Ola Said - Rosane Ribeiro

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DIREITOS AUTORAIS Copyright © 2020 Rosane Ribeiro Copyright © de publicação 2020 Taigh Books Revisão: Ricardo Marques e R.M. Vieira Capa: Luis Cavichiolo Diagramação: Jaime Silveira Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos, são produtos de imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência. Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios – tangível ou intangível sem o consentimento por escrito do autor ou editora detentora dos direitos. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº. 9.610./98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. Criado no Brasil

Todos os direitos reservados, no Brasil e língua portuguesa, por Taigh Books CP: 5008 CEP: 14026-970 - RP/SP - Brasil E-mail: [email protected] Taigh Books

DEDICATÓRIA Este livro é dedicado a você, que sente um aperto no peito com saudade do que ainda não viveu. A você que deseja sentir. A você que sente. E a você que já sentiu

PARTE 1

“Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente.” William Shakespeare

Capítulo 1- MEDO — Brunaaaaa!!! Maldita! Te arrebento quando você aparecer, desgraça! Por mais que tentasse, Bruna não conseguia se lembrar de nada relacionado à sua infância antes daquele dia. Já estava com pouco mais de seis anos de idade. Nunca soube explicar como, períodos inteiros de sua infância, simplesmente desapareceram de sua memória, como se jamais tivessem existido, deixando saltos no tempo e verdadeiros buracos em sua mente. Lamentava o fato de alguns permanecerem tão vivos e dolorosos. Sua mãe, ao longo da vida, mudou sem melhorar. Uma mulher vulgar, rude, egoísta, violenta e alcoólatra. Sua incapacidade para demonstrar qualquer tipo de afeto, respeito ou empatia por qualquer outro ser humano que cruzasse seu caminho, era superado apenas por sua peculiar habilidade em humilhar e espezinhar os outros, especialmente o marido e os dois filhos. Chegava em casa bêbada quase todo final de tarde, e não raras vezes enfurecida por alguma razão. Descontava sua fúria nas crianças, com surras que iam de beliscões até quase arrancar pedaços de seus bracinhos, tapas e puxões de orelhas, chineladas, tamancadas ou o que estivesse mais acessível no momento, até arremessos de objetos contra eles. Certo domingo, na hora do almoço, arremessou contra o marido uma jarra d’água atingindo-o na testa durante a refeição. Bruna nunca tinha visto tanto sangue, chegando a acreditar que o pai iria morrer. O ataque de fúria da mulher lhe rendeu apenas cinco pontos, mas ensinou os irmãos a estarem sempre alertas, espertos, e longe, sempre que possível. Bruna trazia no corpo as lembranças da crueldade daquela mulher e, na alma, as cicatrizes deixadas. Algumas feridas, como aquelas causadas por um pedaço de mangueira de jardim, acuados num canto do banheiro, jamais se fechariam. Não por terem implorado, sem fôlego, para que ela parasse, nem pelo fracasso de tentar proteger o irmão com seus bracinhos magricelos, mas pelo olhar da mãe, um ódio indisfarçável que sequer a exaustão física aplacou quando ela finalmente decidiu parar. O marido, a melhor de todas as definições de “zero à esquerda”, desistiu da batalha da vida sem nunca ter lutado. Bruna acredita que quando morreu, possivelmente ainda não sabia direito nem o nome dos próprios filhos.

Dos pouquíssimos episódios de sua infância de que se recordava, as mais vívidas lembranças de seu pai eram de sua ausência e morte. Raramente estava em casa, sua mãe quando praguejava costumava mencionar problema com jogos e bebida, mas Bruna jamais ousou perguntar à bruxa nada sobre ele, sempre foi mais prudente não puxar conversa com ela. Perguntas simples ou curiosidades normais poderiam ter o efeito de um tapa na orelha. Então, melhor não! A consequência era um certo constrangimento em não saber responder muita coisa sobre o próprio pai. Mas ela sabia o básico, Paulo Sérgio Nascimento, nascido e criado na pequena cidade de Itaruma, interior do Paraná, de onde somente saiu em curtas viagens pelas cidades vizinhas, a trabalho. Analfabeto, completamente alienado, era ajudante de pedreiro. De poucas falas, mas Bruna lamenta a única vez em que sua voz ficou gravada em sua memória. Foi no dia de seu aniversário de sete anos. Um dia em que estava extasiada, não se cabendo de tanta felicidade. Bruna não sabia direito a data de seu aniversário até então. Havia apenas três meses que o ano letivo iniciara, era seu primeiro ano na escola, não havia frequentado a pré-escola, nem mesmo estado numa creche anteriormente. Somente fora matriculada pela mãe, quando alertada por um agente de saúde, que perderia auxílio do governo se houvessem filhos sem frequentar a escola. Uns quinze dias após o início das aulas, um coleguinha aniversariou, no intervalo para o lanche, a professora havia preparado uma surpresa. Bolo, velinha, refrigerante, copos, pratos e talheres descartáveis e coloridos, todos cantando parabéns, muitos abraços, risadas, brincadeiras, e um caloroso abraço da professora que parecia mais um anjo! Que elegância! Que cheirosa! Que unhas lindas e bem feitas! Mas uma festinha surpresa para Bruna? Era inimaginável! Teve vontade até de chorar, mas foi contida por um espanto que tomou conta de sua mente, corpo e espírito, dando lugar a um tremor incontrolável e indisfarçável. E o abraço daquela mulher perfeita! Ah, para Bruna, era a personificação de um anjo! Conhecera ao longo da vida mulheres sofisticadas e elegantes, mas continuou por toda ela tendo a lembrança de sua primeira professora como referência. No final daquela manhã ao chegar em casa, não teve coragem de contar ao irmãozinho mais novo, João Mateus, que com pouco mais de cinco anos de idade também jamais presenciara uma festinha de aniversário. Ficou com

pena do pequeno não poder estar presente em tão memorável evento. Por motivos bastante diferentes também não contou à mãe. O pai, só chegou quando ela já estava deitada. Acácia trabalhava o dia todo atrás de um balcão de bar no centro da cidade, deixando os filhos pela rua sem se preocupar com segurança ou alimentação. As crianças cresceram assim. Só Deus sabe como sobreviveram aos primeiros anos de vida até aprenderem a “se virar”. Mas, aos sete anos, Bruna já sabia preparar coisas simples como arroz ou ovos, quando tinha! Na maioria dos dias se alimentava com a merenda da escola pela manhã e, ao chegar em casa, procurava pelo irmãozinho nas imediações, e juntos implementavam sua rotina de pedintes. Nem sempre conseguiam alimentação adequada, mas como já conheciam, como a palma da mão, toda a vizinhança, sabiam exatamente onde, quando e a quem pedir. Naquele final de tarde, Acácia chegou mais ou menos no horário de sempre, por volta das dezenove horas, completamente embriagada, só pra variar, e fedendo a cachaça e cigarros, estatelou-se no sofá e dormiu quase de imediato, mas não antes de desferir contra as crianças seus cotidianos elogios que incluíam “seus demônios”, “malditos”, “infelizes”, “pentelhos”, que foram evoluindo com o tempo para “sua biscatinha”, “putinha”, “seu ordinário”, “escrotos”, sinônimos e similares. Bruna desmontou duas caixas de papelão que conseguira na rua e ajeitou-as aos pés do colchãozinho de berço jogado no chão do quarto, substituindo os papelões velhos e já desgastados, e deitou-se ao lado de João, abraçando-o. Mas continuava eufórica! Apertava os olhos e ainda conseguia sentir o perfume da professora, o ensurdecedor som do “parabéns pra você” cantado em coro, extasiada com o colorido dos copinhos e pratinhos, a brilhante chama da velinha branca, o gosto delicioso daquele bolo simples, caseiro, sem cor ou recheio, mas que estava simplesmente perfeito, e ainda sentia o toque macio das delicadas mãos da professora, sobrepostas às suas para cortar a primeira fatia de bolo! Delirava e já sonhava com os próximos aniversários, que seriam exatamente iguais a este, com exceção do número da velinha sobre o bolo, quando ouviu a porta da cozinha se abrindo e o cair da sacola de ferramentas. Bruna ainda sonhava acordada, quando alguns minutos após sua chegada, ouviu o pai, com a voz embargada chamar por sua mãe, uma, duas, até que na terceira vez, ela acordou: — O que é? Cale essa boca! Não tá vendo que tô dormindo?

— Acácia, ajude! — Filho da puta, cale essa boca! O grito de raiva da mãe só não foi mais alto que o barulho que fez Bruna pular do chão e João acordar. Bruna correu para a porta do quarto que dava para a cozinha e viu o pai caído ao chão, quase embaixo da pequena mesa de madeira rústica que comportava quatro banquinhos, um deles caído sobre ele. Bruna deu um grito chamando pela mãe! — Puta que pariu! Cala a boca e vai dormir! Bruna e João já desperto, correram para junto do pai, ela tirou o banquinho que estava de pernas para o ar sobre as pernas dele e percebeu que suas calças sujas de barro até quase a altura dos joelhos estavam molhadas, e sentiu um forte cheiro de urina. Chamou por ele duas, três vezes, perguntando como havia caído. Os olhos do pai ainda estavam entreabertos, sua pele branca, cujo rosto sempre se apresentava avermelhado pelo sol, e possivelmente pela cachaça rotineira, parecia acinzentado. Não se movia e, Bruna e seu irmão possuíam juntos, forças apenas para mover sua cabeça, sem grande mudança de posição. O homem não respondia aos chamados dos filhos, e Bruna achou que não mais respirava! Ela não chorou, mas seu corpo todo iniciou um movimento involuntário inexplicável! Uma espécie de tremor que se iniciava na ponta dos dedos dos pés e terminava nos fios de seus lisos e curtos cabelos loiros. Demorou alguns segundos para que conseguisse se levantar com as perninhas trêmulas, pegou o irmãozinho pela mão e andou quase que em câmara lenta até o sofá onde a mãe dormia, que não distava mais de três metros da cozinha. Nunca concluiu se o choque em imaginar que o pai havia morrido causou-lhe ou não maior pavor que a necessidade de tentar despertar a mãe. O tremor compulsivo passava pelos lábios e pela língua, entretanto, sussurrando, conseguiu chamar pela mãe dizendo que achava que o pai havia morrido. — Graças a Deus! Agora vai dormir, porra! Bruna sabia que não adiantava insistir e percebeu que as mãozinhas do irmão estavam geladas e tremiam como as suas. O pequeno já entendia o que ocorrera. Bruna praticamente o arrastou de volta ao quarto. Viraram o rosto

ao passar pela cozinha para não fitarem o corpo. Deitaram-se no pequeno colchão, encolhidos. Com os bracinhos incontrolavelmente trêmulos, Bruna abraçou o corpinho do irmão que parecia ter espasmos. Nenhum dos dois conseguiu chorar, estavam aterrorizados demais, o que provavelmente impediu as lágrimas; afinal, estavam dormindo praticamente ao lado de um cadáver, reação que não significava que não lamentassem sua morte. Parecia impossível, entretanto, milagrosamente, algumas horas depois os dois adormeceram. Acordaram já pela manhã com muitas vozes na cozinha, todas conhecidas, de vizinhos, especialmente do Senhor Gus, dono do pequeno açougue da esquina, cuja esposa, uma senhorinha muito simpática, constantemente fornecia algum alimento às crianças. Senhor Augusto, conhecido carinhosamente pelo apelido de Sr. Gus, aparentemente havia organizado a retirada do corpo. Mesmo acordadas, as crianças só deixaram o quarto quando a casa já estava vazia. Bruna não foi à escola, e cerca de duas horas e meia depois, sua mãe chegou, acompanhada de alguns vizinhos e um carro que trazia o caixão que parecia ser feito de tábuas de caixote de legumes. Arrastaram a mesa da cozinha para a pequena sala, e acomodaram o caixão sobre os quatro banquinhos. Na cabeceira, um único castiçal com uma vela. O velório foi curto, e o enterro ocorreu no início da tarde. João Mateus somente voltou a pronunciar uma palavra cerca de quatro meses após a morte do pai. Bruna não conseguia tirar de sua cabeça a cena dele caído no chão da cozinha, molhado de urina, e a embargada voz: Acácia, ajude! acompanhou-a por toda sua vida. Sua mãe, mesmo após a morte do marido, nas raríssimas vezes em que falou sobre ele, continuava a referir-se ao falecido como “aquele infeliz”, “fracassado”, “imprestável”. Das poucas passagens de sua infância de que se recorda, a morte do pai só não fora para Bruna mais dolorosa que aquela ocorrida quase oito meses antes. Foi em meados de setembro do ano anterior, um daqueles dias tidos como o mais quente do ano. As crianças haviam acordo por volta das nove horas da manhã, e como não haviam se alimentado na noite anterior, acordaram famintas. A fome superava a exaustão causada pelas subidas e descidas de ladeiras para pedir a um e a outro algo para comer. Dividiam tudo. Um pacote de

bolachas, um pãozinho, uma banana, às vezes uma garrafinha de leite puro, até estarem satisfeitos. Então, voltavam para casa, até aquele buraco no estômago começar a incomodar novamente, o que parecia ser constante. Mas antes das dezoito horas sempre estavam de volta, pois a mãe poderia chegar a qualquer momento. Ela só dava falta dos filhos eventualmente, mas quem iria arriscar? Naquela tarde, o calor, o cansaço e a barriga cheia fizeram João Mateus adormecer, mas não Bruna. Após um breve descanso ao lado do irmão, resolveu sair para ver se encontrava alguma outra criança para brincar na rua. Parecia que ninguém estava muito disposto a ser escaldado pelo sol daquela tarde, e Bruna desceu a rua de sua casa até quase chegar na pequena ponte que dava acesso ao bairro vizinho, onde tinha estado poucas vezes a pedir comida. Quando se deu conta, já estava bem longe de casa, sabia que a subida seria cansativa e como já estava morrendo de sede, resolveu tocar a campainha da casa de Dona Elza, a costureira mais bem conceituada da cidade, para pedir um copo d’água e tentar conseguir algo para comer mais tarde e dividir com João. A casa de D. Elza era a casa mais bonita que Bruna conhecia, e já havia, em certa ocasião, sido convidada pela gentil costureira e entrar, quando então era levada à cozinha, impecavelmente limpa, com armários em todas as paredes, todos os móveis e eletrodomésticos brancos, azulejo decorado nas paredes. Bruna vivia imaginando que um dia moraria, não numa casa parecida com aquela, mas naquela casa! Naquela ocasião D. Elza havia lhe servido um copo de leite e uma fatia de bolo que acabara de assar, em louças muito chiques, na cabecinha da menina. Realmente pelos padrões vividos por Bruna, a casa de D. Elza parecia uma mansão, apesar de ser bastante simples tal qual a dona da casa, esposa de um funcionário da prefeitura cuja função era entregar cobranças de IPTU de porta em porta pela cidade. Atendeu à porta o único filho do casal, com aquela cara de quem fora acordado pela campainha. Laurinho, como era conhecido, rapaz de uns quinze anos de idade, moreno e de feições rústicas como a mãe, tendo puxado da progenitora inclusive a tendência para o excesso de peso, informou que a mãe não estava, tinha ido entregar uma roupa na cidade vizinha, e já ia batendo a porta quando Bruna perguntou se poderia lhe dar um copo d’água. A má vontade do rapaz era evidente, mas respondeu: - Peraí!

Alguns minutos depois voltou com um copo d’água. O rapaz era realmente a cara da mãe e tão gentil quanto ela, assim que Bruna terminou de beber, perguntou se a menina queria um pedaço de bolo e já foi abrindo portão, que era baixinho, e estava apenas encostado. Alguns pressupõem que crianças “de rua” são espertas, ariscas, maliciosas, mesmo aos seis anos de idade. Viver na rua ensinou a Bruna tão somente a ter o bom senso de variar as casas ou comércios onde costumava pedir, a saber qual lixeira valia a pena remexer e que, mesmo pessoas normalmente generosas, têm seus dias ruins e de pouca paciência. Quando aquele garoto abriu a porta de seu quarto e lhe disse para sentarse na cama, ela sentou. Quando disse a ela que lhe mostraria algo “muito legal”, e que seria um segredo entre eles, ela acreditou. Quando lhe pediu gentilmente que prometesse jamais contar a alguém, ela prometeu. Quando abaixou suas calças e começou a se masturbar, ela só observou, sem dar um pio, sem ter ideia do que estava acontecendo. Olhava atenta para a frenética mão do rapaz movimentando aquele órgão vermelho, arroxeado, envolto em poucos pelos, estranho e exótico, quase hipnotizada com a insólita cena, não tendo feito sequer um movimento quando ele segurou sua cabeça introduzindo o órgão em sua boca desferindo uma única frase:- Não morda! Tentou gritar, percebendo ser impossível, estava perdendo o fôlego e começando a tossir, e assim que o rapaz retirou o pênis de sua garganta, todo som que conseguira produzir foi um grunhido, estava sem ar, sem força, queria gritar, pedir que parasse, mas a voz não saía, estava desorientada. Em um único puxão ele lhe arrancou o short e a calcinha, empurrou-a para o meio da cama de solteiro, e antes que ela esboçasse qualquer reação, tapou-lhe a boca com uma das mãos, e com a outra, empurrou com toda a força o pênis para dentro dela. Por mais que a mão tapasse sua boca e parte do nariz, o grito saiu, contido, mas com toda força de seus pulmõezinhos, sem possibilidade de ser ouvido por alguém. O peso do corpo do rapaz esmagava o seu, estava sufocando, desfalecendo, não mais sentia dor. As lágrimas que escorriam pelo rosto causavam obstrução nasal, ela estava sem ar, e de repente, ele parou, sem que ela entendesse como ou porque, parecendo tão exausto quanto ela. Quando saiu de cima da garota, Bruna não conseguia se mover, tinha a sensação de ter todos os ossos do corpo quebrados. O rapaz pegou uma camiseta do chão e começou a limpá-la entre as perninhas, mas o sangue não

parava de escorrer. Mandou que ela se levantasse e colocasse o short de volta, e enquanto ela se vestia, trêmula, zonza e ainda tentando recuperar o fôlego, lembravalhe a promessa de jamais contar a alguém. Sem qualquer tipo ou em som de ameaça. Quando abriu a porta, Bruna percebeu que escurecera, já passava das dezoito horas e então fora tomada pelo pavor, um calafrio lhe percorreu a espinha com a possibilidade da mãe chegar em casa antes dela, tomada por uma súbita náusea, um arrepio inexplicável atravessou seu pálido e magricelo corpinho dos pés à cabeça, começou a caminhar. Subiu aquela ladeira tão rápido quanto pôde com lábios quase rachando de tão secos, as pernas não obedeciam, pareciam estar sem força. Por mais de uma vez, Bruna caiu ajoelhada na rua de terra batida. Só conseguia pensar no que diria à mãe caso a mesma já tivesse chegado. A ideia fazia seu coração bater duas vezes mais rápido que o normal e seu estômago doer. Podia sentir cada veia de seu corpo dilatando enquanto os músculos se contraíam dolorosamente, o suor era gelado no corpinho febril, e as batidas aceleradas de seu coração podia se visualizar nas pontas de cada um dos dedos de suas mãos. A cerca de um quarteirão de casa, verificou que o sangramento havia parado, e que o sangue escorrido já estava secando. Faltavam ainda alguns metros até a porta de casa quando ouviu os berros: - Brunaaaaa!!! Maldita! Te arrebento quando você aparecer, desgraça!

Capítulo 2- MONOTONIA — Zayn Saíd Jabir. Sim, árabe. Meu pai era descendente de libaneses, da cidade de Hermel. — Estive duas vezes com meus pais, quando criança. Eles ainda visitaram a terra natal de seus antepassados algumas vezes, mesmo durante a guerra, até a morte de meu pai, mas a última vez em que estive naquele lugar horroroso ainda não havia completado dezessete anos. — Não, não gostava e continuo não gostando, não pretendo voltar. Nem a Beirute pretendo voltar, nem sei se ainda existem parentes vivos por lá. — Brasileira, acho que descendência portuguesa, sobrenome Martins. Não conheci muitos parentes dela. Quando meus avós maternos faleceram, eu ainda era muito pequeno e meu único tio vive com a esposa e dois filhos nos Estados Unidos há várias décadas, é tudo que sei. Se nos encontramos três ou quatro vezes, foi muito. Se encontrar na rua, não reconheço nenhum deles. — Ambos faleceram. Meu pai... hã... deixe-me ver, eu tinha vinte e oito anos, então já faz... dezessete. Minha mãe, há pouco mais de cinco. — Ele teve um AVC, e após mais de dois meses no hospital, não resistiu. Ela teve câncer de mama, sofreu quase sete anos, coitada, mastectomia... químio... descansou! — Sou... filho único! — A família de meu pai é numerosa, três tias, um tio. Coincidentemente, também teve um AVC, três anos antes de meu pai, era mais velho alguns anos. Minhas três tias continuam vivas, uma delas acamada já há alguns anos. Alzheimer. — Ahh... só em festas de final de ano, casamentos e aniversários, muitas vezes apenas de passagem.... ou em velórios. Meu maior contato é com um primo mais velho. Engenheiro, filho dessa tia acamada. Começou a trabalhar na empresa antes de mim. Mas também... nosso relacionamento limita-se ao trabalho. Nunca fomos amigos de sair, beber... ele é alguns anos mais velho e se casou cedo. — Têxtil, inicialmente..., diversificamos muito nas últimas duas décadas... por que estamos falando sobre os negócios da família? — Problema nenhum. Por que teria problema? É que... tá fora de contexto, entende? Mas tudo bem!... Ok! Certo! — Após a morte de meu pai, me vi obrigado a assumir a direção da

empresa. — A princípio não gostava. Nunca antes havia me visto como empresário. Frequentei a universidade de Direito sem muito entusiasmo. Hoje, adoro o que faço. Expandir os negócios e diversificar, os desafios rotineiros para nada perder e lucrar sempre são bastante estimulantes e desafiadores. Percebi que tenho talento para empresário, acho que está no sangue. — Acho engraçado olhar para o passado, para o que já fui e como pensava e comparo com minha vida atual, só isso. — Ah... sim, sim!... mas, sinceramente, já estive mais entusiasmado. — O que mudou?... Boa pergunta! Muita coisa... muita! — Hãã... na época achava que tinha talento para música. Descobri a tempo que não tinha! Graças a Deus! — Olhe, não quero ser descortês, mas não creio que falar de minha infância e de meus pais tenha algo a ver com meu objetivo aqui. Não foi pra isso que procurei ajuda! — Preciso é falar sobre meu estado de espírito, psicológico, sei lá... atual, sobre esse enorme vazio que nada consegue preencher desde que ela se foi! Preciso... falar... entender, aff, desculpe... desculpe! Entende?... não sei explicar o que está acontecendo... é como se existisse uma calma, uma normalidade, e, sei lá, não se pode perder o que nunca se teve... mas, somente a existência dela era suficiente... sua existência bastava, não sei explicar. — Desculpe. — Desculpe, compreendo. — Não, não preciso de um padre para me confessar, preciso mesmo de um profissional que me ajude. — Entendo, concordo sim. — Ok! — Bem..., deixe-me ver..., sabe, não há muito o que falar sobre minha infância. Fui uma criança feliz, amada, saudável, sem nenhum tipo de trauma, ou algo do tipo, compreende? — Não, na verdade, não. Acho que sempre fui meio egoísta... gostava de ter toda atenção só para mim. Via meus primos nos encontros familiares, mas nunca desejei para mim. Nunca quis ou pensei em um irmão. Era muito feliz e realizado quando criança. — Mimado? Ahhh... sim, muito! Por ambos. — Os castigos mais severos consistiam em ficar algumas horas no meu

quarto, provido de todas as regalias que uma criança pudesse desejar, ou ficar sem sobremesa, que sempre vinha mais tarde... então... isso era o máximo que acontecia. — Nunca, nunca levei um tapa sequer deles. — Minha mãe era aquele tipo... meio neurótica... exagerada!... muito amorosa, mas... em excesso, sabe? Meu pai também, mas às vezes permitia certa aventura, se é que se pode chamar assim! — Era superprotegido! Creio ser este o termo correto. Quando meu pai, escondido dela, cometia certa extravagância, como me ensinar a andar de patins... teve uma vez que ele me comprou um skate..., mas sempre com todos os equipamentos de segurança imagináveis... eu achava o máximo! Se dependesse de minha mãe, nem com roupa blindada eu poderia. — Meu pai era muito amoroso, paciente e atencioso, sempre muito presente, e armava esse tipo de “aventura” às vezes! Eu, achava o máximo!..., mas nunca conseguíamos manter segredos, ele mesmo se encarregava de dedurar para minha mãe, todo orgulhoso, minhas aventuras nos patins, na bicicleta... até quando saía tudo errado...! Nos divertíamos muito! — Tudo de bom em minha vida, aprendi com ele, ou melhor, quase tudo! Ele foi exemplo de retidão! — Hum... Deus! Que regressão! Deixe-me pensar. A lembrança mais feliz? Acredita que não consigo pensar de nada específico? — Acho que tive uma infância feliz, no geral... sei lá! Realmente não consigo lembrar de nada específico para classificar como “a memória mais feliz de minha infância”! Tive uma infância feliz, só isso! — A mais triste? Ah..., não, nada me vem à mente. Tive momentos tristes, evidentemente, como toda criança, tive pesadelos, chorei por vezes, dormi de luz acesa..., mas... só, também! Não tive nenhum momento que tenha ficado marcado como o momento mais triste da infância. Realmente, não! — O quê? Não, não acho! Aliás, discordo completamente! — Já disse, tive uma infância feliz, mais que a maioria, eu acho. Não fui privado de nada! Só porque não me recordo de algum episódio específico para definir como “a mais feliz” ou “a mais infeliz” memória de infância não significa que tenha sido monótona! Tive muitas emoções sim, lógico, muitas mesmo... achei que sua pergunta se referisse a algo peculiar, marcante... nesse sentido realmente não me recordo de nada no momento, mas... talvez se tiver mais tempo para pensar, me lembro de algo.

— Que absurdo! — Não fiquei irritado com a pergunta! Estou irritado porque realmente não compreendo onde vamos chegar com essa conversa de infância.

Capítulo 3- VERGONHA Bruna chegou à adolescência e juventude acreditando não ser uma jovem traumatizada pela infância, por toda a vida recusou a ideia de ser “vítima”. Realizava diariamente um verdadeiro exercício de afirmação neste sentido. O efeito colateral do estupro que sofreu com pouco mais de seis anos de idade, consistia em perturbador sentimento de culpa e vergonha! Sentia repulsa pela ingenuidade, por ter entrado na casa, por ter ido pacificamente ao quarto como um cordeiro conduzido ao matadouro, por não ter reagido, lutado! Acreditava realmente que o que aconteceu, somente acontecera por culpa exclusivamente sua. Aos nove anos de idade fora praticamente compelida pelos professores e colegas a fazer catecismo e frequentar Igreja Católica. Apesar de jamais ter recebido no ambiente familiar qualquer orientação religiosa, participar de eventos relacionados era questão inclusive de aceitabilidade e convivência social. Bruna percebeu isso muito cedo. Aos dez, veio o tão aguardado evento da “primeira comunhão”. A preparação incluía confessar-se ao padre da paróquia. A proximidade tornou-se um período de verdadeira tortura para Bruna, uma vez que o único pecado que acreditava ter cometido até então, era justamente ter permitido, participado daquele ato pecaminoso. Sentia o estômago gelar, e o rosto queimar eclodindo em rubor só ao pensar que teria que contar ao padre. Como tudo, levava aquilo muito a sério. Não podia mentir, nem omitir, e além do mais, era sua chance de ser perdoada. Ensaiava à noite antes de dormir, como contaria seu terrível pecado durante a confissão. Imaginava todo o cenário, as palavras que usaria, tentava imaginar a reação do sacerdote, a repugnância do mesmo, talvez uma bronca, e, por fim, a penitência a ser aplicada. Depois não conseguia dormir! Ensaiou durante meses, mas acabou não saindo exatamente como em seus solitários e dolorosos ensaios. Entrou no confessionário já tremendo e quase sem voz, ajoelhou-se, recebeu a bênção inicial, e então começou a falar. A voz trêmula, baixa, um avassalador sentimento de vergonha lhe enrubescia, fazendo suas bochechas arderem, assolava sua alma a cada palavra grunhida que pronunciava. Contou quase tudo, com suas palavras de criança de dez anos, e as memórias e impressões de quando tinha seis, mas engasgou quando contou como seu

short lhe fora arrancado, e nenhuma palavra mais conseguiu pronunciar. Tentava, mas tudo o que saía era, e, e, e, até que fora interrompida pelo clérigo: — Tudo bem, filha! Tudo bem! Não é necessário continuar. Seus pecados estão perdoados. Vá em paz, e que Deus lhe acompanhe! Nem penitência recebera. Deixou o confessionário convicta de que não havia perdão para seu pecado. Tinha a impressão de que estava estampado em sua testa a vergonha pelo pecado cometido. Certeza de que o padre estava furioso, pecados perdoados coisa nenhuma! Sentia-se muito mal antes de confessar, e agora, sentia-se ainda pior. Impossível foi determinar se o fracassado episódio da confissão fora ou não pior que o dia seguinte. Missa... comunhão! Sentada no terceiro banco da igreja, tinha a impressão de que o padre a encarava durante toda a missa. Não prestou atenção em uma só palavra dita durante a cerimônia, não conseguia concentra-se para rezar e sentir a “presença de Deus após receber o Corpo de Cristo” pela primeira vez, o que só fez aumentar seus pecados e seu sentimento de culpa! Ainda frequentou a missa por alguns meses, sem, entretanto, comungar ou confessar-se, e independentemente do quanto se escondesse entre os fiéis, tinha sempre a impressão de que o padre rezava a missa toda olhando para ela. Sabia que era imaginação sua, mas sentia uma vergonha indizível com a situação. Passaram-se anos, até que Bruna tivesse consciência de que não era impressão, e jamais soube que o padre procurara sua mãe certa vez no bar, e sem entrar em detalhe algum, procurou saber informações sobre possíveis traumas ou abusos, tendo recebido como resposta, tratar-se de uma criança mentirosa e de fértil imaginação. Não mais que quatro meses após sua primeira comunhão, Bruna deixou de frequentar as missas dominicais. Já estava condenada ao inferno mesmo, e podia viver com tal veredicto, mas não com as torturas semanais. Frequentava a missa aos domingos às dez da manhã e já não dormia desde sexta, dominada pela vergonha. Assim que faltou à primeira cerimônia passou então a sofrer com a possibilidade de ter que dar explicações, especialmente a coleguinhas da escola, ou pior, à professora, caso fosse questionada. Foi um alívio perceber que ninguém sentiu sua falta.

Capítulo 4- CIÚME — Claro que sinto!... Quem não gostaria de voltar a ser criança? — Entendi a pergunta..., e respondi! Siiim, sinto falta de minha infância. Que coisa! Qual a importância disso? — Talvez o senhor tenha razão..., talvez não tenha sido uma infância recheada de aventuras e emoções, mas, certamente, foi abundante em amor, ternura, carinho! — Exatamente. Minhas memórias de infância são tão doces quanto poderiam! — Não me incomoda pensar em suposto “excesso de proteção”, ou ser taxado como “criança mimada”! — Não, não quis dizer isso, não pelo senhor! Quero dizer... genericamente, entende? Por qualquer pessoa. — Tímido? Não... ao contrário, era até muito... digamos assim..., era até uma criança atrevida. — Ah, vivia perguntando tudo..., era curioso...! — Sim..., tinha toda atenção deles! Tive pais maravilhosos! Meu pai era daqueles que via esperteza e sagacidade em qualquer perguntinha ou curiosidade minha! Seus olhos vibravam! — Sabe, uma vez... teve uma vez..., eu devia ter... sei lá sete, oito anos de idade, talvez até um pouco menos..., me lembro até hoje! — Estávamos jantando, invariavelmente almoçávamos e jantávamos juntos, todos os dias! Se meu pai se atrasava por algum motivo... esperávamos! Fazia parte da rotina. E... não sei de onde veio a ideia, mas eu disse que queria ter nascido da barriga de meu pai! — Ele gargalhou imediatamente! Tinha acabado de colocar alguma coisa na boca, quase engasgou! Mas ela fechou a cara de um jeito!... ficou magoada! — Quando conseguiu finalmente conter o riso, ele percebeu a reação dela e tentou levar a conversa pra outro rumo, tentando explicar as diferenças entre as anatomias feminina/masculina..., mas ela começou a me questionar o porquê havia dito aquilo. Não estava brava, entende? Com aquele jeitinho meigo... voz baixinha..., olhando fixamente para mim... tinha ficado tão triste com minha colocação! — Ela insistia numa explicação minha..., ele dizia: “que besteira,

querida!”, era tão raro ouvi-lo chamá-la pelo nome que, quando acontecia, era até esquisito. Só a chamava de querida! Nessas situações, ela ficava surda, não adiantava dizer nada... sabe... ela viveu sua vida como se estivesse permanentemente sendo ameaçada de perder um de nós. — Ele começou um discurso sobre a “bênção de ser mãe”, a felicidade e satisfação... as sensações de preparar e carregar outro ser humano dentro de si... a “inveja” que os homens sentiam... tal! Não deu certo, não! — Ela começou a chorar na mesa, sabe... discretamente, como quem quisesse esconder o choro, apesar de não querer..., não parava de fungar..., meu pai percebeu que cada abordagem diferente que tentava dar ao assunto, piorava a situação, então ficou calado também! — Olhei para ele e deu uma piscada para mim..., como quem dizia: “deixe pra lá... isso passa já”! Mas eu me sentia mal com esse tipo de situação. — Não entendia direito o que tinha feito de errado, mas sabia que aquele clima pesado havia sido criado por mim..., então disse: — “Te amo, mãe!” — Calada, ela se levantou de uma das cabeceiras da mesa, veio até mim, me abraçou, beijou-me a testa... pediu licença... e se retirou. — ...acho que era uma mulher... sei lá... ciumenta! Acho que ela imaginava coisas, sua preocupação conosco era irracional, pra dizer o mínimo. Estava sempre ansiosa, tensa, triste..., mas era calada. Não adiantava muito ser calada... toda essa... tensão, a gente sentia no ar. — Meu pai nunca reclamou... sabe... era uma ótima mãe e ótima pessoa..., mas creio que ele deve ter sofrido um bocado com esse aspecto dela. Era mais fácil pra ele agir como se tudo estivesse sempre bem, evitando o estresse de debater as razões dos exageros dela. — Ahh, houve vários... era constante..., mas nada sério..., ah, é que ela se magoava fácil, estava sempre sofrendo! Tínhamos que ter muito cuidado com o que falávamos, entende? Sempre pisando em ovos em relação a ela. Você... podia olhar para a minha mãe e pensar: ela está sofrendo! Mas era o estado natural dela, parecia sempre estar sofrendo por alguma razão, entretanto, não existia razão. — ..., mas era evidente que tudo o que queria era receber reciprocidade na mesma intensidade do amor que despejava sobre nós! Ela era frágil, insegura!... eu acho! — Meu pai era... melhor nisso! Eu... falhei muitas vezes! Ele era passivo, quase submisso... é a impressão que guardo comigo, quero dizer...

quando estava com ela, agia, falava em função dela... entende? Falava o mínimo, sabia escolher as palavras pra ela. Ele... nunca reagia, nunca... — Creio que ela sofria mais... ela sofreu mais... eu acho..., esse jeito ciumento dela era... desgastante... para todos, mas... mais para ela mesma, estava constantemente chorando... era um tipo de chantagem emocional! Não nego... a gente se sentia muito mal... sabe? Você sabe que não fez nada de errado..., mas, acaba se sentindo culpado... — Sim... claro, eu acho..., me afetou nesse sentido... tenho horror a gente insegura... sei lá, não consigo lidar com gente insegura, gente emotiva demais... dependente demais... sei lá..., me irrita. Mas eu tenho um radar pra gente assim, fico o mais longe possível, não sei lidar com elas. — Bem... se existe uma maneira de simplificar o que penso, diria que... tinha mais pena de meu pai do que dela... eu acho que..., ele era meio prisioneiro... sei lá... ela nunca fez nada demais... era só aquele jeito dela que dava a entender isso... eu... eu também me sentia meio perseguido por ela, mas eu não sofria muito com isso, não... acho que na adolescência acabei descontado isso.

Capítulo 5- CULPA Pouco depois de completar treze anos de idade, sem ter repetido nenhum ano letivo e considerada muito inteligente, capaz e dedicada pelos professores, Bruna foi convidada a trabalhar na casa de dona Betina. Uma mulher jovem, cerca de vinte e seis anos, cujo marido contador acabara de abrir seu próprio escritório no centro da cidade. Betina havia dado à luz a primeira filha do casal há pouco mais de um ano, era dona de casa, mas já não conseguia dar conta de todo o trabalho doméstico sozinha. Conhecia Bruna havia anos, eventualmente, fornecia-lhe algum alimento, achava a menina comportada, educada, e achou que seria proveitoso para ambas se Bruna passasse a ajudá-la nos afazeres domésticos. Acácia não se opôs, desde que o dinheiro ganho fosse entregue a ela. Um quarto do salário mínimo, das treze às dezoito horas e aos sábados e domingos das oito às treze horas. Bruna passou a se sentir adulta! Com orgulho, respondia aos poucos coleguinhas que não podia ir brincar porque tinha que ir trabalhar. Aprendeu todas as tarefas domésticas com Betina. Realizava suas atribuições com carinho e dedicação. Menos de um ano depois, além de lavar louça, limpar e arrumar a casa, lavar algumas peças de roupas, Bruna já começava a cozinhar. Recebia constantes elogios do casal por tudo o que fazia e era tratada com carinho e respeito por ambos. A esta altura, Nina, como era carinhosamente chamada a filhinha, já considerava Bruna uma segunda mãe. Se levasse uma bronca de Betina, corria chorando e pedindo consolo a Bruna, se alimentava melhor em sua presença e não desistia enquanto não conseguisse brincar alguns minutos com ela. Bruna ficou com Betina e sua família por mais de cinco anos. Quando não estava na escola, estava com a família onde não era considerada mais uma empregada, mas parte dela. Betina colocou uma cama a mais no quarto de Nina, e dois ou três dias, especialmente nos finais de semana, Bruna dormia lá também. Teve ao menos um bolo e um presente na passagem de cada aniversário. Fazia acompanhamento odontológico chegando a usar aparelhos para corrigir um pequeno diastema, mas sua dentição era praticamente perfeita, tudo custeado pelo casal. De roupas, sapatos, remédios quando necessário, material escolar

a material de perfumaria e até bijuterias a família supria a menina. Sem falhar um mês sequer, e com os devidos reajustes anuais, todo dia trinta, Acácia recebia o valor combinado. Mas Bruna não ficava sem nada. Desde o primeiro mês, além do valor entregue à mãe, o casal dava a Bruna um dinheirinho a mais. Dizia que era para comprar um sorvete, um lanche, doces. Os agrados passaram a ser cada vez mais frequentes e generosos e davam para comprar muito mais que sorvetes e lanches. Raramente estava em outro lugar que não a escola, a casa da mãe ou de Betina. Ia ao centro da cidade, somente em caso de necessidade ou para atender a algum pedido do casal, e limitava-se a ficar somente o tempo necessário para cumprir a missão recebida. Quando completou dezoito anos, se tornou uma mocinha muito educada, discreta, calada, mas dotada de peculiar simpatia. Econômica nos sorrisos e nas palavras. Não chamava atenção pela beleza, mas não era considerada feia, tinha, sim, um corpo de fazer inveja a qualquer moça. Já tão jovem, tinha o hábito de ouvir mais do que falar, mas quando expressava opinião sobre qualquer assunto, surpreendia pela perspicácia, coerência, escolha sábia das palavras e, especialmente, pela capacidade de persuasão. Na escola, já era unânime a opinião entre alunos, professores e funcionários, de que era impossível ganhar qualquer discussão com Bruna. A menina era considerada “terrível” neste sentido. Questionada ou discutindo qualquer assunto, colocava qualquer um no bolso, muitas vezes com uma única frase, que era sempre breve o suficiente para colocar uma pá de cal sobre o mesmo. Em certo tempo, Betina começou a achar Bruna muito isolada. Não tinha amigos, não saía de casa. Situação incomum para jovens de sua idade. Absolutamente nenhum indício de interesse por garotos. Foram incontáveis as vezes em que fora convidada pelo casal para juntar-se à família em jantares em restaurantes, ou para uma sessão de cinema. A única vez em que aceitou um convite, foi para acompanhar Nina em um filme infantil que acabara de estrear, foi também sua primeira vez no cinema. Vez ou outra, o casal dava umas cutucadas na menina para ver se despertava seu interesse por alguma diversão, sem muito sucesso. Com as proximidades do aniversário da cidade, quando haveria uma semana inteira de festividades, incluindo um show com uma banda de rock de renome nacional, da qual Bruna era fã, Betina preparou-lhe uma surpresa comprando roupas novas, uma calça jeans bastante jovial, com detalhes

bordados nos bolsos, uma blusa preta, estilo camiseta, com um lindo decote em V e uma sandália com salto plataforma não muito alto. O presente veio acompanhado com um ingresso para o show. O bom gosto do conjunto escolhido por Betina foi valorizado pelo corpo escultural da jovem. Já vestida e pronta para sair, fora elogiada pelo casal quanto à beleza e elegância. Betina comentou como o traje simples lhe caíra tão bem, recebendo como resposta, além se seus agradecimentos, que o glamour daquele “pretinho básico” era realmente adorável! Bruna vez ou outra desferia essas frases quase incompreensíveis, por vezes, além da capacidade intelectual do casal, que possuía até uma boa cultura. Bruna aprendeu com Betina a desenvolver o hábito pela leitura. O show foi tão bom quanto Bruna imaginara. Sozinha na multidão, cantou, gesticulou e regozijou-se, divertindo-se como nunca antes. Não prestou atenção a ninguém a seu redor. Isso era “tão Bruna”! Desde tão jovem, tão objetiva e tão prática em tudo! Se, foi até lá para ver um show, viu! Aproveitou as quase duas horas de apresentação e divertiu-se o máximo que pôde! Acabado o show, dirigiu-se imediatamente à saída! Sem pensar em fazer qualquer outra coisa, tomar um refrigerante que fosse. Sem prestar atenção em ninguém, ou reparar se alguém lhe prestava alguma atenção! Não importava! Nunca importou. Caminhou duas quadras para tomar um táxi de volta para casa, em meio à multidão que deixava o local. Não estava nem no meio da praça ainda quando seus olhos de águia avistaram ao longe João Mateus! Havia quase um mês que não via o irmão, seus encontros, quase sempre na casa da mãe, ficavam cada vez mais escassos. Bruna continuava ao longo de todos esses anos dividindo tudo com o irmão. Todo dinheirinho que ganhava de seus benfeitores era dividido com ele. Duas ou três vezes ao ano, ela juntava tudo que tinha guardado e dava ao irmão para comprar um tênis, uma calça nova, carregava consigo certo sentimento de culpa por passar tanto tempo na casa de Betina, alimentando-se bem, bem vestida e bem cuidada, achando o irmão sempre maltrapilho, magricelo, em seus encontros cada vez menos frequentes. João também não era muito comunicativo, em seus curtos encontros, Bruna sempre perguntava sobre os estudos e já que frequentavam colégios diferentes, acompanhava seu desempenho escolar através de suas breves conversas. João já contava com duas reprovações, pegava no pé dele em relação a isso, tentava incentivá-lo, mas não via muito entusiasmo para os

estudos. Agora, com mais de dezesseis anos, parecia cada vez mais calado e sem objetivos. Aquele inédito salto de suas sandálias já estava incomodando há algum tempo e seus pés começavam doer. Bruna caminhou em direção ao irmão, que estava acompanhado por mais três garotos que pareciam um pouco mais velhos que ele. Enquanto se aproximava, percebeu que ele a avistara e então acenou com os dois braços, abrindo-lhe um sorriso. Os quatro, que estavam sentados sob uma velha aroeira no canto superior da praça levantaram-se, e Bruna apertou o passo. Os meninos viraram-se e começaram a correr para a esquina. Bruna gritou o nome do irmão, que sequer olhou para trás. Tentou acompanhar correndo, mas não conseguiu, seus pés doíam demais e já apresentavam pequenas feridas causadas pelas sandálias nova. Curvou-se e tirou as sandálias passando a carregá-las nas mãos. Começou a correr, descalça, mas não conseguiu alcançá-los. Quando chegou à esquina, já não avistava mais a turminha que sumira na estreita e íngreme ruazinha escura, um dos caminhos mais curtos para um bairro considerado um dos mais violentos da cidade. Não precisava de mais para que Bruna desmoronasse por dentro. Sabia, inconscientemente, o que estava acontecendo. Sentiu como se seus ossos começassem a tremer. Experimentou um sentimento até então desconhecido, como um buraco em seu peito, um vazio, suas costelas comprimiam seu peito e o coração doía, uma dor insuportável que passou a consumi-la, sentia um peso sobre os ombros que a impedia de levantar a cabeça. Como não percebeu antes? Nem questionava como a mãe não havia percebido, mas ela? Por mais escassos que fossem seus encontros com o irmão ultimamente, como ela não poderia ter percebido? Porque não lhe passara antes pela cabeça conversar com o irmão sobre o perigo das drogas? Porque nunca procurou saber sobre suas companhias? Culpada! Sentia uma raiva tão grande de si mesma, uma culpa por inteiro! Não teve coragem de contar a Betina tamanha a vergonha que sentia de sua inutilidade, perturbada por sua desídia. Nos dias que se seguiram, foi diariamente à casa da mãe à procura do irmão, e quando finalmente o encontrou na noite de domingo, percebeu que não era mais possível desenvolver uma conversa. Não aguentou, e alguns dias após seu encontro com João, acabou, aos prantos, contando para o casal. Antes mesmo que algo pudesse ser feito, foi preso por furto e enviado a um reformatório para menores na capital, por dois anos. Bruna foi visitá-lo apenas já próximo ao cumprimento de sua sentença,

quando se mudou para Curitiba para cursar a Universidade. Até então, sentia repulsa ao se olhar no espelho tomando para si os créditos do destino do irmão.

Capítulo 6- REMORSO — Boa tarde, ou melhor, boa noite, não é? — Me desculpe o atraso, reunião com diretoria tensa, trânsito terrível a essa hora. Farei o possível para que não aconteça novamente. — Obrigado. — Sinceramente, não! Nem melhor, nem pior! — Pelo menos passei a dormir seis horas por noite com o remédio, mas acordo moído. Durmo, mas não descanso, essa é a sensação. — Hum..., vamos continuar assim? — Tudo bem... tudo bem... acho que assimilei a ideia já. Talvez seja mesmo necessário compreender todo o passado, não apenas parte dele! — Quando jovem? Deus! Fui um adolescente terrível! Terrível! — Ah, em todos os sentidos, sabe? Sei que foi coisa de adolescente... sei disso, mas..., ah, sei lá, essas nossas conversas começaram a me fazer pensar em coisas que achei que tivesse esquecido, e que de repente passaram a ter uma importância que antes não tinham... sabe, as coisas vão acontecendo... nunca paramos pra pensar. Eu nunca havia parado para pensar. — Sinto ... alguns comportamentos me fazem sentir mal. Meus pais... não mereciam. — Hã... comecei, acho, com esse comportamento de rebelde sem causa, por volta dos catorze anos, por aí! Parece que essa fase durou uma eternidade! — Não havia motivo algum, simplesmente tudo me irritava, era malcriado, mesmo, desagradável, grosseiro! Sei lá... não sei o que acontecia... era um instinto terrível de fazer de tudo para afrontá-los, principalmente minha mãe. — Eu me lembro..., eu tinha uns dezesseis anos... me lembro uma vez.... — Minha mãe tinha aquela mania de me acordar com um beijo! Sabe, pela manhã..., era ela quem me acordava todas as manhãs! Sentava-se à beira da cama e começava a pentear meus cabelos com os dedos, alisava meus braços, as costas... beijava-me a testa, as bochechas, sussurrando para que eu despertasse... todo santo dia!! — Não sei explicar o porquê..., certo dia... sei lá..., um dia ela tava lá sentada..., e quando foi me dar um beijo..., eu me virei tão bruscamente..., tão irritado..., foi sem querer..., foi sem querer..., Meu Deus!

— Acertei seu rosto com tanta força!... Ela... nem se moveu, colou a mão no rosto onde eu a havia acertado, e ainda me deu o beijo matinal! Não disse uma palavra! Eu dei um pulo da cama, praguejando, disse alguns palavrões. – Sai daqui, vai, que saco! Lembro-me de ter dito isso! Sem dizer uma palavra, ela foi saindo... eu me lembro..., antes de fechar delicadamente a porta, eu a olhei de relance...., ela já estava chorando..., sempre chorando..., nossa! Fiquei tão irritado! Não me arrependi naquele momento..., não me arrependi... — Nunca tocamos nesse assunto. Acho que sequer ela contou ao meu pai. — No outro dia, e nos seguintes..., estava lá para me acordar... como se nada tivesse acontecido! Nunca me desculpei..., tive tantas oportunidades..., mas..., nunca! — Acho que sim..., acho que sim..., acho que esse fato me veio muitas e muitas vezes à mente... eu... eu... só evitava pensar a respeito, acho que é isso! Quando vinha à mente, sempre me dava como uma pontada aqui... sabe? Uma pontada no peito!... e eu... simplesmente tentava não pensar. — Não consigo me lembrar de como me senti. Foi um período em que acho que sentia prazer em tudo que os feria e magoava! Não sei por quê! Sei que é coisa de adolescente... sei..., mas.... ainda não entendo! Cada palavra, cada tentativa de dar conselho..., era como uma lição de moral..., insuportável! Irritava-me de uma maneira que nem sei explicar! Principalmente ela! Quanto mais delicadeza usava para comigo, mais irritado ficava! — Cada convite para um encontro familiar, dia dos pais, dia das mães, natal... tudo era irritante. Se ganhava um presente, parecia que estava levando uma surra! Era o que merecia... nunca levei! Nunca perderam a paciência a ponto de virar uma discussão! Foram incontáveis as tentativas de sentar para conversar... como aquilo aborrecia! Às vezes ouvia, calado, às vezes dava um berro e saía batendo porta! Até frequentei um psicólogo na época! Não me lembro se ajudou! Não lembro. — Tenho um filho... Deus queira que não seja como eu! Deus queira! — Hoje?... Ahh... eu me arrependo, claro! Lembrar esses episódios me causa arrependimento, uma dor no peito... sabe?..., nem sei explicar... remorso... tudo junto! — Ahh, houve muitos outros episódios, sim… foi um período realmente

difícil… para eles..., pra mim…, tudo sem razão alguma… já acordava irritado, estar em suas companhias era motivo de irritação… tudo, uma palavra, um gesto… uma tentativa de carinho…, credo! Que horror! Não gosto de ficar ruminando isso, é doloroso pra mim. — O quê? −Ah..., sei lá..., não sei como explicar... é como ficar atualizando um sofrimento, algo que não posso mudar... sei lá. — Sei que fui perdoado, mesmo sem nunca ter pedido perdão! Sou pai. Sei que fui perdoado, mas também sei o sofrimento que causei! Não mereciam... não mesmo! Esses pensamentos tem me afligido, mas às vezes... reconhecer o passado tem sido... sei lá... libertador!... depois de tanto tempo! — Quase não parava em casa. Tinha muitos, muitos amigos! Alguns permanecem ainda em meu círculo de amizades. Pessoas queridas! Sou tão grato por ao longo da vida ter construído e mantido amizades sinceras e duradouras! Demorei pra começar a dar valor a isso! — Foi mais ou menos nessa época que estava determinado a ser músico... hilário... nunca tive aptidão alguma. Chegamos a montar uma pequena banda, ensaiávamos todos os dias na garagem da casa de um amigo! Quase enlouquecemos a mãe... sem falar nos vizinhos.... não durou muito! Éramos horríveis, nenhum de nós tinha talento algum. — Dessa turminha da adolescência, ah... três deles ainda são muito próximos..., Sérgio é como um irmão, fui padrinho de casamento dele e ele é padrinho de meu filho! É de casa, da família! Médico, esposa adorável, dois filhos. — Aprontávamos de tudo..., mas nada ilegal, ou... sabe, não fazíamos nada de errado... só... nos divertíamos, frequentávamos o clube quase que diariamente, ensaiávamos com nossa ridícula banda..., e competíamos pelas garotas... essa “atividade” nos tomava a maior parte do tempo, com certeza! — Muitas, muitas... mesmo! — Ahh..., “peguei” todas possíveis! Mais novas, mais velhas… lindas… outras nem tanto... Mas nunca faltei com o respeito, entende? Acontecia tudo até onde elas permitiam. Sempre foi assim! Algumas eram mais liberais… aí… fazíamos de tudo!… outras… — Ah, lembro-me de uma..., história engraçada essa…! Não acredito que isso me veio à mente agora! É a segunda vez que me acontece... do nada... penso nela! Que será que aconteceu com ela? Nunca mais a vi! Eu tinha dezesseis para dezessete anos, ela tinha, acho eu, mais ou menos a

mesma idade! Era tão feinha, coitada, cheia de sardas no rosto e nos braços, cabelos ruivos… parecia meio desleixada… sei lá! Gente boa, até, muito inteligente..., sabe? Tinha aquele ar de garota inteligente… tipo, intelectual..., mas era tão feia, coitada! Esquisita, sei lá! Acho que o pai era juiz, ou delegado..., não lembro direito, mas era alguém importante na época..., não sei... ah, não lembro! Acho que ela se apaixonou por mim! Mas nunca se declarou... estudávamos na mesma escola, mas não na mesma sala! Quando a gente se cruzava pelos corredores... ou na cantina..., ela corava! Já era meio vermelha mesmo... os meninos tiravam o maior sarro... eu cheguei a ser tão grosseiro com ela uma vez, quando ela esbarrou em mim... mas acho que fui eu quem esbarrou nela! Me arrependo!... acho que me interessei por ela... preciso até contar isso para o Sérgio! Ele não vai acreditar! Me interessei mesmo, mas nunca tivemos nada! Se os meninos soubessem, eu tava frito! Seria a maior zoeira! Ela era realmente bastante esquisita…, mas... passei semanas com ela em minha cabeça. Não me lembro de ter ficado tão interessado por outra garota na época! Tinha todas... e nenhuma, não queria um namoro, entende? Não queria compromisso, nem alguma garota no meu pé! Eram apenas beijos... amassos, às vezes sexo..., mas..., só! Não... não tinha sentimento, sabe? Nenhuma me despertou nenhum tipo de..., sei lá, paixão adolescente, ou algo assim... nenhuma! Como pode, não é? Às vezes tinha tanta intimidade..., sem sentir nada... Nunca havia pensado nisso. — No final daquele ano, viajei com meus pais para Europa, depois até o Líbano..., fui e voltei de mau humor! Viagem interminável! Meu pai havia programado passar o Natal em Paris, só nós três! Ele estava tão animado, coitado! E eu, naquele mau humor do cão! E minha mãe... ah, sei lá, nem lembro.... — A garota? Ah, sei lá, deve ter mudado de cidade, porque não voltou à escola no próximo ano. Nunca mais tive notícias! Nem lembro o nome dela. — Acho que... o fundo do poço dessa fase, foi no final do ensino médio... naquela fase de preparação para o vestibular... se bem que... todos os amigos pareciam tão perturbados, tão pressionados..., com aquela obrigação de entrar pra faculdade... pensar no futuro..., começar a ter responsabilidade. Eu? Eu não! Ganhei um carro de presente! Antes mesmo do resultado, se tinha ou não sido aprovado! — Fui, não sei como! Sei que não fiz o menor esforço pra isso. Comparado com meus amigos, coitados! Estudaram tanto... além de terminar o colégio, ainda faziam outros cursos intensivos como preparação! Eu

também frequentei um desses cursos preparatórios, mas... frequentava sem participar! Ia mais pra estar com os amigos, e pegar garotas! Na verdade, quase reprovei o último ano, não sei mesmo como acabei entrando pra faculdade! — ... foi a maior festa quando saiu o resultado! Havíamos prestado vestibular para várias universidades... todos meus amigos foram aprovados em alguma delas. Hoje não é mais assim, né? Não tem mais vestibular, é outro sistema! É, estou meio por fora. — Enfim, estávamos tão felizes! Eu, sempre feliz e animado na companhia das meninas e de meus amigos... um verdadeiro cavalo na presença de meus pais! — Levei Ângela embora, dela eu lembro bem! Devo ter saído com ela por uns três ou quatro meses... até ela começar a se sentir “namorada” ... — Levei-a e fui pegar Victor em sua casa..., depois, pegamos Oscar, Luiz e Sérgio. Éramos um quinteto realmente inseparável! Não tava muito a fim de Ângela naquela noite... na verdade... já tava meio enjoado dela! Enjoava fácil! Jesus! — Compramos um litro de whisky esse dia. Não éramos de beber em excesso não... Luiz às vezes abusa um pouquinho... nada preocupante! A essa altura, já éramos todos maiores de dezoito..., mas não éramos muito de beber! Quando saíamos, tomávamos algumas cervejas, às vezes uma ou duas doses de whisky…, mas nesse dia, compramos uma garrafa! Eles, eufóricos com o fruto de seus esforços..., eu, comemorando uma vitória sem merecimento! — A garrafa passava de boca em boca…, rodamos horas de carro... fomos até Copacabana... voltamos…, estávamos completamente bêbados... a garrafa ainda não tinha terminado... — Deixamos Sérgio primeiro... — Me desculpe... ah... desculpe... — Sim... um copo d’água, por favor! — Ah... ufa!! Bem... enfim..., já estávamos perto da casa dele..., meu Deus... não faltavam nem três quarteirões…, perdi o controle do carro.... na esquina... eu... eu perdi o controle.

Capítulo 7- APATIA Bruna chegou ao final do ensino médio e formou-se com louvor. Antes mesmo do final do ano letivo, aspirava e era incentivada por Betina e seu marido, que a essa altura já se consideravam pais e responsáveis pela jovem, a prestar vestibular na universidade. Bruna nutria imenso sentimento de gratidão, consideração e respeito pelos três, mas jamais se sentiu parte da família, por mais que tentassem tratá-la como tal. Frequentava as aulas, mas dirigia-se imediatamente para casa, limpava, lavava, cozinhava com presteza e muita competência na tentativa de fazer jus ao apoio que recebia. Não recebia apenas apoio e ajuda, mas muito carinho, que ela reconhecia, apreciava, mas neste ponto, não conseguia retribuir. Também nunca fora cobrada. Sua postura honesta, dedicação e respeito bastavam para o casal. Quase não via a mãe, não frequentava mais sua casa, e não era procurada por ela. Escrevia semanalmente para o irmão, sem jamais ter recebido qualquer resposta, fato que, por quase dois anos, fora motivo de uma amargura que lhe tirou o belo e já raro sorriso do rosto, dando lugar a um olhar triste e vazio. Bruna nunca teve amigos de infância ou adolescência, era calma e calada de maneira incomum, gostava de ficar sozinha flertando com a solidão descaradamente, entretanto após a prisão do irmão, esse isolamento ficou mais evidente e, se dependesse dela, a humanidade perderia o dom da fala! Era extremamente raro ouvir dela palavras além de sim, não, ok ou qualquer outra monossílaba. Se já era leitora assídua, devorou a biblioteca neste período. Despejava sobre livros sua constantemente aprimorada capacidade de ser indiferente e insensível, inclusive à leitura. Betina era mais sensível que o marido, por mais que ambos a amassem igualmente, Betina sofria mais. Sentia que sua filha de coração era um vácuo de emoções e sentimentos, tão desmotivada, inerte para vida, e nada se poderia fazer a respeito. Nem por isso deixou de tentar, com monólogos, incentivos, elogios, expressões de carinho. Nada parecia funcionar. Seus benfeitores financiaram suas viagens até a cidade vizinha, num total de três, para prestar vestibular. Bruna recusava-se a fazer a prova para universidades particulares, pois não queria contar com a ajuda de ninguém para arcar com o custo da educação superior, foi prestar o vestibular porque não teve saída. Foi quase uma imposição do casal. Fora aprovada nas três,

uma delas, a Universidade Federal. Escolheu o curso de Letras, na capital, com intenção de estudar outras línguas que lhe facilitasse entrar para o mercado de trabalhado. Mas Bruna não tinha nenhum plano específico, aspiração ou sonho. Só ia arrastando sua vida conforme as coisas iam acontecendo naturalmente, não pensava no futuro, nem remoia o passado. Não participou dos eventos de formatura do ensino médio por escolha própria, a contragosto de Betina. Só compareceu para retirada do diploma. As aulas iniciar-se-iam em fevereiro na Universidade, e antes do final de ano, o casal já fazia todos os planos: procurar local para hospedar Bruna, uma república de estudantes, ou uma pensão, talvez um lugar em que ela tivesse sua privacidade, o custo da alimentação, transporte, material escolar. Betina vasculhava de ponta a ponta o jornal da Capital todos os dias fazendo suas pesquisas. Bruna ficava com o caderno de empregos. Na semana entre o natal e o réveillon, Bruna pediu a Betina que a ajudasse com a ida a Curitiba, onde participaria de um processo de seleção para um emprego. Um hotel, quatro estrelas, muito bem conceituado, vaga de camareira. Betina, a princípio, achou um absurdo. O marido aprovou a iniciativa, e Bruna viajou por dois dias. Fez prova escrita e uma entrevista numa agência de emprego terceirizada e um rápido teste prático para a função. Voltou apenas para fazer as malas, agradecer e se despedir. Antes de voltar, com um mapa da cidade nas mãos, procurou uma pensão e deixou seu lugar reservado. Um lugar que recebia apenas estudantes. Quarto individual, banheiro coletivo, apenas para moças, bem localizado, dois ônibus até o hotel, e dois ônibus na volta da faculdade. O plano: sair da pensão pela manhã para trabalhar, do trabalho para a Universidade, da Universidade para a pensão. O salário oferecido era baixo, mas imediatamente Bruna fez as contas. Dava pra pagar a pensão, para se alimentar, para os produtos de higiene pessoal e ainda sobrava. Pouco, mas sobrava. Quase não gastaria com transporte, pois receberia ajuda de custo. Tinha vale-refeição, não teria que se preocupar com saúde. O emprego oferecia plano de saúde e odontológico básicos. E haveria possibilidade de fazer horas-extras. Era muito mais do que Bruna jamais havia tido. Conseguiu sozinha, sem ajuda ou qualquer tipo de orientação, a despeito dos conselhos de Betina, cuja maior preocupação eram segurança, alimentação e abordagem de estranhos. Bruna despediu-se de sua mãe, que não parecia feliz, nem infeliz, nem preocupada. Havia seis meses que Acácia deixara o velho bar no centro da

cidade passando a trabalhar num pequeno restaurante recém-inaugurado num bairro chique, que ficava um pouco afastado do centro. Com o novo emprego, Acácia diminuiu consideravelmente o consumo de álcool, e com exceção de um ou outro final de semana, estava sóbria, inclusive apresentava uma aparência mais saudável. Bruna não sabia até então, mas há quase dois meses a mãe estava vivendo com outro homem com quem havia iniciado um relacionamento esporádico há quase dois anos, quando o mesmo ainda era casado. A despedida das duas foi fria, com uma insinuação desnecessária de que a filha rumava a caminho de um prostíbulo. Não seria Acácia se não terminasse assim. Bruna só voltaria a ver a mãe anos mais tarde, em Curitiba. Falaram-se poucas vezes por telefone, quando Bruna ligava para saber notícias, o que não acontecia mais que três ou quatro vezes por ano. Na rodoviária, já na plataforma de embarque, Betina desmoronou. Não conseguiu conter o choro que segurava há dias, desde que Bruna voltou com a notícia. Com um abraço apertado, não conseguiu dizer tudo o que queria, na verdade, não conseguiu dizer quase nada. O marido, fracassou na intenção de disfarçar os olhos lacrimejantes, por mais que tentasse, o rubor, a coriza, e ausência de voz denunciavam. Nina, agarrada em sua cintura, não chorava, mas recusava-se a soltá-la. Bruna era cética ao amor. Tudo que sabia a respeito vinha de livros, novelas, filmes, histórias fictícias! Passara tanto tempo com aquela família e não prestou atenção ao que realmente importava. Estava tão focada e tão preocupada em retribuir o prático e o mensurável, que não abriu espaço para sentimentos. Para Bruna entender ou reconhecer tal sentimento, seria preciso desenhá-lo. Aquela despedida na rodoviária era o desenho necessário, e Bruna sucumbiu às lágrimas! Mal conseguiu agradecer, pois faltaram palavras e força em sua voz. Bruna deixou sua cidade natal sem qualquer nostalgia, não olhou para trás, nem se despediu do lugar para onde jamais voltaria. Era o primeiro sábado do mês de janeiro, um início de noite bastante agradável quando Bruna desembarcou na Capital. Tomou um táxi até a pensão conforme as orientações de Betina. No quarto, uma cama com cabeceira marrom, de aparência bastante desgastada, mas com um bom colchão, um armário de aglomerado cinza, cujas portas deviam ser manuseadas com cuidado sob pena de despencarem, uma mesinha e uma cadeira em madeira sem gavetas em frente à pequena janela basculante coberta por uma cortina de chita com estampa em flores tipo margaridas de cores vibrantes, onde prevalecia o vermelho de fundo, e um ventilador no

teto, que mesmo ligado no máximo, parecia girar em câmera lenta. Apesar da simplicidade, precariedade na manutenção e mau gosto, o local estava impecavelmente limpo, e deveria permanecer assim conforme as exigências da senhoria. O cansaço abateu-se sobre Bruna que não desfez nenhuma das três malas que levava, uma delas continha apenas livros e alguns materiais escolares que poderiam servir no início das aulas, outra com roupas de cama e banho além de materiais de higiene suficientes para mais de um mês, e uma pequena farmacinha com remédios para dor de cabeça, febre, dor de garganta, algumas vitaminas, tudo preparado por Betina com muito amor. Roupas e sapatos separados em uma mala bem maior, pois apesar do inverno estar bastante distante, Betina providenciara roupas que Bruna poderia utilizar no polo norte, tamanha era sua preocupação. Bruna forrou a cama com lençóis, preparou o travesseiro, dirigiu-se ao banheiro que seria compartilhado com outras estudantes e que ficava no meio do corredor, entre os quartos, tomou um banho e deitou-se. Normalmente o cérebro de Bruna não parava nem quando ela dormia. Estava permanentemente programando meticulosamente o dia seguinte, memorizando aquilo que estudara para uma prova, “filosofando” sobre algum artigo ou livro que lera, mas não nessa noite. Dormiu minutos após deita-se, exausta, já havia programado durante a viagem seu primeiro dia na capital. Em sua bagagem trouxera um rádio relógio que despertou exatamente às seis horas da manhã. Ao primeiro toque, Bruna já estava sentada a beira da cama desligando o aparelho, desperta, como sempre fazia. As quatro outras moradoras da pensão ainda dormiam e havia na casa um hospedeiro silêncio quebrado apenas pelo apitar de uma chaleira, ouvido assim que abriu cuidadosamente a porta do seu quarto sem produzir qualquer ruído. Enquanto caminhava pelo estreito e longo corredor, dirigindo-se à cozinha, teve o olfato aguçado pelo delicioso cheirinho de café. Pensou imediatamente em Betina e sentiu um frio no estômago, sensação interrompida pelo “bom dia!” de sua senhoria, que foi logo lhe oferecendo uma xícara de café. — Tão cedo, menina? É domingo, e você deve estar exausta da viagem, porque não dorme até mais tarde? Bruna, economizando ao máximo seu repertório como de costume, disse que estava ansiosa para conhecer um pouco a cidade. Tomou apenas uma xícara de café, agradeceu e saiu. Tomou um ônibus até o centro, e lá, um táxi, rumou para o reformatório

para menores onde seu irmão concluía sua pena pelo crime cometido há quase dois anos. Domingo era justamente o dia em que os “internos”, como eram chamados, recebiam visita dos familiares. O coração de Bruna gelou assim que avistou o local. Não fazia ideia! Durante todo esse tempo tentava a todo custo dissociar a palavra “reformatório para menores infratores” de qualquer coisa relacionada a prisão! Recusava-se a pensar dessa maneira. Imaginava um local onde os jovens recebiam adequada educação, com rígido regime disciplinar, profissionais adequados para socializar os jovens, atividades lúdicas, tudo o que João Mateus precisava! Sabia que não era, mas forçava-se a acreditar naquilo que idealizava. Seu irmão estava preso! E o local não tinha como ser mais horrível! Foi instruída pelos agentes de segurança acerca dos procedimentos durante a visita, sendo encaminhada a uma espécie de pátio aberto, com muitas mesas redondas, rodeadas por bancos, tudo em concreto, tudo tão cinza! Avistou de longe João Mateus sentado em uma delas, apesar do grande número de pessoas que já se encontravam no local. Apressou o passo mirando o olhar fixamente nele enquanto se aproximava, abriu os braços para um abraço quando chegou perto, mas ele nem se levantou! Então abraçou-o sentado mesmo, de lado, desconfortavelmente... por alguns segundos. Sentou-se a seu lado... ele não virava o rosto para ela! Bruna esticou o braço e colocou a mão do lado oposto do rosto do irmão tendo que fazer um certo esforço para movê-lo em sua direção. Então embrulhou aquele rosto pálido e magro com as duas mãos, e por mais que tentasse olhar dentro de seus olhos, João não levantava o olhar, enquanto ela repetia a mesma frase pela segunda vez, dizendo que estava acabando, e logo ele estaria fora daquele lugar. Então ele levantou os olhos, opacos, rasos, transbordando um misto de indiferença e ódio: “— Não volte aqui! Não te conheço e nem quero! Não quero te machucar, mas vou, se você voltar!”. Bruna tomou um susto! Largou repentinamente seu rosto... não era seu irmão! Não era! Nem mesmo aquela voz grossa... de homem... de bandido! Aqueles olhos... não eram dele! Ela gelou! Tentou ainda pronunciar algumas palavras, mas ele se levantou, de costas para ela, caminhou com passos rápidos e largos para longe, sem olhar para trás, passou por um portão de ferro, e sumiu naquele lugar sombrio. Bruna continuou ali, sentada, olhando atônita em direção àquele portão, sua cabeça parecia girar, perdida entre a tristeza, a amargura, a falta de

perspectiva e um súbito medo. Levantou-se depois de alguns minutos, zonza, dirigiu-se à saída! Sem rumo, um vazio preenchido por outro, um zumbi!

Capítulo 8- FUGA — Já faz muito tempo! — Penso que passado é constantemente sinônimo de dor... ou porque passou... ou porque não! — Tive três costelas quebradas e algumas escoriações, especialmente no rosto... só... Vê essa pequena cicatriz?... quase não se vê né? — Oscar torceu feio o pé esquerdo, rompeu alguns tendões, nada muito grave... só enfaixou por algum tempo... também teve algumas escoriações... — Mas Luiz... — Naquela época nem era obrigatório usar cintos de segurança... o senhor lembra como era... né? — Os pais dele eram bem de vida, gente da alta sociedade..., não quiseram nem aceitar a ajuda de meus pais para o hospital, tratamento... — Nãão..., não me deixaram vê-lo no hospital..., não deixaram... — De tanto insistir, meus pais me levaram até lá..., ele... ainda estava na UTI... induziram um coma... por causa de um coágulo..., mas... os pais dele, praticamente nos expulsaram..., não me deixaram vê-lo. — Deixamos Sergio em casa... Luiz estava no banco de trás com Oscar e Vitor e passou para o banco de passageiro. Estava indo levá-lo..., já estávamos próximos à casa dele...., eu..., entornei a garrafa de whisky... e... — Acordei no hospital! — Tinha uma construção... de um prédio..., tinha um desses depósitos de entulhos... como chama?... caçamba... — Eu bati naquilo!... perdi o controle do carro... e bati... — Não estava correndo..., aliás... estava até devagar demais para a velocidade permitida no local! Nem o carro sofreu tantos estragos... — Bati naquela caçamba do lado dele... ele... voou contra o para-brisas... — Não atravessou... parou nele! — Fiquei sabendo através de meus pais que teve traumatismo craniano..., teve um coágulo no cérebro... muito grave..., e... teve um afundamento “desse” osso da face..., parece que... o osso ficou “moído” ... — Só tive notícias depois disso através de amigos... poucas notícias! Soube que tomaria remédios contra convulsões pelo resto da vida, e que... as cirurgias plásticas no rosto... e parece que foram várias... ajudaram... um pouco.

— Não! Nem tentei!... nem ele a mim! Sérgio tentou por mais de uma vez..., ele nem o recebeu! Segundo Sérgio, os pais dele disseram que ele não queria ver... nem ter contato com nenhum de nós! — Senti remorso... passei quase dois meses sem colocar o nariz pra fora de casa..., não queria pensar..., não queria lembrar... me afastei de Ângela... dormia ..., assistia TV... dormia..., colocava um som no volume máximo... dormia..., não queria nada, não recebia ninguém, exceto Sergio. Também, pelo que me lembro, nenhum outro amigo insistiu muito em me procurar. Mas talvez isso seja coisa de minha cabeça... faz muito tempo... Talvez eles tenham até insistido, eu tenha me recusado a vê-los... não sei... — Ah... talvez... talvez! Não foi uma fuga intencional, foi mais... a necessidade de encontrar uma maneira de lidar com aquilo tudo... de... não encarar nem aceitar as consequências. — Depois de meses comecei a remoer os acontecimentos... o que poderia ter feito de diferente... — Foi a garrafa... lógico!... Se não tivesse pego a garrafa e dado aquele gole... talvez não tivesse me distraído... — Depois de muito tempo... e também depois de muito conversar com meu pai... e... Sérgio foi minha maior âncora! — O senhor me perguntou em um de nossos encontros sobre ser filho único..., bem... é possível viver sem irmãos..., sem amigos, não! — ...depois de algum tempo concluímos..., e digo “concluímos” porque não foi uma conclusão só minha..., que... éramos jovens..., sabe..., todos estávamos bebendo...! — Reconheço que só eu dirigia..., mas..., poderia ter sido um dos outros..., foi uma fatalidade! — Foi ele quem se isolou..., e nos isolou! Ele sofreu mais! Sua família sofreu mais! Ele ficou com sequela, nós não! ...tudo isso é verdade..., mas poderia ter sido qualquer um de nós! E eu... tive que conviver com o que aconteceu também... todos tivemos nossas sequelas. — Bom... é possível que pensar assim seja uma fuga da responsabilidade... o caminho mais curto pra fugir do remorso... Eu me arrependi... todos nós... aprendi minha lição! ...era tão jovem..., nunca mais! Nunca mais peguei num volante após beber uma taça de vinho que fosse! — Enfim... não dá pra rebobinar, dá? — E também... acho que... mudei bastante depois disso..., esse... essa... fatalidade!... me reaproximou de meus pais..., enfim... acho que... mudei!

Capítulo 9- DESAFEIÇÃO As aulas ainda não haviam se iniciado, oportunidade para fazer hora extra de segunda a segunda. O gerente achava um exagero, mas ela pedia por isso! Em pouco tempo já sabia tudo sobre o funcionamento da cozinha, do restaurante, da lavanderia, hóspedes assíduos e suas manias, e com o passar do tempo, só foi acumulando conhecimento. Quando as aulas começaram sua atenção fora dividida em duas, sem, entretanto, comprometer a qualidade do trabalho ou dos estudos! Em menos de três meses, entre o fim do turno no hotel e o início da aula, começou a frequentar um curso de inglês numa escola que ficava no meio do caminho. Já era a primeira opção de língua escolhida no curso de letras, mas queria “adiantar”. O dono do hotel era um italiano de quase setenta anos de idade, Sr. Antônio Messina, estava sempre presente no hotel, falante, simpático. Bruna sentia pena dele, principalmente quando o ouvia lamentando o desinteresse dos filhos pelo hotel, fundado por seu pai há mais de sessenta anos. Passou por diversas reformas, a mais recente deu ao hotel uma aparência moderna apesar de sexagenário, quartos amplos, perfeitamente equipados, todos os quartos masters possuíam confortável sala, banheiros luxuosos, a excelência na qualidade dos serviços prestados, localização privilegiada, primor no atendimento, conforto, um restaurante glamouroso, com chefs renomados e área de lazer e recreação aconchegantes, renderia ao hotel a quinta estrela em poucos meses. Muitos clientes importantes, e quem se hospedava uma vez, sempre voltava! Estava sempre lotado, e Antônio, empolgado e impulsionado pelo jovem e ambicioso gerente, iniciou a construção de um novo hotel na capital Paulista. Projeto ousado! Muito bem estudado e com potencial para ser ainda mais lucrativo que o primogênito Giorgio Palace. Dois anos se passaram até que Bruna tivesse a chance de se candidatar à vaga de recepcionista. Ser fluente em dois idiomas foi um diferencial, mas conhecer o hotel como a palma da mão foi determinante para que ascendesse à aspirada colocação apesar da acirrada concorrência. Durante esse tempo, Bruna ligou para sua mãe apenas meia dúzia de vezes, Acácia continuava a mesma, mas aparentemente gozava de boa saúde e estava satisfeita com seu atual companheiro. Tinha mais contato com Betina, para quem telefonava pelo menos uma vez por mês, a família fora

visitá-la na passagem de seus dois aniversários anteriores, ocasião em que almoçaram juntos e passaram dias agradáveis matando a saudade uns dos outros. Depois de mais de nove anos, Betina engravidou novamente, mas uma pré-eclâmpsia desencadeou outros problemas de saúde, e o filho natimorto a deixara psicologicamente abalada por muito tempo, interrompendo os encontros anuais com Bruna, que apesar de discursar diferente nos contatos telefônicos semanais, não fez o menor esforço para voltar a Itaruma para uma visita. Tão avançada nos estudos, já falava fluentemente inglês e espanhol, bastante adiantada no alemão, emprego estável não tendo ainda completado vinte e um anos, Bruna não havia tido qualquer tipo de relacionamento amoroso. Era mais que estranho, era preocupante que não se interessasse por homem ou mulher. Ainda morava na mesma pensão desde que chegara a Curitiba, e por mais que não desse qualquer abertura, a senhoria vivia insinuando sua estranheza pela ausência de amigos ou namorados. Bruna estava tão focada nos estudos, satisfeita com sua vida profissional e financeira, não tinha tempo para mais nada! Sentia-se tão bem consigo mesma e com seu mundo! Qualquer tempo livre era dedicado à leitura. Afetividade alguma lhe fazia falta, não possuía um pensamento romântico sequer! Era constantemente assediada na faculdade, inclusive por um professor, não se ofendia, não se abalava, mas também não apreciava! Tinha as saídas perfeitas e prontas para cada situação e nunca passou qualquer tipo de constrangimento. Pouco depois de completar vinte e dois anos, já no último ano de faculdade, com boas economias, decidiu alugar e mobiliar um pequeno apartamento na periferia, num bairro familiar e muito agradável, do lado oposto da cidade onde ficava a pensão que a acolheu por mais de três anos. Um sonho realizado! Independência, estabilidade, paz, privacidade! Bruna não queria qualquer outro tipo de vida! Essa era perfeita! Internet era uma novidade que a fascinava ainda mais que celular! Ela se deu ao luxo de possuir os dois! Podia! Sua vida simples era glamourosa, era assim que avaliava! Sentia-se plena e satisfeita! Dois meses depois ainda não havia tido tempo para conhecer melhor o bairro. A oportunidade veio compulsoriamente quando Sr. Messina praticamente a obrigou a tirar férias depois de mais de três anos. Achava um absurdo, as férias anteriores haviam sido “vendidas”, e apesar de não

aparentar qualquer tipo de cansaço ou estresse, ninguém poderia ficar tanto tempo sem descanso. E era melhor agora que no final do ano, quando o movimento no hotel aumentava consideravelmente. As obras do hotel em São Paulo estavam atrasadas e já constituía certo prejuízo, razão pela qual Giorgio Palace estava evitando pagar horas extras e “comprar férias” de funcionários, como medida de economia. Após três dias em casa, lendo, dormindo, aprendendo a dominar a internet, curtindo seu adorável lar, saindo apenas para a faculdade, Bruna decidiu dar o passeio que mudaria sua vida.

Capítulo 10- DESÍDIA — ... eu passei tanto tempo “fugindo” deles..., fugindo inclusive do afeto, da atenção... — Também!... provavelmente... do controle... das chantagens emocionais dela! — Só que... depois do acidente, eles foram fundamentais!... Acho que teria enlouquecido não fosse o apoio deles! Sentia culpa, os pais de Luiz me culpavam..., os amigos, não sei..., mas eu achava que também me culpavam... Com o tempo fui amadurecendo e dosando minha culpa, mas na ocasião... tive todo apoio necessário para superar! — Como eu mudei? — Ahh, depois de muito tempo tentando me esconder de todos..., enfurnado no quarto..., eu fui, acho que..., me acalmando! — Sérgio foi como um irmão! Nunca me abandonou! Fazia de tudo para me deixar sozinho o menor tempo possível! Me ajudou a superar inclusive a reação de Luiz e de seus pais, com as quais ele não concordava! — ...Quando as aulas começaram ficou mais difícil... ele estudava em tempo integral..., eu só a noite. Nos encontrávamos sempre no final de semana... saíamos juntos..., mas..., com uma frequência bem menor! Ele vivia morto de cansaço... — Sentia... muita falta!... mas como disse..., pelo menos uma vez por semana estávamos juntos. — ...Eu era assíduo às aulas, mas confesso que pouco entusiasmado! Por outro lado..., aproveitei muito, muito mesmo... as festas, as repúblicas... as garotas! — Não... raramente! Olha... demorou uns dois anos ainda pra eu tomar coragem pra tomar uma cerveja! Eu nunca fui muito de beber mesmo..., hoje aprecio um bom vinho, uma cervejinha em dias quentes..., nunca mais tomei whisky... nem tenho vontade... ai! Só de pensar tenho náuseas!... nem por isso perdia uma festa! — Hã? — Não..., ninguém especial... não! Eu..., sei lá..., não consegui me apegar a ninguém na minha juventude. Meu interesse durava uma noite!... saí com uma mesma menina diversas vezes..., mas..., sem compromisso, entende? Às vezes conhecia uma garota numa festa, combinávamos de nos

encontrar na próxima... às vezes ficava novamente com ela, às vezes não... — Sim... muitas! — É... acho sim! Não sei explicar porquê, mas... eu fugia mesmo... qualquer indício de... sei lá..., de eu ficar um pouco mais interessado... ou ela ficar mais interessada... era motivo para eu querer ficar o mais longe possível! A simples ideia de relacionamento me causava imensa repugnância nessa época... não sei explicar porquê. — Promíscuo? Não! Não!... eu não estou tentando... compreende? ...dar um de “Don Juan” ... nada disso..., mas também não acho que era promiscuidade! Era só... sexualidade aguçada... uma transição da adolescência... entende? ... homens são assim..., até uma certa idade... não é? — Ah... quanto tempo durou... essa rotatividade de parceiras sexuais em minha vida? ...ah... durou muito tempo viu! Muito tempo! — Olha..., pra se ter uma ideia..., no terceiro ano de faculdade meu pai me arrumou um estágio no departamento jurídico da empresa! ... o senhor não imagina a saia justa! ...agora é engraçado..., mas na época não foi não...! — Eu transei com as três mulheres que trabalhavam no departamento! Duas delas advogadas, mais velhas..., uma casada inclusive! ... na hora do almoço... no fim do expediente..., na mesa..., no tapete..., no sofá..., no banheiro..., uma loucura! — Ah, como terminou? ... nem sei direito o que aconteceu..., meu pai nunca me disse..., mas alguma coisa aconteceu! Só sei que cinco meses depois... ele me chamou em sua sala pra dizer que eu já tinha “estagiado demais” ..., e que mais pra frente me encaixaria em outra função... — Que nada! Só voltei para a empresa quando ele faleceu! Como presidente! — Acredite se quiser, uma das advogadas ainda trabalha lá! Tenho pouquíssimo contato com ela..., ela é advogada trabalhista..., mas nas poucas vezes em que nos cruzamos pelos corredores, ou no elevador..., só desejamos reciprocamente bom dia... ou boa tarde..., mais nada! Acredito que ambos superamos... digamos assim..., mas admito que ainda é bastante constrangedor..., apesar de que..., eu era muito jovem né... ela já era bem mais experiente... então... — Então... eu terminei o curso..., me formei..., meu pai montou um belo escritório pra mim no Jardim Botânico... comecei a advogar..., de tanta insistência fui fazer especialização em direito tributário..., segundo ele não se encontrava fácil bons tributaristas! ...E por incrível que pareça..., me

identifiquei com o curso... gostei muito... Comecei a advogar nessa área... era bom advogado! ...meus associados eram melhores... eu admito! — ...advoguei por quase seis anos! ...estava indo muito bem por sinal! — Ah..., ainda tive muitas..., mas tive também umas três namoradas fixas nesse período. Com uma delas ainda fiquei por quase um ano... terminamos..., voltamos e ficamos juntos mais uns meses... — Bem... falando assim parece absurdo né? ..., mas foi um recorde na época! ...quase um ano! — ... não... foi ela... acabou descobrindo um deslize meu com outra... e... acabou... voltamos uns dois meses depois..., mas eu... acabei cometendo o mesmo erro! — Não... não... não mais! ... encerrei essa fase desde que me casei com Ana ... depois de quase perdê-la...!

Capítulo 11- HORROR Bruna saiu para caminhar pelo bairro, planejando ir até um supermercado que ficava há cerca de oito quadras de seu apartamento. No caminho, surpreendeu-se com um movimentado comércio que contava inclusive com uma loja de departamentos. Entrou em diversas lojas, pesquisou preços, vasculhou uma agradável livraria, e a poucos metros do supermercado entrou numa mercearia, pequena, mas muito bem arrumada. Chamou sua atenção que um estabelecimento daquele tamanho, perto de um supermercado, estivesse lotado de clientes, e não demorou a descobrir a razão. O estabelecimento recebia encomendas escritas ou por telefone e fazia a entrega a domicílio, e aqueles que desejassem escolher pessoalmente os produtos também recebiam sua mercadoria em casa e com hora marcada, vinte quatro horas por dia, sete dias por semana. Aquilo era perfeito para Bruna, apesar de pequeno, tudo que se podia encontrar num bom supermercado em gêneros alimentícios, produtos de limpeza, higiene, era possível encontrar na mercearia de Dona Amparo, e se o cliente desejasse algo que ela não tivesse, era providenciado e entregue conforme as regras da casa! Bruna ficou encantada, e de cara, virou cliente! Foi recepcionada pela proprietária, uma senhora de meia idade, que não media mais que um metro e sessenta, com a voz meio rouca, esbanjando simpatia, que lhe apresentou o local e tantos produtos quanto pôde! A entrega era realizada com hora marcada e o pagamento podia ser realizado tanto no estabelecimento, quanto ao entregador! Bruna abusava de praticidades, preferiu deixar uma lista com seu pedido e marcou para receber a mercadoria às dezesseis horas daquele dia. Dona Amparo não tinha feições britânicas, mas a pontualidade...! O interfone tocou ainda faltavam uns três minutos para as quatro da tarde. Ao abrir a porta para o entregador, Bruna ficou ainda mais fã do serviço prestado pela pequena mercearia, com muita cordialidade e simpatia, o rapaz solicitou que ela indicasse o local mais adequado para que a mercadoria fosse colocada, não permitindo que ela segurasse uma sacola sequer, explicou para ela que as diferentes cores das embalagens plásticas que acondicionavam as mercadorias, identificavam os itens que necessitavam de refrigeração, os que continham embalagens frágeis como vidros, e os que continham materiais de higiene e limpeza. Conferiu a nota e o pagamento, e ficou parado no meio da

cozinha de Bruna. Apesar de ter pago uma taxa pela entrega, ela deduziu que o rapaz aguardava uma gorjeta, pediu a ele um minuto, foi até a sala, pegou alguns trocados e deu ao rapaz, que agradeceu, colocou-se à disposição, desejou boa tarde e saiu. Bruna não se incomodou, o serviço era tão bem prestado e prático, que compensava o pagamento de uma taxa de entrega mais uma pequena gorjeta. Por mais de três meses, pelo menos uma vez por semana Bruna recebia suas mercadorias. Muitas vezes, telefonava à noite, no caminho entre a faculdade e sua casa, e fazia seus pedidos para recebê-lo logo que chegasse. Para sua região somente havia dois entregadores. Saulo era o mais atencioso e prestativo, e realizava as entregas noturnas três, dos sete dias da semana, e aos domingos. Ela procurava fazer suas compras nos dias de trabalho do rapaz, e começou a reparar em sua beleza física como nunca antes havia reparado em qualquer outro. Aparentava idade entre vinte e cinco, vinte e seis anos, pele morena bronzeada pelo sol, devia ter mais de um metro e oitenta de altura, porte atlético, típico de rapazes que frequentam academia ou praticam esportes. Bruna o achava lindo! Sabia que ele era formado em educação física, que desejava lecionar na área, mas ainda não haviam surgido oportunidades no mercado de trabalho. Além disso, a cada entrega realizada, ela recebia um “mimo”, um bombom, um pãozinho doce, pois como sempre lhe dizia o rapaz, chegava exausta e faminta após um longo dia de trabalho e estudos! A essa altura, ele já dispensava a gorjeta, não havendo argumentos que o fizessem aceitar. Bruna se percebeu pensando no rapaz com certa frequência, e suas inicialmente breves conversas durante as entregas, passaram a ser um pouco mais longas, eventualmente acompanhadas de um copo de suco ou um cafezinho, tempo que passava voando para ambos. Certa sexta feira, durante as corriqueiras conversas, Saulo fez um convite para uma sessão de cinema na noite de sábado, imediatamente aceito. Era consciente, Bruna esperava e já ansiava por isso. Depois de três filmes, três sábados seguidos, na fria e chuvosa tarde de domingo, Saulo apareceu de surpresa, por volta das quinze horas, levando algumas “carolinas” da padaria mais apreciada da região e uma pequena garrafa térmica com chocolate quente. Bruna ficou tão surpresa quanto feliz, lamentando apenas que ele não pudesse ficar para acompanhá-la no delicioso lanche vespertino, pois tinha ainda muitas entregas a realizar e trabalharia até as vinte e duas horas. Para

compensar, ofereceu-se para ir buscá-la na faculdade, no outro dia. Os argumentos sobre a distância utilizados por Bruna, não querendo causar incômodo ao rapaz não funcionaram, ele insistiu até que ela aceitasse a gentil oferta. Saulo ficou visivelmente comovido quando ela lhe contou da virgindade, sem muitas explicações. Pouco mais de seis meses depois, Saulo estava praticamente morando em seu apartamento. Deixava de fazer entregas para ir buscá-la na faculdade, mesmo com as repreensões de Bruna, fazia questão de levá-la ao trabalho, pegá-la após o expediente e levá-la para o curso de conversação alemã que ela estava concluindo, e constantemente deixava de trabalhar para levá-la à faculdade, e esperar sua saída! Ia pra casa dois ou três dias por semana, no máximo. Bruna percebia que as conversas já giravam mais em torno de cansaço e reclamações do “namorado” sobre o “regime de escravidão” de dona Amparo. Conheceu a humilde e simpática família do rapaz no dia de Natal. Nos três anos anteriores, Bruna se ofereceu para trabalhar na noite de Natal, razão pela qual o hotel já contava com sua presença nesta data, o que para ela era uma situação muito normal. Surpresa foi Saulo aparecer em seu local de trabalho por volta das onze da noite, embriagado, causando imenso constrangimento com seu tom de voz alterado, chamando-a de escrava otária, o hotel de lixo, explorador. A situação só não foi mais vexatória porque o saguão estava vazio, o restaurante já estava fechado, os dois mensageiros de plantão estavam no alojamento de funcionários, o expediente do concierge já havia terminado, estando Bruna sozinha na recepção, e o encarregado de portaria, que mesmo estando do lado de fora, ouviu todo o chilique do rapaz. Passou mais de quinze minutos constrangendo Bruna, até que cansou de ouvi-la implorar por sua saída, e foi embora. Assim que Saulo deixou o hotel, seu Aloísio veio delicadamente perguntar se ela estava bem ou se precisava de alguma coisa. Sem conseguir esconder seu constrangimento, seus olhos se encheram de lágrimas, tendo Bruna reunido todas as suas forças emocionais, espirituais e físicas para não permitir que elas rolassem pelo rosto. Ele lamentou que as pessoas abusassem de bebida nessa época do ano, e tentou tranquilizá-la dizendo que estaria logo ali na portaria caso ela precisasse. Um único casal hospedou-se naquela noite, e com exceção dos poucos minutos que dedicou conferindo a reserva e fazendo o check in, durante toda

a madrugada Bruna parecia desorientada. A ridícula cena ocorrida mais cedo se misturava em sua mente como um filme de tudo aquilo que ela tentara fugir por anos, sua mãe, seu pai, seus medos, seus traumas, sua vida perfeita até pouco tempo atrás. Aquele sentimento de culpa, questionamentos sobre seus erros de avaliação sobre Saulo, sua precipitação na condução desse relacionamento, tudo se misturava, atordoando-a, se alguém chegasse, teria a impressão de estar diante de uma catatônica em estágio de paralisia! Uma sensação conhecida, sentimentos escondidos por anos, vindo à tona todos juntos de uma só vez! O sangue fervia nas veias refletindo num ardor na pele. Às sete da manhã Bruna gelou, certa que seu coração chegou a parar por alguns segundos quando o carro de Saulo estacionou em frente ao hotel. De longe ela o avistou! Já havia passado o relatório noturno para os dois recepcionistas que estavam assumindo, preparada para sair, ainda atordoada, viu Saulo passar pelo porteiro que acabara de assumir o turno, com uma rosa vermelha em uma das mãos, e um pequeno embrulho de presente na outra! Andou a passos largos para evitar que ele entrasse, mas já havia passado pela porta giratória. Diante da porta, ele beijou-a, desejou feliz Natal, entregou-lhe a rosa e o presente, e passando os braços sobre seus ombros, conduziu-a a saída e até seu carro. Bruna queria falar, mas as palavras não saíam, emudeceu completamente, tentava esconder o tremor visível das mãos e dos lábios, o presente para o namorado que havia escolhido tão meticulosamente dias antes, jamais sairia de sua bolsa, e antes que retomasse a fala, ele começou a chorar, implorava por perdão reconhecendo que havia extrapolado, dizia-se arrependido, cego de amor e de paixão, que já não mais podia viver sem ela, como ameaça, aos prantos, dizia que tiraria a própria vida se a perdesse, abraçava, beijava-a, e não parava de falar. Bruna estava imóvel e ainda não tinha aberto a boca, estava ainda mais perdida com a patética cena armada por ele. Como Bruna não esboçou qualquer tipo de reação à sua exacerbada tentativa de desculpas, enxugando as lágrimas ele pediu que ela abrisse o presente. Sem olhar para ele, ela foi desembrulhando, um pequeno frasco de perfume importado, enquanto ele não parava de falar. Perguntou se ela gostara do presente, recebendo como resposta um desgostoso balançar de cabeça positivo. Começou a dizer que sua família estava doida para conhecêla, ligou o carro, começou a dirigir falando sobre sua mãe, seu pai, sua irmã mais nova, como se nada tivesse acontecido, e sem sequer perguntar a Bruna

se ela desejava almoçar com sua família, dirigiu até sua casa. Bruna saiu do hotel calada, e quando chegou à porta da casa de Saulo, ainda permanecia assim. Fora muito bem recepcionada por todos, uma casa simples, mas aconchegante, pessoas simpáticas, uma família calma e aparentemente unida. A mãe e a irmã de quinze anos na cozinha, chamaram Bruna para juntar-se a elas nos preparativos para o almoço, fizeram algumas perguntas sobre trabalho e estudo, nada muito pessoal, percebendo que Bruna era de pouca conversa, não forçaram. Bruna foi cordial durante o almoço, esforçou-se para não parecer antipática, e alegando cansaço pela noite de trabalho, logo após a sobremesa, pediu a Saulo que a levasse para casa, pedido imediatamente atendido por ele com toda atenção e compreensão. Saulo deixou-a no apartamento e sequer fez qualquer insinuação sobre ficar com ela naquele dia, dizendo apenas que a veria no dia seguinte enquanto ela batia a porta do carro. Havia muito tempo que Bruna não chorava tão desesperadamente, dominada por um conhecido sentimento de desconsolo e acuamento, ela sabia, exatamente, o que aconteceria dali em diante. Com o corpo inteiro coberto por uma fina e gelada camada de suor, colocou o rosto contra o travesseiro e gritou até perder o fôlego enquanto podia sentir o tremor de cada osso de seu corpo. Muitas foram as vezes, em sua curta vida até então, em que Bruna havia entrado em desespero, a última vez, havia quase um ano, quando fora contactada pela polícia para reconhecer o corpo de João Mateus, encontrado perto de um terminal de ônibus, vítima de overdose.

Capítulo 12- ERRO — Boa tarde! — Do mesmo jeito que da última vez que estive aqui. Não mudou nada... me sinto... do mesmo jeito. — Bem, de qualquer forma admito que durmo melhor atualmente, não sei se é o remédio, ou se com o tempo a ficha está caindo..., é... mas, pensar nela... ainda é muito doloroso... é... insuportável! — Não, não... não me sinto culpado... por nada... não é isso! É... perda! Não sei... sabe, você deixa algo pra trás... como se a qualquer momento pudesse voltar para buscar..., e de repente, se dá conta que isso não será mais possível... abre um buraco na gente... um vazio... é isso. — Suponho que tenha a ver com as vírgulas, e os pontos. Jamais esquecerei isso... — Não, não... ela jamais saberá! Ana não entenderia... e eu devo a ela a consideração e o respeito de manter esse sofrimento em particular. — Bem... eu nunca fui um romântico..., nem sentimental... era cético a respeito da existência de alguns sentimentos, inclusive..., mas, foi sim, amor à primeira vista! Foi no casamento de Oscar. Eu fui padrinho dele, ela era madrinha da noiva. — ...Foi instantâneo... como... como aquela história da flechada do cupido mesmo... sabe? ...eu nem vi o casamento acontecer... não tirava os olhos dela..., estava hipnotizado! Linda! A pele dela parecia feita de porcelana, aqueles olhos verdes..., um tom incomum de verde..., gestos delicados! ...um sorriso que parecia tímido..., seus lábios pareciam feitos a pinceladas... a maneira como ela andava, se movia... — Eu não devia estar falando no passado... porque estou falando no passado? Não!! Ela não era! Ela é linda, uma boneca... eu envelheci, mas para Ana o tempo só fez bem! — Nunca fui tímido com mulheres..., nem inseguro... nada disso! Mas confesso que suei pra tomar coragem... e me aproximar dela... — Ah, sim... na festa..., demorei um pouco, mas tomei coragem e fui! Lógico, antes procurei saber com os amigos quem era... tal! Eles me disseram que era filha do senador... muito amiga de Sueli, esposa de Oscar... e lógico né, muitos estavam de olho nela..., era de longe a mulher mais linda daquele casamento... os solteiros e desacompanhados já estavam quase se

estapeando... mas eu cheguei antes! — Ahh... sim! Muito! ...sou apaixonado por ela! Sempre fui! ... ela é meu pilar, minha âncora! Não sei o que teria sido de minha vida... ela... ela deu sentido a tudo, entende? Sem ela... nem sei..., eu... eu era perdido antes dela! ...eu a encontrei... nela me encontrei! — Obrigado! Ah, sim..., não sei se tem relevância! ..., mas... posso? — Bem..., como é de se imaginar, ela estava prevenida e armada contra mim! Sueli era minha amiga também..., mas sabe como é, me reprovava... pelo fato de eu não parar com mulher alguma... ela... não estava errada! — Ana me contou, depois de um tempo de casados... as opiniões de Sueli a meu respeito e os conselhos que lhe havia dado! Chegou a me adjetivar como “um galinha” e “biscateiro”. Eu... não me magoei..., temos um excelente relacionamento, somos muito amigos! — Enfim..., acho que os conselhos de Sueli acabaram por chamar a atenção de Ana para mim! Então... — Ah... demorou semanas até que ela aceitasse um convite para jantar! ...era a primeira vez pra mim em quase tudo! A primeira vez em que eu corria atrás de uma mulher, a primeira vez que desejava a companhia de uma por mais tempo, a primeira vez que a ideia de um relacionamento verdadeiro e duradouro me agradava, a primeira vez que eu não queria me afastar, fugir..., que os detalhes me chamavam a atenção e me importava realmente, meu primeiro amor, minha primeira paixão! Ela foi a primeira em tudo! — E nosso relacionamento foi exatamente como manda o figurino..., namoro..., convivência familiar..., noivado... — Tenho um ótimo relacionamento com todos..., a família dela é extremamente formal... daquelas famílias tradicionais..., metódicas! Meu sogro é a pessoa mais metódica e mais previsível que já conheci na vida. É tão extremo que chega a ser previsível até quando vai espirrar, bocejar ou sorrir! Estou brincando..., é que... é uma boa pessoa, mas tenho até pena de minha sogra... coitada! — Não... Ana não é! ... ela é reservada, aprecia as tradições da família... jamais eu diria esse tipo de coisa a ela! É Deus no céu e família na terra! Mas são gente boa mesmo, leais e muito unidos, e eu faço parte dessa família, os encontros familiares são sempre muito agradáveis! — Ela é feliz, sim... eu acredito que seja..., como eu também sou! Ela se realizou como mãe também..., mas ..., teve problemas no parto... não poderemos ter outros.

— Ah..., conversamos muito sobre isso! Muito! No momento acreditamos que estamos bem assim... acho que ela não assimila bem a ideia de adotar outro! Eu não..., não faz diferença... Estamos bem assim. — Realmente! ...é... teve sim! Foi terrível! Eu... eu fui um otário... idiota, irresponsável! Também não imaginava o que era sofrer daquele jeito. Cheguei a achar que ia morrer de tanta tristeza! Verdade! — Já... já fazia quase dois anos que estávamos namorando e tínhamos ficado noivos, cumprindo todos os requisitos de tradição familiar! Festa, jantar, convidados, aliança! — Eu estava bastante próximo da família dela, de seus dois irmãos, a mãe dela foi de extrema gentileza com a doença de minha mãe, uma fase bastante difícil... mas entre Ana e eu... tudo estava indo tão bem... eu estava tão apaixonado, e... tinha convicção dos sentimentos dela por mim... eu... pisei na bola! — Depois de uma exaustiva reunião de diretoria, alguns executivos saíram pra um happy hour... era uma segunda feira, lembro-me como se tivesse sido ontem..., já eram quase sete da noite..., alguns com fome... mas... todos querendo aliviar um pouco o estresse... Saímos da reunião e fomos direto para um restaurante na Barra. Estávamos em oito pessoas, três mulheres... estávamos tentando apenas relaxar um pouco! — Eu estava “enrolando” com uma única taça de vinho, cansado..., sem vontade de beber..., e... aquela moça estava no bar... de repente percebi que ela não parava de olhar pra nossa mesa... sabe?, uma segunda feira... uma moça sozinha... bebendo..., muito bem vestida..., parecia tão novinha... tinha vinte e poucos anos..., e não parava de encarar..., mexeu com minha imaginação... Que idiota que eu fui! — A gente sabe... a gente sente quando errou feio!

Capítulo 13- AGRESSÃO Assim como no colégio, Bruna não participou de qualquer evento relacionado à formatura na Universidade, sequer da colação de grau, por opção. Após o natal, convenceu-se de que sua reação desproporcional ao ocorrido era fruto de sua necessidade de, vez ou outra, ruminar o passado, de sua incapacidade para lidar com situações que fugissem minimamente a sua rotina pré-estabelecida, de sua fragilidade emocional, de uma pré-disposição para vitimização. Decidiu assumir-se como uma pessoa psicologicamente instável, desprovida de sensibilidade, sentimentos ou sensações. Chegou a sentir certa pena de Saulo, e tão certa estava de não possuir qualquer habilidade para reações humanas normais, não se desculpou. Permitiu que os dias, meses e anos, passassem como se nada tivesse acontecido. Demorou alguns meses até que Saulo voltasse à rotina de levá-la ao trabalho, esperar na saída, acompanhá-la ou substituí-la nas idas à padaria, farmácia, mercado, ou onde quer que fosse. Dois anos depois, a situação financeira de Bruna ficou bastante difícil, uma vez que fazer hora extra, vender férias ou trabalhar em feriados sucessivos passaram a ser motivo de desentendimentos com o namorado. Mudou-se para um bairro mais distante, um apartamento menor e menos confortável. O amor de Saulo por ela era tamanho, que abriu mão de sua rotina pessoal e aspirações de trabalho e carreira como professor, em prol da dela. Escolhia suas roupas, seus perfumes, estava presente em cada consulta médica ou dentista. Não apenas opinava, como escolhia os profissionais com os quais ela se consultava. O casal não tinha qualquer convívio social, e Bruna não sentia falta do que nunca experimentara. Também não se incomodava em ter seu telefone, email ou cartões de crédito, os livros que lia, os filmes que via, as músicas que ouvia, monitorados, assim como sua conta bancária. Sentia-se cuidada, segura, tinha certeza que era o tipo de pessoa que precisava ser protegida de tudo e todos, inclusive de si mesma, aceitava bem as críticas sobre as idiotices que lia, as bobagens que falava, o mau gosto que possuía, havia apenas um certo desconforto quando, eventualmente era interpelada por ter falado ou cumprimentado algum colega ou hospede conhecido na saída do

trabalho, uma vez que em todas essas ocasiões a tensão se instalava entre ambos, e Saulo, louco por ela como era, acabava perdendo a cabeça. Era tão restrito seu relacionamento profissional e inexistente o social, que Bruna se considerava uma idiota azarada nessas ocasiões. Por sorte, as reações de Saulo limitavam-se a levá-la imediatamente para a casa, tirar-lhe delicadamente a roupa, e fazer sexo anal com ela, para que soubesse que era amada, e que ele seria incapaz de machucá-la, mesmo quando ela o desapontava, magoava, como não cansava de dizer. No aniversário de vinte e quatro anos de Bruna, Saulo presenteou-a com a visita de sua mãe. Ele mesmo fora buscá-la. Havia quase seis anos que mãe e filha não se encontravam e quase três que não se falavam. Acácia não esteve presente no velório e enterro de João Mateus providenciados por Bruna, que inclusive ofereceu um carro para buscá-la na ocasião, recusado pela mesma. Após a morte do irmão, até os escassos telefonemas cessaram. Saulo simpatizou-se imediatamente pela “sogra”, e a empatia foi recíproca. Concordavam sobre tudo, especialmente em suas opiniões sobre Bruna quanto à antipatia, esquisitice, chatice e incapacidade para relacionamento humano. Acácia passou quatro dias no minúsculo apartamento do casal, e essa foi a última vez que Bruna viu a mãe antes de sua morte que ocorreria três anos mais tarde, sem que a filha estivesse presente no funeral e enterro. Neste ponto de sua vida, se alguém perguntasse à Bruna se era infeliz, certamente receberia não como resposta. A mesma, caso a pergunta fosse a antítese. Intimamente, gabava-se de sua capacidade de adaptação a qualquer situação ou adversidade. Não perdera a eficiência no trabalho nem por um instante em todos esses anos, e orgulhava-se de receber constantes elogios. O único momento em que se permitia certa emoção, era sozinha, agachada sob o chuveiro, braços abraçados aos joelhos e testa encosta neles, quando os soluços não superavam o barulho da água, e as lágrimas podiam confundir-se com esta, não permitindo que sequer ela mesma pudesse perceber qualquer indício de sofrimento.

Capítulo 14- INCÚRIA — Não sei dizer como Ana descobriu, já havia passado... sei lá, quase um mês, faltavam menos de três para o nosso casamento. Também nunca mais tocamos no assunto, nem quero. Desconfio apenas que havia algum conhecido nosso naquele restaurante, naquela noite. Éramos fregueses assíduos. — Sabe, contando assim, parece tudo tão trivial! Não é? Ainda mais considerando meu histórico. Eu sei..., quer dizer..., parece clichê! — Para nossos amigos..., sei lá..., parecia que todos esperavam que um dia viesse acontecer. Ninguém acreditava muito em nosso relacionamento, ninguém acreditava no que eu sentia por ela..., provavelmente nem ela mesma. Mas eu, eu sabia! Sabia o que ela significava pra mim..., não sabia o que significaria perdê-la..., nem imaginava! — Desde que a conheci, até nosso rompimento, não pensei em outra mulher, não tive vontade de ter outra mulher... não..., não apenas sexualmente falando, entende? ...é que, não precisava mais! Não tinha necessidade de nada..., ela... foi a única que preencheu tantos vazios, que nem mesmo eu sabia que havia dentro de mim... Ela me bastava, sempre me bastou! — ... ah, sei lá, não teve nenhuma importância. Tive um momento de fraqueza, só isso! — ... e..., notei aquela moça... sozinha..., achei que estava olhando pra mim, tava de saco cheio daquelas pessoas comigo..., fui até o bar, puxei uma conversa despropositada com ela..., nem me lembro sobre o que conversamos, acabou ficando tarde, os outros foram embora, e eu fiquei lá. — Ela era bastante simpática, muito jovem, bonita, inteligente..., eu..., não pensei direito..., cometi um erro. — Eu nunca encontrei uma explicação convincente para mim mesmo sobre, ou quais os motivos que me levaram a sair com aquela moça..., então, é óbvio, nunca consegui explicar para Ana também. — Bem, o fato é que, nem me lembro o nome da mulher com quem passei aquela noite num motel qualquer..., não lembro se foi bom, se não foi..., ficou na minha memória muito mais nossa amistosa e agradável conversa no bar do restaurante... um erro, uma fraqueza que quase arruinou minha vida..., um fato que... mudou tudo... Foi esse episódio que mudou tudo...

Capítulo 15- MOTIVAÇÃO Em janeiro de 1998 foi inaugurado em São Paulo o tão sonhado Giorgio Palace II, e muito embora tenha recebido convite, passagens e hospedagem para comparecer à inauguração, Bruna inventou qualquer desculpa para não ir. Não poderia ir sozinha, e encontrar-se num evento social, onde deveria cumprimentar e conversar com outras pessoas, era um problema que ela dispensava. Saulo nem sequer soube do convite. A situação financeira estava bastante difícil, Saulo sem emprego havia vários anos, o salário de Bruna mal dava para as despesas básicas do casal. Não conseguiam a mais de ano manter o aluguel em dia, mudaram-se três vezes em dez meses, para bairros cada vez mais distantes e perigosos. Toda contribuição de Saulo resumia-se a críticas em relação ao emprego de Bruna, ao regime de escravidão, ao salário baixo, à exploração do empregador, a idiotice da empregada. Críticas, mais críticas, mais críticas! Em quatro meses passaram pelo novo hotel dois gerentes que em nada agradaram o Sr. Messina. Com quase oitenta anos de idade, ele via-se obrigado a passar mais tempo em São Paulo do que aguentava, e seu novo e tão aguardado empreendimento não emplacava. Faltava alguma coisa que o italiano com toda sua experiência no ramo de hotelaria não conseguia identificar. Era obviamente um mercado diferente, e nada parecia atrair os clientes. O velho tentava pessoalmente treinar seus empregados, seus gerentes, seus recepcionistas, mas nada o agradava, e se não o agradava, não agradava a clientela. Em meados de junho, fez o convite a Bruna. O salário de gerente em São Paulo era mais de seis vezes o que ela ganhava. Os benefícios, incomparáveis! Ofereceu a ela um contrato que nunca fora ofertado a qualquer outro funcionário, que incluía as despesas da mudança, e um apartamento simples, mas amplo e muito bem localizado na zona leste de São Paulo, adquirido para hospedagem de engenheiros e arquitetos durante as obras, que seria financiado a ela em excelentes condições. Bruna não pensou duas vezes para recusar o convite. Sabia o que significava. Sem horário para sair do trabalho, reuniões com funcionários após expediente, relacionamento com fornecedores, ligações telefônicas, emails, finais de semana e feriados perdidos. Problemas! Tudo o que Bruna

não precisava. A recusa de Bruna surpreendeu o Sr. Messina. Como ela não lhe dera qualquer razão plausível para a negativa, e percebendo certa angústia na jovem durante a conversa, deu a ela um prazo para pensar. Em duas semanas a conversa veio à tona novamente, ocasião em que Bruna justificou sua decisão no fato de haver descoberto dias antes estar grávida. Sensibilizado com a situação de sua mais eficaz e dedicada funcionária, por quem havia desenvolvido ao longo dos anos um discreto paternal sentimento, mesmo sem nunca ter tido qualquer proximidade com ela, ou conhecer sua realidade, o velho italiano reforçou o convite mesmo diante da revelação. Propôs alternativas para o período de licença maternidade, cobriua de elogios profissionais, mas nada parecia funcionar. O velho viu em seus olhos uma tristeza e uma apatia difíceis de serem descritas. Não fazia a menor ideia dos problemas que enfrentava. Via nela as aptidões e conhecimentos necessários para gerenciar seu negócio, mas não mais se importava com isso, tentava apenas entender o que estava acontecendo. Ninguém em sã consciência recusaria tal oferta, era necessário algo grave demais para tal decisão, e veio dele, talvez o único conselho de um estranho para o qual Bruna tenha dado a devida atenção. Com uma carta de quase seis páginas escrita em um computador, em que deixou bem claro as consequências para o caso dele tentar procurá-la, ela o deixou. Não pensou em nada, em nenhuma consequência, em dificuldades que poderia enfrentar, nada! Pensou apenas em como seria sua vida e de seu filho longe daquele monstro, apostando em sua covardia para não persegui-la, mentindo na carta sobre o fato de todos em seu trabalho terem tomado conhecimento do relacionamento abusivo que ela vivia. Relatou em detalhes cada violência sofrida, incluindo datas e horários. Impulsionada por uma repentina e surpreendente força, agarrou com unhas e dentes seus novos desafios. Saulo somente soube da existência do filho quase duas décadas depois. Demorou mais de três anos e mais de uma centena de sessões de terapia para livrar-se da sensação de estar sendo perseguida por ele. O mesmo tempo demorou para que seu relacionamento com colegas, funcionários e pessoas relacionadas ao trabalho passassem a ser mais espontâneos, sem a sensação de que, ao final de cada dia, haveria uma punição. Teve seu filho em paz, descobriu o amor puro e incondicional, realizou-

se profissionalmente, deu vida e sucesso ao novo Giogio Palace II. Estabilizou-se financeiramente, aprendeu a sorrir, fez poucas, mas boas e fiéis amizades, e chorou compulsiva e desesperadamente a morte da pessoa mais influente em sua vida, aos oitenta e oito anos de idade. Quando um dos filhos de Sr. Messina assumiu o controle dos hotéis, decidiu que o negócio era grande demais, lucrativo e bem sucedido demais, e demasiadamente complexo para seu gerenciamento, e procurou parceiros para investimento.

Capítulo 16- DESESPERO — Bem..., como eu disse, não sei como, mas ela descobriu. — Foi sincera, fria e duríssima! Não derramou uma lágrima, não alterou o tom de voz..., sequer havia raiva em suas expressões faciais! Esperou que eu parasse de lamentar o agravamento da doença de minha mãe e o sofrimento com o novo tratamento que iniciara... citou dia, hora e a descrição da mulher com quem eu a havia traído, tirou a aliança de noivado do dedo, pegou minha mão, depositando-a na palma, abriu a porta do carro e saiu. — Eu desci atrás dela, que já fazia sinal para um táxi parar, tentei conversar... ela..., entrou no táxi e foi embora. Segui aquele táxi até sua casa... nem sei como consegui dirigir até lá..., estava zonzo! Na porta ela me disse para esquecê-la, pediu, por favor, para que eu fosse embora... eu fui. — Passei a noite remoendo os acontecimentos..., mas , até aí, ainda acreditava que ela se acalmaria... apesar de não parecer nem um pouco nervosa..., mas..., sabe, eu imaginava que a procuraria no dia seguinte..., que teria a chance de me explicar, me desculpar..., estava atordoado, mas crente que tudo se resolveria no dia seguinte! — Depois? ...eu fiz de tudo! Eu chorei..., me desesperei, me humilhei..., fui diariamente à sua casa por quase dois meses, às vezes mais de uma vez por dia..., eu fui inconveniente..., chato..., persistente... — No começo, sua mãe, seu pai..., os irmãos..., me ouviram... parecia que haviam me entendido, que se compadeciam com meu sofrimento..., com o tempo, e minha insistência... foram ficando impacientes..., entende? Já não me convidavam pra entrar..., não perdiam tempo em dar desculpa..., Ana simplesmente não me atendia! Passei esse tempo correndo atrás, sem ter sequer encontrado com ela... depois soube que, semana sim, semana não, ela passava alguns dias na casa do irmão mais velho que acabara de ter seu primeiro filho. — Ahh, nem sei explicar... estava desesperado! Não sei nem traduzir em palavras o que sentia..., achei que tava enlouquecendo! ... Não pensava em outra coisa... perdi a fome, o sono..., não conseguia trabalhar! ...fui negligente nos assuntos da empresa... as coisas se complicaram... bastante... era até mais que isso sabe? Não gosto nem de lembrar e nem sei explicar. Só sei dizer que vivi um período em que a sensação de impotência era desoladora. Era inadmissível para mim. Não havia qualquer perspectiva sem ela. Sem ela não

havia eu. — Então..., eu precisei ir a São Paulo, na tentativa de convencer alguns parceiros comerciais a reconsiderarem algumas decisões tomadas em razão de minha... negligência, digamos assim..., estava a caminho do aeroporto, ia pegar a ponte aérea... quando a vi sentada na mesa da calçada daquele café! — Eu parei..., ela estava sozinha..., pedi para sentar, ela permitiu..., em menos de cinco minutos eu falei quase sem pausa pra respirar, com medo que ela me interrompesse e não me permitisse terminar! Dei minhas esfarrapadas desculpas e explicações, pedi perdão, falei de meu amor, de meu sofrimento..., em menos de cinco minutos. Ela ouviu tudo olhando fixamente em meus olhos... e ela, em menos de cinco segundos colocou fim na história: “Não Zayn, não perdoo! Arrume uma maneira de conviver com isso!”. Levantou e foi embora. — Ufa!! ...enfim..., não sei como cheguei ao aeroporto... estava cego, desorientado... Peguei a ponte aérea até São Paulo... menos de três horas depois estava numa reunião, que nem sei como consegui conduzir..., e.... no meio daquela tarde, cheguei ao hotel que pretendíamos transformar em nosso novo ramo de investimento.

PARTE 2 –

“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.” Clarice Lispector

Capítulo 17- SURPRESA Zayn desembarcou no aeroporto de Congonhas por volta das dez da manhã daquela quarta feira, não sentiu o embarque, a viagem, o pouso. Era como se estivesse em “modo automático”. Sentia-se mal de uma maneira generalizada, dor de cabeça, nos ossos, nos músculos. Duvidou pela primeira vez que Ana em algum momento o tivesse amado, não havia percebido a quão fria era. Encontrou um taxi, entrou no carro sem responder sequer ao educado “bom dia”. Uma hora depois se encontrava numa reunião tentando convencer os presentes a assinarem um contrato milionário quase morto, um promissor negócio quase perdido pelo desdém com o qual Zayn havia conduzido as negociações durante os últimos sessenta dias, causando imensa insatisfação entre seus sócios. Sentia-se sob intensa pressão, acuado por pessoas poderosas o suficiente para afastá-lo da presidência da empresa. Apesar de ter dado o seu melhor, utilizado os mais convincentes argumentos, teria que esperar três dias para que tudo pudesse ser checado, uma reavaliação dos números e projeções apresentadas passou a ser necessário. Um único erro cometido num processo de negociação de quase dois anos que rendeu mais de dez mil páginas, foi o suficiente para colocar em dúvida a credibilidade de todos os dados. Quatro horas de reunião, frustração, seu brilhantismo como executivo em xeque, náuseas, raiva, dor, pressão, cansaço. Chegou ao Giorgio Palace II por volta das dezesseis horas. — Boa tarde, senhor! — Boa. Tenho reserva. Zayn Jabir. — Oh, sim! Seja muito bem-vindo ao Giorgio Dr. Jabir, nós o aguardávamos. Sua suíte está pronta, nossa gerente pediu para ser avisada assim que o senhor chegasse. — Não vou falar com ninguém agora. Mande levar minha bagagem. — Perfeitamente senhor. Pegou o cartão, nem agradeceu o atencioso recepcionista. Enquanto aguardava na porta do elevador, subitamente mudou de ideia e voltou à recepção. O atendente estava ao telefone, mas desligou imediatamente. — Pois não senhor! — Quero falar com a gerente.

— Perfeitamente senhor, por favor, me acompanhe até o escritório. André era um dos mais promissores funcionários do Giorgio II na avaliação de Bruna. Dedicado, atencioso, prestativo e extremamente educado, até mesmo assíduos hóspedes mais impertinentes apreciavam a atenção do rapaz de pouco menos de trinta anos. André bateu com sutileza por duas vezes na porta da sala, colocou a mão na maçaneta e abriu uma fresta suficiente para fazer o anúncio: — Senhora, conforme lhe disse ao telefone, Sr. Jabir! — Claro, por favor, entre! Bruna levantou-se e foi recepcioná-los à porta com um discreto sorriso: — Seja bem-vindo senhor Jabir, satisfação em conhecê-lo! Obrigada André. — Boa tarde. — Respondeu Zayn secamente enquanto estendia a mão direita para cumprimentá-la num firme aperto sem entusiasmo. Sequer olhou para ela, andou lentamente até uma das confortáveis e espaçosas cadeiras de couro preta em frente à mesa e sentou-se. Bruna acompanhou-o dois passos atrás enquanto observava cada detalhe físico daquele homem antipático. Não media mais que um metro e setenta e cinco centímetros, deduziu, já que não era mais que um palmo mais alto que ela. Pele morena, olhos e cabelos pretos em tom quase incomum de tão pretos, aparentando a idade que realmente possuía, trinta e cinco anos. Exótico, antes de ser um homem bonito. Um terno certamente de alfaiataria, muito bem cortado e de muito bom gosto. Exalando sutil, mas inebriante perfume. Uma voz grave, intimidante, mãos pesadas numa pele suave. Preferiu não o pensar como rude antes que pronunciasse ao menos uma frase inteira, não fazia pré-julgamentos, nem se deixava levar por primeiras impressões, boa ou ruim. Pensou em sentar-se ao seu lado, mas acabou dando a volta na mesa ocupando sua cadeira de gerente. — É uma satisfação tê-lo conosco hoje, imagino que esteja cansado. Posso lhe oferecer algo, um café? Água? — Estou bem, obrigado. Vou lhe passar uma lista da documentação que precisarei analisar. Estarei na cidade até sábado, espero ter acesso aos documentos antes disso. Depois indico as cópias que serão necessárias. Zayn pronunciou aquela frase olhando para um objeto artesanal em madeira, semelhante a um candelabro sobre a mesa, levantando os olhos apenas quando Bruna afastou a cadeira e levantou-se. Abriu uma das portas do imenso armário de madeira que ficava atrás de sua cadeira, e dele retirou alguns livros enormes, meticulosamente

organizados e encadernados em sofisticadas capas pretas. Colocou-os sobre a mesa e apresentou-os, um a um ao perspicaz executivo. — Relatórios gerenciais, financeiros, demonstrações dos resultados em cada exercício desde a inauguração, balanço patrimonial, custos e liquidez, controle financeiro, estoque, organizados em ordem cronológica, e aqui está um estudo de mercado que encomendamos há dois meses. Já são as suas cópias. São pesados, mandarei entregar em seu quarto. Por favor... passe-me a lista da documentação complementar que o senhor vai precisar, providenciarei imediatamente. Zayn olhou para Bruna pela primeira vez, toda documentação já estava pronta e surpreendentemente organizada. Foram trinta segundos de constrangedor silêncio enquanto ele a olhava fixamente pensando no que dizer sem que ela desviasse o olhar. — Estou com tanta fome! — O quê? — Ainda não almocei. — Meu Deus! Senhor Jabir, me desculpe..., ah, por favor, me desculpe. Eu o levarei pessoalmente ao restaurante. Poderíamos ter conversado depois... — Não, não, tudo bem..., deixe-me comer alguma coisa, e conversaremos mais tarde. Não se incomode, eu encontro o restaurante. — Claro, claro, fique à vontade. Tudo estava finalmente explicado! Era fome! Sentiu certa pena dele, sem nenhuma razão. Bruna ainda estava em pé do outro lado da mesa quando Zayn chegou à porta, e com a mesma entreaberta voltou-se para ela: — Olha, Bruna... é Bruna né? Posso lhe chamar assim, ou faz questão de ser chamada de senhora? — Só Bruna, por favor! — Eu..., me desculpe se fui rude nesse primeiro contato..., eu..., me desculpe... — Senhor Jabir, eu que lhe peço desculpas pela inconveniência e insensibilidade não intencionais, está tudo bem! Conversaremos quando o senhor tiver se alimentado e descansado um pouco. Não se preocupe, o senhor não terá problemas ou morosidade para ter acesso a qualquer documentação necessária. — Não... Bruna ... esqueça a documentação! E, por favor, me chame de

qualquer coisa, só... só não de senhor..., estou farto de ser chamado de senhor! Permita-me recomeçar lhe desejando sincera boa tarde, é um prazer conhecê-la! Zayn “recomeçou”, com um amarelado sorriso, lábios apertados um contra o outro, quase constrangido pela situação, sentindo-se sinceramente mal pela aspereza com que tinha tratado a todos desde que colocou seus pés no hotel. — Olá, Saíd!

Capítulo 18- ÂNIMO Zayn não tinha reações diferentes de franzir de testa há quase dois meses, e de repente, um sorriso amarelo, apático, seguido de uma curiosidade incontida. Inexplicável! Talvez estivesse tão exausto, tão debilitado física e emocionalmente, tão faminto naquele exato momento, tão estressado, que acabou extravasando num sorriso de som abafado e sem sentido. — Saíd? — Bem, você pediu para chamá-lo de “qualquer coisa”, menos de senhor! É seu nome, não é? Fiz meu dever de casa! Mas não quero ser inconveniente, me diga como gostaria de ser tratado, e será! — Não..., não, não... é que..., sim, é meu nome... eu gostei, é que... você eliminou imediatamente a opção mais óbvia de chamar-me pelo primeiro nome! Além disso, ninguém me chama assim, ninguém nunca chamou! Por quê? — Porque o quê? Zayn ainda sorria: — Porque decidiu me chamar de Saíd? Bruna caminhou em sua direção, ereta e elegantemente, posicionou-se em sua frente a não mais que meio metro, olhando fixamente nos olhos, abaixou ainda mais o tom de voz sem, entretanto, sussurrar: — É um nome superior! Zayn sorriu pela segunda vez em semanas: — É o quê? — Um nome superior! Parece que... inspira... superioridade, grandeza. Combina com você! — Combina comigo! Oh... mas... não sou superior, não sou seu superior! Pelo menos não ainda... — Não hierarquicamente superior... eu disse superior, só! Você não estava morrendo de fome? — Estou. E exausto! Zayn deu um suspiro e imediatamente um sorriso de canto de boca surgiu: — Vou pedir alguma coisa no quarto e descansar..., mal consigo parar em pé. O restaurante fica aberto até que horas? — Das onze da manhã às duas da madrugada, mas temos o serviço de quarto que funciona vinte e quatro horas. Tem um cardápio mais restrito que

do restaurante, mas agrada a maioria dos clientes. — Perfeito! Gostaria que jantasse comigo as nove. No restaurante do hotel. Uma reunião de negócios, você traduzirá para mim os dados contidos nesses livros me poupando muito trabalho, mas antes, vai explicar direito esse “superior”! Bruna demorou alguns segundos para apresentar um sorriso largo, mas com os lábios apertados. Balançou a cabeça em sentido positivo: — E você vai confiar na minha avaliação? Num relatório falado? — Vou. Também fiz meu dever de casa! Mostrar os dentes foi inevitável, mas os olhos de Bruna sorriram mais que seus lábios, e acenando mais uma vez em sentido positivo: — Nove horas! Estarei lá.

Capítulo 19- AUTOCONTROLE Zayn dirigiu-se para seu quarto. Ainda não havia chegado nem à porta do elevador e já estava com a cabeça totalmente voltada para Ana! “Não perdoo!”. Era como um eco, um jingle irritante que sua mente repetia, e repetia. Entrou no quarto sem ter certeza se estava mais faminto ou mais exausto. Nem tirou a mala do meio do caminho, o paletó ou a gravata, pegou o interfone, pediu um prato de massas simples, e em seguida jogou-se no meio da cama espaçosa e confortável, ficando com os joelhos dobrados e mantendo os pés ainda calçados no chão. Não existe momento oportuno ou apropriado para quem não sabe chorar. Os olhos transbordaram, uma única lágrima cada um, e na tentativa de escondê-las de si mesmo, pegou um dos travesseiros e apertou contra o rosto. A tristeza era tão profunda, tão absoluta, que não havia mais nada, apenas ela. A dor que sentia não podia ser descrita, mas era física, real, concentrada no peito se alastrava por todo o corpo. Uma angústia que dificultava a respiração. Desejou por um momento apenas gritar, mas não o fez. Virou de lado, recolheu as pernas, quase em posição fetal, fechou os olhos, e nesse instante não sentia nada. Nem tristeza, nem raiva, nada, foram alguns segundos repletos de ausência, nenhum pensamento lhe passou pela cabeça, e então, alguém bateu à porta, trazendo sua refeição. Observou aquela linda bandeja e os talheres de prata por uma eternidade antes de tomar coragem para mexer naquele prato. Não sentiu o sabor, nem se estava quente ou frio, apenas comeu, e porque estava fraco e com um buraco no estômago, sensação que não melhorou ao se alimentar. Tirou os sapatos, o paletó, gravata e camisa. Pressentindo que poderia pegar no sono, colocou seu telefone para despertar às vinte horas, e deitou-se. Bruna pensou em ficar direto no hotel até a hora marcada para sua reunião com o pretenso investidor, já que eram quase seis da tarde, mas decidiu ir pra casa, ver seu filho, falar com a babá, tomar um banho e descansar por alguns minutos. Percebeu-se ansiosa, um tanto agitada, parada no trânsito em razão de um pequeno acidente, ligou o rádio tentando encontrar alguma distração. Ouvindo atentamente “Goodbye Yellow Brick Road”, aumentou o volume, olhou-se pelo retrovisor, teve uma sensação boa, uma súbita e íntima

satisfação, sem saber com o quê. Os hotéis precisavam de um parceiro para investimento e administração, Bruna sabia o quão importante seria despertar o interesse de Zayn pelo negócio. Mais do que isso, sabia que nas mãos de quaisquer dos filhos do falecido Messina, era questão de tempo a bancarrota, não tinham noção alguma do que administravam, não possuíam a visão necessária para manter os negócios, a qualidade já caía visivelmente. Tailleur preto e branco, saia preta, blazer branco abaixo da cintura com detalhes bordados em preto nos quatro bolsos, dois superiores e dois inferiores, na gola, costuras aparentes, além dos oito botões. Trocou de sapato umas quatro vezes, ousando completar o elegante conjunto com um scarpin vermelho fosco que combinava com a bolsa executiva que usava. Um bom gosto indiscutível, substituiu os brincos de pérolas por um pequeno par de rubis brutos. Preferiu não usar perfume, o sabonete que usou no banho era suficiente e não desagradaria qualquer olfato. Todo detalhe era importante, mas nenhum mais que o discurso muito bem ensaiado que deveria ser utilizado para persuadi-lo a fechar negócio com Messina. Enquanto se arrumava, pensava nos dados mais importantes a serem relatados, os que despertariam maior interesse de um investidor, as perspectivas futuras, o promissor mercado. Conversou com Selma, a babá de João Mateus há quase seis anos, para que não a esperasse, já que chegaria tarde. Selma era uma senhora de pouco mais de cinquenta anos, mãe solteira, passou a morar com Bruna por conveniência de ambas, embora tivesse casa própria, após a filha mudar-se para o Rio de Janeiro com o marido que havia passado em um concurso para auditor fiscal do Estado. Já passava das vinte horas quando Bruna saiu de casa, em cerca de quarenta minutos estaria reunida com o homem que poderia salvar o negócio que mantinha sua estabilidade. Zayn acordou com o despertar do telefone depois de dormir por cerca de duas horas, sentindo-se absurdamente cansado. Dor de cabeça e mal estar generalizado, estava febril. Pensou em passar alguns minutos na banheira quente para relaxar, mas não reuniu coragem suficiente. Passou mais uns quarenta minutos deitado, olhava para o celular, verificava a hora, fechava os olhos por alguns minutos e voltava checar as horas. Uns quinze minutos antes do horário marcado para se encontrar com Bruna no restaurante, arrastou-se para fora da cama, tirou as calças que vestia

desde as primeiras horas da manhã, abriu a mala de onde tirou uma calça jeans e uma camisa branca de mangas longas, e ainda meio sonolento foi saindo, enquanto abotoava a camisa e penteava os cabelos com os dedos. Chegou antes dela, solicitou uma mesa localizada no canto superior direito do local, um pouco distante das demais, e pediu apenas uma garrafa d’água enquanto aguardava.

Capítulo 20- ALERTA O garçom ainda abria a garrafa d’água para servir Zayn quando a elegante mulher se postou diante da mesa: — Olá Saíd, boa noite! Zayn levantou os olhos sem mover a cabeça com um quase esboço de sorriso: — Boa noite Bruna, obrigado por vir. O garçom puxou a cadeira para sua chefe percebendo a falta de cavalheirismo do acompanhante, perguntou se desejava algo e entregou-lhe um cardápio que foi colocado de lado com os agradecimentos. — Ah... Bruna... me desculpe, que grosseria a minha! Estou com a cabeça em outro mundo... — Tudo bem, não se preocupe, eu que peço desculpas se o fiz esperar. — Não... acabei de chegar. Quer beber o quê? — O mesmo que você! — Bem... você que sabe, to pensando em pedir um copo de veneno. – Sussurrou cabisbaixo. — Basta uma gota! Pela segunda vez em poucas horas, alguns segundos de ensurdecedor silêncio tornou o momento constrangedor. Ele arrependeu-se imediatamente pelo que disse, sentindo-se um verdadeiro imbecil: “Que coisa mais idiota de se dizer”. Quase corou. Ela, desejou desaparecer de tão constrangida, mas não desviava o olhar: — Me perdoe... por favor, me perdoe... eu... não quis ser irônica, nem grosseira..., muito menos desdenhar talvez... um... momento ruim? Podemos nos reunir depois... outro dia..., só não quero ser inconveniente. Bruna gelou! Imaginou todo trabalho para atrair um investidor indo por água abaixo. Até aquele momento não houvera um indício sequer do interesse dele pelo hotel. Zayn ainda se sentia envergonhado, não pela resposta dela, repudiava seu comportamento infantil imaginando a péssima impressão que causara. Era experiente em estar de prontidão para oferecer respostas, mas o momento requeria uma postura mais receptiva, pensou. — Seria bom. Vamos... adiar essa reunião! Disse antes de entornar o copo d’água sem parar para respirar, mas antes que ela esboçasse reação acrescentou: — Seria bom, uma companhia para o jantar!

Bruna simplesmente acenou com a cabeça, tentando entender a situação. A falta de interesse dele aliado à ansiedade dela para ver progredir as negociações, tornava aquele jantar um despropósito. Ele pegou o cardápio e começou a examiná-lo: — Vou pedir esse cordeiro aqui. Você? — Hum, deixe-me ver, vou... ficar com uma salada. — Claro, salada! Zayn ensaiou um sorrisinho irônico e irritante na visão de Bruna, mas não parou por aí, enquanto pela primeira vez, observava o físico escultural da mulher: — Afinal, manter a forma em primeiro lugar! — Não, é que não costumo comer nada a noite mesmo. — Claro que não costuma! Olhe só pra você! Não deve ter o costume de comer nada pela noite, quase nada pela manhã, pelo almoço, pela tarde...! Zayn disse isso naturalmente, sem qualquer tom de reprovação ou crítica, foi quase um elogio. — Cresci nesse costume... — Nossa, que educação rígida! — Não foi excessiva educação, foi excessiva miséria! Zayn lançou um olhar firme sobre ela, mais uma vez desejando ter permanecido calado a fazer comentários desnecessários, sem, no entanto, realizar qualquer juízo de valor acerca do excesso de sinceridade da mulher, fez sinal para o garçom. Inclinou-se para ela enquanto o garçom se aproximava e sussurrou: — Não tem veneno no cardápio, terei que pedir vinho! Bruna sorriu apertando os lábios: — Vou voltar dirigindo..., mas... Zayn fez o pedido, escolheu o melhor vinho do cardápio enquanto ela o observava atentamente. Parecia subitamente mais relaxado. — Peço um táxi para você! — Ah, não se incomode, uma única taça não fará mal! — Quem disse que será uma única taça? — Eu! — Você volta de taxi, é evidente que você está precisando se embriagar! — Zayn disse isso descontraidamente e Bruna abriu um sorriso. — Eu tô precisando? Sério? Como chegou a essa conclusão! Zayn recolheu o sorrisinho dos lábios, recostou-se na cadeira com os olhos fixos nos dela enquanto ela ainda sorria, tom de voz em volume mínimo:

— Seus olhos! — O que têm eles? — Um sorriso tão lindo... um olhar tão triste... — Impressão sua. Ela respondeu secamente, ficou muda por um instante. Aquela conhecida sensação de que tudo que tentava esconder estava estampado em sua testa. “Que conversa mais sem sentido”, pensou. — Pelo que me lembro, era você que há alguns minutos estava à procura de um copo de veneno. — Você também! — Eu? — Sim, disse que queria o mesmo que eu. Ambos caíram numa discreta gargalhada enquanto o garçom chegava com a garrafa de vinho para servir a primeira taça. Bruna segurava a taça ainda sobre a mesa enquanto ele encostou a dele sem gerar qualquer ruído entre os cristais: — Saúde! — Saúde! Bruna bebeu um pequeno gole daquele vinho seco enquanto observava Zayn consumir todo o conteúdo de meia taça em um único gole, e imediatamente pegar a garrafa para reabastecer. — O quê? Tô com sede! — Nem a adega toda vai matá-la. Novamente, “Deus! Quê que há de errado comigo hoje, controle essa língua Bruna!”. Pensou tarde, a frase já havia saído. Zayn olhou dentro da taça: — Não custa tentar! — saiu quase num sussurro. Dessa vez tomou apenas um generoso gole, colocou a taça sobre a mesa sentindo-se um pouco desconfortável por um momento com o olhar fixo dela: — Então... Bruna..., me fale sobre você! — Bem, eu... comecei como camareira no Giorgio I em Curitiba, passei a recepcionista... depois fui promovida a gerente do GII..., hoje... sou gerente aqui, mas extraoficialmente administro os dois. Zayn recostou-se novamente em sua cadeira, respirou fundo antes de tomar o próximo gole: — Hum... interessante currículo, uma bela ascensão profissional! agora... me fale sobre você... Bruna sentiu-se pressionada. “É uma retaliação às minhas ousadias!”, pensou cabisbaixa, resolveu esvaziar sua taça enquanto Zayn já esperava com

a garrafa na mão para servi-la: — O que quer saber? — Ah... não quero ser inconveniente..., fale aquilo que te deixar confortável. — Eu tenho um filho de oito anos. Ele e esse hotel são minhas únicas preocupações, são tudo que importa para mim, tudo que amo. Pela ordem, ele primeiro, o hotel depois. Essas informações fazem de você uma pessoa que sabe tudo a meu respeito! — Duvido muito... Casada? — Não. — Divorciada? — Não. — Namorado, noivo, viúva negra? — Não. — Santo Deus mulher! Você é o que, um robô? ...Tô tentando conversar... Jesus! Você é sempre assim, ou... é alguma coisa comigo? — Não, desculpe... não vim preparada pra um tribunal da santa inquisição... — Mas eu não perguntei nada demais! Só estou tentando estabelecer um relacionamento interpessoal... já ouviu falar? Conversar Bruna... conversar! Eu... tô querendo, precisando... conversar! ...Sem falar de negócios, trabalho... só... conversar... Tome mais vinho, vê se destrava um pouco, pelo amor de Deus! — Desculpe. — Pare de se desculpar, vamos beber... Zayn encheu as duas taças quase esvaziando a garrafa, transparecendo certa impaciência enquanto Bruna pensava que já havia bebido mais que de costume: — Sou fraca pra bebida. — Já disse, chamo um táxi, não se preocupe. — Não... não é isso? — É o que então? ...hum... entendi..., é do tipo que bebe um pouco e já vai tirando a roupa... subindo na mesa... fazendo strip-tease... Ambos caíram na gargalhada, mas desta vez o volume aumentou um pouquinho: — Não... não..., vou logo ficando com sono... — Pois você está no lugar certo pra beber... lugar pra dormir aqui não falta! Desta vez foi inevitável que as mesas mais próximas ouvissem o som das risadas, enquanto o garçom se aproximava com o jantar.

— Você vai mesmo comer essa salada? Bruna olhou para o prato enquanto o garçom servia Zayn, sorrindo por não conseguir ser menos sincera: — Provavelmente não... — O prato está lindo, e não duvido que esteja delicioso. — disse olhando para o garçom: — Mas eu também estou sem fome... leve os pratos, traga outra garrafa de vinho! — Sim senhor! Bruna mergulhou seu olhar, e com ele seus pensamentos naquela bebida, procurando uma explicação: “Quê que eu tô fazendo?”. Encontrava-se numa situação inusitada. Um jantar programado, ensaiado, objetivo, que havia tomado um rumo desconhecido. “Conversar? Conversar o quê?”. — Você tá hipnotizando o vinho, ou já dormiu? Bruna sorriu, tomou um gole lentamente enquanto pensava no que diria em seguida, mas nada lhe vinha à mente. — Tá tudo bem moça? — Tá... — Não Bruna... sério, tá tudo bem? ...se... você quiser que eu mande te levar, eu mando... é isso? — Não... tá... tudo bem... vou precisar..., mas... não ainda! — Preocupada com alguma coisa? — Não. — Você é sempre assim? Monossilábica? Bruna sorriu, o garçom chegou com a segunda garrafa de vinho, substituiu as taças, servindo aos dois que agora pareciam mais sedentos que antes: — Saíd... eu... sou uma péssima companhia... — Realmente... você é! — ele disse sarcasticamente enquanto seu sorriso se alargava até sair uma gargalhada, e então ficou sério: — Mas tem alguma coisa em você... tem alguma coisa... no seu olhar... na sua voz... tão segura... tão forte... tão confiável! — Sou péssima com pessoas. O que sobra no repertório para ocasiões de negócio, falta em momentos como esse. Não que eu tenha muitos... sabe... momentos sociais... Zayn ouviu enquanto esfregava o rosto com ambas as mãos. Não havia pensado em Ana ainda desde que Bruna chegou, mas naquele instante, pensou em sua ex-noiva, no terrível dia que teve se contrapondo àquele exato momento que ele desejava prolongar o máximo que pudesse, ainda que não entendesse o porquê.

— Não... não precisa se esforçar pra ser o que você não é. Eu... só peço que fique mais um pouco..., não me peça pra explicar, porque eu não saberia como, mas... sua presença me acalma de alguma maneira... Bruna sorriu, reclinou-se sobre a mesa para colocar seu rosto um pouco mais próximo do dele e poder abaixar a voz: — Não é minha presença... é o teor alcoólico no seu sangue... Zayn diminuiu ainda mais a distância entre seus rostos: — Eu gostaria de aumentar esse teor alcoólico em nosso sangue lá no meu quarto! Bruna afastou-se imediatamente, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele foi logo se justificando: — Calma aí mulher... não é nada do que você possa estar pensando. Eu só... só quero conversar... ou... só falar, e de vez em quando você pode me responder com uma de suas monossílabas tão bem ensaiadas... sei lá. Só... quero companhia. Não vai acontecer nada... acredite! Só quero... beber até cair... só isso. Você é perfeita pra me acompanhar... tenho certeza que não vai abusar de mim se eu desmaiar de bêbado... — Acredito em você... não sei porque, mas acredito..., mas... pegaria muito mal pra mim. Todos os funcionários... imagine... — Já sei, pedimos para um deles levar os livros... vamos “trabalhar” — fez um gesto de aspas com os dedos: — até não aguentar mais! — Não acreditava na própria torpeza e caiu na gargalhada. — Muito engraçado... e depois de tanto “trabalhar”, eu saio trançando as pernas né? — disse imitando as aspas dele. — Ou não sai! ...to brincando... to brincando... por favor... — Eu tenho certeza que já bebi demais... to ficando louca... não é possível! Alguém alguma vez já disse não a você? — Infelizmente... já. Hoje pela manhã. — disse e olhou imediatamente para o relógio em seu pulso, já passava das onze. Mais de duas horas e duas garrafas de vinho se passaram sem que nenhum dos dois se desse conta. Conversa vaga, quase truncada que não acrescentou a nenhum dos dois qualquer informação sobre o outro, e ao mesmo tempo, pareciam tão próximos, tão confidentes, tão desejosos de dobrar o tempo. Era inconsciente, ao mesmo tempo, lúcida a vontade de ter a companhia um do outro. Zayn pagou a conta, pediu o envio de mais uma garrafa para seu quarto. Tentando disfarçar a indisfarçável embriaguez, passaram na recepção para solicitar que um dos funcionários fosse ao escritório buscar os livros que

deveriam ser levados ao quarto, e dirigiram-se ao elevador.

Capítulo 21- COMPAIXÃO Chegaram à porta do quarto ao mesmo tempo em que o garçom trazia a bebida solicitada, e um dos funcionários os livros. Zayn abriu a porta fazendo um gesto para que ela entrasse primeiro. Os funcionários deixaram o vinho e os livros sobre a mesa e saíram, Zayn sentiu um certo constrangimento pelo estado em que havia deixado o quarto, uma verdadeira bagunça, mas não perdeu a oportunidade de testar as reações de Bruna: — Vai logo tirando a roupa! — Piadinha sem graça, heim! Ela respondeu enquanto ele pegava as roupas espalhadas pelo chão e tirava a mala do caminho, e ela acomodava os livros num canto da mesa, quase nem olhou para eles, nem pensou em iniciar uma conversa sobre negócios. A luxuosa e sofisticadamente decorada suíte, possuía uma sala com mesa, duas elegantes cadeiras, um espaçoso e confortável sofá de três lugares, além de um frigobar devidamente abastecido. Sem qualquer porta que separasse os dois cômodos ficava o quarto com cama, um armário embutido de duas portas, dois criados mudos e o atraente banheiro com uma banheira de hidromassagem que poderia acomodar facilmente três pessoas confortavelmente de tão espaçosa, assim como a cama. Zayn abriu a garrafa de vinho, serviu duas taças: — Quer fazer um brinde? — A você Saíd! Ele não discutiu a escolha dela embora não entendesse, muito menos concordasse que ele poderia ser motivo para qualquer brinde, mas tocou sua taça e ingeriu todo o conteúdo. Ela fez o mesmo, surpreendendo-o. — Haha... eu sabia que você tava precisando encher a cara! Num falei? — Nem me fale... agora tô mesmo. Zayn riu puxando uma das cadeiras pra ela, sentou-se na outra, encheu as taças novamente, a bebida já deixava os dois relaxados e Bruna sentia-se tão bem quanto surpresa por não apresentar aquela moleza que sempre se abatia sobre ela cada vez que ingeria qualquer tipo de bebida alcoólica. Aproveitaram alguns segundos de silêncio para mutuamente se analisarem. — Eu não quero parecer intrometida, ou curiosa..., nada disso, mas... se você quiser falar... o motivo dessa tristeza... eu... eu quero ouvir...

— Pareço triste? — É... parece..., mas pode ser só impressão minha... pode ser preocupação demais... — Não... é... tristeza mesmo..., é mais que isso, é desespero... — Por quê? — Você já perdeu alguém, alguém que você amasse muito? — Já, um irmão... — Lamento saber... lamento. — Obrigada... tudo bem... já faz muito tempo. Não imaginei que fosse isso Saíd..., sinto muito. — Ela... não... não morreu, Bruna... ela me deixou... eu, cometi um erro... ela simplesmente não consegue perdoar. Eu fiz de tudo, pensei que pudesse reverter..., ela foi tão fria, tão dura. — O que você fez? — Um deslize, um momento de fraqueza..., não significou nada pra mim. Nada. Eu me humilhei tanto buscando perdão, eu... tentei de tudo. Sou louco por ela..., nunca senti nada parecido por alguém. Achei que era recíproco... Ela disse com todas as letras que não me perdoa, de jeito nenhum... — Certamente é recíproco. — Começo a questionar se um dia foi. — Se não fosse não teria doído tanto... — Como? Bruna notou que os olhos dele lacrimejavam, a única vez na vida em que presenciou um homem chorando foi quando Saulo deu seu ridículo showzinho no dia de natal. Experimentou naquele momento um sentimento novo, raro para ela: compaixão. Ousou tocar sua mão na vã tentativa de oferecer algum consolo: — Coloque-se no lugar dela Saíd. Imagine se fosse ela a cometer o seu “deslize”. Como reagiria? Pela primeira vez, Zayn encarava a situação por outra perspectiva. Deuse conta do quão egoísta havia sido até então, seu erro, seu arrependimento, seu amor, seu sofrimento, sua humilhação, seu perdão, o fato de não ter significado nada para ele, um simples deslize, sua autopiedade. Não havia se dado sequer ao trabalho de imaginar o sofrimento de Ana, o que significou para ela, sua decepção, sua humilhação, certo de estar tentando reconquistar um coração de pedra. A reação dela só era desproporcional em sua visão egoísta.

Encheu mais uma vez sua taça e não a tirou da boca enquanto não tomasse a última gota: — Tá acabando, vou pedir outra. Bruna colocou a taça que segurava em uma das mãos ainda contendo um pouco de vinho sobre a mesa, curvou-se para Zayn apoiando os cotovelos sobre os próprios joelhos, puxou as duas mãos dele segurando-as, forçando que ele se inclinasse e aproximasse seu rosto do dela: — Não vai adiantar. Chega de vinho, não vai ajudar! E então ele sucumbiu! Abaixou a cabeça apoiando a testa nas mãos e joelhos dela e perdeu completamente a compostura, chorou de soluçar sem sentir nenhuma vergonha, extravasou! Não disse mais nada, era tanta amargura, contida por tanto tempo, precisava sair ou o mataria. Bruna soltou uma das mãos que segurava as dele, que continuava com a testa apoiada sobre ela, mergulhou os dedos entre seus cabelos movimentando suavemente, e assim continuaram por longos, silenciosos, amargos doces minutos de lágrimas e afago. Bruna súbita e, provavelmente pela quantidade de bebida ingerida, desenvolveu um breve pensamento sobre uma possível e nata necessidade humana em sentir compaixão por aqueles que percebemos sofrer, certamente isso explicaria o motivo pelo qual ela desejava que aquele momento tão doloroso durasse um pouco mais. Quando finalmente ele decidiu levantar a cabeça, Bruna passou as duas mãos por seu rosto por mais de uma vez, enxugando as lágrimas até que estivesse completamente seco, embora os olhos dele, numa atraente combinação de vinho e lágrimas estivessem inchados e vermelhos. Ainda curvado, segurou as mãos dela e as beijou, uma, depois a outra, levantando-se: — Preciso ir ao banheiro. Lavou o rosto por três vezes, fechou os olhos enquanto comprimia a toalha contra eles, jogou a cabeça para trás e respirou profunda e longamente. Sentiu os efeitos da embriaguez pela primeira vez naquela noite. Assim que deixou o banheiro, parou no meio do quarto para observar aquela bela mulher, sentada, deslizando as mãos sobre os tornozelos para retirar os rubros sapatos de salto alto e fino. Bruna levantou os olhos sorrindo: — Eles estão me matando! — Fique à vontade. — disse enquanto se aproximava sentando-se à sua frente: — Obrigado! — Pelo quê? — Não sei exatamente. Eu poderia dizer obrigado pela companhia, mas

sei que quero agradecer por mais do que isso, só não tenho ainda as palavras, e estou bêbado demais pra raciocinar. — E eu que pensei que fosse eu a fraca para bebida! — Que desaforo! Você finge que tá bebendo comigo, me deixa ficar bêbado sozinho e ainda vem tirar sarro? — ironizou. Zayn falava e sorria, sentindo-se tão aliviado de repente, puxou a cadeira para chegar mais perto dela, pegou uma de suas mãos entrelaçando seus dedos com os dela, uma intimidade que não havia sido construída, ele não planejou aquele gesto, e ela não reagiu. — Tire a camisa! — Opaa... – saiu quase um eco. – Calma aí! — Seus dedos ainda estavam entrelaçados. — Tem certeza disso? Bruna soltou seus dedos dos dele num riso tão alto quanto inédito: — Deixe de ser pretensioso, não é nada disso, seu bobo! — Vai me açoitar? Com um sorrisinho quase irônico que se recusava a deixar seu belo rosto, ela se levantou e dirigiu-se até o sofá sentando-se em um dos cantos: — Não..., só vou botar você pra dormir. Zayn riu alto enquanto obedientemente desabotoava a camisa. Ela tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Ombros largos, peito e abdômen bem definidos, músculos à mostra, embriagada, não resistiu brincando: — Senhor, me dê forças! — ele riu sentando-se a seu lado. Bruna pegou uma das almofadas, grande e macia e colocou sobre seu colo: — Deite aqui. Ele colocou a cabeça na almofada recolhendo as pernas no sofá enquanto ela empurrava seus ombros para colocá-lo na posição ideal. Cabeça na almofada, virado de costas para ela, abraçou seus joelhos: — Descanse seus olhos e sua alma por um momento! Ele fechou os olhos sentindo as mãos dela deslizar por suas costas, depois pelos cabelos, pescoço, braço, e as costas novamente e continuou assim por muitos minutos, ele sussurrou num suspiro: — Meu Deus, como isso é bom! — Eu sei... espero que esteja relaxado o suficiente pra dormir agora. — Me sinto ótimo... não vou sair daqui nunca mais. — Você precisa dormir agora, e eu preciso ir Saíd. Ele virou o corpo todo encostando as costas no sofá, olhando pra ela: — Fique..., por favor! Eu durmo no sofá, você fica com a cama, por favor. — Não posso.

— Seu filho? Ele não deve estar sozinho, está? — Não... eu tenho uma babá que mora com a gente. — Então..., então..., fique por favor. — Eu tenho que descansar, tenho que acordar cedo, tenho que trabalhar amanhã... não tenho roupa pra dormir.... – Sorriu largamente percebendo que as desculpas acabaram e deixaram a impressão de não poder, embora desejasse ficar: — Além disso, como é que eu sairia daqui pela manhã? Seria constrangedor. — Não tem problema nenhum, qual o problema? Eu te empresto uma camiseta. – ele riu: — só tenho isso pra te emprestar, você dorme aqui, acorda cedo e vai para o seu escritório. Você literalmente vai dormir no serviço. Por favor, Bruna, preciso de você hoje, e não me lembro da última vez em que precisei tanto de alguém. — Uma camiseta? — E tem escova de dentes do hotel no banheiro. — Por falar em banheiro, dá uma levantada aí... posso usar seu banheiro? — Lógico! – enquanto ela se levantava e caminhava em direção ao banheiro ele brincou: — Se precisar de ajuda, não se acanhe! Bruna sorriu sem olhar para trás. Enquanto estava só, começou a analisar a situação. Ela queria ficar. Sentia-se tão bem, tão relaxada, tão íntima, tão confiante, tão segura com ele. Havia se esquecido por algumas horas quem ele era e porque estava ali. Sentiu suas mãos nas costas dele, em seus cabelos, uma atração inevitável diante de toda a liberdade que um havia proporcionado ao outro. Parou diante do espelho enquanto jogava uma água no rosto, havia uma sensação diferente nunca antes experimentada. Seria compaixão? Sentia pena dele? Ou talvez o prazer da intimidade, da liberdade, do poder de escolher estar ali. Sentiu um frio no estômago, uma sensação tão boa quanto estranha. Sabia que ele estava triste, arrasado, que só queria companhia para não se afundar na fossa, e se deu conta de que era tudo o que ela precisava também, companhia! Sentiu uma certa inveja dele enquanto voltava para o sofá, sentou-se a seu lado, ele estava curvado sobre os joelhos: — Não fuja desse sofrimento. Permita-se sofrer, chore, grite, sinta-se deprimido. Permita-se. Curta esse sofrimento. Agradeça por ter a oportunidade de sofrer por amor. — Eu não tenho muita certeza se entendo o que você disse, mas... não tenho vocação alguma pra masoquista... espero que essa sensação passe, já

que não tem jeito mesmo... — Você trocaria o que sente agora pela possibilidade de jamais sentir? Ele voltou o rosto para ela e teve tanta vontade de abraçá-la, observou a beleza daquela mulher madura, tão sábia, tão firme, segura, perspicaz, mas os olhos dela, os olhos dela eram um contra senso a tudo isso: — Tenho a impressão que você é experiente em sofrer por amor! — Impressão errada! — Não sofreu? — Não. — Nunca? — Não. — Nunca levou um fora, nunca foi rejeitada, nenhum pé na bunda? — Nunca amei! Agora ele entendia exatamente o que ela queria dizer. Enxergou-se antes de Ana através dos olhos dela: — Não, não trocaria, respondendo à sua pergunta. Mas desejo que passe, o mais breve possível. — Passa! Não precisa ter dúvidas, todo lado escuro passa, às vezes não desaparece, passa a ser outra coisa. De qualquer maneira passa. Cadê a camiseta? Zayn sorriu, não se sentia triste, não como algumas horas antes. Levantou-se e tirou da mala uma camiseta preta e um short branco, parecendo um samba canção: — Camiseta para senhorita, calção pra mim. — Eu não quero abusar da hospitalidade, mas gostaria de tomar um banho. — Você é engraçada... claro... fique a vontade. Quer que eu encha a banheira? — Não... vou no chuveiro mesmo. — Quer ajuda? — ambos riram enquanto ela lançava sobre ele um olhar desaprovador: — Ué, tô tentando ser prestativo, retribuindo sua gentileza, você me põe pra dormir... eu te dou banho... — Engraçadinho! — Você pode dar banho em mim também... ouviu? — ela já fechava a porta do banheiro. Quando Bruna saiu do banho, Zayn estava sentado à beira da cama ajustando o celular para despertar. Já havia puxado o edredom e ajeitado o travesseiro para ela, tendo colocado o outro no sofá. Vestindo a camiseta preta, sem mangas, comprida o suficiente para cobrir o início de suas coxas,

ela procurava um lugar para colocar suas roupas enquanto ele a observava de cima abaixo admirando aquele corpo à mostra, suas pernas perfeitamente torneadas, descalça, visivelmente sem sutiã, saiu quase sem querer: — Uau! Se seus olhos fossem fuzis, ele estaria morto: — Posso me deitar? — Claro. Bruna sentou-se na beirada da cama ao mesmo tempo em que ele se levantou. Ao ajeitar o corpo para se deitar a curta camiseta mostrou a calcinha branca que ela usava e a cava das mangas, adequada para um homem, não para uma mulher, deixou á mostra um dos seios quase inteiro, detalhes de relance que não fugiram ao olhar de Zayn, por mais que ele tentasse desviá-lo. Ele puxou o edredom sobre ela, e ajoelhou-se enquanto com uma das mãos livrava seu rosto de alguns fios desgarrados de seus louros cabelos: — Você transformou um dia ruim em algo que eu não posso descrever... esse é um daqueles momentos de que me recordarei pelo resto da vida, e tenho certeza que cada vez que relembrar essa noite, vou reviver o que sinto agora. Ela sorriu assentindo com a cabeça enquanto ele a beijava na testa, ao se levantar, se dirigiu para seu banho. Quando ele saiu do banheiro ela ainda estava acordada, rumando para o sofá lhe desejou boa noite. — Você não precisa dormir no sofá Saíd. Vai acordar moído. — Tem certeza? — Tenho. Zayn nem se deu ao trabalho de discutir, pegou o travesseiro, jogou do outro lado da cama, e foi se deitando ainda meio receoso, puxando o edredom para si tentando movê-lo o mínimo possível. — Mas vou logo avisando, se encostar em mim eu grito até acordar esse hotel inteiro, estamos combinados? — Você sabe que se isso acontecer, você vai sair daqui numa camisa de força direto pra um sanatório né? Você tá no meu quarto, na minha cama, com minha roupa... Bruna riu: — Eu tô falando sério! — ela estava com o corpo virado para o outro lado, mas moveu a cabeça para olhar para ele: — Eu falo sério! — Eu sei... tô brincando. Posso só colocar o braço sobre suas pernas? — Não! Boa noite. Zayn riu. — Boa noite linda! — Só por precaução, acho melhor você virar pro lado de lá.

Dessa vez Zayn riu alto: — Só por precaução? — ele virou, mas não conseguia parar de rir. — Você sabe que se algum dia contarmos isso pra alguém, ninguém vai acreditar né? — Nem eu acredito! Depois de muitos minutos, silêncio e muito esforço, o cansaço, o efeito do vinho ajudou-os a pegar no sono.

Capítulo 22- CUMPLICIDADE Ainda estava escuro quando Bruna abriu os olhos, como quem acordasse de um pesadelo, sentindo um frio na barriga, aquela sensação de ter sonhado que despencava de um penhasco, ou que se encontrava nua em meio à multidão. Um frio na barriga, só isso. Tentava despertar sem se mexer. Aquela situação era tão inusitada quanto improvável, e muito embora estivesse seminua na cama de um íntimo estranho, após uma noite que beirava à bizarrice de tão anormal, ela não desejava estar em outro lugar. — Tá acordada? — Não! Ela pôde ouvir seu riso contido. — Que horas são? Bruna moveu-se pela primeira vez desde que abriu os olhos. — Quase seis. — Você não conseguiu dormir? Nem um pouquinho? — Dormi, acordei agora. Meu Deus do céu, que dor de cabeça! — Tenho um remédio excelente! — Ah, por favor... agradeço! — Com todo prazer... — Zayn aproximou-se dela abraçando sua cintura. Escondeu todo o rosto em sua nuca e puxou o corpo dela, delicada, mas firmemente contra o seu. — Quê que você pensa que está fazendo? — Hum... — Ele só deu um suspiro. — Remédio excelente... bobo... não acredito que caí nessa piadinha! — Bruna sussurrou enquanto sentia o sorriso dele contra o seu ombro: — Não foi esse o combinado! — Mas você pediu, admita! — disse baixinho, e lentamente foi diminuindo o aperto de seus braços, mas não a soltou. Manteve uma das mãos em sua cintura e com a outra passou a acariciar os cabelos dela apenas com as pontas dos dedos, tão delicada e superficialmente fazendo com que ela tivesse apenas uma sensação, sem sequer sentir o toque. — Fui enganada... estava pensando numa dipirona! — Ah... então não está com tanta dor assim. — sussurrou ainda na mesma posição. — Não, não é tanta dor!

Não queriam que o tempo passasse, não queriam pensar em nada, não queriam se levantar, se mover. Era mútuo. Só queriam estar ali. Exatamente como estavam, os sussurros se misturando a suspiros contidos, olhos tão abertos quanto possível mesclados a demoradas piscadas. — Bruna... — sussurrou quase sem voz. — Hum? — Você vai ficar brava ou chateada se eu disser uma coisa? — disse ainda sussurrando com os lábios quase colados ao ombro dela. — Provavelmente... Zayn riu baixinho voltando a puxar o corpo dela contra o seu, quase que esperando uma reação de repulsa: — Mulher difícil... então melhor não dizer nada... — É... melhor. — Mas eu preciso... — já gargalhava baixinho com seus corpos cada vez mais colados. — Quando você se decidir se vai ou não falar, me avisa, quero estar preparada... — levantou o braço e pegou o celular para ver as horas: — Seis e meia... — Eu tô ficando excitado... — disse num longo suspiro enquanto ousou beijar-lhe o ombro. — Tenho certeza que você pode resolver isso sozinho... eu não vou me incomodar! — as palavras saíam enquanto ela se virava para ele que, surpreso, não se moveu, nem retirou seu braço de cima dela. — Tem certeza? — Tenho. — Sussurrou. — Mas não posso tocá-la, não é? Bruna balançou a cabeça em negativo silêncio enquanto ele sentia um tesão indizível com os olhos fixos naquele rosto lindo, tão próximo ao seu, aqueles olhos que transbordavam um misto de mistério, tristeza e libido, naqueles cabelos despenteados de uma estranha confidente que não acusava qualquer tipo de constrangimento, insegurança ou desconforto naquele momento lascivo. Ele não teve dúvidas, com uma das mãos segurou o rosto dela com os dedos em seus lábios, e deslizou a outra para dentro de seu calção quase constrangido com a indisfarçável ereção, iniciou uma masturbação discreta. Os olhos dela não desviavam dos seus. Colou sua testa na dela, com sua mão separando os rostos, fechou os olhos, esforçando-se para conter a respiração

ofegante. — Mas eu posso tocá-lo! Ele abriu os olhos, afastou alguns milímetros seu rosto do dela, interrompeu seus movimentos quando percebeu que ela se movia para se sentar. Bruna sentou-se na cama recostada na cabeceira, e foi conduzindo-o para entre suas pernas, as costas dele contra seu peito, ele virou o rosto para colar seus lábios no pescoço dela. Ela deslizou ambas as mãos sobre o peito dele. A mão direita dele sobre a dela era conduzida para dentro de seu calção. Não havia palavra ou expressão para descrever a sensação quando aquela mão começou a masturbá-lo. Ele agarrou sua coxa e quase teve medo de machucála tamanho descontrole quando gozou. Passaram alguns segundos na mesma posição até que ele angariasse força suficiente para se mover, e então se virou para ela, recostou a cabeça em seu peito, abraçou-a por inteiro em absoluto silêncio por quase cinco minutos até que um dos dois tomasse coragem para pronunciar a primeira palavra. — Saíd! — Hum... — Eu preciso ir agora. — Pedido negado. Bruna riu e ele percebeu. — Não é um pedido, é um comunicado. Sério, preciso ir agora. — Eu sei, mas..., você não quer conversar um pouco? — Sobre o quê? — Como sobre o quê? ...sobre isso... sobre o que acabou de acontecer... sobre... sei lá... você não tem nada pra me dizer? — ele voltou seu rosto para ela, ainda deitado sobre seu corpo. — Eu não... desculpe... o que exatamente espera que eu diga? E você? Quer me dizer alguma coisa? — Quero! ...É, eu quero dizer... só não.... Meu Deus, eu tô... desnorteado, eu acho... eu... não encontro as palavras. — Não precisa! Bruna moveu-se o suficiente para colocá-lo inteiro ao redor de seus braços num abraço tão apertado quanto conseguiu, ele fez o mesmo. Ela se levantou após alguns segundos e dirigiu-se ao banheiro para um banho enquanto ele permaneceu o tempo todo sentado na cama com a cabeça

apoiada sobre suas mãos, pensando que tinha a obrigação de dizer algo a ela, algo que pudesse descrever o que ele sentia naquele momento. Simplesmente não conseguia encontrar as palavras. Ela saiu do banheiro já vestida e percebeu que a postura dele, sentado naquela cama denunciava certa tristeza, então sentou-se a seu lado: — A tristeza voltou? Está arrependido, sente-se mal pelo que aconteceu? — Não, não, não... de jeito nenhum! Eu... não tô triste... muito menos arrependido... eu... sinto que lhe devo algo... que... preciso lhe dizer algo..., mas... eu tô sem palavras... quase não consigo raciocinar! — Não precisa me dizer nada! Saiba que me sinto ótima! — Também me sinto surpreendentemente ótimo! Trocaram um sorriso discreto. Nenhum dos dois sentia qualquer tipo de constrangimento pelo que havia acontecido, mas Zayn sentia que precisava esclarecer a situação: — Eu sinto que foi injusto com você. É difícil pra mim descrever o prazer que senti, mas... acho injusto com você... só acho que você tem o direito de sentir também... sentir isso... sei lá Bruna... você me tirou do eixo... — Injusto comigo? — Bruna abriu um largo sorriso: — Você demonstrou mais respeito por mim do que eu já tive em toda a minha vida. Depositou em mim uma confiança inédita. Você me deu momentos de intimidade mágica. Você me proporcionou sensações, sentimentos e prazer que eu sequer sabia que existiam. Você me deu uma experiência da qual nenhum ser humano deveria ser privado! Ninguém deveria passar por essa vida sem sentir o que eu estou sentindo agora. É uma sensação que inconscientemente eu sabia que existia, mas nunca tinha experimentado, pensava até que só existia em minha imaginação. Você me deu em uma noite sensações para recordar uma vida inteira, e eu não sei como retribuir. Zayn olhava para ela em estado de paralisia. Se seguisse seus impulsos teria pulado sobre ela e a jogado naquela cama para terminar o que, para ele, só havia começado, mas não o fez. Levantou-se e a embrulhou em um abraço. Beijou-lhe a testa. Posicionou seus olhos em frente aos dela como quem quisesse inspecionar suas vísceras, tamanha a vontade de saber mais daquela mulher. — Obrigado Bruna. Quando eu conseguir encontrar as melhores palavras para dizer a você o que realmente sinto agora, eu o farei. Eu sempre fui muito bom com palavras, mas você retirou esse dom de mim, e me deixou em estado de êxtase absoluto, anestesiado! Eu... preciso vê-la novamente...

você... eu... tenho que entender... isso... entender você... se você me permitir. Eu... sei que fui egoísta até agora, só falamos sobre mim... eu... preciso que você concorde em me ver novamente. — Claro que o verei novamente! — abriu novamente um sorriso: — você é hospede neste hotel, é um investidor em potencial... — Tudo isso... não foi só por causa do hotel, foi? — Eu vou me esforçar para não ficar ofendida porque tenho certeza que você não quis dizer isso. — Me perdoe, pelo amor de Deus, me perdoe... sou um idiota! Bruna... — Tudo bem... tudo bem... — Bruna, me perdoe... — Tá tudo bem Saíd... desde ontem... tá muito confuso mesmo... sei que você não quis dizer isso. Tudo bem... olha... eu realmente preciso descer agora..., ainda vou pra casa pra voltar depois, e podemos conversar mais tarde. — Você tem um cartão? — Tenho, por quê? — Tem seu celular nele? — Tem. — Me dê. Zayn abriu sua maleta e retirou um cartão para ela, ela fez o mesmo: — Eu compreendo que é complicado pra você aqui. Mesmo que não... sabe... que não aconteça nada... eu... não quero colocar você em situação constrangedora com os funcionários. Eu vou para um hotel aqui perto, e te ligo. O que você acha? Ainda que o cérebro de Bruna colocasse em dúvida as intenções daquele homem, o gesto de preocupação dele com sua situação teve efeito de uma carícia, doce e prazerosa, sensação de um afeto, dominante, irrecusável: — Certo, certo... é... melhor. Eu aguardo você me ligar.

Capítulo 23- LIBERTAÇÃO Bruna implementou um verdadeiro plano de fuga para chegar ao estacionamento sem passar pela recepção, realizar um caminho mais longo através da movimentada cozinha acabou sendo uma excelente estratégia em meio aos agitados funcionários. As manhãs eram caóticas na cozinha do Giorgio II. Chegou a salvo de especulações em seu carro. Não se sentia nervosa, ansiosa ou demasiadamente preocupada, tendo optado pela sorrateira saída por mera conveniência, evitando causar qualquer estranheza dos funcionários com relação a sua rotina que poderia gerar alguma suspeita sobre sua “ilícita” atividade noturna. No caminho para casa pensou em avisar que chegaria mais tarde, apenas para o caso de ocorrer alguma emergência no hotel, o que era raro, salvo quando algum hospede insatisfeito ou impertinente insistia em ter com a gerência. Entretanto, fazia parte de sua rotina atividades externas e nunca antes houve necessidade de comunicar seus compromissos a outro funcionário. Riu sozinha com esse pensamento julgando sua inexperiência em lidar com subterfúgios. Esse pensamento sem sentido de Bruna era quase uma maneira de desviar a própria atenção do estado eufórico em que se encontrava. Remoia e remoia os momentos da noite anterior e daquela manhã, especialmente aqueles que lhe causavam um certo arrepio subcutâneo e gelavam suas entranhas. Mantinha ainda a sensação daquele pranto descontrolado sobre ela se misturando aos momentos de ironias, provocações, carinho, atração e intimidade. Sabia que não pensava com clareza, mas era experiente em se manter apática diante de situações inesperadas ou inicialmente incompreensíveis até que conseguisse discernir com segurança lógica. A originalidade existente nas sensações experimentadas naquele momento estava consubstanciada no antônimo das experiências passadas. Por essa razão, ousou permitir-se continuar remoendo sem pressa para qualquer ilação. Simplesmente deixou que pensamentos imprecisos mesclados a sentimentos igualmente confusos se misturassem convertendo-se naquela deliciosa sensação arrepiante, até que chegou em casa sem sentir o estresse do trânsito caótico daquela manhã chuvosa. Era quase nove e meia. A casa silenciosa, João estudava em tempo

integral, Selma o deixava na escola no início da manhã, e como Bruna não almoçava em casa, ela tinha muito tempo livre para ir até sua casa, mantê-la em ordem, visitar amigas de igreja. Era convicta de ter uma vida tranquila e confortável, cuidar de João Mateus já não era considerado um emprego para ela, era seu neto do coração por quem não poderia sentir mais amor. Era muito afeiçoada a Bruna também, a admirava-a em todos os aspectos, especialmente a maneira lúcida e reta como conduzia sua vida e a dedicação atenciosa ao filho ainda que apenas algumas horas por dia. Bruna se esforçava para dedicar a Selma o mesmo carinho recebido de Betina e sua família, com quem ainda mantinha frequentes contatos telefônicos, e um ou dois encontros anuais quando visitavam São Paulo, padrinhos de seu filho, pilares de sua vida no passado, e no presente. Bruna intencionava inicialmente ir pra casa, tomar um banho, trocar a roupa que vestia desde a noite anterior e voltar para o trabalho, mas um súbito cansaço se abateu sobre ela que acabou desabando na cama. Não sentia sono, apenas a necessidade de sucumbir, exausta de tanta euforia. Entretanto, ainda sob o deleite do “plano sequência” vivido nas últimas horas, acabou pegando no sono. Não se passaram mais que duas horas até que despertasse pela segunda vez naquele dia com um frio na barriga. O senso de responsabilidade foi o impulso necessário para que pulasse da cama direto para o chuveiro. Ainda deveria parar para almoçar em algum lugar no caminho, apesar da facilidade e oportunidade para desfrutar do exímio cardápio do Giorgio II, era raro que almoçasse no trabalho, preferindo sempre sair por ao menos uma hora de almoço. A preocupação com traje adequado e bem posto era constante, mas percebeu-se desproporcionalmente inquieta na escolha para um dia de trabalho comum, não esmoreceu até decidir optar por aquele deslumbrante vestido amarelo ovo, em seda pura, amarrado na cintura por um largo cinto de bolinhas coloridas. Completou o “look” com sandálias azul turquesa de salto tão fino quanto glamouroso. Enquanto finalizava com brincos e perfume, sentiu necessidade de se apressar, não desejava ter que dar explicações a Selma caso esta retornasse, deixou um bilhete explicando que o trabalho a obrigara a fazer plantão na noite anterior e que novamente não teria hora para chegar. De fato, algumas vezes isso acabava acontecendo quando o hotel locava seu espaço para eventos, conferências, encontros ou cursos, acabava lotando

e causando certo nervosismo em toda equipe. Em uma dessas ocasiões, Bruna chegou a passar três dias direto no hotel, indo para casa apenas para tomar banho e se trocar, não seria novidade para Selma. Parou num pequeno restaurante perto de casa, e enquanto aguardava seu pedido, deixou a lucidez ofuscar o brilho da euforia que a dominava até aquele momento. Racionalizou o sofrimento de Zayn e tudo o que ocorrera em razão disso. Sentiu inveja do sofrimento dele e ao mesmo tempo uma profunda e alegre gratidão pela experiência que havia experimentado. Concluiu, com muita clareza, tratar-se do melhor momento de sua vida, por nenhuma outra razão que não pela sensação de liberdade e libertação. Liberdade para ir, para ficar, para ouvir, falar, liberdade para ousar, liberdade para se sentir livre. Era a primeira vez em mais de uma década que as amarras do passado se rompiam. Passou a pensar nos motivos que a levaram a uma vida de cárcere emocional desde que deixou Curitiba, entretanto não se delongou nesse pensamento que passou sem conclusão. Preferiu, entretanto, continuar com os bons pensamentos, desejou um dia poder amar alguém como Zayn à Ana. Pensou em como durante toda sua vida teve a sensação de que sentimentos tão intensos existiam, e nas incontáveis vezes que temeu tratarem-se apenas fantasias românticas de alguém que temia toda forma de aproximação romântica. Teve insights sobre tempo perdido, vida vazia, oportunidades perdidas, sobre o que teria acontecido caso tivesse se libertado antes e vivido experiências amorosas a partir das inúmeras e incontáveis investidas recebidas. Não se permitiu lamentar. Enquanto almoçava passou a pensar sobre as intenções de Zayn e as próprias, quando seu telefone tocou.

Capítulo 24- REDENÇÃO Zayn permaneceu sentado naquela cama por ao menos quinze minutos após a saída de Bruna tentando entender o que acabara de acontecer. Coçava os olhos, a cabeça, a testa na vã tentativa de conter sua agitação. Relembrando as mãos dela sobre ele quase podia senti-la, e esse pensamento fazia com que seu coração lutasse para sair do peito. Por mais de uma vez sorriu de seus pensamentos, não apenas aquela manhã, mas toda a noite havia sido recheada de intensas sensações que ele não conseguia nominar. Aquela linda mulher era de uma sensibilidade fria incompreensível e misteriosa. Talvez fosse essa a razão, pensou, para que ele tivesse se permitido toda a intimidade desde os primeiros instantes daquele encontro. Talvez ela inspirasse sinceridade e maturidade necessárias para suas confidências, ou talvez fosse sua carência, o terrível dia anterior, minimizar suas mágoas nos braços daquela estranha parecia bastante seguro e apropriado. Mas não conseguia pensá-la como estranha. Ainda com seus pensamentos barrocos, encheu a banheira onde passou quase uma hora entre cochilos e suspiros. Ana ainda povoava seu juízo e em meio a tantas coisas a serem entendidas, ainda havia uma certa dor na consciência misturada à convicção de liberdade diante do epílogo por ela imposto. Começou a pensar em Ana como uma história a ser superada, a necessidade da aceitação sem ressentimento, de encarar aquele relacionamento e seu desfecho pelos olhos dela, e tentar seguir em frente. Talvez Bruna tenha sido uma válvula de escape para sua dor. Tal pensamento fazia a consciência doer em relação à Bruna. Seu inconsciente aflito buscava um caminho para a redenção em relação às duas. Doía demais pensar na culpa em relação à Ana, tanto quanto supor ter usado Bruna. Desceu para tomar café da manhã perto das dez horas, mas seu cérebro não dava folga naquele loop de íntimos questionamentos. Decidiu voltar para o quarto imaginando que se fechasse os olhos por alguns instantes, após ter se alimentado, se livraria daquela irritante dor de cabeça. Deitado, começou a pensar na primeira vez em semanas em que, a ideia de perder Ana não o deixava em estado de desespero. Devia isso a Bruna. Ainda era doloroso, o que sentia por Ana em nada havia mudado, mas era diferente agora. Era preciso mais que aceitar o fim, era preciso aceitar e

entender. Percebeu que raciocinava com uma clareza que lhe faltou por um longo tempo. Estava nas trevas desde que Ana o deixara. Concluiu que seu tormento era auto infligido pelo sentimento de culpa, por saber desde o início a gravidade do erro cometido e que a postura dela era compreensível, a dor que ainda sentia era muito mais pela ausência de perdão que pelo inevitável fim do noivado. Sabia que era necessário mais tempo para que ela ao menos o perdoasse. Compreender isso por si só causou uma sensação de alívio e, pensando nas palavras de Bruna sobre agradecer pela oportunidade de sofrer por amor, encheu os pulmões para admitir que errou, que sentia culpa e tristeza, que aceitava as consequências, e que era necessário seguir em frente. Com a cabeça ainda latejando levantou-se e começou a se arrumar para deixar o hotel. Precisava compreender a natureza daquela necessidade em estar com Bruna novamente, precisa procurar outro hotel, ligar para ela, e com esse pensamento veio o anseio. Enquanto se trocava e arrumava a mala, juntando os relatórios do hotel, começou a pensar na postura de Bruna. Em nenhum momento ela hesitou em dizer o que pensava ou o que sentia, transmitindo segurança e confiabilidade, e tudo o que ele precisa fazer, era agir da mesma forma, ainda que fosse necessário ser sincero sobre sua confusão mental. Acabou encontrando a saída para sua angústia nesse pensamento, bastava ser sincero, não precisava ser lógico, apenas verdadeiro, e então, com imenso regozijo percebeu que fora autêntico com ela desde o princípio, constatação que retirou de suas costas algumas toneladas que carregava desde o início daquela manhã, mas ainda faltava algo, faltava certificar-se de que ela compreendia. A pequena bagagem já estava arrumada há quase uma hora quando percebeu que já passava do meio dia. Havia tomado café da manhã tarde demais e não sentia fome, e então, desceu carregando sua mala para fazer o check-out. Cordialmente foi atendido por André, que lamentando tão curta estadia agradeceu a visita desejando ao hóspede que retornasse em breve. Zayn perguntou pela gerente, tendo sido informado de sua ausência naquele momento, sem maiores explicações. André perguntou se ele desejava que ela fosse contactada ou se desejava deixar algum recado, tendo sido desnecessário. Zayn solicitou um táxi e indicou ao motorista endereço e nome do hotel

onde costumava se hospedar quando estava em São Paulo. Decidiu almoçar tão logo chegou à sua nova hospedagem, antes mesmo de rumar para o quarto, e observando o atendimento, o restaurante, o cardápio, pensou pela primeira vez sobre a possibilidade de investir no Giorgio. Mais de uma dezena de vezes havia se hospedado nesse hotel, cinco estrelas, extremamente luxuoso, qualidade incontestável, entretanto havia um certo charme no Giorgio, um diferencial, um charmoso toque pessoal imposto pelo excelente trabalho da gerência, parecia necessário considerar com mais seriedade a oportunidade que se apresentava a fim de levá-la aos sócios. Pensou no cordeiro que acabara não saboreando na noite anterior e optou por um prato semelhante. Aquela dor de cabeça insuportável, certamente sequela do vinho havia consumido completamente. Enquanto aguardava seu almoço, retirou do bolso da camisa branca que usava o cartão de Bruna, indeciso sobre o melhor momento para realizar a ligação.

Capítulo 25- ANSIEDADE — Boa tarde Senhora, desculpe o incômodo. — Tudo bem André, parei para almoçar agora. Algum problema? — Achei que deveria avisá-la que senhor Jabir acaba de deixar o hotel. Pelo que percebi, carregava nas mãos nossa documentação. — Obrigada André, a previsão era que deixasse o hotel hoje pela manhã mesmo, tivemos ontem uma reunião onde foram passadas todas as informações necessárias. Não se preocupe, está tudo correndo como deveria. Daqui a pouco chego aí. — Certo, senhora, mais uma vez, desculpe o incômodo. — Não se desculpe, agradeço sua atenção. Até já. “Tudo está correndo como deveria?” — pensou quase em voz alta. “nada está correndo como o planejado, isso sim!” A necessidade de encantar um investidor para o hotel, havia pouco menos de vinte e quatro horas passado de prioridade absoluta a questão quase sem importância. O interesse de Zayn no negócio não preocupava Bruna. Não naquele momento. Toda sua ânsia restringia-se na espera de um telefonema. Terminou seu almoço sentindo as batidas do coração na garganta. Sensação anormal, esquisita, digna de causar certa preocupação em Bruna. Não deveria! Definitivamente não deveria ansiar pelo telefonema dele, aliás, era até possível que ele nem ligasse. Estava completamente apaixonado e destruído pelo fim do noivado. Seu sofrimento era visivelmente sincero. Pensou na excelente distração que havia proporcionado a ele, sem nenhum arrependimento. Muito embora estivesse consciente e lúcida da situação, ainda desejava que ele ligasse, mesmo que fosse para colocar uma pá de cal sobre uma situação que não lhe parecia ter terminado de maneira adequada, ou tal conclusão poderia ser apenas uma desculpa para justificar o desejo em atender à chamada prometida. A ausência do belo sorriso que costumava distribuir a todos os funcionários e hóspedes que encontrava pela recepção e hall toda vez que chegava ao hotel, denunciava alguma anormalidade em seu ânimo, mas não foi esse o fato que chamou a atenção de todos e arrancou certos suspiros contidos, ela estava especialmente deslumbrante naquela tarde. Desejou boa tarde àqueles com quem cruzou e foi direto para o

escritório. André imediatamente compreendeu que a naturalidade com a qual ela havia encarado a notícia por ele dada minutos atrás, não correspondia à realidade dos fatos. Deduziu que todo esforço de Bruna para atrair aquele investidor, toda preparação dos dias anteriores, toda revisão da documentação, dos dados, dos estudos realizados, provavelmente não havia surtido o resultado esperado. A curta estadia do executivo naquele hotel era um mau presságio, e o semblante de Bruna, ao entrar no hotel, confirmava sua suspeita. O dedicado funcionário aguardou alguns minutos e pediu que fosse preparado o chá de camomila predileto da gerente que ele mesmo levaria. Bateu duas vezes na porta e a abriu delicadamente: — Posso lhe servir um chá? — Entre André... você é realmente maravilhoso..., nem imagina como estava precisando desse Chá. Com toda descrição, André serviu-lhe uma xícara de chá preparado exatamente como ela apreciava, uma rasa colher de sopa de açúcar na água fervida, antes da infusão, e sem realizar qualquer comentário, já se preparava para se retirar quando Bruna lamentou: — Temo que senhor Jabir não tenha se entusiasmado pelo negócio tanto quanto gostaríamos. — Bem, azar o dele, não é? — disse com um sereno sorriso, cujo único propósito era despejar algum ânimo aplacando seu evidente desapontamento: — Ele não é o único investidor que existe, já nosso amado Giorgio... esse é único! Bruna sorriu de volta agradecendo imensamente. Não eram necessárias muitas explicações. André já a conhecia muito bem, e sabia que seu gesto simples e cordial havia sido compreendido por ela, assim como tinha certeza que seus agradecimentos eram muito sinceros. Assim que André deixou sua sala, Bruna balançou a cabeça horizontalmente ao menos meia dúzia de vezes. Disse o que disse a ele porque precisava dizer alguma coisa. A bem da verdade, suas expectativas em um desfecho positivo nos negócios com Zayn haviam diminuído consideravelmente, entretanto não era essa a causa de seu aparente desânimo, mas André não precisava saber disso. Sobre sua mesa havia uma pilha de despesas para serem aprovadas, dois relatórios para serem analisados, além de uma dúzia ou mais de correspondências. Decidiu começar por abri-las, mas quando chegou na

segunda percebeu que já não se recordava nem do conteúdo da primeira, estava impossível se concentrar. Ainda insistiu em abrir algumas outras sem analisar, e foi empilhando uma a uma do outro lado da mesa. Precisava de um serviço braçal que não demandasse qualquer tipo de esforço intelectual, e então, reclinou o corpo sobre a cadeira e fechou os olhos por alguns minutos. Enquanto a ansiedade dominava Bruna, Zayn terminou seu almoço no restaurante do concorrente. Ao lado do prato, o cartão de visitas dela à mostra para o qual olhou durante toda a refeição. Demorou muito tempo para deglutir, e já sentia uma dorzinha no estômago. A comida estava ótima, mas alguma coisa não caiu bem. Permaneceu ali sentado alguns minutos olhando para lugar nenhum até decidir rumar para seu quarto. Definitivamente seu estômago doía, talvez tivesse exagerado na comida, ou talvez fosse apenas o desassossego que experimentava com o retorno daquele peso sobre os ombros. Com o cartão dela em uma das mãos e o telefone na outra, deitou-se com os pés ainda calçados. E se ela por alguma razão estivesse chateada? E se ela não desejasse que acontecesse “tudo” que aconteceu? E se “tudo” o que acontecera fosse sua culpa por tê-la persuadido a beber, a ficar, e ela a essa altura já tivesse caído em si quanto a isso? E se ela se recusasse a encontrá-lo novamente? Cada pensamento, uma pontada na boca do estômago. Essas possibilidades nunca antes haviam sido motivo de preocupação, nem mesmo em relação à Ana. Tentou recordar as últimas palavras dela, algo como “eu a respeitei como nenhum outro homem fizera antes?”, “uma experiência para se recordar a vida toda?”, começou a raciocinar sobre as palavras dela! “Sim”, teve certeza, “eu certamente levarei a recordação dessa manhã por toda minha vida”! — Alô? Bruna? — Olá Saíd, boa tarde! O coração de Bruna quase saiu pela boca assim que o telefone tocou. Apertou os olhos e tentou controlar o tom de voz, tinha medo que ele percebesse seu estado emocional. — Oi linda, como você está? — Estou bem, obrigada e você? — Bem... só com uma terrível dor de estômago! — Experimente aquele remedinho pra dor de cabeça, quem sabe passa! Zayn caiu imediatamente numa gargalhada convulsiva que do outro lado

da linha não apenas se ouvia como se podia sentir, aliviado com o atendimento dela, tão leve, tão espontâneo! — Você é definitivamente a minha pessoa preferida do mundo todo! — Num força Saíd! Você é sempre tão superlativo? Zayn gargalhou novamente: — Não sei, acho que é uma fase, “fase Bruna”! Ela não disfarçou o riso: — Toma um chá de boldo pra essa dor de estômago. Você deixou o hotel sem almoçar? — Eu desci tarde pra tomar café, saí pouco depois do meio dia, tava sem fome. Almocei aqui, e você deve ter me rogado uma praga, sua bruxa, por não ter almoçado no seu restaurante, porque a comida não me caiu bem. — Não roguei praga não, — Bruna sorriu sonoramente: — mas bem feito pra você, quem mandou sair correndo, nem teve a consideração de experimentar nosso cardápio! — Me desculpe..., nem pensei direito! — Eu tô brincando, seu bobo! Mas tome mesmo um chá de boldo pra ver se passa! Só por curiosidade, você foi pra onde? A cada frase dela, saía uma gargalhada cada vez mais descontraída: — Só por curiosidade? Ta perguntando por que quer o endereço, ou pra criticar minha escolha? — Primeiro para criticar, lógico! — Vim pro seu concorrente italiano aqui na Mesquita Sampaio. — Não acredito! Que desaforo! — Nem disse ainda qual hotel é! — Nem precisa! Olha, dizem que a comida de seu Artur causa dor de estômago em todos os hóspedes! Zayn não se continha de tanto rir, e não é que ela sabia mesmo qual era o hotel! — Não acredito... eu não acredito que você realmente conhece tão bem esse ramo, que matou na hora minha localização... que mulher terrível! — Foi um chute certeiro, só isso. — Bruna brincou, apesar de saber que realmente tinha um conhecimento fora do comum, não apenas da rede hoteleira paulistana, como de todos os principais hotéis do País, tinha mesmo sido um chute e tanto. — Você não está aborrecida por eu ter vindo pra cá, está? Se for um concorrente desleal, eu mudo de hotel! — Não, não tô não. É brincadeira! Já estavam no telefone a pelo menos dez minutos naquela conversa —

teste. Zayn tossiu, engasgou, gaguejou, até que finalmente saiu: — E haveria algum inconveniente pra você vir me encontrar aqui? — Você tá me perguntando se é inconveniente para mim encontrá-lo nesse hotel especificamente, ou se é inconveniente encontrá-lo? — Mulher cruel! Os dois! — Bem... não! Para os dois! — Graças a Deus! Bruna soltou uma gargalhada, mas preferiu não comentar o “Graças a Deus” dele temendo que, se ironizasse naquele momento, poderia não lhe agradar a resposta: — Você não prefere sair Saíd? Desde que chegou em São Paulo foi de um hotel para outro, não gostaria de sair? — Tá me convidando prum encontro? Bruna começou a rir, mas não respondia à pergunta direta e provocativa dele, e então ele continuou: — Você tem razão! Não botei o nariz pra fora de hotel desde que cheguei! Vamos sair pra jantar, o que você acha? — Ok! — Ok? — Sim, ok, vamos jantar então, prometo que não peço salada dessa vez! — Vixe, é mesmo! Esqueci que você não come. — Eu não janto, é diferente! — Então vamos tomar um sorvete! — quase não saiu a frase, antes mesmo de iniciá-la ele já estava sem voz de tanto rir, e ela também não aguentou e caiu na gargalhada do outro lado! — Acho que prefiro o jantar. Sorvete poderia ser traumático, nunca mais conseguiria me recuperar! — Vamos esclarecer logo uma coisa dona Bruna, é a senhora que está me fazendo perder o senso do ridículo viu! Bruna nem respondeu, apenas riu: — Que horas? — Pode ser agora? Ela não mais conseguia parar de rir, assim como ele: — Agora nem é hora pra sorvete, nem hora do chá, quanto mais jantar! Além disso, tô trabalhando, saio às dezoito. — Então venha direto pra cá, aqui a gente decide o que vai fazer. — Tá certo, além do mais, você foi pra contra mão mesmo, não dá pra eu ir pra casa e depois voltar pra ir até aí. — Ah, mas você não me deu seu endereço, se tivesse dado, eu teria ido para outro lado! — ironizou.

— Chego aí por volta das dezenove, vá tomar um chá de boldo! — Até mais tarde linda, vou descansar pra ver se passa! — Até Saíd!

Capítulo 26- DESEJO Bruna deixou o hotel pouco antes das seis para ganhar alguns minutos antes da hora do rush, considerando que já estaria além do meio do caminho quando o caos se instaurasse nas ruas paulistanas naquela noite de quintafeira, seu atraso seria mínimo. Não era uma reunião, ou um compromisso cujo rigoroso cumprimento do horário pudesse interferir no resultado, era uma pressa sem sentido que Bruna não precisava se dar ao trabalho de compreender. Aquela quase uma hora e meia até seu destino lhe renderam pensamentos inspiradores. Relembrou alguns momentos da noite anterior e daquela manhã com uma satisfação que chegava a causar-lhe arrepios pelo corpo. Pensou na asfixia sofrida momentos antes da ligação de Zayn, recusando-se, entretanto, a tentar procurar alguma explicação. Não havia mal algum desejar colocar um instante dourado em sua vida monocromática. Sequer imaginou ou se preocupou com o que Zayn pensava. Existia para ela uma certeza absoluta e notória de que ele sofria por amor, precisava de companhia e distração, nada mais, afirmação que não lhe causava qualquer desconforto, ao contrário, permitia-lhe a sensação de controle sobre a situação. Ousou ocupar o estacionamento para visitantes do hotel sem nenhum constrangimento. Não pensou sequer em retocar o batom, sentiu uma alfinetada no peito quando passou pela porta, anunciou seu nome e do hospede que a aguardava. O incômodo do estômago passou para a cabeça, que não doía, girava! O tempo não passava, a televisão não distraía, havia espinhos no travesseiro, era uma impaciência desarrazoada. Encostado na cabeceira da cama começou a versar o início de uma conversa com ela. Bastava-lhe a companhia, mas havia aquele desejo especulativo de sabê-la mais. Pensou no melhor restaurante que conhecia, na possibilidade de persuadi-la a compartilhar um bom vinho pela segunda noite consecutiva tentando prever suas reações. Sentia-se desprovido de força física até mesmo para sair e comprar-lhe flores, algo que lhe passou pela cabeça assim que desligou o telefone. Já no meio da tarde, sentiu uma vaidade como não havia a meses, e aproveitando-se do spa do hotel, desfrutou de uma revigorante massagem seguida de uma sauna que lhe proporcionou uma deliciosa preguiça que o

adormeceu por quase duas horas já de volta ao quarto. Barbeou-se com mais cuidado que costumeiramente, evitando qualquer corte e vestiu o terno preto, camisa azul e gravata degrade em azul e preto que estava reservado para a reunião de sábado. Estava impecavelmente pronto e faltavam ainda uns vinte minutos para as dezenove horas. A ansiedade pode ser doce ou amarga, entre as oito horas daquela manhã e sete da noite, ambos experimentaram cada uma delas, e nos minutos entre aquele inferfonema e a batida na porta, uma confusão das duas. Quando agradeceu o ascensorista, antes da porta do elevador se fechar, Bruna percebeu que o ritmo de sua respiração denunciava alguém que havia subido correndo pelas escadas aqueles cinco andares, então, antes de bater, respirou profundamente e expirou com calma enquanto esfregava uma mão contra a outra. Não desejava causar falsa impressão. Zayn desligou o telefone, sentou-se em uma das cadeiras mais próximo à porta, levantou-se, estalou os dedos de uma mão, depois da outra, ouvindo o estalar das articulações sentou-se novamente e voltou a se levantar quase instantaneamente escondendo as mãos nos bolsos da calça, postando-se como uma estátua diante da porta. Não houve tempo para um recíproco desejo de boa noite, nem um “olá Saíd”, ou um “oi linda”, a porta mal se abriu e os batentes dela testemunharam o desespero dos lábios de Zayn nos dela, e a aflição dos de Bruna desejando se fundir aos dele, num desejo mal educado, irracionalmente desejado. Com uma das mãos comprimindo a nuca dela, a sufocar ainda mais seus lábios e a outra em sua cintura, puxou-a para dentro chutando a porta num movimento cambaleante. A bolsa que Bruna trazia caiu próximo à pequena mesa quadrada de madeira que atrapalhava a passagem até a cama, e onde os passos descompassados dos dois acabaram parando. Quando ele a colocou sentada naquela pequena mesa e deslizou as mãos por suas coxas sob o vestido, enquanto as pernas dela o puxavam agoniadas contra si, eram suas almas que ardiam como álcool derramado em carne viva, não permitindo à razão qualquer interferência sobre seus corpos irracionais. Na cegueira do momento, seus olhos se abriram para que o olhar de um penetrasse o espírito do outro, e no doloroso sacrifício de tentar controlar o descontrole de sua força física masculina ele pudesse descer suavemente o vestido através dos ombros dela, enquanto ela, desacanhada em sua pressa, o despia de seu paletó, camisa e gravata.

Com as pernas de Bruna fortemente abraçadas em seu quadril e os braços dela agarrados em seu pescoço, Zayn levou-a para a cama onde entre sucessivas frustrantes tentativas de conter suas impaciências, um terminou de despir o outro para então explorar até a exaustão, por fora e por dentro, o corpo um do outro.

Capítulo 27- CERTEZA “Nem por Ana abriria mão desse momento” “Eu sabia, eu sabia que existia!” “Meu Deus... o que foi que aconteceu aqui?” “Posso morrer em paz..., hoje eu vivi... já vivi muito, mas precisava viver algo extraordinário... divino, eterno! Eu vivi, eu senti... não posso descrever o que sinto... é grande demais pra caber em palavras!” “Preciso dizer a ela o que tô sentindo, mas como vou dizer se não existem palavras? É metafísico, absurdo... um absurdo o que acabou de acontecer!” “Será que as pessoas geralmente se sentem assim depois do sexo? Será que só eu nunca havia sentido? Será que é sempre assim, ou será que esse foi um momento único?” “O que acontece depois que gente experimenta algo assim? E agora? Se a gente sente o gosto do máximo, consegue engolir o médio? Que pensamento idiota!” “Não tô nem aí pro que vem agora! Ele pode voltar pra noiva e ser feliz! Eu desejo que ele seja feliz, ele merece, é um bom homem! Quero que ele seja feliz! Eu... posso ser feliz o resto de minha vida com essa memória... essa sensação nunca vai passar, nunca!” “Que mulher maravilhosa..., não sei nada sobre ela... será que alguém

a machucou? Mas como? Ela disse que nunca amou ninguém... não quero mexer nas feridas dela... não é momento pra perguntas.” “Não gosto de surpresas, nunca gostei! Até chegar aqui hoje... besteira... tudo na minha vida sempre foi surpresa... to delirando...” “Poucas pessoas mexeram comigo... essa mulher não mexeu, remexeu!” “Ele me pegou de surpresa na porta... será que tinha premeditado isso? Que se dane, não importa!” “Passei o dia inteiro pensando numa coisa, em outra coisa... diferente... e acabou nisso... escultural! Um corpo escultural! “Queria poder dizer a ele, queria ser capaz de dizer mais o que sinto e menos o que penso... mas eu tô pensando agora, porque é tão difícil de dizer?” “Quê será que está se passando pela cabeça dela, será que ta achando que eu planejei isso?” “Eu não me arrependo, de nada! Será que ele vai se arrepender?” “Será que ela sentiu isso? Será que está feliz? Será que gostou? Eu não a desrespeitei... será que exagerei? Deus do céu, perdi o controle, será que fui muito afoito? “Me sinto tão bem... era só um sonho... agora é real. Nem sei o que é, só sei que é.” “Queria ter dois corações!”

“Será que ele sentiu a mesma coisa? Que será que os homens sentem?” “Jamais vou me arrepender, não importa o que aconteça, foi uma das melhores coisas que já me aconteceu... eu poderia amar essa mulher!” “Não precisa fazer sentido! Porque eu fico procurando alguma explicação, não precisa, acho que é por isso que é extraordinário... não ter sentido... inesperado..., será que eu esperava por isso? Esperava sim, não quero admitir, mas eu queria... desde ontem eu queria!” “Alguma coisa aconteceu no momento em que coloquei meus olhos nela!”

Capítulo 28- EXALTAÇÃO — Linda? — Hum... — Ei... mulher espetacular! Tudo bem? — Huhum... — Vire pra cá, deixa eu olhar você! Machuquei você em algum momento? — Não! Claro que não! — Isso foi... o que aconteceu foi... indescritível! Eu não planejei, juro que não planejei. Eu queria muito você... não nego! Pensei em você o dia todo, pensei em muitas coisas..., mas... juro que não planejei isso. — Não precisa se justificar, Saíd. Acredito em você e..., você acabou de definir da melhor maneira... foi realmente indescritível. — Quero que você saiba que essa foi, de longe, a melhor noite que eu já tive! Corrijo: você foi a mulher mais espetacular com quem já fiz amor. — Sei. — Ei... olhe pra mim. Eu quero que você saiba isso. Não tô exagerando nem sendo “superlativo”. Sei que parece um clichê, não gosto de clichês. Jamais diria algo assim correndo o risco de parecer ridículo ou exagerado. Você me fez sentir algo que eu nunca senti antes. Eu não sei como lhe explicar, gostaria, mas não sei como. Eu perdi o controle, a compostura... você inverteu meu norte, foi como... perder os sentidos ao mesmo tempo em que eles estivessem aguçados ao máximo, entende? Meus olhos nunca enxergaram tanto quanto eu enxerguei você, seu gosto deixou meu paladar louco, teu cheiro me impregnou, tocar você... foi... foi como inverter o corpo com a alma e poder tocar o intocável, foi... como entrar em desespero... — Essa... foi a coisa mais linda que alguém já me disse. Eu... sei. Não sei o que dizer, eu acho que... se fosse tão boa em descrever sensações, eu descreveria o que senti exatamente com as palavras que você usou. — Vem cá linda! Fique aqui... só... quero ficar abraçado... Sensações são percepções solitárias, íntimas, o que se sente, se sente só, mesmo estando junto, mas eu sei, de alguma forma, que você sentiu o mesmo que eu. Não apenas agora, desde o instante em que nos conhecemos. De alguma forma, sabíamos que chegaríamos até aqui. Era pra ser. Talvez fosse algo que estava destinado pra gente. Como um prêmio, sei lá... desculpe se tô falando

demais. — Você eu não sei, mas eu... tenho certeza que eu merecia! — Esse sarcasmo combina tão bem com você! Ei... essa marca em seu braço, é de nascença? É muito sexy. — Não é de nascença, muito menos sexy, é marca de infância. Uma marca abominável, eu não posso esquecer, mas não preciso pensar sobre isso. — Desculpe Bruna, não quis fazer você pensar em algo ruim... lamento. — Não... não precisa se desculpar, como você saberia? — Eu gostaria muito de ouvir, mas creio que você não vai concordar em falar sobre isso. — Não... desculpe, realmente não quero falar sobre isso. — Eu desejo muito saber mais sobre você. — Talvez em outro momento, agora, eu não quero pensar em nada além do quanto você é um homem lindo, exótico... no quanto estou exausta... e faminta! — Ai ai ai, nem me fale em fome! Vamos pedir alguma coisa aqui mesmo? Quê que você tá com vontade? A gente pede, enquanto espera, eu te dou o banho que você recusou ontem... — Hoje eu não tenho nem argumentos nem forças pra recusar um banho... — Hum..., mas antes..., vem cá... eu quero provar seus lábios... mais uma vez... com calma... sem pressa..., sem desespero..., os lábios doces... uma feiticeira.., que me seduziu com os olhos..., me atordoou com a boca..., me enlouqueceu com o corpo... — Hoje não posso ficar Saíd. Preciso dormir em casa. — Não... não... — É sério, hoje não posso mesmo! Tenho que estar com meu filho logo cedo, amanhã tem uma apresentação na escola, quero assegurar a ele que estarei lá. Se dormir aqui, amanhã cedo não o vejo, não quero que ele saia sem ter certeza que eu estarei lá pra homenagem ao dia das mães. — Eu entendo... claro... temos quanto tempo ainda? — O suficiente! Entre um petisco e uma carícia, experimentaram suas mais disfarçadas fantasias entre os hiatos para retomar fôlego e força até que, quase quatro horas da manhã, ela finalmente conseguiu largá-lo já entregue ao sono. Havia muito tempo que não dormia tão bem, relaxado, acordou com aquela sensação de um sonho bom, embora não se lembrasse com o que havia

sonhado. Ainda sentia o cheiro de Bruna no travesseiro e a umidade dos lençóis causada pelos corpos ensopados que deixaram a água confusa do chuveiro escoando luxúria, enquanto os dois, suspensos um na lascívia do outro, se empurravam para a cama.

PARTE 3 –

“Você junta duas pessoas que nunca foram juntadas antes. Às vezes é como aquela primeira tentativa de atar um balão de hidrogênio a um balão de fogo: você prefere cair e pegar fogo ou pegar fogo e cair? Mas às vezes funciona, e algo novo é criado, e o mundo se transforma. Então, em algum momento, mais cedo ou mais tarde, por um motivo ou outro, uma delas é levada embora. E o que é levado embora é maior do que a soma do que havia. Isto pode não ser matematicamente possível, mas é emocionalmente possível.” Julian Barnes

Capítulo 29- CONFUSÃO Não se pode estar no presente e no passado simultaneamente. Ana não era passado, era presente, talvez essa tenha a sido a razão pela qual Zayn sentiu-se perdido quando atendeu o telefone. — Ana? — Tá ocupado? — Não... eu... acordei agora. Aconteceu alguma coisa? — Preciso falar com você. — Claro, claro! — Pessoalmente. E com urgência. — Ana, eu tô em São Paulo. Eu... volto amanhã à tarde. Aconteceu alguma coisa? — Ah... não sabia que estava fora. Eu... não posso esperar até amanhã... — O que está havendo? O que é tão urgente? — Eu... pensei que conseguiria... eu... Quando falei com você quarta, eu tava tão determinada, tão certa... eu... queria me livrar de você... — Ana, eu entendo. Mais do que isso, eu aceito e te dou toda razão. Você tá coberta de razão. Eu queria seu perdão, mas... — Zayn... eu... deixe eu falar... já é difícil demais! — Desculpe querida... só queria que você soubesse que eu entendo. — Estou grávida! Foi como um tiro no ouvido! Fez-se silêncio. — Ana... eu... Não faltavam palavras. Faltava direção. Um susto! Perplexidade. Paralisia! — Ana... isso é... Inesperado! — ...Maravilhoso. — Não... não é. Não agora. Não pra mim. Mas não tive coragem. Queria me livrar de você... mas não posso me livrar desse filho. Ouviu o choro dela, um choro de desconsolo, choro de quem se percebeu menor que alguém microscópico. — Querida... olha... por favor... — Não posso, eu... tô tão confusa... Tudo tinha que ser repensado, reconstruído, reajustado. Um segundo de

lucidez. — Ana... se você acredita que tem o direito de decidir isso sozinha... não devia ter me contado. — Eu tenho o direito de decidir sozinha, e já decidi, vou ter esse filho. Mas... minha família... não consigo sozinha... — Você não está sozinha! Ana, você não está sozinha! Você só estará sozinha se quiser... e se quiser, vou respeitar sua decisão..., mas... é meu filho Ana, e eu o quero, tanto... tanto quanto quero você! — Eu tô muito confusa... — Eu sei, eu imagino. Tudo isso é culpa minha, eu sei disso. Se eu não tivesse... reconheço meu erro... se ... se eu não tivesse errado, você não estaria sofrendo, eu não estaria sofrendo... deveria ser um momento de felicidade, não de angústia. Eu sinto muito! Sinto tanto! Não sei como consertar o que fiz Ana! Quanto custa juntar os cacos? E se juntar, será que algum pedacinho se perderá pelo caminho? E se algum pedaço se perder, o que fica em seu lugar? Seria muita teimosia dar uma chance para esperança? Que pessoa poderosa era essa que surgia para desfazer o que estava feito, desfazer duas pessoas, refazer duas pessoas? — Vamos ter que arrumar um jeito de viver com o que você fez... se é o que você quer. Ser humano é ser malabarista, equilibrar erros e acertos, jogar para o alto, não deixar cair! Ser- humano não foi feito pra viver só, mas pra viver junto é preciso compensar com destreza uma infinidade de emoções e incertezas, umas suas, umas do outro. — Eu amo você. Nunca amei ninguém antes. Não posso pedir sua confiança, nem seu perdão, peço uma chance... talvez um dia, de alguma maneira, eu consiga me redimir, e com muita sorte você poderá voltar a me amar com confiança. Você não precisa fazer nada, nem nenhum esforço..., mas eu... não medirei esforços, nem pouparei sacrifícios, é tudo que posso lhe oferecer. E ainda que você não me queira, saiba que coloco em suas mãos e desse nosso filho, minha vida, e as poucas coisas boas que estão nela, e meu destino, pra você fazer o que quiser, como quiser, sem nenhum receio de me arrepender. — Eu... já me sinto mais aliviada por ter lhe contado... Podemos conversar quando você voltar? — Lógico! Devemos conversar... pensar juntos... será como você quiser

que seja. Eu queria sair correndo daqui agora..., mas não posso. Assim que chegar no Rio ligo pra você. — Tá bom. — Tchau querida, fique calma viu? ...não precisa ficar tão angustiada. — Até amanhã Zayn. Que semana! Quarta, quinta, e a sexta só estava começando. Uma odisseia vivida em quarenta e oito horas. E agora? A reunião de sábado era importante, mas jamais impediria Zayn de pegar o primeiro voo para o Rio e usar seu próprio filho para tentar reconquistar o amor de sua vida. Que sorte! Que chance! Destino! Quisera ele fosse tão simples. Deixar Bruna de fora dessa balbúrdia não era uma opção. Não que isso não tivesse lhe passado pela cabeça, mas não! De jeito nenhum! Ela merecia tudo, por mais desagradável e inesperado que fosse, ela não merecia nada menos que a verdade, que sua sinceridade. Era uma questão de lealdade! Ou merecia ser poupada? Sim, talvez fosse uma crueldade, depois desses dois dias... Definitivamente ela não merecia. Quais as expectativas dela? Não conseguia raciocinar sequer sobre as próprias. Duelo de dúvidas, euforia, indecisão, esperança, amor, paixão, bagunça, dor de cabeça, Zayn.

Capítulo 30- RESILIÊNCIA Antes de Bruna havia Ana, antes de Ana não havia nada! Depois de Ana houve Bruna. E agora? Depois de Bruna, Ana, em outra cor, de outra forma, e um filho, e também Zayn, outro, maior! O que se oferece a alguém que lhe agigantou? Era exatamente assim que ele se sentia, diferente, melhor, maior, pleno. Essa sensação não era proporcionada pela bombástica revelação de Ana, nem mesmo por ela. Sabia disso. Há apenas algumas horas havia vivido momentos incomparáveis no corpo de Bruna. Vivo! Pleno! — Bom dia linda! — Já acordado? Bom dia! Pensei que ia aproveitar pra dormir até meio dia! Eu queria poder dormir até meio dia hoje! — É... eu também! — Essa voz ainda é de sono? — Não... já tô acordado faz um tempinho. Bruna... preciso falar com você. — Fala! — Preciso que você venha aqui. — Adoraria, mas tô trabalhando...daqui há pouco tenho que ir pra apresentação na escola... hoje realmente tô com o dia cheio! E ainda parece que fui atropelada por um trator! Tô adorando essa sensação! — É sério Bruna, sei que está ocupada, mas é urgente. — Aconteceu alguma coisa? — Conversamos quando você chegar. — Tá certo. Daqui a pouco chego aí. Bruna percorreu todo o caminho ensaiando uma bronca homérica quando chegasse lá. Não fazia mais de seis horas que havia deixado aquele quarto de hotel, o que podia ser tão urgente? Ao relembrar sua chegada na noite anterior sentiu a mesma emoção daquele momento. Que sensação extraordinária! Deu duas batidas na porta, pareceu que ele demorou uma eternidade para abri-la. — Bom dia Saíd! — Bom dia, linda, entre. Ele nem precisava ter aberto a boca. Ela sentiu. Não sabia o que era,

então se sentou no sofá e preparou seu coração e seu espírito. — Más notícias? — Bruna... – sentou-se ao lado dela sem tocá-la, encarando-a como quem quisesse que ela adivinhasse: — Eu quero que você saiba... — deu uma engasgada com a própria saliva: — Você me mudou! E eu adorei a mudança! Fez uma tremenda bagunça dentro de mim, e me organizou! Me desfez, me recriou. Eu queria que você pudesse entrar em mim... pra ver... pra sentir o que você fez através das minhas sensações, não das minhas palavras! Bruna colocou sua mão sobre a dele: — Que lindo! Obrigada Said! Não vou esquecer essas palavras! Nem essas, nem qualquer outra que você tenha me dito, nunca! Mas tem alguma coisa mais importante que isso, não tem? — Mais não! Não mais importante! Isso é o mais importante. Eu preciso que você saiba disso. Mas tem outra coisa, muito importante. E acho que tenho a obrigação de lhe contar. — Você não tem obrigação nenhuma Saíd. Não sei o que está acontecendo, mas antes que você me diga, quero que saiba que você não tem que me dizer nada. Na verdade, nem sei se quero saber. Não assinamos um contrato. Não me sinto obrigada a nada, e você também não deveria. Sintome livre. E embora eu não consiga dar às palavras a mesma beleza que você, lhe devo essa sensação! Liberdade! No momento não consigo pensar em nada mais precioso que isso. — Isso... é ótimo! Fico feliz que se sinta assim. Quando digo que tenho obrigação de lhe dizer, significa que tenho a necessidade. Necessidade de honrar os momentos que passamos juntos com clareza, lealdade. — Tá bom! Entendo... vá em frente... Zayn contou a ela em detalhes, entre tossidas, engasgos e longas reticências, o telefonema de Ana, cada palavra dita um ao outro, suas expectativas para retomar o relacionamento, sua futura paternidade. Bruna ouviu atentamente, sequer mudou de semblante a cada palavra pronunciada por ele. Em alguns momentos ensaiou um sorrisinho minúsculo com o modo como ele se expressava, sem rir, no entanto. Havia vivido nas últimas horas momentos memoráveis, experimentado sensações que palavras de romance e cenas de filmes despertam em insinuações ardentes nas imaginações, não na pele, não na alma. Ele havia lhe proporcionado isso. Viveu até então sem se permitir sentir falta, escondendo como sombras em sua inconsciência, inacessíveis memórias não vividas de algo que desejava mais que tudo. Não admitia, mas sentia como se suas

únicas experiências sexuais, vividas com Saulo, tivessem sido meros estupros. Nem todas foram, mas a régua da psique media o todo pela maioria, e no lugar mais escondido de seu cérebro, nutria um doloroso pavor de morrer sem ter vivido. Não permitia à consciência desejar, desejava inconscientemente, mais que qualquer coisa, sentir o prazer do prazer, de alguma forma para ela, era o que diferenciava estar vivo de viver. Quando deixou o hotel naquela madrugada, tudo estava diferente, havia cores na noite, brilho nas luzes, cheiro nos odores, gosto na saliva. Quanto retocou o batom sentiu um prazer quase lascivo nos lábios quando pensou neles, agora, de maneira tão diferente. Sentiu-se linda, admirando a própria pele. Enquanto deslizava uma das mãos pelo pescoço até a nuca, fechou os olhos para se sentir, e adorou. Tudo havia mudado! Aconteceu tão rápido, tão intenso, tão absoluto, completo! Mas naquele momento, os relatos de Zayn doeram em algum lugar dentro dela, estava sufocando. Não se sentia no direito de se sentir daquela maneira, e a negação desse direito fazia com que se sentisse péssima consigo mesma. Talvez tivesse sido esse o motivo pelo qual ouviu quase tudo como se estivesse longe, como se ouvisse tudo de fora do próprio corpo e as palavras dele fossem ecos, quase zumbidos. Mas o que já havia acontecido era maior, mais deslumbrante, inapagável apesar de qualquer emboscada do destino, o que aconteceu entre eles não poderia ser superado nem replicado, ainda que tentassem reproduzir, os efeitos já eram sentidos e era para a vida toda, e foi essa certeza que abrandou seu coração, relaxando seu corpo até que, ainda enquanto ele falava, ela começasse a sentir felicidade pelo momento dele. — Estou muito, mas muito feliz por você! Que notícia maravilhosa Saíd! Parabéns, meus parabéns! ...Você merece! Você será muito feliz! A reação dela após seu longo monólogo transbordou a alma dele em alívio. Não foram seus corpos que se abraçaram tão apertadamente naquele instante, foam seus espíritos, quando um pôde transferir para o outro uma compreensão divina, um carinho celestial, uma certeza universal de que o que viveram era infinito, eterno, incomparável, e acima de tudo, inabalável. — Eu já disse que você é a minha pessoa preferida do mundo inteiro? — sussurrou no ouvido dela! — Já. Da primeira vez eu não acreditei, mas agora eu acredito. Você não é a minha pessoa preferida do mundo inteiro porque essa pessoa é meu filho,

você é a segunda! E em breve, outra pessoa será sua segunda... terceira, e assim por diante, porque a primeira, sempre serão seus filhos! Talvez você não me entenda agora, mas logo entenderá. E eu sou muito feliz, por em algum momento, ter sido sua pessoa preferida. Estou imensamente feliz por você e por mim mesma. Ser a mais importante não é importante... só encontre um lugarzinho dentro de você para me esconder e, de vez em quando, ter boas recordações. Seu lugar em mim... já está reservado!

Capítulo 31- ACEITAÇÃO — Você já tem seu lugar em meu coração e em minha vida. Espero que não esteja me dizendo adeus com suas palavras... — Saíd... você não está pensando que será possível continuar... — Bruna não... não continue... eu vou dar um jeito! Te dizer adeus está fora de cogitação... eu não conseguiria... — Para Saíd! Para! Que absurdo você está dizendo? Eu jamais permitiria... jamais! — Bruna... olha..., sei que tá tudo muito confuso agora... só que... é impossível pra mim... não consigo admitir a possibilidade de não... — Como não admitia a possibilidade de perder Ana? Zayn pensou muito antes de responder, queria ter absoluta certeza de dar a ela a verdade: — Sim, exatamente! — Que homem de sorte você é! Eu realmente te invejo. Como é fácil pra você morrer de amor. Algumas pessoas passam a vida sem ter nenhuma chance, e você teve duas. Mas veja Saíd, o que você quer não é possível, e você só quer porque está atordoado com tantas coisas que te aconteceram nos últimos tempos. Até ontem eu não existia, não é? Você terá outra vida agora Saíd! — Mas como linda? Como? — Eu também não sei... é mais fácil para mim porque não preciso e não quero viver como ontem... mas você também não precisa. Talvez você só tenha que não fazer nada. Daqui pra frente sua vida vai mudar tanto, tantas coisas novas, tantas emoções diferentes estão reservadas pra você, que naturalmente eu serei colocada no meu devido lugar em sua vida e em seu coração. Você está tendo uma segunda chance, não a desperdice! Eu acreditei em você quando demonstrou arrependimento por ter causado o fim de seu noivado e quase ter perdido seu amor, não pense em repetir o erro. Não podemos apagar o que nos aconteceu, mas aconteceu num momento permitido, agora não é mais. Sua família jamais deverá saber, e você deve à Ana essa consideração, você deve, e sabe disso. Eu serei uma memória agradável pra você, e isso deverá bastar para nós dois. — Você nunca será uma memória somente. Você é parte do que eu sou agora, é parte da minha história. Tudo que vivi até hoje tem o lado bom e lado triste, você é só lado bom. Eu não tenho mais como viver como se você

não tivesse me atravessado como uma ventania, derrubando tudo o que encontrou pela frente. Eu não quero mais viver pela metade, nem estar meio satisfeito ou ser mais ou menos feliz, não aceito menos agora. — Eu sei... sei porque me sinto exatamente da mesma maneira..., mas... Saíd, você não precisa se conformar com menos... o lado bom não sou eu... o lado bom... é que agora sabemos como queremos viver! Então viva! ...vai lá... se despeje inteiro na mulher que você ama... não só um pouco, não o suficiente... o todo! Porque não transformamos um ao outro, nós nos transformamos pelo que nos permitimos, e nós nos permitimos nos escancarar descaradamente em nossas sensações, nos permitimos dizer tudo sem meias palavras, nos permitimos deixar os limites, os pudores, as limitações e os medos da porta pra fora. Fomos o nosso melhor! Dê à sua Ana esse melhor e você vai continuar se sentido inteiro. Não será outra pessoa que te fará isso... só você pode! — Oh Linda! Você é perfeita! Tão lúcida, tão segura... tudo que você me disse, não só hoje, não só agora... desde que nos conhecemos, parece tão certo, tão claro. Todas as suas palavras parecem iluminar a escuridão das minhas incertezas, das minhas tristezas... das minhas inseguranças..., mas... e você? — Eu? ...ah... eu também sou diferente hoje! E acredite... pretendo seguir meus próprios conselhos! — Tenho consciência do que preciso fazer e de como devo agir. Não quero e não vou perder essa chance... vai ser difícil agora... eu sei que durante muito tempo estarei dividido... não tenho a sua certeza de que algum dia minhas duas metades me transformarão em um inteiro novamente... — Olha Saíd... não é algum dia... é agora! Ou você sai daqui agora, inteiro, e vai correndo fazer o que você tem que fazer... e inteiro, ou corre o risco de realmente passar o resto de sua vida só pela metade! — Não consigo... — Claro que consegue! Olhe pra mim! ...Olha Saíd... Tudo que lhe disse até agora, são expectativas de como eu imagino que deve ser, e de como será, são expectativas. Mas agora vou lhe dizer algo que tenho convicção, e experiência... viver é como escrever uma carta ou um livro, qualquer coisa, se você coloca uma vírgula numa frase, só consegue prosseguir naquela frase. Pra começar um novo parágrafo é indispensável que tenha um ponto antes, final, exclamação... não importa, tem que ter um ponto. Se você só colocar vírgula, jamais terminará a carta, vai permanecer na mesma frase

obrigatoriamente. Nós colocamos o nosso ponto agora, e vamos começar nossos novos parágrafos. — Vou ter que processar essa informação! — Eu tenho certeza que você me entendeu! — Entendi sim linda... Claro que entendi! Vem cá... me dê um abraço... minha linda... um capítulo da minha história... jamais será esquecida apesar de qualquer ponto. Desejo mais que tudo que você seja tão ou mais feliz que eu! Me prometa que vai! Só sua promessa sincera de que será feliz pode me encorajar a trocar uma vírgula por um ponto... me prometa! — Prometo! Nunca mais me permitirei ser menos feliz que agora! — Linda... e o hotel? — Esquece isso Saíd... você sabe que não dá mais... não se preocupe, encontraremos outro parceiro, e você deve me prometer que não se permitirá ser tentado a me procurar. A simples ideia seria uma traição à Ana, e uma injustiça comigo. — É a promessa mais dolorosa que já tive que fazer..., mas eu prometo!

Capítulo 32- EQUILÍBRIO Como deveria se comportar alguém em êxtase e devastado ao mesmo tempo? Como se comporta alguém que ganha tudo tendo sensação de perda? Como deve agir alguém que é obrigado a sentir o amargo do fel porque precisa do mel que vem logo depois? Que felicidade infeliz ele teve que experimentar! Uma caricatura daquilo que desejava ser, apressadamente arrumou suas coisas, sequer deu satisfação aos negócios que lhe aguardavam para o dia seguinte, numa calma suis generis para aguardar o trânsito ser liberado perto do aeroporto para a retirada de dois veículos e das vítimas envolvidas num acidente ocorrido a pouco tempo, pegou o primeiro voo para o Rio de Janeiro. O encontro com Ana não foi fácil. Sabia que ela estava ainda muito magoada. Tentar atar a corda daquele relacionamento com um nó era uma opção, mas ele sentia que ela nunca mais seria inteira, aquele nó sempre estaria lá, no meio do caminho, uma lembrança, um alerta. Alguém já disse uma vez que “a noite é mais escura pouco antes do amanhecer”, que frase memorável, e tão pertinente! Foi assombroso, algo para ser apagado da memória aqueles rostos desconfiados, carregados de julgamentos e sentenças proferidas pela família. Cada jantar, cada encontro, cada silêncio constrangedor, cada olhar reprovador. Quanta indigestão Zayn teve que digerir antes de seu casamento. Mas o tempo é divino! O casamento deles não foi apenas emocionante, foi épico! Ana estava deslumbrante, não apenas em seu vestido, em sua felicidade! Tudo estava ao gosto dela, e fazer todos os gostos dela proporcionou à Zayn a satisfação de colher os frutos mais doces daquele momento. Sentir e fazer parte da felicidade dela, deu à ele o sentido que sempre buscou como homem e como ser humano. Almas gêmeas, Zayn cuidava dela como a uma boneca de porcelana, com prazer, com vontade, ela sempre fez jus a isso, retribuía, no início mal sabiam que suas vidas seriam para sempre recheadas de ternura e contemplação. Um relacionamento raro, invejado por todos, desejado por cada homem e mulher. Conto de fadas existe sim, Zayn e Ana vivem um, são testemunhas de quantos problemas e percalços no caminho de um relacionamento e de uma família podem ser suportados e superados, quando

o amor é grande e sólido o suficiente para fornecer o bálsamo necessário para cada dor. O nascimento do filho foi a transformação de dois seres humanos em pais, porque pais extrapolam os limites humanos em tudo que diz respeito a filhos, e acabou preenchendo aquilo que já transbordava. Incontáveis foram as discussões, pequenas mágoas e algumas lágrimas, dor, preocupações, enfermidades, noites sem dormir, frustrações, mas existia a mão do outro, o ombro, os ouvidos e corpo do outro, a capacidade mútua de encontrar o meio termo, de ceder e reivindicar, de seduzir e conquistar. Aquele nó foi diminuindo, diminuindo, e como milagres não podem ser explicados, depois de muitos anos ninguém poderia dizer que, em algum momento, aquela corda havia arrebentado. Os prósperos negócios de Zayn tornaram-se cada vez mais sólidos e suas viagens para São Paulo eram constantes. Sozinho, com Ana, com a família. Não houve uma vez sequer em que tivesse estado naquela cidade e não pensado em Bruna. No início, tinha medo de que o destino os colocasse cara a cara novamente em algum aleatório encontro, tão improvável quanto tudo que envolvia suas histórias, temia a própria reação. Cada vez que cruzava com uma mulher de físico parecido, ou cuja silhueta lhe lembrava de seu segredo, sentia uma vibração física e um descompasso cardíaco que lhe rendiam alguns segundos de euforia e embaraço. Percebeu por diversas vezes que essas ocasiões lhe rendiam um discreto suor nas mãos, numa sensação incrivelmente deliciosa. Manteve sua promessa, nunca a procurou. Jamais contou a ninguém aquelas quarenta e oito horas, entretanto não sentia culpa alguma quando deixava suas memórias aflorarem. Durante algum tempo pensava nela com constância, curioso sobre seu destino, desejava fervorosamente que estivesse feliz. Com o passar dos anos e a construção de sua história, os pensamentos em Bruna tornaram-se cada vez menos frequentes, e nesses poucos momentos em que sua memória a trazia de volta, a sensação era a mesma, nunca mudou, nunca apequenou, porque pessoas, ainda que passageiras, podem deixar sensações eternas. Ainda que não houvesse explicação, ainda que Ana fosse o amor de sua vida e lhe bastasse, ainda que não desejasse qualquer outra vida ou outro destino, Bruna estava ali. Era indispensável para seu equilíbrio, para sua existência. Todos seus amados estavam com ele, Bruna estava dentro dele, a

única que jamais o deixaria pela simples impossibilidade, era integrante dele, e tão grande, tão suficiente, que lhe bastava sua existência! E como ninguém ensaia o futuro, dez anos haviam se passado quando aquela empresa uruguaia marcou a reunião no restaurante do Giorgio Palace II. Quando ouviu a notícia que chegou através do telefonema de um dos diretores, não questionou, apenas demorou alguns segundos para se recompor, enquanto uma bomba de pensamentos desajustados explodia em sua cabeça iluminando seu olhar. Justificou todo seu entusiasmo, agitação e alegria indisfarçáveis na expectativa do excelente negócio que estava por vir, e no orgulho de haver conduzido com maestria, de ponta a ponta, aqueles empresários até o desfecho almejado. Todo negócio sério termina numa imensa mesa de reunião, quis o destino que o sócio alemão daquela empresa uruguaia, estivesse hospedado naquele hotel, naquela data, tratando de outros investimentos, e que só pudesse dispor daquele almoço para dar a Zayn aquilo em que ele havia trabalhado tão arduamente para conseguir. Quando pegou aquela ponte aérea, já havia quase vinte e quatro horas que suas memórias o sacudiam, com tanta violência, que fazia suas articulações rangerem a cada pensamento, embora em sua consciência, a única expectativa era um olhar, talvez um abraço, e poder ouvir mais uma vez, olá, Saíd!

Capítulo 33- CHOQUE Desembarcou em São Paulo pouco antes das nove da manhã, com sua bagagem para um dia e uma maleta que trazia papéis valendo uma fortuna, sem ter qualquer pensamento ou preocupação com o que aconteceria após o meio dia. Aquela ansiedade toda era para se reencontrar, depois de uma década, com o inesquecível, que a essa altura de sua vida, já não necessitava mais de adjetivos ou definições. — Bom dia! — Bom dia Senhor, tem reserva? — Não... eu tenho uma reunião aqui... mais tarde, ainda não sei se será necessário me hospedar..., mas eu gostaria de falar com a gerente, se for possível. — Pois não senhor, qual seu nome? — ...Saíd... — Só um momento, por favor. – André, senhor Saíd gostaria de falar com o senhor. — Ah... desculpe... é... Bruna não é mais a gerente? — Quem? Desculpe senhor... não... nosso gerente é o senhor André, e ele vai recebê-lo imediatamente. Enquanto seus passos frustrados o conduziam à mesma sala onde havia fantasiado um abraço emocionado, perguntas curiosas e respostas lúdicas tão próprias de Bruna, sentiu uma falta de ânimo e em certo mau humor se abatendo sobre ele, caminhou calado, pela segunda vez, até aquela porta. — Bom dia, entre, por favor! Em que posso servi-lo? — Bom dia... — Por favor, sente-se, fique à vontade! — Eu estive hospedado aqui há alguns anos, quase dez anos, na verdade... minha empresa quase investiu neste hotel... procuro pela antiga gerente... Bruna, era seu nome. — Sim, claro... eu... eu me lembro do senhor... faz muito tempo... senhor... Saíd! — Era uma prerrogativa de Bruna me chamar assim... pode me chamar de Zayn. — Claro... senhor Zayn! — Faz muito tempo mesmo... incrível a memória da gente né?

...também me lembro de você... você... era o recepcionista, não era? — Sim... era sim... — Ficou no lugar dela? ...e ela? ...ela adorava esse hotel! ...Sabe me dizer se ela ainda trabalha em São Paulo ou... onde eu poderia encontrá-la? — Ah... senhor Zayn... sim..., eu... me tornei o gerente depois dela... eu... lamento senhor... eu a idolatrava... ela... faleceu a muitos anos... “Senhor”! ... “Senhor Zayn” ... “O senhor está bem?” ... “Senhor Zayn” ... “Carla, traga um copo d’água, rápido!” .... “Senhor Zayn, está me ouvindo?” ... “O senhor está bem?” ... “Tome um pouco d’água.” — O quê? — O senhor ficou pálido de repente, deve ter sido uma queda de pressão... achei que tinha desmaiado, o senhor precisa de ajuda? Quer que chame alguém, quer um médico? — Não... só... me dê um minuto... Você disse que... ela... o quê? Como? Quando aconteceu? — Foi... uma fatalidade... um acidente de carro... — Mas... meu Deus! ...Meu Deus! — Eu... não imaginei que o senhor sequer se lembrasse dela... — Quando? Quando aconteceu? — Faz muito tempo senhor... faz... mais de dez anos já... por aí! Na verdade... um ou dois dias depois que o senhor esteve aqui pelo que me lembro. — O quê? — Eu... me lembro como se fosse hoje! Ela... estava radiante aquele dia... especialmente linda, fui a última pessoa a falar com ela... ela disse que ia à escola do filho... era... semana do dia das mães, e ela... parece que ia ter uma homenagem..., uma apresentação do filho... alguma coisa assim. — Não... não... não é possível! — É terrível sim... foi terrível para todos! E pra mim... foi ainda pior... eu fiquei doente... eu não me conformava. Eu a vi sair daqui com um brilho nos olhos que podia iluminar a escuridão do universo naquele dia... eu me lembro tão bem... ela estava diferente... ela não precisava dizer nada... eu gosto de pensar que a conhecia tão bem... alguma coisa extraordinária aconteceu com ela... — Eu... não... consigo assimilar... não... como? — Não sei lhe dizer senhor, lamento... não tenho muito mais informações... é tudo que sei... antes de ir pra escola ela foi a algum outro

lugar, porque... o acidente foi próximo ao aeroporto... estava fora da rota para a escola... parece que um caminhão tentou desviar de uma moto... e jogou o carro dela... ela ficou presa muito tempo... não resistiu. Lamento lhe dar essa notícia! — Isso... não está acontecendo... isso... é um pesadelo... não... não é possível... — Lamento senhor. Ninguém seria capaz de descrever o que ele sentiu naquele momento, nem ele mesmo. Não era luto, não era desespero, nem tristeza, era algo além. Incrédulo, recusava-se a pensar, porque sabia as perguntas e as respostas, e só ele sabia, e a dor de saber era enlouquecedora. Repetia e repetia mentalmente “não, não” enquanto deixava o hotel, caminhando desorientado pelas calçadas, sentindo suas vísceras sendo consumidas pelo fogo de uma dor insuportável. Em estado hipnótico, seguiu surdo, com lágrimas que não tinham fim, a cabeça latejando, alguma coisa segurando seu coração querendo impedi-lo de bater e com falta de ar, até perceber, depois de quase uma hora, que estava perdido, e então, sentou-se no chão, numa esquina qualquer, olhou para o céu com os olhos ardendo, zonzo, e se permitiu a única pergunta para a qual não tinha a resposta: — Por quê?

Capítulo 34- CANSAÇO — Eu passei por ela. Eu me lembro, eu passei por ela... — Culpado? Não sei... não sei... não me sinto culpado... eu acho... me sinto perdido. Eu já devia ter superado isso, não devia? Porque eu não consigo? Porque eu acordo, como, durmo, pensando nisso? Me pego suando, sem concentração, nada me distrai ou desvia minha atenção! Vinte e quatro horas por dia... eu fico pensando, repensando... Tantos porquês, nenhuma resposta... Não conseguia dormir, agora durmo demais... — Porque eu preciso entender! Preciso de uma explicação! Não consigo viver com isso... sem isso... tô exausto... definhando... — Preciso de uma resposta... eu venho aqui há meses... só... o senhor... remexeu no meu passado, na minha infância..., mas... eu ainda continuo perdido, porque a resposta para meu tormento não está tão longe... é mais recente... por favor, me ajude... — Então... me ajudam a dormir..., mas remédios que me apagam não são suficientes, e não é a solução que eu busco... eu não quero só dormir... por favor... eu não quero só dormir... eu quero minha vida de volta! — Não, não aconteceu nada diferente nessa semana... é que... to tão cansado... — Eu fico pensando, tentando entender... porque isso tinha que acontecer? Porque eu tinha que saber? Eu estava tão bem antes de saber? Ela morreu logo depois de me libertar... é assim que eu vejo..., mas por quê? — Porque tudo o que ela me disse naquele dia é muito vivo ainda em mim, eu me recordo com tanta clareza e com tantos detalhes de cada palavra dela, de cada gesto... Foram as palavras dela que direcionaram minhas atitudes e minha vida, e funcionou tão bem, exatamente como ela disse que seria... eu... só segui as palavras dela... eu... fui inteiro por muito tempo... — Eu sei disso, mas saber disso não ajuda em nada! Não me interessa o que a ciência não pode explicar, me explique o que ela pode! — Por quê? Porque estou em frangalhos e tudo parece tão cinza? Como pode, durante tantos anos as lembranças me bastarem? Porque durante todos esses anos eu mantive a minha promessa de jamais procurar por ela, e não pretendia mesmo, eu conseguia viver muito bem com a certeza de que nunca mais a veria, então porque agora não consigo mais seguir em frente? Por quê? Porque a existência de alguém sobre quem eu não sei nada além do primeiro

nome, era mais importante que sua presença? Por favor... me diga... — Porque Zayn, alguns minutos podem ser mais preciosos que muitos anos dependendo da veemência com que são vividos, e como você mesmo disse, vocês viveram algo marcante, que todos sentem que existe, mas nem todos têm a sorte de experimentar. Você sofre, porque teme que sem ela, essas sensações desapareçam. Teme esquecer alguém inesquecível, quer ser dependente dessa memória. Você não teme perder quem nunca teve, teme perder um ponto de referência. Não existe uma explicação científica para as coincidências que os juntaram e os separaram, nem para a prematura morte dela. Mas existe uma explicação para sua dor, chama-se luto. Existe explicação para seu desespero, chama-se medo. Permita-se viver a dor do luto porque ela é indispensável para cicatrizar as feridas da perda. Permita que suas lembranças desempenhem seu papel de lembrá-lo das sensações que lhe trazem felicidade e prazer, para revivê-las. Sente asco pela dependência dos outros porque nega a própria. Mas você não tem que depender de ninguém para cultivar emoções e sentimentos. Não tenha medo de nunca mais sentir emoção extrema, mas não transfira para qualquer outra pessoa a responsabilidade de ter que lhe proporcionar isso! Falaremos mais a respeito na próxima semana. - FIM –

AGRADECIMENTOS À minha família, meus filhos Franklin, Luiza e Raquel, e meu esposo José Maria, que primeiro acreditaram neste sonho. Às minhas irmãs, Adriana, Luciane e Mariana, e à minha mãe, Cidinha, por todo apoio e incentivo. À maravilhosa Olga Enriques, minha editora, por tornar o sonho possível, pela paciência, delicadeza e dedicação. À toda equipe da Editora Leabhar Books e seus parceiros, pelo profissionalismo, competência, cuidado e atenção ímpares. Tem sido uma honra trabalhar com vocês. Um marco em minha vida, um capítulo de minha história abrindo um novo caminho em um mundo novo, cheio de possibilidades. Sem vocês, não teria chegado até aqui. Não existem palavras ou expressões apropriadas para externar toda gratidão que sinto, mas eu posso tentar, com um sincero MUITO OBRIGADA!, carregado com todo meu amor e muita emoção!

SOBRE A AUTORA

Rosane Angélica de Oliveira Cruz Oliveira Ribeiro, nasceu em 1974 na cidade de Ibitinga, interior de São Paulo, há dezenove anos reside Sergipe, Estado onde moram os familiares de meu esposo. Advogada, especializada em direito administrativo, e mãe de 3 filhos, é uma leitora assídua desde criança. É apaixonada pelas obras de Hemingway e considera “Por quem os sinos dobram”, uma das estórias mais emocionantes que já experimentou na leitura. É aficionada pelas descrições e imagens construídas através das palavras e tem “Memórias Póstumas de Brás Cubas” como uma das obras mais geniais já escritas na literatura mundial. Adora boas estórias e não escolhe gênero. Começou a escrever por necessidade, a necessidade de escrever!

MAIS DA AUTORA

Rosane Ribeiro 9786587984001 Adquira aqui Quatro gerações, quatro membros de uma mesma família, diferentes percepções sobre os mesmos acontecimentos. Esta novela que se inicia no ano 2000 com o nascimento de Felipe e se arrasta até a década de 1920 com o nascimento de Catarina, narra a vida de quatro protagonistas, e seus encontros com a morte, abordando temas atemporais como depressão, bullying, relacionamento abusivo, consequências e trauma de guerra, e luto, em passagens conflituosas rápidas e intensas. Augusto acredita que a morte seja obcecada por alguns, enquanto Catarina crê que a vida seja obcecada por outros, como se ambas fossem uma maldição. Catarina vê seus sonhos destruídos por um trauma de guerra e enfrenta seu destino numa época em que as mulheres cumprem suas obrigações de esposa sem questionar e sem se expor, enquanto Isabela aceita um relacionamento abusivo em pleno século XXI. Uma severa depressão leva Felipe a desdenhar e repudiar a vida, enquanto Augusto consegue acreditar na ressurreição por amor, lutando contra a morte. Segredos guardados e suportados por amor, por vaidade ou

circunstâncias, fatalidades, intuições, as palavras não ditas, os sentimentos não revelados, as decisões não tomadas, ganham sentido, ou perdem todo ele, diante da morte. Adquira aqui

OUTRO LANÇAMENTO TAIGH BOOKS

Gilberto Nascimento B085B9F38W Adquira Aqui Em 23 de maio de 1848, uma carta anônima é enviada ao Delegado com a informação de uma mulher mantida presa por 15 anos por sua mãe, em um sótão sórdido, entre o lixo e vermes. Mariana tinha sua vida planejada, se casar, escrever um livro e ter uma família. Até que um homem inesperado muda o rumo de todo seu destino. Miguel, um jovem de classe média se apaixona perdidamente por Mariana, mas a mãe da jovem, que é conhecida em toda cidade, proíbe esse romance, que ao ver a desobediência de sua filha descarrega sua ira sobre ela, lhe causando muitas dores, lágrimas, perdas e medos constantes. Após uma breve fuga, Mariana é forçada renunciar ao seu amor. Sem medir esforços, Constância chegará ao extremo para manter seu nome e seus méritos na sociedade. Até mesmo retirar seu neto das entranhas da filha. A jovem antes cheia de vida e sonhos só podia desejar a morte, sem conseguir sobreviver ao caos que seus dias se transformaram após ser trancafiada no sótão pela própria mãe, desejava paz para seus dias solitários e sem esperança... Durante 15 anos.

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PRÓXIMO LANÇAMENTO LEABHAR

Annie Seaton 9786588382028 Uma história de amor de viagem no tempo lindamente escrita. Um romance que mistura suspense e implicações da viagem no tempo. Da autora premiada Annie Seaton, esse romance que percorre o tempo vai aquecer seu coração. Megan Miller chegou a uma encruzilhada em sua carreira. As acusações de violação da ética em seu ensino universitário abalaram seu mundo. Enquanto viaja meio mundo para o festival de rock de Glastonbury com o intuito de pesquisar e completar sua tese de doutorado, ela espera que a confusão que deixou para trás, na Austrália, seja resolvida enquanto ela estiver na Inglaterra. Davy Morgan, um cantor de rock recluso, tenta manter seu mundo musical e sua vida particular separados; sua própria existência depende disso. Mas quando a linda mulher, que parece ter vindo do mundo das fada, aparece na cabana ao lado, ele deve fazer tudo o que puder para manter seu segredo oculto. Porque tudo não é como parece no mundo de Davy. Quando a verdade vier à tona, seu amor poderá atravessar décadas ou será

que se perderá no tempo?

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Ola Said - Rosane Ribeiro

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