sobre meu púbis e a deixa parada em cima da calcinha. Embora tente ficar quieta, não consigo, e quando ele mexe as pontas dos dedos elas ficam



úmidas. Eu mesma abaixo o jeans com pressa, sem tirar o tênis. A calça fica presa nos tornozelos. Rafael se senta na cama e tira meu tênis sem desfazer o laço dos cadarços. Meu coração bate nos ouvidos e não ouço nada do que ele diz. Ele fala o tempo todo, tão baixinho e com a respiração tão entrecortada que não o entendo. Os sete segundos que demoramos tirando a roupa me fazem recuar quinze graus, mas não digo nada, consciente de que contribuí para acelerar as coisas. Entrego-me em seus braços e demais membros, esperando que o que tiver que acontecer aconteça o mais rápido possível. Mas, como sinto muita dor, começamos de novo uma infinidade de vezes. Com cuidado e sem cuidado, até que ficamos o mais junto que podem ficar duas pessoas, como diz o manual de sexologia para crianças que Sumi tem. Depois de algum tempo, estou mais cansada que qualquer outra coisa, e um som no corredor do lado de fora, alguém que grita pelo elevador, batendo na grade pantográfica com um chaveiro, me desconcentra totalmente. Meu coração não para de bater como uma bomba e dá para escutar a respiração entrecortada de Rafael, chorando. Ficamos abraçados até que o prédio começa a se encher de mais barulhos. Portas, televisões, crianças gritando e gente voltando do trabalho. Uma borda arranhada que eu já sei que vai arder como o inferno para fazer xixi começa a pinicar entre minhas pernas. – Vambora? – pergunta Rafael. Depois ele se levanta para acender a luz do banheiro com um gesto tão automático que revela uma coisa que ele faz sempre, apesar de a lâmpada ter explodido hoje. O ar da rua acaricia meu rosto. Como não está tão tarde como pensamos, caminhamos umas quadras e entramos em um bar para tomar um chocolate quente e comer um alfajor de maisena. Sinto que todo mundo olha para nós e sabe o que fizemos, porque dá para perceber. Rafael me olha sem parar. Eu quase não levanto a vista da borda de coco do alfajor. Dessa vez não fazemos nenhuma brincadeira. Não é uma boa hora para perguntar se ele conhece o Mário.



(1) Eu sei, menina, que sua alma está ferida… eu sei muito bem que você foi feliz, sentada na frente da minha lareira, deixando sua primavera passar… e sei também quanto você me amou e isso já me doeu… me faça lembrar e viva seus quinze anos, prometo que sonharei com eles, adeus…

***

No dia seguinte, falto à aula com permissão da minha mãe. Encontro com ela no banheiro às cinco da manhã. Dormiu no sofá da sala, de roupa e tudo, e sua bochecha tem a marca da pulseira do relógio. Ela abre a porta de repente e se surpreende ao me ver sentada na privada. – Estou passando mal. – Não falo para ela que está tudo doendo, mas está. Uma cólica brusca e apertada me dá um repuxão na barriga, não sei bem onde, e estou sangrando. Isso eu falo, com um fiozinho de voz, porque tenho medo de que ela chame um médico. – É a regra. Vê se não suja o pijama. – Ela tira um punhado de algodão de dentro de um saco de pano pendurado na porta do banheiro e o molda com as mãos até dar a forma de um retângulo comprido, mais ou menos espesso. Sumi morreria só de vê-lo, porque tem um rumble horrível quando pega em algodão. Depois me faz tomar um comprimido cor-derosa. – Deite na cama com a barriga para cima. Fique com as pernas dobradas e os joelhos levantados. E não manche o lençol. Olho para mim no espelho e vejo os lábios inchados e a pele do rosto avermelhada. Minhas bochechas estão quentes e tenho um hematoma roxo no ombro. Talvez meu pai e minha mãe tenham razão e Rafael seja perigoso.

***

Ele aparece uns dias depois, bastante transtornado. Toca o interfone de casa e desço correndo antes que ele resolva subir. Está parado na calçada e respira com dificuldade. A poucos metros, o porteiro nos olha, da porta de serviço, com seu sorrisinho nojento. A voz de Rafael treme. – Vamos nos casar – ele me diz – , no ano que vem ou no outro, quando você quiser. Fala baixinho, respirando pela boca, e dá para escutar o ar perturbado e ofegante que sai de dentro dele. Tem nas mãos uma caixinha transparente com uma orquídea lilás e outra, pequenininha, de pano azul, com um anel de ouro, como nos filmes americanos. – Eu vim falar com o seu pai. Agora é a minha voz que treme, assim como os joelhos. – Vai embora, por favor, antes que alguém te veja. Desde esse dia, cada vez que o telefone toca corro para atender antes que outro o faça e, se meu pai está em casa, também abro a porta sempre que a campainha soa. Mas Rafael nunca mais volta. Uns meses depois, quase no final do ano, percebo que também não sei onde encontrá-lo. Nem sequer tenho seu telefone, porque nunca liguei para ele. A lembrança da casa dele em Almagro tem a consistência de uma névoa distante. Entro de novo na lanchonete da esquina da pracinha e procuro o nosso garçom. Cumprimento-o com um beijo e pergunto se sabe alguma coisa de Rafael. O garçom me diz que ele foi trabalhar nos barcos de uma companhia grega da marinha mercante. Penso no Onassis e numa foto da Jackie Kennedy que vi numa revista, aplicando um golpe de caratê nos paparazzi no aeroporto de Roma. Faz um ano que Humbertina profetizou com clareza: vão mandar isto aqui à merda. Não acreditamos nela, porque neste país nunca ninguém faz nada, mas todos nós sabíamos que existia um projeto para ampliar a avenida mais larga do mundo, que passava no meio do nosso bairro. Um dia apareceram e fecharam toda a área com um tapume de três metros de altura. Depois entraram as escavadeiras com pás como garras e os homens como monstros cinzentos, com a cabeça coberta por capacete e óculos, mas também com panos, e começaram a quebrar duas quadras inteiras, cheias de mansões francesas do século dezenove, o que quer dizer

de mil e oitocentos. Sei que não precisa esclarecer, mas eu vivo me confundindo. Agora não resta nada. Passaram por cima da pracinha, do quiosque de Dorita, da travessa com o apartamentinho de Humbertina e da casa do meu amigo Pato. Pato também ficou sem escola, mas não ligou muito. A demolição fica a duas quadras da minha casa. Do outro lado estão o Retiro, o cinema da igreja do Socorro, a casa de Sumi, a praça San Martín e o colégio da rua Arroyo (de onde fui expulsa tão injustamente). Centenas de caminhões levam os escombros de todos os prédios e casas, inclusive seus jardins. Rumble! Rumble! Entulhos de todos os tamanhos. Não é preciso ir ao cinema para sentir o efeito sensurround que faz a terra vibrar debaixo da rua. De repente, tudo está tomado pelo barulho, pelos ratos e pelos ladrões, que levam o que encontram nas ruínas com a cumplicidade dos capatazes das obras. Nas paredes que ainda estão de pé, dá para ver estampados os contornos das casas, o rastro das escadas, as marcas dos quadros e das luminárias e as manchas de ferrugem ou gordura dos banheiros e das cozinhas. Uma palmeira de cem anos, cortada com violência, agoniza numa caçamba, debaixo de uma tonelada de entulhos da qual sobressai um bidê. Encontrei um álbum de fotografias com capa de couro jogado no lixo. Pensei que poderia usá-lo, mas agora não me atrevo a descolar as fotos. Sumi e eu xeretamos as obras enquanto procuramos moedas perdidas embaixo do tapume. A escavação parece a cratera de um vulcão, com um montão de andares para cima e para baixo, ou seja lá como se meça a altura dos subsolos. As passagens para os caminhões na margem do buraco, as estruturas de canos dos andaimes, o rugir das máquinas penduradas na beira do precipício sobre um fundo interminável, os caras lá embaixo, tudo parece perigoso. Quando chove muito, os poços ficam inundados e o bairro todo se enche de ratos, que certamente lutam corpo a corpo com as baratas, a autêntica fauna nativa do Bairro Norte, que desde o começo da demolição ficaram gigantes. Acho graça quando alguém diz que este é um bairro elegante. Uma madrugada, Arturo acordou porque o abajur ao lado dele acendeu sozinho. Como não havia mais ninguém no quarto, pensou que podia ser um rato que tinha visto no buraco da porta de correr da sala. O

mesmo ou um primo dele, sabe-se lá. Quando o viu na sala de jantar, o rato tinha se escondido no buraco da porta e agora tinha apertado sem querer a tecla marfim quando passou correndo em cima do baú que Arturo usa de mesinha de cabeceira. Com certeza ele também tinha se assustado e estava escondido em algum lugar. Arturo só se dispôs a se mexer para fugir. Pulou da cama e foi dormir no quarto dos gêmeos. Passou Félix para a cama de Bernardo e se deitou na cama dele. Félix reclamou, mas Arturo virou o travesseiro e disse: se não gostou, pode dormir no meu quarto com o rato, então é melhor não encher o saco porque te encho de porrada. O governo francês se opôs à demolição do palacete onde ficava a sua embaixada, alegando que era uma obra-prima da arquitetura; então, embora estivesse na linha de fogo das escavadeiras, ele se salvou. Atrás não sobrou mais nada, a não ser uma mansão que continua de pé, graças à alteração do projeto para poupar a embaixada. Todo o quarteirão da pracinha sumiu. A casa de Pato desapareceu – e olha que era imensa –, um prédio francês de quatro andares, todos da sua família. No primeiro andar morava a avó, que havia mais de vinte anos não saía da cama. Quando Pato teve hepatite, eu o visitei várias vezes. Era a única que ia (porque o meu gene basco me diz que eu nunca pego nada). Naquelas tardes, ficávamos no quarto dele jogados, escutando música num gravador panasonic de teclas grandes. Pato rebobinava as fitas com uma caneta na velocidade de uma turbina e gravava em cima, várias vezes. Numa etiqueta tinha escrito, com esferográfica verde, Los Chalchaleros e, em cima, com canetinha preta, Litto Nebbia. Enrolado em uma manta indígena como se fosse a capa de um príncipe e arrastando umas alpargatas velhas, Pato fazia excursões à cozinha em busca do que comer e eu ficava esperando por ele no seu quarto, lendo um pôster com um epigrama de Ernesto Cardenal que eu sabia de cor. Agora quase não o vejo e sei que o verei cada vez menos. Vou sentir saudade dele e de sua casa da Família Adams, com o elevador quebrado parado no último andar. Sua mãe andava descalça no chão de madeira e ficava com a sola dos pés preta. Sempre estava com amigos. Fumavam, bebiam vinho e liam em voz alta. Discutiam aos berros e às gargalhadas na sala, com as treliças das janelas sempre fechadas, porque o pai de Pato estava preso. Ele nunca me contou, mas meu pai, que sempre me pergunta o sobrenome das pessoas (e, se não conhece, desconfia de sua importância, às vezes até de sua existência), falou o que tinha acontecido. Ele conhecia a família de Pato, ou

melhor, sabia quem eram. Gente vinculada à revista Cristianismo Revolución, uns esquerdistas perigosíssimos, ele tinha dito. Ele me proibiu de ir à casa deles, mas continuei indo até ela ser demolida. Quando a avó de Pato saiu, depois de vinte anos, não reconheceu nada do que viu e se assustou com a curva e a altura do edifício rosado da esquina. Com o que recebeu pelos seus quatro fabulosos andares, só deu para comprar um apartamentinho miserável, e ela foi embora com a senhora que cuidava dela, para se enclausurar pelos últimos vinte anos que talvez lhe restassem, sem sair de outro quarto. Além de histórias tristes e de ratos, a demolição enche o bairro de peças fabulosas. As antiguidades viram moda e surgem mil vitrines repletas de nus de bronze e luminárias de vidros coloridos. No antiquário da esquina do Ital Park, puseram uma armadura medieval em pé do lado da porta. Quando passo, sinto que tem alguém dentro da armadura, imóvel, que me segue com os olhos. Todas as semanas minha mãe vai aos leilões do Guerrico, a uma quadra de casa, para ver móveis e objetos de arte. Às vezes, quando o leilão termina, ela fica para tomar uma taça de vinho e volta tarde para casa. Essas noites geralmente coincidem com aquelas em que meu pai não vem jantar. Mas hoje cancelaram o jantar ao qual ele ia, e meu pai está sentado à mesa conosco quando minha mãe chega do leilão. Entra com a bolsa pendurada no braço, um catálogo na mão e nos lança um “doanoitchi” como cumprimento, fingindo que está sóbria. Meu pai, os gêmeos e eu estamos terminando o jantar bem mais tarde do que de costume, porque, embora minha mãe deixe tudo bem adiantado e organizado quando sai, as coisas nunca acontecem como quando ela está. Temos de reconhecer suas virtudes também. Os escalopinhos da chaquenha parecem palmilhas ortopédicas. As portas de correr que separam a sala de estar da de jantar estão abertas, com as duas folhas de madeira embutidas na parede (no espaço onde Arturo viu o rato que depois se assustou com a luz). Minha mãe vai até a sala, joga o catálogo e a bolsa no sofá e fecha as portas de correr como se fizesse isso todos os dias. Mas nunca faz, porque as portas estão sempre abertas, e, quando ela as puxa de dentro da parede com uma força excessiva, elas escapam de suas mãos e se chocam com um golpe seco e estrondoso que faz com que

todos pulemos da cadeira. – Vão para o quarto, pela cozinha – diz meu pai, que mal tocou no seu prato. Minha mãe fica do outro lado, fechada na sala como se estivesse sozinha no mundo. Põe um disco da Mina e canta junto, desafinada, uma música depois da outra. Meu pai não diz nada porque tem medo dela. Vai para a cama logo depois de nós e adormece em cinco minutos. Ela vai dormir bem mais tarde, quando o disco acaba e a casa está silenciosa, porque já estamos todos na cama. Escuto seus saltos quadrados quando anda pelo corredor em direção ao quarto, tentando não fazer barulho. Tropeça no fio do telefone e faz shhh! Depois se tranca no banheiro e deixa a torneira da pia aberta. Assoa o nariz várias vezes. Finalmente vai para a cama e fala horas com meu pai, que ronca ao seu lado na escuridão. A partir dessa noite, meu pai pede que Javo, por favor, acompanhe minha mãe aos leilões. Na primeira vez, voltam com um biombo de couro cinza-perolado. Na segunda, compram uma luminária de pé, com a haste cromada e a base de mármore, que minha mãe adora, mas faz meu pai se lembrar de um consultório de dentista. Ele não fala nada porque não está nem aí; a única coisa que quer é vê-la contente. Eu não entendo como encontraram essa peça, que parece de Saturno, num leilão de coisas velhas. No fim do mês, aparecem com Carlos Lagarrigue. Eles se conhecem nos leilões e, depois de participarem de alguns, Carlos convida minha mãe para trabalhar com ele em decoração. Ela se entusiasma como um náufrago ao escutar um helicóptero. Pula de alegria. E meu pai dá corda, não só para não contrariá-la, mas também porque a ideia lhe parece boa de verdade. Minha mãe trabalhar é uma forma de ele se livrar dela e, ao mesmo tempo, de ajudá-la, porque ele acha que o trabalho cura todos os males, inclusive os dele. Carlos Lagarrigue é um arquiteto que virou decorador de interiores. Seus clientes são senhoras endinheiradas e sem marido à vista. É solteiro e tem fama de dom-juan. É boa-pinta, mas meio bonequinho, como um corpo de alguém jovem vestido que nem velho. Usa calças de veludo e camisas de flanela combinadas com gravatas-borboleta, suspensórios, coletes ou sapatos bicolores. Só lhe falta o chapeuzinho. Meu pai acha que ele é homossexual, embora a palavra que use seja invertido, e Javo acha a mesma coisa, só que fala bicha, mas quando ele vem

aqui em casa acha graça de suas piadas. Minha mãe começa a se vestir de outro jeito e a fazer escova no cabeleireiro. Acorda mais cedo e dorme mais tranquila. Sai com Carlos para comprar tecidos de decoração ou para visitar clientes, e olham livros e revistas com fotos de casas que têm piscina na sala. Juntam mostruários de materiais: cores de tapetes, catálogos de papel de parede e tecidos de todo tipo cortados com tesoura de ziguezague. Quando estão juntos, ela sorri e dá uma de simpática, até em casa. Manda Zulma comprar palmiers e atende o telefone como se se importasse: não, Javo não está, mas, se você deixar seu número, falo para ele ligar depois. Sorri nervosa e, com as mãos cruzadas, esfrega o polegar de uma mão na palma da outra. Dá para ver que se importa com Carlos e também que tenta seduzi-lo, mas não sabe como. É o mais amável possível, porém existe algo mais, algo que ela não entende. Ela e meu pai se casaram virgens, ou virgens e castos, sei lá como se diz, e meu pai é o único homem com quem foi para a cama em toda sua vida. Não seria nada estranho que tivesse vontade de que acontecesse mais alguma coisa. Qualquer coisa. Nessa sexta-feira de primavera, minha mãe e Carlos vão juntos a um leilão e os meninos organizam um campeonato de pingue-pongue. Meu pai está em uma conferência do IDEIA, que não tenho a menor ideia do que seja, só sei que volta no domingo. Como a noite está morna, abrimos as portas da varanda e colocamos algumas cadeiras da sala de jantar do lado de fora. Os meninos montam a mesa de pingue-pongue sobre a mesa baixa da sala e empurramos os sofás contra a parede. Minha mãe disse que vai chegar tarde e ainda não são nem dez da noite. Mas ela chega de repente e nos pega em flagrante. Entra raivosa como uma labareda. Estamos Arturo, Félix, Bernardo, um amigo de Arturo, um amigo de Javo e eu, além de Zulma, que vai e vem da cozinha. Minha mãe abre a porta furiosa e vê a mesa de pingue-pongue no meio da sala, o tapete enrolado no corredor, uma travessa de empanadas em cima da poltrona, todos descalços, a música estridente, a janela da varanda aberta e os guardanapos de papel voando por todos os lados. – Idiotas! – diz aos berros, enquanto interrompe a música levantando o braço da vitrola com a mão sem nenhuma delicadeza, arranhando os sulcos do vinil e entortando a agulha shure de diamante no mesmo segundo. – Que barulho é esse no meio dessa bagunça? O que essa mesa de

merda está fazendo aí? – Chuta os sapatos espalhados junto do sofá e me pergunta, com o olhar igual ao da Cruela Cruel quando Roger não quer vender os filhotes: –Quem está fumando? – É meu aniversário, mãe! – responde Arturo. Ele ri, tentando aliviar a barra na frente do amigo, que se escondeu na varanda com o amigo de Javo, buscando refúgio. – Seu aniversário? – diz minha mãe. Duvida. Nunca se lembra do aniversário de ninguém. – Pare de me gozar! Bernardo dá um abraço nela, todo feliz por vê-la. Bem se vê que é surdo. Minha mãe vai para a cozinha, serve-se de uísque em um copo alto e se fecha no quarto para falar ao telefone. Liga para Carlos Lagarrigue cento e quarenta vezes, até que ele atende. Escuto tudo, porque ela deixou a porta aberta. – Quando? Mas eu não te levei, foi você que quis ver a parte de trás da cristaleira biedermeier… não sei o que me deu, Carlos, desculpa… me confundi, como você diz… não precisa me lembrar disso toda hora, você acha que posso esquecer que sou casada e tenho seis filhos?… Te xinguei porque estava com raiva, me perdoa… é, é verdade, tem razão, você foi gentil em me acompanhar até a porta de casa… é… desculpa eu ter te xingado o caminho todo. Estava muito mal… não, não bebi muito, juro! Foi aquela rejeição tão escancarada, tão brutal… eu pensei que você também queria, Carlos… Meu pai, pelo contrário, é incapaz de tanto descontrole. A única coisa que o apaixona de verdade é o trabalho, o esforço em prol de grandes ideais. A educação como apostolado. Não tem tempo para mais nada e, se tivesse, o usaria para estudar mais alemão, ou pelo menos é o que diz. O máximo que se permite é uma mesa de pôquer que frequenta há vinte anos, uma sexta-feira ou outra. A única vez que o ouvi falar de uma mulher que o encantara estava se referindo à voz que soa nos alto-falantes do aeroporto do Rio de Janeiro. Só de implicância, Arturo perguntou se tinha pensado que era uma negra, mas meu pai disse que tinha voz de loura. Sempre comenta que gosta das louras, mas diz isso como se falasse de um país distante. Trabalha cercado de mulheres na universidade e às vezes arranja amigas solteiras, com as panturrilhas gordas e penteadas com laquê, que vêm aqui em casa e

acabam fazendo amizade com minha mãe. Menos Brenda, que só é amiga de meu pai e não resta dúvida de que é ele que ela vem ver. O curioso é que Brenda não tem nada a ver com a universidade; é muito comum estudantes ou professores virem conversar com meu pai, eles vêm sempre, sentam com cerimônia na beira do sofá da sala ou, se são muitos, à mesa do jantar; e minha mãe serve café solúvel para todos. Fico boba com a seriedade com que meu pai recebe as pessoas e o tempo que perde com elas. É claro que todos merecem mais que eu ou meus irmãos. Ele nos considera uns filhinhos de papai privilegiados, pelo simples fato de termos acesso à educação que queremos, e uns malcriados por não aproveitá-la ao máximo. Algumas pessoas vêm pedir conselho e outras chorar de joelhos pelos dez centésimos de diferença que a filha não tirou porque os nervos a traíram e dos quais ela precisa para entrar na faculdade de medicina. Meu pai diz que vai ver o que pode fazer mas não faz nada, porque acha que é errado. Depois passa a vida toda se esquivando delas pelo telefone. Mas Brenda vem bater papo com ele de igual para igual. É irmã de uma antiga vizinha de Bellavista e meu pai e minha mãe a conhecem há anos. Duas coisas importantes a diferenciam das outras amigas dos meus pais: Brenda é psicanalista e terrivelmente sexy. Sua figura de bruxa sábia e obscura é impactante, porque mede mil metros e fica bronzeada o ano todo. Usa o cabelo liso, preto e cheio, e tem os olhos verdes como uvas, imensos, maquiados com delineador preto e toneladas de rímel. É ao mesmo tempo inquietante e acolhedora, porque te congela com a transparência dos olhos, mas te devolve à vida com a textura de manta de viagem da sua voz. Quando vem aqui em casa, meu pai vai recebê-la no hall de entrada assim que escuta a campainha do interfone na cozinha e a voz que lá embaixo responde sou eu, Brenda. Ele abre a porta da frente e fica em pé no escuro (porque a lâmpada do hall está sempre queimada), com a mão apoiada no puxador da grade, enquanto ela, cinco andares abaixo, ainda nem entrou no elevador. Depois se ouve o tilintar de suas pulseiras subindo pelo vão e sua voz rouca: Pedro, pedra, tudo bem, meu velho? Quando ela aparece, até meu pai, que nunca toma uísque, serve-se de um. Conversam por um tempo os três juntos na sala, mas sempre, em algum momento, a lituana se levanta e os deixa sozinhos, para que falem coisas de homem. Dá para ver que se divertem, porque a risada de Brenda ressoa pela casa toda. Falam de política e discutem, porém sem brigar, porque Brenda diz que meu pai é fascista, mas boa gente. Ele acha

engraçado que ela seja a única pessoa que diga isso na cara dele. Quando ela aparece, invento desculpas para passar pela sala e chamar sua atenção. Se meu pai não está na frente, ela me oferece umas tragadas dos seus virginia slims cento e vinte milímetros e me pergunta coisas às quais me esforço para responder da maneira mais inteligente possível. Acostumada à exigência de ser rápida, porque em casa o último a falar perde, respondo sem pensar. Por isso, numa noites, digo que quero ser atriz quando crescer. Rimos todos, mas depois, quando vou para a cama, sinto vertigem. Por que disse isso se nunca tinha passado pela minha cabeça? Mas parece óbvio. Brenda entrou na categoria de pitonisa. Minha mãe às vezes dá uma de ciumenta, mas é pose. No fundo, ela acha que uma mulher dessas jamais poderia se interessar por um homem como meu pai. Mesmo assim explica, sorrindo com um pouquinho de maldade: além do mais, seu pai gosta das louras, das beldades como Romy Schneider, e o rabo de Brenda parece um baú. Ri quando fala rabo, porque nunca usa palavrões. Mas, quando fica sabendo que Brenda tem amantes e sai com homens casados, ela não acha nenhuma graça. E numa noite os três vão juntos ao cinema, e Brenda, segundo minha mãe, apoia a mão na coxa do meu pai no escuro. Ele diz que ela está louca, imaginando coisas, mas Brenda nunca mais volta. De qualquer jeito, a porta que Brenda e eu abrimos naquela noite em que falei da história de ser atriz deixou entrar uma luz que esclarece muitas coisas. Desde aquele momento, não pude mais deixar de pensar nisso. Fico imaginando uma câmera que me segue e filma cada um dos meus movimentos. Me mexo muito menos e estico o pescoço enquanto ando pela rua, ouvindo “Teach your children” como trilha sonora. Me olho de soslaio nas vitrines da rua e às vezes entro no meu prédio como uma estranha, como se alguém estivesse tirando fotos escondido em algum lugar. Fotos que depois serão copiadas num banheiro com luz vermelha, transformado em câmara escura. Quando vou para a cama de noite, apoio minha cabeça no travesseiro com a mesma suavidade de uma atriz dos anos cinquenta, que vai dormir com os olhos e a boca recém-pintados. Meu negócio é atuar, tenho certeza. Nunca fiz outra coisa. O chamado da vocação se apresenta a mim com uma intensidade jamais sentida. Nada a ver com o anterior, quando eu tinha nove anos. Isso foi outra coisa, uma criancice. Ainda morávamos em Bellavista e eu tinha enfiado na cabeça que queria ser piloto. Para estimular meu interesse, meu pai conseguiu que a filha de um amigo que se dedicava à aviação esportiva me levasse com ela

para voar num sábado à tarde. O aeroclube ficava perto de casa, em Del Viso. A filha do amigo de meu pai era urna doida; me enfiou num aviãozinho bimotor de antes da Segunda Guerra Mundial e ficou rodopiando comigo no ar como se eu fosse um chocalho. Antes de entrarmos no avião, tínhamos tomado chimarrão e comido pão doce com outros pilotos, e ela parecia uma pessoa normal. O aviãozinho tinha só dois lugares e eu fui atrás, amarrada num cinto de segurança meio frouxo, de couro gasto. Voamos em círculos, oitos, espirais e caracóis. De repente o céu era uma linha finita; de repente a linha finita era a terra, às vezes em cima, às vezes embaixo. Está gostando? Está vendo as vaquinhas lá embaixo? Respondi que parasse de virar a cabeça para trás e, por favor, olhasse para frente, mas quando abri a boca não pude conter a ânsia de vômito e dei um banho nela, começando pelas costas – ou melhor, pela bochecha direita, porque eu tinha inclinado para a frente para dizer que sim, que as vaquinhas pareciam muito pequenininhas –, e inundei a cabine toda. Vomitei a meia dúzia de pães doces e o chimarrão verde e aguado, que jorrou por todos os lados. Depois disso, nunca mais tinha ouvido o chamado da vocação, mas ficou óbvio que meu pai me apoiaria. Sei que posso contar com ele, e até com minha mãe, e que não há inconveniente com eles quando se trata de encontrar a vocação. Apoiam todos os projetos que a gente tenha para crescer e se tornar independente, porque, de certa forma, estão sempre esperando que a gente vá embora, que cresça e vá embora. Cada vez divido menos coisas com Sumi. Às vezes vamos andar de patins na rua da outra quadra, que está fechada para o trânsito porque o presidente mora lá. Rodamos no asfalto novo, de uma barreira à outra, até que os guardas nos mandam embora, mas é só. Também não matamos mais aulas juntas, porque, por ordem da mãe dela, a jararaca a leva pela mãozinha até a porta da escola. Por isso aceitei ir com ela à feira rural, para fazermos alguma coisa juntas, que é o que une as pessoas. Mas fico uma hora esperando por ela, apoiada em um mastro com a bandeira do Automóvel Clube Argentino, e ela não aparece. O vento é tão forte que quase me leva. Arrasta papéis e os carrega em redemoinhos. Combinamos às seis e já são sete, e o pessoal está começando a ir embora antes que a chuva caia. Sobre minha cabeça, a

chapa de uma placa imensa vibra como um gongo. Se eu tivesse grana, entraria na feira para me proteger dentro de uma barraca, mas não tenho um tostão. Vim andando e tenho que voltar andando com as botas pretas que eram de Mercedes, que têm um pouco de salto e machucam meu dedão. O céu fica roxo e depois preto. Quando começa a chover, tento atravessar a avenida Santa Fé para entrar em algum bar da calçada da frente, mas o vento sopra forte que, quando solto o poste, me joga no chão com um empurrão, e fico de quatro. A sola lisa das botas escorrega nas placas de cimento e a água cai em enxurrada por toda parte. Não sei em que momento o pessoal da feira fechou a porta e foi embora, mas não sobrou ninguém. Há um ponto de ônibus com marquise a uns vinte metros. Minha blusa está ensopada, e o jeans, grudado nas pernas. O cabelo escorre como se eu o tivesse lavado e o rímel, que não sei para que eu pus, deve ter borrado. A água corre pelos bueiros caudalosamente e, em pouco tempo, a rua inteira fica inundada, de uma calçada à outra, como um rio. Ando os vinte metros até o ponto de ônibus o mais rápido que posso, com o vento contra mim e a merda das botas, com um salto que começou a descolar. Quando chego embaixo da marquise e dou a volta para me jogar em um canto, topo com um vulto que, ao me ver, quase morre de infarto. Pela capa de chuva branco-sujo que está usando, acho que é um velho, mas, quando mostra o rosto pela lapela que está levantada até as orelhas, vejo que é um garoto da minha idade. A gente se encolhe no canto, um grudado no outro, os dois tremendo de frio. – É o dilúvio universal – falo por falar. – Não, é a tempestade de Santa Rosa. Tem cara de neném, mas é uma cabeça mais alto que eu. Em cinco minutos fica de noite e os poucos carros que circulavam até um tempo atrás, levantando ondas em leque como um regador, deixam de passar porque a água não para de subir. Os automóveis estacionados começam a boiar e a corrente os arrasta como barquinhos de papel. Como o garoto não diz uma palavra, eu falo: – Qual é seu último desejo? – Sair daqui. Bolamos um plano e resolvemos cumpri-lo depois de contar até três. Vamos atravessar a avenida Sarmiento e dar a volta na quadra pelo Jardim Zoológico, mas quando começamos a andar tropeço numas placas soltas, o

salto da bota quebra e fica pendurado. Não sei o que é mais insuportável, a vergonha ou os preguinhos que furam meu calcanhar. O garoto se ajoelha, arrastando a capa pelo chão, arranca o salto com um puxão e me oferece como uma flor. Chove a cântaros e a gente ri. Como fiquei manca, começo a andar pendurada no seu braço, como se fosse a coisa mais normal do mundo. A casa dele fica perto, na travessa El Lazo, atrás do carrossel. Meu herói se chama Hernán e tem dezesseis anos, dois a mais do que eu. Toca guitarra numa banda com o irmão. Quando chegamos na sua casa, em vez de entrar, continuamos por um corredorzinho até uma escada no fundo e subimos dois andares, até um terraço fechado que usam para ensaiar. Quando o irmão vê a capa toda enlameada, diz: se o velho te pega com a capa dele, te mata. – Para me matar, primeiro ele vai ter que aparecer um dia desses – responde Hernán. Depois desce para apanhar toalhas e uns sapatos horríveis da sua mãe para me emprestar. Traz também uma camisa dele e sugere que eu tire a roupa molhada, mas prefiro pegar uma pneumonia a trocar de roupa na frente deles. Eu ficaria mil horas mais, mas seco o cabelo e vou para casa rápido, porque o irmão está fumando maconha. A irmã mais velha de Sumi também fuma maconha e toma ácido e comprimidos a rodo. Uma vez eu e Sumi roubamos uns comprimidos dela, mas não sentimos nada. Como não dava barato, tomamos a caixa inteira. Falamos a noite toda sem parar, mas só isso, além de eu ter roído todas as unhas – e olha que roer unha me causa um pouco de rumble, mas não dá para fumar no quarto de Sumi, porque a mãe dela dorme no quarto ao lado. A irmã mais velha foi embora e está trancada com um sujeito em um apartamento se drogando o dia inteiro, quase sem sair. A mãe está desesperada, mas eles não atendem o telefone e, quando ela vai ao apartamento, nem sequer abrem a porta. É uma coisa terrível, um horror, ela diz, não gosto nada desse cara, mas a irmã está decidida. Depois de um monte de namorados, um pior que o outro, parece que afinal encontrou sua cara-metade, e a única coisa que quer é ficar com ele. Moram em um buraco de um cômodo só que a família dele comprou para se livrar do filho, porque é alcoólatra. Entra e sai do Alcoólicos Anônimos duas ou três vezes por ano e é conhecido em todas as paróquias e delegacias do Bairro Norte. Parece que o cara pertence a uma família aristocrática muito

empobrecida, que às vezes tenta ajudá-lo, mas não consegue, porque não está muito melhor do que ele. Vivem de pensões desvalorizadas que recebem já há muito tempo, e também da venda das coisas de valor que ainda lhes restam no velho apartamento em frente à praça Vicente López. A mãe é conhecida por todo mundo; anda vestida com trapos, como uma mendiga, falando sozinha pela rua. Nas lojas do bairro ela pode entrar, mas se quer subir num ônibus ele não para. De tempos em tempos, manda uma grana para o filho, para que não cortem a luz, o gás ou o telefone, mas cortam mesmo assim, e ele e a irmã mais velha de Sumi passam semanas inteiras à luz de velas em plena rua Esmeralda com Viamonte. A mãe de Sumi, quando pode, manda sacolas de comida e a jararaca para limpar um pouco o apartamento. A irmã dela foi internada numa clinica de desintoxicação, mas fugiu duas vezes. Não é fácil impedi-la, porque já tem mais de dezoito anos. O cara é muito mais velho do que ela, um adulto de trinta e quatro anos. Passam dias inteiros sem sair da cama e semanas sem pisar na rua. Dormem de dia e vivem de noite, e não têm a menor ideia do mês em que estão. Dito assim, não soa tão mal. Mas uma tarde a mãe de Sumi pede que levemos uma sacola com alimentos para eles. O apartamento não fica longe, mas pegamos um táxi, porque as sacolas pesam bastante e porque nos deram a grana. A irmã de Sumi abre a porta de calcinha e uma regata velha que fica tão grande nela que não cobre nada. Está magra como um palito e as espinhas que cobriam todo seu rosto diminuíram. O peito está chato como o de um homem e ela tenta sorrir, mas não consegue, porque as comissuras dos lábios tremem. O apartamento é um retângulo escuro feito um buraco. Entramos e ficamos em pé, a um metro da porta, ao lado das persianazinhas fechadas da minicozinha, que fica à esquerda. Atrás delas, segundo a jararaca, as baratas andam como se estivessem em casa. Perpendicular à parede de persianazinhas, há uma bancadinha alta sem bancos e atrás, na escuridão, adivinha-se uma cama de casal. Desenhos deprimentes espalham-se pelo chão: olhos, pirâmides, losangos, correntes, gotas de sangue e tabuleiros em perspectiva sobre papel quadriculado. Apoiamos as duas sacolas sobre a bancadinha e a irmã as abre aos golpes. Revira-as, procurando alguma coisa, e nos olha atordoada: ela não me mandou dinheiro? Chuta a porta de persianas para abri-la e cospe alguns xingamentos. Abre com os dentes um maço de cigarros que tira da sacola (eu nunca faço

isso, porque morro de rumble se mordo papel metalizado). Segura a franja com a mão e acende um cigarro em um queimador do fogão, aceso com um magiclick. Dá três longos tragos seguidos, coçando a cabeça e ajeitando o cabelo. Está sujo, mas brilha; a marca da família não as abandona nunca. Solta a fumaça, bufando, e depois tira as latas de atum, de apresuntado, de leite condensado, as caixas de purê instantâneo, de caldos knorr e de bolachas de água e sal. Depois, os pacotes de arroz e macarrão, de açúcar e achocolatado. A lata de leite em pó. A caixa de ovos. As salsichas. – O Papai Noel chegou – diz a irmã, e canta jingle bell, jingle bell. Depois morde uma maçã e pergunta como estamos e se temos namorado. Do escuro sai uma voz cavernosa amortecida pelo travesseiro: estou dormindo, filha da puta, por que não vai conversar no banheiro? – Melhor a gente ir embora – diz Sumi, covarde. Do escuro aparece o namorado e entra sob o feixe de luz da cozinha, uma lâmpada transparente dentro de uma luminária de vime. Está nu, com tudo pendurado, sem pudor: barriga, pinto, tetas, as olheiras no chão, a pele toda cinza e envelhecida. Saímos correndo. Paradas em frente ao elevador, ouvimos sua risada dentro do apartamento. De repente, ele abre a porta e grita: corram, meninas, vão contar para a mamãezinha que vocês viram o meu pau! Estamos assustadas, mas rimos, porque é pequenininho, como um dedo mindinho. Minha irmã Mercedes, por outro lado, continua nos Estados Unidos e não quer voltar. Não mora mais na casa que lhe foi destinada no intercâmbio, onde a faziam de empregada. Agora está estudando na Universidade de Tampa e mora com o namorado numa casinha sobre rodas num bairro que se chama trailer park. Sentimos saudade dela neste Natal, pela primeira vez. Ela escreve pouco. São cartas enormes em papel azul-claro quase transparente com caneta esferográfica azul, dos dois lados. Nunca consigo ler mais de duas páginas inteiras de sua letra confusa e sofrida. Está dando tudo errado, mas fala dos gringos como se fossem uma civilização superior. Comparado ao que ela conta em suas cartas, Buenos Aires parece uma cidade afundada num pântano. Estamos na lista das dez cidades mais barulhentas do planeta. Pelo menos estamos em algum ranking. Faz uns dias, o obelisco acordou rodeado por um anel giratório com a frase “O silêncio é saúde”. Ninguém fala de outra coisa. A brincadeira agora é terminar todas as frases com o bordão é saúde. O silêncio é saúde, e

também dormir depois do almoço, tomar um café ou fumar um cigarro. O silêncio está na moda. E, como se não fosse suficiente o anel do Ministério da Saúde que rodeia o obelisco, Isabelita transformou-o numa árvore de Natal gigante. Lá do alto, descem uns fios esticados que armam uma espécie de cone que representa um pinheiro, e, presas em diferentes alturas, como lâmpadas, penduraram algumas bolas de isopor de tamanhos variados. A ideia não é ruim, mas precisaria de muito mais lâmpadas ou que elas fossem maiores… A sensação é de algo inacabado, como a visita de Mercedes, adiada de novo. Agora porque está atrás do green card. Se ela tivesse vindo, meu pai certamente não teria tido a assustadora ideia de convidar os menos afortunados para passarem o Natal conosco. Sentamos para a ceia de Natal todos os irmãos, minha mãe, meu pai e uma catequista de Lomas de Zamora, mãe solteira, com sua filha de onze anos, que passa a noite toda me fazendo sentir culpada por ter uma família. Com que felicidade eu a daria de presente para ela agora mesmo! Todo o jantar é incômodo, como se estivéssemos enrolados em celofane. A partir do momento em que Javo menciona Mercedes, seu fantasma sobrevoa todas as conversas. Minha mãe começa a chorar quando vai repartir a sobremesa. A atividade intensa da cozinha a deixou bastante alterada, e a incontável quantidade de taças que ela tomou desde que acendeu o forno às quatro da tarde não ajudou. Menos ainda os trinta graus de calor. Meu pai a acompanha até a cama e volta logo depois, triste como um sapato perdido. Senta-se à cabeceira da mesa e começa a cortar o torrone em partes exatamente iguais, com precisão matemática. Depois levantamos todos, menos a professora e sua filha, que, ainda que as tratemos como se fossem da família, devem se sentir como visitas, porque não tiram a bunda da cadeira. À meia-noite brindamos com sidra em taças de champanhe e Javo vai para a Missa do Galo. Arturo se oferece para levar a catequista para casa, para poder ficar com o carro. Os gêmeos e eu vamos para a cama. Meu pai espera até de madrugada, sentado no chão, no escuro do corredor, que a telefonista complete a ligação para Tampa.

Minha mãe insistiu que eu usasse um vestido de veludo que parecia um traje típico da comunidade lituana e tinha sido de Mercedes. Recusei com dignidade. Prefiro não ir. O casamento também não é grande coisa. A

noiva é a madrinha de Javo, uma velha de trinta e sete anos, e a festa é num sítio em Pilar, longe à beça. Eu, dentro de um carro com a família toda, não resisto nem vinte quilômetros, principalmente se é meu pai quem dirige,



porque ele acelera e freia o tempo todo e me dá vontade de vomitar. A ideia de ficar em casa com Zulma vendo filmes é bem mais tentadora (ainda que Javo a acuse de ser dedo-duro, eu acho que ela é legal). Além disso, adoro ficar em casa quando não tem mais ninguém, comer pizza jogada na poltrona da sala e assistir à televisão como uma idiota. A chaquenha está sentada na minha frente, no sofá de couro. Sua trança é tão comprida que mais parece uma cobra. Sobre a mesa de centro que nos separa está a espingarda de ar comprimido de Félix e Bernardo. Embora meu pai já os tenha proibido mil vezes de brincar com armas, eles atiram da varanda, com balas de chumbinho. Eu, que nunca toquei numa arma, de repente tenho o impulso de pegar nela. É uma espingarda comprida, com a culatra de madeira. Pesa muito mais do que pensei e é muito fria. Acaricio a arma com a palma da mão e sua suavidade me surpreende. Sem pensar, abro-a em dois, empurrando o cano para baixo. Ela faz um clec e abre, como nos filmes. Dentro do cano, há dois buracos de tamanhos diferentes. Vejo sobre a mesa um cinzeiro de cristal onde os gêmeos deixaram quatro ou cinco balas de chumbinho e escolho uma. Enfio no buraquinho certo e volto a fechá-la, clec. Ajeito a arma no meu ombro e ela encaixa perfeitamente. Coloco a mão direita instintivamente no gatilho, onde o indicador também se ajusta como uma luva, e, levantando o cano com a mão esquerda, em posição de atirar, aponto na direção de Zulma, que neste momento se levanta para buscar coca-cola na cozinha. Vou te matar, digo, com um sotaque meio mexicano. Anda, me mata, ela me responde, continuando a brincadeira. Miro o melhor que posso no coração e atiro. A primeira coisa que penso quando ela cai suavemente de costas na poltrona é em como atua bem. Fico impressionado com a expressão de dor e a maneira como se deixa cair, tão pesada e leve ao mesmo tempo, como em câmera lenta. Fico muito mais impressionada ainda, no entanto, quando ela levanta os dois dedos da mão, apoiada sobre o lugar onde acabei de atirar, e vê que estão manchados de sangue. Não pode ser. O ar comprimido é ar e ar não mata ninguém. Ou comprimido não quer dizer o que eu acho. Como posso ser tão burra? É evidente que alguma coisa eu disparei, porque não foi o ar que fez esse buraco no avental da chaquenha. A mancha de sangue cresce na

mesma velocidade que meu pânico. Tremo como se tivesse Parkinson. Zulma se levanta da poltrona com dificuldade e me olha assustada. Não sei o que dizer e, por mais que soubesse, também não poderia, porque minha boca está tão seca que não consigo falar. Levo-a ao banheiro para lavar a ferida e ver o que aconteceu. Ela se apoia em mim e vamos abraçadas como duas bêbadas pelos poucos metros que nos separam do banheirinho social, que é mínimo. Minha mãe o pintou de verde-petróleo. Diz que os defeitos não devem ser cobertos, mas aproveitados. Quando entramos, encosto-a sobre a pia, porque ela quase não se aguenta em pé, e abro o avental. Não tenho coragem de olhar o que ela tem no peito, porque me dá rumble. Molho a mão com água da torneira e limpo a ferida, falando com ela pelo espelho para não olhar o que faço. Passo a mão tão rápido que não toco em nada, só jogo água, como se isso servisse para alguma coisa. A chaquenha fala devagar e entrecortadamente, como se a corda estivesse acabando. Diz que se sente fraca e com muito calor e me pede que a leve para um hospital. Saímos do banheirinho quase nos arrastando, e ela desmaia e cai sentada no corredor, uns metros antes da porta da sala. Ela é enorme, muito mais alta e pesada que eu. Deixo-a no chão e corro para abrir a porta. Chamo o elevador e volto para o apartamento para apanhá-la. Vê-la com os olhos abertos outra vez me dá a força de que preciso para levantá-la. Mas, quando consigo chegar de novo até o hall, com Zulma apoiada no ombro, pesando como um contêiner, alguém chama o elevador. Chamo de novo, mas não responde, porque está descendo. Não posso esperar tanto. Atrás do hall principal, depois de uma divisória de vidro esmerilado, fica o hall de serviço, que dá para a escadaria. São mais cinco ou seis passos, mas Zulma cai em cima de mim. Consigo enfiá-la no elevador e mantê-la em pé, apoiando-a contra a parede de metal descascado. Falo sem parar para que ela não desmaie. Digo com um falso sorriso: está tudo bem e agora vamos para o hospital e você vai ver que não foi nada, não se preocupe, porque esses chumbinhos não eram de pólvora, sabe? eram de ar comprimido, e o ar comprimido é ar, não faz mal nenhum, entendeu? a ferida deve ter sido por alguma coisa do chumbinho, olha que nome, o nome diz tudo, não é bala, é chumbinho, outra coisa bem menor, muito menos perigosa, uma bobagem… Mas as pálpebras de Zulma estão fechando, como um bebê que está a ponto de adormecer. Quando chegamos no térreo, depois da viagem de cinco andares mais comprida da minha vida, o porteiro está parado no

meio do corredor. A luz opaca da pequena lâmpada da escada mal ilumina a cena. Acho que ele não vem me socorrer porque não me vê e peço que, por favor, me ajude, mas ele se vira e entra na sua toca. O corredor até a rua é interminável, mas a porta de serviço está milagrosamente aberta, porque até pouco tempo atrás os pintores estavam pintando o teto e ainda estão ventilando. Não tem vivalma na rua. Aparece um carro, mas passa rápido demais. É meia-noite e pelo visto o único ser vivo na redondeza é o guarda da porta da embaixada da Argélia, que fica na esquina. Do último degrau da entrada de serviço, grito para, por favor, me ajudar. Zulma cai no chão um segundo antes da chegada do guarda. Ele a leva desmaiada até um táxi que circula fora de serviço com o taxímetro desligado, e entramos os três no assento traseiro rumo ao Hospital Fernández. O agente abre a janela do carro e estica a mão para fora, agitando um lenço branco, para que os carros abram passagem. Zulma está inerte sobre o encosto do banco, com a cabeça caída para trás, porque é muito alta. Tenta abrir os olhos, como uma boneca sacudida pelo vaivém do carro, que segue o mais rápido que pode pelas ruas de paralelepípedo, que nos fazem pular que nem pipoca. Entramos no hospital pela emergência, com o policial e o taxista carregando Zulma pelos braços. Três enfermeiros acodem e a levam numa maca, enquanto o guarda da embaixada e eu nos aproximamos do guichê de admissão, para preencher o formulário de ingresso. Ferida de bala e arma de fogo são as duas respostas que fazem com que em cinco minutos chegue uma viatura da Delegacia 19 na porta para me buscar. Ligo para casa do telefone público do hospital, mas ninguém atende. Ainda estão no casamento. Vou para a delegacia sentada na parte de trás da viatura, tremendo de medo. Puxo para baixo a barra da minha saia, para esconder uma mancha de sangue na coxa. O guarda que me ajudou não está mais comigo e os três policiais que também estão no carro não me dirigem a palavra. Uma voz incompreensível não para de falar no rádio. A única coisa que dá para entender é câmbio! O resto é uma cadeia de palavras chiando como uma lixa grossa contra uma superfície metálica. Quando chegamos à delegacia, me deixam esperando numa saleta com uma mesa e duas cadeiras. Na parede há um quadro torto da Virgem de Luján. Olho para ela e meus olhos se enchem de lágrimas. Rezo do fundo do coração para que Zulma não morra. Juro tudo, que de agora em diante vou ser a melhor aluna da escola

e a filha mais obediente do mundo, que nunca mais vou matar aula nem roubar nem mentir de novo e que jamais na vida vou ter algo a ver com sexo, nem sequer me tocar. Um pouco depois aparece um homem que se apresenta como delegado



Andrade e me diz: você fez uma cagada, guria. Cubro o rosto com as mãos. Não consigo parar de chorar. Depois me levam para outra saleta, onde tiram fotos de mim, de frente e de perfil, além das impressões digitais dos dez dedos. Vão para a minha casa buscar a espingarda, que depois também é fotografada de frente e de perfil, como se fosse uma pessoa. Entrar em casa fica fácil, porque o porteiro abre embaixo e, em cima, deixei a porta aberta sem perceber. Entram sem problemas para apanhar a espingarda e deixam um guarda vigiando a cena do crime. Penso em meu pai e minha mãe chegando da festa e me dói como uma punhalada. Presto depoimento a dois policiais, com a respiração tão agitada que quase não consigo falar. Enquanto um faz as perguntas, o outro, chamado escrivão, escreve à máquina tudo o que eu digo. Estamos sentados um diante do outro, em cadeiras de ferro e fórmica, em frente a uma mesinha com uma máquina de escrever. O outro policial fala em pé, encostado no guichê da recepção. Os dois fumam sem parar. Morro de vontade de pedir um cigarro, mas não tenho coragem. Com as mãos trêmulas, puxo as meias para cima sem parar, como se a pressão do elástico nas panturrilhas só durasse dois segundos. Conto tudo o que aconteceu, o mal-entendido com o ar comprimido, tudo, mas não fazem nenhum comentário, em momento algum. Depois leem tudo o que escreveram para mim e, embora as palavras pareçam minhas, estou tão atordoada que não entendo nada do que escuto. Usam palavras estranhas para dizer coisas simples e o sentido das frases fica confuso para mim. Tudo parece sentencioso. Pela porta aberta que dá para o pátio, vejo passar um gato preto. Meu pai chega sozinho e um pouco bêbado, de terno preto impecável, às três e meia da manhã, e se fecha para falar com o delegado no seu escritório. Nem olha para mim. Estou em pé, algumas portas à frente, acompanhada por uma policial feminina, que fica limpando as unhas com as próprias unhas. Não consigo olhar, porque me dá rumble. Pelo vidro esmerilado das portas do escritório do delegado, vislumbro a sombra de meu pai, sentado na cadeira do escritório destinada às visitas. Embora ouça o murmúrio das vozes, não entendo nada do que eles falam. Tudo é tão incompreensível quanto na viatura, só que agora é como se as vozes

estivessem debaixo d’água. Tento captar uma ou outra palavra solta que me ajude a saber se a chaquenha está viva, mas só ouço pjblugd. Quando meu pai se levanta e sai do escritório, está verde, com a boca fechada como o corte de um machado. Olha para mim por um segundo, com resignação, e vai embora como se não me conhecesse. A punhalada gira na boca do meu estômago; solto um grito de dor voluntarioso e pungente, coisa que sei que para meu pai é um papelão bem pior – ainda por cima ficar gritando como uma neurastênica em plena delegacia. Mas ele não volta. Continua andando. Uns passos mais à frente, um policial sai por uma porta. Chama-o e os dois entram em outra sala, no final do corredor. Não pergunto nada porque não tenho direito. Sinto que tudo se acaba aqui mesmo, nesta noite. Toda a minha vida acaba nesta delegacia. Daqui para frente, vou ser outra pessoa, que vai morar em outro lugar, com gente diferente da que conheci até agora. Em um abrir e fechar de olhos, toda a minha vida vira passado. Não consigo parar de chorar. Fico até com soluço. A policial feminina fala que chorar não adianta nada. Ela cheira a xampu. O delegado me leva para o escritório e fala como se eu fosse a filha dele: você teve sorte, um centímetro mais para baixo e ela teria morrido. O pai de Zulma chega furioso na delegacia. Sua filha não era tão chaquenha quanto dizia. Tinha nascido em Resistencia, mas era de Castelar. O pai também não era o lenhador que qualquer um podia imaginar, mas um policial. Um cabo da província de Buenos Aires, que trabalha no serviço penitenciário e que há quatro anos não vê a filha. Entra na delegacia vociferando que deviam me trancar num reformatório. A bala de chumbinho entrou por baixo da clavícula esquerda de Zulma. Com a queda do corpo para trás – a tal queda que tanto me comoveu – o chumbinho foi se movendo cada vez mais para baixo. As radiografias mostram o projétil descendo e passeando por seu generoso interior. Quando parar e se firmar, vão retirá-lo. Por enquanto, não se pode fazer nada. Dão uns pontos na ferida, que fica dois centímetros acima do coração, e ela fica internada em observação no Fernández. Embora seu pai insista que devem me trancar em algum instituto de menores, felizmente Zulma acabou de fazer vinte e um anos e decide por si própria. Ela confirma que tudo não passou de um acidente e leva a história com bom humor. Fala para minha mãe que está muito feliz, porque em uma semana de hospital conseguiu se livrar dos quatro quilos que fazia anos

tentava perder. O canalha do Arturo diz que ainda faltam pelo menos quinze, mas me pede encarecidamente que não a ajude. Ele e eu vamos visitá-la na sexta-feira à tarde. Adoro sair com Arturo na rua e que as pessoas pensem que é meu namorado. Pegamos o 132 e saltamos em frente ao antigo muro da penitenciária, onde agora estão as lonas e as carroças de um circo brasileiro. Olho para elas e penso em fugir, como nos filmes, seguindo os caminhos de uma nova vida, mas são tão assustadoras que prefiro ficar coma que tenho mesmo. Entro de novo no Fernández, seis dias depois daquela noite em que cheguei à emergência com Zulma carregada pelo taxista e pelo guarda. Tudo está exatamente igual, mas parece ter acontecido há mil anos. Alguns metros antes de chegar à porta do quarto onde está a chaquenha fico pregada no chão, sem coragem de dar mais nenhum passo. Arturo me empurra para me fazer entrar. A chaquenha está sentada na cama, conversando com uma grávida incrivelmente jovem que está deitada na cama ao lado. As duas sorriem para mim. Zulma abre os braços e me diz: vem cá, me dá um beijo, menina. A mãe de Sumi prefere que a gente se veja menos e acho que dessa vez até ela tem vontade de obedecer. Sou a famosa maçã podre. Posso sentir o verme dentro de mim. Um verme pelo qual tenho ternura e nojo ao mesmo tempo, e que tenho medo que a qualquer momento alguém esmague com um sapato. Muitas das minhas amigas da escola não me cumprimentam mais. Seus pais me olham torto. Alguém deixa em cima do meu banco um papel com a frase “Pepita, a Pistoleira”. E sai uma notinha na quinta edição vespertina do La Razón, mas por sorte lá em casa leem La Nación e não ficam sabendo. Félix e Bernardo não falam mais comigo, porque, por minha culpa, perderam sua espingarda de ar comprimido e acham que devo três mil pesos a eles. E o pior de tudo: minha mãe fica sem Zulma, de quem gostava tanto, porque a chaquenha faz as pazes com seu pai e volta para Castelar. Não vem ao caso, mas é um dado legal: parece que ela está saindo com o guarda da esquina, o que me ajudou a levá-la para o hospital. Nem precisa dizer que o antecedente de ter dado um tiro na empregada também não ajuda muito na hora de conseguir uma empregada nova. Por mais que minha mãe publique anúncios no jornal, o porteiro se encarrega de contar a história às candidatas na primeira vez em que cruza

com elas. Eu colaboro em tudo o que posso. Faço as camas dos meninos antes de ir para a escola e, quando volto, passo aspirador na casa toda. Mas minha mãe aproveita e me manda passar produto de limpeza no corredor todo com uma escova de metal que me dá calafrios. Ela também me manda limpar os vidros da sala com folhas de jornal, o que me dá um rumble de matar. Eu me ajoelho e esfrego o chão como uma condenada que cumpre sua pena. Com a mesma parcimônia, depois espalho cera e deixo secar bem para então passar a enceradeira de três escovas em ziguezague pelos tacos de madeira. Me ofereço para resolver os problemas da casa, lavar os pratos ou o que quer que seja preciso. O resto do tempo fico em casa, como um bicho-da-seda dentro de seu casulo amarelo. Espero o tempo passar sem vivê-lo, jogada na poltrona da sala, ouvindo os discos que roubei dos balcões do supermercado da rua Quintana: Bridge over Troubled Water, de Simon & Garfunkel, e Hamburger Concerto, do Focus, que só ouço quando minha mãe está fazendo a sesta, porque ela diz que a enlouquece. Mas, muito antes de conseguir que se esqueçam de mim por um tempo, a escola me entrega o boletim. Minhas notas são uma desgraça. Fiquei de recuperação até em artes, só porque não soube fazer um sapatinho de bebê de tricô. E para que porra eu preciso saber fazer um sapatinho de bebê de tricô? Já basta ter aprendido a fazer o cachepô de macramê e a caixa forrada de fita, mas a mulher é uma sacana. Não me sobrou nenhuma falta e tenho vinte e quatro advertências, porque me pegaram fumando no banheiro pela terceira vez. É o pior boletim que já tive na vida. Depois da história do tiro, não tenho mais cara para mostrá-lo a meu pai. A última vez que trouxe o boletim ele me levou para a sala de jantar para conversarmos, mas sentamos e ele não falou nada. Abriu a cartolina amarelo-clara na palma da mão e ficou olhando por um tempão. Depois disse: este boletim é horroroso, parece de um retardado mental. Tive de explicar como consegui zero vírgula setenta e cinco em matemática. – Tirei dois uns e um zero. – Talvez você queira dizer que tirou três uns e um zero, sua burra. Depois testou minha tabuada e fiquei tão nervosa que todas as contas deram errado. Sete vezes nove, cinquenta e quatro, e oito vezes sete, noventa e seis. Meu pai levantava as sobrancelhas como se estivesse ouvindo um tijolo falar. Se com os alunos da faculdade tiver a mesma paciência que tem comigo, eles devem odiá-lo.

Mas eu tenho vergonha de ser considerada burra e me dói que meu pai me olhe com essa cara feroz, apertando os dentes como um animal. Todo mundo me considera muito esperta, menos ele, que acha que a inteligência tem a ver com fazer cálculos de cabeça e esse tipo de coisa. Para mim inteligência é ter uma vida feliz, e, se é assim, ele, que é tão inteligente, passa a vida toda trabalhando para fugir de casa, porque sua vida em família é a maior deprê. Faz três dias que a cartolina amarelo-claro está dobrada em duas dentro da mochila da escola. Parece que carrego uma bomba. Sei que quando detoná-la vou arruinar a noite da família toda. Que pesadelo. De novo, por minha culpa, meu pai vai se sentar para comer em silêncio, fechado em algum claustro mental, a mil quilômetros do seu prato. Javo – claro que já sabe que me entregaram o boletim, porque remexe na minha mochila a cada oito horas – me avisou de manhã: vê se pelo menos mostra depois de comer, para não estragar o jantar de todo mundo. Não posso demorar mais nem um dia, porque, se não levar o boletim amanhã, não entro na escola. Tenho que mostrar esta noite. Volto para casa cedo e cumprimento cada um com um beijo. Sou carinhosa, de maneira servil. Sei que depois de mostrar o boletim vão se voltar contra mim, mas não ligo. Ponho a mesa, ralo o queijo, corto o pão e encho a jarra de água; coloco até gelo, porque sei que todos gostam, mas ninguém quer se dar ao trabalho. Minha mãe me olha surpresa enquanto encho a forma de gelo na torneira da cozinha. Não custa nada, digo. Mas ela vem e me ajuda, seca a parte de baixo da forma com um pano de prato – para não molhar o chão, diz – e a coloca de novo no congelador, com pulso firme como o de um cirurgião. Dou dois passões para chegar antes dela e esperá-la com a porta do congelador aberta. Sei que daqui a pouco toda essa cordialidade vai ser interpretada como uma estratégia covarde, mas não consigo evitar e dou uma de boazinha, tentando somar os últimos pontos. Como sempre que estou nervosa, não consigo parar de falar. Meu pai e minha mãe se sentam à mesa com tanto bom humor que dá até pena. Tento puxar um assunto que lhes agrade, mas não acho nada que não tenha a ver com a escola. E qualquer assunto ligado à escola fica perto demais do boletim para não mencioná-lo. Não se pode falar de alguma coisa relacionada à escola e se omitir que entregaram o boletim. Minhas mãos tremem de vez em quando e sinto que dá para perceber, como quando a pálpebra palpita.

Tento não falar nada engraçado, para não parecer falsa. Mas conto a piada da moça que está saindo de uma loja de bichinhos de estimação com uma cadelinha e chega uma senhora interessada no preço, pergunta “é barata?” e a moça diz “não, cachorro”, porque acho que vão gostar. E gostam. Todos riem, menos Javo, que me encara com censura, porque sabe. Olha para mim como se dissesse: e ainda por cima fica contando piadas. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Dói fazê-los sofrer. Odeio desiludi-los sempre. Espero eles irem para a cama e bato na porta do quarto, que está fechada, devagarzinho, toc toc. Minha mãe lê com a luz da cabeceira. Meu pai rumina alguma coisa ininteligível, mais irritado do que com sono. Uma ligação do necrotério o deixaria menos aborrecido. Olha para mim com um olho. – O que você quer? – Trouxe o boletim. Silêncio. Eles me odeiam e têm razão. Entro descalça sem que me digam entre e volto para deixar a porta como estava, encostada. Fico em pé junto à cama do lado de minha mãe, querendo ser engolida pelo chão. Falamos baixo, como se fossem três horas da manhã, mas não é nem meia-noite. Por sorte dura pouco. Estão mais cansados que surpresos, sem força para ficar com raiva ou discutir. Nem sequer comparam meu boletim com o de algum dos meus irmãos, como sempre fazem. Com pouca energia física, mas com a coragem de machucar com palavras que só os pais se permitem com os filhos, e viceversa, os dois se revezam. Curiosamente, não brigam, para dar a deixa um para o outro durante os quinze minutos que dura o sermão, como se tivessem ensaiado antes. Um dueto comovente. Tem o seu lado enternecedor ver que ainda estão juntos em alguma coisa. Meu boletim não importa, porque meu pai está com câncer. Logo ele, que nunca vai ao médico, porque isso é para doentes. E, quando vai, como tem vergonha de perturbar o médico com seus problemas, gasta o tempo da consulta falando de coisas mais gerais, olhando os livros da estante do consultório e perguntando em que época o médico cursou a faculdade ou qual é a origem do seu sobrenome. Minha mãe diz que ele não pergunta sobre seu estado de saúde porque se acha um basco duro como uma pedra, mas o que ele é de verdade é um basco burro…

Ao mesmo tempo, recebemos uma carta com uma intimação do dono do apartamento avisando que vai nos despejar sob a alegação de família abastada. Parece que tem uma nova lei do inquilinato que pode nos mandar para a rua. Minha mãe já tinha comentado algo a respeito aos berros algumas vezes nas últimas semanas, mas achei que era mais um exagero do seu drama lituano. Não é. Vão nos despejar em quinze dias, porque meu pai recebe um salário de mais de oitenta e seis mil pesos por mês e isso nos transforma numa família abastada. Agora que sei quanto meu pai ganha – o que ele mantém em segredo estrito, porque considera obsceno falar sobre isso – francamente não sei em que eles gastam. Meu pai é operado quase de emergência para extirpar o câncer que nunca ninguém explica bem onde é, mas o abrem pelas costas e dão cem mil pontos. Quando chega a ordem de despejo, ele ainda está na unidade de terapia intensiva e não fica nem sabendo. Minha mãe não aguenta. Grita e esperneia e se revira na frente de todo mundo no tapete da sala, deixando a calcinha à mostra, sem pudor. Depois se tranca no quarto chorando e dizendo que quer morrer. Fala com meu pai em voz alta, como se estivesse falando com Deus: não me deixe sozinha com todas essas crianças, Pedro, ela implora, como se não fôssemos nada dela. Faz alguns dias que ela sai do quarto só para brigar, seminua, com a camisola caindo, e anda pela casa como um fantasma. Aparece de repente na sala ou na cozinha para dizer que está cansada de todos nós, que não a ajudamos em nada. Na segunda-feira, quando chego da escola ao meio-dia, encontro meu quarto todo revirado, como se tivesse sido visitado por ladrões. As gavetas jogadas no chão e as estantes esvaziadas a golpes, o rádio Sete Mares debaixo da mesa, com a tampa onde ficava o mapa-múndi partida em dois e os porta-lápis de cerâmica em cacos. No meio do quarto, uma montanha de roupa jogada, livros desencapados, discos quebrados, tudo coberto pelos restos do fundo das primeiras gavetas – caixinhas, papéis, canetas, vidrinhos, clipes, aparas de lápis; os lençóis e cobertas arrancados e o abajur no chão, ainda ligado na tomada, mas com a lâmpada quebrada. Ela aparece repentinamente, como o monstro do Lago Ness, babando. Com uma voz tenebrosa, diz:

– Porcalhona, agora vai ter que arrumar de verdade. Mas não é pessoal. Dois dias depois, faz o mesmo no quarto dos gêmeos. Não se salva nem o aquário com os peixinhos, que ficam pulando no chão. Mais alguns dias e ela se joga contra a estante da sala. Arturo chama o tio Rolo e a internam em uma clínica psiquiátrica. As duas irmãs paraguaias que estão trabalhando em casa agora – minha mãe as odeia, porque acha que falam em guarani para enganá-la – saem correndo. Por uma decisão que eu nunca soube bem quem tomou, nós, os irmãos, somos divididos. Arturo ganha asilo dos padres do colégio que frequentou durante todo o segundo grau, embora fique quase o tempo inteiro na casa de seu amigo Gustavo, que mora sozinho com a mãe. Javo vai para a casa da sua madrinha, e Félix e Bernardo, para a casa da mãe e da irmã do meu pai, que moram perto das escolas dos gêmeos. A tia é legal, mas vovó os obriga a comer coisas como arroz preto misturado com tentáculos. Eu vou para um colégio interno de freiras no nosso velho bairro de Bellavista, a trinta quilômetros de Buenos Aires. Meu pai é um dos benfeitores do colégio: capta recursos e consegue apoio para que se mantenha em pé, como ele diz. O colégio da irmã Regina é uma obra construída com o esforço de uma freira que é osso duro de roer. Ela conseguiu que lhe doassem um quarteirão inteiro a duzentos metros da rodovia 8, no limite de Bellavista com o destacamento militar do Campo de Mayo, onde construiu um lar para sessenta meninas e uma escola de primeiro e segundo graus. Eu conheço o colégio – a Obra, como meu pai o chama – porque foi lá que fiz minha primeira comunhão, quando tinha oito anos. Foi um dos meus primeiros fracassos teatrais. Bem quando estava prestes a usar o vestido de primeira comunhão de cambraia bordado que tinha sido de Mercedes – tinha a foto dela com o vestido num quadro acima do telefone –, meu pai resolveu ajudar a irmã Regina a realizar um velho sonho: celebrar uma comunhão coletiva, da qual pudessem participar todas as crianças do município, principalmente as pobres. A freira queria fazer uma festa da igualdade, mas trazendo um bispo em pessoa para dar a primeira comunhão às crianças, um religioso que fosse importante. Por meio de alguém da Universidade de Morón, meu pai a

ajudou a conseguir o bispo de outra diocese, que servia do mesmo jeito. Era um bispo que estava do lado dos pobres também. A irmã Regina montou a festa de sua vida. Ergueu um altar debaixo da galeria, onde três freiras tocavam violão em frente a um microfone acoplado. Vieram crianças carentes de todo o município de General Sarmiento. Fiz minha primeira comunhão com elas, no pátio da humilde obra da irmã Regina, que mais parecia um estacionamento, em vez de na igreja de Bellavìsta, onde todo mundo fazia e principalmente onde a minha irmã tinha feito, com o vestido de cambraia branco bordado com uvinhas, que eu já vinha experimentando escondida fazia anos e do qual tive de me despedir para sempre. A irmã Regina queria que todos nós estivéssemos irmanados diante de Deus. Centenas de crianças de oito anos, uniformizadas com o mesmo jaleco branco, para não incorrer em despesas desnecessárias. O que importava era a pureza das almas desejosas de receber o corpo de Cristo. Nós, que íamos recebê-lo, formávamos duas filas compridas que davam quase três voltas pelo pátio, em uma espiral comprida e bagunçada, como um caracol mal traçado. Uma longa fileira de almas puras dentro dos seus aventais brancos de colégio. Nada de vestidos de noiva nem de terninhos com fita no braço. Nada de velas decoradas nem de missais de capa de madrepérola e folhas com fio de ouro. Todos com meias e sapatos brancos, e quem não tinha, com alpargatas. Nem precisava levar o terço, porque te davam um, de plástico cor de cocô, imitando madeira. A cerimônia no pátio de cimento foi debaixo de sol a pino, num domingo às três da tarde do dia oito de dezembro, Dia da Virgem, como manda o catecismo. Pleno verão. Havia tanta gente que decidiram começar a cerimônia um pouco antes, uns minutos depois do meio-dia. Fazia um calor de rachar. O bispo parecia o Montezuma. Com seu toucado bicudo e seu bastão encaracolado, brilhava, encharcado de suor. Ele tirou o gorro e o colocou sobre uma mesinha, como se em vez de ser o de um bispo fosse o chapéu de palha de um jardineiro. A irmã Regina arregalou os olhos e meu pai a olhou com esse sorriso à prova de balas que ele dá quando quer que você ache que está tudo bem. Um coro de dez ou doze internas em pé, atrás das três freirinhas que tocavam violão, cantava “Venha, suba a montanha”. O bispo disse umas poucas palavras, que ninguém entendeu. Depois, já debaixo da sombra da galeria, mandou as duzentas crianças desfilarem em frente ao modesto altar improvisado e foi dizendo para cada uma: o corpo de Cristo.

A minha hóstia grudou no céu da boca e, em vez de responder amém, disse admês. Depois fiquei um tempão tentando tirá-la da parte de trás dos dentes com a ponta da língua. As freiras nos trocavam de uma fila para a outra, para passarmos pelo altar e continuarmos devagar até o final do pátio. Por sorte, ninguém me fotografou. Minha mãe tinha ido com Félix e Bernardo. Ouvi sua voz cantando em um tom mais alto que o do resto do público, mais para tímido e silencioso. Ficamos até o fim, porque meu pai achava que o convidariam para comer alguma coisa, mas a festa da igualdade não incluía nem um amendoim sequer. Quando voltamos para casa, tudo tinha terminado. Depois o tio Rolo trouxe a famosa corrente que não interessou ao armênio e me disse que não tinha ido porque não gostava de cerimônias religiosas. Se tivesse visto essa, teria gostado.

O bispo daquela tarde depois foi acusado de terceiro-mundista, de pertencer à Igreja dos Pobres, e a irmã Regina se encarregou de esclarecer que tinha sido a primeira vez que o via e que o havia conhecido por intermédio do meu pai. Mas meu pai também não o conhecia. Sabia que trabalhava nas favelas, mas não que estivesse relacionado ou fizesse parte de algo chamado teologia da libertação ou coisa parecida. Meio comunistas, de acordo com meu pai, gente com ideias perigosas. Nunca mais vi a irmã Regina até que agora, cinco anos depois, cabe a ela fazer um favor para meu pai. Ela me aceita como interna sem hesitar e, mesmo sem ter nem o histórico escolar pronto, me inscreve como aluna regular do segundo ano de um dia para o outro. Mas, na tarde em que chego ao colégio, em um táxi pago pela secretária do meu pai, ela me trata com a frieza de uma fossa. Reconheço-a antes de saltar do carro quando a vejo me esperando na porta, a quarenta metros da entrada. Vista de longe, parece um homem fantasiado de freira. Vista de perto, é alta e quadrada como um cofre, com traços de boneca, mas expressão de filhote de águia. A pele é branca e as maçãs do rosto volumosas, com as bochechas manchadas de um vermelho gasto, que lhe dá um ar alemão. O véu cobre todo o cabelo e ela não tem sobrancelhas. Talvez o manto negro sobre a coifa branca, que lhe dá esse aspecto inconfundível de santa de estampas, esconda uma careca lisa como um melão. O hábito foi passado com uma perfeição religiosa. Por baixo desponta um par de sapatões pretos e toscos, amarrados e severos como ela.

Mal saio do carro, ela me faz segui-la até seu escritório, um cômodo pintado de cinza-opaco, que parece uma mistura de restos de tintas de várias cores. É compreensível que sua cadeira dê as costas para um crucifixo bem grande, que está pendurado na parede, porque ele é sinistro. Um esqueleto quase nu sustentado por uns pregos imensos está pendurado como um trapo, com o rosto encharcado de sangue sob a coroa de espinhos. A irmã Regina me olha fixamente e fala devagar; sem mudar o tom. Também não tem cílios. – Esperemos que com a ajuda do Senhor tudo se solucione o mais rápido possível. Seu pai já deve ter dito que este não é um colégio de meninas abastadas; que aqui moram crianças muito humildes, acostumadas a trabalhar e a obedecer. A maioria vem do interior e nem recebe visitas, porque não tem ninguém. As saídas são proibidas e, embora o doutor tenha comentado que a senhorita tem alguns amigos da família aqui em Bellavista, eu preferiria que saísse o mínimo possível do colégio e, evidentemente, só com a minha autorização. Aqui não há favoritismo para ninguém, e o doutor me pediu muito especialmente que não tivesse constrangimentos com a senhorita. Desse modo, espero que se sinta confortável e possa participar da vida do colégio como as outras internas. As pessoas chamam meu pai de doutor porque não o conhecem de verdade. Falam assim porque pensam que ele é advogado, mas meu pai é doutor em filosofia e matemática. – A irmã Paulina vai acompanhá-la até seu quarto. Reze por seu pai, peça por ele. Sem que a freira faça nenhum gesto ou toque em nada, a porta se abre e entra a irmã Paulina. Talvez haja uma campainha no chão ou escondida em algum lugar do outro lado da mesa. O colégio ocupa todo o quarteirão e é cercado por grades e arbustos baixos de buquês-de-noiva, uma trepadeira com um nome engraçado para um internato de freiras. A entrada fica no meio do quarteirão, entre dois pilares de tijolos de barro pintados de branco. O portão fica aberto de dia e fecha às sete e meia da noite (a irmã Paulina fala sete e meia da tarde). Um longo caminho leva até o pátio, um quadrado enorme de cimento varrido pela mesma freira que passa os hábitos. Dois prédios o cercam, um de cada lado, unidos por uma passagem coberta. Um é o colégio, e o outro, o internato. Na minha lembrança do dia da primeira comunhão, tudo era muito

mais branco e reluzente e havia uns canteiros com amor-perfeito que não existem mais. A irmã Paulina é anã, e o crucifixo de madeira preso com uma cordinha que pende do seu pescoço sobre o peito parece grande demais para seu tamanho. Ela me leva pela passagem até o outro prédio, onde estão os dormitórios, dois galpões com trinta camas cada um, divididos de acordo com a idade. Um é para as meninas de menos de oito anos, e o outro, para as meninas de oito a dezessete. Este é o meu. O quarto se divide em duas partes em forma de L, ou seja, ao entrar na primeira porção desse L, não se vê o fundo da segunda, que dobra à direita e se perde numa escuridão que pressagia um frio de catacumba. As cabeceiras das camas ficam encostadas nas paredes da esquerda e da direita, deixando um corredorzinho no meio. Estão alinhadas uma depois da outra, com as cobertas à vista e sem lençol de cobrir, separadas pelo espaço que uma mesinha de cabeceira – que não existe – ocuparia. Andamos pelo corredorzinho entre as camas. Eu a sigo uns passos mais atrás, arrastando uma mala velha de lona verde, na qual coloquei muito mais coisas do que preciso e que agora estão começando a me envergonhar. Suplico para que a minha cama não seja a última do fundo, mas obviamente é. – Esta é a sua cama. Tem de estar sempre feita e você não pode deixar nenhum objeto pessoal sobre ela. Venha comigo. O eco das palavras fica suspenso no ar. A altura do teto dá a sensação de galpão. As janelas são estreitas e muito altas, como claraboias. Mal se escutam os passos da irmã Paulina, amortecidos por uma sandália branca de borracha como a de uma enfermeira, mas a minha mala tem uma rodinha solta que guincha escandalosamente. – Ali é o banheiro e aqui, nestes armários, você tem de pedir às suas companheiras que lhe cedam um lugar para guardar suas coisas. Tem de mantê-lo arrumado e limpo e não pode guardar comestíveis, porque aqui há formigas. Os armários – umas estantes mínimas e um cano com cabides de arame – não têm portas nem espaço disponível à vista. O banheiro é um iglu. O corredor largo que o liga aos dormitórios me lembra um filme com Linda Blair que está passando no cinema. – O sinal toca às seis da manhã. Às seis e meia, você tem de estar em formação em frente à porta do dormitório para ir à missa. A missa é na

capela do primeiro andar. Se precisar se confessar, tem de chegar dez minutos antes. O café da manhã é servido no refeitório a partir das sete e quinze. O sinal do colégio toca quinze para as oito.

***

Deixo a mala no chão, em frente aos armários, e sento na minha cama esperando que as outras internas cheguem, como a irmã Paulina me disse para fazer, antes de sair e me deixar sozinha. As paredes são pintadas a cal e terminam sem rodapé. O cheiro é de cera e umidade. Fico um bom tempo com o olhar fixo no brilho das cerâmicas, até que a vista se turva. Pelas janelas entra em diagonal, turva e luminosa, a última luz da tarde. Da rua chega o som de um carro que passa e depois o latido de uns cachorros que o perseguem, mas aqui dentro não se ouve nada. Primeiro choro devagarzinho, apertando os olhos e os lábios. Mas depois vou relaxando e não posso mais me conter: meu pai pode morrer. E tudo aconteceu tão rápido que nem me despedi dele. A última vez que o vi, saindo de casa para o hospital, desejei-lhe sorte, como se ele fosse para o cassino. Não quis lhe dar um beijo porque estava cheio de gente – meus irmãos, a secretária do meu pai e um senhor com caspa completamente desconhecido para mim, mas que parecia muito próximo a ele, alguém da universidade. Mas, como não estamos acostumados a ser carinhosos nem a nos tocar, ninguém lhe deu um abraço apertado ou disse que o amava. Penso em minha mãe, dormindo em sua terapia do sono, sonhando que é outra pessoa. Penso em todas as coisas que estavam em casa e imagino o apartamento inteiro enfiado em um depósito até um novo aviso. Toda a casa dividida em cestos e caixas em um porão. Não tenho mais para onde voltar. Ninguém me espera em lugar nenhum. Me arrependo de ter querido me livrar da minha família e acho que preferiria morrer a ter de ficar internada neste colégio. Quando as meninas entram, me encontram chorando sentada na cama do fundo. Primeiro se aproximam devagar, quase uma a uma, e depois me cercam, curiosas, sem nenhum pudor. Uma menina muito baixinha, mas com corpo de senhora, me oferece um lenço que tira do punho do suéter, um lenço com a borda de renda e umas florzinhas bordadas, que em qualquer outro momento me pareceria brega, mas que agora dói vê-lo, tão delicado e generoso que é. Em vez de enxugar minhas lágrimas, encho-o de catarro. A dona encolhe os ombros, com a naturalidade que dá a experiência de ter passado pelo que o outro está passando e saber perfeitamente o que se sente. Algumas garotas chegam mais perto e, em cinco minutos, tenho um grupo à minha volta que me observa com olhos arregalados. Não posso decepcioná-las. Faço comentários safados, falo muitos palavrões e penteio

as melenas com os dedos desde a nuca, como Brenda. A maioria das meninas podia perfeitamente ser prima de Zulma, mas não tão bonitas, porque a chaquenha é um avião (principalmente agora que a ajudei a emagrecer quatro quilos). E as internas não têm nenhuma graça, com uma roupa antiquada que fica pequena nelas e com o cabelo grudado na cabeça com grampos invisíveis, que obviamente dá para ver, ou preso num rabinho tão esticado que dá a sensação de que as machuca. Mas me dão muito mais espaço do que eu esperava – consigo três cabides. Ficam comigo enquanto retiro minhas coisas da mala de lona verde, sentadas no chão do corredor em frente aos armários, me cercando como os índios fazem com o espanhol que chega do outro mundo com um baú carregado de tesouros. Querem ver tudo, e eu tiro cada coisa bem devagar, escondendo entre as mãos para cercá-la de mistério. Tudo as surpreende e não é para menos: eu mesma vejo algumas coisas que não posso acreditar que tenha trazido a um lugar como este, como o blazer de veludo preto ou umas estrelinhas para colar no rosto que uma vez roubei da irmã de Sumi e nunca usei, mas que, para dar uma de sabichona, falo que são para ir a festas. Mostro como funciona a lanterna de acampamento para código Morse com a palavra puto e uma garota pergunta se eu achava que ia dormir numa barraca. Respondo que estou sempre preparada para tudo. Ficam loucas com minha lata de ar enlatado de Bariloche, comprada em umas férias que só de lembrar agora meu nariz enche de novo de catarro. Tiro a bola mágica de bate-bate transparente, a caixinha com mechas de cabelo; envelopes com fotos, a rotuladora para escrever palavras em fitas adesivas coloridas. Tiro o volume da coleção Clássicos Jackson correspondente às tragédias de Sófocles que encontrei em um dos cestos em que estavam levando a biblioteca da sala – uma Bíblia!, diz de sacanagem uma garota com nariz de tucano. Aproveito que estão todas rindo para guardar dentro do armário, sem que vejam, a revista meio pornô de fotonovelas italianas. As meninas pegam em todas as coisas, passando de mão em mão, uma por uma, enquanto conto de onde vêm: o porta-copos de cortiça do bar do Sheraton, os bilhetes numerados de ônibus e o talonário de entradas para todos os jogos que você ganha de aniversário no Ital Park, com os cupons sem usar. Mostro também meus três tesouros favoritos: o timbó, a sortilha do carrossel que roubei no Jardim Zoológico e o vidrinho com mercúrio que o dentista do plano me deu. Tiro e coloco de volta numa sacola os sapatos

horríveis da mãe de Hernán. Uma voz atrás diz: que sapatos lindos! Quando aparece o vidrinho de perfume em sua primorosa caixinha de tecido amarelo-ouro (um presente que meu pai trouxe para minha mãe de uma viagem e que ela nunca usou, nem nunca se dará conta de que não está mais com ela) e abro na frente delas, como um mágico que descobre o interior da cartola, todas exclamam ao mesmo tempo ahhhhhh! Então retiro a tampinha com as duas pombinhas da paz esculpidas em cristal, e, com uma delicadeza pouco frequente nos meus movimentos, ponho com a ponta do dedo indicador uma gotinha do perfume atrás do lóbulo da orelha de cada uma. As mais chucras empurram meu dedo, como se tivesse ácido sulfúrico. A farra termina de repente, com a aparição da irmã Paulina no batente da porta. As meninas se levantam e saem em disparada, como se tivessem visto um fantasma. Ela não fala nada, pega o vidrinho da minha mão, tampa, coloca de volta na caixinha amarela que ficou em cima da mala e guarda em um bolso escondido entre os panos do hábito. É uma lembrança da minha mãe, digo, mas com tão pouca convicção que a irmã Paulina continua andando. Tanto o refeitório como seus móveis pintados de cinza, a louça de vidro verde cor de pasta de dente, os talheres com cabo de plástico marfim e um mostruário de copos todos diferentes, um mais feio do que o outro, parecem tirados de um conto de orfãzinhas. Como café da manhã, servem algo que se chama “cascarilha”, que me faz sentir a Judy, a heroína de Papai Pernilongo. O internato da irmã Regina se parece bastante com o asilo John Grier. A mesma comida lúgubre, o chão de cerâmica sempre úmido e as vozes que retumbam como se estivéssemos dentro de um silo. Mas a Judy se casava com o dono do colégio; já a maioria das minhas companheiras vai ser freira. Moram no internato desde muito pequenas e se sentem em dívida com a irmã Regina. Ela se aproveita da situação para recrutá-las como noviças quando terminam o segundo grau. Para algumas, é isso ou voltar sabe-se lá para onde. As outras, que sabem para onde, preferem manter o estilo de vida a que se acostumaram no internato. Mas, se uma garota da minha idade me diz que seu sonho de vida é servir a Deus, me dá rumble, por mais feia que seja – porque na verdade as meninas não são muito bonitas, ou talvez sejam tão tímidas que não dá para ver graça nelas à primeira vista. Todas as noites, quando apagam a última luz e a vigia noturna – uma

noviça com o hábito até o joelho que fica andando de um lado para o outro do quarto, cuidando para que ninguém converse nem troque de cama até que a última interna durma – vai embora, um grupo de seis ou sete garotas que fingem estar dormindo se levanta e se amontoa na minha cama, quase na penumbra. Os melhores lugares são sempre ocupados por Sandra e por Claudita, e também por outra a quem chamam de Tita. Para ter um pouco de luz, deixamos a porta que leva aos banheiros aberta. Lá tem sempre uma lâmpada fluorescente piscando. As meninas me pedem que conte coisas de fora, como se estivessem presas. Querem saber como é morar em Buenos Aires, como são as meninas dos outros colégios e, principalmente, como são os meninos, do que é que eles falam. Eu invento um pouco, entusiasmada, porque, ao ouvir minha voz, tudo o que falo ganha sentido e perde dramaticidade. Nada é mais divertido do que rir do que te faz chorar. – Tive dois namorados importantes. Um que me enganou com uma amiga e outro que teve de fugir para que o meu pai não lhe desse um tiro. Uma noite, iluminando-nos com a lanterna de código Morse, mostro fotos e leio as cartas de Lucio, de Rafael e de um garoto que conheci em um verão em San Bernardo. Passo rápido a colagem que Lucio fez para mim – e que eu achava tão genial – com os desenhos da pantera cor-de-rosa que recortou das revistas, porque de repente parece um trabalho de jardim de infância. As garotas leem mil vezes o mesmo cartão-postal que Rafael mandou pelo correio para minha casa, sem nenhum motivo, um dia qualquer. É uma foto do estádio do River tirada de cima, de um avião, em pleno jogo, com as arquibancadas abarrotadas de gente. Na parte de trás, em letra cursiva com esferográfica azul, diz: eu sou o de camisa vermelha sentado na tribuna San Martín, acenando para você com a mão. Um beijo enorme, Rafael Ducret. As fotos de Arturo e Javo são uma sensação. Querem saber tudo deles, como se fossem dois atores famosos. Minto feito louca para fazê-las felizes: meus irmãos são maravilhosos, um é louro de olhos azuis e anda de moto e estuda arquitetura; o outro é louro de olhos cinza e joga rúgbi e toca violão… Nenhum tem namorada, porque são meio tímidos, eu acho. Uma delas me pergunta se pode escrever para eles e digo que sim, claro, que vão adorar. Outra diz: então você escreve para um e eu escrevo para o outro. Deixa ver, mostra a foto de novo, diz a primeira, e todas rimos.

Como a maioria das garotas nunca beijou um menino, me acho tão experiente quanto Xaviera Hollander. A fascinação com que me escutam me estimula a inventar mais coisas. Às vezes me complico, porque mentir muito não é nada fácil. Se bem que às vezes digo a verdade. – Mas o que Arturo e Javo realmente têm de especial é o tamanho do negócio deles. As meninas que queriam se confessar já foram e as restantes estão espalhadas pelo chão em volta da minha cama e da cama de Sandra. Ela pinta as unhas com um esmalte rosa que quando seca fica transparente e não se vê. Sorri e diz: é proibido usar unha pintada, mas pintar não. Ela me pergunta com uma cara maliciosa: – E você se cuida? – Claro, tomo pílula – respondo. Mas não é verdade. – E como conseguiu? – Olhei a marca que a irmã de uma amiga usava e comprei na farmácia. São de venda livre, qualquer um pode comprar. Eu copiei o nome da pílula que a irmã de Sumi usava e comprei por via das dúvidas, para que nunca acontecesse comigo o que aconteceu com Mercedes. Levanto descalça e vou até o armário buscar a cartela com as pílulas para mostrar e, já que estou perto do banheiro, vou fazer xixi. O banheiro não é tão gelado como pareceu no primeiro dia. De manhã cedo, o sol ilumina a parede com o espelho retangular e o meu reflexo tem um halo dourado em volta, como uma aura. Faço xixi no segundo boxe dos três que tem lá. Sempre uso o mesmo, como uma forma de sentir que é meu. Quando volto para o quarto, Sandra está no meio da minha cama, com as pernas cruzadas e recolhidas. Ajeita o avental embaixo da bunda e fala baixinho: uma santa no Vale Sagrado, no Peru. Todas a ouvem com muita atenção. Sento sobre o travesseiro da minha cama, com as costas apoiadas na parede, e Sandra me resume o que não ouvi: uma índia de Antacancha, chamada Lina Molina, que foi mãe aos quatro anos de idade. Olho-a com entusiasmo para não cortar seu barato, mas suspeito que está prestes a contar uma bobagem. Ela continua: na verdade, quando teve seu filho, já tinha cinco, mas ficou grávida com quatro, e, quando a levaram ao médico porque sua barriguinha doía, estava grávida de oito meses. Foi um milagre, tinha concebido sem pecado, como a Virgem Maria. Mesmo assim,

prenderam o pai por estupro, mas o soltaram depois. Descruza as pernas. Usa meias de náilon que deixam transparecer sua pele escura. Seus olhos também são cor de chocolate, e o cabelo, preto como café. – Médicos do mundo inteiro foram ver. Dizem que a menina se desenvolveu muito pequena. Antes de fazer três anos, já tinha pelo ali embaixo e menstruava. Do que você está rindo, imbecil? – diz para uma garota que está na cama atrás dela. E continua: – Foi um caso para a medicina. As fotos dela nua, quando estava grávida com a barriga cheia e as mamas inchadas, estão em livros de medicina muito importantes. – Ah, sim, muito importantes – fala a garota da cama de trás, e ri. – Todo mundo a conhece no Peru – diz Sandra sem olhar para ela, pois só tem olhos para medir a secagem do esmalte transparente. – Chamam o filho dela de o filho do sol e vem gente de todos os lugares do mundo para vê-lo, porque ele faz curas. – Foi o amor da mãe que deu poderes a ele – diz com a voz quebrada pela emoção uma gordinha, em quem a coifa de freira vai ficar perfeita. – Mas a menina tinha cabeça madura como a de uma adulta ou tinha cabeça de criança? – pergunta Tita, que é uma pequeninha com cara de ingênua e com quem estou fazendo amizade, entre outras coisas porque me dá alfajores. – Não, falando era como uma criança de cinco anos. Dizem que, quando o filho era pequeno, até brigavam por causa dos brinquedos. A mãe e o filho disputavam o mesmo ursinho, entendeu? – Santa era a velha, que criou os dois juntos, coitada – fala uma enquanto tece um quadradinho de crochê colorido, que vai ser parte de uma manta gigante para um asilo de velhinhos. – Não, os dois cresceram sozinhos em hospitais pagos pelo governo. – As unhas da Sandra já estão secas, mas ela ainda não mexe as mãos normalmente. – E como você sabe? – Em Jujuy todo mundo sabe. Veio gente até da Nasa para ver.

– Coitadinha da menina – eu digo. – São coisas de Deus, nós não podemos entender – ouve-se uma voz vinda do fundo, num tom vazio e categórico. É uma garota com bigode, que está sempre sozinha, lendo a Bíblia. E completa: – Como Sara, a esposa de Abraão, que teve Isaac aos cento e seis anos de idade. Sandra senta na cama e a repreende, sacudindo a cabeça com ar de zombaria. – E o que isso tem a ver? – Levanta-se com raiva e se senta na cama em frente à minha, tentando encostar-se na parede. Percebo uma relação conflituosa entre ela e a menina de bigode e sacudo a cartela de pílulas como um chocalho para mudar de assunto. – Quem queria ver os anticoncepcionais? – Atiro-os para Sandra, como se soubesse fazer isso, mas calculo mal e eles caem no corredorzinho entre as camas. Sete mãos levantam a cartela ao mesmo tempo. Larga, grita Sandra, agarrando a cartela de comprimidos rosa em suas cápsulas transparentes e sorri para mim: se é assim que você toma, não vão fazer efeito, mamãe. A cartela está intacta, como uma virgem, sem nenhuma cápsula vazia. Engula-me, cama. Assim como o banheiro, que não é mais o mesmo iglu do primeiro dia, as meninas também não são tão ingênuas como pareciam. À noite, quando todas dormem, Tita passa para a minha cama para conversar. Quando há outras garotas, é bem calada, mas, quando estamos só as duas, fala sem parar. Ela me conta de uma amiga que teve relações com um garoto – não diz sexuais, mas não precisa – e, para não ficar grávida, fazia por trás. Esclarece que é uma amiga, mas diz: de quebra você não perde a virgindade. Uma semana depois, permitem que minha mãe receba visitas. A irmã Regina recebe um telefonema de alguém do escritório do meu pai e me dá permissão para ir todas as quartas-feiras a Buenos Aires para vê-la. Fico também sabendo que meu pai está vivo e passa pelo pós-operatório em uma clínica onde ficará internado até o fim do mês. A irmã Regina sente-se poderosa quando me diz: e o dinheiro que precisar, tem que me pedir. Deve ser mais fácil arrombar a abóbada do banco central, mas digo muito

obrigada. Tenho que sair ao meio-dia, depois do colégio, pegar o trem na estação que fica a dez quarteirões, visitar minha mãe e voltar, antes que escureça, no trem que chega a Bellavista às sete e meia. A viagem até o Retiro dura uma hora. Lendo passa rápido. Como é a última estação, não corro o risco de deixar passar. É estranho descer do trem, andar uns metros pela plataforma, atravessar o saguão, sair na rua e ver o Sheraton. A subida da praça San Martín vem me receber cheia de flores e me sinto em casa. A clínica onde minha mãe está internada fica na avenida Las Heras, num prédio antigo de dois andares, em cima da pizzaria El Chocón. A não ser pelas grades que cobrem todas as janelas, é uma casa velha igual a muitas do mesmo quarteirão. Subo a escada, que se divide em dois lances antes de chegar ao primeiro andar. Em cada lance há uma porta e uma campainha, e no fim da escada um médico, de pé, olha para meus peitos e me acompanha até um salão cheio de sofás, arrumado com móveis que não combinam. Fico surpresa em ver que minha mãe me recebe numa sala onde há outras pessoas conversando com suas visitas. Esperava encontrá-la de camisola, enfiada no fundo da cama, com a cara inchada e o cabelo desarrumado, mas ela está flamejante. Nunca a tinha visto tão jovem, ou melhor, nunca a tinha visto jovem. Quando nasci, ela já era velha, tinha quase quarenta anos. Ela mesma me contou que, quando soube que estava grávida de mim, a primeira coisa que fez foi bater com a cabeça na parede. Depois escondeu a gravidez até os seis meses, porque tinha vergonha de que os vizinhos, ao ver a barriga, perguntassem: outra vez? Agora está feliz. Usa seu vestido chemisier verde-maçã e os mocassins com fivelas de bronze em forma de estribo. Parece uma menina. Contenho com o nó do dedo indicador uma lágrima que quer pular e digo que acho que vou ter um terçol. Minha mãe faz o gesto de pegar a aliança de casamento, que é de ouro – para aquecê-la, esfregando-a no vestido, e depois aplicar no lugar do olho onde se supõe que o terçol vai irromper –, mas ela não está em seu dedo. – Como vai na escola? Está estudando? Ela me dá umas palmadinhas na mão, mas olha para os lados. – Lamento que você esteja nesse colégio tão deprimente, com essa irmã Regina, que é um sargento… Quando ela diz isso, olho à nossa volta: gente de camisola e robe. Uma

garota e uma senhora de mãos dadas que não se sabe qual é a interna e qual é a visita. O tecido dos braços de todos os sofás está gasto. Os vasos e as plantas são de plástico e o papel de parede é lavável, com barquinhos. É um lugar bem mais deprimente do que onde estou interna. Tenho pena de ver que minha mãe não percebe isso. Age como se estivesse sentada numa poltroninha da Richmond, esperando um chá com biscoitos. – Arturo veio com um agasalho de lã de camelo que não acho que possa ter comprado com seu salariozinho de moleque. Vieram os gêmeos, com o cabelo longo, até aqui. Parece que a tia Elena nunca os leva ao barbeiro. – Esfrega o cotovelo. – Bernardo começou a chorar, coitadinho, vá vê-lo… Quem não veio foi Javo, porque diz que eu dou uma de doida porque é melhor para mim… Esse menino, sempre com tanta raiva. Qual o problema dele? Não digo nada sobre a operação do meu pai. Ela não toca no assunto e prefiro não perturbar em nada o ambiente de tranquilidade que nos cerca. Dá para perceber que está medicada com algum remédio que lhe agrada, porque quase não para de sorrir, com uma expressão um pouco abobalhada que não é seu estilo. E está com vontade de falar. Diz que logo vamos recuperar nossa casa de Bellavista e que vamos ficar todos juntos de novo. Conta-me coisas de Mercedes e depois me pede para, por favor, ir embora, porque está cansada. Reconheço seu típico desapego e não resisto, porque também quero ir embora. Um velho de terno e pantufas me pede um cigarro. Antes de mentir e dizer que não fumo, porque minha mãe está na minha frente, o médico que me recebeu aparece do nada e me acompanha até o começo da escada. Chama minha atenção o teto descascado, com as beiradas se enrolando como pergaminhos. Quando aceno para minha mãe, ela me olha com um olhar esquisito. Acho que é amor. A visita é muito mais curta do que eu imaginei. Saio para a rua animada com as três horas livres que me restam até a saída do trem das seis e meia. Posso fazer o que me der na telha. Como minha mãe teria dito em outros tempos – não faz tanto, mas já estão bem distantes –, a rua é toda minha. Num impulso, vou à casa de Sumi e toco a campainha. Sempre gostei de me apoiar na porta de grade e vidro da rua e me ver refletida no espelho do fundo do bali, como se estivesse presa numa gaiola. A jararaca se

surpreende ao escutar minha voz pelo interfone. Quando subo, me cumprimenta como se gostasse de mim, mas diz: de novo essa mala. Está tudo mudado. Pintaram as paredes de uma cor escura com os rodapés brancos. Sumi também está diferente, linda e doce como sempre, mas menos selvagem, como um potro domado – um cavalo-marinho com rédeas. Ela me recebe dando pulinhos e gritinhos de alegria. Está eufórica porque vai à Disneylândia. Vai com uma amiga que em cinco segundos percebo que agora é tudo o que eu era para ela. Tenho ciúme, mas fico feliz por não ir à Disneylândia para ficar tirando fotos com Huguinho, Zezinho e Luizinho. Sumi fala com aquele sotaque que imitávamos nas galerias da rua Florida, para nos fingirmos de patricinhas órfãs. Usa uma calça larga de camurça salmão e umas sandálias fechadas de plástico transparente, através das quais dá para ver que suas meias têm dedos, um de cada cor. Eu estou com meu jeans desfiado de sempre. Abri as costuras das panturrilhas e acrescentei um triângulo – que tirei da perna de outro jeans velho – para fazer uma boca de sino. Até meia hora atrás eu achava maneiro, mas agora me sinto vestida com roupa doada na igreja. Sumi não divide mais o quarto com a irmãzinha, a boba. Agora dorme sozinha no quarto que era da irmã mais velha. A cama é um colchão no chão, em cima de um tapete peludo, e não tem mais lugar nenhum na parede para pendurar outro pôster idiota do tipo Amar é. Tenho vontade de abraçar o Snoopy gigante que está na cama. O cabelo de Sumi está solto, em grandes ondas até a cintura, brilhante como num anúncio de xampu herbal essences. Ela abre a porta do armário, que tem um espelho, e pinta umas sardas no rosto com hidrocor marrom. Não parecem de verdade? pergunta. Sim, parecem mesmo dela, parte da sua graça infinita, mas digo que não: fica com cara de retardada. Ela ri e me parece ainda mais idiota. Quando me pergunta do colégio, minto. Pego emprestado tudo o que sei do Saint Hilda’s, um internato caríssimo que fica em Hurlingham, ao lado de Bellavista – que conheço dos campeonatos escolares de atletismo de quando era pequena –, e digo que sou interna em um colégio assim. Conto as histórias do internato da irmã Regina como se tivessem acontecido no ambiente tudor do Saint Hilda’s. Troco o dormitório coletivo por quartos divididos entre três ou quatro alunas, que falam inglês melhor que espanhol, e a missa obrigatória da manhã pelo treinamento para o pentatlo.

E falo que lá tem meninos. Ela então me conta que perdeu a virgindade com o primo na fazenda, no Natal passado. Pelo que me lembro do primo, a primeira coisa que passa pela minha cabeça é que eles têm o dobro de chance do que qualquer outro casal de engendrarem um mongoloide. A jararaca da empregada traz uma bandeja com rabanadas e avisa que sua mãe ligou. – Você não vai acreditar – Sumi me diz e, pela primeira vez, olha nos meus olhos como antes.–- Lembra do namorado da minha irmã, o do dedo mindinho? – Levanta o dedinho e põe no lugar onde fica o pinto, para que me lembre de quem está falando. – Está namorando minha mãe. Ao que parece, depois que a mãe e um comando de empregadas – encabeçadas pela jararaca – sequestraram a irmã do apartamentinho da Esmeralda com Viamonte e a mandaram com o pai para Paris, o namorado começou a frequentar de novo os Alcoólicos Anônimos e estava em recuperação. Apareceu um dia na casa de Sumi, de terno xadrez, bem antiquado – tirado de um baú do avô –, mas em perfeito estado, um chapéu estilo tango e uma flor absurda na lapela. Queria conversar com a mãe de Sumi para tranquilizá-la, para que visse que ele era uma boa pessoa. Acabou que tinham um monte de amigos em comum e, conversa vai, conversa vem, ficaram amigos e depois viraram namorados. A irmã de Sumi ainda não sabe. Está em Ibiza e faz meses que ninguém tem notícias dela. Mora nas montanhas, numa comunidade hippie sem luz elétrica nem água corrente. Me lembro de Mercedes. Minha mãe me contou que ela se casou nos Estados Unidos e que, agora que resolveu seus problemas legais, vem nos visitar com Adam no fim do ano, para que a gente o conheça. Sumi abre as narinas e me pergunta, abraçando o Snoopy gigante: e seus irmãos? Na quarta-feira seguinte, quando vou a Buenos Aires, não dou nem uma passadinha para cumprimentar minha mãe. Levando na bolsa os sapatos que Hernán me emprestou no ano passado, no dia da tempestade de Santa Rosa, vou direto até a casa deles na travessa El Lazo para devolvêlos. Nunca mais nos vimos, mas ligo para ele de vez em quando e ele sempre insiste que eu dê uma passadinha quando quiser, porque vai estar em casa ensaiando com o irmão no quartinho do terraço. Toco a campainha e espero meia hora até um garoto, que sai com um

grupo de amigos, abrir a porta. Demoro a reconhecê-lo. O cabelo está muito comprido, com os cachos nos ombros, e alguns caracóis caem sobre o rosto. É Edi, irmão de Hernán. Você estava sumida, diz ele. Fecha a jaqueta e sorri para mim, tem sardinhas de verdade: deixei a porta aberta para você. Pode subir direto. Passo pelo corredor de serviço e subo pela escada o mais rápido possível, para não ter que me deparar com nenhum outro membro da família. O quartinho do terraço está com a porta aberta, porque não tem janela. Hernán está sentado de costas, tocando a guitarra de forma muito suave. Canta baixinho: cuida bien al nino, cuida bien su mente, date el sol de enero, dale un vientre blanco, date tibia feche de tu cuerpo…2 Vim devolver os sapatos da Cinderela. Ele se vira para mim, mas fica mudo, me encarando, com os olhos brilhantes. Sorri, levanta como uma onda e me abraça, ainda com a guitarra na mão. Conversamos por mil horas, sentados no tapete, encostados na parede. Em um canto vejo uns vidros com parafusos e umas latas de tinta vazias abandonados. Uma luminária, feita com uma garrafa de uísque de cerâmica e com a cúpula de tecido indiano, está ligada em uma torre de benjamins. Quarenta centímetros depois da luminária não dá para ver mais nada. O chão de tábuas corridas meio podres é coberto com restos de tapetes velhos. Sobre um alto-falante há uma Bíblia com um canivete em cima. Hernán fala pouco e em tom doce, com um pouco de sotaque chileno – porque quando criança morou em Santiago –, mas os seus olhos de lobo dizem quase tudo. O cabelo é comprido, preso atrás das orelhas, liso e castanho. As sobrancelhas são retas como duas lagartas peludas que quase se beijam. Perto dele, sinto uma espécie de rumble em câmera lenta, uma vibração que me faz cruzar as pernas e apertar a costura da calça ali embaixo. Peço um cigarro só para sentir seus dedos, mas não o olho nos olhos, porque acho que ele vai perceber. Ele toca guitarra e canta músicas em português, dedilhando as cordas com suavidade. Fecho os olhos e o imagino nu. Quando me dou conta, já passam das seis. Saio correndo de repente, como se a polícia estivesse me perseguindo. Mas quem me persegue é Hernán, que insiste em me acompanhar, mesmo que tenhamos de tomar um ônibus, um trem e ainda andar dez quadras para chegar ao internato. A gente discute isso no ônibus, falo para ele: depois na volta você vai querer se matar. Corremos até a avenida Las Heras para pegar o 59. Vamos

apertados no fundo. Sinto seu cheiro. Tomara que eu ainda esteja com o perfume de jasmim que coloquei depois do banho. Se você não me deixar ir, eu me mato, diz Hernán. Começamos a namorar no trem. Ele me dá um beijo que começa em Chacarita e dura até Villa del Parque. Quando salto do trem, minhas pernas tremem, mas olho nos olhos dele e rimos. Andamos abraçados, cegos de amor, nos beijando até a esquina do colégio. Chego no internato bem a tempo de comer com as meninas e contar tudo durante o jantar, um ensopado de lentilhas que só tem lentilhas. Quando falo de Hernán, digo que ele terminou o segundo grau no ano passado e que vai ficar parado uns meses antes de começar a estudar de novo. Mas a verdade é que ele ainda deve quatro matérias do quinto ano e tem que passar em dois meses. – Ele quer ser músico e leva isso muito a sério. Ensaia todos os dias um montão de horas. Também conto que ele está compondo uma música para mim. Não é verdade, mas eu adoraria. Como as meninas estão babando, continuo falando, dizendo qualquer coisa: ele me trouxe de carro até a esquina do colégio, dirigindo.

Depois vou para a cama rezando para que a quarta-feira chegue logo e me toco tão devagar que nem sequer espero as meninas dormirem. É incrível a habilidade que se desenvolve para certas coisas quando se divide o quarto com tanta gente. Nas duas quartas-feiras seguintes, meus pés me levam sozinhos até a casa de Hernán. Ele está sempre com o irmão, Edi, que é um pouco mais velho, ensaiando no quartinho de cima. Sento e escuto, tentando não fazer cara de groupie. Não é difícil, porque não são muito bons, principalmente Edi, que canta muito mais alto do que pode e parece que vai chorar. Como o lugar é muito pequeno e as guitarras são estridentes, também não dá para entender bem a letra. Mas adoro estar com eles. O jeito deles de serem irmãos me deixa à vontade: não se amam nem se odeiam, cada um na sua. Por isso, quando me passam o baseado, aceito. Eu já tinha notado que era de formato diferente do cigarro, mais parecido com o fuso da Bela Adormecida, e que se pegava de outro jeito… mas não que se fumava de outra maneira. Saco isso um segundo antes de que se apague. Edi diz para eu franzir a boca, aspirar e segurar bastante o

ar, como se aspirasse por um canudinho, prendendo nos pulmões, mas começo a tossir. Dou um tapa no peito com a palma da mão e tento de novo. Puxo a fumaça bem fundo e para trás, prendo uns segundos nos pulmões com a boca fechada e começo a soltar o mais devagar que consigo, mas outra vez começo a tossir como uma tuberculosa, pior que antes. Demoro para melhorar. De tanto me sacudir tossindo, uma brasa cai em cima da jaqueta de náilon acolchoada e, em menos de um segundo, abre um buraco de meio centímetro, por onde se vê o enchimento. Passo o baseado para Hernán, com lágrimas nos olhos. Ele me olha com um sorriso maroto. Morro de vergonha, mas rimos, primeiro disso e depois de qualquer coisa. Meus dentes parecem sujos e as pálpebras pesam como cortinas de chumbo. Baixo os olhos e mergulho no desenho do tapete. O ritmo louco da sua geometria e a vibração das cores no escuro, verde, azul, cereja? Estiveram sempre aí? Estico a mão para tocá-los e, com a ponta dos dedos, sinto o carinho de cada pelinho. Os garotos cantam uma música triste. Edi desafina mais ainda e Hernán toca guitarra, sentado numa cadeira, com a cabeça caída, pendurada para frente, como num transe. Meu corpo treme todo e, para disfarçar, me enrolo como um novelo e me jogo sobre o ninho de suéteres e casacos perto do canto, mas começo a bater os dentes. Tremer me dá medo. Medo me dá taquicardia, e taquicardia, paranoia. Eu me estico e sento bem reta, para me recuperar um pouco. Tomo ar, olho o tapete mágico outra vez e ele salva minha vida. Debruço sobre os triângulos empilhados e invertidos da sua beirada persa e recupero o ritmo cardíaco. E sinto a cor nas bochechas, como uma tinta rosa que se dissolve numa xícara de água. Visto o casaco e paro de tremer, mas o frio vem de dentro, como se tivesse deixado a porta do coração aberta. Depois de um solo de guitarra interminável, a voz de Edi volta a soar. Ele canta salta rabia de aquí. Meu batimento acelera só em pensar. Estou com vontade de chorar. Me arrependo de ter fumado. Não gosto do que sinto. Vai demorar para passar o efeito? Mas Hernán me passa o baseado outra vez e fumo de novo. Pego com a ponta dos dedos, porque está muito pequenininho, e queimo o lábio. Hernán o beija, para sarar. Como todas as pessoas altas, as costas dele são um pouco curvas. Ele abaixa a cabeça para me dizer: não ia ter graça se você não fumasse. Daí em diante tudo começa a passar muito devagar. Cada música dura uma eternidade, ao contrário dos cigarros, que não duram nada, e

acendemos o novo com a guimba do que apagamos. Eu tinha medo de que o baseado funcionasse como um soro da verdade, que pudesse me fazer dizer ou fazer coisas reprimidas, perder o controle, fazer loucuras como ficar nua em público ou me tocar na frente das pessoas. Ou mesmo que me deixasse idiota como deixa Edi, que às vezes fuma tanto que fica imprestável. Outras vezes fica genial e recita umas visões apocalípticas do mundo, que improvisa com a guitarra, tocando com dois dedos, deitado no chão. Fala de drogas, de traficantes, de Búzios. De morar numa praia – fala praia em português –, descalço o dia todo, comendo frutas e peixes – fala peixes em português também – e fazendo sexo com todas as pessoas de quem você gosta. Fala muito em sexo. Eu sorrio como se entendesse, mas na maioria das vezes não sei do que ele está falando. As pessoas acham que sou muito mais velha do que sou. As seis horas da tarde sempre chegam de repente e vivemos correndo atrás do ônibus para não perder o trem. Hernán me acompanha todas as quartas-feiras de volta ao internato. Quando a gente chega à esquina, ficamos de cócoras encostados atrás de uma árvore, escondidos entre a escuridão e a cerca frondosa do terreno baldio. Nos beijamos como se não fôssemos nos ver nunca mais na vida. Dizemos te amo te amo te amo e nos apertamos e nos soltamos e nos apertamos de novo. Depois, corro o meio quarteirão até a entrada do colégio e Hernán volta as dez quadras até a estação, para esperar o trem para Buenos Aires que, em uma hora ou quarenta e cinco minutos, dependendo da estação em que ele saltar – Retiro ou Palermo –, vai levá-lo para casa. Para mim, esse gesto de entrega absoluta é normal, porque eu também não tenho nada melhor para fazer do que estar com ele, e espremo os segundos até a última gota. Não há nada que aterrorize mais Hernán do que o serviço militar. Está desesperado. Há meses procura algum profissional que encontre algo nele que o salve. Um tímpano perfurado, uma escoliose, o que for. Não se importa se o dispensarem por ser homossexual, embora diga que não gostaria que ficasse anotado para sempre, na carteira de reservista, as letras AD, que querem dizer ânus dilatado. Hoje ele não pode me levar de volta a Bellavista, porque tem hora marcada com um otorrino. Vai com a mãe, que o apoia incondicionalmente e consegue para ele médicos e consultas com a mesma seriedade que se ele

tivesse que fazer um transplante de órgãos. Lá em casa é o contrário. Quando Arturo foi dispensado, meu pai ficou decepcionado. Embora lamentasse o ano que o recrutamento o faria perder, também considerava que, às vezes, um pouco de rigor ajudava a endireitar a pessoa. Mas na casa de Hernán eles veem a coisa de um modo muito diferente. Têm medo de militares. Meu pai diz que o mais perigoso deles é que são meio energúmenos. Penso que seria bom aproveitar que Hernán vai ao médico para fazer uma visitinha à minha mãe, ainda que seja por um pouquinho, mas, no fim, fico no terraço conversando com Edi. Ele me conta que se livrou do serviço militar por excesso de contingente, graças a um ritual de umbanda do qual participou com um pessoal do Tigre. Tira umas fotos minhas, com uma máquina nova, que comprou com uns travellers checks falsos. Fala que seu pai conseguiu um trabalho para ele numa agência de propaganda, só que de boy. – Bem – eu falo –, com o tempo você sobe na carreira. – A verdade é que com o tempo prefiro é receber sem trabalhar, já que eles são amigos do meu pai. Não sei como consigo me atrasar tanto. Ainda por cima, o trânsito está horrível, porque fecharam a Libertador. Quando chego ao Retiro, já são quase oito e meia da noite. O trem está parado no fim da plataforma, pronto para sair. Corro os cem metros sem parar, com a bolsa abraçada no peito. Quando subo no estribo, o trem já começou a andar. Só não o perdi porque não tinha a barreira de guardas pedindo as passagens antes do embarque. Bem na hora de me agarrar no corrimão e tomar o impulso para entrar no vagão, escuto o silvo de um apito. Procuro com os dedos o bilhete de ida e volta que está no bolso e o encontro, mas continuo em frente, andando nervosa pelo corredor, como se não o tivesse. Os puxadores das portas estão tão frios que os dedos grudam, o que me dá rumble, como ao tirar gelo das formas de alumínio quando estão congeladas. As portas são corrediças, mas, como estão fora de esquadro, pesam como um morto. Um assobio potente, que parece que vai me fazer voar, se infiltra pelos foles. Sento no primeiro vagão de fumantes que vejo. Por sorte, as lâmpadas estão quase todas queimadas. Faz muito frio. Só há um casal mais velho numa das pontas. Pelo menos é o que parece, pois são um vulto no escuro, um vulto só com o brilho de dois pares de óculos. Me encolho em um

assento no meio do vagão, junto a uma das janelas da direita. O vidro está embaçado e a água escorre. Limpo com a mão e depois não sei onde secá-la. Do chão sai um som áspero e o encosto do assento da frente está todo escrito. A imitação de couro marrom foi arranhada com alguma coisa pontuda e diz: chupo bocetas, Gladys e um telefone. Na escuridão dos trilhos entre as estações não dá para ver, mas em cada nova estação o telefone de Gladys se acende de novo. Há também uma costura no assento, um sete grande bordado com pontos de cirurgião, que me faz lembrar meu pai. Tento não ficar triste e repito quatro vezes logo, logo vamos estar todos juntos em casa de novo. Não sei o que vou dizer para a irmã Regina por chegar a esta hora, quando já terminaram o jantar. Que uma mulher se atirou debaixo do trem em La Paternal e fecharam a estação por três horas. Ou que o trem descarrilou em El Palomar, em frente ao Colégio Militar. Ou alguma coisa menos violenta, como, enquanto visitava minha mãe na clínica, encontrei meus irmãos. Ou melhor, meu pai, meu pai pessoalmente, já que ela o admira tanto. Mas essa não é uma boa ideia, porque ela pode querer ligar para ele. Em cada estação, olho a hora sempre precisa no relógio da plataforma, um quadrante grande – que não sei por que se chama quadrante se é redondo – com os minutos bem marcados com listras grossas. Leva de cinco a sete minutos de uma estação à outra, mas as onze que há até Bellavista parecem setenta. Morro de vontade de fumar, mas acendi o último cigarro pelo filtro, quando estava no terraço com Edi. Fiquei nervosa quando ele tirou fotos de mim, mas, se quero ser atriz, melhor ir acostumando. Ainda não sei, na altura de Santos Lugares, o que vou dizer à irmã Regina quando chegar no colégio. Não tenho certeza se é bom dizer que testemunhei um crime ou que me roubaram a carteira no ônibus. Também não sei onde trocar de roupa o mais rápido possível, se no banheiro da estação ou no bar da frente. Os dois são nojentos, um pântano imundo. No bar da estação está Pulpo, esparramado na porta. Que deprimente. Perdeu as pernas. Estava bêbado no dia do seu aniversário e caiu do trem. Com o frio que faz, nem o bar deve estar aberto. Vou ter que atravessar a rua e entrar na pizzaria. Entrar vestida de um jeito e sair de outro, debaixo da luz fria, com o cheiro de gordura e cebola, todos aqueles caras jogando bilhar… Tenho que ir direto para o banheiro com a cabeça

baixa e sair sem olhar para ninguém. São três minutos. É o tempo que vou levar para tirar a calça boca de sino e os tamancos vermelhos de verniz – meus chapins –, vestir o jeans e calçar o tênis. Posso ficar com o suéter de lã de lhama com bordado inca, assim como com a jaqueta jeans da wrangler, forrada com pele de cordeiro, que eu mesma bordei com girassóis e estrelinhas coloridas. A bolsa de couro, cruzada no peito a tiracolo, era de Arturo, e a boina basca, do meu pai. O vagão está quase vazio. Só estamos eu e o vulto de óculos, três bancos atrás de mim. Mesmo assim, e apesar de estar escuro, não tenho coragem de trocar de roupa aqui. A porta pode abrir de repente e entrar alguém. Ainda bem que resolvi isso, porque, em Hurlingham, entra um sujeito malencarado, que senta à minha frente, um pouco mais adiante. Ele deixa a porta aberta e se joga no assento com tanto peso que se ouve o chiado do ar saindo do estofado por todo o vagão. Pega um lenço amassado, assoa o nariz e espirra, como se estivesse sozinho no mundo. Levanto e saio do vagão, embora ainda faltem duas estações. Ando para ganhar tempo, porque em Bellavista é melhor saltar o mais à frente possível. A saída da estação que me deixa mais perto é a última, a do final da plataforma, onde fica o bar. Cada minuto conta. Ando o trem todo, com passos largos e seguros, sacudindo um pouco as portas, meio nervosa. Chego ao primeiro vagão, o que fica atrás da locomotiva. Sigo em frente e paro na última saída, cujas portas estão abertas. Faz muito frio, mas nos últimos minutos antes de chegar a Bellavista desço até o estribo. Fico agarrada ao corrimão com o vento batendo no rosto para me animar, porque o vento sempre me dá vontade de vencê-lo e isso me torna mais forte. Por isso, eu os vejo logo, antes que o trem freie completamente e mal o apito da passagem de nível comece a soar. Klonklonklonklonklom. Uma fila de soldados do exército está formada, de uma ponta à outra da plataforma, com os fuzis no alto, sobre o peito. Um a cada três metros, todos com o capacete verde e a roupa de combate. Há uma operação militar na estação. Vou chegar mais atrasada ainda. Como Bellavista termina num dos limites do Campo de Mayo, onde alguns destacamentos do exército têm sua base, é muito comum ver passarem caminhões militares ou um jipe com soldados. Para ir a San Isidro ou Maschwitz, tem-se de atravessar o Campo de Mayo por dentro.

Uma vez eu estava com meu pai e demos carona para dois paraquedistas, que nos fizeram sinal porque tinham sido jogados do avião de qualquer jeito. Só o paraquedas de um deles já encheu o porta-malas todo do carro, mas o soldado disse que era porque estava mal dobrado. A convivência com o exército no bairro é normal. Muitos dos vizinhos são militares, então ninguém estranha que o exército pare em algum lugar para pedir documentos a civis. Com o mesmo gesto mecânico com que se procura o bilhete de passagem quando um guarda sobe, enfio a mão na bolsa procurando minha carteira de identidade, sabendo que não estou com ela. Perdi no ano passado e já fui tirar outra via, mas ainda não entregaram. A única coisa que tenho é o protocolo, um papelzinho com um número e um selo, que certifica que o processo para a emissão da segunda via do documento está em trâmite. Mas também não está comigo. Ficou guardado no armário do colégio, dentro de uma lata de ramas de chocolate. Quando o trem chega à estação, fazem com que todos os passageiros desçam, inclusive os que saltariam em estações seguintes. Um senhor com muletas se queixa: este é o último trem do dia que para em Manzanares. Como vou voltar para casa agora? Os postes de iluminação da plataforma estão desligados. A única luz é a da luminária de teto do largo corredor que liga a saída principal da plataforma com a rua atrás da estação, onde ficam um ponto de táxi e umas pracinhas. Além dessa lâmpada, o resto está deliberadamente às escuras. As sombras escondem soldados por todos os cantos. Vamos até a luz e nos organizam em fila, no corredor que dá para os fundos da estação, onde os caminhões e os carros da operação estão estacionados. A persiana do guichê de venda de passagens está abaixada. Não há mais nada na plataforma de chegada, nem sala de espera nem quiosque, como há na plataforma da frente, embora esteja tudo fechado lá também. É uma passagem, uma saída rápida, um lugar perfeito para surpreender uma pessoa desprevenida. Alguns soldados sobem no trem vazio e o vasculham pelos corredores de ponta a ponta. As sombras das silhuetas com capacete e fuzil se recortam pelas janelas dos vagões, como num filme de guerra. Formamos uma fila na frente do ponto de táxi. Quando passo, olho o relógio da plataforma, acima de uma Virgem de Luján de gesso: são cinco para as dez da noite. A irmã Regina vai me matar. Um baixinho atarracado e de bigode acompanha em silêncio outro milico, que vai pedindo documentos a todos da fila, um por um. Os dois

estão de pé, embaixo do único poste com luz. O que olha os documentos mantém a cabeça baixa e a sombra do capacete tapa metade do seu rosto. Quem mostra o documento vai embora rápido e some na escuridão. Aqueles que não têm documento são mandados para a outra fila, que vai se formando junto ao paredão. Quando chega a minha vez, antes que me peçam qualquer coisa, digo ao bigodudo: eu vou explicar. Neste momento soa o apito do trem e ouve-se a locomotiva indo embora. Ficamos mais sozinhos ainda. O soldado que verifica os documentos levanta a cabeça para me olhar, mas é o baixinho atarracado de bigode que fala: – Se não tem documento, vá para a outra fila. Com o mesmo tom que eu usaria para parar alguém na rua e surrupiar-lhe alguma coisa, essa mistura de simpatia e civilidade, digo: – Acontece que eu sou interna no colégio da irmã Regina, a algumas quadras daqui, e o papelzinho do documento ficou lá. Na verdade, é o protocolo, porque minha mãe lavou o original na máquina de lavar roupas. Mas eles nem se alteram. Acho que meus tamancos vermelhos de verniz e minha jaqueta bordada não me dão aspecto de interna da irmã Regina. Mas estou falando a verdade. Eles têm que acreditar em mim. O baixinho atarracado de bigode me manda para a fila do paredão e pede o documento da garota grávida que está atrás de mim com o namorado com cara de policial. A irmã Regina vai me assassinar. Somos seis ou sete pessoas em pé, a um metro uma da outra, com os braços cruzados, à exceção de uma velha com duas sacolas grandes que fala sozinha, em voz alta: milicos filhos da puta e puta que os pariu. Atrás dela, dois operários, de ar muito humilde, estão quietos e silenciosos, olhando o chão com insistência, um deles de bicicleta. Eles têm documento, mas os puseram nesta fila porque estavam em um vagão jogando cartas, meio bêbados. A poucos metros, um soldado armado com um FAL nos vigia. Bernardo sabe de cor todo o equipamento que o exército argentino usa e consegue desenhá-lo com perfeição; é igualzinho ao do cara que aponta para nós, a dois metros de distância, com o rosto escondido debaixo da sombra do capacete. – Desculpe, senhor… – digo, para começar um diálogo. Mas, com dois monossílabos, ele me manda ficar quieta no meu lugar. Insisto: me escute. Preciso explicar uma coisa. Pode me ouvir, por

favor? Ele vira a cara para o outro lado e olha para o nada. A irmã Regina vai fazer um Túpac Amaru de mim e depois me cortar em pedacinhos. A cada minuto que passa, em pedacinhos menorzinhos. E vai ligar e contar para meu pai. Coitado do velho. E tudo por causa desses milicos de merda que veem guerrilheiros por toda parte.

Tenho que sair daqui quanto antes. Alguns metros mais à frente, onde começa a praça com um parquinho infantil, dois caras parecem ser os que dão as ordens. Em vez de fuzil, carregam umas pistolas na cintura, com um correame de couro cruzado no peito. Sobre o bolso têm uma insígnia, que Bernardo também sabe desenhar muito bem, mas não lembro a que patente se refere. Sargento? Capitão? Major? Mesmo que soubesse, não tenho a menor ideia de qual é a mais importante, mas dá para ver que são oficiais. Um deles é o baixinho atarracado de bigode, que tem um walkie-talkie na mão. O outro é um gordo sem pescoço, com um sobretudo azul-marinho. Estão com um casal de estrangeiros, dois velhinhos brancos como a neve, que explicam, em um castelhano muito rudimentar, que tinham de saltar em Hurlingham. Das sete pessoas que estavam comigo, três já foram embora. As outras foram levadas num caminhão. O vento para de repente, mas faz um frio de doer. Vários caminhões transportadores de tropas e jipes do exército ainda estão estacionados no ponto de táxi. Um ford fairlane azul com teto de vinil preto está estacionado na calçada da frente. Meus pés e mãos estão tão gelados que dou um abraço em mim mesma e me mexo para não congelar. O ar que expiro sai como uma baforada de fumaça. Ninguém fala com ninguém. A velha com as duas sacolas já está lá na esquina, indo para casa. Olho para ela e me passa pela cabeça que poderia estar levando cinco quilos de maconha em cada sacola, mas a noite a engole. Cada minuto em pé, encostada nesta parede, é um minuto que desperdiço da minha corrida para o internato. O oficial baixinho e atarracado de bigode se aproxima da fila com o gordo de sobretudo. Tento parecer calma, mas estou nervosa e dá para notar. – Olhem – digo –, eu moro a dez quadras daqui, no colégio da irmã Regina. O protocolo da minha carteira de está lá. Quer o número? Eu sei de cor. 14.882.588. Além disso, sou daqui, de Bellavista. Acontece que minha

família se mudou para Buenos Aires. Mas sempre fomos daqui, a vida toda. Meu pai é o doutor Belaúnde. Não conhece? Aqui todo mundo o conhece, pergunte a qualquer um… O de sobretudo olha para mim, mas não diz nada. O baixinho fala comigo, sem olhar nos meus olhos. – A senhorita não pode circular sem documento. Vai ter de nos acompanhar. – Mas não, não posso acompanhar o senhor, porque fecham o portão do colégio às dez. Se eu não chegar antes, a irmã Regina me estrangula. Pergunte de mim a qualquer pessoa da cidade. Todo mundo conhece a minha família. Meu pai é o doutor Belaúnde. Tenho vergonha de dizer isso, mas sai sem pensar. O de sobretudo olha para o baixinho atarracado de bigode e nega com a cabeça. É o único que usa sapatos pretos sociais, em vez de botinas militares. A borda das íris é imprecisa, como se estivesse turva. Acho que isso acontece com os alcoólatras. O baixinho de bigode me diz: – Sem documento, não podemos deixá-la ir. São mais de dez da noite. A esta hora, não pode circular sem documento. – Mais de dez? Já fecharam o portão! Vão me matar! – Infelizmente, vai ter de nos acompanhar, até averiguarmos sua identidade. – Vamos fazer uma coisa. Levem-me até o colégio, eu vou junto, desço, apanho o papelzinho e mostro. São só dez quadras. Faz cada vez mais frio e não tem mais quase ninguém. O de sobretudo me olha sério e diz: tire tudo de dentro da bolsa e ponha em fila no chão. Não acredito como esse cara é pentelho. Eu me agacho e ponho a bolsa no chão, com raiva, para que vejam que estou de saco cheio. Tiro a carteira, o maço de cigarros vazio, uma caixinha de fósforos, um lápis de olho, um brilho todo grudado de tabaco, uma revista El Tony, um envelopinho de açúcar de um bar, a outra calça e o tênis. Deixo a cartela de anticoncepcionais para o fim, porque tenho vergonha. Coloco tudo arrumado no chão, em uma linha de um metro e meio de comprimento, e fico em pé do lado. O de sobretudo se aproxima e olha as coisas uma por uma. Quando vê os anticoncepcionais, pergunta-me quantos anos tenho. Tem um olhar de javali. – Catorze.

– Parece mais. Não tenho nenhuma vontade de dar uma de simpática nem de explicar nada. Não sei se por causa do frio ou do quê, mas começo a tremer. De repente, ouve-se uma voz metálica que sai de algum aparelho de dentro do fairlane. A porta do motorista abre e outro cara desce. Caminha rápido em nossa direção, fechando o casaco com os braços cruzados sobre o peito. Fala alguma coisa no ouvido do gordo de sobretudo. Ele entra no fairlane com o outro e vão embora. Assim que o carro faz a curva e passa a barreira dos carros militares, recupero um pouco o ritmo cardíaco, mas me sinto como se tivesse me salvado de cair num poço. Alguém tem que acreditar em mim e me deixar ir embora. Alguém tem que me escutar. Os últimos soldados voltam em silêncio da plataforma, mas fazendo muito barulho ao andar. Sobem nos caminhões e vão embora. Quando os caminhões saem, vejo um soldado com três pastores-alemães presos por coleiras curtas. Como o nervosismo dispara a minha verborragia, pergunto ao oficial de bigode se esses pastores-alemães não são do gringo O’Farrell. – Conhece o Gringo? – pergunto. – O do canil de pastores? Era meu vizinho! Eu morava na casa ao lado, até que ele teve que se mudar para uma casa maior, por causa dos cachorros… O baixinho de bigode me olha de repente nos olhos. – Fernando? – Esse mesmo, Fernando O’Farrell, que jogava rúgbi com o meu irmão. Acho que ele é treinador, não é? E May, a mulher dele, foi minha professora de inglês o primário inteiro. Ligue para ela e pergunte de mim. Ela me adora! Exagero um pouco. May me deu umas duas aulas, e faz mais de sete anos. Nem tenho certeza de que se lembraria de mim, mas digo com convicção: ligue para ela e vai ver como me conhecem. Ele me faz subir na cabine de um dos últimos caminhões que ficam. Me coloca sentada no meio, entre ele e o motorista, um soldado com cheiro de gasolina, e me levam até o colégio. No caminho, falamos de cachorros. Conto que tivemos um pastor capa preta em casa que jogava futebol. Quando chegamos ao colégio, o que dirige o caminhão salta e abre o portão da entrada. Está tudo escuro e silencioso. O sujeito sobe de novo no caminhão e entra devagar, com o farol alto,

pelo caminho de cimento. Freia no meio do pátio, iluminando toda a galeria do fundo, como se fosse de dia. O ronco do motor quebra o silêncio. Um minuto depois, algumas luzes se acendem. Agora se podem ver os prédios, o pátio, os canteiros de rosas e a irmã Regina, com a irmã Paulina e duas outras freiras que não reconheço, porque estão de camisola. Me sinto na cena da A Noviça Rebelde quando os soldados chegam no convento. O tio Rolo sempre diz que me pareço com Julie Andrews. Antes de saltar do caminhão, digo ao de bigode que me espere, que vou buscar o papelzinho. Ele diz que não precisa e que eu tenha cuidado, porque é muito perigoso andar à noite sem documento. Dou um beijo na bochecha dele, mas ele se esquiva para trás, porque não estava esperando. Aceno com a mão para o motorista e digo obrigada, mas ele nem olha para mim. O bom de tudo isso é que não preciso inventar nenhuma desculpa para a irmã Regina, porque não me dirige a palavra. Vou direto para o quarto e me meto na cama. Uma freira vem atrás de mim. Ela vai ficar até de madrugada sentada numa cadeirinha ao lado da porta, vigiando para que eu não fale com ninguém. Sandra e Tita estão acordadas, mas dormem antes da freira. Durmo ouvindo as batidas do meu coração, como marteladas numa chapa de zinco. Arturo vem me buscar de manhã. Está vestido com a jaqueta de lã de camelo. A irmã Paulina me devolve o vidrinho do air du temps na caixinha de pano amarelo. Ela me dá um abraço e diz: vai com Deus. Arturo veio me buscar sozinho, dirigindo o falcon verde do meu pai. O único lugar disponível de um dia para o outro foi a casa do tio Rolo, em Buenos Aires. Meu pai acha que meu tio é um pouco esquerdista demais e não gosta do seu estilo. Mas eu adoro. Na casa dele você pode acordar tarde e fumar, mesmo só tendo catorze anos. Eu poderia ficar morando lá uns dois meses, até que nos entreguem a casa de Bellavista, que está invadida pela tribo de foragidos, que é como minha mãe chama a família com nove filhos que a aluga há quatro anos. Procurei um colégio em Buenos Aires, mas nenhum me aceitou a dois meses do fim das aulas. Como acordar às seis para chegar às oito no colégio em Bellavista é inumano, deixei de ir. Mas, por culpa de um mal-entendido – um trâmite que segundo a irmã Regina eu deixei de fazer –, o colégio continuou me considerando uma aluna normal e em quinze dias meu limite de faltas estourou. Agora, para passar de ano tenho que fazer as provas como aluna livre.

Isso quer dizer por sorteio. Não é que a banca examinadora faça perguntas soltas sobre os temas mais destacados do programa. Com o sorteio, qualquer capítulo menos importante pode cair, e você tem que desenvolvêlo como se fosse a invenção da roda, porque toda pergunta vale pontos. Dá no mesmo saber as quatro partes do neurônio ou o funcionamento do aparelho digestivo, com seus milhões de órgãos. Mas eu preciso provar para meus pais que mudei, que não sou mais a irresponsável de sempre. Recuperar as treze matérias é difícil, mas não impossível. O importante é me organizar bem. O melhor é preparar sete matérias para prestar exame em dezembro e seis em março, além de obviamente contar com a possibilidade de deixar duas para o ano que vem. Não é grande coisa. Eu fui bastante bem em algumas matérias durante o curso e não vai ser muito difícil passar nelas, porque é mais questão de revisar do que de estudar. Para as seis ou sete matérias em que a coisa está realmente feia, tenho quase seis meses pela frente. Estudando três matérias por mês, chego lá maravilhosamente. Além disso, o tio Rolo disse que ia me ajudar. O problema é que ele nunca está. Trabalha em um escritório de arquitetura e volta sempre depois do jantar. Ficou viúvo há alguns anos, quando sua mulher morreu de tétano depois de furar o dedo numa rosa. Ele tem uma filha, minha prima Ana, que conheci há poucos anos, porque antes eles viviam no campo. Ela é quase três anos mais velha do que eu e milita no partido comunista há dois, desde os dezesseis, e não fala de outra coisa. Também trouxeram do campo uma índia que masca tabaco e é quem cuida da casa. Tem o nariz chato e curvado como o de uma anta. Ela me acha estranha porque não lavo a minha roupa, a não ser a calcinha, na qual passo uma água no banho. Acho que ela está esperando que eu deixe um jeans no tanque para me explicar como funciona a máquina de lavar roupa. O tio Rolo trabalha a semana toda e nos fins de semana não sai de casa. Se alguém vem visitá-lo, ele prepara almoços que começam tarde e não terminam nunca. Você pode ir e vir dez vezes que ninguém repara. Se ele não tem visita, fica o fim de semana inteiro enrolado num robe de seda com desenhos búlgaros de lágrimas que formam flores, sentado à mesa de jantar, em frente ao terraço que dá para a avenida de Mayo, tomando café, lendo os jornais e jogando paciência enquanto escuta discos de jazz e fuma cachimbo. – O seu velho era um cara engraçado, depois não sei o que aconteceu.

E a sua mãe está completamente louca, como sempre foi… Quando ele diz essas coisas, penso que é uma pena eu ser filha da minha mãe, porque estaria muito melhor na família sendo filha do tio Rolo. Mas a possibilidade de me parecer com minha prima ou de tê-la como irmã me tira um pouco essa vontade. Ela estuda antropologia na UBA e não perde a oportunidade de comentar que na faculdade todos dizem que meu pai é um fascista. Ela toca violão e canta canções de protesto proibidas, enquanto o namorado a olha embasbacado. Ele estuda medicina e só pensa em ficar sozinho com ela para brincar de médico. Fica pegando o tempo todo nas suas duas trancinhas longas, espessas e latino-americanas. Quando está com seus amigos, Ana se esforça para me deixar desconfortável e acha que me ofende contando piadas sujas de freiras ou dizendo barbaridades sobre a verdadeira relação de Jesus com Maria Madalena, para se fazer de herege. – Todo mundo sabia que ela era puta, né? Por isso não sinto nenhum remorso quando tiro dinheiro dela da caixa de xadrez do vovô, onde estão poupando cada moeda que sobra para irem de mochilão para o Sul no fim do ano. Também não tenho grandes problemas para ir e vir a qualquer hora, porque ninguém me pergunta nada. Saio de manhã, pouquinho depois de levantar, e volto à noite, um pouco antes de o tio Rolo chegar. Se cruzo com ele, digo que acabei de chegar da casa de uma amiga, onde fui estudar, e, como é exatamente o que quer ouvir, ele acredita. Nunca falha. Mas fico o dia todo com Hernán, dando voltas pela rua ou enfiados no terraço, até que anoitece sem a gente perceber. Seu irmão Edi conheceu uns garotos de Ramos Mejía que estão montando uma banda e aparece cada dois ou três dias, de óculos escuros, com os novos amigos. Passa para pegar alguma coisa e volta a sair. Ele levou as guitarras e os equipamentos, porque eram seus. Hernán, manso e tranquilo, nem pensa em discutir. Incapaz de brigar com alguém, passou para o violão e retomou uma velha paixão: o desenho. Hernán desenha como canta, pequenininho e suave, e registra cada pedaço do quarto em um bloco de papel canson com um lápis macio. Ele me desenha sentada na única cadeira existente ou deitada no tapete mágico. Copia a beirada persa dos triangulozinhos da sorte e registra minhas mãos e meus pés ossudos, assim como os olhares de amor que eu lhe lanço cada vez que ele levanta os olhos do papel. Ele me desenha como as moças de

Modigliani, com o nariz grande e os olhos amendoados, e depois faz as meninas de Modigliani, mas com minha franja lisa e os meus cachos caindo sobre os ombros. Antes de me desenhar ele olha para mim, concentrado. Seus olhos de coiote percorrem meu rosto oval, a forma da cabeça, a curvatura dos ombros. Ele não me olha nos olhos, olha os meus olhos. Uma, duas, três vezes, e nós rimos. Quando ele olha meu nariz, me sinto Cyrano de Bergerac. Quando olha meus lábios, as comissuras tremem e me dá água na boca, como se eu estivesse pensando em uns churros com doce de leite. Depois ele olha meu pescoço e me derreto, e olha minha camiseta sem disfarçar e sinto o bico dos seios ficar duro. Minhas axilas ficam úmidas com um suor quente e cheirando levemente a cebola. Eu mal respiro, e esfrego os dedos dos pés contra a sola das botas. E tento não pensar tão forte, porque tenho medo de que ele leia a minha mente. À noite me deito na cama e fico horas acordada, relembrando tudo como em um filme: o brilho do seu topete castanho quando me abriu a porta, o cheiro de ferro de passar da sua camisa liberty de florzinhas e sua maneira lânguida de andar, mexendo-se como a chama de uma vela. Penso nos seus dedos tocando violão e pegando o lápis e quero que me toquem. E quero ser a seda do baseado dele! Eu gostaria que Hernán me perguntasse se sou virgem para contar a história de Rafael, mas ele não pergunta, dando por certo que sou virgem. E, embora tecnicamente eu não seja mais, não tenho coragem de contar para ele, porque nem tenho certeza. Jogados na almofada do quartinho, nós nos beijamos e nos tocamos um pouco mais cada vez, tímidos e audazes, até que uma tarde, na hora da sesta – a sesta da mãe dele – nós fazemos pela primeira vez. Apressados pelo medo de sermos descobertos, cheios de roupa e numa posição impossível, conseguimos nos encaixar como o acoplamento da nave espacial Gemini 8 que vi em umas fotos da revista Life. O mesmo fundo preto e a Terra lá embaixo. Nos dias seguintes as coisas não melhoram. A irmãzinha de Hernán, procurando a tesoura, sobe para o terraço e nos encontra sem calças. Não sei se já disse que ela tem dois anos a menos que eu, mas parece minha filha. A mãe dele também nos visita às vezes com seu cocker anão, que mal te vê e se atira para cheirar entre tuas pernas, ou Edi, que aparece de

repente com seu amigo mexicano e ficam horas falando de coisas incompreensíveis e delirantes como eles. A ideia está no ar, mas nenhum dos dois se atreve a dizer em voz alta. Hernán tem medo de que eu seja das que pensam que se o namorado as leva para um motel é porque ele não as ama, mas nós nos amamos tanto que não temos dúvidas. Estamos em uma mesa junto à janela de um bar na avenida Cabildo comendo uma pizza, graças à generosa contribuição do pai de Hernán, que de tempos em tempos lhe manda dinheiro. Hernán pega um cigarro, olha a ponta dos dedos e depois me pergunta sério, mas divertido: o que vamos fazer para… para não ter bebês? Meu rosto fica vermelho como um extintor de incêndio e abaixo a cabeça, olhando pela janela para controlar a falta de ar. Do outro lado do vidro tem um grilo. Tomo isso como um sinal, mas não lembro se de boa ou má sorte. Não sei por que preciso juntar coragem para dizer isso depois que ele se atreveu a usar a palavra bebês, mas é difícil, e eu digo tão rápido que quase não se entende: estou tomando pílula. Hernán chama o garçom e paga com notas novas. Vamos para um motel, diz ele. Sinto uma fumaça morna subindo dos meus pés. – Consegui com um amigo do meu irmão que tem uma reveladora na avenida Rivadavia o endereço de um motel em Villa Urquiza onde não pedem documentos. Tomamos um táxi sem saber ao certo onde fica Villa Urquiza e passamos a viagem toda nervosos, controlando o taxímetro, sentados muito juntos no meio do banco de trás, acariciando os dedos um do outro. Não é muito longe. Primeiro passamos devagar pela porta e depois descemos na esquina e caminhamos uns vinte metros até a entrada, com o coração na boca. Na parede há um cartaz com letras desenhadas que diz Hotel Alojamento. É uma casa modesta como todas do bairro, a maioria de um andar só. Em frente há uma oficina mecânica. Hernán abre a porta para que eu entre primeiro. A recepção é forrada de uma imitação de mármore e cheira a inseticida. Somos atendidos por um senhor com uma careca de frade e uma camiseta que aparece por debaixo da camisa. Ele nos acompanha até a porta do quarto, andando na nossa frente. Eu me arrependo na hora por ter dito isso, mas deixo escapar: que calor, né? Fechamos a porta e rimos exageradamente, sentados na beira da

cama. O quarto é pintado de creme. Os móveis são de madeira envernizada e com pezinhos que ficam mais estreitos na ponta. Acima da cama, uma foto amassada de um entardecer na praia. Uma colcha gasta sobre os lençóis velhos cobre um colchão tão fino quanto um sanduíche de miga e, colado sobre a mesinha de cabeceira, há um cinzeiro tão feio que me custa crer que alguém poderia querer roubá-lo. O banheiro não tem sabão e a cortina de voal do quarto não bloqueia a luz das três da tarde que entra pela janela, através do pátio. O calor é insuportável, mas assim mesmo baixamos a persiana e nos tapamos até o pescoço com o lençol. Eu deito na cama de vestido. Hernán está nu, lisinho e macio como um cervo. Ninguém vai aparecer de repente. Não precisamos fazer silêncio. Então entrelaçamos os pés e os braços e o cabelo até que a maior quantidade da superfície da pele de um esteja colada na pele do outro e nos beijamos sem pressa, com a boca aberta e a ponta da língua. Duas horas depois, o alarme de um alto-falante artesanal grudado na parede anuncia o fim do período. Primeiro nos assustamos, depois rimos. Saímos apressados como se nos perseguissem, com a cabeça escondida e a pele avermelhada, abraçados como uma dobradiça e apaixonados como os últimos seres de um planeta perdido. Esperamos um táxi na esquina e um segundo antes de entrarmos nele os caras da oficina assobiam para nós. Nos últimos dois meses dessa temporada em que vivemos todos separados, meus pais alugaram um apartamento em Buenos Aires, até que os inquilinos nos entregassem a casa de Bellavista. Minha mãe deixou a clínica, porque custava uma fortuna e também porque o tratamento consistia em mantê-la dopada e até ela já estava farta de flutuar em uma bolha. Meu pai, totalmente recuperado, trabalhava como sempre, como uma máquina, sem parar. Do hospital tinha ido para a casa de um irmão, e, quando minha mãe saiu da clínica, os dois se viram de repente sem ter para onde ir, mas sem filhos, e alugaram um apartamentinho mobiliado de dois ambientes como se fossem outra vez dois jovens recém-formados. Como o apartamento fica perto da casa do tio Rolo, vou um sábado à tarde visitá-los. Meu pai não está e a minha mãe dobra um papel glacê verde sentada em frente a uma mesinha com duas cadeiras que eles usam como mesa de jantar. Sobre ela há um livro aberto em uma página dupla que mostra passo a passo como fazer uma rã dobrando um papel quadrado. O título é Tratado de papiroflexia superior. Não sei por que tenho vontade de que minha mãe me fale do colégio ou das matérias que tenho que

recuperar. Mas para minha surpresa ela termina a rã, faz com que ela pule e depois me mostra umas luvas de plástico rosa transparente que lhe deram em um restaurante para comer frango. Em vez de ficar contente porque minha mãe finalmente parece uma pessoa agradável, capaz de falar de coisas divertidas, fico com medo. Não me agrada que ela e meu pai se sintam tão confortáveis em uma vida que não tem a ver comigo nem com nenhum de meus irmãos. Certamente eles não veem a hora de virarmos adultos para que os deixemos um pouco em paz. Deveria ser proibido ter muitos filhos. Meia dúzia é inumano. A culpa é da religião, como diz minha mãe: ter todos os filhos que Deus te manda, quem teria uma ideia dessas? Você, lituana. E, embora nós todos estejamos cansados, sinto que nesses meses em que estivemos separados, sem saber quase nada uns dos outros, pela primeira vez sentimos saudade. A vida é brega assim mesmo. O único que eu vi foi Arturo, mas penso em Félix e em Bernardo e meus olhos ficam cheios d’água, e no fundo da minha alma tenho vontade de ver até Javo. Como Mercedes está longe, é como se não existisse. Nunca se fala dela, porque seus problemas sempre estão atrás de uma grande fila de problemas muito mais próximos, que precisam de solução urgente. É como se ela estivesse bem porque está longe. Meu pai lhe escreve cartas com o papel timbrado do Conselho, enviadas por sua secretária, e minha mãe manda encomendas com roupas de boa qualidade, como se nos Estados Unidos não houvesse casacos melhores do que os da loja Marilú. Mas a única coisa que eles querem é que ela não volte, porque seria um fracasso ter que cuidar de uma que finalmente saiu das asas deles.

(2) Cuida bem do menino, cuida bem da cabeça, dá a ele o sol de janeiro, dá a ele um ventre branco, dá a ele o leite morno do teu corpo…

***

Como tudo se aprende com a prática, Hernán e eu logo encontramos motéis cem vezes melhores do que o de Vila Urquiza, que saem quase o mesmo preço e ficam muito mais perto. Às vezes algum porteiro nos pergunta se somos maiores de idade, mas nunca pedem documentos. Por via das dúvidas, ando com uma carteira velha da minha prima que encontrei jogada no fundo de uma caixa e da qual troquei a foto. A questão do dinheiro está bem resolvida. Hernán trabalha pintando apartamentos e eu o ajudo. É um trabalho duro, mas vale a pena, ainda que a gente ande cheirando a solvente e com as mãos secas e ásperas e as unhas sujas. Eu cubro o chão com folhas de jornal e tampo os buracos das paredes com massa e uma espátula, e Hernán passa a lixa (que me dá rumble só de tocar) e depois pinta, cantando com o rádio. Somos bastante bons. Chegamos a pintar duas cozinhas, um banheiro e um apartamento de três ambientes em Belgrano que uma tia de Hernán tinha comprado. Mas um dia a tia chega de surpresa no apartamento vazio e nos encontra fechados no banheiro tomando banho juntos. Não a ouvimos porque levamos o gravador para o banheiro e estávamos cantando com Peter Frampton uh baby I love your way. No momento em que Hernán está dizendo que gostava mais dele quando tocava na Humble Pie, a tia abre a porta e fica nos olhando como se tivéssemos lepra; tapa os olhos com os punhos cerrados e uiva, como Édipo depois de arrancar os olhos. Saímos com o cabelo escorrendo e a roupa sobre a pele úmida. Ela nos expulsa indignada, sem nos pagar um centavo, embora já tivéssemos pintado mais da metade do apartamento. O pior vai ser se ela contar para a mãe de Hernán, que há algum tempo está esperando encontrar algum pretexto para me proibir de entrar na sua casa. Há menos de dois meses fez um escândalo por causa de um malentendido sobre uns desenhos. Ela subiu no terraço, viu a parede coberta de mulheres nuas com a minha cara e quase teve um infarto. Dramática como sua irmã, a tia do apartamento de Belgrano, ela deu um chilique. O que vocês acham que isto é, um prostíbulo? Hernán tentou explicar que não era eu que posava nua, mas as modelos do Estímulo de Belas Artes, aonde ia três vezes por semana estudar modelo vivo, e ela sabia porque era quem pagava. Também lhe mostrou o livro de Modigliani, de onde copiava nus. Mas a mãe disse: esta menina é menor de idade e seu pai é funcionário dos militares, você não percebe?

O caso do apartamento da irmã caiu como uma luva. Assim sendo, tudo o que ganhamos gastamos em motéis. Qualquer outro gasto nos parece jogar dinheiro fora. Sentar-se em um bar e comer um sanduíche é um desperdício; tomar um táxi, uma barbaridade. Foi um pouco mais difícil deixar de ir ao cinema, mas também deixamos. Não vimos nem Guerra nas estrelas. Os motéis se transformam no nosso santuário. Nossos favoritos são os novos, e, quanto mais acessórios têm, melhor. Nos mais antiquados, com piso de madeira, a cama com encosto de bronze e os quadrinhos na parede com desenhos de gordas nuas, nos sentimos como no quarto de um casal de advogados com vinte anos de casados e terminamos sempre encolhidos como dois ursinhos, criticando todos os detalhes da decoração, fumando um cigarro atrás do outro e cobertos até o pescoço com a mesma colcha que rejeitamos com nojo meia hora antes. Nosso motel favorito fica do lado da faculdade de economia, uma zona onde tenho que tomar cuidado para não cruzar com o meu pai, que às vezes anda por ali por causa da UBA. Nesse motel os quartos são muito pequenos, cubículos um pouco maiores que a cama, com espelho no teto e comandos com botões como em uma nave espacial. A cama está grudada na parede por um móvel curvo que serve de encosto e de painel de controle do telefone, da música e das luzes, tudo numa mesma peça revestida de fórmica laranja com as bordas acolchoadas de couro sintético preto. A luz vermelha cobre a pele de calor e a música de Fausto Papetti atua sobre a vontade, deixando você fazer qualquer coisa que queira. A cama grande e as paredes espelhadas que nos refletem como se fôssemos outros ajudam. Deitados na cama, nos olhamos no espelho do teto e brincamos que estamos de pé na rua. Fazemos as poses de ir andando, de correr, de levar um ao outro de cavalinho ou de saltar no vazio; e um em cima do outro somos a deusa Kali de quatro braços e quatro pernas. Antes de entrar, se o porteiro é legal, negociamos para ficar mais horas, mas mesmo assim, quando soa a campainha para avisar que o turno terminou, dizemos nããão, como no futebol, ainda que nenhum dos dois torça para nenhum time. Às vezes, no elevador, aonde se chega por um corredor preto e dourado, todo debruado com luzinhas vermelhas, cruzamos com algum outro casal, senhores de terno com pastas e secretárias escovadas. Elas abaixam a cabeça e se escondem, pudicas, sob o cabelo ou atrás de uma gola, e depois rimos ao ouvi-las gemer como doninhas através do chão ou

do teto, entre os golpes secos da cama batendo contra a parede. Uma vez subimos com um casal formado por um rapaz muito jovem e uma menina grávida que me deu um pouco de rumble. E, como quando vou ao cinema, sinto angústia de entrar de dia e sair já de noite. Saímos sempre como dois profissionais, de banho tomado mas com o cabelo seco, e escondendo em algum cantinho do corpo o inconfundível cheiro do outro, que mais tarde em casa vai servir para invocar os momentos passados entre aquelas cinco paredes, contando o teto com espelho. Mas o filme acaba na melhor parte. Entregam a casa de Bellavista e, assim como de um dia para o outro eu me mudei para a casa do tio Rolo em Buenos Aires, de um dia para o outro tenho que voltar para esse buraco chato e parado, longe do mundo. A única que recebe a notícia com alegria é minha prima Ana, que se despede de mim contando na frente do namorado uma piada familiar que pelo visto ela adora: quando eu e meus irmãos éramos pequenos, parece que meu pai nos levava para passar férias na fazenda cantando pela estrada cara al sol con la camisa nueva, que tú bordaste en rojo ayer… É verdade, mas não sei onde está a graça nem estou a fim de que me expliquem.

Quando vejo minha velha casa de infância, entendo por que nesses quatro anos nunca senti falta dela. Os foragidos brigaram com minha mãe e se desforraram na casa. Está gasta e opaca e há infiltrações no teto. Todas as persianas de enrolar estão quebradas e todos os banheiros têm água vazando em algum lugar. O jardim foi arrasado pela negligência e a piscina tem uma rachadura que a parte ao meio como uma rede de tênis. Na parte funda, que está cheia de água podre, formou-se um tanque natural, escuro, espumoso e espesso, com uma camada de cor verdepapagaio flutuando na superfície. Dessa vez quem pode ligar a luz para Arturo no meio da noite é um sapo. A única coisa que não mudou é o pinheiro que enfeitávamos no Natal. Sempre foi imenso e ainda toca o céu. Eu o encaro fechando um olho, depois o outro, como quando era pequena, e o pinheiro se mexe da direita para a esquerda. Não lembro em que momento desejei que estivéssemos de novo todos juntos sob o mesmo teto. No início ficamos contentes, ainda que ninguém

seja capaz de admitir e por sorte não é preciso, só que dura pouco, porque quando voltamos a dividir não só o mesmo teto, mas o mesmo telefone e a mesma televisão, a batalha começa de novo e os meses que passamos separados se dissolvem como uma pedrinha de gelo. Dessa vez tenho que dividir temporariamente o quarto com Javo, ao lado do quarto dos gêmeos. Digo temporariamente, mas não sei, porque Javo não quer continuar dormindo com eles se Bernardo não parar de fazer xixi na cama, e Arturo não quer dividir coisa alguma com ele, muito menos seu quarto. Ele, por ser o mais velho, fica com o único quarto afastado, no fundo do corredor depois do banheiro, um cômodo pequenininho que, em vez de dar para o jardim onde está a piscina, dá para a frente, para a rua. Sem perguntar nada a ninguém, Arturo também assume o comando da casa, o que inclui o carro. A universidade colocou um carro com chofer à disposição do meu pai e agora o falcon fica disponível na garagem. Arturo guarda as chaves no seu quarto. Javo diz que também tem direito de usar o carro, mas ele esclarece de saída, quase mafioso: esquece, você não vai pegar esse carro nem morto. Buenos Aires fica bem longe, embora na verdade o que esteja longe seja Bellavista. Percorro os trinta quilômetros de ida e de volta sem dizer um ai porque o trem é perfeito para mim. Eu o conheço da época do internato. Funciona mal e os horários às vezes são mais confusos que os próprios trens, que param de repente entre duas estações ou então vêm tão cheios que não há como subir. Mas eu gosto assim mesmo. Agora, em vez de ir até o Retiro, desço em Palermo, porque fica mais perto da casa de Hernán. Na ida sempre pego o trem de depois do meio-dia, que vem quase vazio dos confins de Pilar, na outra ponta do trajeto. Eu gosto de fumar e olhar pela janela como os bairros ficam cada vez menos verdes e mais cinza à medida que o trem se aproxima da cidade. Quando desço, quase sempre Hernán está me esperando na plataforma, pronto para sairmos dando voltas até que o fim da tarde caia em cima de nós como uma avalanche. Mas não é sacrifício nenhum e se eu pudesse faria isso todos os dias, porque Hernán, o amor dele e o meu são a única coisa que me importa no mundo e a santíssima trindade que governa cada um dos meus atos. Infelizmente. Porque, se estivesse um pouco mais atenta, não teria esquecido que os professores do colégio da irmã Regina estavam de olho em mim. Nas provas de dezembro, eles me arrasam. Presto apenas cinco matérias das sete da primeira parte do meu plano e sou reprovada em quatro; só vou bem em história, porque caem as

Guerras Púnicas e falo por dez minutos seguidos. Me lembro das façanhas de Aníbal que meu pai contava para Mercedes e Arturo quando a gente era pequeno, em volta da piscina, quando ela não estava rachada e a enchiam até transbordar. A fabulosa travessia dos Alpes com um exército de elefantes. Mas me reprovam sem piedade nas outras quatro matérias: espanhol, geografia, música e até educação física, porque não passo nem mesmo no teste de corrida. Eu, que vivo correndo, não sou capaz de fazer os quarenta minutos seguidos. Quem sabe seja verdade que sou meio burra e não me dou conta justamente por causa disso. Talvez meu pai tenha razão e a esperteza e a inteligência sejam coisas muito diferentes. Em todo caso, nem minha mãe nem meu pai se surpreendem, e ele me diz, puto: obrigado. Ele gostaria de me bater, mas se contém. Me proíbe terminantemente de sair de casa e também não posso trazer ninguém. Eu nunca convido ninguém mesmo e nunca parece um bom momento para apresentar Hernán, nem sequer como amigo. Às vezes penso que ele poderia se passar por um colega de escola. Mas, depois dos resultados das provas, é melhor deixar isso para depois, quando tudo estiver mais tranquilo. Se quero conquistar o meu pai, a primeira coisa que tenho que fazer é passar de ano; depois as coisas vão se arranjar sozinhas e tenho certeza de que quando eles conhecerem Hernán vão adorá-lo… Desde que ele não venha com o cabelo amarrado num rabo de cavalo, como tem usado ultimamente. Em menos de três meses tenho que prestar exame de doze matérias – e não das seis calculadas no meu plano inicial. O melhor que posso fazer é passar o verão todo, que acabou de começar, estudando para não repetir de ano. Sufocante e grudento do jeito que está, não é nenhuma grande perda. Falta um tempão até os exames de março. Organizo as doze semanas seguintes para estudar as doze matérias. Calculo também um tempo para completar a pasta com todos os trabalhos que preciso apresentar na prova de desenho. Compro uma dúzia de cadernos com espiral – que minha mãe considera um gasto desnecessário e me sugere usar uma pilha grande e irregular de folhas que só foram usadas de um lado – e ponho em cada um uma etiqueta com o nome da matéria correspondente. Depois divido as folhas pela quantidade de capítulos e temas do índice de cada matéria e os copio com um capricho suíço. Fico cinco tardes inteiras fechada no meu quarto, sentada na escrivaninha, escrevendo com letra cursiva inglesa e com caneta azul.

Só me levanto para comer. Minha mãe e meu pai se tranquilizam. Não me acusam mais de inconstante e irresponsável. No sexto dia, digo que vou estudar numa biblioteca em Buenos Aires e vou encontrar Hernán, porque não aguento mais. No sétimo e no oitavo dias também, porque quando estamos juntos não conseguimos nos separar. No fim de semana fico presa em casa, porque é muito mais difícil enganar a vigilância de meus pais do que nos dias de semana. Como os amantes, divido as refeições e as tardes intermináveis com minha família como se estivesse ali, mas estou com a cabeça muito longe, na outra ponta do travesseiro de Hernán. Na segunda, quando me sento na escrivaninha e abro o primeiro caderno, vejo que meu cronograma está cinco dias atrasado, então divido os temas do programa entre os dias que ainda tenho disponíveis, mas agora de uma forma um pouco mais apertada. Arranco de cada caderno as folhas onde copiei com tanto capricho o plano de estudo e escrevo tudo de novo com o mesmo capricho que da primeira vez. Todos os resumos completos dos programas de todas as matérias, desta vez com letra de forma e com caneta preta. Me sento na escrivaninha, abro o caderno e o livro e leio algumas linhas, mas depois de cinco minutos meus neurônios começam a pensar em Hernán e deixam de funcionar para qualquer coisa que não tenha a ver com ele. Leio Cordilheira dos Andes e me lembro de que ele morou no Chile quando era pequeno. Então a neve me faz pensar em sua pele branca com pintas escuras e em seus ossos longos e delgados como dedos. Me lembro de uma tarde no quartinho de cima quando Hernán fez um desenho das minhas mãos e me disse: as pessoas se parecem com as suas mãos. Como o único telefone de casa está no quarto da minha mãe, também não podemos nos falar. Eu escrevo poemas para ele nas últimas folhas dos cadernos de todas as matérias. No caderno de matemática os poemas rimam com números e nos de espanhol com baba espumosa e úmida, percorrendo o seu corpo todo. Mas eu preciso vê-lo, tocá-lo, cheirar seu jeans sujo, que ele olhe nos meus olhos e me abrace todos os dias, como um remédio. O que eu amo nele? Não sei, no início pensei que éramos parecidos, mas não temos nada a ver um com o outro, nem mesmo nas coisas em que nos parecemos. Nós dois somos tímidos, mas de maneiras diferentes. Hernán é tímido para avançar e eu para retroceder. Fico trancada no quarto, mas não estudo. Lá fora estão todos pintando,

lixando ou colocando buchas e os corredores estão cobertos com folhas de jornal. Minha mãe, que sempre precisa de alguma coisa, não para de dar ordens e de se queixar. O eletricista está a ponto de eletrocutá-la e o pintor a qualquer momento vai enfiar a cabeça dela numa lata de vinte litros de tinta látex. Eu digo a ela que em casa está muito barulhento e que preciso de um lugar mais tranquilo para estudar. – Um lugar como a biblioteca do colégio dos irmãos maristas, que fica em San Miguel, a uns vinte minutos daqui… – Bom – ela me diz –, pode ir. De qualquer maneira, seu pai está em Tucumán até a semana que vem. Na mão, como uma espada, ela segura um metro amarelo de madeira. A biblioteca dos irmãos maristas fica a quinhentos metros de um motel em forma de castelinho, rodeado de uma favela que serve de fossa de jacarés, onde comecei a ir com Hernán para passar as tardes de terça e quarta, porque eles fazem um preço promocional mais barato do que um lanche. Para ir a Buenos Aires invento mentiras maiores, porque é mais longe, mas, como nem sempre temos dinheiro para ir a um motel, às vezes ficamos dando voltas no Jardim Botânico, procurando um canto escondido entre os caminhos mais estreitos. Passo o verão todo sem colocar o maiô nem ir à piscina, que é uma das primeiras coisas que eles consertam, pois o calor é infernal. Mas sei que aparecer para fazer as provas bronzeada é uma provocação desnecessária, como entrar em um motel com o uniforme do colégio. Colaboro quando vão pintar a piscina. Depois de pintar duas cozinhas, um banheiro e um apartamento de três ambientes, é moleza pintar um buraco todo de azul-celeste. No dia seguinte, começam a enchê-la antes do meio-dia, e nessa mesma tarde os gêmeos entram para brincar com a água que sai da parede. Eles têm doze anos, mas parecem ter sete. A parte funda já está cheia e um espelho de dois milímetros avança sobre a parte rasa. Para variar, os gêmeos brincam de luta, chutando-se como dois idiotas, até que de repente Félix escorrega e cai de boca na parte rasa, onde a água já tem altura de meio centímetro. Ele corta o lábio superior e quebra os quatro dentes da frente, dois quase inteiros e outros dois pela metade, mas cortados em diagonal, um para cada lado, como um triturador de latas ou um tubarão. Que rumble quebrar os dentes assim. Minha mãe se nega a esvaziar a piscina para trocar a água porque diz

que quando ela estiver cheia o sangue vai se diluir completamente. Ela tem razão, mas eu perco a vontade de entrar. Qualquer partícula que encostar em mim debaixo d’água vai parecer que é um dos pedaços de dente de Félix. Ele sempre foi o mais bonito. Minha mãe reconhece que bateu pouco nele de tão lindo que era. Desde pequeno, Mercedes o fechava em seu quarto para protegê-lo e todos os anos era o preferido da professora. As empregadas o serviam primeiro e sempre o defendiam, e se alguma dissesse: está reclamando do quê, belezura, com esses olhos e esse sorriso e essa carinha linda, nós todos o chamávamos de belezura por uma semana e Félix nos xingava de cima a baixo, ofendido e de saco cheio, tentando encontrar alguma coisa ofensiva para dizer e demonstrar como ele podia ser horrível. E encontrava, especialmente com Bernardo. Mas era tão lindo que ficava bem até machucado. Os joelhos em carne viva, os arranhões na testa e o eterno corte de dois centímetros no queixo, coberto com uma gazezinha branca, sempre tornaram sua perfeição de Adônis mais suportável. Quando arde em febre ou chora muito, seus olhos ficam turquesa, e as bochechas, rosadas. Dá vontade de abraçá-lo, mas ele não deixa muito. Só era carinhoso com Mercedes, ou melhor, deixava que Mercedes fosse carinhosa com ele. Agora uma cicatriz de mais de dez pontos corta o seu lábio superior e continua até a metade da bochecha direita, como o afluente de um rio. O lábio fica levantado, um pouco aberto, com a expressão de alguém que está cheirando algo enjoativo. A venda cobre metade do seu rosto e fica incrível nele, mas, quando tiram os pontos, Félix não é mais o mais bonito. Nesta tarde, como em tantas outras, subimos no trem com preguiça, os lábios secos e o cabelo despenteado, porque o pente descartável do hotel era de uma escala cinco vezes menor que o emaranhado de nossas cabeças cabeludas e úmidas de suor. Por mais que a gente tenha tomado banho, continua exalando esse vapor animal que fica impregnado na pele depois do sexo. Encolhidos bem juntinhos contra a janela, entrelaçamos as mãos com as cabeças apoiadas uma sobre a outra e nos deixamos cair nesse sono profundo que só acontece nos trens, abandonados ao ritmo da bitola estreita que nos embala como bebês. O ronronar nos envolve por baixo e por cima, como se subisse e descesse, balançando a gente de trás para frente, tu tu tu, tum, tu tu tu, tum. Acordo com o apito do guarda avisando que o trem vai partir, e meio dormindo olho pela janela em busca do cartaz com o nome da estação

quando o vagão já começa a se mover. Uns metros antes de terminar a plataforma eu o vejo, as letras brancas sobre o fundo preto e a moldura pintada de laranja: Pilar. Cinco estações depois de Bellavista, quase no fim do trajeto. O cu do mundo. Dormimos feito pedras. Acordo Hernán, sacudindo-o pelo ombro; descemos na estação seguinte para tomar o trem para o outro lado e dormimos de novo. Hernán me sacode meio minuto antes de chegar a Hurlingham. Tomamos novamente o trem na direção contrária, que chega vinte minutos depois. Não sobrou dinheiro nem para uma coca-cola. Quando o trem chega, subimos cansados e de mau humor, mas não dormimos, porque, como não pagamos, estamos preocupados com o guarda. Tento não pensar em como é tarde e em tudo o que vou ter que ouvir, mas estou tão nervosa que tremo toda. Corremos as sete quadras até a esquina de casa e nos despedimos com o beijo mais curto de nossa história. Cinquenta metros antes de chegar, já sei o mais importante: meu pai está em casa. Vejo o carro do Conselho estacionado na porta, um pouco acima do canteiro de lavandas. Meu pai dirige muito mal, porque aprendeu depois de velho. Colocaram um motorista à sua disposição, mas ele fica com pena de obrigar o cara, que mora no outro lado, em Quilmes, a trazê-lo até Bellavista, e por isso volta dirigindo. O carro é grande, cor de diarreia, metálico, com teto clarinho de vinil. Ele o deixa mal estacionado na porta, no meio de uma poça ou em cima do canteiro de lavandas, em frente à janela da cozinha. Não o guarda na garagem porque é o lugar do carro da casa, o falcon, que Arturo usa e também meu pai, em alguns finais de semana. O segundo dado importante é saber se estão comendo, se estão a ponto de comer ou se já comeram, mas para saber isso tenho que abrir a porta. O melhor seria que meu pai não estivesse, que minha mãe já estivesse no quarto dormindo e que meus irmãos estivessem a ponto de comer… ou que já tivessem comido e que tivesse sobrado alguma coisa no forno. Mas como dizem os medíocres: não se pode ter tudo. A rua está deserta e as luzes de algumas casas podem ser avistadas por entre as árvores escuras. Suas sombras altas e pretas balançam com o vento e eu aperto o passo. À medida que me aproximo, meu coração acelera. Como o jardim da frente não tem cerca, atravesso-o com cinco passões na diagonal até a porta. Um renault branco, como o que usam as freiras, mas em péssimo estado, está estacionado na frente do carro do meu pai. Estou salva. Ele não seria capaz de me dar bronca diante de uma visita. Abro a porta de entrada, que nunca fica trancada, e vejo a empregada

na cozinha secando os pratos: já terminaram de comer. Espio pelo corredor a porta do quarto da minha mãe e está trancada, mas escuto a voz do meu pai na sala, conversando com meu anjo da guarda. A visita é uma senhora que está indo morar na Espanha. É o que me diz a nova empregada enquanto guarda os últimos pratos na cozinha. Ela é uma paraguaia de cabelo preto e olhos azuis, com o mesmo corte de cabelo da Branca de Neve, que outro dia me contou que o segredo da eterna juventude do ditador Stroessner é fazer transfusões de sangue jovem e que por isso no Paraguai é preciso tomar muito cuidado para que as crianças não sejam roubadas. Entro na sala para dar boa-noite, amparada pela presença da visita. Meu pai está muito sério. Eles bebem uísque. Antes que me perguntem, explico que estou vindo da biblioteca de San Miguel e que uma roda do ônibus furou. Meu pai me diz: vá para o seu quarto, depois a gente conversa. Não reconheço a mulher que está com ele, mas sinto que há algo errado. Dou um oi para ela e sigo caminhando para o meu quarto pelo corredor, porém alguma coisa me faz voltar e, com a desculpa de ir buscar água na cozinha, atravesso a sala novamente. A mulher que está sentada com meu pai no sofá é Brenda. Parece outra pessoa, mas é ela. Não tem mais a cabeleira de leoa e seus olhos transparentes parecem de vidro. Também não usa mais pulseiras. Ela me cumprimenta com afeto, mas com distância, e sua voz rouca soa gasta. Como você está? me diz sem entusiasmo, você não me traria um cinzeiro? Ela segura um cigarro apagado na mão com a mesma graça de sempre, porém se move muito lentamente, como os astronautas na gravidade zero, e procura uma caixinha de fósforos no bolso do casaco, que nem sequer desabotoou. Quando volto da cozinha com o cinzeiro, meu pai está com os fósforos na mão e Brenda solta fumaça pelo nariz com os olhos fechados. Obrigado, e vá para o quarto, porque nós precisamos conversar, diz meu pai, apontando para o corredor. Ela nem me olha. Depois Arturo me conta, com certa malícia: Brenda tem um namorado guerrilheiro. Dez dias depois, em 13 de março (me arrependo de não ter tomado isso como um sinal), repito de ano. O sorteio das provas passa por cima de mim como um rolo compressor. Das doze matérias, passo em quatro (educação física, música, espanhol e educação cívica) e vou mal em duas (matemática e geografia), que poderia deixar para mais tarde, como eu já tinha mais do que calculado,

mas, quando vou mal em desenho, as minhas chances de prestar as cinco que faltam acabam. Não apresentei nem mesmo a pasta completa, que equivalia à metade da nota total da prova. Também não soube desenhar um tetraedro em perspectiva; nem tinha levado o esquadro. Era a última chamada e eu estava certa de que passaria com um pé nas costas. Um mísero quatro bastaria, mas me dão um três, vermelho, em número e em letras, o número grande e ao lado as letras entre parênteses. O atordoamento me paralisa. Olho para a professora com os olhos chorosos, mas não consigo dizer nenhuma palavra. Não digo a ela que com essa nota eu repito de ano e nem que estou estudando para as provas por minha conta e que já passei em cinco matérias. Dou meia-volta e saio com um orgulho ridículo, consciente de que estou deixando de aproveitar minha última chance. Uma colega com quem já dividi mesa me diz para falar com meu pai. Mas ele é incapaz de reclamar de um resultado tão lamentável, ainda mais tratando-se de mim. A única coisa que me resta é falar com a irmã Regina e implorar para fazer a prova de novo. Ou então pôr fogo no colégio, para que os registros se percam. Meus passos me carregam pelo corredor até o pátio e, me esquivando dos rejuntes pretos de piche amolecidos pelo sol, até a calçada. Claudia me cumprimenta de longe, mas eu não respondo. Continuo caminhando e fico dando voltas pelas ruas de terra de Bellavista, fumando um cigarro atrás do outro, até que escurece e meus mocassins e minhas meias já estão cheios de pó. Vou para casa. Por sorte o carro do meu pai não está na porta. Quando entro, Félix me dá oi da cozinha. O quarto da minha mãe está com a porta fechada. Como Javo certamente está no meu quarto, nem me aproximo. Félix está passando manteiga numa baguete cortada em mil pedacinhos. Colocaram uns dentes postiços nele que parecem aquelas dentaduras de Drácula de brinquedo. Está descalço, com o cabelo cheio de barro, a camiseta de rúgbi suja e short branco imundo. Ele me olha abrindo bem os olhos e me pergunta: você não tinha prova hoje? Como foi? – Mal, repeti de ano. Eu falo como quem confessa que empurrou alguém da janela. Félix fica com a boca aberta cheia de pão com manteiga e depois começa a mastigar em câmera lenta. Ele engole e me diz, limpando a boca com o pano de prato, coisa que minha mãe odeia que a gente faça: – O coroa vai te matar. – Ele enfia vários pedacinhos de pão juntos na

boca, com as duas mãos, como um esfomeado. – Não acredito. Eu mesma não consigo acreditar. Tenho vontade de chorar, mas sinto vergonha e engulo as lágrimas como um copo de meleca. Fico esperando meu pai chegar sentada na poltrona nova da sala, que cheira a couro. Às oito e quarenta escuto o barulho do carro estacionando sobre o canteiro de lavandas e me levanto. De frente para o espelho da entrada abotoo em um segundo todos os botões da camisa e arrumo o cabelo atrás das orelhas para ficar com cara de boa menina. Quando meu pai abre a porta, jogo tudo na cara dele, como se batesse com um bastão, e depois desato a chorar com uma frustração e um arrependimento que nunca havia sentido em minha vida. E também sem nenhum decoro, com a cara desfigurada de raiva e sem poder conter por mais um segundo o rio de lágrimas e meleca que reprimi toda a tarde e que de repente me encharca como um pêssego em calda. Meu pai olha para mim indignado. Diz que sou um fracasso, uma inútil, uma pessoa sem futuro, um desperdício. Diz que ele e minha mãe – sua mãe, que como você sabe não anda nada bem – estão seriamente preocupados comigo. Tenho falta de ar. Começo a soluçar. Quero morrer agora mesmo. Sinto como se acabasse de acordar depois de uma catástrofe. Como se caminhasse entre os restos fumegantes de um acidente que poderia ter sido evitado. Que estúpida. Tão obcecada com o meu namoradinho que me esqueci de tudo e repeti de ano, como uma imbecil. Meu pai tem razão, sou uma cabeça-oca. Tenho vontade de me matar para que me perdoem. Me lembro do vidro de comprimidos da minha mãe, que fica na primeira gaveta da mesinha de cabeceira dela. Trancada no banheiro, olho para os meus pulsos e procuro uma gilete que vi na prateleira de vidro do armário, mas não corto as veias porque a gilete está suja. Choro vários dias seguidos, com e sem lágrimas. Cada vez que lembro, seguro a cabeça e arranco os cabelos. Ando como um zumbi, de dar pena. É o que procuro, mas ninguém sente pena de mim. – A culpa é toda sua – diz Javo, sempre tão carinhoso. E é claro que estou de castigo para sempre. Não posso ir nem até a esquina para ver se está chovendo. Até eu estou farta de mim. Como ultimamente minha mãe não se levanta muito da cama e o telefone está no quarto dela, só consigo falar com Hernán dois dias depois, quando a lituana entra no banheiro para tomar banho.

– Me sinto um pouco culpado – diz ele. Faz bem. Fui eu que me enfiei nessa, mas ele também tem culpa no cartório. Nós poderíamos ter aproveitado algumas das mil horas que passamos juntos esse verão na casa dele ou em um motel para estudar, mas na hora não pensamos nisso, e agora é tarde. Hernán não cuidou de mim o suficiente. Nem ele de mim, nem eu de mim mesma. – Não, não é culpa sua – respondo, mas neste momento sinto que o odeio. Preciso desligar. Odeio tudo o que fiz e o que não fiz. Odeio a irmã Regina por me deixar livre e peço a Deus que a atropele com um caminhão ou que a deixe inválida. Odeio os colégios que não me aceitaram três meses antes do fim das aulas. Odeio Hernán por não ser melhor que eu e a mim mesma por ser idiota, sonhadora, preguiçosa. Por mentir que estava estudando quando a única coisa que eu sabia de cor eram os índices temáticos dos programas. Meus pais têm razão: me mandar para um bom colégio é jogar dinheiro fora. Sugiro a meu pai que ele me inscreva no Liceu Nacional de Bellavista, que é gratuito, e ele aceita. A esta altura não se importa em me mandar para um colégio qualquer, sem maiores expectativas de que eu termine o segundo grau. Eu devo ser a exceção que confirma a regra de todas as teorias sobre a educação com que meu pai trabalha. O Nacional de Bellavista é chamado de mercadinho, porque o prédio era originalmente um mercado municipal de carnes, frutas e verduras. Ele tem um só andar, é mais do que modesto e ocupa uma quadra pequena e afastada da zona residencial. A construção é precária e mantém a disposição típica das feiras: um quadriculado de corredores e os estandes que foram transformados em salas. O piso é irregular, de cimento rústico, com canaletas nas bordas para arrastar a água da limpeza. O laboratório de química ainda tem nas paredes os azulejos brancos e os ferros com os ganchos onde penduravam os pedaços de carne do açougue. No mercadinho não tem sala de mapas, nem quadra de esportes, nem refeitório, mas também não tem freiras, nem catequese, nem capela. E há rapazes, alguns com um pouco de bigode e o carro do pai estacionado na porta. Um alegre apanhado de repetentes constantes e alunos que foram expulsos de outros colégios: O uniforme consiste em um avental branco para as meninas e paletó e gravata para os meninos, e tudo o que caiba sob essa definição serve. Alguns meninos usam o paletó sobre o moletom adidas e algumas meninas vão com sandálias de plataforma de cortiça de

vinte centímetros. O ambiente é divertido e alguns até fumam dentro da sala nas horas livres. Minha vida se torna ir e vir do colégio, o tipo de vida de que sempre zombei.

Fico amiga de Raquel, uma morena feia de rosto, mas com o corpo de uma vedete. Nós nos sentamos no fundo e falamos sem parar. Ela vai para o colégio maquiada com lápis, rímel, sombra e ruge, e, como sua mãe vende produtos da avon, ela sempre cheira bem. Nossa relação se baseia no fato de que somos as únicas duas do curso que não são virgens. Hernán vem me buscar algumas vezes na saída, para que a gente se veja nem que seja pelos míseros quinze minutos que demoro para chegar em casa. Mas, mesmo sabendo que ele faz a viagem de uma hora de ida e uma hora de volta para me ver esse bocadinho, digo para não vir mais porque tenho medo de que vejam a gente. Seu estilo é bastante chamativo para o ambiente conservador de Bellavista: cabelo comprido, rabo de cavalo, camisas de gola chinesa e uma bolsa de pano na qual aparece um tubo de couro onde ele guarda papéis e desenhos. Parece Kwai Chang Caine. Resolvo que é menos perigoso se eu fugir pela janela à noite e tomar o último trem para Buenos Aires à meia-noite e dez. O primeiro trem de volta na manhã seguinte sai do Retiro às cinco e quinze. São mil horas para estarmos juntos. Depois posso dormir no colégio. Ligo para Hernán para contar a ideia e ele diz que nunca se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje. Depois de jantar vou para o meu quarto, passo pelo banheiro, me enfio na cama e apago as luzes como todas as noites, até um pouco mais cedo. Javo faz mais ou menos a mesma coisa na cama dele, mas antes de dormir reza o terço. Na escuridão se ouve o sussurro dos lábios dele se mexendo rápido e o crepitar do “t” fraco e úmido, até que só resta o barulho do ar entrando e saindo dos pulmões. Com os olhos bem abertos para que se acostumem à escuridão, escuto seus roncos suaves até meia-noite. Ele tem o sono mais pesado que mercúrio. Quando dão doze horas, me levanto da cama sem fazer barulho. O despertador de Javo, sobre uma prateleira da estante, marca as horas e os minutos com a ponta dos ponteiros pintada de verde-fosforescente. Para ganhar tempo, me deitei de jeans e meias. Termino de me vestir, arrumo a franja, que cortei hoje à tarde, e pego com uma única mão as botas que estão de pé uma ao lado da

outra. Tentando não acordar Javo, subo na escrivaninha que fica debaixo da janela, puxo a cortina, abro a janela de correr e pulo para o jardim. Já do lado de fora, pego minha carteira e a jaqueta que deixei de propósito sobre a escrivaninha, fecho a janela lentamente e sujo as meias na porra do canteiro de azaleias que Arturo plantou sob todas as janelas a pedido da minha mãe. Hernán está me esperando na esquina, enfiado na caverninha formada pela cerca viva onde sempre nos escondemos para nos despedir. Corremos até a estação para não perder o último trem e subimos meio minuto antes de sair da plataforma. Duas estações depois já estamos agarrados como se fôssemos um só. Um menino desses que distribuem imagens de santos passa e diz: pode soltar que ela não voa. Todas as minhas críticas a Hernán se evaporam com cada beijo dele. Chegando em sua casa, entramos escondidos no quarto dele, que fica na parte de serviço, na qual se entra pela porta da cozinha. Estamos com tanta saudade que nos sentimos diferentes, tocamos o cabelo um do outro e nos olhamos nos olhos como se tivéssemos acabado de nos descobrir. Choramos e rimos e ficamos em silêncio até que fazemos amor com muito sono. No trem de volta, cabeceamos, mas não caímos no sono porque cada minuto vale ouro. Chego em casa quando está amanhecendo. Tiro a jaqueta e as botas tremendo de frio, de pé do lado do canteiro de azaleias. Abro a janela de correr do meu quarto e com o maior cuidado possível subo de novo na escrivaninha, desço para o chão na ponta dos pés e me enfio na cama. Termino de tirar a roupa debaixo dos lençóis com o coração batendo como uma bomba. Fecho os olhos e tento me acalmar e dormir um pouquinho que seja, duas horas ou quarenta minutos, com o quarto cada vez mais iluminado pelo sol que já está nascendo e se infiltra pelas frestas da cortina. Os passarinhos cantam e tenho vontade de fazer xixi. Cinco minutos depois o despertador de Javo toca. A cama ainda está gelada e já preciso levantar para ir ao colégio. Tenho prova de anatomia no primeiro tempo. Dos duzentos ossos do corpo que eu tinha que estudar, sei menos de vinte, mas todos estão doendo. Levanto porque Javo abre a cortina e acende a luz. E porque, como diz o ditado: ajoelhou, tem que rezar. Passamos a nos ver duas noites por semana. Se perdemos o último trem para Buenos Aires, mudamos de plano e pegamos um ônibus até Hurlingham e depois um outro da Costera Criolla até San Isidro, e de lá o

trem até Acassuso, onde fica a casa de uns amigos de Hernán que toda sexta à noite fazem invariavelmente a mesma coisa: vão ao cinema ver O fantasma do paraíso na sessão da meia-noite. Félix também escapa. Ele vai ao clube social de Bellavista jogar boliche com um pessoal mais velho que o trata como mascote. Se meu pai não está, ele deixa uma almofada na cama como se fosse uma pessoa e volta à uma da manhã. Mas hoje minha mãe, que nunca sai do quarto depois de ter dormido, levantou às onze da noite para dar um remédio a Bernardo e se deu conta da artimanha. Bernardo revelou tudo: claro, para isso ele não é mudo. Minha mãe espera meu pai acordada para contar para ele, como nos bons velhos tempos. Muitas coisas estão começando a se repetir. Meu pai sempre chega tarde, na maioria das vezes depois de jantar, e de novo discutem todas as noites. Muitas vezes é por minha culpa, mas hoje por sorte o assunto é Félix. Eu estou na cama lendo 79 Park Avenue quando meu pai abre a porta do quarto sem bater e mal tenho tempo de esconder o livro entre as cobertas. – Levante e venha comigo, vamos buscar Félix. Da sua cama, Javo se oferece para nos acompanhar, mas meu pai diz que não precisa e sai. No minuto que levo para me vestir, me escondendo com a porta do armário, sinto o seu despeito no silêncio do quarto. Nem olho para ele. Um segundo antes de sair ele me diz: olha que eu avisei aquele moleque bundão. Entramos no carro do Conselho, porque Arturo levou o falcon. Meu pai o liga com o motor frio e se escuta uma lamúria afogada vindo de dentro, implorando por piedade. Ele tenta mais três vezes, até que o motor pega; mas ele sai de marcha a ré muito rápido e quase cai na vala da frente. O melhor é não dizer nada nem muito menos rir, porque meu pai tem vergonha de dirigir mal e fica irritado. Ele me olha sério, mais austero do que de costume. – Onde ele está? Não respondo nada. – No clube social? – Sim. Com uma irmã como eu a alma de Polinices teria ficado vagando eternamente. Mas não ganho nada mentindo para meu pai. Cedo ou tarde ele vai encontrá-lo. Chegamos na porta do clube social e meu pai me pede que entre para buscá-lo. Passo pelas quadras de tênis e subo direto pela escada que vai para o boliche. É um edifício de concreto concluído

recentemente. Quatro bolas enormes de acrílico laranja recebem você como se fosse em Netuno. Subindo a escada, abro uma porta de metal pintada com esmalte amarelo e do outro lado soa a todo volume uma música de Los Iracundos. Eu logo o vejo, porque não há, outros meninos da idade dele. Félix está no balcão, rodeado de umas garotas bem mais velhas do que eu, e faz gracinhas para um cara com pinta de cigano. Eu toco o seu ombro e, ao me ver, se assusta tanto que acabo me assustando também. Ele abre os olhos que nem uma campainha. Descemos as escadas correndo, roçando o corrimão com a ponta dos dedos e falando aos berros. – Meu pai está aí embaixo com o carro. Corre que ele está muito puto. – Estou de bicicleta. – Deixa ela aí e vem buscar amanhã. – Nem a pau. Vão roubar. Diga a ele que sigo vocês. Mas meu pai prefere que a gente siga Félix. Ele o faz subir na bicicleta e andar dois ou três metros à frente do para-choque do carro, iluminando-o com os faróis como se fosse uma lebre. Félix começa a pedalar o mais rápido que pode, mas meu pai vai lentamente aumentando a velocidade. Às vezes os três metros se encurtam e meu irmão fica quase colado no capô. – Para, pai, você vai atropelar o menino, tá maluco? Pelo para-brisa se destaca Félix como num filme de terror, ofegante e pedalando sem parar. Sua silhueta ofuscada pelos faróis do carro se agita como uma bandeira. De vez em quando ele olha para trás rapidamente, implorando, assustado. Mas meu pai nem toca no freio. Ao contrário, se diverte acelerando para obrigá-lo a pedalar mais rápido. Félix está com a calça de sarja cinza da escola, as meias três quartos enroladas nos calcanhares e as botinas. As panturrilhas musculosas, mas esquálidas, que se veem debaixo da calça levantada sobre os joelhos, parecem as pás enlouquecidas de uma máquina de tremer. A cem metros da barreira da estação, há uma passagem de nível perigosa como toda passagem de nível, e fico com o coração na boca. A sirene do guarda-barreira toca. Félix vira para trás como que esperando uma ordem para frear, mas meu pai não diz nada nem diminui a marcha, e atravessamos a barreira como se estivéssemos nos jogando em um precipício. Félix está com as pernas molhadas e brilhantes e a cara vermelha, da qual só vejo o perfil, como a beira de um penhasco. Quando chegamos em casa, com o mesmo impulso

com que vem da rua Félix entra com a bicicleta pelo lado da garagem e termina de frear na borda da piscina. Meu pai desce do carro, vai até o jardim e o põe para dentro aos chutes. Depois se escutam os gritos de Félix e o assobio do cinto do meu pai.

As coisas também não estão fáceis na casa de Hernán. Ele diz que está tudo bem, mas não está, nem um pouco. Nós dois gostaríamos de ir de carona para qualquer lugar, ao Vale da Lua ou ao carnaval de Humahuaca. Ou então viajar pelo Amazonas. Mas fazer isso direito, sem delirar. Procurar um trabalho e ficar vivendo na selva, em algum povoado distante onde não nos encontrem; casar em segredo e usar todo o tempo que a gente gastou se escondendo e mentindo para outra coisa, porque, assim como estamos agora, a única coisa que a gente faz é estar juntos. Na maioria das noites ficamos em seu quarto, escondidos da mãe dele, porque não temos dinheiro para ir a um motel ou nos sentar num bar, nem vontade de dar mais voltas pela rua. Uma madrugada, quando estamos fazendo mergulho sexual nas profundezas dos lençóis, ouço tocar o telefone na sala. Em seguida ressoam também os latidos agudos do cocker anão e depois os passos da mãe se aproximando da cozinha. Os passos do cachorro repicam com suas unhinhas compridas sobre as lajotas do corredor. Em menos de um segundo me enfio debaixo da cama, nua em meio à poeira acumulada e respirando pela boca para não fazer barulho. A porta se abre de repente e vejo a borda dourada dos chinelos da mãe de Hernán movendo-se na penumbra. – Hernán, acorda! – O cocker começa a latir. – Chega, Chiqui, vem para cá – diz a mãe. – Tira esse cachorro de merda daqui, mãe! – Seu irmão te ligou e vai voltar a ligar daqui a cinco minutos. No que vocês estão metidos? São quatro e meia da manhã. O cachorro rosna a três centímetros da minha cara, com meio corpo enfiado debaixo da cama. Hernán o agarra pelo rabo e o tira do quarto jogando-o pelo ar. Pobrezinho, não seja cruel com o bicho, diz a mãe. Hernán se levanta, coloca o jeans sobre a pele e sai do quarto. Quando Chiqui e a mãe vão atrás dele até a sala onde está o telefone, aproveito para sair de debaixo da cama, me vestir na velocidade de Flash Gordon e sair como um raio pela porta de serviço da cozinha.

Fico atrás do carrossel da esquina esperando Hernán, porque até cinco e meia não há trem de volta, mas ele não aparece. Será que aconteceu alguma coisa grave com Edi? Será que nos descobriram? A noite está preta e sem estrelas, e não passa nenhum carro. Na rua em frente há um porteiro com botas de borracha lavando uma garagem, que me olha de vez em quando. Vou embora às cinco, porque não posso perder o trem e o porteiro já está a ponto de me perguntar alguma coisa. O trem está vazio e eu me sento numa janela do lado dos trilhos, mas depois procuro um lugar menos visível, porque os trens que vêm do outro lado transbordam de gente e, quando os vagões param na mesma estação, as janelas ficam tão próximas que alguém que mora em Bellavista pode me ver. A viagem de volta parece eterna, porque é. Quando chego à estação, escapo rápido da plataforma porque os vizinhos mais madrugadores já estão esperando o trem para Buenos Aires. Entro em casa pela lateral e vejo o jornal que já está jogado ao pé da porta. Meu pai pode estar acordado. Os passarinhos cantam. Está começando a amanhecer. Me desculpe, eu dormi, é tudo o que Hernán me diz quando ligo para ele no dia seguinte. Acontece que nos vermos sempre de noite é muito deprê. De dia somos todos melhores. Por isso eu digo para ele vir a minha casa na terça à tarde, na hora da sesta, que eu o faço entrar na sala como se fosse um colega de colégio. Minha mãe e a Branca de Neve paraguaia dormem a sesta – que no caso da minha mãe pode durar horas ou emendar diretamente com a noite–e Artur e os gêmeos não estão em casa. Para Javo não estou nem aí; quando ele entra na sala e dá de cara com Hernán, aproxima-se dele e lhe estende a mão como o cristão que oferece a outra face. Hernán aprecia o gesto porque não o conhece. Eu sei que ele não vai contar para o meu pai porque encontrei o cilício. Não digo que seja seu nem que ele o use, mas o esconde debaixo do colchão e eu mudei de lugar para que ele se desse conta de que já o descobri. Hernán está com um blazer de veludo e botinas de camurça. Acho fofo que ele tenha vestido algo careta para vir. A gente senta para conversar no sofá da sala, como se fosse um cenário, e fala de coisas que não nos importam – você veio pela avenida ou pela estrada? –, ou melhor, eu falo, porque Hernán me olha sorrindo mas não diz nada. As frases soam vazias e nos sentimos incomodados, mas gosto do fato de Hernán estar na minha casa e conhecer o meu mundo, ainda que ele

tenha muito mais a ver comigo do que qualquer coisa que nos rodeia. Mostro para ele fotos de quando eu era criança e minha radiografia do tórax com o alfinete que engoli aos três anos, aberto no esôfago. Na quinta-feira, digo a ele que venha de novo porque milagrosamente a barra está limpa. Minha mãe sai da cama para levar Bernardo ao médico em Buenos Aires, Javo não está e a Branca de Neve paraguaia tirou folga. Estar sozinha em casa me excita em todos os sentidos da palavra. Quando abro a porta para Hernán, com um sorriso radiante e uma camisola branca de algodão sem nada por baixo, sinto que sou feliz. Transamos no meu quarto e no dos meus pais (na mesma cama onde eu e todos os meus irmãos fomos concebidos), e também no sofá de couro preto da sala com vista para o jardim e sobre a bancada da cozinha, olhando pela janela. Às cinco da tarde estamos exaustos e famintos. Hernán me pergunta se podemos ir até a padaria e digo que sim. – Podemos usar o carro que está na garagem? Arturo às vezes sai de trem porque fica mais barato. – Você sabe dirigir? – Óbvio. Procuro as chaves no quarto de Arturo e vamos para a garagem. O falcon está sujo. Hernán olha o painel como se fosse a primeira vez que entra em um carro. Demora para dar a partida e está nervoso. Ele não dirige como desenha e toca violão, pequenininho e suave. Quando saímos, o motor morre e ele freia abruptamente. Depois, quando arranca, faz o carro dar uns dois ou três pinotes antes de conseguir que ele responda (dizem que as mulheres sempre buscam um homem que se pareça com seu pai, mas prefiro não falar sobre isso). Na curva da esquina raspamos a roda dianteira esquerda no meio-fio e eu deixo escapar um aaahhh enorme, que me deixa com a boca aberta como no dentista. Fica tranquila, diz Hernán, que, para não parecer um idiota, acelera de repente os cem metros que faltam até a avenida onde temos que dobrar à esquerda. Mas, vinte metros antes de chegar, um carro que vem da avenida na nossa direção nos faz dar uma guinada brusca que nos joga em cima de uma caminhonete estacionada na mão oposta. Batemos nela com as duas portas do meu lado e, em vez de frear, Hernán acelera, e com isso alguma coisa na caminhonete arranca toda a tira prateada de metal que o carro tem na lateral. Sinto um balão se enchendo no meu peito e tenho medo de que exploda.

Tampo a boca com as mãos para não gritar. Dobramos rápido na avenida e um carro que vem atrás de nós dá uma buzinada que nos assusta ainda mais. Quem grita é Hernán: o imbecil não podia virar nesta rua, porque é de mão única, você viu como eu tive que me jogar em cima daquele carro? Eu choro. Não digo a ele que em Bellavista todas as ruas são de mão dupla nem nada, porque meu coração bate tão forte que dói. Ao colocar o carro na garagem, ele quase arranca o espelho. Em casa não tem ninguém. Guardo as chaves na gaveta do quarto de Arturo e peço a Hernán que vá embora, porque estou tão atordoada que se chegar alguém não me sinto capaz de sustentar a farsa de que ele é um colega de classe. O carro fica estacionado onde estava como se nada tivesse acontecido, mas com as duas portas do lado direito amassadas e a de trás sem poder abrir. Eu não dou nem um pio. Faço como quem comeu os bombons ou como quando roubei as moedinhas de ouro. O primeiro a chegar é Javo, depois chega Félix e depois aparece minha mãe com Bernardo, carregada de pacotes, mas reclamando que as alças das sacolas cortam a circulação dos seus dedos. Para variar, meu pai e Arturo não vêm jantar. Como na cozinha com Javo e os gêmeos, porque minha mãe está morta de cansaço. Quase não consigo engolir a comida e passo o jantar todo falando sem parar de qualquer coisa. Passa um dia e o seguinte e, quando estou começando a pensar que talvez tenha sido um sonho, ou melhor, um pesadelo (ainda que de qualquer modo não tenha coragem de ir na garagem para verificar), na terceira noite, às duas da manhã, quando estou dormindo, Arturo entra no quarto e, sem acender a luz, arranca Javo da cama pelos cabelos, joga-o no chão e o cobre de pancadas: você bateu com o meu carro, seu moleque filho da puta. Eu não digo nada. Não o defendo nem digo a verdade. Fico petrificada enquanto Javo chora e cospe sangue no chão do quarto ao lado da minha cama. É o meu aniversário, por isso Arturo veio. Ele me deu dinheiro para comprar a calça cáqui da little stone para a qual estou roubando há meses. Ele nos visita cada vez menos porque Bellavista fica longe da faculdade e do trabalho novo. Praticamente está morando na casa de um amigo, que é comissário de bordo. Mas hoje é sexta e estamos todos juntos na sala de jantar. Minha, mãe fez carne assada com batata, meu prato favorito. Ela está

na cozinha cortando a carne com uma faca elétrica quando o telefone toca. A Branca de Neve paraguaia atende no quarto da minha mãe e uns segundos depois aparece na sala de jantar, como nas novelas, gritando que me apresse porque um senhor Rafael me chama da Turquia. A mesa toda, que até este momento era um amontoado de vozes falando ao mesmo tempo, uma em cima da outra, emudece. Arturo assobia. Eu corro para o telefone derrubando a cadeira, fecho a porta do quarto com um empurrão, corto caminho pulando em diagonal sobre a cama e pego o fone com as duas mãos. Ouve-se mal porque a ligação é via rádio, explica o sujeito com quem falo primeiro. Depois aparece a voz de Rafael: feliz aniversário, eu sei que é brega, mas queria te dizer, menina bonita. – Me dá um pouco de vergonha fazer quinze anos. – Eu gosto muito, muito de você. Quero dizer que eu também, mas não consigo. – Onde você está? É bonito aí? – Tem neve na beira do mar, é muito louco. Tenho que desligar. Manda um abraço para o Félix e o Bernardo e para a sua mãe e para você tuuu tuu tuu. O homem do rádio diz desligando, câmbio e desliga. Volto para a mesa e, na frente de todos, derramo lágrimas pesadas e lentas como a cera derretida de uma vela. Mas não estou chorando, é outra coisa. Arturo, sentado ao meu lado, toca na minha cabeça como se eu fosse um cachorro e minha mãe me oferece mais batata, mas a única coisa que tenho vontade de fazer é fumar um cigarro, logo o que eu não posso. De repente todos falam de Rafael como se fosse um parente distante. Faz mais de dois anos desde que o vi pela última vez. Lá em casa ninguém nunca me perguntou por que ele não tinha ligado mais ou o que tinha acontecido com ele, a não ser os gêmeos. Tenho certeza de que, além do mais, meu pai e minha mãe ficaram contentes por eu ter deixado de vê-lo. Mas, agora que ele está longe, eles o acham o máximo. Minha mãe diz, rindo: – E você lembra que ia dar voltas de ônibus com ele? – Bernardo e eu íamos também – diz Félix. Javo me pergunta com falsa inocência, ainda que com ele a gente nunca saiba: e quantos anos tem Rafael?

Faço a conta, porque nunca penso nisso. – Agora ele tem vinte e seis. – Eu sempre o achei um sujeito esquisito – diz meu pai, olhando para um ponto distante sobre a toalha de mesa. Está prestes a acrescentar algo, mas se cala. Bernardo, em linguagem de sinais, me pergunta como ele conseguiu nosso novo número. – Não sei, talvez com as irmãs Rimoldi, aquelas que moravam do lado da pracinha. Embora eu não as veja mais, às vezes me lembro de ligar no aniversário delas. Na última vez que fui vê-las, elas tinham recebido um postal de Rafael de um porto no norte da URSS. Na foto, viam-se duas meninas iguaizinhas às Rinaldi, duas louras com bochechas saudáveis e olhinhos azuis, vestidas com rubashkas, tocando balalaica.

As cartas de Mercedes começaram a chegar com um remetente diferente. Não se chama mais Mercedes Belaúnde, mas Mercy Goldstein. Quando meu pai, com o envelope na mão, leu o novo sobrenome de sua filha, fingiu ser tolerante, mas quase desmaiou. Foi um golpe duro. Arturo se deleitou como se fosse uma vingança do destino. – Vejam bem – disse meu pai –, não acho nem bom nem ruim ele ser judeu. Não tenho nada contra os judeus. Sou amigo do Ivan há vinte anos e reconheço sempre que posso que a raça judia tem incontáveis exemplos de sua excepcionalidade intelectual. Mas meu pai também tem Os protocolos dos sábios de Sião na biblioteca, e trinta anos depois da Segunda Guerra continua duvidando que os campos de concentração nazistas eram de extermínio. – Não é bem assim, não é bem assim – diz ele. Mercedes mandou umas fotos que esfriaram ainda mais as coisas. Ela está tão irreconhecível que é fácil sentir que essa pessoa não tem nada a ver com ela. Está bem mudada, muito mais gorda e com um cabelo estilo Farrah Fawcett, com mechas loiras que minha mãe achou bastante vulgares. Mercedes tem uma casa com chaminé e um carro estacionado na porta. Adam é muito pálido e muito grande, como um jogador de basquete. Meu pai vai visitá-los um fim de semana, aproveitando uma viagem que faz para um congresso da OEA. Ao voltar diz que brigou com Mercedes falando de política, mas Mercedes

depois contou outra história para Arturo. Meu pai, que não suporta demonstrações públicas de afeto, se irritou porque Adam dava selinhos em Mercedes por qualquer coisa ou a abraçava na frente dele. Na manhã em que brigaram, Mercedes estava sentada no colo de Adam, brincando de cavalinho em uma de suas grossas coxas de grandalhão enquanto conversavam. Quando Mercedes comentou com meu pai que um monte de seus ex-colegas de faculdade estava indo embora do país, sobretudo os que militavam em algum grupo de esquerda, meu pai disse que ela estava exagerando. – Pai, no exterior todos sabem o que acontece na Argentina. Dos campos de concentração… A mão de Adam subia despreocupadamente pelas costas de Mercedes, por dentro de sua camiseta. Meu pai pulou como uma panela de pressão. Mas não diga sandices, por favor. Isso é uma campanha infame. Eu já o havia escutado dizer o mesmo do panfleto que os padres tinham dado a Félix no colégio, uma folhinha branca impressa em mimeógrafo e escrita em francês. Embaixo do texto estava o logo da Copa de 78, duas tiras com um espaço no meio, como as duas bandas da bandeira argentina, formando um abraço em volta de uma bola de futebol branca e preta. No panfleto, as tiras das mãos apareciam rodeadas por quatro fileiras de arame farpado, como nos campos de prisioneiros. Mercedes mandou presentes para todos. Para mim, ela comprou uma raquete de plástico cheia de buracos de todos os tamanhos para fazer bolhas com o vento enquanto você corre, como se eu tivesse os mesmos doze anos que tinha quando ela foi embora. Para minha mãe, ela mandou uma blusa com algo chamado mangas de morcego, que é a coisa mais feia que já vi na vida. Minha mãe não fingiu nem um segundo: e está cheia de poliéster! Javo lê em voz alta para mim Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis. Como dividimos o quarto, não tenho escapatória. Ele sentado na sua cama, e eu, na minha, apoiada na parede em frente. Escuta isso, ele me diz, e recita “Avisos úteis para a vida espiritual” e “O desprezo de todas as vaidades do mundo” com sua voz cristalina e profunda que vibra em todo o quarto. No início eu gosto, mas depois fico entediada. Ele usa um tom monótono, para economizar energia, porque gosta de ler muito, e escolhe sempre uma coisa longa, com várias páginas, e você tem que ficar ali presa, escutando. Meu pai o incentiva recitando trechos de Tomás de Kempis em

alemão: Wenn wir in jedem Jahr auch nur einen Fehler ausrotten, würden wir bald vollkommene Menschen (Se todos os anos extirpássemos um vício apenas, chegaríamos rapidamente à perfeição). E ele o encoraja a ter o coração puro e a intenção simples e a se preocupar com a vida interior, o que cai bem a Javo, porque ele tem cada vez menos amigos e já faz mais de um ano que terminou o colégio e não quer estudar nada, porque talvez entre no seminário. De repente ele se transformou no malvado mais bonzinho do mundo. Ele me considera uma herege e lê para mim salmos e frases ameaçadoras do evangelho com a palavra carne. Eu sou a ovelha desgarrada que transa com o namorado. Ele sabe porque descobriu minhas pílulas e também percebeu que fujo à noite pela janela. – Não vou contar nada para o papai, mas não faça mais isso. – Eu prometo. Além disso, há algum tempo ele fortalece sua devoção espiritual com exercícios físicos. Colocou uma barra de ferro no corredor e passa horas fazendo flexões de braço e se pendurando de cabeça para baixo pelos joelhos. Ele comprou uns extensores e uma corda para pular e anda de calção de futebol e sem camisa, apalpando os próprios bíceps. Mesmo o quarto sendo grande, dividi-lo com ele é um tormento. Ele se instala no meio, entre as duas camas, e fica fazendo abdominais sobre as lajotas frias, ofegante, com os músculos inchados e encharcado de suor. E reza, por horas a fio, com o quarto praticamente às escuras, ajoelhado no chão. Quem me salva é Arturo, que me nomeia arbitrariamente herdeira de seu quarto do fundo do corredor, atrás do banheiro. Às vezes ele vem almoçar ou jantar no sábado, mas nunca fica para dormir. Seu quarto dá para a frente da casa e pela janela se vê o jardim e, um pouco mais adiante, a rua, com um pavimento que não chega a ser asfalto. Depois, as copas das árvores e o bosque de eucaliptos. A luz do poste da rua está queimada e à noite apenas uma janela distante, das poucas casas deste lado de Bellavista, fica acesa. Nunca passa ninguém por aqui. Eu me mudo sem pestanejar. Em menos de vinte minutos tiro todas as minhas coisas do quarto que divido com Javo, mas não exagero na felicidade para que ele não se ofenda. Meu novo quarto está um pouco abandonado, mas me entusiasma pensar em todas as coisas que posso fazer para melhorá-lo. Para começar, que deixem de usá-lo para guardar o aspirador e as espreguiçadeiras da

piscina. À noite eu fico com frio e procuro um cobertor. O armário é grande como um quartinho e está cheio de caixas de papelão da mudança que ainda não foram abertas. Pilhas de revistas amarradas com fio de sisal, El Correo de la Unesco, National Geographic, anuários escolares do aluno do La Salle do ano que você quiser e um cheiro desagradável de papel úmido. Encontro as Penthouse de Arturo e também outras mais pornográficas escondidas embaixo de uma pilha, sob os cadernos do primário de Javo. Algumas eu já tinha visto, outras não. A dos dois homens eu não tinha visto. Um tem as costeletas tão grandes que quase chegam à sua boca e o outro está com chapéu de caubói. Viro as páginas atordoada e, quando chego ao meio da revista, fico chocada com um pôster a partir do qual todas as páginas estão grudadas por uma mancha que enruga as fotos. Atiro a revista de volta no fundo do armário, com nojo, e me enfio na cama como se estivesse me escondendo. As batidas do coração não me deixam respirar. Sopro e sopro por um tempo, tentando tirar da cabeça a imagem dos dois homens se beijando, mas não consigo. Desde que me mudei do quarto, Javo está estranho.. Toda noite nos despedimos com um até amanhã no corredor, cada um parado em frente à sua porta. Mas depois de um tempo ele aparece no meu quarto de repente para me dizer alguma coisa. No início, pensei que ele fizesse isso porque a revista que encontrei era sua e que ele entrava no quarto para ver se eu a havia descoberto. Mas depois me dei conta de que ele vem para ver se não escapei pela janela. Com o passar das noites, ele se convence de que não fujo mais e, cansado de me vigiar, baixa a guarda. Então eu convido Hernán. Ele entra pela janela da frente à uma da manhã. Eu o ponho na minha cama, sob o folheado de cobertas arrematadas pelo poncho de vicunha com franja que me faz cócegas no rosto. Como tudo corre bem, dois dias depois fazemos de novo; na semana seguinte repetimos o cronograma de terças e quintas. Começo a levar coisas para o quarto, víveres – para as longas noites de amor. Frutas, a jarra de água da geladeira ou um pouco de alguma coisa gostosa que sobrou do jantar. Também saio para ir ao banheiro e volto para o quarto com uma toalha na mão. Mas o que deixa Javo desconfiado são os dois potes de gelatina de cereja. Uma manhã ele entra no meu quarto com a desculpa de pegar dois dos

três volumes grossos da enciclopédia Salvat e vê duas tigelas com as colherinhas. Como me dou conta de que está olhando para elas, digo: me deu uma gula danada. E não nessa noite, mas na seguinte, quando preparo tudo para voltar a colocar Hernán para dentro, Javo faz uma armadilha para caçá-lo. Ouço pela parede que alguém entra no banheiro que fica ao lado do meu quarto. O ruído dos ganchos da cortina e esse som inconfundível de um sabão deslizando como um esquiador dentro da banheira vazia. Quem quer que seja está parado em frente ao chuveiro olhando a rua pela janelinha. Dá para ouvir quando abre a janela puxando a alavanca para baixo. Eu sei que por cima do vidro esmerilado se vê um pedaço de rua iluminada pelo lampião de casa e mais ao fundo duas árvores escuras e a noite preta, gelada e silenciosa. Fico petrificada, tentando aguçar o ouvido na escuridão, mas o coração bate no meu tímpano. Escuto mais passos no corredor e de novo a porta do banheiro que se abre e fecha, outra vez os ganchos da cortina e vozes que murmuram. Javo está com tudo pronto para me pegar em flagrante. Certamente também avisou aos nossos pais, ou pelo menos ao meu pai. Tenho que alertar Hernán quanto antes, para ele não se aproximar da casa. Fecho a porta do quarto com chave e acendo as duas únicas luzes que há, uma no teto e outra na mesa. Preciso poder ser vista da rua, recortada na janela aberta como uma tela. Apoio o abajur no batente da janela aberta, me iluminando de frente para que a contraluz não me deixe às escuras. Tenho que chamar sua atenção antes que ele ponha o pé no jardim. Hernán precisa continuar caminhando como se fosse uma pessoa qualquer. Fico na janela esperando. Quando vejo uma sombra se aproximando pela rua, sem ter certeza se é ele ou não, e meio ofuscada pela lâmpada que me ilumina de frente, mexo as mãos fazendo sinal de que continue andando. Os gestos são claros e exagerados: silêncio, continue andando e não olhe para mim. Sei que é ele porque está com o chapéu borsalino do pai. Ele está a ponto de parar, mas me vê um milésimo antes de o cérebro mandar a ordem para o pé, corrige o tropeção no mesmo passo e continua andando como se nada tivesse acontecido, como uma pessoa qualquer que passa pela rua (e como se isso fosse a coisa mais normal do mundo neste bairro à uma da manhã). Fico ouvindo seus passos, cada vez mais rápidos, até que se perdem na noite. Quando finalmente a escuridão o engole, eu recupero o fôlego, apago as luzes, destranco a porta e me deito tremendo. Fecho os olhos para

descansar os minutos que faltam até Javo e meu pai abrirem a porta para me levarem ao cadafalso, mas eles não aparecem. Escuto movimentações e cochichos no corredor e cada um entrando em seu quarto, os pés descalços de Javo sobre o piso de cerâmica. Por um longo tempo não tenho coragem de mexer nem um dedo, como se eles tivessem deixado uma câmera me vigiando. Juro por minha irmãzinha morta que nunca mais faço isso de novo.

A manhã seguinte é igual a todas as outras, assim como os dias seguintes. É como se nada tivesse acontecido. Nós três sabemos que sabemos, mas, como o plano de me flagrar fracassou, meu pai e Javo não o revelam. Para chegar a esse ponto, suponho que Javo também contou ao meu pai que eu fujo pela janela para ir me deitar com meu namorado e que fumamos maconha. Comentei isso com ele alguma vez para dar uma de descolada e agora certamente meu pai está sabendo. Mas ele não me diz nada, suponho que para não delatar Javo, embora o verdadeiro motivo deva ser para que minha mãe não fique sabendo. Está claro que ela não sabe de nada, porque ela, sim, não conseguiria deixar isso guardado. Tudo aconteceu com a Bela Adormecida dentro da redoma. Melhor assim. Meu pai não contou nada a ela para poder esconder de si mesmo também. Compartilhar um segredo com meu pai faz Javo levitar. Além disso, ele acha que faz tudo isso pelo meu bem, para me salvar; já me disse isso outras vezes que me dedurou. Mas odeia que meu pai não tenha me falado nada e também detesta ficar como um dedo-duro filho da puta, que é o que ele é. Meu pai dá por certo que esse namorado que eu tenho é o inimigo. E ele me diz uma coisa, só uma coisa, segurando o meu braço e apertando os dentes, prestes a subir no carro para ir trabalhar: se eu ficar sabendo que você voltou a ver esse sujeito, vou denunciá-lo para a polícia. Não deixo mais Hernán entrar pela janela, nem tenho coragem de fugir. Fico em casa por um tempo. Leio no sofá da sala para que me vejam. Bordo uma girafa amarela na perna de um jeans e passo muitas tardes na Raquel depilando o bigode com cera vegetal e escutando canções de Leonardo Favio. É um pouco de atrevimento da minha parte, mas estou desesperada. E tomo coragem porque os retiros espirituais estão na moda e em Bellavista todo mundo vai. Javo pula de um convento para outro todos os fins de semana. Ele sai sexta à tarde e volta domingo à noite. Por isso falo com meu

pai, porque afinal estou me comportando como uma freira. – São uns retiros que fazem todos os finais de semana no colégio da irmã Regina, as meninas com quem estudei vão participar… – Acho ótimo você não se esquecer delas. Até eu acho exagero mentir para passar o fim de semana todo fora, mas os retiros são assim e meu pai e minha mãe sabem disso. Acho que a duração é parte da graça: se você consegue suportar a chatice, no final do segundo dia desce um anjo do céu e lhe dá uma entrada. Assim, às sextas à tarde digo que vou ao retiro e vou para um sítio no Parque Leloir, onde me interno com Hernán até domingo à noite. O sítio é de um amigo de Edi, o irmão de Hernán, ou melhor, dos pais do amigo, que vivem no México. Chamam o amigo de Mexicano, e ele é como o guia espiritual – ainda que eles digam xamã – da banda dos garotos de Ramos Mejía. O Mexicano é mais argentino que o sifão de soda, mas conheceu um chileno no México que lhe transmitiu a sabedoria dos índios. Edi diz que eles se correspondem e também que fazem viagens cósmicas juntos, mesmo estando um muito longe do outro. Ele mistura mitologia e fábulas e dá uma importância mística a coisas como sementes, folhas, sobretudo as da Cannabis sativa, da qual há algumas plantas no fundo do quintal que são mais altas do que eu e cujo cheiro se sente do portão, de entrada. Segundo Edi, o encontro com o Mexicano mudou sua vida, e ele já não se interessa pela música a não ser como ferramenta para atingir um estado de consciência superior. Parou de tocar guitarra (porque a vendeu, corrige Hernán) e agora toca uns tambores pequenininhos que coloca entre as coxas. Ele e seus amigos fumam maconha em um narguilé caseiro feito com uma garrafa e que dá uma onda dez vezes mais forte do que um baseado, e possivelmente derruba mais do que um cassetete, porque ficam jogados na sala entre as almofadas e as mantas que o Mexicano acomoda especialmente em frente à lareira. Eu sei que às vezes também tomam ácido e cogumelo para terem experiências místicas. E falam por máximas, igual a Javo quando descobriu Tomás de Kempis. Curiosamente, suas ideias se parecem bastante. Coisas como triunfar é aprender a fracassar e o mundo tem a medida do seu olhar. Eles seguem os ensinamentos dos mestres sufistas, que propagam a ideia de não possuir nada e não ser possuído por nada, mas têm muitos discos e vivem tocando Tubular bells, de Mike Oldfield. Nessa sexta à tarde, quando chego ao sítio, Hernán está sozinho. Me

oferece um pão caseiro que ele mesmo fez e um chá de flores que curam todos os males da alma se são cortadas na lua cheia, como na noite anterior. Ele coloca tudo em uma bandeja e nos sentamos na sala, nas poltronas de alfarrobeira estilo Flintstones que combinam com a mesa de jantar, que deve pesar cinco mil toneladas. Pela janela se veem a grama úmida e as plantas brilhantes. Eu tiro as botas e as meias. Hernán apoia sobre a mesinha de centro um bule e duas tigelas de madeira laqueada com riscos em degradê. Quatro flores brancas na forma de sininhos flutuam com seus talos na água do bule, e no gravador apoiado sobre a mesa de jantar toca “Durazno sangrando”. A luz da tarde se apaga sem nos darmos conta e, quando terminamos de tomar o chá, estamos praticamente no escuro. Hernán diz que para que faça efeito temos que comer uma flor cada um. Eu como porque me parece poético, mas as flores são alucinógenas. Hernán não me disse nada e só percebo quando tento me levantar para buscar um cigarro e não consigo. O chão afunda debaixo dos meus pés e não posso me segurar em nada porque tudo se mexe como se estivéssemos em um barco sobre ondas gigantescas. Eu caio de novo na poltrona e sinto náuseas e vontade de vomitar. Hernan me olha sem parar de sorrir, com a boca aberta, mas sem emitir nenhum som. O que você me deu? O que nós tomamos? pergunto. Minha própria voz soa como que saída de um túnel muito distante, sem que eu mexa os lábios. Quando inclino a cabeça, as imagens dançam como varridas por uma vassoura gigante e a música soa como um fundo caótico e estridente. Hernán sorri para mim. – Não é lindo? – Ele tem os olhos negros com um brilho de diamante e a pele translúcida. – Não, não é lindo, eu estou me sentindo muito mal. Tento ficar de pé novamente, mas caio no chão porque não consigo controlar os meus pés. Sinto-os fracos como quando você tira os patins depois de ficar com eles muito tempo. Vou me arrastando até o banheiro para vomitar, mas chego tarde e vomito em mim mesma. Não vejo nada, está tudo embaçado como se tivessem pingado colírio nos meus olhos. Hernán se aproxima para me ajudar, mas sinto que não o conheço e que é alguém que quer me machucar; peço gritando que vá embora. Tenho que sair desta casa, mas não sou capaz nem mesmo de ficar de pé. Eu me tranco no banheiro e tampo a fechadura com papel higiênico. Tudo se mexe em câmera lenta. Fico muito tempo jogada no chão contando as lajotas e vomitando, até que paro de tentar, porque não tenho mais nada no

estômago e os espasmos doem. Quando as náuseas melhoram, levanto. Ao me olhar no espelho, fico aterrorizada, porque não reconheço a garota de cabelo curtoe escuro que olha para mim de dentro dos meus olhos. Ela se parece com Leslie Caron atrás de um vidro esmerilado. Saio do banheiro e vou até a sala com os braços estendidos como uma cega, e outra vez aparece Hernán. Sinto vontade de gritar que o odeio, como foi capaz de me drogar sem me avisar, irresponsável, filho da puta, teimoso de merda que faz sempre tudo o que quer, mas sai uma voz gutural que diz coelhos e quando olho para Hernán ele está sem cabeça. Meu coração começa a bater como uma bomba. Fico sem ar e começo a chorar e a chamar minha mãe. Nunca me senti tão mal em toda minha vida. Sinto que posso morrer. Hernán recupera a cabeça, mas fala como se estivesse bêbado e não dá para entender nada. Eu peço água para ele, porque tenho a boca seca e pastosa, e minha voz soa estranha e ele também não entende nada do que digo. Com a língua tão seca que gruda nos meus lábios, vou até a cozinha tomar água. Quero pegar um copo, mas os objetos se afastam quando me aproximo. A jarra, o copo, o puxador da porta da geladeira. Tomo água de uma garrafa e depois a deixo se espatifar no chão; os cacos de vidro pulam por toda parte. Hernán me leva de volta para a sala e ficamos jogados no chão sobre os cobertores. Da luminária de cerâmica jorra uma pequena cachoeira de água. Estico a mão, mas não consigo tocála, porque ela se afasta. Sinto um cheiro forte de cachorro molhado. Em um canto, enroscado sobre si mesmo em cima de uns trapos, está Yuri, o cachorro que tivemos quando éramos pequenos, ainda que na verdade ele fosse de Arturo. Eu me aproximo para falar com ele e ele me diz que não é verdade que ele foi viver no campo, mas me dou conta de que é uma alucinação e sinto medo. Não consigo lembrar o número de telefone de Raquel, que sei de cor. Procuro a agenda de telefones na minha bolsa. Quero que Raquel pergunte à sua irmã que estuda medicina o que eu posso tomar para cortar os efeitos das flores. Tenho medo de não voltar ao normal. Pego a agenda, mas não consigo ler nem as letras nem os números. Fico aterrorizada, pensando que posso ter ficado cega para sempre. Meu coração pula como um potro e estou com a respiração agitada, mas me levanto e bato em Hernán até que fico sem forças para dar mais socos e chutes nele. Arranco uns tufos do seu cabelo e rasgo sua camisa. Tento cravar uma faca no peito dele, mas cravo um pente no seu ombro. Grito tão forte que me assusto comigo mesma. Hernán chora e esconde a cabeça com os braços.

Depois começo a perambular pela casa em busca de uma saída secreta. Quero abrir todos os quartos, mas as portas estão sem maçaneta e, quando tento tocá-las, minha mão atravessa a madeira. Vou para o jardim, porque faz muito calor. Está amanhecendo. Alguém está sentado numa cadeira perto da churrasqueira. Vou falar com a pessoa, mas no caminho esqueço aonde estou indo e começo a seguir o rastro de uma formiga, até que chego ao formigueiro e sinto a música que sai de dentro, o “Hino à alegria”, de Beethoven. Sigo até a churrasqueira quicando como uma bola de fliperama, de uma coluna a uma árvore, de uma árvore até o motor da piscina e do motor até a mesa. Começo então a falar com alguém que está sentado na espreguiçadeira. A pessoa me diz: a força consiste em se deixar levar pelo vento, porque o vento sabe o que faz. Um pássaro pousa num galho para nos escutar e penso que isso tem alguma coisa a ver com Javo. Ainda sinto náuseas, mas já parei de vomitar e às vezes acho que recuperei a sanidade. Na casa vizinha, alguém está podando a cerca com uma tesoura, chac, chac. Caminho descalça pelo caminho de pedrinhas sem sentir dor alguma, até que o sol sai e me deixa completamente cega. Edi e o Mexicano chegam ao meio-dia. Eu estou dentro da casa de cachorro abandonada, me escondendo de Hernán. Não estou muito assustada, mas mijei nas calças algumas vezes. Edi me traz uma garrafa de seven up e depois me convence a entrar na casa para deitar em um quarto. Como estou ardendo de febre, ele me cobre sobre uma cama com umas mantas grossas, fecha as persianas e as cortinas, senta-se no chão ao lado da cama e me dá a mão. Ele me diz: eu te guio pelo caminho, não fique com medo. Irradia uma luz. Através da sua mão, sinto um calmante que começa a se espalhar pelo meu corpo inteiro. O medo vai embora, mas começo a tremer porque estou com a roupa molhada. Edi me ajuda a tirar a roupa, que cheira a amoníaco, me leva até o banheiro e me lava com uma esponja debaixo do chuveiro. Depois me seca com uma toalha, e não me importo que ele me veja nua nem quero parecer bonita. O esforço do banho me deixa tão extenuada que me deito para dormir, mas não consigo porque tudo começa a se mover outra vez. O Mexicano aparece e me diz para não ter medo, que está tudo bem e que logo vou voltar ao normal. Ele acende um cigarro e fumamos. O melhor é ficar com os olhos fechados sem mexer muito a cabeça. Ele me explica que

tenho que esperar passar, mas que vai demorar. Relaxa e espera, Edi me diz num sussurro perto do ouvido. Ele fica várias horas comigo. Falamos com palavras e sem palavras, transmitindo tudo pelas mãos, diálogos inteiros. Para tirar minha temperatura, ele apoia a mão no meu rosto, na testa, nas bochechas e sobre a boca. Ele me abana com uma revista para me dar ar. Eu me sinto muito melhor. Como uma ameba flutuando. A mente em branco e o corpo leve como o ar, segurando a mão de Edi, que aperta meus dedos como um feixe de balões. Quero agradecer tudo o que está fazendo por mim, mas quando olho para ele vejo o rosto de Cristo. Ele me diz: eu amo todas as pessoas, e nos abraçamos. Não quero soltá-lo porque tenho medo de sair voando como a caneta de 2001. Sabedoria é fazer por outro o que você gostaria que fizessem por você, ele me diz. Quando de repente me viro, ele foi embora e estou segurando a fronha do travesseiro. Vejo a mim mesma de fora. Escuto meu pensamento e me sinto longe dessa boba drogada que mal pode balbuciar. As náuseas voltam. Mas me dou conta de tudo. De que não odeio Hernán, mas não o amo mais. Todo o nosso futuro passa pelos meus olhos como um filme. Penso na minha mãe. Sinto pena dela, a dor pungente de toda sua infelicidade insuportável. Tudo está claro. Eu me sinto uma incompreendida, mas não passo de uma filha má. Minha mãe e meu pai me amam e querem o melhor para mim. E Deus me ama, nunca deixou de me amar. Eu sou a inconsciente que foi capaz de desprezá-lo. Depois durmo por muitas horas e quando acordo demoro bastante para abrir os olhos, com medo de que as coisas continuem se mexendo. Escuto a porta e alguém que entra no quarto e me acaricia as costas sobre as cobertas. Como você está? É a voz de Hernán, sua voz de sempre. Ele se ajoelha ao pé da cama e começa a chorar. Quero tocá-lo, mas não consigo mexer nem um dedo e tenho a sensação de ter mudado de



repente de caminho, como quando um trem muda de bitola sem se deter. Olho para ele de longe. Seus movimentos são inseguros e pobres. Seu tom de voz varia e de repente ele é como uma mulher queixosa e triste. Sinto que gosto dele como ele é e não como preciso que ele seja, porque não estou mais apaixonada por ele. E me sinto sábia, como se cada pensamento iluminasse minha alma com uma verdade essencial. Hernán me traz um caldo de arroz e um pão com gosto de formiga que mal consigo engolir. Tenho que levantar e ir para casa de qualquer jeito,

antes que anoiteça. Tudo está fora de lugar, os móveis e nós. Não tenho ideia de que dia é nem de quanto tempo passou. O chão já está quieto, mas as paredes ainda se movem um pouco, como peixes. As cobertas formam ninhos e há um balde com um pano de chão. Minha visão não está mais embaçada. Estou vestindo uma camisa branca que não sei de quem é e a calça lee de Edi, que ficam grandes em mim. Minha roupa está no chão do banheiro, cheia de vômito e cheirando a mijo. Minha camiseta tingida de roxo está do avesso e enrolada com a minha calcinha. O que aconteceu? Seria tão forte o poder daquelas flores? Demoro uns minutos para lembrar que Edi me lavou, e outras coisas começam a aparecer. As vozes de Hernán e Edi brigando no corredor. A voz do Mexicano dizendo: o ciúme é o medo que você tem de que os outros deem a quem você ama o que você não é capaz de dar. Que horas devem ser? Vão me matar quando eu chegar em casa. Hernán me diz que é domingo e que temos que ir. A gente se apressa o máximo possível, mas demoramos muito para sair. Quando nos despedimos de Edi, ele está na cozinha, carregando uma máquina fotográfica que por um instante me dá pavor (quantas coisas de que não me recordo podem ter acontecido?). Me lembro de um passeio pelo jardim iluminado por uma lua cheia e de uma felicidade como nunca havia sentido. Lembro que vimos sete estrelas cadentes, uma de cor rosa-fosforescente. – Diz para o Mexicano que eu agradeço por ontem à noite – digo ao sair. – O Mexicano está no México desde a semana passada. Quando saímos para tomar um ônibus para casa, já está anoitecendo. Durante a viagem mal nos falamos. Trocamos alguns beijos suaves e lentos sentados no último banco de um ônibus intermunicipal quase vazio, beijos aplicados como uma compressa curativa – mas algo se rompeu para sempre. A lua aparece, imensa, e Hernán me abraça com uma força exagerada e desajeitada e me diz: me perdoa, sou um idiota. Não me sinto nem mal, nem bem. Eu me ajeito em seu ombro e olho pela janela. Entramos em uma área mais urbana e as luzes ficam loucas. O efeito das flores vai e volta como em ondas e tenho que fechar os olhos para não enjoar. O jogo que está sendo transmitido no rádio me deixa triste. Sinto um gosto horrível na boca e arrumo o cabelo. Ele secou sem que eu o penteasse, e agora minha cabeça parece a da Medusa.

Estar com a roupa de Edi me faz sentir adúltera, e a palavra me excita. Tento não pensar nisso, mas na minha cabeça escuto Paul Williams cantando We’ll remember you forever, Eddie. Chego em casa morta de cansaço, com uma lassidão difícil de dissimular, e assim que abro a porta meu pai me dá um tapa na cara e rosna entredentes umas palavras incompreensíveis das quais só entendo puta. Ele me joga com um empurrão no sofá da sala e sinto que as flores estão voltando a agir e meu coração fica aos pulos outra vez, como no sítio. Meu pai está furioso como um lobo. – Eu vou te mostrar o retiro espiritual, trapaceira. Ele afrouxa a fivela do cinto me olhando nos olhos, mas não chega a tirá-lo, porque Arturo entra, coloca a mão aberta sobre seu peito e o joga contra a estante. – O que você está fazendo? Ficou maluco? Vai bater nela que nem você fez comigo por causa desse caguete de merda? Covarde, por que não bate em mim, hein? Porque agora cresci, né? – Ah. Não me faça falar. – Se você tem alguma coisa para me dizer, fala, filho da puta. Meu pai olha para mim: você, já para o seu quarto. Duas coisas ficam claras: uma é que Javo me delatou e a outra é que meu pai tem coisas mais importantes para discutir com Arturo do que as minhas mentiras, minhas escapulidas ou meus pecados carnais. Deve ser algo importante. As ondas narcóticas das flores me revelam verdades e o coração começa outra vez a cavalgar como um louco. Eu me enfio na cama e tento respirar fundo, mas o beijo do cara das costeletas grandes como as de um caubói volta a ocupar toda a minha cabeça. A revista era de Arturo. Quem virou veado foi ele. Eu tiro uns cochilos e, quando abro os olhos, tudo continua dando voltas. Não sei se sonhei que trepava com o das costeletas ou se era Arturo que trepava com ele. Também não sei se sonhei ou se me toquei pensando nisso. Ainda não amanheceu quando escuto barulhos e me levanto, mas, em vez de dar com a Branca de Neve paraguaia na cozinha, encontro meu pai de pijama e robe lendo umas pastas de trabalho na mesa enquanto espera o jornal. Não sei se ele me olha porque não levanto a vista dos mosaicos do piso. Eu me apoio na bancada e sinto que minha camisola se molha com a borda úmida da tampa de mármore, mas não me mexo. Meu pai levanta os olhos e os crava em mim como um dardo, justo no único instante em que,

sem me dar conta, me atrevo a olhar para ele. O ódio da noite anterior está intacto nas suas íris exaltadas. Como pode durar tanto? – Desgraçada – diz ele com desprezo. E vira a página. Minha vida é uma merda. Sinto que o calor da luz de Hernán se apaga e isso me enche de frio e tristeza. Para vê-lo tenho que inventar mentiras mais e mais complicadas e cada vez sinto que vale menos a pena. Nos encontramos apenas para chorar, brigar e discutir. O que aconteceu no sítio mudou tudo. Não somos mais os mesmos. Estou decepcionada e ainda com raiva dele por ter me drogado sem me avisar. Ele insiste que nesse dia eu o maltratei, rejeitei e fiz uma viagem com o seu irmão em vez de com ele. Eu acho o cúmulo que, além de tudo, ele seja capaz de jogar isso na minha cara. A gente concorda em dar um tempo para pensar. Raquel diz que, quando um diz para o outro que está confuso, quer dizer não gosto mais de você, mas eu fico com medo só de pensar. Todas as certezas que tive nesse final de semana febril no sítio deixam de se sustentar, porque para mim é difícil pensar a vida sem Hernán, mas é evidente que estar com ele não está me fazendo bem, que não vamos a lugar algum. Ou, o que é pior, vamos, sim. Como Deus me premiou com o dom da amizade, logo faço amigos no mercadinho. A Raquel vêm se somar Alessandra, Alemão e uma menina do terceiro ano que tem as pastas cobertas com fotos do The Who. Tenho um colega que se chama Juanse Paso. Ele está no meu curso, mas é três anos mais velho que eu. Frequenta o mercadinho porque repetiu de ano três vezes e nenhum colégio particular o aceita. Ele não parece mau aluno, pois usa camisas engomadas, gravatas de seda e um paletó azul-escuro impecável, mas eu não consigo esquecer que ele repetiu três vezes. Ele me persegue porque diz que nós dois somos os únicos mauricinhos do colégio e temos que andar juntos, que eu não devo perder tempo com esses cafonas que nos rodeiam, incluindo Raquel. Ele é brutal, mas valente. Segundo ele, seu irmão mais velho foi colega de Arturo no primário e nossos pais se conhecem. Acho engraçado que ele tente me conquistar e que venha ao colégio de carro, uma banheira grande e branca que estaciona na esquina. Ele tem dezoito anos, mas seu corpo é de homem, os braços são musculosos e o pau muito marcado na calça, bem ao estilo James Caan. Tomo cuidado para não olhá-lo, porque tenho medo de que ele pense que é uma provocação. Quando falo com ele, em vez de olhá-lo nos olhos, que sempre estão me lambendo, olho fixamente para as dragonas do casaco militar

verde-oliva que ele usa sobre o paletó azul. Ele percebe, levanta a gola e desfila com elas. Você gosta? São muito maneiras. Vou arranjar uma para você. Quatro dias depois, ele me traz uma em uma sacola da loja Eduardo Sport. Na saída ele me segue com o carro até o ponto de ônibus, para me levar até minha casa. Da segunda vez que me deixa na porta, Javo diz: acho que isso você não conta para o seu namorado, né? Na segunda à tarde vou à casa de Raquel e cruzo com um caminhão do exército, que freia ao me ver. Estou usando casaco militar. Eu o enchi de broches e do bolsinho direito de cima sobressai um ursinho Teddy de cinco centímetros. Sem descer do caminhão, o motorista me pergunta onde o consegui. Eu respondo que foi presente de Juanse Paso, filho do coronel Paso, e ele me diz que não posso andar com isso pela rua. Na sexta à noite, depois de jantar e sem me avisar, Juanse passa por minha casa para me convidar para sair. Estaciona sua banheira atrás do carro do meu pai e bate na porta. Inicialmente meu pai o confunde com o irmão mais velho dele, o que foi colega de Arturo, e o faz entrar, surpreso, mas contente em vê-lo, com essa afabilidade exagerada que ele acha que é a boa educação. Minha mãe sai da cozinha para cumprimentá-lo, repentinamente amável. Juanse, simpático, formal e também se comportando como pensa que dita a boa educação, pede a autorização dos meus pais para me levar a uma festa no colégio San Isidro Labrador. Meus pais me deixam ir sem me perguntar se eu quero, felizes de que afinal seja amiga dos filhos das famílias conhecidas de Bellavista, dos rapazes de bem. E eu aceito ir por eles, para lhes dar uma alegria de vez em quando. E também porque me sinto mais velha saindo à noite com um cara que tem carro. Coloco um brilho nos lábios e os cigarros ficam melecados de gosma de framboesa. Juanse está usando uma camisa lacoste azul como seus olhos e um jeans branco apertado demais. Seu cabelo castanho está cortado rente como um bichinho de pelúcia. O trajeto até San Isidro é escuro feito a boca do lobo. O rádio não funciona. Quando atravessamos o Campo de Mayo, ele me conta que seu irmão é tenente. Diz isso com orgulho, mas dá para notar a inveja. A festa é no pátio do colégio, ao ar livre. Tomamos um whiscola e uma paso de los toros. Só dançamos as músicas lentas, porque ele não gosta de dançar. Mas na terceira delas – “Conociéndote”, de Banana Pueyrredón – eu digo que ele está me

apertando como um tubo de pasta de dentes e ele se ofende. Na ida fiquei com medo de cruzar com algum dos amigos que Hernán tem em Acassuso, os garotos com quem íamos ao cinema na sessão da meia-noite, mas as pessoas da festa não têm nada a ver com eles. Todos os rapazes estão penteados com a risca para o lado e usam o suéter amarrado nos ombros. Eles estão um pouco bêbados e andam como se estivessem no cio, em grupinhos de três ou quatro, rodeando as garotas e olhando os seus peitos sem disfarçar. Na volta, Juanse me fala de sua grande paixão: a Fórmula 1. Umas quadras antes de entrar na avenida que dá na minha casa, ele me pergunta se não quero ir um instante na dele. Sem pensar, respondo que tenho que levantar cedo, mas Juanse me lembra de que amanhã é sábado. Ele dirige rápido demais, acelera e freia abruptamente. Eu me agarro na borda do banco e no apoio da porta, rezando para que os dois whiscolas não o tenham deixado bêbado. Juanse entra na casa dele com uma virada brusca e freia meio centímetro antes da porta da garagem, que está fechada. Deixa o carro do lado de fora para não fazer barulho, porque seus pais estão dormindo. Dois pastores-alemães imensos nos recebem e pulam em cima de nós querendo festinha. Ficamos na sala, no escuro. Pela porta na frente do sofá entra a luz de um lampião na varanda. As paredes estão decoradas com sabres e condecorações e há uma benção papal numa moldura dourada. Juanse se serve um uísque e senta no sofá de camurça marrom, e eu fico de pé e acendo um cigarro. Vem, ele me diz, senta aqui comigo, não vou te fazer nada… que você não queira. Antes que eu termine de me sentar, ele me agarra a mandíbula com sua mãozona aberta e me tasca um beijo na boca, babado e hostil, quase sem me deixar respirar, ao mesmo tempo que mete a outra mão por dentro da minha calça, pela bunda, até o fundo da calcinha, onde seus dedos ásperos e duros futucam, buscando onde se enfiar. Levanto com um pulo para trás e caio sobre uma mesinha baixa, cheia de cinzeiros de bronze, que soam como uma pilha de pratos quebrados. Juanse fica nervoso porque seus pais podem acordar. Rapidamente ele guarda a garrafa de uísque e acende a luz. Peço que me leve para casa e ele me diz para ir a pé. Eu nem sequer sei onde estamos, porque quase não conheço esta parte de Bellavista, mas saio da casa – os dois pastores me acompanham até a porta – e caminho pela rua de terra onde parece estar a ferrovia.

Três quadras depois, ouço um carro que vem com as luzes altas. Fico com tanto medo que, quando me dou conta de que é Juanse, sorrio. Ele aproxima o carro e abre a porta para que eu suba. – Vamos, sobe aí, eu te levo. Você é bobinha, hein? Como me enganei com você. Parecia muito mais esperta, falando de Buenos Aires, muito tiro fácil, e fica assim por causa de uns beijinhos. Por aqui as meninas são mais vagabundas, você não sabe como a minha namorada chupa o meu pau, e faço com ela umas coisas que você ia adorar. Tem certeza de que não quer experimentar? Eu digo que prefiro descer e ele acelera para o lado da minha casa, freia bruscamente na porta e antes que eu desça me diz sorrindo, cheirando a ponta dos dedos: ah, e uma coisa, lá também tem que depilar, sabe?

Minha mãe sempre comandou a casa da cama, mas agora se levanta cada vez menos. Não vai mais fazer compras em Buenos Aires, nem sequer para meu pai, que não é capaz de comprar um par de meias sozinho. Também parou de cozinhar, e por ela poderia viver à base de café com leite com torradas. Ela fica o dia inteiro enfiada na cama com a cortina fechada, dormindo ou falando no telefone. Quando a gente entra no quarto dela, tem a sensação de ter colocado óculos escuros. Na beira da cama ficam seus chinelos de couro azul, e o robe do mesmo cinza dos olhos fica pendurado na cadeira. A cortina cobre toda a parede, mas lá fora no jardim as azaleias que Arturo plantou especialmente para ela já floresceram. Ela não está nem aí. Toma comprimidos e dorme, enterrada entre as cobertas, em uma depressão infinita. Vou ao seu quarto quando ela me chama. Sento na beira da cama e por um segundo alimento a ilusão de que ela vai me perguntar algo que tenha a ver de verdade com a minha vida, mas como sempre ela me pergunta do colégio. – Esse cabelo te dá um aspecto desarrumado… e a calça está curta. Você não sabe descosturar a bainha? Me traz a caixa de costura. Se é de noite e a luz ou a televisão estão acesas, é mais fácil ficar um pouco com ela. A televisão colorida que meu pai comprou para ver a Copa deixa as cores saturadas. Ele comprou de alguém da universidade que tem um contato que as consegue por um preço muito bom. A melhor qualidade. Tecnologia alemã, montada em Ushuaia.

A boca das pessoas fica rosa-fosforescente, e a pele, cor de cenoura. As louras parecem ter cabelo de náilon e o azul-estridente machuca os olhos. Como tantas outras vezes, minha mãe começa do nada a dizer coisas como minha vida é um fracasso, teu pai não precisa de mim, vocês me odeiam e melhor seria eu me suicidar. Fico parada ali e respondo: bom, tenho que ir estudar, não quero continuar indo mal no colégio, mãe. E é verdade. Eu sei que no fundo você é muito boa, ela me diz com os olhos cheios de lágrimas prestes a correr pelas suas bochechas rosadas de lituana. E acredito nela porque é exatamente o que preciso escutar neste momento.

Estou lendo, relaxada no sofá preto da sala. Félix vem me avisar que uma tal de Constanza está no telefone e quer falar comigo. É Hernán. Às vezes, ele pede à irmã mais nova para se fazer passar por uma colega da escola. A menina, obviamente, cobra por isso. O telefone está no quarto da minha mãe. Ela está na cama, dormindo como uma pedra. Não ouviu nem o telefone tocar nem Félix atender. Fico o mais afastada que o fio me permite da mesinha de cabeceira. Protejo o bocal com a mão em concha, para abafar o som da minha voz. Estou emocionada e surpresa, mas também me sinto repentinamente imbecil. Hernán ainda é importante para mim. Depois do lance de Juanse, voltei a ter saudade dele. Quando comparo um com o outro, Hernán é um anjinho. A voz dele revela que está sentido, mas não com raiva. Diz que tem uma coisa muito importante para me falar e que é urgente. Como minha mãe parece morta, aproveito para abrir a gaveta da mesinha de cabeceira. Roubo quinhentos pesos. No dia seguinte, digo que vou na Raquel e sigo para Buenos Aires. Driblar o cerco é fácil, porque hoje é a final da Copa do Mundo e a Argentina joga. Até as aulas foram suspensas. O país inteiro está há semanas pulsando ao ritmo dos jogos. O som das transmissões de futebol é um fundo musical inevitável. De repente todo mundo é fanático. Um sentimento patriótico no pior sentido da palavra inunda tudo de uma falsa alegria em tiras azulclaras e brancas. Meu pai vai assistir ao jogo no campo do River, que agora chamam de estádio. Vai com uns funcionários da universidade e com Javo. Tinha uma entrada para minha mãe, mas deu para Javo, que foi com ele em êxtase, como um eleito. Até Arturo, que nunca se interessou por futebol, caiu na armadilha emocional. Às vezes vem para casa assistir aos jogos com Félix e Bernardo, além de nove dos catorze irmãos Larreta. Eles são os

vizinhos da frente, que não têm televisão em cores (na verdade, a gozação de sempre com eles foi que não tinham televisão, nem em cores, nem em preto e branco, nem de nenhum tipo). Arturo conseguiu entradas para ver a final de hoje em uma tela gigante não sei onde. Levou os gêmeos, que nem conseguiam acreditar. Ele levando os irmãos mais novos para ver um jogo é definitivamente uma prova surpreendente do poder do futebol. Na casa de Raquel chegaram a tricotar um sueterzinho azul-claro e branco para a cadela. Encontro Hernán na porta do Estímulo de Belas Artes e vamos tomar um café na Confeitaria Saint Moritz. Ele cortou o cabelo muito curto e parece mais novo. Seus olhos estão sem brilho e o sorriso é triste. Quer ir para um motel, mas eu digo que não. Ficamos em silêncio, brincando com os envelopezinhos de açúcar. Estamos desconfortáveis e olhamos a rua pela janela. – Só para conversar… para conversar com mais calma. Nem respondo. Há poucas pessoas no bar. Estão todas vendo futebol com os garçons, em uma televisão que está no balcão. Acho que Hernán está mentindo, que me fez vir até aqui para me levar para um motel. Não tem nada de urgente para me dizer. Acendo um cigarro. Olho para ele, me jogando para trás, como quando se toma distância na fila da escola: e aí? Ele me olha como um menininho que acabou de ser comunicado que é adotado. – Fui sorteado para o serviço militar. Vou ter que servir. Vamos para um motel que fica perto, numa travessa atrás do Harrods. Quando chegamos, passa muito do meio-dia. O quarto é escuro e os lençóis estão gelados. Eu também. Além do mais, estou com medo. Faz mais de um mês, desde que me separei de Hernán, que parei de tomar pílula. Mas me senti mal há uns vinte dias. Ou seja, o período da ovulação já passou. Ando com um pacote de óvulos espermicidas, por cautela. É um método anticoncepcional que Raquel conhece, por causa da irmã que é médica. Comprei na farmácia, mas achei que não fosse usar. São como ovos de codorna, feitos de vaselina, que é preciso introduzir na vagina dez minutos antes do coito, segundo a bula. Tenho que tomar coragem antes de falar para Hernán. Quando enfim conto, ele até se oferece para cuidar pessoalmente do assunto. Os dez minutos da espera, lentos e divertidos, acabam sendo uma brincadeira que repetimos três vezes mais, nas duas horas que se seguem. Parece que os

óvulos foram feitos para isso. Cada vez que Hernán empurra um óvulo canal adentro com o indicador, está tudo tão quente que o ovinho se derrete antes de chegar ao fundo, onde deveria derreter. Quando o alarme do motel soa para avisar que o período acabou, Hernán liga para a recepção e avisa que vamos ficar por mais um período. Temos grana e cigarros à vontade. Mas só temos mais um óvulo. Nunca transamos tantas vezes, mas hoje não podemos parar. A atmosfera de despedida dá a tudo uma profundidade que a relação nem tem mais. Isso me entristece e preciso abraçar Hernán, beijá-lo, sentir seu cheiro, tê-lo dentro de mim. Fingir que estou dormindo, para ele me acordar. Ele fingir que não quer e ser convencido. Tapar os olhos e amarrar as mãos com o meu lenço indiano. Marcarmos o pescoço, as costas, os braços com chupões roxos e arranhões. Ligamos para a recepção, para ver se têm preservativos, mas ninguém atende, e continuamos sem prevenção mesmo, tentando fazer do coitus interruptus uma unção luminosa. Da última vez, atrasamos um pouco, ou melhor, muito. Pulo com o susto direto para o bidê. Sento sobre o chuveirinho, como se montasse a cavalo. Fico ali, desesperada, por meia hora, deixando a água correr, para que a lei da gravidade tenha boa vontade e faça descer tudo. Rezo um pai-nosso e uma ave-maria. A única coisa que parece baixar é a última gota de óvulo, derretida e pegajosa. Tenho vontade de gritar ou chorar, mas só mordo os lábios. Aguento para que o meu corpo não jogue fora mais nenhuma gotinha do espermicida. Se passei mal no dia 6 de junho, não posso mais estar ovulando. Seis dias menstruada mais seis dias dá doze dias. Com mais os cinco da ovulação, são dezessete. Com vinte dias, tenho que estar mais do que fora de perigo. Tento manter a calma. Quando vamos tomar banho juntos, me distraio e o abraço de repente. Acabo molhando o cabelo. Um erro que poderia me custar muito caro. Seco o cabelo com a toalha, com o vigor de um engraxate. Em vez de nos vestirmos e sairmos, pulamos na cama, enrolados nas toalhas, e dormimos abraçados.

Já é noite quando acordamos. Ligamos para a recepção para saber que horas são, mas de novo ninguém atende. Vestimos as roupas e descemos. O motel parece estar completamente vazio. Não há ninguém na recepção. Perguntamos alto se há alguém. Uma televisão está ligada. Como ninguém responde, empurramos com cuidado uma porta atrás de um painel. Ela é estreita e estofada de couro sintético cor de vinho, igual à parede. Dá para uma salinha com uma mesa e

três cadeiras. Uma televisão em preto e branco está em cima de uma geladeirinha. Transmite as imagens ao vivo das pessoas festejando no obelisco. A Argentina é campeã mundial. Sobre a mesa, há restos de salgadinhos e um cinzeiro cheio de guimbas, mas não vemos ninguém. Parece que um alarme apocalíptico avisou a todo mundo que abandonasse tudo como estava e fugisse. Saímos e andamos pela cidade vazia na direção do som que ouvimos umas quadras adiante. Vamos para o lado do Retiro, para tomar o trem para Bellavista. À medida que nos aproximamos da praça San Martín, o tumulto cresce e se amontoa em volta da caravana de carros que vai para o obelisco. Para conseguir atravessar a Libertador, temos que praticamente pular por cima do capô dos automóveis, porque a caravana nunca para. Conseguimos atravessar na altura do Sheraton, que está uma zona. Está todo mundo louco. As pessoas gritam sem parar, com o rosto desfigurado pela emoção. Pelas janelas dos prédios e dos carros, saem milhões de papeizinhos picados, cabeças, braços balançando camisetas e bandeiras argentinas. Parece que todos acabaram de se formar em medicina. Gente gritando, desaforada: quem não pula é holandês, quem não pula é holandês. São milhares. São todos. Parece que somos os únicos que não pulamos. Hernán não gosta de futebol. Eu acho que futebol é basicamente sofrimento. Digo isso com conhecimento de causa. Afinal, vivo cercada de homens. Mas as pessoas nos olham com antipatia, porque vamos contra a maré. Empurram a gente com raiva como se perguntassem para onde vamos, porra. Conseguimos furar a onda de foliões. Mas agora vem o pior: o saguão da estação cheio de gente indignada e de bêbados que querem festa a três metros do bar perto da plataforma. Os trens foram suspensos até novo aviso e já estão com três horas de atraso. Voltamos e andamos pela Libertador até a faculdade de direito. Pegamos o primeiro dos quatro ônibus que, dali a três horas e meia, vão nos deixar em Bellavista. Temos que fazer malabarismos inacreditáveis para nos mexermos na contramão da alegria. As ruas estão inundadas de gente com camisetas e bandanas azul-claras e brancas. De todos os carros saem braços que batem na lataria e gritam Argentina, Argentina, Argentina. Uma garota grávida, que deve ter a minha idade, segura a barriga. Está em pé na carroceria de uma caminhonete. Todo o percurso está repleto de carros, numa fila interminável de automóveis enlouquecidos,

fazendo manobras perigosas. O motorista xinga a empresa, os holandeses, os milicos e todo mundo que entra ou sai do ônibus. Um tempo depois nos deixa encalhados na avenida Márquez, em frente à estação de San Isidro. No percurso seguinte, já a bordo de outro ônibus, da Costera Criolla, na altura de Boulogne, roubam a minha bolsa. Há tanta gente no ônibus que só me dou conta muito depois, quase chegando ao Campo de Mayo. Lembro do cara que me empurrou para saltar do ônibus. Na hora, achei que ele queria passar a mão na minha bunda. Minha carteira de identidade nova, que tanto sofri para conseguir, estava lá. Tinha um carimbo que dizia terceira via e uma foto em que eu estava linda. Durante a volta, quase não falamos. Me despeço dele com a desculpa de que já está muito tarde. Estamos na esquina de casa, como sempre. Parece que vamos nos ver amanhã, mas ambos sabemos que desta vez é para valer. Os olhos de Hernán estão cheios de lágrimas e a voz está embargada. Sinto culpa por não sentir o mesmo que ele. Meu cabelo por sorte já secou e o carro do Conselho não está na porta. Nem meu pai nem os meninos voltaram ainda. A única pessoa que está em casa é minha mãe, na cama. Acabou de acordar e não percebeu nada. Até a Branca de Neve paraguaia, que vive pichando o país, saiu para gritar Argentina. A lituana me pede um café com leite. Se eu sou sempre um reloginho, não vejo por que ovular diferente logo desta vez. Levo o café com leite para minha mãe, em uma bandeja com duas torradas e geleia amarga de laranja. Deito do lado dela, no lugar do meu pai, com roupa e tudo sobre a colcha. Um tempo depois minha mãe me acorda para me mandar tirar os sapatos.

FIM
Segredos de Menina - Maitena Burundarena

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