escrava de sangue - venenos imortais - livro 1 - verona wynter

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ESCRAVA DE

Sangue

VERONA WYNTER 2015

Todos os direitos reservados © Copyright Maio de 2015 – VERONA WYNTER

Texto originalmente publicado no WidBook & Wattpad, sem revisão (apenas da autora). 2015 Impresso no Brasil Direitos à Autora

Para mais informações sobre a Série Venenos Imortais: www.marianalivros.wordpress.com www.facebook.com/groups/venenosimortais/

Sumário CAPÍTULO 01 CAPÍTULO 02 CAPÍTULO 03 CAPÍTULO 04 CAPÍTULO 05 CAPÍTULO 06 CAPÍTULO 07 CAPÍTULO 08 CAPÍTULO 09 CAPÍTULO 10 CAPÍTULO 11 CAPÍTULO 12 CAPÍTULO 13 CAPÍTULO 14 CAPÍTULO 15 CAPÍTULO 16 CAPÍTULO 17 CAPÍTULO 18 CAPÍTULO 19 CAPÍTULO 20 CAPÍTULO 21 CAPÍTULO 22 CAPÍTULO 23 CAPÍTULO 24 CAPÍTULO 25 CAPÍTULO 26 CAPÍTULO 27 CAPÍTULO 28 CAPÍTULO 29 CAPÍTULO 30 CAPÍTULO 31 CAPÍTULO 32 CAPÍTULO 33 CAPÍTULO 34 CAPÍTULO 35 CAPÍTULO 36 CAPÍTULO 37 CAPÍTULO 38 CAPÍTULO 39 CAPÍTULO 40 CAPÍTULO 41 CAPÍTULO 42 CAPÍTULO 43 CAPÍTULO 44 CAPÍTULO 45

CAPÍTULO 46

CAPÍTULO 01

Escassez As pessoas começaram a correr e gritar antes que eu pudesse perceber o que estava acontecendo. Senti uma vibração estranha debaixo dos meus pés. Um ruído ultrapassou o som que saía dos meus fones de ouvido, como um avião que voa baixo demais. Levantei a cabeça, os fios castanhos e enrolados voaram com a força do vento, tapando a minha visão. Segurei os cabelos e vi o que parecia uma cena de um filme de ficção científica: uma construção circular de metal branco voando baixo, atirando feixes de luzes multicores. Eu soube naquele instante que não era um sonho, algo terrível estava mesmo acontecendo, algo que ninguém acreditava ser possível: o mundo tal como conhecemos estava sendo invadido. Era o apocalipse. — Mãe! — Eu fiquei em pé, puxando os fones e procurando onde estava minha família. Avistei minha mãe e sua cabeleira loiro trigo de longe. Seu excêntrico vestido amarelo ouro flamulando com o vento, cobrindo parte da visão que eu tinha de Johin, meu irmão mais novo de dois anos. Corri até eles, alarmada, meu coração batendo forte e assustado. Mamãe estava com os olhos verdes arregalados de medo, travada. O carrinho vermelho de Johin andava sozinho sendo arrastado pelo vento. Puxei meu irmão do chão, enlaçando sua barriguinha gorducha. Johin e minha mãe eram parecidos, cabelos cacheados loiros, olhos verdes acinzentados e ambos ficaram tão assustados que não foram capazes de se mover. Nunca fui destemida nem corajosa, era o tipo de garota que berrava agudo caso visse uma barata, mas naquele dia, não sei, algo em mim funcionou diferente. Uma espécie de instinto de sobrevivência. Enquanto as pessoas corriam desesperadas sem saber para onde ir, tracei uma rota de fuga que me levasse para longe da confusão e dos disparos luminosos. Foi como estar em uma cena de um filme de guerra espacial, mas eu não queria ser daqueles figurantes que explodem e saem voando nos cantos da tela. — Vamos sair daqui! — Gritei carregando meu irmão. Minha mãe andou pela grama com dificuldade, deu uma parada e eu me virei em tempo de vê-la tirar os saltos e sair correndo com eles nas mãos. Senti as mãos dela em minhas costas. Mamãe sempre foi muito protetora. — Por ali! — Minha tia Lilane, tão loira quanto minha mãe e incrivelmente parecida, apontou uma escadaria, as pessoas iam por lá. Ela, minha prima Nytacha e meu tio Donovan estavam passando as férias em nossa cidade. — Não. — Tomei outro caminho. Algo dentro de mim gritava em alerta e ao mesmo tempo me acalmava, concedendo-me a incrível habilidade de pensar direito ao invés de agir por impulso. Eu vi uma rota mais segura: subindo o morro. — Vamos por ali! Mamãe não discutiu. Talvez para ela qualquer lugar estivesse bom, desde que saíssemos

do parque. Meu tio agarrou a mão de minha prima e a puxou para o mesmo caminho que eu. Corri carregando Johin. Ele estava com o rosto vermelho, a boca como uma meia lua para baixo chorando assustado. Mamãe pisou numa pedra, machucando o pé. Parei para esperá-la e ela gritou, me mandando seguir. Minha tia agarrou no meu braço, puxando-me. Vi minha mãe curvar-se e colocar a mão no pé. Pouco antes de chegarmos ao topo do morro, olhamos para trás atraídas por um forte barulho. A escadaria que não subimos estava sendo atacada, algo havia explodido bem ao meio criando um buraco. As pessoas gritavam. Dei graças a Deus por não estar lá. Minha mãe nos alcançou e ordenou que não olhássemos para trás. Ela tomou Johin dos meus braços e continuamos a subir. Foi extremamente difícil para ela, sem sapatos. Minha tia estava de sandálias de praia, shorts e uma blusinha esvoaçante. Meu tio de bermuda e regata. Era um dia normal, em família. Para mim e para Nytacha, que tinha a minha idade, foi mais fácil: estávamos de tênis, calça jeans e camiseta. Um grupo de homens estava na nossa frente, correndo mais depressa do que nossas pernas podiam ir. Tio Donovan puxou meu irmão do colo de minha mãe, ajudando-a, finalmente. Vi os bracinhos de Johin agarrados no vestido amarelo, como se estivessem sendo arrancados à força. Mamãe colocou a mão em sua cabeça, por cima do capuz do Batman. No topo do morro vimos que não tinha saída: muitas naves brancas e circulares estavam explodindo lugares e coisas, a cidade estava em pânico, havia focos de incêndio. Helicópteros da polícia e jatos da aeronáutica já riscavam o céu e tentavam uma defesa. Um deles foi atingido por um feixe luminoso azul, rodopiou e caiu no meio do parque, em cima de pessoas e de obras de arte. — Jaylee! Venha aqui. — Minha mãe me gritou, eu percebi que ela já estava adiante, no limite do morro, onde havia um grande barranco que dava para o fundo de alguns prédios. — Vamos pular! Tive medo quando olhei para baixo. Vertigem, quando vi a distância que eu teria que cair. Os barulhos se intensificaram e eu percebi, bem ali, que eu havia perdido tudo. ● ● ● Acordei assustada e empurrei o lençol fino que cobria o meu corpo. A luz alaranjada da manhã entrava pelas frestas da janela anunciando mais um dia no inferno conhecido como Torre Bawarrod. Quando eu e minha família nos abrigamos em um dos prédios próximos ao barranco, era para ser um esconderijo, mas acabou se transformando em nossa prisão. — Beba isso, Anneth. — Vejo a silhueta de minha tia Lilane curvada sobre o colchão no qual dormia minha mãe, os cabelos presos em uma trança dourada e comprida arrastavam as pontinhas no chão. — Beba tudo. — Mãe? Tia? O que houve? — Espanto o lençol e me sento, usando uma camiseta branca com manchas de café que tirei do lixo dos nobres há um ano atrás para usar de camisola. Estranho sua presença, já que minha tia dificilmente entrava no nosso apartamento, a não ser quando era para partilhar alguma comida que mal sobrava em sua casa. Por cima do ombro, tento enxergar minha mãe, mas tudo o que vejo é que tia Lilane trouxe um suco de

acerola para ela, desses de caixinha. — Não se preocupe, Jaylee. — Minha tia fala suavemente, virando um pouco a cabeça para mim. Apesar de sua voz estar tenra, seus olhos estão preocupados e as sobrancelhas claras se juntam enrugando a testa. — Sua mãe só está um pouco cansada. Vá se trocar, você tem que ir à lavanderia trabalhar. Confiro rapidamente Johin, deitado de bruços, ainda dormindo sobre meus pés. Nós dividimos o mesmo colchão e moramos agora em um pequeno apartamento, com a sorte de contarmos com um banheiro privativo e uma pequena área para cozinha. Regalias que minha mãe conseguiu com seu trabalho árduo. — É anemia de novo? — Um arrepio percorre minha espinha. — Não faça perguntas, vá se arrumar. Você sabe o que acontece se você se atrasar. — Tia Lilane passa a ordem com a voz dura. Fico em pé, tendo agora uma ampla visão de mamãe deitada, puxando suco pelo canudinho. Minha tia segura a caixinha para ela. Os braços estão cheios de mordidas dos sanguessugas e ela ainda usa o vestido de seda azul celeste, seu uniforme de trabalho. Tento não observar tanto quanto minha curiosidade deseja. Caminho até o banheiro e troco a camisola por meu uniforme de trabalho: calça jeans e uma regata roxa com um furo na barra. Precisarei costurar minha roupa depois, mamãe disse que faria quando voltasse do trabalho, mas pelo visto adoeceu. Encaro meu reflexo no espelho. A visão que eu tenho nada se parece com a memória que tenho de mim na época em que eu era feliz, normal, ia para a escola, paquerava os meninos no pátio e ficava a tarde toda vendo desenho animado e cuidando de meu irmão. Após três anos vivendo na Torre Bawarrod, eu já devia ter me acostumado com meu rosto magro e cansado. Abro a torneira. A água é escassa, cai pouca, mas o suficiente para eu me lavar no rosto e nas axilas. Escovo os dentes usando pouca pasta, passo uma escova pelos cabelos e calço meias grossas e galochas amarelas. Hoje em dia, posso considerar uma benção ter sapatos tão resistentes para calçar, mesmo que antigamente eu considerasse esse tipo de calçado algo fora de moda. Começamos a valorizar coisas diferentes quando perdemos a liberdade e o dinheiro. — Estou indo. — Passo por minha tia. — Tchau, Jay! — Johin acena, segurando seu copo e tomando leite. Minha tia ao seu lado, acariciando o seu cabelo. Mamãe está dormindo. Não ouso dizer nada, apenas aceno para meu irmão e abro a porta. — Meu Deus, Jay, vamos nos atrasar. — Nytacha me espera encostada na parede do corredor e me lança o melhor olhar repreendedor que ela consegue fazer. Não é muito. Nytacha é o tipo de garota suave, com rostinho de anjo. Ela puxou sua mãe em todos os traços: cabelos cor de trigo enrolados, olhos verdes como o mar e um sorriso bonito capaz de encantar todos os rapazes de Bawarrod. É um problema sério dependendo do setor, meu tio não a deixa caminhar sozinha pela Torre. — Desculpe. — Dou de ombros. Fito seu bracelete posicionado no braço direito, um pouco acima do cotovelo. É um simples bracelete prateado, liso. Tenho um igual. Representa quem somos: filhas das doadoras de sangue. Basicamente, nossos pais são comidas de vampiros.

Ah, sim, vampiros! Descobrimos com a invasão alienígena que não éramos os únicos habitantes do planeta. Enquanto nossas armas de fogo e bombas atômicas se provaram inúteis contra os aliens, os vampiros possuíam uma arma secreta capaz de dizimá-los: magia. Infelizmente, para um vampiro, usar magia acaba com sua energia vital e dependendo do tanto de seu esforço, ele poderá morrer caso não se alimente de sangue humano. Eis a equação que nos permite viver em total harmonia (ou quase) com os vampiros hoje em dia: nós somos comida! Podemos viver em suas casas como seus criados enquanto os servimos, até que fatidicamente morreremos, afinal, ao contrário deles, somos mortais. Ao mesmo tempo, eles precisam de nós para sua própria sobrevivência e cuidam para que continuemos vivos, desde que possamos servir de alimento a eles. Esse é o principal motivo pelo qual a minha família está tão entregue à desgraça: mamãe é a única doadora com um certificado entre nós, seu sangue costumava ser valorizado, mas três anos de doações acabaram com sua saúde e agora ela não consegue ceder tanto quanto antes, podendo fazer uma doação com muito esforço. Os vampiros pagam pelo tanto que você doa e pelo seu tipo sanguíneo. Ter doenças como hepatite, tiram você do páreo. Ouvi dizer que uma família inteira foi abandonada do lado de fora dos muros da Torre à própria sorte quando contraiu uma doença dessas. Ano passado, quando meu irmão contraiu pneumonia, nosso maior medo era o de ser expulso, mas mamãe buscou médicos e remédios para ele melhorar. Infelizmente, as contas ficaram pesadas, exigindo mais doações. Depois que mamãe adoeceu, as contas ficaram apertadas e começamos a vender tudo o que tínhamos. Eu não sei como vamos fazer agora, o que pagam na lavanderia é muito menos do que precisamos e Johin ainda não tem idade para trabalhar. Pagar o aluguel é tão importante quanto comer, às vezes mais. Sem um lugar para ficar encontraremos a morte certa dentro do estômago de um alienígena, é o que dizem. — Bom dia, Zhatit! — A voz suave de Nytacha corta meus pensamentos. Ela acena para um dos guardas reais, um vampiro, que está todo coberto por uma armadura negra e um capacete. Os vampiros não falam conosco, normalmente, mas Zhatit sempre acena com a cabeça quando vê Nytacha passar, não sei até que ponto ele faz isso por simpatia ou com segundas ou terceiras intenções, pensando em cravar as presas nela; mas outro dia, Nytacha ganhou uma cesta de frutas e advinha quem mandou? Pois é, Zhatit. Acho que ele está demarcando território e quando minha tia Lilane liberar Nytacha para doações de sangue, ele será o primeiro da fila. — Eu não sei como você sabe que é ele. — Murmuro cobrindo a boca com a mão, no instante em que passamos pela porta da lavanderia. — É muito simples. — Nytacha abre um sorriso. O cheiro de sabão cutuca minhas narinas de forma incômoda. Um ardor simples, que dá vontade de espirrar, mas não causa o espirro em si. Muitos jovens da nossa idade trabalham por aqui, há bastante roupas para lavar. — Ela deve reconhecer o volume no meio das pernas dele. — Byrn passa os braços nos meus ombros e nos de Nytacha, abraçando-nos ao mesmo tempo. Ela é uma garota mais alta e mais robusta do que nós.

— Eu nunca faria tal coisa! — Nytacha fica com o rosto todo vermelho de vergonha e se adianta para o tanque. — Byrn, não a provoque assim! — Coloco as duas mãos na cintura e analiso minha melhor amiga. Ela tem os cabelos bem escuros e curtos como os de um menino. No pescoço, uma gargantilha de renda cobre o que eu acredito ser mais uma mordida de seu mestre. No início do ano Byrn começou a doar sangue para ajudar nas despesas de casa, ela faz isso uma vez por mês. É o tempo médio saudável para alguém conseguir doar sangue. Noto que sua calça jeans é nova, com certeza ela está aproveitando bem o dinheiro que recebe. — Só estava brincando. Sei que sua prima ainda é intacta. — Não sei dizer se você está falando da virgindade ou do fato de que ela não fez nenhuma doação. — Ah, não tem muita diferença, doar sangue é como fazer sexo. Você até tem um orgasmo! — Byrn dá uma larga risada divertindo-se, os músculos do pescoço forçam-se contra a renda negra. — Você devia tentar um dia desses. — Minha mãe simplesmente não me permite. — Eu me aproximo do tanque, Byrn fica do meu lado, foi assim que nos tornamos amigas. Abro a torneira e deixo a água gelada e límpida jorrar até encher. O trabalho na lavanderia é muito leve. Nada como cortar cabeças de galinhas, arar a terra, temperar ferro para armas ou, ainda, faxinar os aposentos dos nobres. Ficamos com as mãos cheirosas e macias, limpas e digamos que alguns de nós aproveitam para tomar um belo banho, já que em nossas casas temos muito menos água do que as torneiras daqui. — Se ela continuar doente, talvez você não tenha muita escolha. — Eu sei. — Puxo uma calça dourada do cesto de roupa e afundo na água do tanque. — Além do mais, você já tem idade para ser uma doadora, é besteira não começar logo. Pagam mais quando você é nova. — Pois sempre que digo que quero ajudar, ela diz que sou nova demais para isso. Já foi difícil convencê-la de me deixar vir para a lavanderia. — Olhe para isso, queria ter um vestido assim. Aposto que este é de Lady Lucretia! — Byrn se curva por cima do tanque, puxando um vestido negro e vermelho do cesto. Analiso o vestido, bordado com fios dourados e renda, um pano impecável. Até consigo imaginar Lady Lucretia vestindo-o, mas não sei se cabe nela. — Os seios dela não cabem ai! — Dou uma risada. — Ela amassa, para ficarem mais redondos aqui em cima. Mais sexy. — Byrn passa as mãos em seus seios, simbolizando. — Uma vez eu a vi no jardim à noite durante um festival no salão de festas e preciso dizer que ela é linda como um anjo. Pálida como a lua, cabelos negros como o céu da noite e os olhos brilhantes como as estrelas! Byrn é uma entusiasta, antes de nossa vida mudar, ela era viciada em Crepúsculo. — Dizem que ela vai se casar em breve. — Ederlon se intromete na nossa conversa. Ele está no tanque ao lado de Byrn, é um rapaz alto, porém magro para trabalhos braçais e foi designado para a lavanderia. Ele é um pouco mais novo que eu, mas bem mais alto. — Às vezes, me sinto de volta aos castelos feudais. Vampiros tem esse lance todo estranho e antigo de reis, rainhas e princesas. — Resfolego, puxando a calça dourada para cima

e para baixo na água ensaboada. — Eu acho lindo. — Byrn suspira — Mas pelo que ouvi dizer, Rei Bawarrod quer casála com o general. Tanto eu quanto Ederlon paramos com nossos afazeres e lançamos a mesma expressão de nojo para Byrn. — Com o “Glutão”? — Ederlon é o único com coragem de verbalizar todo o seu horror. Seus olhos castanhos escuros se abrem bastante e seu nariz comprido acentua o momento cômico. — É, com o Glutão. Uma vez, lavei uma de suas fardas depois de um festival e estava muito suja de sangue, entre outras coisas, uma lambança. “Glutão” é o apelido que o general tem por essas bandas, dizem que ele come como um porco e mata todos os seus escravos, sugando-os até a última gota. A descrição se assemelha a de um monstro sem autocontrole. — Coitada. — Ederlon suspira. — Menos conversa e mais trabalho! — A supervisora da lavanderia logo chama nossa atenção. Ela é humana como todos nós, mas trabalha em um cargo maior já que seu marido é escravo de sangue de um dos nobres. Acho que vocês já entenderam como o fator sangue é importante por aqui. Minha mãe costumava servir a dama de honra da rainha, mas mais recentemente ela doa aleatoriamente para os guardas, se tiver sorte. Pagam pouco, seu sangue é ralo. Depois da bronca, trabalhamos como animais. Meus dedos ficam enrugados e meus braços cansados. Quando meus ombros não aguentam mais, ouvimos o gongo para o intervalo e nos juntamos todos no jardim para comer. Ao contrário dos vampiros, podemos ver a luz solar e fazemos isso bastante, para nos lembrar o tempo todo que somos diferente deles. Servem marmitas para nós, arroz e frango. É a única hora em que eu consigo comer alguma coisa. Enrolo a coxa de frango num guardanapo e guardo no meu bolso esquerdo bem escondida. Não pretendo comer depois, mas levá-la para Johin e minha mãe. — Aqui, peguei para você. — No meu campo de visão entra uma suculenta maçã bem vermelha.

CAPÍTULO 02

Decisão — Oba! — Byrn estica a mão para pegar a minha suculenta maçã. Em pé na minha frente, fazendo sombra no sol, Lyek ergue a fruta sobre seus cabelos negros, desviando-se dos dedos longos de Byrn. Ele é o mecânico e um dos meus amigos mais antigos aqui dentro. — Não seja impertinente, Byrn! É para Jaylee. A mãe dela está precisando. — Sua voz suave arranha meus ouvidos e faz meu coração acelerar. — Obrigada. Nem sei como agradecer. — Estendo as mãos com as palmas para cima e ele me dá a maçã. Minhas bochechas pegam fogo! — Oh, eu posso pensar em muitas maneiras. — Byrn debocha, me dando duas cotoveladinhas de leve. — Não precisa agradecer, só não deixe ninguém ver. Tirei da cozinha, enquanto minha mãe estava ocupada. — Lyek se joga na grama, apoiando o corpo pelo cotovelo. Ele é um rapaz bonito, alto e forte. Sei que não sou a única garota da colônia que repara em sua beleza e também já o conheço o suficiente para saber que não há um interesse por trás da maçã, caso você esteja imaginando isso. Lyek simplesmente ajuda todo mundo que pode, é um rapaz de bom coração e uma das poucas pessoas a nos fazer acreditar na esperança de um futuro justo novamente. — Obrigada. — Fito a maçã e dou graças a Deus por ter conseguido mais alguma coisa hoje. Posso ficar sem jantar, mas minha mãe e meu irmão precisam ter o que comer. Nytacha ataca o seu frango com voracidade e Lyek abre sua marmita, destampando-a. O cheiro de frango atiça minha fome, mas me contenho. Enquanto meus amigos terminam de comer, guardo a maçã no meu sutiã, como um terceiro peito. Se nos pegam roubando comida, seremos açoitados. — Amanhã à noite haverá um baile, muitos nobres virão de outros castelos. — Lyek avisa. Ele é sempre informado, pois acaba tendo que fazer turno à noite para guardar os carros. — Mas que droga! E eu doei sangue ontem! — Byrn bate a mão na testa. Minha mãe também. O desespero se abate sobre mim. Mais uma chance desperdiçada. Eu a ouvirei reclamar de suas escolhas. Mamãe se cobra demais por não poder dar a mim e a meu irmão uma vida mais decente. Se ao menos eu pudesse participar do festival como doadora... — Como faz para doar sangue? — Pergunto. — Você tá pensando em doar? — Os olhos verdes de Nytacha recaem sobre mim e eu fico roxa. — Talvez eu não tenha outra escolha e preciso de dinheiro. — Abaixo a cabeça, abraçando minhas pernas e me encolhendo. Repouso a testa nos meus joelhos.

— Por que não tenta uma vaga em outro lugar antes? — Lyek segura na minha mão. Ergo um pouco a cabeça, olhando-o. Seus olhos azuis me fitam com intensidade em todas as suas nuances. Acabo fixando os olhos em uma mancha de graxa em seu queixo protuberante. — Onde tem vaga? — Carregada de interesse, a voz de Ederlon soa mais fina. Todos sempre estamos interessados em ganhar mais. — Tá sabendo de algo? — Não. Todos murcham, com a falta de uma vaga melhor que a lavanderia. — Só queria dizer que Jaylee pode tentar outra opção antes de pensar em doar sangue. — Ele acrescenta com a voz entristecida, os olhos na marmita. Fica um silêncio esquisito depois disso. Todos nós sabemos que Lyek não está se referindo exatamente à mim, mas à sua irmã Elenore. Ela não resistiu ao primeiro ano de doação. É muito comum jovens adoecerem, ou descobrirem algum tipo de doença… só espero que esse não seja o meu destino, ou não terá adiantado de nada. Fico observando em como Lyek segura errado o garfo, suas mãos grandes e pesadas estão sujas, o extremo oposto das minhas. — Não existe a opção de não doar. — Ederlon de repente corta o silêncio. — É assim que é a Lei. Se ninguém da família puder doar, terá que ser você, Jay. — Eu sei. — Suspiro. Tenho pensado nisso ultimamente e já estou bem exausta de ver mamãe pálida e quase morrendo por tentar salvar a família da miséria. Sou quase adulta e devia fazer algo para ajudar minha família. Mais uma vez soa o sino e é hora de voltarmos para o trabalho. Nytacha rói o osso rapidamente, Lyek engole o arroz. Fico em pé, bato a terra de minhas roupas e confiro se todas as comidas estão bem escondidas. Nytacha é a primeira a se encaminhar de volta para a lavanderia, Byrn é a segunda. — Até amanhã! — Ederlon acena, se afastando. — Até. — Eu faço menção de segui-lo. — Espere, Jay. — Lyek me segura no braço. — O que foi? — Giro e o fico encarando, seu rosto parece sério, preocupado. — Estava guardando para levar para casa, mas acho que você precisa mais que eu. — Com um sorriso, ele remexe no bolso de trás da calça e retira uma cenoura. — Tem certeza? Não quero abusar e você já fez bastante por mim hoje. — Guarde na perna. — Ele pega a minha mão e me faz segurar a cenoura, insistindo para que fique comigo. Não é uma cenoura grande e já está sem as folhas, mas acredite, não vemos cenouras sempre e qualquer comida a mais, na minha atual situação é bom. A ajuda de amigos nos momentos difíceis é uma benção, meus amigos são meus anjos da guarda. — Obrigada! — Tenho vontade de chorar. A fome me deixa emotiva, acho. Lyek limpa a lágrima que teima em rolar pela minha bochecha com os dedos, segura o meu rosto e me dá um beijo na testa. — Cuide-se, Jay. — Você também. — E por fim, eu me viro, caminhando até Byrn, que ainda me espera

na metade do jardim. — Eu não sei, acho que Lyek gosta de você. — Byrn cruza os braços e estreita bem os olhos, analisando. Por cima do ombro, vejo Lyek correr até as escadas que dão para a garagem do prédio, onde fica a oficina e todos os carros dos nobres. Ele acena com um sorriso encantador para uma garota da cozinha e desce. — Somos como irmãos. — Nego. Tantas meninas mais bonitas e melhores de vida por aí, ele não se interessaria por mim. O que Lyek tem é pena. Eu me abaixo para guardar a cenoura dentro da meia, na minha canela. Fico em pé e remexo os pés, torcendo para que ela fique bem segura. — Sei não. — Byrn balança os cabelos curtinhos de um lado para o outro em um grande “não”. — Você não acha ele um pedaço de mau caminho? — Lyek é um gato, mas ele olha para mim como a irmãzinha faminta que ele precisa salvar. Você sabe, transferindo o trauma de Elenore para mim. — Começo a caminhar de volta para a lavanderia. — Talvez ele pense em te pedir em casamento! Seria uma forma de te salvar da fome e da doação de sangue. — Ela vem atrás animada com suas teorias malucas. — Eu teria que abandonar minha mãe e meu irmão à própria sorte. Você realmente acha que eu faria algo assim? — Cruzo os braços ofendida. Byrn resfolega e coloca a mão comprida em meu ombros esquerdo. Ela joga seus olhos castanhos com firmeza em cima de mim: — Escute aqui, nem pense que você está sozinha, ok? Se quiser, eu vou com você até a seção de doação e ajudo a preencher o formulário. Até seguro a sua mão quando você for levar a injeção para coleta de sangue. — Coleta? — Viro para ela em susto. — Os exames iniciais. — Byrn explica pacientemente. — Para saber se você é saudável o suficiente para doar, essas coisas. Sem isso, você não consegue o certificado. — Tudo bem. — Eu concordo. — Depois do jantar, me encontra na Ala B. — Combinado. ● ● ● Na hora de estender as roupas que lavei no grande varal do último andar, uma fumaça negra saindo da chaminé principal do prédio chama a minha atenção. Paro com um pregador na boca, segurando um vestido azul turquesa na mão, já pensando que os ataques alienígenas alcançaram a fronteira de Bawarrod. — Morreu alguém. — Ederlon olha para o mesmo lugar que eu. — Quem você acha que foi dessa vez? — Felix. — Uma garota, Sarah, também da lavanderia que explica. Ela é bem magrinha, tem cabelos ruivos e olheiras pesadas. — Era meu vizinho. Os médicos deram a morte dele hoje pela manhã. — Não era escravo do Glutão? — Nytacha se estica por entre um lençol. — Ele mesmo.

— Quanto tempo ele durou? — Ederlon pergunta. — Um ano. Talvez um pouco mais. Deixou uma fortuna para a família. — Sarah balança a cabeça afirmativamente. — O Glutão paga muito bem. — Mas a que preço? Não vale a pena perder a vida por dinheiro. — Nytacha não se conforma. Eu não digo nada e continuo estendendo o vestido, mas a verdade é que já penso diferente. Se você está sem saída e já está fadado a morte de um jeito ou de outro, é grandioso se sacrificar para salvar aqueles que você ama. Pensando nisso, faço uma silenciosa oração para que a alma de Felix descanse em paz. ● ● ● Entro em casa e as coisas estão um caos. Johin está chorando de fome e eu o silencio com a coxa de frango. O aperto no meu coração me dá mais certeza ainda de que preciso me inscrever na seção de doação. Não deve ser tão ruim assim, o Glutão é mesmo um cara problemático, mas acho que apenas os desesperados correm até ele, há outras opções: os guardas do rei, as damas de companhia da rainha, os artistas e especialmente os novos hóspedes, que pagam bem para "jantar fora". Com um certificado de doação, posso me oferecer do lado de fora da festa. Cozinho a cenoura com um pouco de água, coloco no prato com um pouco de arroz que tia Lilane trouxe e entrego junto com a maçã para minha mãe, que está sentada na cama, observando Johin brincar com um dos poucos brinquedos que não vendemos. Volto para a cozinha, bebo a água em que cozinhei a cenoura ainda quente e retorno para a sala. Agora, Johin ganha garfadas do jantar da minha mãe. Sem dizer nada, caminho novamente até a porta. Tenho que me encontrar com Byrn na Ala B. É nesse momento que escuto a fraca voz de minha mãe romper o silêncio do apartamento: — Espere, onde você vai? Acabou de chegar. Com a mão na maçaneta, permaneço de costas. — Vou encontrar Byrn na Ala B antes que anoiteça. Vou até a Seção de Doação preencher um formulário. — Não, Jaylee! — Mamãe protesta. — Como não, mãe? — Eu viro para ela, cruzando os braços. — Você está péssima, não vou esperar a situação se agravar. Você ainda tem que criar Johin. — Vem aqui minha filha, vamos conversar antes de tomar uma decisão precipitada dessas. — Vejo-a enfraquecida, sem conseguir se levantar, a mão erguida. — Conversar o quê? Já vendemos tudo o que tínhamos, o que sobrou? — Podemos deixar o apartamento para outra família, alguns pagam bem pela oportunidade. — Ela comprime os lábios ressecados. Posso ver as saliências de seu rosto como crateras na lua, a magreza acabou com sua beleza. — E para onde vamos? — Dramática, coloco as mãos para cima. — Você e Johin iriam para casa de sua tia e eu arrumaria alguém. Ninguém se interessaria por uma mulher moribunda que não pode ajudar e é apenas

mais uma boca para ser alimentada, não faz sentido. A impressão que tenho é que ela vai morrer e está se preparando para isso. No que depender de mim, isso não acontecerá tão cedo. — Amanhã os nobres de outros castelos virão. — Em um fôlego só, solto a informação. Os olhos dela se enchem de lágrimas, percebendo que desperdiçou sua doação ontem. Isso me parte o coração. — Você já fez demais, mãe. Agora é a minha vez. — Jaylee! — Ela me chama e eu viro as costas, abrindo a porta.

CAPÍTULO 03

Vantagem Apesar de não haver janelas abertas no Setor B, a penumbra que encobre o local é cortada por pequenos feixes de luz que escapam pelas frestas. Não há muitas lâmpadas funcionando pelo Setor B, mas desconfio que a escuridão não é problema para vampiros. Passos explodem contra as paredes do corredor. Byrn puxa o meu braço bruscamente para dar passagem ao batalhão de cinco soldados com armaduras negras e capacetes, segurando suas armas, que marcha ritmicamente. Meu coração dá um salto diante da autoridade dos soldados no instante em que os percebo. A simples presença deles é alarmante, como se representassem perigo. Não tenho medo dos vampiros, ninguém tem. Eles cuidam de nós e protegem o que nos é precioso: nossas famílias. Apenas não me sinto confortável quando vejo um batalhão, receio que signifique uma movimentação da defesa e que alienígenas estejam por perto, atacando locais próximos de Bawarrod. Byrn e eu ficamos paradas, abaixamos um pouco nossas cabeças em sinal de subordinação e esperamos que eles passem por nós. O soldado da frente se difere um pouco dos outros e percebo que sua armadura possui uma protuberância maior na região do tórax. Seios. É uma mulher. Essa é a primeira vez que vejo uma mulher entre soldados. Sabe, vampiros antigamente moviam-se apenas durante a noite e rapidamente foram apelidados de demônios, não apenas por seus hábitos notívagos, mas por seus olhos brilharem como os de animais predadores na escuridão. A luz solar era uma grande desvantagem para suas táticas, mas quando a guerra contra alienígenas se intensificou, o exército passou a usar essas armaduras que protegem não apenas dos danos da batalha, como também dos raios UV. Eles são ultrassensíveis à incidência solar. – Os soldados são os que mais precisam de sangue, se você tiver o sangue forte, pagarão bem. – Byrn cochicha. – Mesmo? – Pergunto quase sem voz só de imaginar que um desses cinco soldados possa querer meu sangue. – Eles usam energia vital em suas magias, precisam de sangue para repor ou morrerão. – Ela ergue a cabeça e me puxa de volta para o corredor. O batalhão faz a curva virando à direita, todos juntos como robôs programados e sem identidade. – Basicamente dão suas vidas quando usam magia para nos proteger, nada mais justo do que darmos as nossas como gratidão. – Você acredita mesmo nisso? – Pergunto um pouco desconfiada. – Parece-me um pouco controverso. – Não há nada de muito controverso. – Byrn abre bem os olhos azuis com deslumbre. –

É uma troca de favores. – Somos escravos em condições precárias e eles vivem no luxo, como isso poderia ser uma troca? – É como um trabalho. Eles nos protegem, nós pagamos com sangue. – Para algo vital, o sangue é pouco valorizado por aqui. – Eles pagam muito pouco. Nessa equação, nossas vidas não valem nada. – Eles analisam o seu sangue e determinam em qual escala ele está, fazemos exames periódicos para determinar qual o preço justo e garantir a qualidade do sangue. É algo lógico. – Byrn dá de ombros enquanto caminhamos, virando no corredor à esquerda. Nossos passos são bem mais silenciosos que os que ouvimos quando o batalhão passou, mas minha galocha apita contra o assoalho. – Se são os vampiros que determinam o valor mínimo do quanto têm de nos pagar, é claro que nunca será justo. Eles sempre determinarão um valor que seja bom para eles, mesmo que seu sangue valha mais. – Ai, Jay! – Byrn coloca a mão na testa, rindo. – Você pensa cada coisa maluca. – Não é maluca! – Faço bico, emburrada. Desisto de provar meu ponto. Para mim parece claro que os vampiros controlam o sistema monetário e fazem o que querem com ele, determinando o valor do nosso sangue e da nossa mão de obra. Somos reféns disso. Ou entramos no esquema aceitando o valor imposto, ou seremos ostracizados. Não me parece muito justo! – De qualquer forma! – Byrn revira os olhos azuis e abana a mão, espantando minhas ideias. – Você já tem um vestido para amanhã? – Vestido?! — Entro em pânico e olho para Byrn com espanto. Ela faz que sim com um aceno de cabeça e um sorriso no rosto. – Eu mal tenho roupas limpas. – E aquele seu vestido roxo que você usou ano passado no Festival da Colheita? – Vendemos. – Balanço a cabeça de um lado para o outro. – Mamãe ficou anêmica e seu sangue perdeu valor, ela começou a doar menos e tínhamos que fazer algo para pagar as taxas de moradia antes que nos expulsassem. – Oh, Jay! – Byrn coloca as duas mãos na boca assustada. Suas sobrancelhas negras e grossas se comprimem quando ela percebe a minha real situação. – Por que não me disse que as coisas estavam tão críticas? – Ah, sei lá. Acho que agora que não temos mais o que vender, ficou crítica de verdade. – Comprimo os ombros e mordo a boca, soltando todo o ar dos meus pulmões em sinal de derrota. – Se eu não doar, mamãe pretende vender o apartamento para que eu e meu irmão possamos viver com a minha tia e tio, mas... Eles não aguentariam sustentar todos nós e eu acabaria tendo que doar ainda assim. – Droga, Jay, você devia ter me avisado! Por isso Lyek está te passando comida às escondidas, você não tem nem o que comer? – Está difícil, mas Nytacha ganhou uma cesta de frutas e dividiu conosco. Deu para segurar por uns dias. – Confesso desviando o olhar da minha amiga. – E tia Lilane tem dividido seu jantar. Você sabe, a lavanderia é um trabalho confortável, mas não dá muito dinheiro. – Isso é verdade. Bem, então você não tem tempo a perder. Tem que aproveitar os

nobres amanhã a noite e precisa do seu certificado para ser uma doadora! – Byrn começa a andar mais depressa. – A primeira doação é muito valiosa, esses vampiros adoram carne fresca; você tem que tirar o máximo proveito disso! – Como farei tal coisa? – Eu vou te ajudar! – Ela brada empinando o nariz fino. – Venha, é aqui que você faz sua inscrição. Byrn para na frente de uma porta de madeira sem qualquer identificação, eu nunca acharia esse lugar sem me perder. Respiro fundo e tomo coragem para me adiantar e abri-la. ● ● ● Preencho uma pilha de papéis no balcão. Byrn me ajuda a responder com paciência. São perguntas sobre tudo, desde minha alimentação aos hábitos de limpeza. Apesar de achar uma invasão à privacidade, procuro compreender que essas podem ser questões de saúde e que influenciem no valor do meu sangue. Valorizo todos os pontos. Junto todas as folhas, batendo na superfície do balcão para alinhar e me aproximo da mocinha sentada em uma cadeira de madeira. Ela é humana e ergue os olhos escuros na minha direção, interrompendo o lixar de unhas. – Terminou, meu bem? – Sim... Ahn... – Olho para seu crachá do setor e tento ler seu nome. – Arimá. – Pode esperar que logo virão chamá-la. – Ela pega as folhas da minha mão e joga por cima da mesa, olhando rapidamente. Dá uma carimbada e passa as folhas para uma pasta arquivo. Só então percebe que ainda estou ali parada na frente dela. – Posso fazer mais algum coisa por você? – Demora muito para sair o certificado? – Quarenta e oito horas. – Tudo isso?! – Essa não! Vejo os meus planos escorrerem por água abaixo. – Por que tanto tempo? Quando fiz o meu ficava pronto no mesmo dia! – Byrn desencosta da parede e se aproxima. – Impossível. O avaliador não faz exames perto de festas da nobreza. – Ou seja, eles impedem que novos doadores vendam sangue para os de fora? – Cruzo os braços. Como isso poderia ser justo? Claro que não é! – Você vai ter que esperar. – Arimá suspira. Byrn murcha os ombros. Descruzo os braços, derrotada. – Ela não pode esperar, está numa situação crítica. – Byrn estreita os olhos azuis e eu olho para ela em pânico, num silencioso pedido para que ela pare de dar detalhes. Afinal, pode acabar dando a ideia errada de que eu topo qualquer negócio, mesmo um preço abaixo do mercado. Claro que eu toparia, estou desesperada, mas não preciso anunciar! – Eu queria ajudar, mas não posso fazer nada. – Arimá volta a lixar as unhas. De repente ela para e olha para mim, como se lembrasse só agora de algo. – A menos que... – "A menos quê"? – Byrn se inclina na mesa. – A menos que você se inscreva para uma vaga fixa, não como autônoma. – Arimá solta a lixa em cima da mesa e remexe em suas gavetas. Ela pega uma pilha de folhas amarelas.

– Um contrato fixo? Como funciona? – Já me interesso. Se houver qualquer chance de eu conseguir esse certificado hoje, vou tentar. – Você receberá um salário mensal e doará apenas para quem te contratou até o fim da sua vida. – Ela explica. – Você não vai poder se oferecer para os nobres como autônoma, mas tem garantia mensal de pagamento. – Uau, isso parece ótimo! – Byrn se anima e um sorriso enfeita o seu rosto. – Me dê uma ficha dessas, então! – Ah, só tem uma vaga atualmente. – Arimá estende a pilha de papel amarelo. – É um bom negócio, mas é relativo, vai depender de quanto tempo você se mantém saudável para doar. Alguns contratantes são mais exigentes que os outros. – Ainda assim me parece um bom negócio. – Byrn pega a pilha. Até desanimo um pouco e abaixo a cabeça, mas tento não ser pessimista. A festa dos nobres não é a primeira e nem a última, eu posso tentar de novo da próxima vez, vou me contentar em fazer a primeira doação para algum soldado. – Melhor ser você, Jay. – As folhas amarelas alcançam o meu campo de visão. Levanto a cabeça e Byrn está sorrindo. – Quê? Tem certeza? – Absoluta. Você precisa mais que eu, quando houver mais alguma vaga, venho me candidatar. – Ela dá de ombros. – É sua grande chance, os nobres pagam mais que os soldados e o pagamento é garantido. – Será que não é uma armadilha? – Ergo uma sobrancelha desconfiada. Arimá dá uma risadinha enquanto volta a lixar as unhas. – Você sabe como é lá embaixo? Muitas pessoas balançam seus certificados na cara dos soldados e se oferecem é um verdadeiro leilão de sangue, mas quem oferece o melhor sangue pelo menor pagamento é sempre o preferido. – Ela explica como se debochasse da situação. Algo no jeito que ela diz, faz parecer como um antro de prostituição. – Se eu fosse escolher, certamente preferiria os fixos. – E por que você não se oferece para uma vaga então? – Indago. Arimá soa como uma vendedora, valorizando um produto a níveis irreais, mas desconfio quando o vendedor não usa o produto que vende. – Minha irmã tem um fixo há dois anos e o que pagam a ela dá para a família inteira. Não preciso doar, só trabalhar para justificar minha falta de doação. – Uau. – Byrn resfolega. Ela chacoalha as folhas amarelas. – Jay, não perca essa. Pode ser a solução da sua vida. É realmente uma boa proposta e se o que dizem é verdade, acho que não posso perder essa chance. Pego as folhas. – Certo. E para quem é a vaga? – São informações confidenciais. Não aparece no sistema. – Arimá lixa as unhas. – Imaginei que fosse. – Finjo chateação e me aproximo do balcão para preencher as folhas novamente. Na realidade, basta pensar um pouco: o contrato é vitalício, ninguém o abandona e provavelmente nem possa abandonar, dura enquanto você poder doar, enquanto você é saudável, não tem doenças ou enquanto é vivo. Pensando de forma lógica: qual foi o nobre que

recentemente perdeu um doador? Exatamente. O "Glutão". Um ano de doação não vai ser suficiente para tirar minha família da miséria, então precisarei dar um jeito de sobreviver mais tempo. O maior tempo possível. Agora entendo o que Byrn quis dizer com tirar a maior vantagem possível da primeira doação.

CAPÍTULO 04

Vestido Perfeito É difícil para uma garota que está passando necessidades financeiras graves se conformar com o tipo de luxo em que vive a família de Byrn. Ela, sua mãe e seu pai são doadores. O apartamento que eu entrei era duas vezes maior que o meu, a sala estava decorada e aconchegante, limpa, com moveis de madeira e carpete marrom cinzento. Estava silencioso e cheirava à produto de limpeza, uma das coisas mais difíceis de conseguir hoje em dia além de comida. Não fiquei muito tempo admirando a decoração meio étinica-africana da sala, Byrn logo me puxou direto para o seu quarto: com uma enorme cama de casa só para ela, um armário, uma penteadeira e uma pilha de livros sobre romances com vampiros. – Taram! – Byrn abre a porta de seu armário, um grande espelho retangular. O armário é de madeira compacta pintada de branco, como o resto dos móveis, as paredes amareladas, repleta de pôsters de revistas que podemos comprar dos vendedores viajantes na feira quinzenal do pátio central. – Escolha qual você quiser! Vou preparar um sanduíche, você deve estar faminta. Ouvi a palavra sanduíche e meu estômago se revirou ganhando vida. Fez um barulho audível e Byrn me olhou assustada. – Desculpe. – Coloquei as duas mãos na barriga. – Tomei só um caldo hoje no jantar. – Melhor fazer dois para você e mais uns para você levar para sua mãe e irmão. – Byrn caminhou até a porta e parou, olhando por cima do ombro para mim. – Ande logo! Quando eu voltar quero te ver vestida! – Obrigada por tudo, Byrn. – Não vá chorar agora! – Ela me lança uma piscadela e um sorriso, antes de sair. Respiro fundo tentando colocar as emoções no lugar e vasculho o armário de vestidos. Puxo o que chama atenção aos olhos, um vestido discreto e azul escuro. Tiro minhas galochas, a calça jeans surrada e a camiseta de manga curta. Escorrego para dentro do vestido. O pano é simples, mas ele é bem costurado, rente ao corpo, fica um pouco folgado no quadril. Viro para frente, encarando o espelho, fitando que meu ombro está sujo. Lambo o dedo para limpar. – Uau, você até que ficou uma gatinha! – Byrn chega com uma bandeja, dois sanduíches e um copo de leite. Fazem muitos meses desde a última vez que bebi leite, não me lembro o gosto. – Mas esse definitivamente não é o vestido perfeito para sua estreia! Vestido? Estou mais interessada no sanduíche! Byrn larga a bandeja em cima da cama e eu avanço nela, pegando o sanduiche e dando uma mordida enorme. O pão está macio, nada velho, tem manteiga, presunto e queijo! Que delícia! Alcanço o copo e dou um gole enquanto mastigo o sanduíche, comendo como uma desesperada. Bem, talvez eu esteja mesmo desesperada por comida.

– Você tem que causar uma boa impressão ou podem querer te substituir. Independente de ser homem ou mulher, eu sugiro um decote bem largo, para mostrar seus dotes. – Ela remexeu nos vestidos, procurando. – Eu adoraria saber qual é a família de nobres que você vai servir. – Como não sabe? – Pergunto de boca cheia, Byrn puxa um vestido digno de uma diva pop, preto com lantejulas prateadas e pano transparente. Acho um pouco demais para alguém como eu e faço uma careta. – Em um raciocício lógico, acho que é o Glutão. – O quê? – Ela abre bem os olhos claros em susto, mas rapidamente se recompõe. – Oh, tem razão, hoje teve o funeral… Mas não sei, normalmente levam dois a três dias para colocarem a vaga, deve ser outra. – Você não reparou que cancelaram as inscrições para tirar um certificado de doação bem hoje? É para forçar que a vaga seja preenchida, se fica óbvio que é ele, ninguém ia aceitar. – Dou de ombro e tiro as migalhas de cima da saia, comendo. Sem desperdícios! – E você sabendo disso, se inscreveu? Você é doida? O Glutão é um dos mais antigos nobres da cidade, deve ser um cara velho e nojento! Você tinha que esperar uma vaga boa como para a Rynbelech, ouvi que eles tem um filho jovem ou ainda, Bawarrod! Lady Lucretia pelo menos é uma gata! – Byrn me passa uma bronca, sua voz um pouco mais alterada do que o de costume, talvez até um pouco preocupada. – Era uma boa oportunidade e ele vai encostar os dentes em mim, não necessariamente iremos fazer sexo. Pode ser um velho nojento, não ligo. – Dou de ombros. É mentira, na verdade, eu ligo e estou aterrorizada com esse assunto, mas não com o fato dele ser um velho nojento e sim, porque dizem que ele tem péssimos hábitos alimentares. – E não acho que nobres passem a mão em suas escravas, os guardas devem ser safados. – E se ele passar a mão em você o que você vai fazer? – Byrn faz uma careta. – O que posso fazer se ele tentar? – Resfoleguei. – Ew, que nojo. – Byrn revira os olhos e coloca o vestido para dentro do armário, remexe mais e puxa outro, cor de pêssego. – Bem, então vamos vestir você de uma forma que o Glutão não tenha como passar as mãos velhas em você! Fico em pé e troco de vestido. A cor pêssego não me deixa muito a vontade, mas o que me incomoda mais é que, descendo de um ombro para os seios, tem uma manga bufante como o de uma cigana e a saia é muito volumosa, cheia de panos afofados e esconde a forma do meu corpo. – Hm, parece ótimo. – Balanço na frente do espelho como se estivesse dançando e Byrn dá uma risada. Vou para casa carregando a sacola de sanduíches e outra com o vestido. Atravesso os corredores andando rápido, para não acabar entrando em encrenca, mas paro quando de repente, escuto vozes. A ala onde ficam os apartamentos de Byrn é afastada da ala em que fica minha residência, são na verdade diversos prédios interligados compondo a grande torre, ao atravessar pelas passarelas, é possível ver grandes janelas, e é normal as pessoas irem até lá tomar um ar, conversar ou qualquer coisa. Começo a andar devagar, tentando não fazer barulho. Encosto contra a parede e estico a cabeça para espiar. Vejo apenas silhuetas do que parece ser um soldado do exército e uma menina, que não parece ser nobre, pois está de calça, botas e um casaco com capuz na cabeça.

Eles andam abraçados, o rapaz segura o capacete, no braço. Ela dá uma risadinha e eu derrubo a sacola no chão. Eles param de andar um pouco atraídos pelo barulho e a menina se encolhe, escondendo o rosto. Dois rapazes passam correndo por eles, se batendo sem querer e o capacete do rapaz escorrega de seu braço, caindo no chão. Faz um barulhão. Eu me abaixo e escondo o rosto com a sacola do vestido. Eles passam por mim, sem perceber. Acho que estão roubando. Fico em pé novamente e alcanço a sacola no chão. Olho para a passarela e agora o casal está perto da janela, o guarda, que ao invés de colocar ordem no lugar ou ver o que os meninos estavam fazendo, aperta a garota contra a parede. A impressão que dá é que eles estão se beijando, mas acredito que ele esteja encravando os dentes em seu pescoço, isso sim faria mais sentido. Eu não sei se é uma doação de sangue e se for, ela não deveria estar acontecendo na passarela e sim no pátio ou no jardim, perto do salão de festas, que aliás, deve estar fechado. Acho que o soldado deve estar faminto e veio atrás de sua presa. Será que a menina está doando contra sua vontade? Quando penso que estou certa e que devo chamar os guardas (os que respeitam as regras), escuto sons de beijo e umas arfadas, o que me dá certeza que não estou presenciando um roubo de sangue nem nada, tá mais para um amasso. Acho. Volto a observar o casal. – Melhor eu voltar. Está tarde. – A menina sussurra, afastando o guarda dela. A luz entra pela janela, os holofotes de segurança do prédio. – Só mais um pouco. – Não… – Amanhã? – Mas tem a festa, não estará ocupado? – Nunca ocupado demais para você. – Ele desliza a mão pela coxa da menina, mas ela segura. – Aqui não. – Ali, eles foram pela direita! – Escuto uma terceira voz, bem alta e passos correndo. – Vá, vá. – O guarda empurra a menina para atravessar a passarela e alcança o capacete. A menina vem na minha direção, enquanto outros guardas entram na passarela e correm até o rapaz que estava com ela. Sei que se a pegarem agora, mesmo que ela não seja culpada dos crimes, será acusada, ou pior: se ela fez uma doação fora da área, poderá ser chicoteada em praça pública. Os lordes não gostam quando as coisas começam a fugir do controle. Percebo que ela vai passar reto por mim e estico o braço, puxando-a. Ela dá um gritinho, mas eu tampo sua boca com as mãos, segurando-a. – Shh! – E me abaixo. – Ei, soldado! – Os passos dos guardas se aproximam. – Você viu um grupo de jovens correndo? Dois garotos e uma menina. – Não por aqui. – A voz do guarda que estava com a menina soa, potente. – Olharam as escotilhas de acesso? – Não! Vamos! – Passos correndo. – Recrutas! É para o outro lado. – Fica um breve silêncio. – Vocês ao menos sabem onde ficam? Recrutas iúnteis…

Os passos se afastam. Eu largo a menina e seguro minhas sacolas ficando em pé. Ela se encolhe escondendo o rosto, assustada, apenas enxergo o capuz e as pontinhas de cabelo loiro claro. Suspiro. – Ei, você está bem? Vamos, melhor não ficar parada aí ou podem te encontrar, vamos dar a volta pelo outro lado. – Eu a chamo. A menina fica de pé, secando os olhos e só então, quando posso vê-la por inteiro, mesmo que não veja seu rosto, eu a reconheço. – Nytacha? – Jay? – Ela arregala os olhos azuis para mim e meu coração quase dá um salto saindo pela boca. Minha prima inocente e casta estava se agarrando com um soldado?! – Por favor não conte nada pros meus pais! – Ela esconde o rosto com as mãos. – Por acaso aquele era Zahtit? – Pergunto com a voz arranhando de raiva. Só pode ser, com certeza é! Ele está cercando minha prima há meses. Nytacha responde que sim balançando a cabeça. Sabia! – Ele estava obrigando você a doar sangue? – Não! – Ela abaixa as mãos e me encara com os olhos molhados e um ar de que eu sou maluca. – Não é nada disso, ele me ama. – Oh, por favor. – Reviro os olhos e seguro firme no braço dela. – Vamos embora e pare de dizer essas asneiras. – A puxo para andar, voltando até a outra ala e pegando o caminho para descer um andar. Minha ideia é atravessar pelo andar de baixo e subir pelo outro lado. – Ele só tem interesse em uma coisa e não é sexo. – Você não pode afirmar isso sem ao menos conhecê-lo! – Nytacha puxa o braço, se soltando. Eu suspiro. – Zahtit é diferente, não é como os outros. – Não seja estúpida, é claro que ele está enganando você. – Continuo andando. Noto que Nytacha não me segue e olho para trás, ela está com as duas mãos no bolso do casaco marrom e a cabeça baixa. É de dar dó, minha prima é muito inocente mesmo! – Venha logo antes que os guardas encontrem você. Ela olha para mim e me segue, correndo um pouco para me alcançar e emparelhar. – Há quanto tempo você e Zhatit estão se encontrando escondido? Nytacha vira o rosto, me ignorando. Conheço Nytacha e se eu forçar minhas perguntas demais para cima dela, perderei sua confiança. Melhor eu ficar de olho nessa relação dela com Zahtit de perto, antes que minha prima fique doando sangue sem um certificado e seja punida em praça pública por isso. – Bem de qualquer forma, acho que agora entendo porque ele te mandou a cesta de frutas. – Dou um risinho enquanto andamos. Nytacha acaba dando um risinho também. Ela espia minhas sacolas. – Isso aí é um vestido? – Peguei emprestado da Byrn. – Pra que você quer um vestido de festa? – Nytacha faz uma careta. – Vou para a festa dos nobres. – Você conseguiu um certificado de doação? Hm, conheço alguém que ficará louco de ciúmes quando souber disso. – Ela dá uma risadinha cobrindo a boca. – Pobre Lyek! – Não seja boba. – Reviro os olhos e aperto mais a sacola ao redor do meu corpo, enquanto ando. – E não é exatamente um certificado, eu virei uma doadora permanente. – Oh! – Ela abre os olhos e a boca, surpresa. – Você fez isso sem pedir permissão para sua mãe, não foi?

– Absolutamente. – Lanço um sorrisinho.

CAPÍTULO 05

A Sociedade dos Vampiros Depois de mais um dia de trabalho na lavanderia, Byrn me deu mais uma sacola com dois potes, contendo refeições para minha mãe e meu irmão. Eu a abracei forte. Quando puder, vou retribuir todo favor que ela me fez. Tenho uma sensação de dívida terrível com todos os meus amigos, especialmente Lyek e Byrn. — Veja se come um pouco, você tem que estar forte para a doação. — Byrn pisca um dos olhos azuis sorrindo e bate as duas mãos em meus ombros. — E depois me conte tudo sobre a festa! Espero que a comida seja realmente boa! Byrn é a única capaz de me animar quanto a isso, a empolgação dela é única e por um instante quase esqueço do verdadeiro motivo de pisar em uma festa dos nobres! As pessoas normais, os plebeus, não participam de festas a menos que sejam doadores e a maioroa fica do lado de fora. Apenas a nobreza é permitida dentro do salão. — Se der. Você sabe, estou indo trabalhar e não me divertir. — Ah, por favor, Jay! — Byrn torce a boca contrariada. — Você está indo trabalhar e não para o abate. — Dá quase no mesmo. — Resmungo. Todos sabemos que é questão de tempo. — Nosso sangue não dura para sempre e nem todo mundo tem uma medula óssea tão forte, especialmente quando trabalha para o Glutão. — Toda vez que você fala o nome dele, fico arrepiada. — Byrn faz cara de nojo, do tipo quando a gente vê uma barata em cima da nossa comida. — Ele deve ser um velhote nojento. Bem, me conte sobre isso também! E tente se aproximar da casa dos Rynbelech! Quem sabe você pode me indicar para uma vaga! Suspiro. Byrn não tem jeito mesmo. Ela acha que vampiros são como aqueles do livro que ela lê e isso a torna incapaz de enxergar a monstruosidade dentro deles. O que me faz pensar em Nytacha, minha prima. Ela também está enganada quanto a eles. — Byrn! — Seguro no braço da minha amiga com força. — Você fica de olho na Nytacha para mim? — Ahn? — Byrn pisca sem me entender e olha para trás de mim. Nytacha está conversando com dois outros jovens da lavanderia, acredito que ambos interessados em sexo! — Por quê? Ela parece ótima e apesar de ser simpática com esses idiotas, ela não faria nada com eles. — Estou mais preocupada com quem ela anda sendo simpática! — Dou uma risadinha de nervosismo. — Um certo alguém que muda de turno para estar sempre na porta da lavanderia... — Zahtit?! — Byrn abre a boca e os olhos de forma exagerada, sem se conter, olhando

para trás onde os guardas estão. — Fale baixo! — Solto seu braço e seguro em seu rosto, virando para mim. Resfolego e sussurro. — Você sabe que eles têm ouvidos supersônicos. — Calma, Jay. — Byrn coloca as duas mãos na boca para esconder um sorriso. — Nytacha é tão sortuda! Agora tudo faz sentido! — Pare com isso, não é amor. — Bufo enchendo as bochechas de ar. Arrumo as sacolas no meu braço. — Você sabe que ele está interessado em sangue. E Nytacha é uma garota inocente e indefesa. E se ele estiver forçando ela a doar sem um registro? — Acha que ela cairia nessa? Seu tio está sempre em cima... — Isso é o que me preocupa. Meu tio sempre a protegeu demais! Ontem eu vi ela e Zahtit se beijando depois do toque de recolher e sabe lá o que mais eles andam fazendo! — Coloco uma mão na testa, ainda falando baixo. Esse assunto está me dando dor de cabeça. Byrn exala ar como se estivéssemos assistindo Romeu e Julieta. — Você entende, certo? Eles combinaram de se encontrar essa noite durante a festa. — E como você sabe que não posso doar, quer que eu os espie?! — Ela parece relutante com a ideia. Faço que sim com a cabeça. — Não, nem pensar. — Qual é Byrn, você é a única que pode me ajudar e olhe bem para Nytacha. — Aponto, minha prima está de costas para nós acenando para os rapazes. — Ela tem esse corpão, mas a maturidade dela é de uma criança. — Bem, teve mesmo aquela vez que achamos uma boneca no lixo e ela quis para ela... — Byrn pondera e resfolega. — Tá bem, vou ficar de olho, mas só porque acho que se Zahtit tem interesse em se pegar com ela, tem que oferecer mais que uma cesta de frutas. — Ela dá uma piscadela. Até respiro aliviada e me acalmo um pouco. Confiro minha prima mais uma vez e em vez de andar até onde estou, Nytacha retorna para a porta da lavanderia, exatamente onde Zahtit está. Algo que ela sempre fez, despedir-se dele, ganha outra proporção. Nytacha sempre foi muito simpática com todo mundo e eu achava que essa simpatia com Zahtit era agradecimento, mas agora até me dói a cabeça de saber que no sorriso de minha prima há algo a mais. — Viu o que eu disse? — Olho enviesada para Byrn. — Nytacha! Vamos logo! — Grito. Fazendo parecer que ela está demorando demais. — Estou indo! — Nytacha acena de longe e gira, se afastando dos guardas. Ela para perto de nós. — Por que tanta pressa? É por causa do baile? — Nytacha! — Byrn a recebe com uma chave de braço, puxando-a. Começamos a andar para fora da área da lavanderia, adentrando o pátio. Ainda há luz do Sol, fico com uma grande sensação de segurança. — Então você estava mesmo reconhecendo Zahtit pelo o que ele tem entre as pernas, huh? Quem diria! — Jay! — Nytacha joga os olhos azuis com fúria para cima de mim. — Linguaruda! Obrigada Byrn por ser incapaz de guardar um segredo! Arfo, ofendida. — Por acaso está tentando arrancar mais coisas antes de se tornar doadora? Faça valer muito a primeira doação! — Byrn continua, enquanto atravessamos o atrium da torre que dá acesso aos apartamentos. Muitas pessoas passam por aqui essa hora, alguns retornando do serviço como nós, outros já se preparando para a suntuosa recepção no salão de festas.

— Não é nada disso! — Nytacha solta o abraço de Byrn, escapolindo. Parece irritada. Ela cruza os braços. — Não estou doando e nem prometendo me tornar doadora, se é isso que querem tanto saber. — Então é o quê? — Pergunto brava, com a voz dura. Byrn me olha torto, como se eu estivesse atrapalhando e apenas reviro os olhos deixando elas conversarem. — Então o quê? — Byrn repete, mas sua voz soa animada e curiosa. Ela segura no braço de Nytacha, caminhando juntas. — Sabemos que quando um deles manda presentes está marcando o território e não podemos negar que Zahtit quer garantir que será o primeiro da fila, então me diga, o que seus pais acham disso? — Bem, para minha mãe, quanto maior o presente, melhor, mas meu pai ficou muito enciumado! — Como um patinho inocente e casto, Nytacha cai na conversa de Byrn. Ela até sorri e ergue um dedo, enfatizando. — Não tanto quanto Román ficou ao descobrir que iam me enviar presentes, aliás! — Então foi isso? Ele se adiantou?! — Byrn olha para mim e pisca um olho, sinalizando que sua tática deu certo. — Não importa se são vampiros ou humanos, garotos sempre se mordem de ciúmes quando outras pessoas manifestam interesse! — Exatamente! — O nome dele é Román Zahtit? — Byrn pergunta, interessada. Não posso negar que Nytacha nunca teria revelado isso para mim. Nytacha parece perceber que falou besteira só agora, abrindo bem os olhos e a boca. — Zahtit, apenas Zahtit. Tá bem? — Ela se desespera, como se fosse algo sério o nome de alguém. — Hmmm, tá bem. — Byrn concorda. — Você já o viu sem capacete? — Já. — Você tem que me contar tudo! Ei, quer jantar na minha casa? Jay vai à festa e eu não tenho nada para fazer. — Byrn dá um pulo de alegria, empolgada. Tenho certeza que ela está representando, tentando fazer Nytacha ser levada por sua emoção. Byrn faz isso com as pessoas. — Não posso, eu tenho um... — Nytacha se interrompe, percebendo suas próprias palavras dessa vez. — Meus pais estão me esperando. É melhor eu me apressar. — Ela se adianta alguns passos. — Até amanhã, Byrn. — Até! — Byrn acena, me lança um sorriso e olha para mim, mas estou de cara fechada, nada feliz com o que escutei de Nytacha. — Você ouviu? Eu não sei o que é pior, um interesse amoroso ou uma doação sem registro! — Coloco a mão na testa de novo, exausta com esse assunto e olha, tem só uma dia que fiquei sabendo disso! — Não é assim tão ruim, Jay. Estamos falando de Zahtit, ele é um Soldado de média patente! Se fosse um nobre, eu entenderia sua preocupação com a segurança de sua prima, mas ninguém liga para o que um soldado faz. Não é proibido que um vampiro namore com uma humana. — Claro, esqueci que estou falando com você, que acredita que um vampiro poderia mesmo se apaixonar por uma de nós! — Dou até uma risada, mas agora Byrn me fulmina com o olhar, irritada.

— E se for? E se eles estiverem apenas apaixonados, você já pensou nisso? Além do mais, ele deu uma cesta para garantir que outros caras não fizessem primeiro, é até um gesto bonito, tipo uma prova de amor. — Dizer que quer ser o primeiro a encravar os dentinhos na Nytacha não é uma prova de amor, Byrn! — Ergo as mãos, a sacola do braço direito balança e Byrn cruza os braços, colocando as costas um pouco para trás, aborrecida comigo. — Olhe, eu apenas quero ter certeza que ela não está doando sem registro ou que ele não está forçando-a a nada, tá bem? Byrn descruza os braços e resfolega, colocando as duas mãos na cintura. — Você está fazendo drama! E eu entendo que você está estressada por causa do baile, da doação, do Glutão, eu te entendo, Jay. Se eu estivesse no seu lugar, me preocuparia com minha prima, também. Só por isso eu vou ficar de olho nela essa noite, mas quando a gente descobrir que está tudo bem, que é um flerte normal e que os pais dela estão inclusive de acordo, como parece que estão, então vamos deixá-los viver esse romance em paz, combinado? — Se tiver tudo bem. — Ênfase no “se”. — Ótimo! — Byrn sorri e me dá as costas, pegando o caminho para sua ala. Observo ela se perder entre a multidão com um pouco de resignação. Será que eu estou fazendo mesmo drama? Será que está tudo bem para Nytacha se envolver com Zahtit? Se fosse Byrn que estivesse apaixonada e sendo correspondida, eu ficaria até feliz, mesmo que fosse um vampiro. A melhor das hipóteses para subir de vida nesse inferno é ser cortejada, melhor ainda que não seja apenas pelo valor do nosso sangue, certo? Eu deveria ficar feliz por Nytacha achar um vampiro disposto a bancá-la pelo resto da vida… mas então… por que sinto esse aperto tão grande no coração? É como se tivesse algo errado, algo que Nytacha está me escondendo. Respiro fundo. Não tenho muito tempo para perder com isso e preciso me aprontar para o baile. Vou para casa, minha mãe está brincando com meu irmão e mostro a comida. Johin ataca os potes e minha mãe se alimenta. Vou para o banho. O nosso banheiro não é o melhor do mundo e a água é um luxo que nem sempre podemos pagar, vou ficar feliz quando eu puder instalar um chuveiro novamente e não precisar mais me banhar na torneira ou com um pano úmido. Assim que tiro a minha roupa, escuto uma batida na porta. Abro só uma frestinha e minha mãe invade com vontade, quase me empurrando. — Jay, precisamos conversar. — Ela diz séria, os olhos azuis em cima de mim com fervor. — Eu sei o que vai dizer, mas agora é tarde para eu voltar atrás. — Cruzo os braços por cima do meu corpo nu. — Já peguei meu certificado. — Não vim te convencer a não fazer. — Ela ergue as mãos em sinal de paz. Até estranho. Ué, normalmente ela estaria fazendo de tudo para convencer-me de que estou errada. — Você quer doar, tudo bem, eu concordo com você, mais cedo ou mais tarde você precisaria ajudar em casa, a lavanderia paga pouco e meu sangue já não vale mais. Temos que nos unir para sustentar Johin. Respiro. Puxa, que bom. Seria péssimo brigar com ela nesse momento. Lanço um pequeno sorriso. — Que bom que você pensa assim, mãe. Você sabe que eu faria de tudo por vocês dois,

não quero que você seja deportada da Torre Bawarrod, que Johin seja adotado por minha tia e que eu tenha que me casar. — Lágrimas até começam a surgir no meu rosto. — Venha aqui, não chore. — Ela me abraça. — Se ficar de cara inchada, seu Mestre ficará muito insatisfeito. — Solto-me dela no susto, encarando-a. Como ela sabe que estou em uma doação permanente e não apenas um certificado esporádico? — Eu vi os papéis nas suas coisas, o certificado anônimo. É para o Glutão, estou certa. — Ela mesmo me explica e se aproxima da torneira, pegando um pano. Ela molha o pano na água e fecha, colocando no meu braço e esfregando forte. Não que eu esteja muito suja, afinal, trabalho na lavanderia. — Vão te dar um bracelete e você terá que usá-lo para sempre, substituindo esse aí que você tem. Ao mesmo tempo que esse bracelete te protegerá, ele também será uma condenação. A sociedade dos vampiros não é como a nossa, você ainda se lembra como era antes dos ataques? — Sim, eu me lembro. — E como desejo poder voltar para aquela época em que tínhamos tudo e não sofríamos tanto. — Sinto falta daquela época. — Esqueça aquela época. — Mamãe molha novamente o pano, agora vem lixar meu outro braço. — Você é uma serva agora, uma escrava. Precisa entender essa relação o quanto antes se quiser sobreviver naquele ninho de morcegos. — Soa até como se ela tivesse ressentimento deles. — Quando você doa lá em baixo é quase como aquelas prostitutas de rua, mas dentro da sociedade, com os nobres, é diferente. Você tem valor e o seu valor é um espólio que seu Mestre pode utilizar por prazer, por vaidade, qualquer motivo que ele acha que vale. Você tem que se mostrar mais valiosa ainda do que ele imagina, mais do que apenas um saco de sangue. Já vi meninas saírem das ruas para serem permanentes e darem de tudo para poder voltar, Jay. Não seja uma dessas. Observo seus olhos sérios, grudados na minha pele, procurando defeitos, valores, o que for. Minha mãe nunca se sujeitou a ser doadora permanente, preferindo doar sangue nas ruas, tentando, mesmo que de forma ilusória, ter algum controle da própria vida. Vejo isso nela agora, essa força que é como uma chama e que, infelizmente, está se apagando. — E eu tenho que ser de que tipo então, mãe? — Pergunto, com a voz baixa. — Você tem que fazer o seu mestre valorizar você a ponto de que, se ele beber todo o seu sangue, valha menos que exibir você para os outros. Você tem que tomar o controle, mesmo que isso signifique fingir que ele tem o controle sobre você. — Ela me passa o conselho, olhando diretamente nos meus olhos. Não sei o que essas palavras querem dizer na prática, na verdade, tenho até um pouco de medo delas. — Se você se valorizar a esse ponto, por mais que ele sinta vontade, não vai destruir você. — Sei, tenho que durar mais que os outros. Já que ele acaba com todos em segundos. — Respiro amedrontada, desabando. Estou tentando ser forte, mas os boatos que dizem do Glutão me deixam aterrorizada desse encontro. Quer dizer, é um velho nojento que bebe o sangue de todos de forma porca e nunca se satisfaz. O quão horrível não é? Agora que estou quase indo lá me oferecer a ele, percebo que é pior do que imaginei. — Tenho muito medo de que ele me destrua logo de primeira, que meu sangue nem seja suficiente para as goladas gigantes que todo mundo diz que ele dá. Pensei em pedir muito dinheiro pela primeira mordida, não é garantia que eu vá ter a segunda. — Não apenas isso, Jay. — Ela segura no meu rosto com as duas mãos. — É mais do que simplesmente durar um dia ou dois anos. Você tem que fazer ele amar você.

As palavras delas doem em mim de uma maneira estranha. É como se ela estivesse dizendo que eu tenho que ser uma concubina, ou algo do tipo. É o que Nytacha devia fazer, talvez o que seus pais dizem a ela para fazer. Infelizmente nessa nossa realidade, não temos muitas opções. Tenho certeza que Nytacha conseguiria um nobre e que seus pais devem querer isso para ela, mais do que um soldado. É horrível perceber que conseguimos prolongar um pouco o nosso tempo de vida, mas que, até esse prolongamento não tem prazo de validade. Eu vou viver o quê nessa expectativa? Até os dezoito?! — Como vou fazer isso, mãe? Nem sou tão bonita quanto a Nytacha! Não tenho nada a oferecer para ser mostrada como um cachorrinho valioso. — Encho as bochechas de ar, chateada. Eu e Nytacha somos diferentes, sou baixa, ela é alta, ela tem um corpo cheio de curvas, enfim, todos já sabem. — Que vantagem eu tenho para oferecer? — Você é uma garota incrível, destemida, disposta a encarar um glutão em troca do bem estar da sua família. Essa força de vontade que você tem, minha filha, é seu maior triunfo. — Mamãe solta o meu rosto e volta a molhar o pano na pia. — Além do mais, pelo que dizem por aí do Glutão, ou ele é um homem com muita segurança em si mesmo ou com nenhuma. — Arrisco dizer que é a primeira opção. — Até me arrepio de pensar no tipo de monstro que ele é. — Mesmo que seja, trate-o como na segunda. — Mamãe gira, olhando para mim. — E se você o enxergar como um ratinho e não como um lobo, com certeza o colocará nesse patamar. — E se ele se irritar e quebrar meu pescoço? — Coloco as duas mãos na garganta, em pavor. — É um jogo, minha filha e você tem que jogá-lo. Já tem um certificado, já se inscreveu na vaga… agora você precisa fazer isso por você, ou então em um estalar de dedos, você vai morrer e eu e Johin sofreremos sua perda e nada do que você pensou que ia conseguir se concretizará. — Ela cruza os braços, respirando, quase como se estivesse me dando uma bronca por ter me inscrito sem sua autorização. — Escute bem, Jaylee. Não há mais espaço para você ser uma criança agora e se você quiser sobreviver, você precisará usar de todos os artifícios que tiver para se manter viva. Escute as conversas dos nobres, procure conhecê-los, descubra fraquezas e utilíze-as ao seu favor. Você vai lá se desfarçar de caça, mas você é o caçador. Você está me entendendo, minha filha? Eu quero que você volte vive para casa e que você cuide do seu irmão. — Sim, mãe. Eu entendi. — Confirmo. Procuro absorver as palavras dela como conselhos valiosos de uma mulher mais experiente do que eu, que lutou com tudo o que pôde para criar eu e Johin nesses últimos anos nesse inferno de torre. Se eu quero sobreviver e salvar minha família como me propûs, preciso crescer e me tornar o mais perto de ser como ela. — E se ele passar as mãos nojentas em mim? — Pergunto, preocupada. — Você o beija em resposta. — Mamãe sentencia com firmeza. Compreendi o que ela quis dizer. Confirmo balançando a cabeça e respiro fundo. Não posso encarar esse baile como um boi indo para o abate. Eu tenho que ser um boi sendo leiloada. Um boi que se orgulha de ser o boi mais gordo.

● ● ● — Coloque isso e entre. — Um homem alto e barbudo, com vestes antigas e monóculo me entrega uma caixa preta. Ele checou meus papéis de registro, ficou com todos e me o que acredito ser o bracelete, mas não me olhou nos olhos e nem perdeu muito tempo comigo. Um guarda uniformizado e de armadura abriu uma grande porta para mim e entrei, atravessando uma área sem luz, toda negra e com cortinas púrpuras ao redor. Parecia até que estava entrando em um teatro. Adentrei uma sala menor, como se fossem os bastidores, uma espécie de camarim. Redonda e com um sofá circular ao redor, muitas pessoas sentadas ali, cada um com seu bracelete reluzindo. Eram homens e mulheres, a maioria mulheres, de várias idades, mas todos abaixo de trinta anos, com roupas de gala quase eróticas, grandes decotes nos seios, nas pernas, homens com braços fortes à mostra. Eles se exibem, bem como minha mãe disse e acho que vim mesmo com o vestido errado. Escuto uma risadinha de um grupo no canto e procuro não me deixar abalar. Olho minha caixa de veludo preta. Há um brasão com uma serpente alada se enrolando, quase como um caduceu, em dourado, mas formando um círculo. Em dourado está escrito “Riezdra”. Acho que esse é o sobrenome do Glutão. Abro a caixa e tiro o bracelete, igual ao brasão. Coloco no braço até o fim, mas ele fica um pouco folgado. Quando abaixo o braço, ele escorrega até o pulso. Mais algumas risadinhas. Estão começando a me incomodar. — Aqui, deixe eu ajudar você. — Uma menina de cabelos castanhos com as pontas loiras, se aproxima de mim. Sabe quando a pessoa deixa o cabelo crescer, mas não continua a pintar? É o caso. Ela tem o rosto redondinho e olhos bem grandes, com a boca pequena. Dou um sorriso sem graça, sem mostrar os dentes e estico o braço. Ela empurra o bracelete e depois puxa a lateral, prendendo-o firme na minha pele. Dou um pinote, sentindo dor. — Assim não vai soltar. Olho para o meu braço. O bracelete ficou em cima da marca do meu bracelete anterior, o de filha de doadoras. Olho para o braço dela e percebo que não é um bracelete que ela usa, mas sim, uma tatuagem no braço, marcada pela casa a que serve. Um lobo negro. A menina se afasta, voltando a se sentar e eu percebo que todos estão tatuados com o símbolo do brasão das casas as quais servem. Uma menina tem uma boboleta na bochecha direita, um rapaz mais velho tem a mesma marca no braço musculoso e um homem barbudo, no pescoço. Conto mais ou menos trinta pessoas na ante-sala, eu, a única com o caduceu circular e sem tatuagem. Acho que eles nem perdem tempo tatuando para a casa Riezdra, já que o Glutão se livra de seus escravos rapidamente. A sensação do abate volta a me incomodar e preciso colocar a mão na nuca, massageando. — Está nervosa? — Um rapaz me pergunta, de cabelos bem loiros e olhos escuros. Ele tem um lobo negro no pescoço igual ao da menina que me ajudou a pouco, talvez sejam de uma casa mais simpática. Como todos na sala, ele é bem bonito, alto e forte. Com certeza Nytacha se destacaria entre eles, mas eu sou engolida pela beleza de todos. Como vou me mostrar cheia de valor aqui? Preciso pensar logo em alguma coisa.

— Um pouco. — Revelo com um sorriso sem graça. — É minha primeira vez. — Dá pra ver! — Uma garota se intromete, com um sorriso sádico. Ela tem um símbolo circular com pontas, como se pegasse fogo ou explodisse, tatuado no ombro e seu vestido é tão bonito que parece ir a uma festa de casamento, usando até as melhores joias. Sinto-me como se estivesse dentro de um filme de época que passava na televisão e eu detestava assistir. As outras meninas e um rapaz, com o mesmo símbolo dão risada de mim. Eles estão todos no canto, sentados como verdadeiras celebridades. — Não ligue para eles. — O garoto revira os olhos escuros apontando para o grupinho e fixa o olho em mim, rindo. — Eles agem como se fossem os donos do mundo por servirem aos Bawarrod. — Oh. — Faço, compreendendo a razão de se sentirem tão acima dos outros a ponto de desdenharem de uma novata. Encaro novamente o grupinho de três meninas e um menino, analisando-os. — Sou Elliot e você? — Jaylee. — Eu sou Renira. — A menina que me ajudou sorri. Antes que eu possa agradecê-los pela simpatia, um sino soa e todos ficam de pé. Acabo sendo empurrada pelos meus novos amigos e uma das paredes se abre, revelando ser na verdade uma porta grossa, com proteção de áudio. A música invade meus ouvidos, sons clássicos com violinos, flautas e oboés. A luz dos lustres de cristais invade meus olhos, quase me cega. Meu coração dá um salto. É isso. É a festa.

CAPÍTULO 06

Serpente O salão é verdadeiramente suntuoso e digno de um castelo cheio de pompa. O teto é branco e com pinturas douradas. Três grandes lustres de cristais se projetam para baixo. Há muitas portas, brancas e douradas, separadas por pilastras redondas, todas fechadas, lacradas, quase me sinto sem ar. O chão é de madeira, os saltos explodem, mas a música é alta e as vozes se sobrepõem umas as outras de uma maneira instigante e até familiar. É uma festa normal, como se eu apenas estivesse na época errada. Garçons passam bem vestidos, me oferecem bebidas e docinhos dignos de patisserie. Pego alguns, mas não quero ficar nem com bafo e nem com sujeira nos dentes, ou ainda borrar a maquiagem que minha mãe ajudou a fazer. Procuro prestar atenção na conversa de todos, mas a maioria são nobres que vieram de outros lugares, comentando sobre o tempo de viagem e outros assuntos frívolos, inclusive, a maioria reparando bastante nos doadores de sangue e suas tatuagens. Lady Lucretia chega no salão acompanhada de Kaiser Bawarrod. É a primeira vez que os vejo ao vivo, uma música forte invade o salão enquanto eles dançam e todos batem palma, inclusive eu, perdida e sem muito sem ter o que fazer além de comer. Lady Lucretia é mesmo uma mulher bonita e jovem, aparenta uns vinte anos, de cabelos castanhos lisos e nariz arrebitado, sorriso simétrico e olhos grandes, castanhos, quentes, com sobrancelhas que marcam bem suas expressões. Lord Bawarrod é mais pálido que ela, tem uma pinta grande e escura do lado esquerdo do rosto, perto da orelha e os cabelos cacheados, que apesar de estarem arrumados, se soltam e se rebelam. Enquanto ela usa um vestido púrpura e preto, de saia rodada e tecidos drapeados com luvas, ele usa um terno com colete e uma sobrecasaca verde escura, deixando a corrente de um relógio de bolso aparecendo. A dança termina, os nobres se dispersam, muitos ficam por ali para cumprimentá-los. Dou alguns passos para trás enquanto as pessoas se batem comigo para chegar até eles. Ver Kaiser Bawarrod sorrindo com caninos protuberantes me deixa um pouco nervosa, ele nem parece se preocupar com o fato de que há pessoas morrendo de fome em seu castelo! Acabo me encostando com a cortina, perto da janela. Uma mulher se aproxima de mim, seios fartos, pele castanha e cabelos enrolados e sedosos, bem negros como a noite. Seus olhos desinteressados não me enxergam. Ela segura uma taça de espumante na mão e pega um biscoitinho, quase penso que ela é uma doadora de luxo quando noto seus caninos protuberantes. Engulo seco e ela olha para mim. — Querida, esse seu vestido é um desastre. — Ela diz com desdém e acabo olhando para meu corpo. — Está mesmo horrível, mas quando o escolhi eu tinha uma ideia totalmente errada de como deveria agir nessa festa e agora não sei como me sobressair com essa roupa. — Digo em

resposta. Toc Toc. Alguém bate na janela atrás de mim, os olhos escuros e de brilho avermelhado da vampira na minha frente se abrem bem e ela faz um sinal para que eu ande para a esquerda. Quando viro, para olhar, há um garoto na janela, pendurado, querendo entrar, de cabelos bem escuros e lisos, cobrindo parte do rosto, olhos brancos, com o dedo na boca pedindo para eu fazer silêncio. Pisco duas vezes, confusa. Ele aponta para o alto e vejo um gancho. Alcanço abrindo a janela, só uma frestinha, ele entra como um gato, sentando no chão e usando a saia bufante do meu vestido como um escudo. — Román! — A mulher se aproxima, aborrecida, sussurrando. — Onde diabos você estava! — Shh! — O garoto faz. Fico parada como um enfeite, um vaso, sei lá. Ela disse Román, ou eu escutei errado? Olho para ele, mas o rapaz não veste armadura de soldado, está de calça preta, camisa branca desabotoada e sem gravata. — Você quer alarmar meus pais?! — Ele sussurra também, desesperado e um pouco bravo. — Oh bem. — A mulher olha por cima do ombro. — Estão ocupados, Lady Lucretia acabou de dançar. — Ela segura no meu braço, com força e me empurra para trás. — Vamos para lá. Cadê suas roupas? — Em algum lugar! — Ele ri, como se significasse que ele as perdeu. Engatinha para trás, ainda usando meu vestido como uma proteção. Melhor eu nem respirar! — Você não tem jeito, estava com aquela garota de novo? — Muito melhor que essa festa ridícula. — O que Devon acha disso? — Por que não pergunta a ele você mesma? — Eles vão sussurrando enquanto me empurram. — Ele deve ter um paletó extra para me emprestar, encontre-o. — Devon não está aqui ainda! Não seja tão irresponsável! Se seus pais ficam sabendo disso, podem degolar sua namorada para se vingar, se você continuar escorregando, já basta o escândalo que deu aquela cesta. — A mulher passa a bronca, soando como uma mãe e o filho adolescente, eu só consigo pensar que a namorada dele é Nytacha e que ela vai ser degolada, fico até suando. — Eles não o farão, pois não querem me irritar. — O rapaz dá uma risada e pisca um olho, seguro de si. — Sabem do que sou capaz. Quando alcançamos a borda do salão, por trás das cortinas, ele fica em pé, uma altura que eu tenho certeza que ele é Zahtit. Não sabia que “Zahtit” era o nome de um nobre, para ser sincera e duvido que Nytacha saiba. Pensando bem, ela ficou meio desesperada quando Byrn a interrogou sobre o nome do namorado então… Olho para ele. Sim, com certeza é um nobre. Meu estômago revira. Por acaso ele está vivendo uma vida dupla e minha prima é uma espécie de brincadeira de um jovem vampiro mimado? Isso não está acontecendo! — Não se mexa! — A mulher estica o dedo para ele, brava e olha para mim. — Francamente, esse vestido… — E com as mãos, rasga a manga bufante, tirando os panos extras da frente. O que sobra é uma frente lisa, sem graça, mas agarrada ao meu corpo de uma forma que me sinto até nua, ainda mais que é da cor pêssego. Ela joga o pano em cima de Román, ou Zahtit, sei lá! — Ainda te mato, moleque!

— Não, não mata. — Ele ri e joga o pano para o lado, ajeitando a camisa no corpo, abotoando os botões da frente, que estão abertos. Não digo nada, nem ele, não tenho coragem de começar uma conversa agora, ainda mais sobre Nytacha. Fico cutucando a saia do meu vestido e tiro alguns fios que cairam soltos da manga. — Seu vestido é mesmo terrível, foi você quem escolheu? — Román pergunta. Sua voz é suave, ele parece ter um bom humor, mas sua simples presença me tira do sério, me irrita. O que há com esses nobres? Por acaso somos brinquedos? — Se você magoar a minha prima, arranco seus testículos. — Rosno, encarando-o com firmeza. — Ela faria isso primeiro que você, se quer saber. — Ele me dá uma olhada com puro desdém. — Eu não consigo imaginar Nytacha fazendo qualquer coisa que não seja chorando ao descobrir que está sendo usada, Zahtit. — Falo. Minha prima parecia verdadeiramente apaixonada e me incomoda que ele esteja apenas brincando com ela, fingindo ser outra pessoa. — Acho que você não sabe muitas coisas, não é mesmo? — Ele me lança um sorriso, com uma calma que me incomoda. Seu olho esquerdo fixo em mim, o outro, coberto pela franja escura. Ele dá um passo para frente e eu um para trás. — Primeiro, eu não tenho motivos para usar ninguém… E segundo: meu nome é Román. — Aqui. — A mulher de antes para na nossa frente, estendendo uma sobrecasaca para Román. — Eficiente, Drarynina. — Ele sorri e se veste, abotoando a casaca. Lança um sorriso em minha direção e me cumprimenta, com uma leve curvada de postura, em respeito. — Jaylee. E sai, me deixando com a garota de olhos vermelhos, encarando meu vestido com ódio. Solto um suspiro cansada e uma pontada marca minha testa. Preciso avisar Nytacha sobre isso, ela vai ficar chateada, mas não posso permitir que esse babaca metido fique enganando-a. — Francamente. Odeio esse vestido. — A mulher fala com sua voz potente e dá as costas, me largando por ali com o vestido meio rasgado. A festa se desenrola e eu já não tenho disposição para participar, mas fico por ali ainda assim. Aproximo-me da mesa de doces umas duas vezes, enquanto alguns nobres mordem os punhos de suas doadoras. Elas fazem cara de dor fechando os olhos e colocando a cabeça para trás, mas Byrn disse que não sentíamos nada, que era quase como um orgasmo. Román, ou Zahtit, conversa com Lady Lucretia umas duas vezes, parece entojado com a presença dela e engole todo o espumante de sua taça. Vez ou outra nossos olhares se cruzam e eu fico com a impressão de que ele tem algo para me falar. Talvez vá pedir para que eu não conte nada a Nytacha, será? Quanto mais tempo passo nessa festa, menos medo dos nobres tenho e começo a ser contagiada pela energia dos outros doadores, que acham empolgante falar da vida dos nobres, comer coisas deliciosas, beber os melhores espumantes e dançar boas músicas. Porém, percebo que eu sou a única que ainda não foi abordada por um vampiro cheio de dentes, talvez eles sintam o cheiro de sangue pobre e podre nas minhas veias. — Jaylee. — Alguém me chama, viro o rosto e vejo aquela mulher, Drarynina, do meu

lado. Tem uma menina do lado dela, a de borboleta no rosto, segurando uma caixa grande e branca, com um laçarote vermelho prendendo a tampa. Pisco algumas vezes. — Venha comigo. Eu a sigo por uma das portas do salão, que dá para uma saleta reservada, parecida com a ante-sala que eu estava, mas com estofados rosados. Há um tapete bonito que parece persa, branco e rosa. A menina de borboleta no rosto solta a caixa em cima de uma das poltronas e tira o laço. Drarynina continua na porta, espiando o lado de fora. A luz dentro da sala é um pouco mais fraca e reservada. — Para sua sorte, eu comprei dois vestidos para hoje. — Ela olha para mim, mas rapidamente volta a olhar para o lado de fora. — Você pode ficar com ele, não combinou com meu tom de pele. A menina de borboleta no rosto puxa um vestido rosado de dentro da caixa, com um corpete dourado e uma flor no centro, em baixo da linha dos seios. Ela se aproxima de mim e abre o zíper de trás do meu vestido. — Por que você está me ajudando? — Pergunto sem entender e deixo que a menina tire meu vestido por completo. Minha lingerie é emprestada da minha mãe, preta e azul. — Não estou te ajudando, estou me ajudando. — Drarynina solta ar pelo nariz enfadada e olha para mim. — Você é apenas uma peça do meu jogo. Colabore comigo e eu garanto que você não vai morrer tão depressa nas mãos de Lady Lucretia. — Ela fecha a porta, eu escorrego para dentro do vestido. A garota que me veste puxa a peça para cima e fecha o zíper, fica folgado, mas ela dá uns puxões na lateral e começa a costurar. — Por que Lady Lucretia iria querer me matar? — Devon é um péssimo bebedor e ninguém tem interesse em um general fraco. Seu antigo escravo falhou tanto que Lady Lucretia decretou sua morte, você não vai querer cair no mesmo erro. Faça com que ele beba sangue essa noite e você me terá como aliada, vou garantir sua segurança e de todos ao seu redor. Além disso, devo uma à Román, ele me disse que você é prima de Nytacha. — Deixe Nytacha fora disso. — Rosno, como um cão que ladra, mas não tem permissão de morder. Drarynina me mostra um sorriso de lábios grossos e vermelhos de batom. — Se você não quer aquela loirinha degolada, é bom colaborar comigo, menina, está me entendendo? — Uma sobrancelha desenhada se ergue. Levo uma pinicada na barriga com a agulha. Entendi o recado! — O que precisa que eu faça? — Bom que chegamos em um acordo. — Drarynina se aproxima de mim e tira do meio de seus seios uma chave dourada. — Do outro lado do salão tem um vaso, conte três portas e abra. Vou enviar Devon até você. Certifique-se de que ele beba esta noite e se prepare, quando ele começa, é quase impossível fazê-lo parar. — Sim senhora. — Concordo. — Quando terminar. — Dradynina volta até a porta e deixa a sala, fico a sós com a menina de borboleta no rosto e com a impressão de que acabei de mergulhar numa piscina de tubarões. São tantas informações e me sinto tão confusa…! A garota não diz nada para mim e nem eu para ela. Quando termina, ela abre a porta

para eu sair e, de vestido novo, mais encorpado e na moda, deixo a sala. Sigo reto até um vaso onde há uma árvore, conto três portas para a esquerda, à direita não tem nada, só uma parede com um quadro. A música do salão me deixa nervosa, apesar de ser bem suave, uma valsa. Coloco a chave na maçaneta e destranco, abrindo. A saleta está escura, mas eu entro e fecho aporta, há apenas a luz um lampião. Sinto meu corpo inteiro tremer. A sala é toda vermelha e azul, um pouco mais moderna do que imaginei para o filme de época em que estou. Há um divã, um sofá de três lugares, uma poltrona e uma mesa de centro. Quadros antigos, outros lampiões apagados e uma estante com muitos livros. Apesar disso, toda a ansiedade sumiu e eu me sinto até calma para o momento. Não suporto mais essa espera, esses pormenores acontecendo. Román e Nytacha, aquela Drarynina e os assuntos estranhos que ela jogou em cima de mim, os outros doadores… é tudo tão maluco que eu não sinto mais como se minha alma estivesse dentro de mim. É como estar em uma realidade paralela. A porta abre, eu giro. Um jovem entra, de cabelos castanhos claros arrumados para cima e olhos que cintilam dourados. Ele é alto e forte, mas nada exagerado, de calça, colete e camisa, sem paletó. A grafata bufante na frente parece meio torta, como se incomodasse e ele puxasse alguma vezes. Inclusive, ao colocar os olhos em mim e fechar a porta atrás de si, ele puxa a gravata. — O que você quer? — Sua voz não soa nem forte e nem fraca, é um perfeito equilíbrio. A barba rala em seu rosto é a única coisa que realmente me encanta. Nossa, como ele é bonito. Não foi bem assim que imaginei um general que tem um apelido tão cruel como Glutão. Byrn vai morrer quando souber disso, claro, se eu sobreviver para contar. — Por que me chamou aqui? Ei! — Ele estala os dedos. Os lampiões da sala se acendem ao mesmo tempo me assustando, todo o recinto fica iluminado e ele estreita os olhos claros, me analisando. — Ah, e-eu… — Respira. Tento me recompor. Eu o analiso também, sem paletó, incapaz de negar ajuda para um nobre mimado como Román, atraído por Drarynina… talvez, se eu passar a não exergá-lo mais como “Glutão”, eu tenha uma chance. Ensaio um sorriso. — Há horas que estou na festa e você não me procurou, comecei a achar que talvez não tivesse interesse em mim. — Dou alguns passos na direção dele, alcançando sua gravata. Ele fica parado, desfaço o nó e puxo, desabotoo o primeiro botão de sua camisa francesa. — E todos já estavam se alimentando, achei que faria bem lembrá-lo disso. — Quando eu tiver fome mando chamar-te. — Devon me responde dando um tapa na minha mão e se afastando de mim, indo deitar-se no divã capitonê vermelho como se estivesse muito cansado. Os pés para o lado, a cabeça na cabeceira. Ele coloca a mão na testa, cobrindo os olhos e eu apenas fico parada, observando-o. A pele dele não é tão pálida e ele não parece fraco como sugeriram. — Qual a ameaça que fizeram a você para que venha se oferecer assim a mim? Ele parece entediado e conhece bem as pessoas que o cercam, só posso concluir que seu outro doador foi ameaçado como eu fui, mas não posso me dar ao luxo de ter o destino de meu antecessor. Estou sendo ameaçada sim, mas se eu ceder ao primeiro sinal de simpatia, com certeza cairei em uma armadilha maior! Não apenas eu, mas minha mãe, meu irmão e Nytacha

estão em risco aqui. Mandariam matar todos. Dou uma risada de desdém, igual a que Román deu para mim nas cortinas, ventando muito ar e quase rindo, colocando as mãos na cintura. Por entre os dedos, Devon para para mim e agora que tenho sua atenção, não pretendo perdê-la. — Você realmente acha que sou assim tão indefesa? — Ando até a ponta do divã, deslizando o dedo pela linha da sola do sapato, dançando os dedos, enquanto deslizo do sapato para a canela, da canela para o joelho. — Sou voluntária. Eu mesma me inscrevi no setor de doação. — Antes que eu possa deslizar o dedo mais para cima, ele se ergue e segura no meu pulso com firmeza, olhando para mim com toda intensidade, exatamente o que eu queria. Curvo, oferecendo o pescoço. — A menos que o senhor tenha nojo de encostar-se em mim e prefira morder meu pulso, eu não me importo. — Por que você se voluntariou? — Ele pergunta. — Necessidade. — Respondo, mas noto que uma sobrancelha se ergue, minha resposta não deve ter sido satisfatória. — Minha mãe está doente e meu irmão é novo demais para doar, não estavam certificando doadores quando fui ao setor e tinha essa vaga. — Bem. — Ele me empurra, soltando meu pulso e fazendo com que eu me erga. — Apenas diga-me quanto você precisa e pode sair por aquela porta e me deixar em paz. Não perco tempo com humanos. Estou diante de um dos homens mais poderosos desse castelo, tenho sua atenção, sua curiosidade e ainda assim, ele me ofende! Não acredito em mim mesmo agora. Tento não demonstrar emoção. — Sinto muito, senhor, mas não posso fazer isso. — Digo firme. Devon olha para mim novamente, quase intrigado, as sobrancelhas querendo se unir na linha de seu nariz. Há um momento de silêncio, uma pergunta que ele fez mas não verbalizou, porém, sou capaz de lê-la em seus olhos amarelados. — Eu me sentiria muito desconfortável em usar o seu dinheiro sem trabalhar para isso. — Estendo o braço. Mais precisamente, o certo seria eu dizer que eu me sentiria desconfotável demais em sair por aquela porta e encontrar minha família morta ao voltar para casa! Além do mais, se eu conseguir me aproximar dele o suficiente, Drarynina e Lady Lucretia em breve estarão no meu jogo, Román também. Eu prefiro desse jeito. Eu quero desse jeito. — Estou ciente da fama que meu senhor tem e estou disposta a cobrar por cada gota. — Disposta?! — Levo outro tapa no braço e Devon se ergue na minha frente, tenho que levantar a cabeça para poder olhar para ele direito e vejo os caninos protuberantes, que ele me mostra de forma ameaçadora, como se tivesse ficado bravo com o que eu disse. Ele vem na minha direção, eu dou passos para trás, até que caio sentada no sofá, do outro lado da sala. Devon rosna igual um monstro, o tipo de monstro que um vampiro realmente é. Sua mão grande envolve meu rosto, levantando meu queixo, quase me enforcando, a outra segura firme no alto da minha cabeça, puxando meus cabelos. Prendo o ar nos pulmões, para não gritar, seguro em suas mãos, tentando afastar de mim, um dos meus joelhos eu coloco em sua barriga, forçando-o para trás. A impressão que tenho é que ele vai me matar! — Grite agora, escrava! — Ele berra. E eu grito com todo o ar dentro de mim, mas não com medo ou assustada, apenas grito,

como um leão que espanta os predadores, uma escrava que é apenas ordenada a gritar. E vou além, envolvendo o corpo dele com minhas pernas, prendendo-o contra mim.. — Agora estamos negociando. — Ele sorri satisfeito. Minha respiração ofegante, estou até sem ar, meu coração bombeia forte, com adrenalina e eu me sinto tão bem, como se estivesse drogada. Talvez seja o perfume amadeirado que exala dele, o cheiro do seu hálito, de bebida alcóolica, um conjunto perigoso e mortal, que ao mesmo tempo reluta em encravar seus dentes em minha pele. É quando percebo o que eu tenho que fazer para ganhar essa batalha: com as pontinhas do dente eu mordo minha boca com força, até sangrar. Ergo, lutando contra sua mão firme que puxa meu cabelo e me afasta dele. Minhas pernas impedem que ele fuja e minha língua encosta em seus lábios. Seu braço perde força, os músculos relaxam e ele me beija com vontade, chupando todo o sangue da minha boca. Seus braços agora me apertam com força, envolvendo meu corpo, é um abraço que me faz pensar em uma cobra de tão forte, esmagando-meo, prendendo minha respiração involuntariamente. Ele encosta a boca no meu pescoço e me morde. Eu sinto uma pontada, igual uma picada de agulha quando vamos tirar sangue, mas a dor passa em segundos. O único som que escuto é de deglutição, enquanto em goladas fortes o sangue se esvai do meu corpo.

CAPÍTULO 07

Au-au! Um raio de luz incomoda meus olhos, despertando-me. Meu corpo inteiro doi como se eu tivesse sido atropelada por um caminhão. Não sei exatamente quanto tempo minha mente vacilou, mas a impressão é de que quase morri. Consigo enxergar os lampiões da saleta e percebo que o vampiro ainda me abraça e entorna meu sangue como um elixir. Se não parar, vou morrer. Seguro em seus ombros fortes, sentindo toda a rigidez de seus músculos. Empurro Devon com força para ele me soltar, tenho que inclusive chutar o corpo dele. Ele cambaleia, com a boca cheia de sangue e corro para a porta, sem olhar para trás. Abro com violência e atravesso o salão correndo, com os olhos de todos para cima de mim, até que alcanço a porta principal, segurando meu pescoço. Não dói, mas o vestido de Drarynina está com uma mancha vermelha que escorre por entre meus seios e se alastra por minha barriga. Atravesso a porta de entrada, desviando de alguns carros que estacionam e andam devagar, sendo conduzidos, enquanto alguns nobres ainda chegam na festa ou vão embora. Corro pela escuridão, pelas ruas de paralelepípedo e paro apenas quando alguém segura meu pulso com força. Giro e encaro Lyek. — Jay? — Lyek! — Berro e me abraço com ele, tremendo de medo e chorando. — O que você está fazendo aqui? Por que está vestida desse jeito? Isso é sangue?! — Ele me segura antes que eu desmaie e me tira para longe dos carros, só então percebo que estava na garagem. ● ● ● Alguns momentos depois, estou mais calma, sentada no capô de um carro vermelho, acho que é um Porsche. A camiseta de Lyek está no meu pescoço, úmida de água e com ela eu me limpo do sangue, enquanto Lyek suspira, olhando para o céu de estrelas que podemos ver por uma fresta na garagem. — Vou tirar você dessa, Jay. — A voz de Lyek soa longe, pensativa. — Devíamos nos casar. — Não vou abandonar minha família. — Desço do carro, negando a ideia antes que, por desespero, acabe aceitando. — Você sabe. — Sei. — E não adiantaria muito agora, guarde para alguém que realmente precisa. — Dou um sorriso de agradecimento. Lyek me olha com estranheza. — Obrigada mais uma vez, Lyek. Giro para sair.

— Jay. — Ele segura no meu braço para me impedir. Os olhos grandes me prendem. — Pensaremos em outra coisa. — É melhor eu voltar. — Aceno que sim e entrego a camiseta para ele. — Tenha cuidado. — Lyek pede e agradeço sua preocupação com outro sorriso. — Você também. Viro, para sair, mas volto deixando um beijo em sua bochecha, a barba pinica meus lábios. Lyek abaixa a cabeça sorrindo, tímido e eu me afasto, retornando o caminho da entrada. A música escapa pelas frestas, animada. Percebo que a festa continuou sem mim. Os guardas abrem a porta para que eu retorne, a música do salão me engole e respiro fundo antes de entrar. A princípio ninguém me vê, mas conforme avanço pelo salão vampiros e humanos olham para mim. A mancha de sangue no meu vestido é mais que um troféu e eu o exibo para mostrar que consegui. Que se alguém duvidava, que perca as dúvidas agora. Drarynina me olha com um pouco de orgulho e uma garota com uma adaga tatuada no braço puxa a manga de Román, apontando para mim, mas ele não sorri, parece preocupado, mas como só tenho visão de um de seus olhos, fica difícil saber o que ele está pensando. Do seu lado, Lady Lucretia coloca a taça de bebida na boca e ergue as duas sobrancelhas escuras. Tento fingir que não os vejo, andando calmamente pelo salão e quando um garçom passa por mim com pães de mel, pego um e coloco na boca, mastigando como um ogro. A porta por onde saí está fechada e esqueci de pegar a chave, mas giro a maçaneta e a encontro aberta. Os lampiões acesos. Fecho a porta e encosto a cabeça, respirando finalmente. Por hora, minha família está a salvo. Coloco a mão no pescoço, a mordida não dói, não tem marca saliente e arrisco dizer, sem olhar no espelho, que não ficou marca. Porém, onde as mãos de meu mestre seguraram com força, está bem dolorido. — Você é uma vergonha. — A voz de Devon atravessa o som de minha respiração, aquele equilíbrio indecifrável como um enigma difícil. Mas não quero ser uma vergonha, quero ser valorosa. Olho para o lado, ele está em pé na frente do espelho amarrando o laço da gravata cinza, há uma bancada com uma bacia de água e panos vermelhos. Ele é um dos homens mais poderosos de Barrawod, mas não está livre da sujeira tanto quanto eu. De alguma forma, me sinto quase poderosa. — Perdão, senhor. Achei que se corresse longe o suficiente, o senhor não viria atrás de mim. — Mordo a boca, onde está a ferida que eu mesma fiz, para não acabar rindo. É um pouco fascinante que algo tão violento quanto uma mordida de vampiro não deixe marcas e seja tão suave. Devon não diz nada, absolutamente nada. Ele nem parece incomodado com o que eu disse. Termina o nó de sua gravata, ajeita a barra das mangas bufantes e coloca os anéis nos dedos, grandes e dourados. Quando ele termina e vem na minha direção, giro e abro a porta para ele sair. Devon segura a porta, espalmando a mão e fechando com um estrondo. Fico entre seus braços, espremida como um ratinho. — Não. — Devon tem agora um sorriso em seu rosto, de canto, apenas a pontinha do canino para fora. — Você não vai voltar para lá com esse vestido. Tire-o.

— O quê?! — Hesito. — Tire agora! — Ele grita. O som grotesco de sua voz me dá medo, meu coração acelera, mas tento não demonstrar que ele me assustou, viro um pouco o rosto, mas não fecho os olhos diante da histeria. Ele quer me humilhar. Devon é um general acostumado a ser reverenciado e quase nunca desafiado, não terei apreço se eu o envergonhar, ou ainda, se me curvar ou fugir correndo com medo. Preciso me controlar para controlá-lo. Giro ficando de costas, com a bochecha na porta. Empino o bumbum de uma forma que encosto nele. — Se me quer tanto assim fora do meu vestido, tire você. — Provoco. As mãos dele percorrem minhas coxas e bumbum, tão quentes e sensuais que me envergonham. Devon me aperta contra a porta, sinto peso contra minhas costas. Deixo ele fazer o que quiser, me convencendo que preciso, enquanto seus dedos percorrem a cinta-liga e sua respiração esquenta minha nuca. A ansiedade toca conta de mim, respiro mais depressa. — Você pediu. — Ele tira as mãos de mim e rasga o meu vestido, explodindo as costuras. Dói um pouco. O vestido escorrega para o chão e Devon se afasta de mim, não muito, apenas o suficiente para que eu possa girar e ficar de frente para ele.Qual o problema desses vampiros com vestidos? Eu pretendia levar esse para Byrn! Devon observa meu corpo, mas não encosta em mim novamente, é mais como quando um treinador observa os músculos de um cavalo. Ele segura no topo da minha cabeça puxando meus cabelos e me atira com força contra o chão, no meio da sala. Caio com tudo e por centímetros não bato a testa contra a mesa de centro. — Quando eu disser para você fazer algo, você faz. — Devon me repreende, seu tom de voz duro, mas seu rosto inexpressivo. — Sim senhor. — Concordo, rangendo os dentes. Eu me sento, com as pernas de lado, massageando meu ombro esquerdo. Ele anda até a estante de livros, abrindo uma de suas gavetas, de costas para mim. Escuto o barulho de correntes e ele retorna com uma corrente prateada e grande, segura em meu cabelo me forçando a sentar, puxando os fios, meu couro cabeludo arde, já não aguento mais, e enlaça a corrente no meu pescoço, dando duas voltas, prendendo com um cadeado. A corrente é longa, parte está no chão e ele segura uma extremidade. — Qual o seu nome? — Pergunta. — Jaylee. — Fico em pé. — Eu disse que você podia se levantar? — Ele puxa meus cabelos de novo e me atira mais uma vez contra o chão. — Ai! Devon pisa em minhas costas com um dos pés, me mantendo no chão. Ele é muito mais forte do que eu, de um jeito que tenho certeza que quando interrompi sua mordida, foi porque ele deixou. Agora nem consigo me mexer, grudada com a bochecha no chão. — Você não é Jaylee é um cachorro e cachorros andam em quatro patas. Fui claro? — Sim senhor. — Concordo. — Cachorros não falam. Rosnam. Quando muito latem. — Ele aperta mais a pisada nas

minhas costas. — Agora lata. — Au-au. — Faço sem muita vontade. — Parece que está entediado. — Com o pé, ele alivia o peso de minhas costas e puxa meu ombro, me fazendo erguer. Fico ajoelhada, com as mãos no chão. — Não gosto de dar a mesma ordem duas vezes, então seja boazinha. Lata direito dessa vez. Tomo fôlego, juntando a raiva que estou sentindo dele: — Au! Au! — Melhor assim. — Soa satisfeito. — Antes de irmos, tente decorar para seu bem: se um homem tentar por a mão em você, morda para arrancar seus dedos. Mas se for uma mulher, deixe que ela acaricie você e de vez em quando rosne, especialmente se a mulher for bonita demais. — Auf! — Quis dizer "sim". Devon abre a porta, todo o silêncio escorre e a música da festa volta a ressoar, não aquela clássica, mas no lugar da orquestra há um DJ e o salão parece ainda mais animado, com convidados dançando na pista. Algo acontece entretanto, a maioria para o que está fazendo para olhar para nós. Devon e seu novo cãozinho, como ele mesmo fez questão de enfatizar. Ele me puxa pela festa, adentrando o salão, vou acompanhando seus passos firmes e típicos de um militar. Meus sentimentos são um misto de vergonha e raiva, aliás, diria até que mais raiva. Acho que odeio Devon. Não, tenho certeza, do fundo do meu coração humilhado, eu o odeio, tudo o que ele representa, também odeio. O primeiro a chegar perto de nós é um nobre convidado de outra localidade, faz alguma piada a respeito de mim e desconto raivosamente em seus dedos, quase acertando uma bela dentada quando ele tenta passar a mão em meus cabelos. Devon ri, ele se diverte com minha encenação e sua risada é ótima, leve, sem exageros, como quase tudo nele, ao menos no campo superficial, naquilo que ele demonstra para os outros. Uma ou duas garotas, permito que coçem minhas orelhas e até finjo que estou gostando. Depois de me exibir pelo salão inteiro, Devon finalmente caminha até uma das poltronas do salão e se senta, me permitindo descansar os joelhos. A parte ruim é ficar com a bunda no chão frio do salão, mas aos poucos a temperatura do meu corpo amacia a madeira. — Você me preocupou por um instante, Riezdra. — Kaiser Bawarrod se aproxima com uma taça de espumante em cada mão, estendendo uma para Devon, que aceita. — Belo espécime você tem aí. — Um pouquinho rebelde, mas nada que o treinamento não resolva. — Devon dá dois tapinhas na minha cabeça. Kaiser Bawarrod vem fazer o mesmo e fico em dúvida se devo mordê-lo ou não, então apenas rosno, olhando-o com firmeza e dando sinal que é para ele não me tocar. — Não é porque você me deu um presente que ela vá gostar de você. Kaiser Bawarrod explode numa risada, intensa, poderosa e ao mesmo tempo elegante. Nobres, até quando cagam devem ser elegantes. Acho que Kaiser Bawarrod, o Imperador, é o único homem que fica acima de Devon e tenho a impressão de que falam de igual para igual. Kaiser dá um largo gole no espumante, o pomo de adão protuberante se remexe enquanto ele joga a cabeça para trás. — Seja sociável hoje, Devon, dance com Lucretia. — Kaiser solta a taça em cima da mesinha de canto, perto da minha cabeça e se afasta, com um sorriso quase sádico no rosto.

Vejo Devon jogar os olhos para cima, como se estivesse de saco cheio ou algo assim, Por acaso ele não quer dançar com Lady Lucretia? Que tipo de homem recusa dançar com a mulher mais bonita e mais poderosa da sociedade? Isso me intriga e talvez seja algo no qual eu deva prestar atenção e usar como uma vantagem. De fato esses vampiros nos tratam como lixo ou até, com tanta indiferença que as vezes nem percerbem que existimos. Ser socialmente invisível nem sempre é algo ruim. Fico ainda por ali, fingindo ser um cachorro mais interessado nos petiscos que meu mestre me dá, mesmo que eu já não aguente mais comer biscoitos ou pão de mel. Devon é um homem importante e muito procurado para pequenas conversas, mas ao mesmo tempo em que ele quase sorri, é notável sua falta de interesse ou de vontade em conversar com os nobres. A única hora em que ele demonstra interesse em algo é quando Román passa na frente da gente, fugindo de uma garota loira de outro castelo e indo em direção à saída do salão. — Ah! — Ele acena com a mão, chamando Román, que para de andar e olha para nós com insatisfação estampada no rosto. — Onde pensa que vai? Estico a cabeça por cima da perna do meu mestre para olhá-lo, ele desvia o olhos cinzento de cima de mim. — Qualquer lugar é melhor que essa droga. — Román responde sorrindo. Atrás dele, vejo Lady Lucretia sorrindo e caminhando até onde estamos. — Sente aqui agora. — Devon aponta a cadeira ao lado. Como um bom soldado, Román não o desobedece, mas solta um suspiro indisciplinado e marcha em nossa direção, jogando-se contra a poltrona. — Reporte qualquer coisa da fronteira. — Devon coloca a mão na testa, pensativo. — Você sabe tudo da fronteira. — Apenas diga qualquer coisa. — Certo. — Román suspira sem compreender, mas não ousa desobedecer. — Os guardas na fronteira estão com uma ou duas dificuldades de manter o perímetro. — Devon! — Lady Lucretia dá um gritinho e chega empolgada, balançando seu vestido pomposo e cheio de panos drapeados. — Vamos dançar! — Agora não, Lucretia, estou ocupado. — Ele aponta para Román, que é obrigado a tossir para não acabar rindo. — O que você estava dizendo sobre a fronteira? — Dificuldades no perímetro. Temos que rever algumas estratégias urgentes. — Román lança um sorrisinho amarelo. — Oh, urgentes? — Lady Lucretia coloca a mão no corpo, como se lhe faltasse ar. — Muito urgente. — Román faz que sim com a cabeça. — Mas você pode passear com meu cachorro enquanto isso. — Devon estica para ela a corrente que segura. — Se você for simpática, talvez ela não morda você. Com um sorriso de quem não conseguiu o que queria, Lady Lucretia pega a corrente e olha para mim. Solta um suspiro. — Oh, bem. Vamos cachorro. — Ela empina o nariz e começa a andar, puxa a corrente no meu pescoço, me enforcando, fico de quatro para andar, quase sendo arrastada. — Vá. — Devon dá um tapa na minha bunda e eu olho para ele revoltada, mas ele já desviou a atenção de mim, conversando com Román sobre mantimentos que provavelmente nem são necessários, puro fingimento.

Lady Lucretia me arrasta pelo salão, desfilando comigo. Se perguntam quem eu sou, ela responde “o cachorro de Devon, estamos dando uma voltinha” e continua pelo salão. Uma ou outra menina se aproximam, trocam palavras rápidas e até rosno para um rapaz que além de querer mexer em mim, não tirou os olhos dos peitos enormes de Lady Lucretia. Um nobre quebra um copo, sou obrigada a passar por cima dos cacos de vidro, não me cortam, mas um ou outro me pinica e enfinca no meu joelho, tenho que disfarçadamente passar a mão na perna para tirar. Já estou cansada de engatinhar, de ser tocada por garotas, de rosnar quando são belas ou quando são homens, de fingir estar em fúria para morder os dedos das pessoas, quando Lady Lucretia anuncia: — Até que gosto de você. — Ela se abaixa um pouco e me afaga, eu penso em rosnar, mas como fiquei sabendo que ela quem mandou matar o escravo que me antecedia, prefiro aceitar o carinho. Finjo que está ótimo, que suas unhas não estão me incomodando. Quando se cansa, Lady Lucretia se levanta e me puxa. — Vamos devolver você pro seu dono. Damos a volta completa no salão. Devon e Román ainda estão conversando quando nos aproximamos, mas Lady Lucretia apenas solta a corrente por cima dele e se joga, abraçando-o por trás. — Awm, Devon, vamos dançar. Você não pode passar a festa inteira cuidando de assuntos do exército, é para isso que você tem Román e Drarynina. — Choraminga, tentando a todo custo conseguir sua atenção. — Agora não. — Devon apenas desfaz o laço dos braços finos de Lady Lucretia, afastando-a. — Por que não vai dançar com Mordecai? Ele nunca recusa. — Ele tem cheiro de alho. — Lady Lucretia faz cara de insatisfação. Devon e Román ainda trocam uma ou duas palavras sobre estratégias que não existem, ou que, se existem, são desnecessárias já que a conversa é falsa e Lady Lucretia coloca as duas mãos na cintura, percebendo que não conseguiu a atenção de Devon. Outra coisa que Byrn vai morrer quando ficar sabendo é que Lady Lucretia definitivamente está adorando a possibilidade de se casar com o Glutão. Acho que posso dar a ela o certificado de garota apaixonada que tem os sentimentos ignorados. Pobre Lady Lucretia! — Já que você não vai me dar atenção, vou brincar com seu cachorro. — Ela se estica para pegar a corrente solta na perna dele. — Eu danço com você. — Devon fica em pé e segura no pulso dela. A corrente ele entrega para Román. — Leve meu cachorro para a sala de estar. Román faz cara de tédio e pega a corrente ficando em pé. Devon e Lucretia se afastam, ela gira contente, sorrindo e o abraça enquanto começam a dançar. Eles até formam um belo casal, mas vê-la agarrá-lo desse jeito e a forma com que ele fica desconfortável ao redor dela me dá até um pouco de raiva. — O que você está fazendo? — Sinto um puxão no braço e Román me ergue do chão, me arrastando. Ando um pouco trôpega, com as pernas até dormentes de tanto ficar na mesma posição. Ele me arrasta até a saleta de Devon novamente e me atira contra o sofá, impaciente. — Ai! — Caio sentada. Olho para minhas mãos, estão negras de sujeira do chão, bem como meus joelhos.

Román vai até a bacia de água, pega uma toalha vermelha e a molha. Joga a toalha na minha direção. — Limpe-se e avise se tiver algum ferimento. — Como se você se importasse! — Resmungo, atirando o pano de volta na cabeça dele. E daí que ele é um nobre e que pode mandar me matar? Eu não ligo e não me importo! Além do mais, ele é o babaca brincando com os sentimentos de Nytacha. — Você tem razão, eu não me importo com você. — Ele tira o pano de cima da cabeça dele e caminha até ficar na minha frente, curvando, para me olhar bem nos olhos. — Mas eu me importo com Nytacha e ela se importa com você. Escutar o nome de minha prima em um momento em que eu quase me esqueço quem sou, cria um efeito anestesiante no meu corpo e meus olhos se enchem de água, prestes a chorar. Román estende o pano para mim. Respiro fundo e pego. Ele se ergue colocando as duas mãos no bolso da calça, afastando-se. — Você realmente se importa com ela? — Pergunto, passando o pano no meu rosto, pescoço e ombros. — Se você quer sobreviver, jogue o jogo. — Román diz, com a voz baixa, caminhando até a porta. Ele segura na maçaneta e olha para mim por cima do ombro, quase com piedade. — Nesse tabuleiro, você precisa reconhecer seus aliados e seus inimigos. Definitivamente, não faço parte da segunda opção. Comprimo os lábios e faço que sim com a cabeça. Acho que isso me responde a pergunta. Ele definitivamente se importa com Nytacha e eu definitivamente preciso de um aliano nessa bagunça. — Então o que faço agora? — O que escravos fazem. — Ele abre a porta e me deixa sozinha na saleta. Respiro fundo mais uma vez. A porta fecha e a quase escuridão me envolve. Levanto do sofá e ando até a tina de água, mergulho a toalha e passo novamente no meu corpo, me banhando, limpando a sujeira do chão do salão. Largo a toalha em cima da bancada, junto com os panos sujos de sangue e tento puxar a correndo do meu pescoço, mas o cadeado impede que eu tire. Volto para o sofá e me sento, meu corpo todo dói e me sinto tão exausta que acabo adormecendo. Acordo com o barulho do aspirador de pó e dou um pinote, percebendo que meu corpo está coberto por uma manta branca e felpuda, acho que pele de um urso, forrado com veludo. Pisco alguma vezes e percebo uma mulher passando aspirador na poltrona e outra esfregando a mancha de sangue no tapete, ambas humanas, com uniformes de empregada, preto e de avental vermelho. Uma terceira se aproxima de mim com uma bandeja dourada, com tampa de abóbada e um vaso de flores, colocando na minha frente, em cima da mesinha de centro. Sinto o cheiro de café e de leite, de pão assado e algo doce, talvez geléia. As faxineiras não param seu serviço só porque vou comer, continuam ali fazendo barulho o aspirador de pó me dá dor de cabeça. — É pra mim? — Sim, quando terminar é só sair, nós limparemos. — Ela me lança um sorriso simpático e se afasta, pegando uma vassoura. Eu fixo os olhos no vaso de flores brancas ao lado da bandeja, há um cartão. Pego e abro

o pequeno envelope vermelho, em tinta doura está escrito “Au-Au” e a marca de carimbo de borboleta. Engulo seco. Acho que estamos mesmo com um acordo. Abro a bandeja e meus olhos crescem para cima de um café da manhã de rainha, bem o que eu acho que rainhas comem no café da manhã: pães e bolos diversos, mel, geleia, frutas, suco, café, leite! Preciso dar um jeito de levar para casa um pouco. Como o que consigo, uso a caixa do vestido que foi rasgado para levar o restante para casa e como estou sem roupas, sigo pelo corredor do castelo de cinta-liga mesmo. É de manhã, mas ainda está cedo, todos se dirigem para seus turnos. As pessoas me olham e abrem caminho para eu passar, os garotos me engolem com seus olhares, mas ninguém mexe comigo, amedrontados com o bracelete no meu braço. Sobrevivi ao primeiro dia, no entanto, a única coisa que consigo pensar é que preciso transformar esse bracelete em uma tatuagem.

CAPÍTULO 08

As nove Casas A porta está trancada. Tento girar a maçaneta, mas ela não cede. Dou socos na porta, talvez mamãe esteja dormindo exausta, mas não escuto nem Johin. Aos poucos, a irritação da porta ter sido deixada trancada como se esquecessem de mim dá lugar à preocupação. E se mataran minha família? Posso ter feito algo muito grave ontem, algo que tenha irritado alguém. Nem na casa da minha tia! Não tem ninguém! Tudo bem, não me desesperarei! Nytacha deve estar na lavanderia, meus tios estão em algum turno de serviço e minha mãe e irmão devem estar passeando. Eu tento, mas as possibilidades não me convencem. A humilhação que passei ontem, o estresse de ser ameaçada por todos os lados e a carga emocional de saber que Nytacha está em perigo se envolvendo com um nobre me deixa zonza e me atinge como uma onda violenta. Quando percebo, estou sentada no chão, com a caixa de comida tombada aos meus pés e chorando aos soluços. Até me arrependo de ter aceitado aquela vaga! As pessoas não sabem como é passar pelo o que passei e certamente se eu reclamasse me responderiam " você quis", “você se inscreveu”, “você sabia”. Na verdade eu estava enganada sobre como realmente era a Sociedade dos Vampiros. Não imaginei que ser uma escrava dava tanto direito sobre a minha vida ao meu senhor. Achei que seria forte, que aguentaria, que não havia nada que alguém pudesse fazer para arrancar a minha dignidade... Eu estava enganada. Agora estou assustada, colocando para fora todo o medo que eu senti e escondi dentro de mim, desesperada que o pior possa mesmo ter acontecido! — Jay?! — Alguém segura em meu braço. Ergo a cabeça e meus olhos molhados atrapalham minha visão. Mesmo assim reconheço a cabeleira loira de Nytacha. — Você está passando mal? — Oh, graças a Deus! — Pulo em cima de minha prima abraçando-a pelo pescoço e derrubando-a no chão. Vê-la viva, bem, normal, é um alívio imediato a todo o medo que eu estava sentindo e uma pontinha de esperança de que está tudo bem, que me desesperei a toa. — Ai, Jay! — Ela reclama ao cair e escuto o som de muitas coisas se quebrando, só então me dou conta que derrubei uma caixa que Nytacha segurava. — Oh puxa, você quebrou a Sabrina. — Quem? — Afasto-me respirando mais calma por vê-la viva e reparo que na caixa de papelão virada estavam suas coisas. Uma caixa de músicas que me lembro quando achamos no lixo, prendedores de cabelo, livros que ela gosta de ler e a boneca de porcelana que ela quis ficar, agora com metade do rosto quebrado. — Onde você está indo com essas coisas? — E emendo. — Onde estão todos?

— Fique calma. — Ela pede quase impaciente, enquanto alcança a boneca e olha o estrago que fiz com tristeza. — Fomos transferidos para outra ala ontem a noite. Estou retirando as últimas caixas, os guardas estavam apressados. — Ela enfia a boneca dentro da caixa novamente e puxa a caixa de músicas, conferindo se quebrou. — O que aconteceu? — Coloco a mão no peito, sentindo o meu coração acelerado. Poxa, que susto! — Estou batendo há horas, você não me ouviu?! — Estava de fones, desculpe. — Nytacha junta suas coisas na caixa novamente. Eu a encaro um segundo, analisando-a direito e vejo que ela realmente tem grandes fones ao redor do pescoço, aqueles antigos. O fio conduz meu olhar de seu ombro até a cintura, onde uma quadrado grande e amarelo está. — Achei esse walkman ontem enquanto você estava na festa. Eu e Byrn fomos lá com Lyek. Aliás! Devia estar brava com você por mandar Byrn me espionar, mas vou deixar passar já que está sem roupa! — Ela estica o dedo me dando uma bronca, mas seu sorriso amigável a trai. Ela tira a jaqueta de couro marrom, passando para mim. — Veste. — E como você conseguiu fazer um walkman funcionar sem pilhas? — Pego a jaqueta de suas mãos e visto, fechando o zíper. Junto uma maçã que rolou para longe na minha caixa de comida e recoloco a tampa. — Eu não. Román conseguiu. — O sorriso dela se intensifica e seus olhos ficam ainda maiores, brilhando com aquela paixonite irritante. — Sabia que ele consegue energizar pilhas com os dedos?! É tão incrível. — Román? — Cruzo os braços e lanço um olhar enviesado para Nytacha. — O que foi? Por que você sempre fica com essa cara quando o assunto é ele? — Nytacha, quanto a isso precisamos conversar. — Fico em pé e espero Nytacha se levantar também, agora ela está de moletom branco de capuz e me olha sem entender o que quero dizer, sua caixa ao lado do corpo, segurada pelos dois braços. — Você por acaso sabe que Román é um nobre da Casa Rynbelech? — Por que você acha que eu não saberia? — Nytacha me encara com espanto, as sobrancelhas curvadas como se tivesse sido ofendida. Então ela sabia! Devia ter desconfiado. — De qualquer forma, ele mandou a cesta, veio no nome dele. — E seus pais estão de acordo com isso? — Como disse: para mamãe, quanto maior a cesta melhor e papai ficou um pouco enciumado, mas ele ficaria desse jeito independente de quem fosse. — Ela dá de ombros como se não fosse nada importante e estica a boca, numa expressão sem graça. É questão de tempo para Nytacha começar a ser um incômodo para a casa Rynbelech e tenho minhas dúvidas se ela tem noção disso. — Então é isso? Você vai virar doadora para os Rynbelech em breve? — Pergunto. — Melhor eu te levar para o novo apartamento, você definitivamente precisa se vestir! — Nytacha se adianta, andando na minha frente e tomando o corredor. — O que tem de errado com o antigo apartamento? Por que temos que mudar? — Acerto minha caixa no braço e a sigo pelo corredor. — Não tem nada de errado com ele, apenas fomos transferidos, você ganhou um apartamento maior! — Nytacha sorri. — Na ala de prata! Tem tantos quartos que sua mãe dicidiu que vamos morar com você.

— Huh? — Fico sem entender. ● ● ● O novo apartamento fica na ala dos doadores permanentes e é sem dúvida um dos maiores. São quatro quartos, mobiliados de acordo com o que minha mãe decidiu (já que eu não estava aqui para decidir e os soldados tinham pressa). Ganhei um quarto só meu, com cama e banheiro, um armário cheio de vestidos, roupas de passeio e sapatos que tenho dificuldades em aceitar como minhas. Nytacha fica com outro, mamãe fica com Johin em um berço e meus tios no último. Só o meu é uma suíte, mas ninguém se incomoda e para ser sincera nem eu, é meu pescoço que pode acabar quebrado aqui, então fico satisfeita de ter uma vantagem. Além disso estou sendo bajulada por todos os lados da família, o que é gratificante de certa forma. Não que isso me livre das minhas obrigações diárias, mas pelo menos ninguém reclama se não lavo a louça. O que meus tios e minha mãe sempre dizem durante o almoço e jantar são coisas como: "tão generoso o seu mestre". Generoso? Aquele monstro não nem um pouco generoso, muito pelo contrário! Acho até que paga muito pouco para a destruição que causa! Porém, minha família parece discordar de mim. A única que não diz nada é Nytacha, mas tenho dúvidas quando ao seu julgamento. Acima de nós, só o andar dos doadores de Bawarrod (sabe a irmã de Arismá? É uma tal de Farrah, doadora de lá) e me incomoda um pouco saber que aquele grupinho metido está dormindo em cima de mim. Por falar nisso, nossos vizinhos não nos aceitam tão bem assim (exceto os doadores de Mordecai) fecham a cara quando passo e trancam suas janelas e portas quando mamãe vai passear com Johin pelo corredor, onde há um jardim interno e grandes janelas de vidro da qual ela tem medo que alguém empurre meu irmão. Eu adoro a vista, a propósito, dali de cima temos uma visão de todo o pátio onde acontecem as feiras e festivais, a noite é possível ver o céu e fica bem longe do lixão, onde minha ala ficava basicamente encostada. A torre dos nobres fica mais próxima, também e percebi que alguns doadores usam binóculos para observar o que acontece do lado de lá. Somos dispensados dos turnos normais de trabalho, mas Nytacha preferiu manter-se na lavanderia, eu a levo e busco todos os dias, pois tenho medo do que os doadores façam com ela. Descobri que são nove Casas Nobres. Na ordem: Bawarrod, a família real com o símbolo do círculo explosivo (descobri que é o símbolo alquímico para Ouro). Logo abaixo, três casas se destacam com mesma força: Riezdra (caduceu alado), Rynbelech (prata alquímica) e Mordecai (lobo negro), as únicas com herdeiros homens (pré-requisitos para serem pretendentes de Lady Lucretia e portanto, sucessores ao trono). Logo abaixo, duas casas com herdeiras mulheres que possam assumir o trono se casando com o Imperador, caso algo aconteça com Lady Lucretia. Adivinha quais são? Soretrat (borboleta) e Taseldgar (rosa). As últimas três casas não possuem descendentes compatíveis e por isso, não estão candidatas a serem sucessores, mas possuem poder de persuadir o imperador e sua escolha entre as três primeiras. São elas: Lunysum (tridente), Blonard (cálice) e Zegrath (caveira).[1]

Tive que me atentar a esses detalhes para entender melhor o tabuleiro, como Román me aconselhou. Claro que contei com a ajuda de Nytacha, Byrn e Lyek nessa tarefa, ou nunca entenderia por completo. Ainda não sei os motivos que levam Drarynina a me ajudar, mas deu para entender que ela e Lucretia possuem uma rivalidade latente e se uma me ajuda, a outra me atrapalha. Não decidi de que lado ficarei, mas por enquanto não preciso me decidir. Oito dias de puro marasmo e sem nada para fazer. São minhas contas. Mamãe está feliz, não nos falta mas comida e nada básico, aliás, até o que não é básico tenho de sobra. Estava em paz. Pena que em um inferno como a Torre Bawarrod, paz não seja nada além de ilusória. — Ei, Nytacha! — Newer, um rapaz com pinta de modelo de propaganda de calça jeans, mas que na verdade é escravo de sangue da casa dos Taseldgard, aborda minha prima tão logo ela pisa para fora de casa. Normalmente eu a acompanho e meus tios saem mais cedo, mas eu ainda estava passando geleia no meu pão, sendo um pouco preguiçosa. Olho para trás, para a porta, por cima dos ombros e vejo o rapaz sorridente, segurando um violino. A casa dos Taseldgard são de artistas, valorizam os que possuem algum talento artístico, como aquele DJ que estava na festa ou os músicos da orquestra. Sinceramente, não sei qual é a deles com Nytacha, ela não sabe fazer nada! — Bom dia, Newer. — Inocente, pura e sonsa, minha prima o cumprimenta com um sorriso bonito. — Vá com sua prima, Jay. — Mamãe, que está dando comida para meu irmão Johin em um cadeirão (oba, temos um cadeirão agora!) me aponta a porta e eu levanto com o pão na boca, sem tempo para poder sentar calmamente e comer. Devia ter acordado mais cedo! — Posso te acompanhar à lavanderia hoje? — Newer pergunta, oferecendo o braço. — Não quero que você se perca. — Obrigada, mas eu sei o caminho. — Minha prima dá uma risadinha boba, cobrindo a boca com a mão. Abro a porta, mostrando minha cara de mau-humor. Nossa, me dá uma dor de cabeça danada vendo esses garotos todos em cima da minha prima e sei que estão ansiosos para passar a mão nela. Quer dizer, como se já não houvessem duas mãos safadas o suficiente em cima de Nytacha. Maldito Román. Eu me pergunto o que ele faria se visse como os escravos ficam em cima dela e não me conformo que a Casa Rynbelech ainda não mandou guardas-costas para minha prima. Quer dizer, eu até sei o motivo: os pais de Román não aceitam esse romance e consideram que o filho está de brincadeira. Só Nytacha não percebeu. — Vai ficar conversando, vai se atrasar, Nytacha. — Puxo o pão da boca e minha prima me dá um sorriso sem graça. Olho para Newer, quase rosnando. — O que é que você quer aqui tão cedo, ein? — Nada, só estava preocupado que uma menina bonita como ela andasse sozinha até a lavanderia, mas se você irá acompanhá-la, fico despreocupado. Até mais, Nytacha! — Newer me lança um sorriso de mentiroso, meio de canto e se afasta, colocando o violino no ombro e tocando uma melodia feliz. Sabe a pessoa que sai assoviando? Pois é!

— Até! — Nytacha ainda responde, acenando com a mão. Dou um tapa na mão dela, só de raiva. — Ai, Jay! — Ai nada, vai ficar flertando ou vai trabalhar? — Pergunto dura. — Não estava flertando. — Ela enche as bochechas de ar e pisa endurecida pelo corredor. — Ele estava flertando com você. — Vou atrás dela, mastigando meu pão. Estou de jeans e moletom verde, roupas novinhas e cheirosas. — Seu namorado não tem ciúmes? — Deixe Román fora disso. — Ela arfa, apressando os passos, os cabelos longos e loiros balançando para lá e para cá, com energia. — Por quê? Você não quis sair do emprego sendo que podia e seus pais continuam doando, não é como se você precisasse trabalhar. — Dou de ombros. É verdade. Minha mãe aceitou a dispensa para cuidar de Johin, mas os pais de Nytacha pretendem deixar uma poupança para ela e continuam trabalhando. — Você só vai lá por causa de Román, não é? — Gosto de ganhar meu dinheiro. — Soa ofendida. Olha, isso me irrita! Seguro no braço dela e puxo, fazendo ela virar para mim. Nytacha me olha aborrecida. — O que é, Jay? — Eu sei que você acha que está apaixonada. — Eu não acho. Eu estou! — Ela puxa o braço e tenta passar por mim, para ir até o serviço, mas eu seguro ela de novo. — Tá, calma, desculpa, não quis ofender. — Ela para e cruza os braços, esperando. — Fico preocupada, você é uma menina bonita, não percebe que todo mundo dá em cima de você? — Pergunto. Nytacha só levanta as sobrancelhas loiras. — E você pode acabar metida em algo ruim. — Ruim como? Já disse que não estou doando sangue. — Ruim como… Alguém machucar você para atingir Román. Ou os pais dele, que tal? Cansados por você não ser uma princesa e estar atrapalhando que ele se case com Lady Lucretia e vire Imperador. Nytacha cobre a boca com as mãos e dá uma risadinha, como se eu fosse uma doida ou tivesse contado alguma piada. Essa menina é real? Em que mundo ela vive?! — Não se preocupe com isso, tá bem? — Ela continua sorrindo e coloca as duas mãos na cintura. — Não são apenas escravos de Taseldgard em cima de você, os Mordecai também ficam! E os meninos da lavanderia. Você é bonita e atrai muita atenção! Nytacha revira os olhos. — Poxa vida, tem um nobre que poderia casar com a vampira mais maravilhosa da Torre que prefere sua companhia, você não acha que está sendo um pouquinho irresponsável? — Continuo. — Você não pode ser tão avoada a ponto de não perceber que, sei lá, alguém pode querer atingí-lo através de você! — Eu sei que podem, mas não irão. Tá bem? Você pode parar de se preocupar comigo agora? — Nytacha pede, com os olhos de um gatinho faminto. — Por favor? — Tá. — Suspiro e falo que sim só para confortá-la. — Vamos indo. Tenho certeza que não sou a única que penso assim: além do meu tio que me pede para acompanhá-la pelos corredores, Román finge ser um soldado de média patente e fica na porta da lavanderia todos os dias. O dia que ele se cansar, ou não estiver afim de prestar atenção,

quem garante que ela estará segura? Descemos pelos elevadores e passamos pelo átrium, pegando a passarela que leva direto para o jardim. A lavanderia fica atrás da Torre, no final de tudo, perto da garagem. Ao menos durante o almoço, Byrn e Lyek cuidarão dela. Entramos na recepção da lavanderia, paro antes de passar pelos guardas. Nytacha ergue a mão e abre um sorriso. — Bom dia, Zahtit! Román, fingindo que é Zahtit acena com a cabeça. Não sei qual a do apelido, mas fico com vontade de dar risada. Espero Nytacha entrar na lavanderia e dou meia volta. Na mesma tarde, recebo um envelope vermelho anunciando que devo comparecer ao anfiteatro naquela noite, uma apresentação de teatro concedida pela Casa Taseldgard vai acontecer. Acho incrível que eles avisam sempre de última hora! A presença dos escravos é obrigatória. O andar inteiro pega fogo com a notícia, todos parecem muito satisfeitos de ter uma atividade por semana, afinal é uma forma de ganhar dinheiro que os escravos de sangue consideram muito digna. Menos eu. Fico com dor no estômago só de pensar em encontrar aquele monstro de novo.

CAPÍTULO 09

A mancha da desonra — Não me insulte na frente dos nobres. — Devon puxa algo do bolso da frente do paletó e me estende um lenço vermelho. É a primeira vez desde que nos encontramos que ele dirige palavras a mim. Pego o lenço e seco os olhos tentando não borrar a maquiagem. Olha, um gesto de bondade! Quase me convence que é um lorde, se eu não conhecesse o lado monstruoso desse homem, é claro. O lenço é macio, de qualidade. Consigo enxergar melhor agora e abaixo as mãos, respirando fundo para me controlar. — Desculpe, meu senhor. — Peço com humildade forjada, enquanto passeio os olhos pelo anfiteatro. Há muitos vampiros lá em baixo na plateia, das castas diversas como os comerciantes e soldados, a maioria casais, algumas crianças. As arquibancadas estão chapadas de nobres, alguns com seus binóculos em nossa direção ao invés do palco. Fungo. Devon não diz mais nada. Estou sentada ao seu lado, mas há distância entre nós. Ele mantém a mão na boca apoiando o cotovelo no braço da poltrona de veludo verde. A impressão que me dá é que ele não queria estar aqui e que o espetáculo o deixa entediado, por mais emocionante que seja para mim. Ele deve ser uma pessoa muito fria ou de exemplar controle emocional e como estamos falando de um militar, acho que deve ser os dois casos. Analiso a linha do paletó azul marinho em seu ombro, a gola da camisa branca bem passada, a gravata perfeitamente alinhada, parece que todas as coisas se encaixam em seu devido lugar, mas a barba mal feita o trai, um pequeno desleixo que chega a ser tangível e me faz acreditar que o que posso ver é representação. Eu preciso conhecê-lo se quero entendê-lo e compreender suas jogadas. Preciso saber tudo sobre ele, o que ele gosta e o que ele não gosta, ou não conseguirei me adiantar em seus passos. Em outras palavras: preciso me aproximar, não apenas como escrava, mas como melhor amiga e amante. É essencial para a minha vida que eu o faça. Mas como? Tenho uma ou duas ideias que necessito por em prática. Uma saraivada de palmas irrompe pelo teatro. O espetáculo chega ao fim, as cortinas fecham. — Vá para sua casa, está dispensada. — Devon levanta no mesmo instante, antes mesmo da cortina reabrir para que os atores (vampiros e escravos) cumprimentem o público. — Espere! — Eu me levanto e vou atrás dele, puxando a saia do meu vestido cinza com apliques de renda para poder andar melhor e dar passadas mais apressadas. Por mais que eu queira voltar para minha casa e ser dispensada do serviço soe uma boa, na verdade, é péssimo! Eu o alcanço, ficando em sua frente, antes que ele abra a porta e passe pelas cortinas que dão acesso ao corredor dos camarotes. — Saia da frente! Não estou com humor para lidar com uma garotinha chorona. — Ele estreita os olhos de brilho amarelado.

— A apresentação foi emocionante e não me importo com seu humor. — Coloco as mãos em seu cinto, segurando-o, trazendo-o mais perto de mim, mas ele resiste, usando os dois braços contra a porta, mantendo distância. — Eu me importo com meu emprego e meu senhor deve se alimentar. — Não estou com fome, além do mais, em breve servirão o jantar. — O leitão assado que vão servir não te satisfaz tanto quanto sangue. — Odeio o gosto do seu sangue. — Devon retruca. — Mentiroso. — Dou um sorriso de canto, provocando e rindo ao mesmo tempo. Forço seu corpo mais para frente, ele não reluta, mas não se entrega, colocando os cotovelos na porta, passo minhas mãos para suas costas, por dentro do paletó, um toque libertino sentindo seus músculos torneados, o calor de seu corpo contra o meu. — O que você sabe sobre mentiras? — Ele venta, rindo em desdém, mas algo na sua voz soa como um desafio, as pontinhas dos dentes aparecem entre seus lábios, sua mão segura meu queixo com força, querendo me machucar. Mantenho meus olhos fixos no dele e abocanho seu polegar esquerdo, chupando até meus lábios se encostarem em um anel dourado. Seu perfume amadeirado invade minhas narinas. Devon cheira como um enigma e quero decifrá-lo por inteiro, todos os olhares, todos os tons de rouquidão em sua voz. Ele tira a mão de mim, forço um pouco a sucção para criar uma resistência sensual. — Sei que você tem paladar requintado, meu lorde. — Digo. Irritado, ele segura em meus cabelos com força, amassando meu penteado. — E que ainda tenho meu posto como sua escrava. — Estico o pescoço, oferecendo a tentação a ele e diminuindo a dor em meu couro cabeludo. — Posso não ter gosto melhor que um porco, mas ao menos sou um pouco mais cheirosa… E não vou correr. — Não vai correr? — Ele me pergunta, puxando minha cabeça ainda mais para o lado, forçando a veia do meu pescoço, sua boca quente encosta em mim. — Ótimo. Odiaria ter que lidar com manchas de sangue na minha camisa ou no seu vestido durante o jantar. Ele enfia seus caninos em meus pecoço como uma cobra, sinto a picada aguda e momentânea, aperto minhas mãos firmes ao redor de seus ombros e apenas torço para que ele pare antes de eu precisar empurrá-lo. Meu corpo inteiro esquenta e fecho os olhos, é quase prazeroso o som forte das goladas viciadas que ele dá. Como pode dizer que odeia o gosto do meu sangue e me beber tão sedento? Minha mente vacila como se eu fosse adormecer. Devon simplesmente não consegue parar e força cada vez mais seu corpo para cima do meu, me deixando sem saída e ofegante, sem ar. Quantos goles ele já deu? Ele precisa parar. Eu preciso fazê-lo parar! Não faço nada, entretanto, meu corpo inteiro entrando em êxtase, quase desejando que ele vá até o fim e sugue toda a minha alma junto com o sangue. Devon se separa de mim abruptamente, me empurrando contra a porta com violência e vira de costas, colocando a mão na boca, respirando fundo. Eu fico parada, ofegante, toco o local da mordida com a mão e não tem ferida. É uma dicotomia desconcertante a forma com que ele é tão violento e ao mesmo tempo, tão gentil. Ou ele tem muito autocontrole, ou detesta intensamente o momento em que não tem.

— Está satisfeito, meu senhor? — Pergunto cortando o silêncio. O teatro ainda está aceso, mas o barulho ambiente é um murmurio de vampiros escoando pela porta de entrada, deixando o recinto quase vazio. — Saia. — Devon me ordena, a voz fraca. — Senhor? — Saia! — Ele grita tão potente que ecoa no teatro. O murmúrio cessa. Abro a porta sem pestanejar e saio, encarando o corredor. Os nobres que estão por ali olham para mim intrigados, em silêncio, uma garota de dez anos com cabelos vermelho-fogo me encara espantada, o vestido de renda rodado amarelo queima meus olhos. Ela está acompanhada de Elliot, aquele garoto que conheci na sala de espera do salão de festas. Trocamos um olhar de pequena confidência e ele aponta para algo no meu ombro. Abaixo o olhar, vendo a alça do meu vestido caída, a pele vermelha como se eu tivesse sido espancada. Passo o dedo, não é sangue, está dolorido agora. Vou subindo até segurar em meu pescoço, não consigo sentir a mordida no tato, da outra vez, não ficou nem a marca. Elliot e a menina se afastam, são os últimos a deixarem os camarotes além de nós. Eu não sabia que sua mestre era uma simples garotinha da Casa Mordecai! Que sortudo. Enquanto ele serve uma menina de estômago pequeno, eu sirvo um tigre faminto. Coloco a mão no rosto, respirando e tento ajeitar meus cabelos, ajeito a alça. Não demora muito para meu mestre sair do camarote. O paletó alinhado, o lenço que me foi oferecido dobrado no bolso. Fico ereta quase em posição de sentido com sua presença, endurecida. Devon me olha de canto e segue pelo corredor. Respiro fundo e vou atrás. ● ● ● — Qual o seu problema? — Lady Lucretia joga o espumante na cara de Devon, molhando-o. — Não me ofenda! — Devon bate a mão fechada na mesa irado. Uma lâmpada perto deles explode. Dou um salto parada no mesmo lugar, mas Lady Lucretia não parece assustada, ela nem se altera. Seu vestido é rosa, rodado, com apliques de cristais no corselete. Os cabelos castanhos em um coque meio solto com uma tiara de ouro e diamantes na cabeça, qualquer homem que se preze dançaria com ela mil vezes, não apenas por seu título nobre, mas sua beleza. — Dance comigo, agora! — Ela exige rangendo os dentes. A música no salão não se interrompe porque o casal está brigando. Um nobre mais perto de nós segura um pão de mel antes de colocar na boca, intrigado. A verdade é que Devon dançou com quase todas as moças da nobreza, menos com Lady Lucretia. — Você devia dançar, Devon. — Ao lado dele, segurando uma taça de vinho está Evolus Mordecai. Cavanhaque bem escuro como seus cabelos, a pele bem branca e olhos da cor do mar. Aparenta mais de quarenta anos, é viúvo e tem três filhas. — Por que deveria? — Devon olha para ele de lado, meio rindo e erguendo uma sobrancelha, pegando o lenço do paletó e limpando o rosto. — É insultante deixar uma mulher se humilhar assim por você. — Evolus continua,

agora um sorriso de discórdia se faz em seu rosto. — Dance com ela você. — Devon joga o lenço aos pés de Lady Lucretia, zombando. — Ela não quer dançar comigo, mas com você. — Evolus coloca a taça na boca e dá um gole, erguendo as duas sobrancelhas de uma vez. Troco olhares com Renira, que está do lado dele e segura a taça de vinho que ele está tomando a goles grandes, ela desvia o olhar de mim para o lenço que está no chão. Abaixo-me e pego. — Jaylee. — Devon me chama, erguendo a mão, como se só me percebesse agora. Meu coração dá um salto, especialmente que Lady Lucretia me lança um olhar abusado, de puro ódio. Ai, ele não vai mandar eu dançar com ela, vai? Isso seria muita humilhação para uma princesa e acenderia a ira dela contra mim. — Ande, não fique aí parada. — Ele gesticula com os dedos, me chamando mais. Entrego o lenço para ele, mas ele segura minha mão, os olhos de Lady Lucretia pegam fogo e Devon me puxa, para o meio do salão. Rapidamente ele está com as mãos ao redor da minha cintura. — Dance. — Passa a ordem com a voz dura. Abro os olhos em surpresa, mas faço como ele manda, dançando. Ele me gira em um passo de dança e posso ver de relance Lady Lucretia destruindo a taça de vidro negro que segurava no chão, irada. Termino de girar e dou um encontrão violento com o corpo de Devon, minha bochecha em seu ombro. Afasto-me, mas continuo dançando. — Você não devia irritá-la, meu senhor. — Quis dizer algo como “me usar para irritá-la, ou vou morrer”. — E você não devia me dizer o que fazer. — Devon retruca esticando uma sobrancelha para cima, quase se divertindo. — De qualquer forma, ela me causa tédio. É mais divertido assim. Ele me vira de novo, segurando minha mão. É uma valsa simples, mas não sou a melhor dançarina e piso no pé dele. — Desculpe. — Peço parando de dançar. — Você é um completo desastre. — Ele ri de bom humor, não de deboche, solta minha cintura. — Olhe para trás de mim, o que ela está fazendo? — Lady Lucretia? — Eu a procuro, ficando nas pontinhas dos pés para olhar por cima do ombro dele. Avisto a princesa. — Conversando com Mordecai, braços cruzados, olhando pra cá. — Dê risada, alta, dissimulada. — Ele me puxa em sua direção. Dou uma risada jogando a cabeça para trás, como se fosse a situação mais divertida da face da terra, mas estou com pena de Lady Lucretia, acho que ela tem reais sentimentos por Devon e ele fica brincando de forma sádica. — Devon! — Lady Lucretia se manifesta bem do lado da gente, me dá uma olhada de cima a baixo insatisfeita. — Não seja ridículo, ela está pisando no seu pé. — Talvez se você pedir educadamente, eu dance com você. — Não pedirei. — Lady Lucretia empina o nariz. — Então não dançarei contigo, alteza. — Ele lança um sorriso de vitória para ela, ainda dançando comigo. Não parecem dois adolescentes? — Está bem. — Lady Lucretia venta pelo nariz. Ela me olha firme, puxando o vestido

rosa para os lados e me reverenciando, inclinando só um pouco o corpo, os olhos raivosos em cima de Devon — Jaylee, com sua licença. É o suficiente para Devon parar de dançar e me soltar, virando-se para Lady Lucretia, estendendo as mãos com satisfação no olhar. Lady Lucretia sorri, mesmo que não tenha sido muito vitoriosa em sua requisição, conseguiu o que queria e parece bastar para ela. Finalmente Devon dança com Lady Lucretia, duas, quatro, oito músicas na sequência! Fico cansada só de observar, de longe, perto da mesa de doces, tentando escutar o que Kaiser Bawarrod está falando aos sussurros para um dos nobres da Casa Lunysum, de cabelos brancos e monóculo, ao lado do velhote há uma menina muito nova e perto do Imperador está Zane, o metido a rockstar, com a tatuagem da Casa em seu pescoço. Ele me olha com desdém, mas depois não presta mais atenção em mim. Pelo que pude pescar da conversa, esse nobre não está muito contente com o fato de que a Casa Riezdra possa vir a ser a próxima no trono e acha que Kaiser Bawarrod devia ter um filho e certificar-se de que fosse homem. Olhando para Lady Lucretia, o Imperador engole todo o seu espumante. — Ei você. — Ele me chama, estendendo a taça na minha direção. Dou um pinote de susto, por ser pega observando-o. Dando na cara que escutei a conversa. — Encha aqui. Vou até a mesa e pego a garrafa de espumante de dentro do balde de gelo, tentando equilibrar na mão como fazem os garçons, segurando um guardanapo. Encho a taça dele pela metade, ele puxa, quase vai espumante no chão mas contenho a garrafa em tempo. Zane revira os olhos azuis para o fato de que sou desastrada. — Qual o seu nome, garota? — O Imperador me pergunta. — Jaylee, senhor. — Ofereço agora o espumante para o outro nobre, que estende a taça enquanto seus olhos enrugados engolem meu decote. — Diga-me uma coisa, escrava. — O Imperador pede. Não sei porque perguntou meu nome se ia me chama de “escrava”. — É verdade que ele está bebendo do seu sangue? — Não é para isso que escravos servem? — Pergunto, um pouco atrevida, com um sorriso. — É para isso que os escravos servem! — O velhote do meu lado dá uma risada, batendo a mão na mesa exageradamente. Zane coloca a mão na boca, se segurando para não rir. Ele é jovem, bonito, alto, os cabelos castanhos são compridos na altura do ombro e com ondinhas dígnas de um anjo barroco. Tem ares de modelo, mas seu rosto é um pouco andrógeno demais para o meu gosto, entretanto, me surpreende que ele esteja na Casa Bawarrod e não na Taseldgard (que costuma pegar os mais bonitos com pinta de rockstar). O rosto de Kaiser Bawarrod continua sério e imóvel, como um boneco de cera. Penso que vou ser castigada, mas o velhote bate sua taça com a do Imperador: — Celebre, Kaiser, se Riezdra está bebendo sangue você terá meu apoio no que precisar. — Preciso mesmo de recursos para armamentos. — Kaiser lança um sorriso meio sem vontade recebendo o brinde e volta a olhar sério para sua sobrinha dançando com o seu general. — Diga quanto, eu financio! — O velhote parece tão satisfeito que se esqueceu do meu

decote. — Mas vou querer alguns dos meus homens à frente da tropa. — Se puder fazer Riezdra concordar, é claro. — O Imperador dá um gole em sua bebida. Por que tive a impressão de que a notícia não agradou completamente ao Imperador? ● ● ● Os lampiões cincilam e meus joelhos cansados já quase não aguentam mais as passadas com peso extra. Depois da sessão de dança, Devon e Lady Lucretia beberam espumante demais, rindo de alguma coisa que eu não conseguia compreender. Preocupado com a imagem de sua sobrinha, Kaiser Bawarrod ordenou aos escravos que os fizessem parar, eu inclusive. Enquanto os metidos arrancaram Lucretia dos braços de Devon, me encarreguei em fazê-lo chegar até a saleta privativa. Não sabia que vampiros podiam ficar bêbados, mas acho que parte do plano de Devon é humilhar Lady Lucretia na frente de todos os nobres a todo custo. Ela não estava agindo de acordo com o que se espera de uma lady, por sinal. O que ele ganha com isso? Por que não aproveita para casar-se com ela simplesmente? Não me perguntem, mas fico com a impressão de que sua intenção é mais em irritar o Imperador, ou desafiá-lo de alguma forma. Talvez a questão nessa situação não seja Lady Lucretia, mas o trono do Imperador, não tomá-lo, apenas desmoralizá-lo. Com dificuldades fecho a porta. Caio com Devon no sofá vermelho. Arfo, enquanto ele dá risada e me levanto, quando vou me afastar Devon segura o meu braço com força, machucando. — Ai! — Onde pensa que vai? — Pegar água, você está bêbado e imundo. — Puxo o braço, mas ele não me solta e me derruba de novo no sofá. — Ai! — Água não terá efeito. — Devon segura no meu rosto, sobe por cima de mim. — Sangue sim. Vejo os caninos dele aumentarem e saltarem por sua boca, como um predador. Meu coração dá um salto, palpitando forte em susto. Ele morde meu pescoço, do outro lado. Duas vezes na mesma noite? Ele é realmente insaciável, mas não sei se meu corpo resiste a tanto! Um humano precisa de algum tempo para a medula óssea funcionar, afinal de contas. Não posso permitir que ele continue me engolindo por tanto tempo e preciso de uma alternativa. O empuro com força, para ele tirar a boca do meu ombro direito e o beijo, sentindo o gosto do meu sangue em sua língua misturado ao hálito de álcool. Ele desfruta do momento, lambe minha boca e morde cortando a carne do meu lábio de baixo, o sangue escorre pelo meu queixo, mas ao menos não é tanto quanto se fosse a jugular. Permito que Devon percorra a língua pela minha pele, descendo para meus seios, limpando o sangue. Seguro em seu rosto, puxo seus cabelos, arranho suas costas. O pavor dá espaço à excitação, meu corpo vibra com cada beijo e mordiscada que desfere com leveza. Devon desliza os dedos pela alça do meu vestido, tirando-o por meu

ombro, explorando-me, lambendo meu seio. Curvo o corpo para trás, ele segura minha cintura com firmeza encaixando seu quadril com o meu, enquanto puxa o meu vestido para cima, me despindo. O pano cinzento e pesado cai no chão com um barulho seco entre nossas respirações, ele continua segurando minhas mãos para cima, com uma das mãos, a outra desliza, devassando meu corpo, um toque quente, firme. Sinto o elástico da minha calcinha se partir pela lateral. Eu o abomino do início ao fim, ainda assim Devon é capaz de criar as mais diversas sensações com suas mãos. Minhas bochechas esquentam, tenho vergonha de mim mesma agora. Seus dedos me alcançam, fico vulnerável, inteiramente dominada e e um murmúrio apertado escapole da minha garganta. Odeio-me por isso. — Quem é a imunda agora? — Ele sussurra ao pé do meu ouvido, dá um beijo em meus lábios que não tenho fôlego para retribuir e sai de cima, largando-me por inteira nua no sofá. Meu corpo parece de chumbo e me sinto mais cansada que o normal, mas me sento, procurando uma almofada para me cobrir. Devon se aproxima do espelho, arruma os cabelos para trás, pega a jarra e lava as mãos na bacia com água, secando com uma toalha azul marinha. Ele deixa a saleta, quando a porta abre a festa já acabou, mas o salão está aceso com os empregados limpando. Ele se afasta, a porta fica aberta, me expondo. Apenas choro, humilhada.

CAPÍTULO 10

Ataque — Jaylee, saia do banho e vá buscar sua prima! — Minha mãe espanca a porta do banheiro do meu quarto. — Você vai se atrasar! Desligo o chuveiro e me enrolo com o robe azul claro. Abro a porta, liberando o vapor do banho e encaro minha mãe, de saia cinza e blusa preta, os cabelos castanhos escuros presos em um coque. Ela está de brincos e de bochechas coradas. Sabe quanto tempo eu não a vejo saudável assim? — O que foi? — Pergunto indigesta, os cabelos pingando. Não terminei meu banho. — Tem duas horas que você está gastando água, minha filha. E para quê tomar cinco banhos em um único dia? Você fez a mesma coisa a semana toda, o que você tem? — Nada. — Reviro os olhos. Só quero tirar ele de mim. Parece que Devon ficou impregnado em todo o meu corpo e tenho nojo de mim mesma. Entretanto, por mais que eu esfregue a pele, não sai, eu me cheiro e sinto a essência do perfume amadeirado dele. Eu sinto suas mãos sobre meu corpo e o calor de sua pele ao redor de mim é incessante! Se pudesse, eu ficaria para sempre mergulhada em uma piscina de água fria. — Vou passear um pouco com Johin, não demore que depois iremos juntas ao festival. — Ela sorri animada e junta as mãos. — Ah, tá. — Forço um sorriso. Festival do Inverno. Urgh. Estou sem vontade de ir, mas só se fala nisso nos últimos dias. Há cartazes em todos os corredores e em comemoração ao início do inverno, hoje a noite terá um festival, comerciantes de diversas localidades trarão souvenirs e as barraquinhas servirão pinhão, milho e deliciosos doces à base de maçã. — Uau que desânimo, você costumava amar a festa. Tá se sentindo mal? Anemia, talvez? Quer que eu faça um bife de fígado para você? — Eu tô ótima. — Reviro os olhos e vou até o meu armário, atrás de roupas. — Não aguento mais comer bife de fígado e não me sinto anêmica, nem doente, nada disso! Abro a porta e encaro meu reflexo no espelho, o meu problema é que os nobres estarão no festival. Hoje deixo novamente de ser Jaylee e viro a escrava daquele cretino. É feio ter tanta raiva na alma, mas é verdade. Eu odeio aquele porco! — Quero ver você comer muitas maçãs no festival para levantar esse astral. — Mamãe me mostra um sorriso animado. — Ande, sua prima não pode ficar sozinha te esperando. — Sozinha? Até parece que a Nytacha fica sozinha. — Uma gargalhada amarga escapa de mim. — Todos a cercam, quando não tenho que me preocupar com as presas afiadas de um nobre mimado são as garras de um escravo safado ou os garotos da lavanderia! — Arfo, puxando um vestido de inverno cinza escuro com mangas e botões pretos. Abro a gaveta, pego

calcinha e sutiã. — Não fale assim, parece que você está com raiva da sua prima! Ela não tem culpa de ter nascido bonita e os rapazes gostarem de cortejá-la. — Mas tem culpa de ficar sorrindo pra qualquer um que aparece na frente! — Arranco o robe e coloco a calcinha, assim que abro o sutiã, mamãe me olha torto. — O que foi? — Esse conjunto não. — Mamãe revira os olhos, se adianta e remexe minha gaveta, tirando de lá algo muito sexy. — É melhor você estar pronta. Não retruco. Não quero estar pronta, mas ela tem razão. Não posso arriscar ser vista de forma desleixada por meu mestre ou pelos outros nobres. Não posso insultá-lo, mesmo que minha vontade seja a de cuspir na sua cara! Coloco o que mamãe escolheu, me cubro com o vestido e calço botas até o joelho. Penteio o cabelo e faço uma trança. — Depois me arrumo mais, quando Nytacha estiver no banho. — Suspiro, marchando irritada pela casa. — Tome cuidado! — Ela acena da porta. O corredor cheio de escravos até se esvazia quando piso para fora, exceto Renira que continua sentada ao chão bordando um vestido, acena para mim sorridente. Tenho raiva de todos eles. Passo pelo pátio, estão montando as barracas do festival, já em processo de finalização. Muitos vendedores de fora já estão autorizados a entrar no castelo e a noite vai ser mais populosa que o normal. Há hospedaria para os viajantes e alguns nobres de fora aparecem. Será uma semana bem movimentada! Está uma noite fria, ventando pouco, entre o agradável e o incômodo, com sensação de nostalgia. No inverno anoitece mais depressa, mas eu também estou atrasada. Meu tio me detestaria se eu deixasse Nytacha voltar sozinha no escuro, não são todos os locais que a iluminação é suficiente e alguns corredores ficam sempre escuros, mal iluminados e sem manutenção apropriada, me dá aquela impressão de que quebram as lâmpadas de propósito para assaltos. Chego na lavanderia e avisto Nytacha conversando com Byrn, elas estão rindo e parecem animadas. Aproximo-me delas, com as duas mãos no bolso. — Desculpe fazer você esperar, Byrn. — Oi Jay! — Byrn tem um sorriso genuino e enlaça o pescoço de Nytacha, que cobre a risada com a boca. — Não tem problema, estávamos conversando sobre o festival! Estou tão empolgada, o pátio está cheio de gente! Vou fazer uma doação, espero que consiga algum nobre forasteiro! Eles pagam muito bem! — Lyek disse que a colheita das maçãs foi ótima e o pessoal da cozinha está comemorando. — Nytacha me estende uma sacola de maçãs. — Olha quantas que ganhamos! — De quem? — Já pergunto com uma revirada típica de olhos. — Como de quem? — Byrn debocha, colocando as mãos na cintura, em seu braço tem uma sacola de maçãs também, menor. Ela está de casaco preto e calça jeans bem escura. — Quem você acha que deu? — Não é o máximo? — Nytacha sorri feito boba. Aposto que foi Román! Fico com tanta raiva que dou um tapa com força na sacola de Nytacha, derrubando tudo.

As maçãs caem e rolam pelo chão da recepção da lavanderia. Byrn se arrepia feito um gato e vira estátua. — Ai! — Nytacha me encara com espanto e indignação, os olhos azuis me julgando e me chamando de louca. — Foi um presente! — Você não precisa se sujeitar a viver de favores e de presentes! — Grito, erguendo os dois braços para cima. — Por acaso você tá passando fome? Não! Você tá bem, com todo o dinheiro que eu e seus pais estamos ganhando! Você me envergonha, parece uma puta! — Qual o seu problema? — Nytacha me empurra e se abaixa, para pegar as maçãs do chão. Ela funga e limpa as lágrimas escorrendo com o braço, usando a manga do casaco vermelho, novinho, recém-adquirido. — Por que você está chorando?! — Puxo Nytacha pelo braço, levantando-a do chão. — Larga isso aí! Não percebe que ele não gosta de você e está só se divertindo?! Enquanto você age toda boba e apaixonada, ele está lá, mordendo as escravas e transando com elas! — Eu odeio você! — Nytacha berra, com a boca retorcida, chorando. Ela se debate contra mim e se solta, saindo correndo. — Nytacha! — Eu a chamo, ela corre ainda mais depressa. Coloco as mãos na cintura e olho para Byrn. — O que eu fiz? — Além de surtar?! — Byrn me encara com espanto, é até como se ela não me reconhecesse nesse instante. — Não surtei, apenas disse a verdade! — Arfo, já arrependida das coisas que eu disse para minha prima. — É para o bem dela. Román deu as maçãs, mas você sabe que... — Quem deu as maçãs foi Lyek! — Byrn se abaixa, resfolegando estressada e pega as maçãs do chão, juntando com a sacola. Meu coração até fica apertado, por eu ter dado um tapa no presente de Lyek, pois sei que quando ele dá alguma coisa é de coração e não com segundas intenções. — Estavam sobrando na cozinha a mãe dele fez sacolas e todos da lavanderia ganharam! — Ai droga, achei que tinha sido o Román… — Reviro os olhos, com vergonha de mim mesmo. Abaixo e ajudo Byrn a terminar de guardar. — Mesmo que tivesse sido Román, não precisava falar com a Nytacha daquele jeito. — Byrn me entrega a sacola com as maçãs, coloco as últimas dentro e seguro pelas alças amarelas. — Por que você fica tão alterada quando o assunto é Nytacha e Román?! — Por que eu sei como ele é de verdade. Se ele se importasse com a Nytacha, não teria posto um guarda atrás dela? Ou assumido o romance com verdadeiras intenções? Ele quer o sangue, talvez se divertir um pouco, mas é só o sangue! Esses nobres, esses vampiros, olham para nós como se não fôssemos nada além de um saco de sangue. — Explico meu ponto de vista. Byrn me olha torto. — Você sempre defende os vampiros, é outra sonsa que não enxerga como eles são monstruosos! — Sinceramente! — Byrn arfa brava, as sobrancelhas grossas curvadas. — Você nem se parece mais a Jay que eu conhecia! Não consigo ser mais sua amiga, sinto muito! — Byrn! — Chamo, fazendo bico. — Você não pode dizer isso. — Eu já disse! — Ela balança a cabeça fazendo não e passa por mim, aborrecida. Tapando os ouvidos e indo para longe.

Fico sozinha na recepção. Solto um suspiro chateado e ajeito a sacola nos braços. Olho para a porta da lavanderia, dois guardas estão lá, em pé. Tenho certeza que o da esquerda é Zahtit e isso me irrita ainda mais, pois ele ouviu tudo e não fez nada! Absolutamente nada! Não levantou um dedo para defender Nytacha ou o que sente por ela. Sabe por quê? Porque ele não sente nada! É um mentiroso! Marcho até ele, irada. — Qual o seu problema, Zahtit? Vai ficar só olhando? — Pergunto, quase gritando. — Moça, meu nome é Shino. Zahtit não compareceu hoje ao quartel e pediu dispensa dos serviços. — O guarda comprime o ombro e bate o dedo indicador duas vezes no capacete, indicando que eu não poderia ter reconhecido ele por não poder vê-lo. Minha cara cai no chão, simplesmente. Se Román não apareceu dessa vez, só confirma mais as minhas suspeitas, deve estar distraído com todas as garotas da nobreza que vieram para o festival e são hóspedes na torre. Viu, era desse tipo de coisa que eu queria proteger Nytacha. Meu coração fica apertadinho e triste, como se ela estivesse em perigo. Deve estar sendo difícil lidar com um fora, e eu ainda disse tudo aquilo! Sinto-me terrivel. — Desculpa! — Estendo a mão e dou meia volta. Começo a andar pensando para onde minha prima pode ter ido, mas não preciso procurar muito e nem me desesperar. Nytacha está perto da entrada da passarela, chorando sentada e encolhida no degrau de cimento. A luz da passarela é fraca, mas faz uma sombra marrom no chão de paralelepípedo. Eu me aproximo devagar, ela não me olha, mas escuto seus soluços por cima dos barulhos das montagens ao longe. — Nytacha… — Eu a chamo. Ela vira a cara, secando os olhos. Largo a sacola de maçãs do lado dela. — Desculpa, tá? Eu não quis dizer aquilo. — Você disse! — Ela passa a manga do casaco nos olhos e fica de pé, me fulminando. — O que Román fez de tão ruim a você para que você o odeie assim? — Não foi comigo, é com você. — Estendo as mãos, pedindo trégua. Nytacha recomeça a chorar, cobrindo o rosto com as mãos. — Poxa, você é uma garota incrível, não merece se tornar um passatempo, apenas uma forma de um menino mimado irritar os pais! E me aborrece, porque ele não te valoriza e não vê o quão incrível, inteligente e gentil você é! — Eu a abraço, enfim, arrependida e sofrendo. — Desculpa, por favor. — Não precisa pedir desculpas. — Nytacha me abraça também e funga. Ficamos um tempo assim, abraçadas, até que fica esquisito e nos sentimos duas bobas. Rimos e nos afastamos, fazendo as pazes. Eu me abaixo e pego a sacola, começamos a atravessar a passarela. Na metade, corto o silêncio: — Você quer ir na festa? Quer dizer, ele pediu dispensa, deve estar sendo difícil para você! — Jay... — Mas pelo menos, agora você pode achar alguém verdadeiramente legal. — Jay! — Ela me chacoalha, segurando no braço. — Hm? — Não terminamos. — Ahn? — Pisco algumas vezes, sem entender, focando os olhos na minha prima. Ela tem um sorriso tonto na boca.

— Eu e Román. Não terminamos. — Ela balança a cabeça fazendo que não, enfatizando. — Mas ele não veio hoje… — Provavelmente está na arqueria treinando com os outros nobres, é dia de festival. — Ela dá de ombros, sorrindo já com a expressão mais leve. — Oh. Bem, que bom, eu acho. — Tento não ser negativa quanto a isso. — Eu sei que é difícil aceitar, somos diferentes, mas procure me entender! — Ela coloca a mão no corpo, pedindo compreensão com seus sentimentos. Suspiro, vencida. — Eu entendo. Você gosta dele. — Percebo que nada do que eu disser vai tocar a cabecinha de vento de Nytacha e tenho receio, pois isso a fará sofrer mais. — Román e eu nos amamos, Jay. — Você ama, tenho certeza. Mas ele não sei. — Pode confiar. Paro de andar e olho para ela, firme. — Nytacha… O que te dá tanta certeza? — Pergunto. Ela me olha brava de novo. Coloco uma mão na cintura, parando de andar. — Vamos me diga uma coisa realmente séria e que me convença sobre isso. — E se eu puder te convencer? Vai nos deixar em paz e aceitar que nos amamos? — Ela me desafia, as duas mãos na cintura e um sorriso de vitória, como quem ganha a partida antes do jogo começar. — Se for mesmo muito boa e me convencer, claro! — Digo sincera. — Deixar em paz não sei, ainda fico enciumada quando ele bota as mãos em você. — Finjo que tenho duas garras prontas para arrancar os seios dela. — Boba! — Ela me dá uma ombrada para bloquear minhas garras rindo e gira, andando de costas. Se Román tivesse dado uma prova concreta, ações e não apenas palavras, então eu não teria dúvidas. Eu me preocuparia e muito, afinal, tenho certeza que a família Rynbelech espera que seu filho vire o príncipe herdeiro e Nytacha estaria em perigo apenas por estar atrapalhando, mas eu saberia que ele tomaria ações concretas para protegê-la disso, mas não é o que acontece. Vejam só, ele nem veio ao turno de hoje, deixando-a a mercê de qualquer um. — E então? — Insisto. Ainda quero minha resposta. — Bem, tem uma coisa que eu preciso te contar… — Ela desvia o olhar, colocando as duas mãos na barriga, como se tivesse medo de verbalizar. — E só não contei antes pois tenho medo de como você vá reagir. — O que você está aprontando? Não me diga que pretendem fugir juntos, isso seria idiota! — Seria mesmo idiota! — Nytacha ri, concordando comigo. Enxergo braços ao redor dela e de repente, alguém tampa sua boca e segura os braços de minha prima, puxando-a e amordaçando-a com força física. Ela bate as pernas no ar, mas não consegue se soltar. Solto a sacola de maçãs e dou um passo para ajudá-la, mas alguém puxa minha mão e logo me amordaça da mesma forma. Duas mãos me seguram, meus pés são erguidos do chão.

É um sequestro? Meu corpo entra em colapso com o medo. Os homens são fortes e altos, estão de roupa preta e capuz cobrindo todo o rosto e os olhos de fora. Somos garotas, presas fáceis. Nytacha é puxada para longe de mim e ela curva o corpo para frente, tentando pisar no chão. É até horrível de ver, uma menininha magrinha tentando usar o corpo contra um brutamontes três vezes maior que ela, gritando sem defesa. É rápido que acontece, ainda assim, meus olhos conseguem acompanhar quando o homem a joga no chão com força, ela cai meio sentada, ele sobe por cima dela e com uma faca, desfere golpes violentos, fazendo o sangue espirrar. O homem que me segura me larga, meus olhos cheios de lágrimas. Eles saem correndo, escuto o barulho da faca caindo no chão e engatinho depressa até Nytacha, ela tenta se levantar, mas está sangrando, cheia de facadas na barriga e a boca vermelha. Uma poça de sangue se alastra. — Não se mexe, não se mexe! — Peço, forçando os ombros de Nytacha para o chão, para que ela não perca ainda mais sangue se movimentando. Ela deita, com lágrimas nos olhos de dor. Ao seu lado, eu vejo a faca, negra, com um símbolo entalhado. Vejo o símbolo do cálice, uma das nove casas e tenho certeza que a faca foi envenenada. Não foi um assalto, foi um ataque. Provavelmente de alguém que a considerava um empecilho. O medo que eu tinha se concretiza.

CAPÍTULO 11

Lições aprendidas Um zumbido constante em meus ouvidos. Com as roupas manchadas de sangue, invadi a arqueria, gritando, chamando por ajuda. Román estava lá com Devon e mais alguns nobres da casa Lunysum, treinando arco e flecha. Não sei se consegui pronunciar as palavras direito, mas me acompanharam ao local do acidente. Nytacha estava deitada, com os olhos travados como se fossem de vidro focando no nada, o rosto virado de lado. Eu tremia e chorava, mal conseguia encarar a cena, meu coração parecia fora de controle. Román correu e se ajoelhou, segurou em seu rosto delicado, chamando por ela, tentou levantá-la. Os bracinhos de Nytacha tombaram ao lado de seu corpo, sem nenhuma reação. Ele a abraçou e chorou. Minha prima estava morta. Não deu para fazer nada. ● ● ● Enquanto o festival acontecia no pátio e era uma noite feliz para a maioria das pessoas e vampiros na Torre Bawarrod, minha família conhecia o inferno que era velar o corpo de Nytacha. Não recebemos muitas visitas, só de amigos. Byrn esteve lá com mais alguns colegas da lavanderia e deixou flores, mas não falou comigo, apenas me olhou torto, talvez me culpando pelo o que houve. Lyek ficou o tempo todo do meu lado, me abraçando, até a hora que foi chamado para a garagem. O corpo da minha prima estava gelado dentro do caixão. Toquei em sua mão, mas Nytacha já não estava lá. Era apenas uma carcaça, um pedaço do que ela tinha sido. Não estava chovendo e nem era uma noite estrelada. O mundo havia se tornado mais escuro sem o sorriso brilhante de Nytacha. Não aguentei olhar para aquela cena muito tempo, meus tios chorando, minha mãe soluçando, Johin cansado sem entender direito o que a prima fazia deitada. Fui para o local favorito de Nytacha: o lixo. Não que ela achasse o lugar mais bonito da terra, nem o mais cheiroso, mas Nytacha adorava explorar o que tinha lá, dizia que era capaz de achar os melhores tesouros. E era! Quando começamos, costumávamos dizer que vínhamos caçar tesouros, mas com o tempo, percebemos que teríamos sorte em encontrar algo que desse para usar, a maioria das coisas está destruída ou são entulhos. Subi pela grande, quadrada e esverdeada lata de lixo, passando pelas caçambas de entulho até subir na laje de um depósito, onde é feito a incineração dos dejetos. Dali podemos ver além dos muros da cidade um lago que serve como esgoto e as ruinas do que um dia foi uma metrópole. A silhueta do que restou de prédios contra a imensidão azul de nuvens. A

guerra contra os alienígenas ocorre distante, é possível ver uns clarões além das montanhas no horizonte, mas houve épocas em que as paredes da Torre Bawarrod tremiam com as batalhas próximas. Eu e Nytacha nos escondíamos em baixo da cama, Johin chorava achando que eram trovões. Ao me sentar, percebo que não sou a única pessoa que teve essa ideia: Román está lá. Ele deveria estar no Festival, no torneio de arqueria ao lado dos outros nobres. O vi desolado, com uma garrafa de vinho, entornando. — Hm. — Faço um resmungo ao percebê-lo. — Você também veio. Não deveria estar no Festival? — Por favor, me deixe em paz. — Ele parece bêbado, ao mesmo tempo exausto e deprimido. Vira o casco de vinho na minha direção. — Servida? Sento ao lado dele, puxo a garrafa e dou um gole. — É um vinho de ótima qualidade. — Solto um suspiro e seco as lágrimas dos meus olhos. — Roubei do coquetel do festival. — Você já tinha vindo aqui? — Entrego a garrafa de volta para Román. — É um dos lugares para os quais eu vou quando quero fugir daquele inferno. — Román apoia a garrafa na frente dele e coloca a mão na testa, colocando os cabelos para trás, só então tenho uma visão completa de seu rosto. Ele tem uma cicatriz em forma de risco na bochecha esquerda e um olho de outra cor: vermelho. — Foi assim que nos conhecemos. Eu a vi a primeira vez exatamente daqui… Ela estava lá, procurando qualquer coisa idiota. — Ele suspira, provavelmente desejando vê-la, entre as caçambas e lixeiras que aponta, remexendo o lixo usando luvas de borracha. Queria poder vê-la também. — Nytacha tinha uma facilidade de sorrir que me encantava e me irritava ao mesmo tempo. — Sei o que quer dizer. — Comento, abraçando minhas pernas, apoiando o queixo nos joelhos. — É culpa minha. — A voz de Román vacila. — Eu devia ter feito alguma coisa para protegê-la, qualquer coisa. — Não foi sua culpa. Você fez tudo o que podia. — Olho para ele entristecida. Há dor na sua voz, uma dor que eu não saberia nem descrever. Seus olhos estão alagados, simplesmente, meu coração fica pequenininho e inútil diante de seu sofrimento. — Fiz? — Ele ri de si mesmo, uma piada que nem ele acha graça. Dou de ombros, eu seria uma hipócrita se dissesse que não penso que parte é culpa dele, mas estou muito triste para brigar. — Devia ter dado meu sangue a ela, rodeado-a de guardas reais, algemado-a a uma droga de uma jaula para que ela nunca pudesse sair… ou simplesmente me afastado antes que… antes que… Ele nem consegue terminar, coloca a mão no olho esquerdo, tapando. Meu coração se quebra em mil pedaços, espatifado no chão. Tudo o que posso fazer é abraçá-lo e oferecer meu ombro em conforto. — Ela amava você, não ia deixar que se afastasse. — E conhecendo minha prima, digo a verdade. Román tomba a cabeça no meu ombro e soluça. Ele chora a madrugada toda e um pouco antes do amanhecer, convenço-o a voltar para a torre, mas ele parece um zumbi, caminhando

sem rumo. Parte de mim quer que Román se exploda, parte de mim é condolescente con sua dor, afinal, choramos juntos a ausência da mesma pessoa. Jogo um cobertor velho por cima dele, para proteger dos primeiros raios solares e guiá-lo às escuras até minha casa. Deixo Román dormir na cama de Nytacha, meus tios não se incomodam, eles estão como zumbis também. Pela manhã colocam fogo no caixão. A chaminé branca no alto de um dos prédios se acende, uma fumaça negra sobe até o céu. Os sinos tocam em homenagem. São dois dias que Román fica trancado no quarto de Nytacha sem querer sair, a Casa Rynbelech manda os guardas irem buscá-lo no terceiro dia e ele sai carregado, quase inconsciente. Eu só tenho uma certeza: quando encontrar os responsáveis por esse crime, vou fazê-los pagar. ● ● ● O clima em casa está pesado. É o sexto dia depois que Nytacha morreu e recebo uma carta dos nobres, solicitando que eu volte ao trabalho. Não acho ruim entretanto, ocupar a mente com qualquer coisa me faria bem, mas me sinto exausta e deprimida. Fecho a porta e encaro minha tia chorando no sofá. Ela está acabada, mas na maioria do tempo procura ocupar a cabeça com afazeres de casa, se enfiando no trabalho. Porém, às vezes, ela se senta ali, com um porta-retrato de Nytacha bebê e chora. Meu tio de vez em quando tem acessos de raiva, quebra algumas coisas. Acho que cada um tem um jeito de lidar com a dor. Vou para o meu quarto. A carta que recebi requisita que eu vista “algo confortável” e não é para um baile no salão. Minha presença é solicitada na arqueria, ao cair do Sol. ● ● ● O único som é o rompante do arco e o tiro das flechadas furiosas que Devon desfere com precisão contra um alvo de madeira em forma de gente. Ele faz parecer fácil, mas sei que não é qualquer pessoa com força e habilidade para tanto. Há algo em seu olhar que me intriga, uma seriedade silenciosa em fúria. Fico com a impressão que ele está com raiva de alguém e desconta no fantoche de madeira em flechadas no meio da testa. Todas as luzes do salão da arqueria estão acesas, mas só estamos nós dois. Alguns guardas vigiam a porta do lado de fora, para que ninguém mais entre. Quando a aljava esvazia, vou até o fantoche puxar as flechas. É necessário esforço físico. Devon dá um gole em um copo de whisky sem gelo, nem faz careta. Enfio as flechas novamente na aljava em cima da mesa e reparo que a garrafa, cheia quando cheguei, está na metade. Cirurgicamente, Devon larga o copo, alcança três flechas e atira uma atrás da outra com uma agilidade que não se vê em torneios e nem em caçadas. Fico com a impressão que ele está treinando para um combate. Coloco as mãos na frente do corpo e abaixo os olhos, encarando meus próprios dedos. — Por que está parada, aí? Vá buscar. — Devon chama minha atenção.

Ergo a cabeça e percebo a aljava vazia. Foi para isso que ele me chamou? Não sou uma empregada! — Você não pode chamar um escudeiro para pegar as flechas? — Pergunto. — Posso, mas é mais agradável olhar para seu traseiro. Não tenho emocional para lidar com esse cretino agora! Vou até o fantoche e puxo as flechas, colocando de volta na aljava, mas não demonstro emoções, nem braveza, nada. Estou triste demais até para sentir raiva. — Dá próxima vez, vá rebolando. — Devon puxa as flechas e as atira. Quando termina, reforça a ordem com o olhar. Vou até o fantoche rebolando dessa vez. O que eu poderia esperar desse monstro? Ele nem ao menos me surpreende dessa vez. Devolvo as flechas para a aljava. — Você parece entediada, por acaso minha arquearia não a impressiona? — Devon me analisa, os olhos dourados fixos nos meus. É uma daquelas perguntas ardilosas, qualquer resposta errada, pode virar um castigo. Com esse estúpido, qualquer coisa que eu faça vira um castigo. — Não há nada de errado com sua arquearia, meu senhor. Estou um pouco entristecida com o falecimento de minha prima, é só. — Reverencio meu mestre curvando o corpo, antes de me afastar. — Foi uma grande perda para todos nós. — Ele responde com indiferença, pega uma flecha e estica o arco. Encaro o protetor de braço preto. Algo no que ele disse me estarrece. Não me importo o quão poderoso ele seja, não tem permissão para zombar da morte da minha prima! É um insulto que não pretendo engolir. — Insensível. — A flecha que ele atira erra o alvo, uma demonstração de que ficou no mínimo surpreso com o que eu disse. Ele vira para mim e estreita os olhos, mas agora que comecei, não paro. — É por causa de pessoas como você que ela está morta! Quem vocês pensam que são para brincar com a vida das pessoas com o único intuito de ensinar a um nobre mimado a não irritar seus pais? Devon me atinge com um tapa tão forte que caio no chão com a mão no rosto. — Dobre sua língua ao se dirigir a mim, escrava! — Ele grita. Devon segura no meu cabelo e me puxa com violência. — Vá em frente, me mate! Não somos nada além de um saco de sangue! — Grito, enquanto ele me arrasta pelo chão até o fantoche. — Não era isso o que pensaram quando mandaram matar Nytacha? — Você pelo menos sabe por que razão mataram Nytacha? — Ele me coloca de pé, puxando-me pelos cabelos até eu me levantar. — Você não faz a menor idéia, não é? — Há um tom de deboche em suas palavras. — Aposto que nem sabia que ela estava grávida! — Grávida? — Meus joelhos perdem as forças e meus olhos se enchem de lágrimas. — Olhe para você, tão patética! — Com um empurrão, ele me solta. Não consigo ficar em pé e caio no chão, tremendo. — A primeira proposta da Casa Rynbelech para sua prima foi que ela se tornasse uma escrava de sangue, deveria bastar para que ela e Román mantivessem um romance sob as vistas grossas. Por que os pais dela não aceitaram, então? Eu respondo a você: ganância. O mesmo motivo que levou os pais de Román à mandarem matá-la. Com a morte dela e do bebê, Román volta a ser o mais forte candidato ao trono.

Deixo um suspiro de choro escapar. Devon se abaixa na minha frente e com mais um puxão em meus cabelos, levanta a minha cabeça. — Olhe para mim. — Ele ordena e eu o encaro, todos os tons de dourado e amarelo de seus olhos. — Você viu Román. Diga-me Jaylee, realmente acha que sua prima era apenas um saco de sangue para ele? — Não. — Minha garganta arranha em tristeza e sinceridade, engolindo todo o orgulho em admitir que eu estava enganada sobre Román. E sobre Nytacha. — Que bom que concordamos. — Devon solta meus cabelos e se levanta. — Agora pare de sentir pena de si mesma e pegue as malditas flechas. Fico em pé, mas não consigo levantar a cabeça. Pego as flechas, arrancando do fantoche e a que caiu para fora, perto do chão. Fungo, segurando o choro durante todo o processo. Retorno para a mesa em que Devon está tomando whisky. Agora sentado na poltrona e com os olhos sérios, analisando o líquido amarronzado em seu interior. Sei que ele quer desmoralizar o Imperador, mesmo que eu não saiba os seus motivos, sei que posso tirar vantagem disso. Paro diante dele: — Román vai se vingar? — Mandaram-no para a Fronteira como castigo por seus erros. De lá, não há muito que se possa fazer de tao distante. Infelizmente. — O senhor não pode tirá-lo de lá? — Pergunto. Todos sabem que Román é o braço direito de Devon, com certeza afastar Román da Torre Bawarrod é também uma estratégia para enfraquecê-lo. Parece que o Imperador controlou a situação. — Não é tão simples desfazer ordens do próprio Imperador. — Ele gira o copo e dá um gole, estreitando os olhos com ira. — Por hora, enquanto os bajuladores acatam com qualquer coisa que ele diga. Entendo agora qual a questão em desmoralizar Kaiser Bawarrod e Lady Lucretia. Se os nobres acharem que ele está louco ou começarem a discordar, a Casa Riezdra ganha imediatamente poder. Acho que tenho uma vantagem aqui. Jogo as flechas no chão ao invés de colocá-las na aljava e ajoelho-me diante dele, como uma verdadeira serva submissa faria, as duas mãos no chão. — Ensine-me, eu lhe peço. Quando atacaram Nytacha, não pude defendê-la. Era apenas uma espectadora passiva assistindo um jogo no tabuleiro, mas quero ser peça. Farei o que for necessário, meu senhor, eu imploro. Devon toma um tempo para si em silêncio. Dá um gole no whisky demoradamente e pondera o meu pedido desesperado. Escuto o vidro bater-se contra a madeira, Devon solta o copo em cima da mesa. — Parece que tem força de vontade. — Sua voz corta o silêncio finalmente, há um tom de deleite em sua voz. É um elogio? — Nesse caso, há algo que quero que faça no próximo jantar. — Ele fica em pé. — Obrigada, meu senhor. — Seguro em sua mão, beijando em reverência, aceitando. — Farei todo o possível para satisfazê-lo. — Falando nisso… — Ele gesticula com a mão, para eu me levantar. Fico em pé, diante dele, encarando-o. Devon segura em minha nuca, puxando meus

cabelos e virando meu pescoço. Acho que ele vai me morder, mas ele me dá uma rasteira e me atira contra o chão, aos seus pés. — As malditas flechas. O lugar certo é a aljava. — Desculpe, senhor. — Peço. Mentalmente comemoro vitória.

CAPÍTULO 12

Peças do Tabuleiro — Adivinha quem é? — Pergunto, tapando os olhos de Lyek durante o horário de almoço surpreendendo-o no momento em que ele abria sua marmita, sentado sobre o capô de um grande carro preto da garagem. O silêncio é entediante. Há escuridão na garagem de paredes sujismundas, o teto é baixo, sensação de confinamento, e há apenas uma fresta na parte superior do cimento por onde entram os raios solares. O cheiro é úmido, misturado com combustível e óleo. Não sei como alguém aguenta ficar aqui tanto tempo! Ainda assim, é um cheiro que me deixa feliz, familiar o suficiente. — Jay! — Lyek ri, tombando a cabeça para trás. Seus dentes são pequenos e amarelados, a camiseta branca manchada de graxa e outras coisas que eu não conseguiria identificar. Solto seus olhos e ele gira, me olhando de frente. — O que faz aqui? — Como assim? Vim te visitar! Fiquei sabendo que não tem mais ido para o pátio da lavanderia, o que aconteceu? Cansou de tomar sol? — Pergunto encostando no capô e dou um pulinho, me sentando ao seu lado, colocando a saia do meu vestido verde escuro para baixo das minhas pernas. — Ederlon contou isso a você? — Ele estica as duas sobrancelhas grandes e escuras. — Fui te procurar, ele apenas reclamou daquele jeito dele. Um relatório completo dos dias que você não apareceu mais. — Mostro um sorriso. — Aposto que sim. — Lyek dá uma risada e pondera, olhando para a marmita quadrada, puxando a tampa prateada. — Como estão as coisas? Sua família está superando bem? — Acho que nunca iremos superar completamente, mas estamos nos virando. Nytacha faz falta. É por isso que você e Byrn não têm ido ao pátio? — Espio a comida. Arroz, ovo e legumes remanescentes da última safra, há uma espiga de milho. — Não tenho falado com Byrn. — A voz sai seca, quase com ressentimento. — Nem eu. Fui à lavanderia, mas descobri que ela deixou o emprego e está mais empenhada nas doações. — Suspiro, um misto de preocupação e chateação. — A última vez que a vi foi no enterro, Byrn não falou comigo. — Hm. — Lyek afunda o garfo e enfia na boca. Fica uma bolota esquisita na sua bochecha enquanto ele fala. — Vocês são melhores amigas, vão se resolver. — Outra garfada para dentro da boca, sem muita educação. — Será? Estamos diferentes. Não acho que Byrn quer ser amiga da nova “Jay”. — Faço aspas com a mão. — Não existe “nova Jay”, existe a Jay de sempre. — Lyek dá uma ombrada divertida em mim e pisca um olho. Suas palavras me confortam, ele ainda me reconhece, mesmo quando eu não me

reconheço mais. Não sei se mudei ou se as circunstâncias mudaram e me obrigaram à alguma transformação, mas o fato é que nos últimos dias tenho me sentindo mais impotente do que eu quero ser e isso me desagrada, cria rancores. O mundo se tornou em um lugar horrível para viver. Nós, humanos, perdemos tudo, inclusive o lugar de cima da cadeia alimentar. Há dois predadores lutando por ele agora: os vampiros e os alienígenas. — Sinto falta de você. De Nytacha, de Byrn, de todos. De quando íamos ao lixo catar coisas, ou tentar subir nos muros para ver o que acontecia fora da Torre! — Corto o pequeno silêncio que se fez, por cima das garfadas de Lyek. — Ah, os tempos de ouro! — Ele debocha, mas com ares nostálgicos, enquanto come. — Lembra a primeira vez que nos vimos? — Eu estava chorando e você me salvou. — Lembro bem desse dia e da terrível sensação de abandono e medo que me sufocava. A guerra ainda era muito próxima à Torre, eu tinha medo que o teto ruísse sobre nossas cabeças e enterrasse a todos nós. Fazia pouco tempo que minha família havia sido resgatada dos escombros de um prédio velho no centro da cidade, aquele que nos refugiamos. O trauma da guerra arranhava a minha mente e eu achava que ia morrer só de ouvir as explosões. Os vampiros nos tiraram de lá. Minha mãe disse que ou íamos com eles, ou morreríamos. Ninguém queria morrer e eu já havia perdido meu pai. Os sanguessugas nos enviaram para a colônia mais próxima, a Torre Bawarrod. Mamãe disse que demos sorte, há colônias piores e esquecidas, eu já não tenho certeza. — Você estava perdida, eu apenas sabia o caminho. — Lyek expressa seu ponto de vista. Talvez naquele dia Lyek estivesse fazendo uma coisa que faz sempre: ajudar alguém. Mas para mim, foi um momento único em que alguém segurou na minha mão e não me deixou sozinha, que disse que estava tudo bem e que eu não precisava ter medo, pois estávamos seguros, protegidos por paredes mágicas impenetráveis. Para Lyek eu era apenas uma garotinha perdida no labirinto de passarelas e túneis da torre, para mim, ele foi meu herói e meu guia. Para ser sincera, não me lembro de um dia que não tenha sido verdade. Ele sempre esteve ao meu lado. — Sinto falta daqueles dias. — Confesso. — E sinto mais falta daquela época em que os alienígenas não tinham invadido nosso planeta. — Todos sentimos falta, mas temos que lidar com o agora. Os tempos passados não voltam e o futuro é tão incerto e tornou-se tão distante, que parece não termos direito ao amanhã. O que temos é o presente. — Você tem razão. — Estico a boca chateada. Ele tem toda a razão do mundo. — Mas será que é só isso que temos para o nosso futuro? Sermos escravos pelos anos que aguentarmos? Quando Johin crescer, todas as crianças de sua idade e os mais novos terão crescido nesse inferno. Não é um futuro que me agrada em construir ou que eu gostaria de fazer parte! — Nem a mim, se quer saber… Mas o que podemos fazer, Jay? — Lyek me olha com desesperança e eu simplesmente detesto vê-lo assim. Acho que esse é o sentimento de todos nós humanos nessa era. Ele remexe o arroz, perdendo o apetite. — Os alienígenas estão nos

levando à extinção. Somos dependentes dos vampiros, desse sistema em que viramos uma fonte grotesca de energia, quer nos agrade ou não. Infelizmente agimos igual os peixes que rodeiam os tubarões: nos contentamos com as migalhas! Sozinhos, não temos change, temos? — Não somos peixes. — A analogia fere o que ainda resta de meu orgulho. — Deve haver algo possível de se fazer para reverter essa situação, para que possamos ter liberdade novamente. — Bem, se encontrar a resposta conte com minha ajuda. — Ele suspira, quase esperançoso e um sorriso de apoio surge em sua boca de lábios finos. — Eu faria qualquer coisa por você. — E você conhece quem mais estaria disposto a ajudar? — Certamente. Muitos estão insatisfeitos com esse Império, mas receiam a invasão alienígena. — Lyek suspira e abaixa a cabeça, erguendo o olhar. — Se houvesse uma forma de aprendermos o que os vampiros sabem… bem, essa magia com a qual eles lutam. Então talvez não precisássemos deles. Contemplo um pouco a força de suas palavras e algo me ocorre, até sinto um choque pelo corpo, me despertando. Como não pensei nisso antes? Estava ali bem debaixo dos nossos narizes! — Talvez tenha um jeito. — Digo baixinho, um segredo profano. Ninguém pode escutar. — Mesmo? — Lyek franze o cenho, estranhando, ele me encara confuso, sua voz um sussurro. — Na noite que velamos Nytacha, Román me disse algo intrigante, algo sobre dar o seu sangue a ela. Talvez seja só uma bobagem de um garoto apaixonado, mas... — Estico o dedo, batendo no nariz de Lyek, comprido e que cabe em seu rosto muito bem. — E se da mesma forma que nosso sangue serve a eles, o deles, sirva à nós? — Você diz correlação-sanguínea. — Ele pondera, eu faço que sim com a cabeça. — Todos nós já ouvimos sobre isso, mas ninguém sabe ao certo como funciona. Há algum tempo atrás o Imperador proibiu que um vampiro passasse sangue aos humanos sob pena de morte. O que ele tanto teme? — Se for verdade, teríamos uma vantagem tática. Como pretende agir? Pedir a Román uma amostra de sangue para testar sua teoria? — Román está na Fronteira, sem previsão de retorno. Pensei em alguém mais próximo. — Dou de ombros com um sorrisinho. — Jay… — Lyek me olha com desconfiança, estreitando os olhos. Coloca a marmita em cima do capô, com o garfo enfiado em uma beterraba em rodela, virando de frente para mim. Suas mãos grandes e ásperas seguram meus ombros, preocupado. — Não pode estar falando sério. — Muito sério. — Respondo firme. — Riezdra não é uma Casa disposta a partilhar seu sangue. Ele não oferecerá a você de boa vontade. — Eu sei. Por isso tenho que dar um jeito de fazer com que ele queira passar a mim. — Confirmo balançando a cabeça de leve. — Não tenho muitas opções. — E quanto a Román? Não podemos deixá-lo na linha de frente, precisamos dele aqui.

— Ele é confiável? — Falei com ele poucas vezes, mas lealdade é uma virtude. Além de haver motivos para que ele queira se vingar de Bawarrod, é claro. — Lyek acrescenta como se fosse óbvio e pensando bem, é. — O general está fazendo movimentos para trazê-lo de volta. Devemos esperar. — Ah, sim. Melhor deixar que as peças se movimentem, certo? — Uhum. Enquanto isso, precisamos de pessoas dispostas a colaborar. Posso contar com você? — Sempre. — Suas palavras arrancam um sorriso de mim. Lyek acaricia o meu rosto, o cheiro de graxa e combustível em suas mãos é quase afrodisíaco. — Daqui uns dias vou te dizer um número e será quantas pessoas temos do nosso lado. Mas prometa que vai tomar cuidado, Jay, você sabe como eu me sinto em relação a você. Por favor, não seja irresponsável. — Hm. — Fixo meu olhar no dele, ainda sussurrando. — Eu devia ter aceitado me casar com você. — É, devia. — Mas você se casaria com qualquer garota indefesa que precisasse de ajuda. — Não qualquer garota, mas você. — Ele sorri e enfim, me beija. Enlaço os braços em seu pescoço, ele escorrega as mãos para minha cintura. É um beijo quente, apertado e cheio de saudades, ao mesmo tempo, é a primeira vez que nossas bocas se encostam e que sinto o gosto de sua língua. Meu coração palpita forte, o dele também, consigo sentir as batidas como marteladas potentes contra o meu corpo. Exploro sua boca doce, puxo seus ombros na minha direção. Não quero perder nem um segundo. O toque das mãos de Lyek é sensual e ao mesmo tempo protetor, não sinto medo. Ele me aperta, seu corpo de músculos rígidos de mecânico contra meus seios. O beijo sessa. Nossas respirações se encontram, ofegantes. — Eu te amo, Jay. — Ele murmura, olhando nos meus olhos para que eu saiba que é verdade. — Quero o futuro ao seu lado. — Só se for um futuro de liberdade. — Respondo. — Tome cuidado. Ele contém um sorriso. Depois de um tempo, nossos corpos se distanciam. Lyek precisa voltar ao trabalho na oficina. Eu preciso passar na mercearia para minha mãe, segundo ela ganhamos cupons extras para doces e ovos, acredito que eram de Nytacha. Cupons possuem validade, se não usar, você perde. Ninguém é louco de desperdiçá-los. ● ● ● As passarelas estão vazias desse lado, ninguém além de nós, os escravos, costuma atravessar para a torre adjacente. Ainda era cedo, mas estava mais escuro que o normal. Eu carregava a sacola de pano das compras com cuidado para não quebrar. Ao longe, avisto Zane, o garoto com pinta de modelo escravo da Casa Bawarrod e uma garota conversando, ela parece bonita, nova, de cabelos compridos repartidos em duas tranças com um pano na cabeça, e vestido. Não parece uma escrava. Escuto gritos, palavrões e sons de coisas quebrando. Com certeza é uma briga. A

passarela é invadida por pessoas correndo, muitos guardas atrás. São crianças, magras, de roupas sujas e com ares de miséria. Eles passam por mim, derrubando minha sacola, o vidro com doce de batata e os ovos se espatifam, manchando o chão com algo gosmento. É a mesma gangue da outra vez? Deixo as crianças passarem e abaixo para olhar se algo restou intacto em minha sacola, mas está tudo quebrado. Um guarda de armadura segura no meu braço e me puxa para cima. — Peguei uma! — Ele grita me chacoalhando e eu me debato, tentando soltar. — Ai, me larga, eu não fiz nada! — Tento, mas levo uma cacetada na nuca como aviso para eu calar a boca. O guarda me joga no chão, aos pés de outros guardas. Encaro três pares de botas. Estou ferrada! Mesmo que eu não tenha nada a ver com os vândalos que passaram por mim, os guardas acham que estou envolvida. — Eu não fiz nada, eu juro! — Peço, ainda no chão e olhando para baixo. A raiva me consome por dentro, mas eu não teria chances contra eles. — Sempre dizem isso! — Um guarda gargalha. — Mas veja, que gracinha. — Eu não fiz nada! — Insisto. — O que estava fazendo aqui essa hora então? — O guarda da minha frente usa o cacetete para erguer meu queixo. — Indo para casa. — Respondo. — A gente te leva para casa. — Um guarda dá uma risada malvada, tenho a impressão de que eles vão me comer viva, literalmente e de todos os jeitos. — Depois que você for muito boazinha com a gente. — Nem vamos te prender, só um pouquinho... Não dá para se sentir protegida quando aqueles que deveriam te proteger são corruptos. Essa insegurança senti quando seguraram Nytacha, essa impotência ridícula. Os guardas mexem comigo, tentam tocar meus seios, abrir o zíper da minha roupa. Sinto tanta raiva que acho que vou explodir! No que está na minha frente, dou uma rasteira e empurro o que tenta mexer em mim para cima dos outros, passo por baixo da perna do que está atrás de mim como um gato e saio correndo. — Atrás dela! — Gritam. Corro o mais depressa que minhas pernas conseguem aguentar. Pego distância dos guardas pulando da passarela e continuo correndo, na direção do Átrium. Quando chegar lá vou gritar, alguém deve me ajudar, certo? Não consigo nem passar para a próxima ala, alguém segura no meu braço e me puxa para um beco. Vou gritar e minha boca é tapada. O local parece úmido, escuro e cheira a urina. — Shhh! — Encaro os olhos imensamente azuis de Zane, sérios, um pouco mais abertos que o normal. Ele me espreme contra a parede e espia os guardas. Ele me solta e se afasta. — Livre-se da jaqueta. Eu tiro minha jaqueta, embolando e jogando para o lado, Zane tira a touca cinza da cabeça e passando para mim. Coloco meus cabelos para dentro, disfarçando. — Obrigada. — Cochicho. Zane me responde com um sorriso pequeno, de quem não tem muito a acrescentar. Havia uma menina com ele, mas não a vejo, espero que esteja bem.

— Vamos. — Zane segura na minha mão e me puxa pelo corredor. O toque não chega a ser gelado, mas não é quente. Ele tira do bolso uma chave e se aproxima de uma das pequenas portas do beco, uma portinhola azul clara com vidro e persiana. Entramos, mas a sala é apertada, amarrotada de tantos livros. Zane me guia até uma prateleira e a empurra, revelando uma porta pequena e alaranjada, pequena, o suficiente para um cachorro do tamanho de um labrador passar. Ele vira para mim e pede para fazer silêncio, abaixando. Fico calada e me abaixo, ele abre a porta e se prepara para entrar. Seguro no braço dele e faço que não com a cabeça, suando em desespero, mas Zane sinaliza para eu ficar calma e soletra sem som, “confia em mim”. Não que eu tenha opção e não quero ser pega pelos guardas. Aceno que sim. Ele passa e eu sigo, do outro lado é outra saleta, diferente, Zane está em pé e me estende a mão para me ajudar. Fico em pé, ele se abaixa e arrasta a prateleira da outra sala, fechando a porta. Esquadrinho a nova sala, um pouco maior, com mais livros e bugigangas diversas, como se alguém tivesse ido até a área do lixo, pego as coisas e transformado em itens vendáveis. Zane pega de novo na minha mão e me guia para o lado oposto da sala, há outra porta, com uma persiana, ele checa o lado de fora por um tempo, a luz amarelada da pouca iluminação externa da torre deixa seus olhos parecendo de vidro. Ele aperta um botão na maçaneta redonda, destrancando e abre a porta, passando e me puxando. Do lado de fora, percebo que estamos já depois da passarela, em frente ao local que eu o avistei conversando com a garota, perto da entrada da torre adjacente, onde ficam os apartamentos dos escravos de sangue. Até respiro, um pouco mais calma. De repente ouvimos passos, Zane segura com as duas mãos no meu rosto e me beija forte, enquanto os guardas atravessam a passarela, gritando coisas como “ela foi por ali” e “rápido, rápido!”. Meu coração acelera de susto, não sei dizer se é medo do guarda ou a surpresa dos labios cheios que me atacam com um beijo fresco, com gosto de menta. Os guardas se afastam, Zane me solta, dá uma pigarreada para disfarçar cobrindo a boca com a mão fechada e olhando meio sem rumo, para cima e para o lado. — Devíamos entrar. — Ele anuncia. — É… — Concordo, acertando a touca na minha cabeça. Zane vira de costas e mordo a boca, ainda com a estranha sensação de seus lábios. Adianto-me e o sigo, em direção à entrada da torre, emparelho com ele. — Você tem pasta de dente? — Aham. — Pode me arrumar uma? — Posso. — Ele acena com a cabeça. — Vem comigo. Pareço uma maluca, mas pasta de dente é raridade, só mesmo sendo um escravo de Bawarrod para conseguir. Tínhamos um tubo em casa que usávamos bem pouco, era o último remanescente da época que minha mãe doava para a dama de honra da Rainha, mas já tem tempo que acabou. Ultimamente escovamos com sabão de lavar roupas, Nytacha conseguia na lavanderia, ainda temos alguns bastões e depois, será apenas o sabonete de corpo que vem na cesta de higiene básica.

Zane me guia para o andar mais alto da torre adjacente, é um corredor como o nosso, mas os apartamentos são maiores e a área de convivência não é só um jardim de inverno com cadeiras de jardim como o nosso, mas uma verdadeira área zen, com almofadas grandes e quadradas no chão de vime, há uma mesa de ping pong e uma de bilhar, mas ninguém está aproveitando o espaço ou jogando. — Ninguém aqui? — Difícil. De vez em quando Farrah vem com sua irmã Arimá. — A menina que trabalha na parte burocrática das doações. — Ela recebe os registros. — Zane para na frente de uma das portas grandes de madeira com puxador. Ele tira novamente a chave do bolso e coloca na fechadura. — Hm. E aquela menina que estava com você mais cedo? Sua namorada? Ela trabalha no quê? — Elisabeth é como minha irmã. Eu costumava ter uma irmã, antes de vir para cá, você sabe. — Ele abre a porta e me surpreende com o interior de sua casa, parece até de revista, embora metade das coisas sabemos que são conseguidas pelos vendedores itinerantes e roubadas de escombros, do que um dia foi o nosso mundo. Ainda assim, ele não me surpreende o suficiente para que eu não perceba que o tom de sua voz mudou. — E aqui dentro também. — Concordo. Entramos na casa. Zane me pergunta se quero alguma coisa e aceito um suco. Ele me conta que vive sozinho, mas que veio parar na colônia com seu pai, um homem justo e honesto que trabalhava na área de incineração, até o dia em que um acidente arrancou sua vida. Ele ficou trancado no forno, por causa das travas automáticas não conseguiram salvá-lo, a radiação foi forte demais, ele morreu. Zane ficou dois meses com Elisabeth e a família dela, trabalhando com eles na alfaiataria. Um dia, simplesmente cansou-se de pregar botões e entrou para as doações, no início doava do lado de fora do salão, antes das festas, até que uma noite, um nobre o convidou para entrar. Ele foi disputado por três casas, mas no final Bawarrod ofereceu o lance maior. Ele serve diretamente o Imperador. — Deve ser ótimo você ter tanta sorte para ser disputado por tantos nobres, no meu caso, as coisas foram muito diferentes e eu basicamente imploro nos encontros com Riezdra para que ele tome meu sangue, ou posso acabar morta por Lady Lucretia. E isso seria horrível. — Solto o copo vazio na mesa do centro da sala, que é na verdade um espelho velho, já sem o vidro, apoiada em algumas listas telefonicas antigas. — Eu sinto muito, Jay. — Zane esconde os lábios pensando no quanto não deve ser ruim para mim. Acabei de perder minha prima, todos ficaram sabendo da história. Ele está sentado ao meu lado, com os cotovelos na perna e o corpo um pouco para frente, suspira e encosta as costas no sofá marrom, que deve ser um dos mais confortáveis de toda Torre Bawarrod! — Mas você não pode desistir em alguns meses, além do mais, o escravo antecessor a você não conseguiu uma mordida em dois anos e veja só, na sua primeira noite, Riezdra fez um banquete. — Eu dei sorte. — Comprimo os ombros. — Não, você é encantadora e ele simplesmente não resistiu. — Zane sorri para mim com carinho, esticando o braço e tocando na minha cabeça, roçando o polegar na minha

sobrancelha, é quase um carinho. — Aqueles vampiros têm prazer em nos humilhar. Prometa uma coisa: não importa o que façam, curve a cabeça, mas nunca a alma. — Obrigada por se arriscar por mim hoje. Se os guardas te pegam, sua tatuagem não ia adiantar de nada. — Remexo na gola de sua camiseta, enfatizando. — Não há de quê. — Ele se inclina na minha direção e beija a minha bochecha demoradamente, contenho um sorriso. — Sente perto de mim da próxima vez na sala de espera. Faço que sim com a cabeça. Depois, Zane me dá dois tubos de pasta de dentes e duas escovas, quando acabar, posso pedir mais. Agradeço e deixo o corredor dos Bawarrod antes que alguém nos veja. Chego em casa, minha mãe arranca as pastas da minha mão, para exibir para a minha tia, contente com o que temos. É tanta alegria por tão pouco! Antes eu tinha remorso por vê-la doente, hoje eu tenho raiva dela, por se contentar assim com qualquer coisa, por outro lado, tento não julgá-la, mesmo que me irrite. Eu não conto a minha mãe o que aconteceu com os cupons, ela também não faz perguntas sobre como me aproximei de um escravo de Bawarrod. É um acordo que fazemos: nós duas e o silêncio. Certas coisas são melhores que permaneçam não ditas. Vou para o meu quarto, durmo com a touca de Zane nas mãos, enquanto penso em suas palavras. Curve a cabeça, mas nunca a alma.

CAPÍTULO 13

Menino de Ouro — Leia e queime no cinzeiro. — Antes de entrar na sala o homem de monóculo na minha frente me estende um envelope vermelho com o selo da Casa Riezdra. É pequeno. Abro o lacre e o envelope se abre em um papel. No centro, com letras de caligrafia, em tinta preta:

“Não beba. O menino de ouro precisa de um extra” E só. Eu ein! Que recado é esse? Reviro até os olhos enfadada pela falta de sentido! Olho para o lado, o homem de monóculo reforça com o indicador esticado que o cinzeiro fica ao lado. Coloco o papel na gôndola dourada suspensa por pequeninas correntes, mas não encontro fósforos. Um vampiro magrinho do lado ri de minha falta de sorte. — Tem um isqueiro aí? — Não preciso. — Ele assopra o papel e uma chama aparece consumindo o papel. Assustador. Como é uma mensagem confidencial, espero pacientemente que ela termine de queimar e então volto para o homem de monóculo, ficando pela segunda vez na fila de escravos. Queria chegar cedo, mas pelo visto, fiquei para trás. A cortina finalmente abre. Entro. Renira abre um sorriso na minha direção, tão grande quanto o de Elliot para me receber na Sala de Espera que antecede a nossa entrada no salão de festas. Não dirijo meu olhar a eles, entretanto, passo reto ignorando-os e me sento ao lado de Zane. — Por que não vai se sentar com os cachorros? — Rilde, uma negra de tranças e olhos afiados pergunta, com desdém. — Eles fedem e têm pulgas. — Respondo como se fosse a coisa mais óbvia da face da terra e tento ignorar o grunhido de insatisfação de Renira e de Elliot. — Vejam só quem apurou o olfato, afinal. — Dana, a ruiva, me olha com um sorriso de satisfação na cara, seus olhos azuis são grandes, a boca pequena e redonda, seu rosto é alongado, ela é pequena e magra e os cabelos lisos na altura do ombro. Zane balança a cabeça rindo com um não silencioso, erguendo os olhos, como quem

simplesmente não acredita em Dana. Rilde solta uma gargalhada pesada. Farrah ergue as duas sobrancelhas loiras por cima dos olhos azuis. Ela tem o sorriso plano e o rosto bem marcado e quadrado. Seus cabelos são cacheados, como molas. Os quatro estão com roupas pretas e acessórios dourados que parecem de cabaré noir, sempre usam as mesmas cores como se combinassem entre si, mas provavelmente vestem o que o Imperador manda. Como eu. Estou usando um vestido típico de Moulin Rouge, lilás e prata, meia arrastão e cinta-liga em evidência por uma fenda na saia. Sei que Renira e Elliot não merecem o tratamento que dispersei sobre eles, são dois jovens bem simpáticos e ofereceram amizade quando ninguém mais oferecia. Entretanto, se quero descobrir algo sujo sobre o Imperador, algo que meu mestre possa usar contra ele, então eu preciso me aproximar das pessoas certas: seus escravos. — Acho que se Jaylee quer se sentar conosco, precisava passar pelo teste do sofá. — Farrah provoca, pegando uma mecha do meu cabelo, metade preso para cima com um adereço pomposo. — Deixe ela em paz. — Zane dá um tapinha na mão de Farrah, tirando ela de cima de mim. — Não existe teste nenhum, Farrah só quer uma desculpa para apalpar você. — Veja só quem está arisco hoje. — Farrah faz uma careta na direção de Zane, mas ele não se altera. — Era uma brincadeira! — Hm. — Rilde resmunga, enquanto seus olhos me analisam. De repente, ela joga os olhos em Farrah. — Seja boazinha, Farrah, ao menos em sua primeira vez, Jaylee não chorou igual uma criancinha como você. — Mas doeu! — Farrah segura o peito esquerdo. — Lady Lucretia tem dentes cruéis. — A mordida dela é mais macia que a do Imperador, pare de reclamar. — Zane revira os olhos. — Não é, não! Ele te morde com gentileza porque você é o favorito dele. — Dana cruza os braços, aborrecida empinando o nariz. — Não sou! — Zane protesta. — É sim! — Farrah dá uma risadinha. — Quando você esteve doente ele te poupou, mas quando eu estive gripada, quase fui exonerada! — Farrah enche as bochechas de ar como uma menininha aborrecida. — Farrah, é melhor você calar a boca. — Rilde se intromete. Farrah revira os olhos, insubordinada. — Além do mais, quem não iria preferir Zane? — Rilde segura no queixo de Zane e curva o corpo fazendo biquinho, mas Zane se afasta. — Ele é bonito, educado e não reclama das mordidas. Sabemos que o Imperador tem gostos excêntricos na cama. — Ela pisca debochando. O que ela disse? Essa parece uma informação interessante. — Que tipo de gostos excêntricos? — Pergunto. — Vai me dizer que não faz a menor ideia? — Rilde assume novamente a postura arrogante. — Garotos! — Farrah finge que está espirrando quando pronuncia a palavra, disfarçando. — Farrah! — Zane dá um empurrão quase para derrubá-la do sofá, em repreensão. — O quê? Vai dizer que ele nunca encostou a mão em você? — Dana se intromete.

— Não assim! — Em mim ele coloca a mão o tempo todo, isso quando não me obriga a transar com a escrava de Lady Drarynina. — Dana complementa. — Negue. Você é escrava de sangue, não um brinquedo. — Zane parece estarrecido com a possibilidade de que Dana aceite abusos sexuais. — Ah, poxa! Queria ter essa sorte! — Farrah choraminga. — Lori é uma gracinha! — Se eu me negar, minha família amanhece morta. Nem todo mundo não tem nada a perder como você. — Dana retruca. — Comentário desnecessário. — Zane resfolega e fica de pé, saindo de perto delas. — Legal, Dana, muito legal! — Rilde balança a cabeça em um “não concordo” e se afasta, indo até Zane, colocando a mão no ombro dele e falando alguma coisa para a qual ele só faz bico entojado. — Ele pode dizer não. Entende? — Dana olha para mim, buscando apoio em alguém. Dá para perceber que ela não falou de maldade, querendo pisar nas feridas de Zane, apenas foi bem infeliz no comentário. Um fato importante: quando você tem algo a perder, eles arrancam de você. Foi o que fizeram para ensinar Román de que ele não tinha escolhas. Foi o que fizeram para ensinar meus tios a se contentarem com uma primeira proposta quando ela surgisse. Eles dominam você através do seus medos. Penso em Johin, minha mãe, meus tios, Lyek… O que fariam contra mim? Eu tenho muito a perder. — Ele já disse “não” alguma vez? — Pergunto. — Não que eu me lembre. — Dana dá de ombros. — É porque ele tem o que perder, você apenas desconhece o que é. — Sentencio. Dana morde a boca por dentro, ponderando e solta um suspiro, arrependendo-se. Farrah dá um tapinha no meu ombro: — Gosto de você, o dia que o Imperador quiser que eu transe contigo, você vai gozar bem. — Farrah sorri planamente para mim, mostrando dentes quase brancos. — Obrigada, eu acho. — Faço uma careta de esquisitice. Se o imperador quiser que eu transe com alguém, espero que não seja essa maluca! Em silêncio, Zane retorna para onde estava, sentando do meu lado. Dana salta sobre ele, abraçando-o: — Desculpa, não quis te ofender. — Pede como um gatinho carente. — Não vou falar com você pelo resto da noite, só voltei porque quero ficar perto da Jaylee. Meu coração até dá um salto com essa franqueza. Antes que eu diga alguma coisa, um garçom enfia uma bandeja entre nós, tenho até que me afastar um pouco, pois se me mexer, vou derrubar tudo! São vários copinhos pequenos com um líquido amarelado e uma fruta azul dentro que parece uma framboesa. Zane, Rilde, Farrah e Dana pegam um copinho, eu hesito. Rilde engole rápido fazendo uma careta e se livra do copo, abanando a mão. Isso me deixa apavorada! — É sangue-de-bruxa. — Zane informa, como se eu soubesse o que isso quer dizer. Ele toma o copinho dele e engole a fruta. Dou de ombros, sem entender.

— Não faz mal nenhum para nós, mas deixa os dentuços louquinhos. — Farrah engole tudo e mastiga a fruta azulada, ficando com a boca azul turquesa, me lembra de quando eu era criança e chupava pirulito com anilina e a língua ficava azul. Dana faz o mesmo, elas soltam os copos vazios em cima da bandeja. — Como ácido! — Dana ri. — É ruim? — Pego um e coloco perto do nariz, inalando a fragância. Tem cheiro de açúcar. — Um pouco azedo. — Farrah sorri novamente, balançando a perna e esticando as sobrancelhas. — Vá em frente. Estou quase vertendo o líquido na minha língua quando recordo do bilhete que recebi. Removo o copo para fora da boca. — Acho que vou passar. — Faço bico. — Não pode, você precisa tomar. — Dana diz abrindo bem os olhos. — Eu fico com o seu! — Farrah estica a mão, pronta para tomar o copinho de mim. — Eu preciso de um extra. — Zane a interrompe e alcança o copo primeiro que Farrah, colocando tudo na boca. Ele pisca um olho para mim sorrindo com os cantos da boca, os lábios turquesa. O que ele disse? “Extra”? — Não devia ter feito, vão perceber a boca branca! — Dana passa os dedos ao redor da boca. Ela tem razão e espero que isso não me cause problemas! — Não vão. — Zane segura no meu rosto e me puxa para um beijo, de língua quente e com gosto azedo de Sangue de Bruxa. Ele se afasta e analisa. — Viu? — Que fominha! Eu queria ter feito isso! — Farrah dá um soco no ombro dele. Sinto como se tivesse sido manipulada. Foi por isso que Zane disse para eu me sentar perto dele hoje? Ele é o menino de ouro? Essa é a utilidade que eu teria no jantar, para Devon? Ele só pode estar de brincadeira comigo! Que irritante! Mas faz muito sentido. Zane disse que um nobre o tirou das doações de rua e o chamou para o salão. Aposto que esse tal nobre foi Devon Riezdra. Ele está pagando um favor ou é um soldado infiltrado? Um sininho toca, os escravos ficam de pé. Eu entre eles. A porta da saleta abre e a música clássica enche nossos ouvidos, dessa vez, um piano meia-cauda ressoando. Malditos nobres! Estamos no fim da era, em meio à guerra e eles possuem uma droga de um piano meiacauda! — Vejo você depois. — Zane passa o braço pelo meu ombro enquanto atravessamos a porta. Ele beija a minha bochecha e se afasta, seguindo para a maior sala privativa. Bawarrod já está na porta, esperando. O Imperador me olha com fúria. Desvio do olhar, dando uma esquadrinhada no salão. Ao invés de irem dançar, a maioria dos escravos já se junta com seus mestres e não vejo Devon na sala. Acho que é minha deixa: direto para a sala privativa. Talvez esse seja o protocolo quando tomamos aquela bebida estranha, deve ter um tempo para que ela faça efeito e depois, deve dissipar em nosso sangue. Tiro a chave dourada de entre meus seios, pendurada em um cordão. Coloco na fechadura, destranco e abro. Entro na sala. Nenhum lampião está acesso. Dois olhos dourados, luminosos, me aguardam na escuridão. A porta fecha sozinha atrás de mim e dou um salto. É mais rápido do que posso pensar e

nem mesmo escutei o barulho de passos. Devon já me empurra contra a porta, o bafo quente na minha orelha, a mão puxando meus cabelos com força, bato a cabeça contra a madeira. — Você bebeu? — Ele fala baixo. — Não. O seu menino de ouro bebeu. — Respondo em mesmo tom. — Boa menina. — Devon alivia a força da puxada em meus cabelos, suas mãos descem pelo meu corpo, conferindo minhas medidas, seios, cintura, coxa. — Coma menos da próxima vez, não quero ninguém achando que sou generoso com comida. — Ele se afasta. — Mas você não é. — Seguro na lapela do terno, fazendo ele voltar. Quando seu corpo encosta no meu, minhas mãos alcançam a barra de sua calça, puxando a camisa devagar. — Estou faminta. — Sussurro, roçando meu rosto no dele, sentindo a barba macia e o perfume amadeirado. — Posso acabar atacando todo o buffet de comidas caso eu tenha a chance. — Faça isso. — E não sei se ele está falando do buffet de comida ou de minhas mãos arranhando suas costas, não importa, eu gosto de como sua voz soa agora. Forço mais as unhas, os braços de Devon me envolvem em um abraço apertado de serpente e seus dentes furam minha carne. A picada me deixa de coração acelerado, quase sem fôlego, meu diafragma contrai e expande rapidamente. Vou ao chão, sentada. Devon por cima de mim, me empurrando contra a porta. O impacto faz um barulho alto, mas não tanto quanto as goladas fortes que chegam a doer e me dão vontade de gritar. Mordo a boca segurando a voz. Não demora, a dor passa, meu corpo amolece e o que sinto é quase prazer. Como quando fechamos os olhos em um por-do-sol, sentindo o vento nos cabelos e o sol quente batendo no rosto. É uma sensação de que o mundo te encanta e tudo é maravilhoso. Até mesmo Devon. Como um homem pode ser tão imponente e sensual? Como posso detestá-lo e ter necessidade de agradá-lo, para que ele goste de mim? O que há de errado comigo? Devon larga meu pescoço, mas ainda me abraça, fico imóvel, ainda em êxtase e um pouco preocupada por ele não me largar. Ele respira forte, pela boca. Enfim se afasta, de joelhos na minha frente. Está escuro, mas a essa altura, meus olhos se acostumaram e enxergo sua silhueta, ele coloca a mão na boca, não sei se está escondendo ou inibindo os dentes protuberantes, o rosto sério, quase pensativo. — Ainda sente fome, meu senhor? Seus olhos dourados focam em mim e piscam. Sei que tenho razão. Se eu o provocasse, ele me mataria? Por algum motivo quero testá-lo. Fico de joelhos, de frente para ele, seguro seu rosto, Devon me afasta, mas eu uso as duas mãos para segurá-lo e trazer sua boca em meu pescoço mais uma vez. A respiração dele bate em minha pele, causando conforto, nem ao menos tenho medo da picada dessa vez. — Sou forte, meu senhor. Você pode se saciar. — Não, não posso. — Ele me empurra de vez, caio sentada no chão, não chega a ser violento, mas não é gentil. Devon vai se levantar, mas eu não deixo, puxando novamente o terno, seu corpo se mexe na minha direção. Deito no tapete, ele se interrompe de cair por cima de mim, o braço direito contra o chão, segurando seu corpo. Ele evita, isso me estressa! Será que meu sangue tem mesmo gosto ruim? — Não se acanhe, senhor.

— O que está fazendo? — Ele segura no meu rosto, com força, amassando, a voz soa entre a dúvida e a fúria. — Você acha que é forte o suficiente? Você não é. — Por que meu senhor me subestima? — Puxo a gravata dele com força, trazendo-o de vez para cima de mim. Ele quase cede, mas mantém uma distância irritante entre nós. — É você quem subestima minha sede por sangue, escrava. — Ele empurra meu rosto e solta. — Não tenho medo dela, se é o que procura saber. — Uma garota pequena como você não tem nem um terço de todo o sangue que eu preciso. — Arrume mais escravos. — Estico as sobrancelhas. Os olhos de Devon se tornam ferozes. — Vai dizer que não pode ter mais escravos? — Pelo silêncio com que Devon me responde, sei que acertei em cheio. — Nossa realeza não permite que tenha mais escravos. — Solte a gravata. — A ira em sua voz me responde que estou certa. Por que ele só pode ter um escravo? — Depois que você beber mais. — Solte agora! — Ele grita, bem na minha cara. Fecho os olhos, dou até risada, mas não solto a gravata. — Não me tente! — Por que não? Você tira minha liberdade, mas não tira meu sangue! — O que você entende sobre liberdade? — Ele venta com desdém e rola para o lado. Continuo segurando a gravata em rebeldia. Devon olha para mim, esperando uma resposta. Respiro fundo e exalo ar: — Sei que não a tenho. — E pensa que tinha antes de vir parar aqui? — Ele ri, não sei se o entretenho ou se a minha idéia que é ridícula. — Pense melhor. Você não é nem mais ou menos livre do que eu. Somos escravos do mesmo sistema. — Hm! — Dou um salto me sentando e giro por cima dele, cada perna para um lado. Puxo a gravata como uma rédea. — Se isso for verdade, não vou mais chamar você de "meu senhor". — Não vai? — Devon ri, apoiando os braços para trás e erguendo o corpo. Ele encara minha frase com incredulidade e me desafia. — Vai me chamar de quê? — Escravo. — Que fique claro que não sou "seu" escravo. — Estou por cima aqui, não você. — Provoco mordendo a boca. — Sim, você está. — Devon me observa, ponderando. Devagar, desato o nó da gravata e alcanço os botões da gola, soltando. Ele segura com força no meu pulso. — Mas de novo, é apenas uma ilusão. E me empurra para o lado. Caio em cima do tapete e ele se levanta. É tão difícil. Em momento algum ele me enxerga como uma pessoa, ou sou comida ou sou uma ferramenta para suas brincadeiras contra o Imperador. — Fique aqui. Vou checar os efeitos do Sangue-de-Bruxa. — Devon fecha os botões da camisa. — E resgatar Zane antes que o Imperador perceba o que houve. — Ele será castigado? — Fico em pé e me aproximo dele, segurando na gravata, dando um laço duplo. Espero que Devon não escute a preocupação acelerando meu coração.

— Se eu for capaz de interferir antes, só um pouco. — Devon gira, alcançando a maçaneta. Olha para mim, de cima a baixo. — Você está uma gracinha nesse vestido. — É um elogio? — Como quem acha bonitinho um cachorro que voltou do petshop. — Com um encantador sorriso de canto, Devon abre a porta. Maldito! A música do salão parece muito animada. — Mantenha as luzes apagadas até eu voltar. — Ele passa para fora. — Devon! — Lady Lucretia parece que estava de prontidão. Fico atrás da porta, um pouco aberta, sem coragem de me mexer ou ela pode me ver. — Por que demorou tanto? — Pensou que encheria o sangue dela de narcóticos e eu bebericaria? — Devon gargalha e fecha a porta. Fico envolta por silêncio e negritude, um pouco de ansiedade e medo. Para Devon é uma brincadeira, ele é irritante! Vou sentar-me no sofá. Fico batendo a perna, quase roendo unhas, mordiscando os dedos. E se o Imperador perceber que Zane tomou uma dose a mais de Sangue-de-bruxa? Certamente será chicoteado. E se ele falar que foi eu que dei a ele? Não quero pensar nisso! Levanto e ando de um lado para o outro na sala, coloco a mão na boca do estômago para segurar o medo e depois na cabeça, para conter os pensamentos. Devon está demorando demais! Será que ele não chegou a tempo? Talvez Lady Lucretia tenha se distraído... E que injusto eu estar aqui dentro sem poder ver os efeitos dos narcóticos no Imperador. Eu gostaria de ver!

CAPÍTULO 14

Obediência Há um buraco no chão de tanto que ando de um lado ao outro. Meu coração bate pesado, meio sem ritmo. A porta abre ferindo meus olhos com a iluminação. Tomo um susto e me abaixo, escondendo atrás do sofá. Devon joga Zane para dentro da saleta. — Tome todo o vermouth, não desperdice tempo. — E fecha a porta com um estrondo. — Zane? — Chamo baixinho. — Estou bem. — Sua voz acalma minha alma. Respiro, enfim. — Vou acender a luz. — Engatinho até a prateleira e acendo um lampião deixando a luz bem baixa. Pisco algumas vezes para enxergar melhor e viro para Zane, ele já levantou e se dirige até a cômoda com o espelho, dá um soco na lateral, nada muito forte, e um botão de trava se solta, ele aperta e abre a lateral da cômoda como uma porta de correr. De dentro do compartimento, ele tira uma garrafa pela metade de vermute. Fico queita, analisando enquanto ele se solta no sofá e desatarracha a tampa, dando um gole na bebida. — Tenho facilidade para encontrar portas secretas, é meu talento oculto. — Zane me lança um sorriso e pisca um olho. — Servida? — Você já esteve aqui. — Aproximo-me dele e sento ao seu lado no sofá. Ele me estende a garrafa. — Isso também. — Ele ri. Dou um gole no vermute e é, sem dúvida, a coisa mais horrível que já tomei na vida! Parece água de legume em conserva, bem amarga e forte. O teor alcoólico deve ser alto. Faço uma careta que denuncia o quanto não gostei, devolvendo a garrafa para ele. Fica o silêncio. Assisto intrigada e com interesse Zane se embebedar como Devon ordenou. Os detalhes de sua roupa, os colares que ele usa, pretos, a forma com que ele encosta o bico da garrafa nos lábios carnudos e enche a boca de vermute. — Por que deixa que ele use você? — Pergunto, quebrando o silêncio. — Tínhamos um interesse em comum. — Ele me olha de canto, não sei se está falando sério ou brincando. — Mas ele estava cobrando um favor. — Pontuo. Coloco a perna cruzada para cima do sofá, ficando de frente para ele. Apoio o braço no encosto e estico a mão para alcançar os cabelos castanhos de Zane. — Estava. — Zane vira para mim e coloca a garrafa entre as pernas. — Usamos um ao outro. Ele tinha as ferramentas, eu tinha o acesso. Ninguém me obrigou a nada. — Você tem essa liberdade? — Pergunto. Deslizo o dedo até a gola da camiseta, onde

posso ver as mordidas do Imperador, uma mandíbula grande e feroz, de quem não se importa em trucidar o pescoço de um ser humano mais que de uma galinha. — Tenho coragem. É uma das poucas coisas que me recuso a perder. — Zane dá de ombros. — Além do mais, devíamos celebrar. Dance comigo antes que o álcool faça efeito. Zane segura minha mão e fica em pé, soltando a garrafa na mesa de centro. Eu acabo me levantando pela inércia. — Mas não temos música. As paredes dessa sala bloqueia o som. — Faço resistência no braço, para ele me soltar. — Imagine uma. — Ele me puxa, segurando minha cintura. — A que você ouvia quando estava em casa, depois da escola. — Mal me lembro de alguma. Quando Nytacha conseguiu um walkman, na fita tinha salsa! Não me recordo a letra. — Conto lembrando de que briguei com ela, mas fizemos as pazes dançando em cima da cama para amaciar o colchão que deram para a gente. Nunca senti falta de algo como sinto de Nytacha, sua ausência arranca uma parte do meu coração. — Vou cantar para você. Assim para de inventar desculpas para dançar comigo. — Para dançar comigo tem que no mínimo cantar bem! — Desafio. — Tá brincando? Se eu não fosse escravo, seria um cantor famoso. — Ele pisca um olho em tom jocoso e sei que ele está debochando de mim. — Eu devia ter percebido isso. — Estico os braços envolvendo o pescoço de Zane . — Cale a boca e cante. Com passos lentos de um lado para o outro na saleta, permito que Zane me abrece e encosto a cabeça em seu ombro. Ele canta mal, de um jeito que envergonharia a pessoa menos talentosa da Casa Taseldgard, mas fico com a cabeça encostada em seu ombro, escutando o ressoar da sua voz e as batidas do seu coração. É confortável. A música parece um poema, fala sobre o desejo de fugir de casa para dançar a noite, de não se possuir mais um lar e de achar conforto na esperança da morte. O refrão fica tatuado no meu cérebro: "Se eu cair no sono espero que seja em seus braços para não mais acordar. Morrer ao seu lado, um sonho bom." Depois caímos no chão lado a lado, ele bêbado e rindo. Apoio o cotovelo no tapete e me inclino, afastando os fios de cabelo dele de seus olhos. Há algo nos olhos de Zane que me encanta, como uma pintura bonita, não é apenas a cor do céu, mas um tipo de fogo que existe apenas naqueles que possuem liderança. Admiro isso nele, essa coragem que ele diz que tem e que demonstra em seus atos. — Queria ter visto como ficou o Imperador. — Confesso sorrindo sem mostrar os dentes, deslizando os dedos em seu rosto bonito. — Deve ter sido engraçado. — Se eles fossem gatos, Sangue-de-Bruxa seria catnip. — Zane abre um sorriso de vitória, os olhos até ganham um brilho diferente. — Você será castigado com certeza, pelo menos valeu a pena? — Foi tão bom que se eu morrer, nem vou me importar. — Ele suspira, com satisfação ébria. — Mas eu vou. — Falo firme. — Por quê? — Zane olha para mim, ficando sério. — Não sei bem os motivos, mútua compaixão por ter me salvado dos guardas, talvez. É difícil fazer amigos por aqui.

— Eu devia te avisar. — Zane segura na minha nuca, me trazendo para mais perto, nossos narizes encostam. — Quero mais que isso. Eu espero pelo encontro de nossas bocas, mas ele não me beija. A porta abre violentamente e eu me afasto no susto. Zane se ergue pelos cotovelos e três guardas marcham para dentro da sala. Minha única reação é esconder a garrafa de vermute sentando de novo no sofá, segurando-a contra as minhas costas, para que os guardas não vejam. Eu sei o que vem em seguida: vão fazer um exame de sangue, vão achar álcool e algum resquício de Sangue-de-Bruxa. Considerarão que essa mistura foi a causa da embriaguez pervertida do Imperador. Ele será açoitado em praça pública como exemplo, para que todos os escravos e humanos habitantes dessa Torre saibam que devem respeito ao imperador. Com sorte, sobreviverá. Puxam Zane do chão, segurando-o como policiais. Zane não resiste, ainda assim o tratam com violência dando uma cacetada em seu joelho para ele se curvar. Quando me vê aterrorizada, com as mãos na boca e imóvel, tremendo, Zane sorri e pisca um olho, como se estivesse me paquerando. Meus olhos se enchem de lágrimas. Os guardas o arrastam para fora da saleta. Na passagem, vejo Devon de braços cruzados na porta. — Obrigado, senhor. — Um soldado bate continência antes de se afastar. Devon entra na sala e fecha a porta. Ele caminha na minha direção, se curvando por cima de mim e eu inclino o corpo para trás. — Ele bebeu? — Metade, acho. — Vamos esperar que seja suficiente. — Devon venta pelo nariz e se afasta, andando até o espelho, onde ajeita os cabelos para trás. — Beba o resto, se livre da garrafa sem deixar pistas. — Funcionou? — Pergunto, colocando as mãos para trás e pego a garrafa. — Rendeu umas boas risadas. — Ele se dirige para a porta, segurando na maçaneta. — É um jogo para você? — Desafio. — Atirar um garoto no meio da praça para ser chicoteado por algumas boas risadas? — Não tire conclusões equivocadas. — Devon abre a porta. — Deixe o salão com os primeiros raios de sol ou alguém vai seguir você. — Sim senhor. — Minha voz até arranha. Devon deixa a sala. Sozinha, faço o que ele me mandou fazer: engulo o restante do vermute até secar a garrafa. Tiro o rótulo, como e engulo todo o papel. Enrolo a garrafa em um pedaço da saia do meu vestido e quebro em diversos pedacinhos dentro do pano usando a jarra de água como um martelo, esmagando os cacos. Estou suando quando termino, com o coração batendo apertado. Coloco o pano com cacos para dentro do meu corselete e deixo a saleta conforme as ordens passada, me certificando de que nada ficou para trás. A bebida me deixou enjoada, não sei se é o gosto das ervas misturadas ou a cola do rótulo. Caminho para fora do salão ao amanhecer, os nobres já se foram, os escravos estão saindo das saletas e os faxineiros entrando. Renira me dá uma olhada, a única a perceber que eu estou chorando. Ela vem na minha

direção. — Jay? — E segura meus braços, olhando para a minha barriga. — Você se machucou? Está sangrando! Os outros escravos me olham, eu faço que não com a cabeça, quero fugir, mas Renira me segura firme, já querendo abrir o meu vestido para ver. Assim vão achar os cacos, vão saber do que houve e estaremos todos condenados à morte! Não consigo lutar contra ela, entretanto, me sinto tão fraca que só tenho vontade de tremer e chorar. Por que sou tão fraca? Por que não consigo fazer alguma coisa? Tomar uma atitude? — Tire suas patas sujas de cima dela. — Farrah empurra Renira e me segura pelos ombros. — Francamente, se alguém vai apalpar a Jay, esse alguém será eu. — Lésbica maldita. — Renira resmunga. — Bleeeh! — Farrah mostra toda a língua e a guela enquanto faz uma careta, puxando um olho e curvando um pouco o corpo. — Xô, animal! Xô! — Rilde se aproxima limpando o pescoço com uma toalha branca, toda manchada de sangue. Ela tem marcas pelo pescoço, das dentadas, são um pouco menores que as que vi em Zane, acho que Lady Lucretia também enfia os dentes com força. Deve ser uma marca de Bawarrod, pois quando Devon me morte, não ficam marcas. — Você tá bem? — Estou. — Limpo os olhos — Não deixe esses cachorros farejarem você. — Dana se aproxima. Ela olha para minha barriga. — Argh, você simplesmente não odeia quando eles deixam a gente sangrando? — E revira os olhos passando por mim. — É que vai cair um braço se fizerem cicatrizar! — Rilde vai com ela balançando a cabeça. Farrah ainda fica olhando para mim, analisando minha ferida na barriga. Espero que ela não perceba que ao invés dos dentes de Devon é apenas uma esfoliação pelos cacos de vidro. — Não chore, faz você parecer fraca e indefesa. Zane desrespeitou o Imperador, qualquer castigo é merecido. — Farrah me olha com desdém e se afasta de mim, girando. — A propósito, Dana deu com a língua nos dentes e contou que ele tomou sua dose, eu teria o dobro de cuidado ao voltar para casa. As palavras dela me apavoram. Não espero todo mundo sair ou ficarei sozinha no salão, uma presa fácil. Vou para a torre adjacente seguindo com os outros, encarando as ondas dos cabelos dourados de Farrah, que sai dançando na minha frente. Vamos subindo até que sobra apenas eu, na direção do corredor em que fica meu apartamento. Aperto os passos, logo estou correndo e abro a porta feito louca. Minha mãe e eu encaramos mais uma fase do silêncio. Ela olha minha ferida e o rasgo no meu vestido, mas não me faz perguntas. Continua dando o café da manhã para Johin, sentada na mesa e fazendo ele comer cereais. — Jay! — Ele sorri contente, de boca cheia, da forma que gosto de vê-lo. É importante que meu irmão coma muito, cresça, fique forte, possa lutar contra essa droga de vida que levamos aqui. Quero dar a ele uma escolha. — Está gostoso? — Eu me aproximo da mesa, faço um carinho nele. — Uma delícia. — Seu mestre mandou cortar farinha. Não poderei fazer bolo para Johin, trate de

emagrecer até a próxima cota. — Ela reclama. Suspiro e deixo-os na sala. Tranco-me no banheiro para tirar a roupa. Disperso os cacos de vidro´jogando parte pela latrina e parte na ventania pela janela. ● ● ● — Três. — Está brincando? Só isso? — Fulmino Lyek com os olhos e ele me abre um sorriso, satisfeito apenas em me tirar do sério. — Preciso de mais tempo. Nem que fossem cinquenta, não faria diferença. — Quanto tempo? — Não sei. Essas coisas demoram. — Ele dá de ombros. Eu engulo a resposta com revolta. Estamos no Átrium, pela manhã, Lyek estava indo para a oficina e eu o interceptei no único lugar em que todas as alas se cruzam. Muitas pessoas passam por aqui nessa hora. — Você está bem? — Está tudo… — Nem termino. Escuto gritos, barulho de soldados marchando, as pessoas correndo em direção a entrada do átrium e meu coração acelera. — Senhoras e senhores habitantes da Torre Bawarrod! — Um guarda de armadura anuncia no meio do pátio. — O que está havendo? — Lyek vira para olhar a movimentação, as pessoas se batem contra a gente, juntando em um círculo. A movimentação deve estar ocorrendo na Praça do Rosário, que levou esse nome durante o início das guerras, a Torre Bawarrod era o receptáculo dos humanos resgatados e uma senhora, assustada com o tipo de demônio que os vampiros eram pendurou um rosário na ponta de um guarda-sol e fincou naquele local. Dizem que ela foi enforcada por sua ousadia, enquanto rezava o Pai-Nosso, mas o guarda-sol e o rosário foram preservados para nos lembrar de que nem Deus poderia nos ajudar. Toda vez que tem um castigo público, eles escolhem o palanque ao lado do guarda-sol para aplicá-lo. Não preciso ver o que está acontecendo para saber do que se trata. Por crimes menores contra roubos, eles deixam que a população atirem comida podre nos criminosos acorrentados, ou então é palmatória: fazem-se filas para espalmar as mãos sujas de quem roubou. As vezes há açoites, com chicote, uma punição moderada, mas que pode ser um inferno e muito pesada. As piores punições são decaptações e enforcamentos. Nem todo mundo é punido, entretanto, e as punições nem ao menos são coerentes! Varia de acordo com o humor do Imperador e, dizem que ele é implacável como Nero. Cornetas soam pesadas e minha respiração começa a ficar mais rápida, meu corpo entra em pânico. Lyek me olha confuso, mas acaba percebendo que o anúncio de uma nova punição pode ter a ver comigo. As pessoas se amontoam. — Obediência é uma virtude e aqueles que as possuírem serão sempre recompensados com benevolência. — O soldado começa a gritar seu discurso. Podemos ouvir mesmo a distância da praça. — O Imperador regente, Kaiser Bawarrod informa que, para o caso de

haver algum ser vivo em Torre Bawarrod que não saiba o significado da palavra. Obedecer! Do latim: oboediscere! — O que você fez? — Lyek pergunta segurando em meus ombros, falando baixo. Não consigo dizer nada. As vozes das pessoas se acumulam, cochichos e mais cochichos. Faço que “não” com a cabeça e vou na direção da porta do átrium, atravessando entre as pessoas. — Obedecer implica, em diversos graus, subordinação à vontade de uma autoridade de grande intensidade! — O soldado continua berrando. — O acatamento de uma instrução, o cumprimento de uma lei ou algo que é pedido, realiza-se por meio de ações consequentes ou omissões. Ele quer dizer: abster-se de vontade própria. Algumas pessoas aplaudem, outros assoviam, há quem solte uma vaia ou outra de forma anônima na multidão. Uma menina abre caminho para mim, vou passando por entre os corpos parados que tentam assistir o acontecido. — A desobediência é um crime! Faltar com respeito à uma autoridade é um crime! E esse crime não será tolerado! Aqueles que cometem crimes e seus cúmplices devem ser punidos para que a ordem e o respeito na sociedade sejam mantidas! Aplausos ressoam, eu me abaixo para passar por entre as pernas de duas senhoras magricelas e consigo chegar à saída. Dali posso ver um soldado, empunhando sua arma em pé no palanque, o que discursa. Há outros soldados ao redor dele, suas armas na mão com a única intenção de nos coagir. Zane está amarrado pelos pulsos no centro do palanque, sem camisa, só de calça, parece abatido e sujo. Minha vontade é de correr até ele. Chego a dar um passo, mas Lyek segura no meu pulso, me impedindo. Olho para ele tremendo, Lyek mantém seus olhos no palanque. — Dito isso… Pelo crime de embriaguez alheia, com o intuito único de afrontar à imagem do Império Bawarrod, Zane, escravo de sangue da Casa Bawarrod, será punido com dez açoitadas. — O soldado anuncia abrindo o chicote. — Já que seus cúmplices não se pronunciaram, ele levará as açoitadas referentes. Se contar eu, o garçom, as meninas que viram que ele tomou a dose, inclusive Dana a delatora (sendo esse o único motivo para ela não estar ali em pé ao lado dele), acho que serão mais de cinquenta chicotadas. É melhor eu me entregar, ou ele vai morrer. Tento soltar a mão de Lyek, mas ele percebe antes, me segurando com força. Eu me debato, de um lado para o outro e ele apenas me segura mais, cotovelo, braços, cintura, um esforço tremendo para me tirar da frente da multidão. — Me larga, Lyek! — Não vá até lá. — Com firmeza, ele me impede, me chacoalhando e olhando firme para mim. — Não seja imprudente, Jay! — Ele vai morrer. — Meus olhos se enchem de lágrimas. — Se você for, vão matar você também. — Lyek me abraça com carinho, beijando a minha cabeça. Apesar de ainda não ter ido para a Oficina, ele cheira à óleo e graxa, tão familiar! — Fique aqui comigo. Eu concordo com um aceno de cabeça, seco os olhos e procuro me recobrar, antes que alguém me veja alterada e perceba que aquelas chicotadas deveriam vir em minha pele

também. — Um! — O soldado começa, lançando o chicote contra Zane. Zane grita de dor enquanto os idiotas aplaudem. Minhas pernas fraquejam, mas tento manter-me em pé, enquanto penso que eu quem devia ter bebido aquela droga de Sangue-deBruxa em vez de ter obedecido Devon.

CAPÍTULO 15

O coração do Imperador O corpo de Zane cai no chão levantando poeira. Solto das amarras, ele nem se mexe e encaro suas costas, com marcas vermelhas e sangue. Nem sei dizer se ele ainda está vivo, as batidas do meu coração são doloridas e agoniadas. A multidão se dispersa. Há quem passe por Zane e cuspa perto dele, ou nele. Sinto raiva dessas pessoas, por se julgarem superior por obedecerem. São ovelhas de um rebanho, sendo manobradas por cachorros babões. Uma garota de rosto vermelho e inchado de tanto chorar corre até Zane antes mesmo que eu consiga dar um passo. Reconheço suas tranças e o vestido simples, que a deixa parecendo uma camponesa. Apesar de querer ter sido a primeira a chegar, estou feliz que Elisabeth esteja lá por Zane. Ela segura no braço dele, tentando fazer com que ele se levante, mas Zane apenas se encolhe um pouco, com dor. — Vamos ajudá-los. — Lyek faz um carinho na minha mão direita, chamando minha atenção. Viro para ele e faço que sim com a cabeça. Não existe ninguém no mundo que seja mais bondoso que Lyek no universo e ele simplesmente não consegue ver alguém precisando de ajuda sem querer desempenhar o papel de Robin Hood. — Deixe-me ajudar você. — Lyek pede licença para Elisabeth e segura Zane pelo braço, levantando-o do chão. Zane não tem forças nem para gritar, mas os olhos aterrorizados de Elisabeth gritam por ele. — Guiaremos você para casa. Apresso meus passos e emparelho com Lyek, do outro lado, passando o outro braço de Zane pelos meus ombros. Eles açoitam as costas até rasgar a carne e sangrar, mas o chicote quase nunca toca a lombar, por onde consigo passar o braço e prover um pouco de apoio para ajudar Zane a caminhar. Elisabeth nos segue, fungando. Na metade do caminho Zane perde as forças de vez. Ajudamos Lyek a carregá-lo de cavalinho. Subimos a torre adjacente, temos que ir de escada pois os elevadores não funcionam e energia elétrica é um luxo reservado aos nobres. Portas e janelas se batem com estrondos, todos resolvem fechar os olhos bem como seus ouvidos e bocas, em sinal de que não irão nos apoiar. Para muitos, se Zane morresse seria até bom, haveria uma vaga entre os escravos de Bawarrod. — Eu tenho a chave. — Elisabeth diz diante da porta de madeira do apartamento de Zane. Sua voz é um pouco rouca e ela fala olhando para o chão, sem nos encarar. É meio estranho, mas acredito que esse tipo de subordinação seja natural na ala em que ela mora. A maioria dos humanos evita cruzar olhares com os vampiros. Acho que no começo eu fazia a mesma coisa, mas ter virado uma escrava de sangue mudou a forma com que eu os enxergo. Tenho menos medo e mais raiva. Ter raiva é bom, te dá força.

Elisabeth abre a porta e empurra, escancarando-a para que Lyek possa entrar. Há uma cesta na mesa de centro da sala, feita de vime. Enquanto Lyek e Elisabeth levam Zane para o quarto, eu me aproximo curiosa. O que me chama atenção é um ramo de arnica amarela em cima da cesta, com uma fita vermelha segurando os pequenos caules cheios de folhas. É uma flor comum que cresce como praga em jardins, mas tem efeitos anti-inflamatórios e cicatrizantes. Um ramo destas, hoje em dia, é trocado a preço de ouro. Foi um presente do Imperador, será? Para conferir, abro a tampa da cesta para olhar o que tem dentro e me deparo com uma garrafa de vermute. Conheço bem o dono desse humor irônico. Tiro a garrafa da cesta. — Lyek! — Grito. Ele aparece correndo, com os olhos abertos, mas para atônito quando vê que estou bem, sorrindo e segurando um ramo de flores e uma garrafa de vermute, um em cada mão, saçaricando. — O que você está fazendo? — Elisabeth pergunta, surgindo atrás dele. — Largue isso antes que você quebre! — Não seja tonta, é arnica e álcool. — Balanço um e depois o outro. — Vou ferver água. — Lyek compreende, atravessando a sala indo em direção à pequena cozinha. — Pegue umas toalhas. — Peço olhando para Elisabeth. Ela faz que sim com a cabeça e volta para dentro do quarto. ● ● ● Elisabeth ajudou bastante. Cozinhamos arnica em água e amassamos até virar uma pasta, deu o suficiente para anestesiar a dor e ajudar na cicatrização das feridas. O vermouth usamos para desinfectar e e bebemos uma taça para ter estômago e encarar aqueles cortes. Antes que anoitecesse, Lyek resolveu acompanhar Elisabeth até em casa, para que ela não fosse sozinha e acabasse vítima de alguma maldade ou vingança contra Zane. — Tentarei encontrar alguma pomada, um analgésico. — Elisabeth comenta, antes de sair, suas tranças alaranjadas estão um pouco desfeitas e ela está nitidamente cansada, mas se acalmou quando percebeu que as chicotadas não foram fortes o suficiente para quebrar os ossos, o soldado que açoitou Zane tinha pulsos moles ou ordens para não matá-lo. Acredito que foi a segunda opção. — Sei bem os preços de remédios em Bawarrod, nem perca seu tempo. Vale mais trazer vodca, ou, se conseguir, um pouco do álcool que o pessoal da limpeza utiliza. — Seguro a porta, apenas uma fresta suficiente para a minha cabeça. — Talvez eu consiga um pouco de álcool na cozinha. — Lyek me envia um sorriso. — Tome cuidado e tranque a porta. — Sim senhor. — Dou um sorriso para ele em resposta. Ele me fez fechar todas as janelas momentos antes. Lyek se despede de mim com um beijo na cabeça e vira-se para Elisabeth: — Está tudo certo lá na ala em que você vive? Se precisar de alguma coisa, pode me

pedir. — Sempre solícito. — Obrigada. — Elisabeth responde com uma risadinha tímida. Fecho a porta e giro a chave de Elisabeth três vezes. Vou para o quarto de Zane e fecho a porta, trancando. Ele está desacordado, deitado com a cabeça no travesseiro e as costas para cima, coberta por um lenço embebido em chá de arnica. Tivemos o cuidado de escolher um pano que não fose muito pesado, para não machucar. Não tínhamos gaze. Contorno a cama e ergo um pouco o pano só para chechar se está tudo bem. Deslizo a mão pela cabeça de Zane, os cabelos estão um pouco sujos, mas não dava para enfiá-lo debaixo do chuveiro e apenas passamos panos com água para limpar seu corpo e as feridas. Confiro a temperatura, constatando que embora sua pele esteja quente, a febre cedeu. — Você me preocupou. — Confesso, mesmo sabendo que ele não pode me ouvir. Sento-me no chão, entre o armário e a cama, para ficar perto da bacia de chá e poder umedecer o pano de vez em quando. Passo horas folheando um livro que tem ali por cima, mas não compreendo nada do que está escrito e acho que nem Zane. Pode ser hebreu, não sei. ● ● ● Dou uma pescada e minha cabeça quase escorrega do meu braço. Desperto no susto e encaro os olhos azuis de Zane, na minha direção. — Você acordou. — Eu me aproximo da cama checando sua temperatura mais uma vez. Ele está febril, parece exausto e ainda deve estar sentindo muita dor. — Pare de dormir em pé e deite-se aqui comigo. — Ele fala devagar, sem forças e pisca demoradamente, como se estivesse com muito sono. — Não precisa ter medo, não é como se eu pudesse agarrar você. — Idiota. — Reviro os olhos, mas me levanto e deito na cama ao lado dele. Com o movimento do colchão, Zane expressa dor com uma careta. Suspiro e olho para o teto por um tempo, escolhendo as palavras. Olho para Zane, está quase fechando os olhos. — Ele poupou você. O Imperador. Qualquer outro teria sido decaptado. — Hm. — Zane responde de olhos fechados, tentando sorrir. — Ele me ama e não consegue negar. Alem da piada ter tom de verdade, me faz pensar se no fundo não seria esse o plano de Devon. O que tiraria a credibilidade de um Imperador mais que se curvar com benevolência por amor? — Por que você se sujeita à arriscar sua vida para seguir ordens daquele monstro? Quando mandou você tomar aquela dose extra de Sangue-de-Bruxa, ele sabia que poderia matar você. — Eu tomaria veneno se Sr. Riezdra me pedisse. — Zane conta. Ele abre um pouco os olhos para me olhar, com esforço para ficar acordado. — Por quê? — Pergunto indigesta, não acredito que Zane disse isso! Justo ele que defende que devemos manter nossa integridade, não me parece normal demonstrar respeito a um homem que nem ao menos é seu Senhor. — Pagaria meu débito com honra. — Zane responde com a voz mole e um suspiro. Fico em silêncio, enquanto espero ele se explicar. — Não se preocupe, comigo. Ele não é o tipo de

homem que sacrifica seus soldados com prazer. Você devia saber disso. Devia? O que sei sobre Devon Riezdra é que ele é um general impiedoso com seus inimigos, valioso no campo de batalha e que não é muito ortodoxo. O que eu sei sobre Devon, o homem por trás do nome, é que ele luta por poder e não se importa de usar as pessoas. Mas por outro lado, se eu pensar bem, ele também é um homem que não consegue negar ajuda à Román e empresta um casaco, mesmo este sendo seu rival na sucessão ao trono, cicatriza as mordidas que me dá e envia arnica para cicatrizar as feridas que ele mesmo ordenou fazer nas costas de Zane. Eu não compreendo! Devon é um mistério para mim. Enquanto eu não souber o que o motiva a agir dessas formas, acho que nunca vou entendê-lo completamente. Mas, talvez, ele seja mais valioso como aliado do que imaginei. — Que tipo de débito você tem? — Pergunto e viro a cabeça para Zane. Ele está dormindo de novo e não me responde. Suspiro e viro para o lado, fazendo um carinho em Zane. Acabo dormindo. ● ● ● Raios de sol incidindo em meus olhos me despertam. Rolo pela cama e percebo, pelo cheiro e pela qualidade do colchão, que não estou em casa. Levanto a cabeça e estou sozinha no quarto de Zane. Ele já levantou? Sinto cheiro de fritura e me levanto, ajeitando minhas roupas. Saio do quarto e entro na sala. Zane está em pé na frente do fogão, de camiseta branca e calça preta, os cabelos estão úmidos. Aproximo-me do balcão, há pratos e copos em cima, a mesa posta. Tem uma jarra de suco amarelo, acho que é laranja e uma cesta pequena com frutas, maçãs e ameixas amarelas, elas são cultivadas em Bawarrod. — Zane? — Chamo. — Você está bem? — Veja quem acordou! — Zane gira sorrindo, segurando a frigideira com ovos, o cheiro está fazendo minha barriga se remexer. Ele escorrega o conteúdo em um dos pratos. — Achei que daria uma de Bela Adormecida pelo resto do dia. Dormiu bem? — O que você está fazendo? — Café da manhã. — Zane dá de ombros como se minha pergunta fosse óbvia e empurra o prato com ovos na minha direção. — Sirva-se, por favor. — Adoraria, mas tenho que emagrecer. — Resmungo empurrando o prato. — E quis dizer, o que você faz em pé? Como cicatrizou tão depressa? — Você cuidou direitinho de mim e sarei. — Ele pisca um olho e alcança uma ameixa da cesta. — Você tem relação-sanguínea. — Deduzo. Nem mesmo a arnica faria aquelas feridas que vi cicatrizarem tão depressa e estavam na cesta para aliviar a dor. — Riezdra ou Bawarrod? — Bawarrod. — Zane morde a ameixa, apoiando-se no balcão, o pano de prato sobre um dos ombros. — Deveria ser um segredo, mas eu provavelmente passeie por todos os corredores cantando com minha talentosa voz para que todos saibam disso. Quer ir comigo? — Depende. Vai te trazer problemas?

— Claro que sim. — Ele sorri com satisfação e eu fecho a cara. Não acredito que esse moleque vai me fazer ficar preocupada de novo? Assim não tem coração que aguente! — Não se preocupe, não é nada do que você está pensando, Jay. — O que eu estou pensando é que Riezdra manda você direto para a fogueira se tiver a chance de descredibilizar o Imperador. Não entendo o que te leva a se arriscar tanto! Sei que você tem uma dívida, mas ele precisa mesmo cobrar dessa forma tão injusta? — Cruzo os braços aborrecida. — Você fica mal-humorada sempre pela manhã? — Ele brinca e se afasta do balcão, largando o pano de prato e fugindo de me dar uma explicação. Essa atitude me incomoda. Quero saber o que ele esconde. — Vou pegar um casaco, coma alguma coisa! — Ele some para dentro do quarto. Sirvo um pouco de suco em um copo e tomo alguns goles. Zane retorna com uma jaqueta preta e puxa o prato de ovo na minha direção, insistindo. — Você não quer arriscar ficar anêmica. Ovos engordam menos que a farinha que você come. — Ele se apoia com os cotovelos no balcão. Encaro o prato ponderando e pego um garfo, aceitando a oferta. Não precisa me oferecer comida mais que duas vezes, se quer saber! — Por falar em farinha posso levar um pouco para minha casa? — Pergunto de boca cheia. Mastigo depressa e engulo. — Minha mãe quer fazer bolo para meu irmão, ele está em fase de crescimento. — Você pode pegar o que quiser de mim. — Zane me observa com um sorriso gentil. — Obrigada! — Agradeço trocando um selinho. ● ● ● Levei a farinha para casa, Zane preferiu me esperar no térreo. Mamãe adorou a farinha e não reclamou que passei a noite fora, muito menos que tomei um banho de chuveiro (mas foi rápido, juro!). Desde que ela tenha a farinha que quer, tudo está ótimo para ela. Passo pela sala de roupas trocadas e cabelo molhado, dou um beijo na cabeça de Johin, que está sentado no chão brincando e fico pensando que preciso dar um jeito de conseguir um carrinho novo, o dele está sem duas rodas. — Comporte-se e seja bonzinho com a mamãe. — Ele sorri para mim. Atravesso a sala, os saltos soando pelo chão de madeira. Minha mãe está batendo com a colher de pau a massa de bolo, satisfeita, mas no momento que coloco a mão na maçaneta, sua voz soa pelo silêncio da casa: — Onde você vai? — Sair com um amigo, quem sabe consiga um carrinho novo para Johin. — Explico. — Não acha que está passando tempo demais com aquele garoto? Ouvi que ele aborreceu o Imperador. — Ela quer dizer que não acha que Zane é uma boa companhia, pois tem medo da retaliação que isso pode acarretar. Minha mãe não está errada de se preocupar, mas me aborrece a hipocrisia, quer dizer, ela se preocupa com esse tipo de risco, mas não com o que eu passo todos os dias! Acho que no fundo, eu sou é escrava da minha mãe!

— Você não gostou quando eu trouxe farinha? — Pergunto seca. Mamãe franze a testa, sem entender direito o que quero dizer. Seus cabelos estão presos para cima em um coque. — Gostei, claro, filha, mas… — Vou agradecer a Zane por você. — Abro a porta e saio, fechando depressa antes que eu fique de castigo! Desço correndo pelas escadas e me encontro com Zane na saída da torre adjascente. Eu acho engraçada a estrutura cheia de ferros, como se não tivessem terminado de construir o prédio, mas é só nessa parte de baixo que é assim. — Desculpa a demora. — Ergo uma mão e me curvo um pouco, recuperando o fôlego por ter corrido. — Está tudo bem? — Ele se desencosta da parede. — Claro que sim. — Envio um sorriso. — Será que podemos passar na feirinha? Quero ver se consigo um brinquedo novo para meu irmão. Acha que consigo trocar por esses brincos? — Balanço a cabeça, para ele ver meus brincos. — Não muito, são terríveis. — Zane ri e passa o braço por meus ombros. Começamos a andar. — Vou ver se consigo para você. — Obrigada. Caminhamos em direção ao pátio em que fica as barracas dos vendedores locais. Temos um comércio, pois sim, mas a maioria é contrabando. As barracas que ficam nas feiras são de propriedade dos nobres, os humanos trabalham como vendedores em troca do sistema de cotas, como trabalhos comuns na oficina, lavanderia etc. Depois que o imposto é descontato para o Imperador, ele fica com cerca de 60% do lucro, o restante vai para os líderes das casas, que distribui entre os membros conforme acha melhor. Famílias pequenas são mais ricas, famílias maiores dominam mais negócios. Sigo com Zane por todos os corredores da Torre Bawarrod, vamos conversando sobre nada e sobre tudo. Pelas barracas, provo chapéus, lenços, óculos, mexo nas caixinhas de música e nos brinquedos. Pelos meus brincos, troco por um peão. Zane consegue o carrinho que eu queria trocando sua jaqueta, tento dizer que ele não precisava fazer isso, mas Zane insiste, dizendo que espera que o Imperador veja outra pessoa usando. Se eu disser que estou até com pena do Imperador, você me acharia doida? Por mais que ele seja cruel e implacável, como todo tirano, meu coração amolece quando penso que no fundo, Kaiser Bawarrod é apenas um homem apaixonado que entregou o coração para a pessoa errada: um traidor. A guerra do amor não fica tão distante da guerra entre nações ou da guerra política, afinal. No fim do dia, durante o por-do-sol, retornarmos abraçados para a torre adjacente. Há um Rolls-Royce preto de vidros escuros estacionado antes da entrada, a luz alaranjada refletindo na lataria. Zane me solta, meu coração até aperta. — Ele veio mais cedo do que pensei. — Zane me estende a chave de seu apartamento. — Pode usar o que precisar. — Verei você de novo? — Hesito pegar a chave, com medo da resposta. — Não me faça propostas em voz alta ou da próxima vez você receberá um convite para

se juntar a nós. — Zane provoca, em tom de brincadeira e com um sorriso que disfarça sua indisposição em seguir adiante. — Indecente. — Puxo a chave da mão dele e o empurro, seguindo na direção da entrada, afundando os pés. Paro e viro em tempo de ver Zane entrando no carro, no banco de trás. Ao final da noite, um cochicho é constante nos corredores da torre. Dana e sua família foram banidos da Torre Bawarrod.

CAPÍTULO 16

Beijo proibido. Meu vestido é vermelho escuro, colado no corpo e em corte reto, com o final da saia bem aberto como uma tulipa. O busto de renda é transparente e me deixa com vergonha. Dá para ver o contorno do bico dos meus seios. — Jay! — Zane passa o braço pelos meus ombros, cheirando a sabonete. Ele beija meu rosto, mas estranha que estou com os braços cruzados por cima dos seios. — Que vestido horrível. — É transparente. — Resmungo e olho para ele, que tem um sorriso leve no rosto e olhos azuis encantadores. Ele está uma graça com uma jaqueta preta aberta, camiseta cinza com a gola em “v” acentuando a tatuagem no pescoço e uma calça de matar. — Não é tão horrível assim! — Zane muda de ideia e eu dou uma cotovelada em suas costelas. — Por que veio sem sutiã? Tá louca. — O cartão que recebi disse para vir sem. Eu estava de casaco, mas o guarda da porta não deixou eu entrar com ele. Na saída, você me empresta sua jaqueta? — Vou pensar no seu caso, afinal, você é a garota que desfilou de cinta-liga. — Zane ri debochando de mim. — Eu me sinto terrível. Aposto que ele fez isso de propósito, para me forçar a emagrecer. — Fico com os braços na frente do corpo morta de vergonha, enquanto paramos na fila para entrar na Sala de Espera. — Ei! — Zane fica de frente para mim, aos mãos nas minhas costas. — Você é linda, Riezdra vai desmaiar quando te ver. — Você soou como um amigo gay. — Faço bico, nada cortejada com o elogio. — Mas eu não sou, mantenha isso em mente. — Zane segura no meu rosto e beija a minha boca, me apertando. Hmm. Dou um passo para trás perdendo o equilíbrio, solto os braços do meu corpo para segurar nele ou vou cair no chão. Zane é um beijoqueiro e tem uma necessidade estranha de estar sempre em contato físico comigo. Ele tem um magnetismo único, que estou convencida que vem da Relação-Sanguínea que ele tem com o Imperador. Afasto-me antes que borre meu batom. — Tá bem, você me convenceu. — Dou dois tapinhas em seu tórax. — Ótimo! — Zane me mostra um sorriso bonito e pisca um olho. Ele passa o braço por meus ombros, se apoiando, enquanto andamos pela fila. — Fiquei sabendo que Bawarrod tem uma nova escrava. — Sério? Quem? Presumo que esteja na vaga de Dana. — Não sei quem é. — Ele revira os olhos oceânicos entojado. — Espero que ela tenha mais senso de humor que Dana.

— Não diga coisas assim, Dana foi expulsa da Torre, ela pode estar morta nesse instante, pode ter sido engolida por aqueles aliens. — Faço uma careta insatisfeita. — Não estava fazendo uma piada. — Zane arfa. — Além do mais, tenho certeza que Dana está bem, ela é tão chata que nem os aliens devem querer comê-la! — Agora foi uma piada e foi muito sem graça! — Foi muito engraçada, eu deixo você rir. — Ele pisca um olho e dou outra cotovelada em sua costela. — Até porque, pelo que eu saiba, alienígenas não comem pessoas. — Comem sim. Também não são nossos amigos. — Aponto. — Você não sabe sobre isso, já tentou fazer amizade com um? — Não seja tonto. — Dou risada. Não se enganem, Zane está brincando e todos sabemos que os alienígenas vieram tomar o nosso planeta. Chegaram atacando com suas naves, destruindo tudo ao redor, poupando apenas o que era natural ao planeta. Eles preservam e restauram matas, rios, oceanos... Houve quem o chamou de Anjos, acreditando que Deus havia aberto o selo do Apocalipse. Não sei se é certo o que dizem, mas sei que os Anjos matam nossa espécie. Eu prefiro chamá-los de alienígenas. O homem de monóculo nos encara com mau-humor, passamos por ele com seriedade e explodimos em uma risada quando entramos na sala. — Zane! — Farrah se joga por cima de nós. Ela percebe o meu vestido e cresce os olhos para cima dos meus seios, de uma jeito tão lascivo que preciso esconder de novo com os braços. — Uau, que gata! Posso tocar neles? — Farrah estica as mãos na minha direção. — Sai fora, Farrah, vá apalpar a garota nova! — Zane a empurra. — Não fique tão arisco! Ai venham logo! — Farrah segura no meu braço e no de Zane, nos pulsos, e puxa em direção ao canto em que sempre ficam. — Conheçam Byrn! — Byrn?! — Meu coração para. — Oi! — Byrn está bonita, de vestido preto tomara que caia e saia de tule, sentada ao lado de Rilde. Seus olhos abrem ao me ver. — Jay? — Ela fica em pé e me abraça. — Ai, meu Deus, você está um arraso! — O que você está fazendo aqui? — Pergunto atônita, meu corpo inteiro reage ao pânico, estremecendo. — Fiz uma inscrição, lembra? — Ela tem um sorriso empolgado no rosto, conheço minha amiga e ela deve achar uma honra tremenda servir. Droga! Por que justo a Casa Bawarrod? — Eu disse que tinha interesse e como abriu a vaga… — Seus olhos crescem na direção de Zane. — Uau, quem é esse gato com você? Lyek vai ficar muito enciumado! Por que ela tinha que dizer o nome de Lyek em voz alta?! Pelo visto, ter Byrn como uma doadora na casa que rivaliza com meu senhor será um enorme problema para mim. E para Lyek. — Quem é Lyek? — Rilde pergunta interessada, virando os olhos castanhos em nossa direção. Seus cabelos estão trançados como um moicano. — Ah, é o… — Ninguém! — Grito, cortando Byrn, ela me encara sem entender. — É uma brincadeira! — Seguro no braço de Byrn com força, ainda não tem uma tatuagem, como eu, está com um bracelete dourado, mas com o símbolo de Bawarrod: Ouro.

— Brincadeira? — Byrn continua sendo uma cabeça-de-vento. Suspiro. — Além do quê... — Zane passa o braço pela minha cintura. — O único enciumado sou eu com você andando por aí com esse vestido indecente, moça! — Ele sorri para mim e depois desvia para Byrn. — Zane, muito prazer. — Muito prazer. — Byrn se desmancha diante do magnetismo de Zane. Mordo a boca para não acabar rindo. Se Byrn soubesse que Zane é expansivo com todas as garotas da torre adjacente, mudaria de ideia. ● ● ● — As últimas notícias são de que a batalha na fronteira está acirrada. — Disseram que estamos em desvantagem, podemos perder o perímetro. — Riezdra tinha razão, devíamos ter levado em consideração sua estratégia de defesa. — O Imperador não concordou. — O que o Imperador sabe sobre a guerra? Ele está mais interessado em outros assuntos. — Distraído, eu dira. — Por isso dizem que ele prefere casar Lady Lucretia a ter filhos. — Filhos seria melhor que deixar o Império nas mãos de uma criança. — Ou de um louco. — Pior seria o cachorro. É o tipo de conversa nas bocas dos nobres da Torre Bawarrod e dos que vieram de fora durante a grande festa, por entre o som da potente voz soprano de Amabile Taseldgard, uma jovem rechonchuda de cabelos avermelhados e rebeldes. Não são as fofocas que me preocupam, entretanto! Considero mais perigoso o fato de que Lady Lucretia estava perambulando com Byrn e apresentando sua nova escrava. Como é pálida e tem cabelos bem escuros, vira e mexe alguém confunde Byrn com um vampiro e Lady Lucretia explode em uma risada, sorrindo orgulhosa do seu novo brinquedo, perguntando se queriam tentar o “ósculo” com ela. O que é “ósculo”? — Meu copo já está cheio! — Devon vocifera e segura no meu pulso, fazendo eu parar de encher a taça com mais vinho. Olho para a mesa redonda e pequena ao lado da poltrona em que ele está sentado, há uma poça vermelho-escuro se alastrando, o copo transborda. — Você é um peixe ou o quê? — Desculpe, meu senhor. — Largo a garrafa acenando para um garçom, que vem me socorrer. O garçom limpa o estrago que fiz e troca a taça do meu senhor por uma vazia,o decanter por outro mais cheio. Pego a garrafa para encher a taça, mas Devon arranca de mim, lançando os olhos dourados com ferocidade na minha direção: — Não precisa. — Ele enche o copo, até a metade, estendendo a garrafa para mim, tendo que chacoalhar duas vezes na minha frente para eu pegar, pois estava distraída, com os olhos em Byrn, sorrindo toda vez que Lady Lucretia envia um elogio para ela. — No que você está pensando que não é o meu copo? — O que é “ósculo”?

— Ah, isso. — Ele ri, divertindo-se com a minha falta de conhecimento, encostando as costas na poltrona. — Ouvi dizer que é melhor que sexo. — Com o cotovelo no braço da poltrona, ele faz um aceno, chamando. Dou dois passos e me curvo. Ele cochicha como quem conta um segredo, sua voz me causa arrepios. — Algo comum entre vampiros, mas Ósculo com humanos é proibido. Entretanto, sabemos que o próprio Imperador tem dificuldade em cumprir as regras que impõe. — Por que ele não veta a lei e poupa-se de constragimentos? — Para mim, parece o mais óbvio a se fazer. — Seria desastroso para a Sociedade. — Devon ri e eu me afasto, ponderando a respeito. — Preciso apenas do apoio de boa parte dos nobres e ele ficará em pânico, dessa forma, entrará facilmente em acordo comigo. — Por que você iria arriscar algo desastroso? — Sei que Devon é mais inteligente que isso. — Bawarrod tem algo que me pertence e não tornarei as coisas fáceis para ele até que me devolva. — Devon observa o Imperador com olhos implacáveis. Acabo olhando também e vejo que Bawarrod está do outro lado do salão com seus cabelos rebeldes arrumados para cima e conversando com seu escravo, Zane. Não parece ser uma conversa muito amigável, Zane parece impaciente. — Se significar que terei de derrubar a coroa do alto de sua cabeça, provavelmente eu o faça. Devon é mesmo um manipulador fétido e podre, mas não posso negar, é um bom jogador. Há quanto tempo será que ele e Bawarrod se enfrentam silenciosamente e através de outras pessoas? Soa como uma eternidade. Espera! — Por acaso está se referindo à Zane? — Deduzo. — Agora virou um peixe-investigador? — Ele revira os olhos dourados pegando a taça e dá um gole, fugindo do assunto. Acho que acertei em cheio. — Por que não vai nadar por outros lados e escutar conversas por aí, peixinho? Seja útil. — Como quiser, meu senhor. — Arfo, soltando o decanter na mesinha e sigo pelo salão com a certeza de que preciso de uma resposta. Vou para a mesa de doces, onde um grupo de nobres conversa. São da casa Lunysum e estão mais interessados em medir seus músculos uns com os outros. Nada interessante. Queria fazer algo que fosse valioso, assim Devon parariam de apontar os meus defeitos o tempo todo. Não consigo imaginar uma mulher ao lado desse homem, ele é tão chato e exigente! Aliás, eu nunca vi uma mulher ao lado de Devon, exceto Lady Lucretia. É como se ele fosse intocável. — Divertindo-se? — Levo um susto quando Zane para do meu lado. — O que está fazendo aqui? Seu namorado vai ficar enciumado. — Provoco, puxando um pão de mel de um arrojado item de decoração. Folhas e galhos ganham destaque com luminárias de metal e vasos dourados. — Não diga isso, não tem graça. — Ele ergue as sobrancelhas aborrecido, com a ideia. — Vim ser gentil com você e te convidar para a festa de boas vindas de Byrn. Vai ser na residência de Farrah, durante o nascer do Sol. — Vou se você me disser o que há entre você e Riezdra. — Coloco o pão de mel na boca, levantando as duas sobrancelhas como quem insinua alguma coisa. Estou convencida

que esses dois possuem laços fortes e espero descobrir o que é. Seria engraçado se fossem amantes, já pensou? — Você faz soar como se fosse um segredo. — Zane dá uma risadinha debochada. — Estou um pouco desinformada, me ajude nessa. — Peço fazendo carinha de cachorro carente. — Devon Riezdra matou meu pai. — Quê? — Quase grito, quase cuspo o doce na minha boca. Zane não se altera. — Você tem raiva? — Nunca disse que era um bom pai. — Zane dá de ombros e gira, encarando o salão. Giro também. O Imperador está conversando com os nobres da casa Rybelech, os pais de Román, mas envia olhares para cá. Não gosto dos olhos do Imperador, são olhos que controlam, ameaçam e dominam. — Foi muito antes do ataque alienígena. — Achei que tinha dito que seu pai morreu em um acidente na sala de incineração. — Esse foi outro que arranjei quando vim parar aqui. A guerra tornou tudo complicado. — Zane suspira. — E eu tive que me virar. — E sua dívida com ele se resume a isso? — Não exatamente. Antes da guerra começar, minha irmã e eu vivíamos com Devon e Celeste em Manhattan. — Celeste? — Há uma mulher, afinal! Até me surpreende! — Celeste Zegrath. Ex-exposa maligna exilada e criminosa procurada. Você não quer conhecê-la, vá por mim. — Zane revira os olhos, entojado, algo me diz que ele não gosta muito de Celeste também. — Cresci entre os filhos das nobres casas. Lady Lucretia mordia as palmas das minhas mãos sempre que eu ganhava dela no xadrez. Às vezes ela faz isso, dói demais. — Faz uma careta, com um bico. — Por que Riezdra não te transformou no escravo dele? — Pergunto curiosa. — Seria considerado incesto pelas Leis da Sociedade. — Ele brinca, mas daquele jeito que ele sempre brinca quando está falando sério. — Ou em vampiro? — Dou de ombros, pegando outro pão de mel. — Não é tão simples, Jay. — Zane olha para mim com seriedade. — Humanos com Relação-Sanguínea não podem ser transformados com outro tipo de sangue, ouvi falar de deformações teríveis e até morte. — Sinto muito, não tinha ideia que você era um refém em uma guerra de poder entre as Casas. — Engulo o pão de mel com amargura, o gosto fica até azedo. — Não é a pior parte nesta história. — Zane pisca um olho e sorri, de uma forma que me entristece. — Agora você vai na festa que Farrah oferecerá a Byrn? — Eu iria de qualquer forma, bobo. Gosto de passar tempo com você. — Eu sei. — Ele sorri, pega um pão de mel e se afasta da mesa, seguindo em direção ao Imperador, onde ele deve permanecer pelo resto da noite. Assim que Zane se aproxima, o Imperador troca duas palavras com ele com uma expressão que não aprova que ele fique conversando com as pessoas no salão, mas Zane contorna a situação oferecendo um pão de mel e um sorriso exclusivo para ele. O Imperador não resiste, aceita o pão de mel com um quase-sorriso de satisfação. Sinto meu coração pesado, apesar disso.

Posso deduzir que Bawarrod não tem intenções de transformar Zane em vampiro, isso é fato. Ele apenas o usa para cutucar Devon. Nem consigo imaginar as crueldades que Bawarrod faz com Zane só para atingir seu inimigo e pela forma com que Devon leva a questão para o lado pessoal, devem ser realmente terríveis. Por outro lado, também sei que Bawarrod se apaixonou e que essa história está longe de ter um fim. O que machuca meu coração é saber que a pessoa que tem mais a perder nessa disputa é Zane. Uma das coisas que aprendi? Devon Riezdra tem um coração. ● ● ● Meus pés estão me matando, mas continuo escutando a conversa que rola por entre os nobres até que dê a hora em que tenho que ir até a saleta, atrás de Devon. Ele já se retirou da festa, no instante em que Lady Lucretia resolveu que queria dançar com ele. Não compreendo porque ele foge dela quando deveria usá-la para se tornar o sucessor. Estou quase na saleta quando alguém puxa meu braço com força, me fazendo parar. Encaro Drarynina, seu vestido todo branco e seus olhos vermelhos afiados. — Ele ainda não bebeu, o que você está fazendo? Brincando? — Suas unhas machucam meu braço. Lady Drarynina tem uma obsessão pelo apetite de Devon. Ainda não entendi seu papel. A princípio achei que ela queria o trono e se posicionava contra Lady Lucretia, mas se fosse o caso, ela deixaria Devon sucumbir à falta de sangue. Só posso imaginar que é mais uma na aliança com propósito de desmoralizar o Imperador. — Ele irá. — Faço cara de dor, quase me contorcendo. Ela poderia esmagar meus ossos apenas fechando a mão. — Garanta que ele faça isso antes do Conselho, não quero dar motivos para a falácia. — Ela me solta, sorri para um nobre que passa atrás de nós. — E faça com que ele beba bastante. Lady Drarynina se afasta logo depois. Fico parada massageando o braço. Encho as bochechas de ar e alguém me cutuca o ombro. Viro. É Byrn, parecendo uma fadinha negra com esse vestido. Ela sorri na minha direção empolgada, provavelmente Lady Lucretia disse para ela desfilar pelo salão, essas coisas. — Jay! Ai, isso é tão empolgante! — Byrn dá uns pulinhos no mesmo lugar. — O que é tão empolgante? — Cruzo os braços impaciente. — Você acha que isso é algum tipo de brincadeira ou que é legal estar entre eles? — Acho. — Byrn perde o sorriso, mas ergue uma sobrancelha, colocando as mãos na cintura. — É uma grande honra servir ao Império. — Sei que você pensa assim. — Respondo seca, sem me mexer. — Você está brava comigo por quê? Toda vez que falo contigo é assim que me trata! Eu não penso como você e não sou obrigada a pensar, desculpa! Se você não consegue enxergar a grande honra que possui então… — Aqui é um ninho de cobras, Byrn! Não tem nada de honrado. Estou tentando sobreviver e proteger as pessoas que eu amo! Você deveria pensar sobre isso também. — Eu a empurro para o lado, para chegar até a porta da saleta. — A propósito, seja bem vinda.

Giro a maçaneta e entro, batendo a porta com um estrondo. — Por que levou tanto tempo? — Devon está no sofá, sentado, parece impaciente. Levo um susto com sua presença. Por um instante me esqueci que ele estaria na sala. — Desculpe, senhor. Ele se levanta e vem na minha direção. Ainda tenho que lidar com ele! É muito para a minha cabeça. Suas mãos me prendem como um ratinho, encosto na porta. — O que escutou, escrava? — Todos acham que o Imperador está distraído com a guerra, temem um ataque passando os limites da fronteira. — Hm. — Devon se delicia com a notícia e com as minhas coxas, sua boca em meu ouvido e sua respiração criando arrepios magnéticos. — Interessante, peixinho. — Ele me solta. — Está dispensada agora, eu tenho uma reunião de negócios. — Não. — Seguro a maçaneta com as duas mãos nas costas. Nem pensar que ele vai sair dessa sala agora! Em resposta, Devon estreita os olhos, impaciente. — Beba antes. — Por que você está sempre me forçando a tomar seu sangue? — Devon ergue uma sobrancelha e segura na maçaneta, ele tem que chegar perto para fazer isso e estico meu pescoço como uma garota oferecida. A fragâcia amadeirada que exala de Devon pinica meu nariz. — Qualquer um estaria agradecendo a falta de dentadas. — Por que você sempre recusa? Qualquer um estaria enfiando os dentes na minha carne com prazer. — Provoco, com um sorriso e um erguer de sobrancelhas único. — Não é do seu interesse! — Ele responde seco, quase aborrecido com minha curiosidade, mas não se intimida nem por um segundo. Agora que conheço suas motivações, preciso saber suas limitações. — É todo o meu interesse! — Sussurro com voz sensual. — Qual o truque dessa vez? Beijar-me com sangue? — Pergunta com a voz baixa, uma mão sobre as minhas na maçaneta, quente e firme, a outra, suave e lasciva, desliza pelo meu vestido, onde a renda fica pontuda, esticada pelo mamilo direito, um toque que gera choques em todo o meu corpo. — Tedioso. — Não repito truques, senhor. — Chego bem perto, minha boca quase encostando na dele, atraindo-o como um ímã. Vejo um sorriso pequeno, não é um deboche, é quase uma satisfação por me ver desafiálo e isso é algo novo. Não vai se aborrecer? Não vai gritar? Ele me confunde, mas ao mesmo tempo, me encoraja a ir adiante. Não preciso dizer mais nada. Devon me beija com vontade. O hálito quente impregnado do vinho que ele bebeu. Abraço-o com força, puxando Devon em minha direção até que sinto seus dentes surgirem afiados contra minha língua. O gosto de sangue explode com minha saliva e ele cede, perdendo o controle, uma das mãos firmes em meu rosto, enquanto ele esmaga meu corpo contra a porta. Ele suga forte, arrancando meu sangue, enquanto me beija como um amante insaciável. Antes mesmo que ele possa perceber minhas intenções, como a víbora que enganou Eva eu o traio, cortando os lábios sedutores de Devon com meus dentes. Meus joelhos falseiam. Há um prazer imenso que habita o gosto de seu sangue.

CAPÍTULO 17

Laços de sangue — Cadela. — A voz de Devon interrompe meu estado de êxtase. Estou em seus braços, quase desmaiada. — Não sou um homem que mantém relações sanguíneas, mas aprecio uma boa jogada. Visto que a conquistou, permitirei que a tenha. Achei até que estava sonhando, mas me lembro do que fiz. Estou desperta, posso sentir quando ele se levanta do chão comigo em seus braços, ver a saleta, ouvir seus passos, mas não consigo me mexer. Meu corpo inteiro está travado, nenhum dos meus músculos se movem. É um pesadelo! Estou vulnerável. Se ele quiser me matar como vingança por tê-lo enganado, conseguirá. Devon me solta em cima do sofá com estranha gentileza, meu rosto fica virado para o lado e encaro o estofado, todos os detalhes da trama vermelha, os fios entrelaçados, o foco dos meus olhos parece uma câmera com zoom. Posso ouvir ele se mexer pelo quarto, abrindo gavetas e despejando a água da jarra, até mesmo de seus dedos atritando contra seus cabelos e dos fios lisos caindo um em cima do outro. A precisão é absurda. Fico confusa e tonta. Os passos ficam mais altos enquanto Devon se aproxima de mim, sua respiração é calma e paciente, seu coração palpita com força, mas devagar. Escuto o pano de suas roupas dobrando e ele segura no meu rosto, virando para frente, olhos na direção do teto. Eu o encaro agora, com o corpo curvado por cima do sofá e um dos braços segurando o encosto. Os olhos amarelos, da cor de uma pedra de âmbar tem mais detalhes do que eu tinha percebido: ao redor da íris há uma luz vermelha crepitando como o fogo. — Confortável? — Ele pergunta baixo, não está mais sangrando e a ferida que eu desferi, cicatrizou. Há algo na sua voz que me incomoda, um pouco de deleite em me ver indefesa. — Aproveite, a paz dura pouco. Ele sobe no sofá, sua perna entre minhas pernas e com as duas mãos, segura o meu vestido e rasga por inteiro, de cima a baixo. O som da renda partindo quase explode minha audição e sinto dor no cérebro. Devon me deixa só de calcinha e se livra do vestido, jogando-o no chão. Ele me olha com um pouco de desdém e se curva, sussurrando em meu ouvido. — Já que pegou algo de mim sem autorização, creio que não se importará se eu fizer o mesmo com você. — Entro em pânico. Ele não vai fazer o que eu estou pensando, vai? — Não se preocupe, você é uma gracinha, mas eu não aprecio a desonra. — Ele mantém um meio sorriso, como quem gostou de me assustar. — Congratulações, Recém-Admitida[2]. Quer dizer, se você sobreviver até o fim da noite, é claro. Poucos sobrevivem. Devon se levanta do sofá e caminha até a porta. Não posso mais vê-lo só escutá-lo. — Conversaremos mais adiante sobre uma punição apropriada por essa travessura, Jaylee. — Ele abre a porta e fecha rapidamente.

Faz algum tempo que ele não me chama pelo nome e se pudesse mexer os músculos do meu rosto, eu estaria sorrindo. Tornei-me valiosa, enfim! ● ● ● É um processo realmente excruciante. A dor é pungente em minhas veias e meu corpo se movo involuntariamente se contorcendo. Alguns momentos parece que quebrei um osso, tamanha tortura. Tenho vontade de gritar, mas minha garganta não produz som. Os olhos enchem de lágrimas, sinto pontadas agudas em todo o meu corpo. Em um momento toda a dor cessa e eu observo minha respiração rápida, como meu corpo sobe e desce deitado no sofá. Penso que está no fim. Estou quase pegando no sono quando meu corpo esquenta tanto que fico suando, parece até que minha pele vai derreter! Após isso, sinto frio, como se meu corpo estivesse prestes a congelar. Parece uma eternidade, mas sei que fazem algumas horas. A porta abre e fecha. As passadas são tranquilas e leves, minha consciência vacila, quase durmo, de tão exausta. Sinto meu corpo ser erguido e sou atirada contra ombros fortes. O cheiro do perfume amadeirado não me deixa negar quem é. Encaro o chão, as botas militares e a barra da calça. Ele não diz nada, simplesmente me carrega como um saco de batatas inutil. Quando deixa o quarto comigo, o salão está escuro, vazio e todas as portas estão trancadas. Fecho os olhos. ● ● ● A fome que me acorda, o estômago doendo e o apetite corroendo minhas entranhas. A cabeça parece mais pesada que o normal e não estou na minha cama. Aliás, não estou no meu quarto! As paredes possuem um papel estranho e retro, vermelho e dourado com paspatur bege até a metade. As luzes estão acesas, mas são baixas. A cama é enorme, com muitos travesseiros e ultramacia, com cabeceira de madeira maciça escura e um dossel de cortinas pesadas e vermelhas, amarradas junto a colunas. A colcha é de cetim vermelho, criando uma sensação gelada no meu corpo. Eu me sento, quase nua, de calcinha, cinta-liga e meia vermelha, como meus sapatos. Logo percebo que estou em um quarto com cara de castelo, algo medieval e moderno ao mesmo tempo. Há uma escrivaninha vitoriana de madeira, uma cadeira de estofado vermelho, um armário quadrado pesado e com um espelho na porta, oval. Ao lado, uma poltrona e um divã. Vejo a janela entreaberta e alguns raios de sol incidindo no pé de madeira do divã e dou um salto, ao perceber Devon dormindo ali. Se o sol incidir diretamente sobre ele, por acaso ele queimaria e se reduziria a pó? Se for, eu quero assistir! Até me sento direito, procurando não fazer barulho, os olhos vidrados no corpo em cima do divã. Dormindo tranquilamente, entregue a um sono contra o qual ele não pode lutar, não se parece em nada com a ideia de monstro que tenho dele. Devon não é apenas um homem poderoso, sensual e bonito, mas ele representa tudo

aquilo o que eu mais odeio nessa Sociedade dos Vampiros: cruel, feroz, arrogante, ardiloso, maléfico. Meu coração palpita forte enquanto o feixe de luz muda lentamente de direção com o nascer do sol. Eu estaria livre, certo? Começo a respirar apressado, como se o ar me faltasse. Os primeiros raios atingem sua mão direita, pendurada, para fora do divã. Vejo uma névoa branca. Algo muda em mim. Uma urgência nasce. Simplesmente perco a coragem de deixar acontecer. Esse homem é também o único escudo de Zane contra o Imperador. E não apenas de Zane, mas muitas coisas na Torre Bawarrod são possíveis unicamente pela presença de um general implacável e assertivo em suas estratégias. Odeio tudo o que ele representa, mas será que eu o odeio como penso? Não posso deixar acontecer! Piso para fora da cama e ando depressa até a janela, fechando a cortina, porém, a luz ainda escapa pelas frestas. Quando o sol se fortalecer, não será suficiente. Chego perto de Devon no divã e encaro as costas de sua mão, onde deveria haver uma ferida, mas não há nada. Respiro, soltando todo o ar dentro de mim. Eu só posso estar maluca! Balanço a cabeça e solto a cortina do dossel escondendo a cama da luz do dia. Passo as amarras nas colunas, fechando bem as frestas. Fica uma escuridão completa. Volto para o divã e puxo o braço de Devon, tentando tirá-lo do lugar, mas ele não se move. Respiro fundo e puxo com mais força, dessa vez, o levanto um pouco do divã. Devon desperta e puxa seu braço. — O que é? Qual o seu problema, sabe que horas são? — Resmunga e gira, ajeitando-se no divã, abraçando uma almofada dourada. Reparo em seu terno preto, amassado de dormir, a gravata frouxa. — Vista alguma coisa, vá para casa e me deixe dormir. — No divã? — Pergunto com ares de desdém. — Você sabe que já está de manhã, não sabe? — Dá para parar de falar? — Ele se senta e me olha inconformado, abrindo bem os olhos. Puxa a gravata do pescoço largando-a do chão. — Você é muito tagarela. — Quanta ingratidão! — Cruzo os braços e jogo a cabeça um pouco para o lado aborrecida. — Da próxima vez, vou te deixar queimar até virar cinzas! — Vamos falar de ingratidão. — Devon levanta do divã, agora se parecendo com o predador que ele realmente é. Os olhos brilham luminosos mesmo que já seja dia. — Você é a única ingrata por aqui! Não reajo, apesar de querer fugir, apenas fico incapaz. Ele segura firme no meu rosto e me atira com violência para o lado, caio em seco contra o chão e pelo olhar que ele tem no rosto, enfurecido,tenho certeza que ele vai me matar. — Eu devia matar uma cadela como você! — Devon vem na minha direção, rosnando, os caninos pontudos para fora. — Não! — Grito. Consigo escapulir com agilidade, passando para o lado, alcanço a escrivaninha, mas Devon me segura com força pelos cabelos. Lutando contra o puxão, tateio a mesa e alcanço um

abridor de cartas, parece um punhal, mas é de ferro. — Morra, maldito! — Finco com força em sua coxa direita. ele me solta, em dor. — Desgraçada! — Ele urra em dor, mas me larga. Corro para o outro lado, em direção à janela. Tento abrir, mas está lacrada. Giro, procurando a porta e acabo vendo-o arrancar o abridor de carta da perna, sujo de sangue. — Terá de fazer melhor do que isso, cretina. — Devon atira a navalha para o lado, o tintilar do metal no chão soa como um alerta de perigo. Há um monstro entre eu e a saída, a porta, do outro lado. Como vou fugir? Agarro a cortina da janela e puxo com força. A luz atinge Devon, uma sombra corre pelo chão, com seus contornos. O sol é mais forte do que pensei, parece que é meio dia! — Insolente! — Ele vira um tapa forte no meu rosto e vou ao chão com força. Encaro atônita a grande verdade: sim, vampiros são atingidos pela luz solar e parece ser terrível! Uma enorme cratera negra surge no bonito rosto de Devon, corroendo a carne, deixando o músculo de fora, surge fumaça branca, o cheiro é de carne humana queimada como nos funerais, mas ele permanece em pé diante de mim, como se a luz do sol não fosse capaz de produzir dor. Devon Riezdra se regenera com eficiência! Um raio elétrico passa pelo seu rosto grudando as feridas, como se elas fossem um holograma. Ele não tem fraquezas? Estou diante do vampiro mais poderoso de Bawarrod, sem dúvidas! — Coloque a cortina de volta. — Ele ordena erguendo e abaixando as sobrancelhas em uma ordem dura. — Agora! Respiro forte, quase sem ar. Percebo que a batalha foi vencida, mas se eu me entregar agora, se eu recuar, terei perdido a guerra. — Coloque você! — Atiro a cortina em cima dele para distraí-lo e corro, pego o abridor de cartas e continuo correndo, passando por cima da cama. Acredito que vou chegar na porta, está tão perto! Tudo o que preciso fazer é correr o mais rápido que eu consigo. Dou um salto por cima da cama, mirando a maçaneta, mas recebo um puxão no tornozelo, tão forte, que grito, sentindo dor. Devon me puxa, girando meu corpo. Fico deitada no colchão e ele vem por cima de mim, como uma pantera. Defendo-me, usando a faca. Quando nos encaramos, estou ofegante, meu coração palpitando a milhão e seguro a faca contra sua garganta, pronta para cortar. Há um quase sorriso em seus lábios, exibindo as pontinhas dos dentes de felino. — Por que hesitar? — Devon me desafia. Por entre as cortinas pesadas e corta-luz, seus olhos enigmáticos acendem como faróis. — Não quer me matar? — Não, meu senhor. — Largo a faca, sem fôlego e o encaro, repousando a mão em seu ombro. Eu o odiava, mas agora não consigo decidir quais os meus reais sentimentos por ele. — Sei que minha vida depende da sua. — Você está certa. — Ele venta, rindo. — Visto que esclarecemos nossa hierarquia, compareça ao setor de doação para trocar seu bracelete. — Está me reconhecendo como sua Escrava de Sangue? — Mais do que isso. Como soldado. — E sai de cima de mim, rolando na cama, deitando a cabeça sobre o travesseiro. — Vista algo e me deixe dormir, para sua própria sanidade. Você não quer me ver de mau-humor.

— Tem razão, senhor. — Saio da cama e seguro nas cortinas para fechar. — Jaylee? — Pois não, senhor? — Olho para Devon, mas ele está de costas para mim, abraçado com outro travesseiro. — Considere o aviso: se alguma vez você pensar em me trair, não haverá perdão. Persona-Non-Grata[3]. — Compreendo meu senhor. — Fecho a cortina e caminho até o armário, abrindo uma das portas, ela range, mas não me interrompo. Aos infernos, Devon, se ele acha que eu terei medo de perturbá-lo! O cheiro amadeirado de suas roupas quase tira meu equilíbrio, acho que agora eu sinto cheiros com mais potência, mas não igual a noite passada, menos. Encaro o interioro do armário, é de madeira maciça e a pequena claridade que entra pela cortina mal posta da janela me ajuda a enxergar. Encontro fardas. Todas iguais: overcoats pretos com insignias costuradas e diversas condecorações que ao longo de sua quase-imortal vida, Devon recebeu. Abro a outra porta, escancarando o armário, encontrando agora ternos e camisas. Um homem que não se veste, nem para dormir, com roupas que o desçam do patamar de elegância! Passo os dedos pelas inúmeras camisas e escolho uma branca, lisa. Visto e fecho todos os botões. Depois, só pelo esporte, pego uma das calças pretas e visto. Fica larga, tanto a camisa quando a calça e uso uma gravata listrada para amarrar na minha cintura pequena. Devo vestir um paletó ou uma das fardas? Farda é claro! Passo meus dedos por um dos overcoats e percebo que um deles é diferente, parece mais velho e com certeza tem menos insignias. Há um broche de coruja dourada na lapela. Rapinas. Os guardas do exército que tiraram minha família dos escombros usavam uma farda dessas. Eu me lembro bem dessa coruja dourada, mas não de seus rostos. Fazem três anos que vivo em Bawarrod, quase quatro. Por acaso é o mesmo tempo que faz para Devon ter deixado de ser um dos oficiais de resgate e se transformado no General? Intrigante. Por que razão ele guardou essa farda? A curiosidade fala bem alto e tiro a farda do armário, observando-a. Fuxico os bolsos, mas estão vazios, a única coisa que eu encontro é um buraco nas costas e fico com a impressão de que são memórias de uma batalha. Guardo a farda no mesmo lugar e fecho as portas. Deixo o quarto fechando a porta e noto que o apartamento é gigantesco, luxuoso. Atravesso um corredor com mais outras portas (nenhuma abre) e chego na sala, dupla, as janelas são grandes e com cortinas, fechando a claridade. A decoração segue o mesmo estilo pomposo-medieval e ele é um homem ligado à memórias, o que é estranho de se pensar. Há muitos quadros e porta-retratos na sala, em cima das mesas e pendurados nas paredes, porém, a maioria permanece coberto por panos brancos, inclusive os espelhos. Sabe aquele local que parece que as pessoas morreram e fecharam a casa, nunca mais habitaram? É essa a sensação e se não fosse o fato de que há na mesa de centro, de madeira de mogno, uma garrafa de uísque quase vazia e um copo espatifado no chão, eu diria que Devon não passa tempo aqui. Vou passando os dedos pelos porta-retratos e as vezes viro um. São pessoas que não

conheço, nenhuma fotografia moderna, todas são antigas. Acho que essa é a família de Devon, porém, nenhuma da família dele. Quando ele e sua ex-esposa criavam Zane e sua irmã. Sou atraída pela sensação de que ele quebrou um copo contra um dos quadros da parede. Não parece ter sido hoje, há muita poeira em cima dos cacos e uma teia de aranha ornamenta ao redor da moldura dourada. Aproximo-me devagar e o quadro está no alto, na parede, tenho que subir no sofá vitoriano de estofado branco. Limpo a moldura, retirando cuidadosamente o pano. A fotografia se revela e meu coração acelera. É uma fotografia do dia de seu casamento: na porta de uma igreja, Devon está em pé no alto da escadaria, sério, com um fraque. Ao seu lado, de vestido branco com uma enorme cauda e colares de pérola e brilhante, uma mulher de olhos frios e pele negra se projeta ao seu lado. Os cabelos dela são negros, cacheados e há um pequeno erguer em seu queixo que a coloca em posição arrogante. Ela tem postura de uma rainha. Acho que essa é Celeste. Mordo a boca e cubro o quadro novamente com o pano branco. Desço do sofá e não mexo em mais nada, mas passo pela cozinha atrás de comida, meu estômago arde e grita com tanta fome. Vampiros são como nós humanos, eles se alimentam de comida e sofrem todas as alterações biológicas, como o envelhecimento, mas Devon não tem nada na geladeira que não sejam garrafas de água. Nos armários, vermute e uísque. Que coisa estranha! Deduzo que quando precisa de comida, ele vai até alguém. ● ● ● Deixo o apartamento, no alto da torre da Casa Riezdra. Todos os andares em perfeito silêncio. Todas as portas fechadas. Não há ninguém. Devon não tem discípulos, não há membros como nas outras casas e não há familiares. É solitário e me deixa triste. Volto para minha casa ao perceber que é mais de meio dia. Na passarela próxima a torre adjacente, vejo Zane e Elisabeth conversando, exatamente como no dia em que ele me ajudou a fugir dos guardas. Ele e Elisabeth trocam algumas palavras e caminham na direção da passarela. Nos encontramos na ponta. Elisabeth abaixa sua cabeça e passa com seu vestido de camponesa por mim, sem dirigir-me uma palavra ou cumprimento. — Estava preocupado que você desapareceu, mas pelo visto sua noite foi mais interessante que a festa de boas-vindas de Byrn! — Zane debocha, com um sorrisinho idiota no rosto e as mãos na cintura. Ele está de jeans e camiseta, com uma jaqueta marrom para se proteger do frio. Coloco a mão na testa. Oh droga! A festa de boas-vindas de Byrn! Totalmente me esqueci! — Você esqueceu. — Zane deduz. — Ai, ela ficou muito brava? — Aproximo-me dele. — Acho que chateada. — Zane passa o braço por meus ombros e gira, começamos a andar juntos para dentro da torre, alguns dos escravos me observam curiosos. — O que você estava fazendo? — Está com ciúmes? — Provoco olhando de canto e erguendo as sobrancelhas. — Sei partilhar. — Aposto que sim. — E qualquer um que conhece Zane sabe disso. Olho para ele com

seriedade, seus olhos azuis me confortam, seu sorriso me acalma, aperto o braço ao redor de sua cintura, para acentuar a mensagem que quero passar. — Precisamos conversar. Fiz uma coisa terrível.

CAPÍTULO 18

A marca As gotas de chuva batem na janela. Sento-me no balcão esperando, enquanto Zane cozinha algo para mim. Encaro suas costas, as linhas de costura da jaqueta que lhe serve bem e com elegância. Coloco as mãos no rosto, cobrindo, minha cabeça está leve e meus pensamentos não se formam. Nem mesmo consigo pensar em todas as coisas que aconteceram. Minha barriga ronca com o aroma do óleo e da cebola. Tiro as mãos do rosto e coloco no balcão. Bato os dedos e viro a cabeça para o lado, encarando a garrafa de água potável. Sede. Bebo água. Um, dois, três, quatro copos. Vejo a cesta com frutas, pego uma maçã, dando mordidas enormes. Estou sentindo fome e sede como se eu não me alimentasse há semanas! Pego mais uma fruta, depois outra. Como as ameixas também, mesmo um pouco azedas por não estarem maduras. Zane desliga o fogo, ele gira e vê tudo o que comi, mas não comenta. Pega uma vasilha e enche de arroz, batata e ovos. — Aqui. — Com um pequeno sorriso, ele coloca na minha frente. O cheiro da batata assada atiça minha fome. — Obrigada. — Pego um garfo e engulo a comida totalmente faminta, raspando até a última migalha, acabando com a vasilha. — Tem mais? Zane não diz nada, apenas me serve de mais e observa, apoiado no balcão. Termino de comer rapidamente e estendo a vasilha, ele me serve com mais arroz e batatas. Acabo raspando até a panela, de tanta fome. Ele percebe que ainda não me saciei, faz alguns ovos mexidos e me serve mais arroz. Por fim, como legumes e todo o pão. — Posso comer mais? — Ergo os olhos para ele. — Devia ter feito mais arroz? — Ainda tem para fazer? — Pergunto interessada. — Talvez eu tenha biscoitos de farinha na dispensa. — Ele dá de ombros sem saber exatamente o que me dizer. — Mas estou com receio de que você vá explodir. — Biscoitos servem. — Fico em pé e atravesso o balcão, abrindo o armário em que Zane guarda comida. Está vazio. — Comi todo o seu estoque? — Fico surpresa e tampo a boca com a mão. Zane tinha estoque para quinze dias de comida, não acredito que comi tanto assim! — Não é um problema. — O que há de errado comigo?! — Coloco as duas mãos na barriga aterrorizada. Meu estômago vai explodir! Sinto enjoo e passo correndo pela sala, na direção do banheiro. — Vou vomitar! — Jay! — Zane vem atrás de mim. Ajoelho no vaso sanitário e coloco tudo o que eu comi para fora. Alguns pedaços nem

mastiguei direito e posso vê-los boiando. Zane segura meus cabelos para mim, sinto calor e meu corpo inteiro parece feito de fogo. Quando termino, fico em pé, puxando a descarga. Zane se afasta e eu me limpo na pia. — Está se sentindo melhor? — Ele pergunta atras de mim, vejo seu olhar em pânico pelo reflexo do pequeno espelho na parede. — Eu sinto muito, Zane, vou recompensar, coma em casa esses dias. — Meus olhos ardem com mais lágrimas. Viro para ele com água escorrendo pelo meu queixo. — Shhh. — Zane segura em meu rosto com as duas mãos e me olha com firmeza. Vejo em seus olhos meu reflexo, a garota desesperada e de rosto choroso que me tornei. — Você está esquisita e começando a me assustar. — Bebi o sangue de Riezdra. — Abraço Zane segurando forte em seus ombros, começo a chorar. — Ah, isso explica porque está comendo como ele. — Com um suspiro que transita entre o alívio e a chateação, Zane me abraça, segurando minha cabeça. O toque me acalenta e me coloca mais calma. — Você vai ficar bem. — Ele beija minha testa. — Faminta, mas bem. Zane segura me leva de volta para a sala. Sento no sofá e puxo o cobertor para cobrir minhas pernas sentindo frio, como se estivesse doente e com febre. Parece que meu corpo está lutando contra o sangue que recebi, é uma sensação horrível de doença, como se sangue de vampiro fosse um vírus da gripe. Zane passa um chá de folhas de hortelã e me entrega em uma caneca vermelha, sentando do meu lado. Envolvo a caneca com as mãos e dou um gole, quase queimo a língua. — O primeiro dia após a Relação-Sanguínea, minha cabeça parecia que ia explodir. — Zane olha para mim e pisca. — Parece terrível. — Eu me aninho em seus braços, engolindo sua fragâcia de sabonete, algo fresco e doce, como lavanda. — Você vai sentir alguns efeitos colaterais, mas depois ameniza. É como se fosse uma droga: se você não toma, entra em uma espécie de crise de asbtinência, se você bebe, precisa de cada vez mais. Chega um ponto que a transfusão é completa, você tem que beber todo o sangue do seu corpo. É quando a transformação começa. — Transformação? — A hipótese me perturba. Desencosto a cabeça e olho para Zane, esperando a resposta. — Você se transforma em vampiro. A princípio você escuta melhor, enxerga melhor e até se cura melhor. Mas conforme vai bebendo o sangue deles, coisas passam a mudar em você. — O que muda? — Seu sangue esfria mais depressa, você perde um pouco do sono e... — E? — Sento direito, de frente para Zane, secando os olhos. — E o quê, Zane?! — Você fica capaz de fazer as coisas que eles fazem. Não todas, mas algumas. — Como magia? O que você faz? — Meu coração dá um salto, palpitando mais depressa. — Posso acabar com pesadelos. — Ele dá de ombros. Não é lá grande coisa, que utilidade isso tem? — E de vez em quando abrir gavetas sem precisar usar as mãos. — Ensine-me! — Peço exasperada. Agora sim, algo útil! Eu estava certa! Podemos usar

o sangue deles em nosso favor e nos libertar. Na minha cabeça, toda a estratégia toma forma. — Não é assim que funciona, cada uma das Nove Casas tem uma especialidade e o Príncipe de cada casa é o unico que pode te conceder poderes. — Ah, sim. — Suspiro. Então eu não tenho nada! Que droga! Preciso reverter isso o quanto antes. — E uma vez que esse poder é concedido, você perde depois? — Não. É um presente de sangue. Seu por direito. — Zane explica. — Mesmo que você nunca chegue a se transformar em vampiro, ou seu mestre morra durante o processo e ele não se complete, é seu. — Interessante. — Pondero, dando um gole no chá. — Você é esquisita. — Zane repara rindo e debochando. — Sabe o que eu acho esquisito? Elisabeth, sua “quase irmã”. — Faço aspas com as mãos, segurando a caneca. — Acho que ela está interessada em ser mais do que irmã! — Não, não comigo. — Zane pisca e com o indicador, dá leves tapinhas no meu nariz. — Com quem, então? — Afasto a mão dele, como quem afasta mosquitos. — Aquele seu amigo Lyek. — Zane ergue as duas sobrancelhas enfatizando o quanto ele mesmo não ficou surpreso com a informação. — Elisabeth queria saber se eu me importava se eles saíssem juntos ou algo do tipo, mas já que ele é seu amigo, achei melhor não me importar. — Zane dá de ombros. — Afinal, ele é legal, certo? — Sim ele é legal, mas não acho que ele vá chamar Elisabeth para sair. — Coloco a caneca vazia em cima da mesa feita de uma porta do centro e minha barriga ronca alto inesperadamente. — Estou com fome. — Coloco a mão no estômago. — Até onde sei, ele chamou. — Zane suspira me dando um tiro no coração sem perceber e fica em pé, batendo as mãos pela jaqueta. — Vou tentar caçar alguma coisa para comermos, pode dormir no sofá, mas não mastigue nada até eu voltar, especialmente esse cobertor! — Está bem, obrigada. Devo ter alguns cupons em casa para repor. — Mordo a boca. — Não se preocupe, sei o que fazer. — Zane pisca um olho sorrindo, daquele jeito que sempre me preocupa e sai pela porta. Eu me deito, afundando a cara na almofada do sofá e dou um berro contido, batendo as pernas e os braços em revolta. Como assim Lyek chamou Elisabeth para sair?! Isso só pode ser brincadeira! ● ● ● — Duzentos e cinquenta e oito. — Lyek sorri, com uma bolota de arroz esticando a bochecha direita. — Tudo isso? — Arregalo os olhos no susto. Estou surpresa! — Estive ocupado nos últimos dias. — Ele se gaba, enfiando o garfo de forma grosseira na marmita. — Aposto que sim. — Suspiro, cruzando os braços, pensando no quanto ele não deve ter se ocupado com Elisabeth. Se é que você me entende! Consigo escutar uma goteira na garagem, a pouca luz do sol que atinge meus olhos me dá dor de cabeça e parece que estou mais sensível a cheiros: a fragância de gasolina e graxa faz

com que eu me sinta uma grávida. Lyek ergue as duas sobrancelhas por cima dos olhos castanhos e dóceis, sem me compreender. Ele pigarreia e dá uma garfada. — Mas pelo que fiquei sabendo, você também. — Ele até desvia os olhos de mim. — Acho que tenho que te dar os parabéns por ter conseguido a marca da Casa Riezdra. — Obrigada. — Descruzo os braços e coloco as mãos em baixo da perna. Minha palma fica gelada com a frieza da lataria do carro. — Quer que eu vá com você? — Ele se oferece, solícito. — Não precisa. — Viro o rosto para o outro lado e encho as bochechas de ar. — Já marquei de ir com Zane. — Ah, claro. Zane. — Lyek enfia mais comida na boca, duas garfadas de uma vez. — Você e ele estão bem unidos ultimamente. — Zane é uma pessoa agradável de conversar. — Explico. Posso ouvir Lyek dar várias garfadas. — Ele é um escravo como eu e entende tudo sobre a Sociedade dos Vampiros. — Penso que sim. — Lyek comenta de boca cheia. — Quando não está com a boca grudada com a sua, eu suponho. — O quê? — Olho para ele. — Algumas notícias viajam depressa. Byrn contou a Ederlon. — Lyek espeta uma batata com fúria. — Você não vai ter ciúmes do meu amigo, vai? — Cruzo os braços e estreito os olhos. — Amizade colorida, eu diria. — Que injusto! Zane é expansivo, ele pode ter me beijado algumas vezes, mas ele é assim com todo mundo. — Não, ele não é. — Lyek curva as sobrancelhas, mostrando que está aborrecido. — Ele nunca me beijou! — Eu também nunca chamei Elisabeth para sair. — Desço do carro furiosa e saio andando, batendo os pés. — Triplique o número. — Jay! Espera, onde você vai? — Lyek resfolega, mas não vem atrás de mim. Acho melhor encerrarmos o assunto assim. Se ele for me dar uma explicação, vai doer mais, sabe? Enxugo as lágrimas e atravesso o pátio, indo para casa. Mamãe me espera com um sorriso orgulhosa de mim e promete que iremos comemorar. Até minha tia e meu tio acham que é hora para comemorarmos alguma coisa… menos eu. ● ● ● — Que tal? — Pergunto de costas para Zane. Acabei de sair da grande sala de metal onde um controle automatizado me tatuou. Estou com os cabelos presos para cima em um coque, sem camisa, sem sutiã, com uma toalha de rosto cobrindo os seios, exibindo a minha recém-adquirida tatuagem da Casa Riezdra. O caduceu foi desenhado de uma maneira que as asas das serpentes ficam sobre minhas escápulas e suas caudas entrelaçadas terminam na curva lombar. Por algum motivo, sinto como se eu fosse uma vaca de rebanho marcada, um selo de qualidade qualquer. No teto uma luz intermitente pisca. Há apenas um sofá na sala de espera, onde Zane ficou sentado me esperando, encarando paredes mofadas que não possuem decoração. O cheiro

é de água suja. — Parece que está doendo. — Com franqueza, Zane comenta. — Está. — Viro para ele fazendo carinha triste. Zane me responde torcendo a boca para o lado, sem poder me ajudar. Seus olhos estão serenos e os braços cruzados. — Por que precisava ser tão grande? — Cicatrizará depressa. — Ele suspira, batendo as mãos no joelho e fica em pé, diante de mim. — Quando fiz a minha, quase sufoquei. Foco os olhos em seu pescoço, onde a tatuagem do ouro alquímico de Bawarrod ergue as pontas e envolvem seu pescoço como garras que querem sufocá-lo. Imagino que é a mão do Imperador. Nossas tatuagens não são como as que existiam no mundo antes do ataque alienígena, feita de tinta preta com agulhadas, mas nem por isso o processo foi menos doloroso. Um vampiro do Império que faz, marca sua pele com um holograma azul de raios lasers que queima e arde, corroendo as células. De primeira, fica uma marca vermelha da cor do sangue, aplicam um líquido de cor ciano e fica toda negra. A sensação não é de dor pungente, mas de uma queimação que parece de ácido. Coloco a mão onde está a tatuagem de Zane, cobrindo-a com as mãos, encaixando os dedos na parte pontudas. — Pare com isso. — Ele dá um tapa na minha mão incomodado, curvando as sobrancelhas aborrecido e se afasta dando um passo para trás. Tudo o que tem a ver com Bawarrod o incomoda e não compreendo, não foi ele que se inscreveu como Escravo de Sangue para início de conversa? Mas sinceramente, espero poder contar com esse ressentimento quando eu precisar dele para a batalha. — Desculpe. — Giro, encarando a poltrona em que deixei minhas roupas. Solto a toalha no chão e pego o meu sutiã, vestindo, mas não consigo unir as pontas dos fechos, pois minhas costas parecem que vão rasgar. — Você sempre se aborrece quando o assunto é Bawarrod. — Tenho meus motivos. — Ele me ajuda a prender o fecho do sutiã e solta o elástico com força nas minhas costas, como vingança. — Ai, Zane! — Giro e o empurro. Ele dá risada. — Você às vezes é tão sádico que me irrita. — Reviro os olhos e visto a blusinha e depois coloco a jaqueta e o cachecol. — Você só está dizendo isso porque quer se livrar de ajudar Byrn com a mudança, não vou aliviar para você, Jay! — Ele pisca e abre a porta. Suspiro, vencida. Deixamos a sala de dermopigmentação, que fica dentro do setor de doação. Arimá é a recepcionista e ela até que me recebeu bem, parecia orgulhosa em dizer que uma tatuagem dessas não é todo dia que se vê. — Como foi? — Arimá me pergunta. — Terrível. — Pelo menos você sabe que tem que passar por isso apenas uma vez! — Ela me conforta, gentil. Faço que “sim” concordando e Arimá me estende uma latinha branca. — Passe isso duas vezes ao dia para acentuar a cor. Vai arder, mas só um pouquinho! — Ela quis dizer, como o inferno. — Zane a traduz, encostando no balcão e recebe um tapa no ombro, de Arimá.

— Obrigada, eu acho. — Abro a latinha e vejo uma pasta ciano. Se for aquele negócio que aplicam na sala, vai doer muito. Coloco a latinha no bolso da minha calça jeans. — Assine aqui e estará liberada! — Arimá gira na minha direção uma prancheta com muitos papéis torcidos para cima, apontando onde devo assinar. Não li o papel, Zane disse que é um blá-blá-blá cheio de termos médicos e de que a responsabilidade caso eu tivesse reação alérgica ao processo seria de inteira responsabilidade minha. Confio em Zane, se ele disse que eu não precisava me preocupar, não me preocupo. — Quando foi a última vez que alguém tatuou para Riezdra? — Pergunto. — Aqui em Bawarrod? Nunca vi. — Arimá se encosta no balcão. Significa que desde que as colônias começaram, Devon Riezdra não teve um escravo de sangue com tatuagens. Ele fez fama assassinando escravos, sugando todas as gotas de sangue, um após o outro, mas Zane disse que há dois anos, ele não se alimentava com sangue. Quero saber por quê. Pego a caneta e rabisco minha assinatura no local indicado pela unha comprida de Arimá, pintada de cor-de-rosa. Esmaltes só são conseguidos para os nobres, então acredito que Lady Lucretia gosta mesmo de Farrah. — Pronto. — Obrigada! — Arimá ajeitas as folhas na prancheta. — Quando eu terminar aqui, ajudo vocês com a mudança. — Espero que terminemos antes do seu horário de saída — Zane abre bem os olhos e respira fundo, já de saco cheio da mudança, antes mesmo de começarmos. — Boa sorte! — Arimá acena, dando uma risadinha. Deixamos o setor de doação de mãos dadas, há uma fila do lado de fora, com dez adolescentes com a idade apropriada, que vieram tentar a sorte de conseguir a certificação de doador autônomo. Eles olham para mim e para Zane como se fôssemos celebridades. — Tem uma coisa que não compreendo. — Comento enquanto seguimos pelos corredores entre-alas, seguindo em direção ao setor em que Byrn costumava morar antes de ser transferida para a torre adjacente. — Quando entrei para doação, tinha medo de morrer na primeira mordida, Riezdra tinha uma fama terrível. Mas você disse que ele ficou dois anos sem beber sangue. Por quê? — Quando Cassie morreu ele ficou depressivo, eu acho. — Cassie? Achei que o nome da ex-esposa dele era Celeste. — Celeste era sua esposa, mas Cassie era o seu verdadeiro amor. — Zane dá de ombros, como se fosse algo óbvio. A informação me surpreende e ele percebe, dando uma erguida nas duas sobrancelhas. — Eu realmente não devia ficar falando essas coisas para você. — Por que não? — Porque você vai usar para atingí-lo e me machuca ver Devon sofrendo com esse assunto, é só isso. — Zane explica com sinceridade. — Não vou, juro! — Paro de andar e dou um tranco puxando sua mão, para ele virar de frente para mim. — Conte o que houve e eu prometo que não vou usar isso contra ele. — Aqui em Bawarrod está cheio de pessoas que não cumprem promessas, Jay. — Zane está serio, de um jeito que ele normalmente não fica, nem quando o assunto é sério. — Você sabe que pode confiar em mim, não sabe? — Dou um sorriso manipulador,

embora a ideia de que se eu atingir Devon e acabar machucando Zane me desesperar um pouco. Eu achava que Zane tinha tido sorte em Bawarrod, mas pelo visto em sua vida, houve muita desgraça. — Não faça com que eu me arrependa por ter confiado. — Ele exala ar e balança a cabeça, em um “não” para acentuar. — Eu conto durante a mudança. Você não vai se safar de ajudar Byrn e será bom fazer as pazes com ela. — Ok, desde que eu esteja em casa para jantar. — Concordo. — Ainda mais que Lady Lucretia está valorizando Byrn como se ela fosse uma jóia. — Ouvi que ela já marcou a dermopigmentação para a próxima semana. Oficialmente uma escrava da Casa Bawarrod. — Zane resfolega e abre bem os olhos. — Soa terrível. — É terrível. — Balanço a cabeça, fazendo uma careta. Realmente preciso fazer as pazes com Byrn. Não apenas por ela ser minha amiga, mas porque não posso correr o risco de tê-la como minha potencial inimiga.

CAPÍTULO 19

Jogadas — É história. Você pode ler tudo sobre isso nos registros. — Zane abre a caixa em cima da mesa do novo apartamento de Byrn, tirando de lá alguns pratos brancos e azuis. Até então eu nem sabia que exigiam registros. — A Casa Soretrat pensava em manter o controle do Império unindo pelo sangue as primogênitas e gêmeas, Lady Misha e Lady Cassandra, com os dois homens mais poderosos do Grande Império: Kaiser Bawarrod, o Imperador, e Dorian Riezdra, General do exército. — Ouvi Lady Lucretia comentar sobre isso, foi durante o início da Grande Guerra. — Farrah comenta, pegando os pratos da mão dele. — Zegrath queria que sua primogênita, Lady Celeste, fosse contemplada. Deu uma confusão. — Você sabe por quê? — Zane pergunta, uma sobrancelha para cima em desafio. — Não, vai ver Lady Celeste era feia. — Farrah dá língua levando os pratos para o armário. Byrn está encostada na bancada da cozinha, fazendo um suco para nós, escutando. Eu também fico calada, passando pano nas prateleiras que acomodarão os pratos, potes e utensílios. — Não isso! — Zane dá risada, retirando mais pratos da caixa. — Soretrat é uma casa capaz de manipular gêneros em suas gestações. Casado com Lady Misha, com certeza Bawarrod teria um sucessor masculino ao trono, mas não com Lady Celeste, não era certeza. — Então para tirá-la do páreo, consideraram melhor opção uma união matrimonial com o segundo sucessor da Casa Riezdra? — Pergunto. — Exatamente. Mas, como logo ficaram sabendo, Devon e Lady Cassandra tinham um romance proibido. Ele foi punido e enviado para missões o mais distante possível da Torre Bawarrod e de Lady Cassandra, durante o Ano Zero. — O ano em que começaram os ataques alienígenas. — Byrn comenta. — Hm, quem diria, ela não era uma “lady” afinal! — Farrah ri. — Esperavam que ele morresse na guerra? — Pergunto com a mão no coração, como se sentisse doer. Zane faz que sim com a cabeça e continua: — Com isso, as casas se dividiram. Ao lado de Bawarrod ficaram: Soretrat e Riezdra, por motivos óbvios. Do lado de Zegrath, que acusava Soretrat de aplicar um golpe de estado, estava apenas Blonnard. As demais casas permaneceram neutras, mais preocupadas com os ataques alienígena e a escassez de sangue. — Eu me preocuparia mais com a escassez de sangue também. — Byrn enche os copos com suco. Nos aproximamos todos sedentos. — Nem consigo pensar de barriga vazia! — Eu me preocuparia mais com Celeste. — Zane suspira. O que isso quer dizer? Pego

um copo e tomo de guti-guti, esperando. — Enquanto corria o noivado de Lady Cassandra com o General, Dorian, ela mantinha um relacionamento secreto com Devon pelas costas de Lady Celeste. — Ui, que safado! Pegando a cunhada! — Farah ri segurando um copo, se balançando. Quase engasgo com o suco e Byrn me oferece uma toalha para me secar, rindo da minha reação. — Cansada da infidelidade do marido e de ficar à sombra de Soretrat, Celeste agiu para se vingar. — Zane solta o copo pela metade de suco em cima da bancada e volta para a caixa. — Primeiro alvo? O marido. — O que ela fez? Deu pro irmão de Riezdra? — Farrah debocha rindo e dá um gole no suco, olhamos para ela com caras de estranheza e dúvida. — O quê? Eu faria. As coisas ficariam interessantes! — Não. Ela pediu o divórcio e quase me matou. — Zane encara o interior da caixa, contemplando seriamente o que tem dentro, mas sabemos que a seriedade é com suas memórias. — Sabe qual o poder inerente à Casa Zegrath? Podem inflingir a morte na sua carne, você passa por todos os estágios ainda vivo, até virar um esqueleto[4]. Ela usou em mim e me deixou no meio da estrada, durante o caminho para a Torre Bawarrod. Devon estava em uma missão, não havia nada que pudesse ser feito. — Ouch. Desculpe. — Farrah pede, como se fosse culpa dela não saber disso antes de fazer uma piada. Ela até solta o copo e se aproxima de Zane, mas, disfarçando a dor, ele entrega pratos de sobremesa para ela. — Como você sobreviveu? — Uma caravana que fugia dos ataques alienígenas ao Sul, passou por mim e perceberam que eu estava vivo e o processo foi interrompido com um antídoto. Estavam indo para a Colônia N-F22. Não vou entrar em detalhes. — Zane resfolega, retirando as xícaras. — Por quê? Abusaram sexualmente de você? — Byrn pergunta rindo. Seguro na mão de Byrn e envio um olhar de repreensão para ela. Zane derruba uma das xícaras, o som do objeto se espatifando contra o chão cobre nossas vozes. Meu coração também fica em pedaços. Byrn percebe o que estava evidente nos olhos de Zane e me lança um olhar de pânico enquanto ele se abaixa para catar os cacos. Há silêncio enquanto ele junta os pedaços da xícara sem dizer nada, apenas o choque entre os pedaços de vidro. Zane levanta-se, colocando os cacos dentro de uma caixa de lixo que está em cima da mesa e foi usada para jogarmos algumas coisas que Byrn não queria manter. — Fui estuprada aos quinze anos por um homem que ofereceu abrigo para mim e minha irmã. — Farrah corta o silêncio, a voz entristecida, enquanto coloca os pratos para dentro do armário da cozinha. — A guerra transforma os homens em monstros. Fugi antes que a próxima fosse Arimá, ele começou a elogiar os peitos que estavam se formando. — Sinto tanto, não fazia ideia. — Byrn entra em pânico, cobrindo a boca com ambas as mãos. Como eu, Byrn conseguiu ficar com sua família, pelo menos com os mais próximos, pai e mãe. Podemos nos considerar as mais sortudas de Bawarrod, a maioria é como os outros: eles não possuem mais ninguém. Para essas pessoas, os vampiros são uma alternativa melhor do que ficar para fora das fronteiras. — De qualquer forma, foi um longo caminho que me trouxe de volta à Torre Bawarrod.

— Zane corta o assunto, pigarreando, recobrando a firmeza. — O que sei é que durante o Ano Um, Devon ofereceu apoio à Soretrat visando unir forças e derrubar Zegrath. Ele se tornou General nessa época. — Dizem que ele teve que passar por cima do irmão para conseguir o cargo. — Byrn comenta, erguendo as sobrancelhas. — Impiedosamente. — Depois de levar uma flechada nas costas, qualquer um passaria como um rolo compressor. — Zane explica, mas sinto em sua voz uma necessidade quase agressiva de defender os motivos de Devon. Agora entendi aquela jaqueta que ele guarda, uma memória rancorosa. — Dorian cometia alguns crimes de guerra e isso foi suficiente para que um sucessor apto o derrubasse, evidentemente. — Ele morreu? — Farrah pergunta. — Não. Ele é prisioneiro nas Masmorras. — Então Sr. Riezdra finalmente se casou com Lady Cassandra? — Byrn pergunta, interessada na história de amor, acreditando em contos de fadas. Posso ouví-la suspirar e bater as mãos, empolgada, solucionando todas as questões. — Ele estava divorciado, nada poderia impedir, certo? — Não. Misteriosamente a Rainha morreu envenenada, sem deixar descendentes. — Zane tira a caixa vazia de cima da mesa. Farrah encosta-se no balcão, em busca de mais suco. Posso imaginar quem envenenou a Rainha. — Quando a Rainha morreu, mamãe ficou desempregada e passou a doar para os guardas. Ela doava para a dama de honra da Rainha. — Conto, lembrando-me dessa época. Foi quando conseguimos muitas coisas e até pensamos que seria possível viver bem na Torre Bawarrod. — Ela também morreu envenenada. — Envenenaram a todos durante o jantar, só quem não estava por aqui se salvou. Bawarrod tinha duzentos e trinta nobres, muitos quartos ficaram vagos depois disso. Cassie tornou-se novamente uma das possíveis candidatas ao trono e não havia nada que Devon pudesse fazer contra isso. Ele havia prometido lealdade à Soretrat e a outra candidata era Celeste, que estava conquistando a simpatia do Imperador, mas se ela conseguisse o trono seria o caos. — Zane empurra outra caixa para sua frente e abre. — Ele teve que fazer uma escolha. — Como ela conseguiu simpatia? — Eu me aproximo para ajudá-lo, enquanto Farrah toma mais suco. Interessante é saber que essa escolha envolvia amor e poder. — Aí que vive a ironia do destino! — Zane pisca um olho para mim. — Ao mudar-se definitivamente para a Torre Bawarrod, Cassie foi recebida com uma grande festa em comemoração. Nobres de todos os locais vieram, incluindo Celeste. Adivinha quem ela reencontrou na área de doação livre? — Ele estende as duas mãos para frente e depois, estica os indicadores em sua direção. — Não tive como escapar, Celeste sempre teve um grande poder de persuação. — O Imperador não sabia que você era propriedade da Casa Riezdra? — Pergunto. — Se sabia ignorou. — Farrah conta com um sorriso no rosto. — Eu já era escrava nessa época e me lembro que houve uma disputa, funciona assim: os nobres provam seu sangue, se alguém gostar, pode ficar com você. — Ou você morre. Perdi as contas de quantas mordidas levei. — Estou dizendo, você tem mel não sangue nas veias! — Farrah dá risada e Zane faz

uma careta de quem não achou graça. — Muitos nobres se encantaram, mas assim que provou o sangue de Zane, o Imperador não quis saber de mais nada ou ninguém, simplesmente o tomou para si e dispensou todos os seus escravos anteriores. Acho que é alguma obsessão. Posso pensar em mais uma pessoa que nutre uma obsessão por Zane e não sou eu. — Por um lado, é bom, certo? — Byrn pergunta enchendo nossos copos novamente. — Quer dizer, ao menos você sabe que ele não vai matar você. — É, talvez. — Zane olha firme na direção de Byrn, segurando alguns copos retirados da caixa. Eu não sei o quanto isso é segurança, o Imperador deve beber mais do que precisa e no lugar de Zane, eu não sei quanto tempo eu resistiria. — E o que aconteceu? — Puxo o jogo de copos de suas mãos e vou até o armário, arrumando-os em fileira. Cada um tem um formato. É difícil achar conjuntos inteiros nos vendedores e quanto existem, custam fortunas. Prefiro gastar dinheiro com outras coisas. — Todos sabemos que Bawarrod não se casou com Lady Celeste e nem com Lady Cassandra. — O inesperado. Cassie foi assassinada. Ficou óbvio que Celeste estava por trás disto. — Zane continua. — Mas ninguém tinha provas contra Zegrath! — Farrah continua. Não sei se ela está defendendo ou apenas justificando. — Devon retornou à Torre Bawarrod, a Casa Lunysum ofereceu apoio à Casa Riezdra e a aliança se fortaleceu. — Zane dá de ombros. — Teve um desfile do exército quando ele chegou, se estavam por aqui devem se lembrar. — Foi quando nos conhecemos. — Byrn olha para mim com um sorriso. — Você e Nytacha começaram a trabalhar na lavanderia! Lembro que teve o desfile, fomos juntas. — Eu me lembro. Foi mais ou menos quando Nytacha conheceu Román. — Meu estômago embrulha. — Johin estava sofrendo com pneumonia e mamãe resolveu vender tudo o que tínhamos em casa. Foi um ano terrível. — Sinto a mão de Zane em meu ombro, apertando em apoio, olho para ele lançando um sorriso de agradecimento. — O que importa é que Celeste não se casou com Bawarrod. — Zane continua, um pequeno sorriso surge em seu rosto, não sei dizer se é satisfação de saber que os planos de Celeste foram frustrados ou se ele está apenas respondendo ao meu sorriso. — Conseguiram provar que ela era a responsável pela morte de Lady Misha e Cassandra. Acusado de crimes contra a coroa, o Clã Zegrath inteiro sofreu com as punições recebendo a Marca-da-Maldição e o Exílio[5]. Uma única mulher capaz de causar tantos problema e revoluções. Até me arrepio de lembrar da expressão que ela tinha na fotografia que eu vi. E me arrepio mais ainda de pensar que ela está em algum lugar. — Foi aí que as atenções voltaram-se para Lady Lucretia! Afinal, ela é a única em Bawarrod na linha de sucessão ao Imperador, que mostrou intenções de não mais se casar. — Farrah comenta. — Eu também iria querer distância de casamentos depois de tanta conturbação, mas tenho impressão que isso se deve mais à Zane do que aos problemas! — Debocha, rindo. — Viram? Tem mel no sangue! — Para, não tem graça! — Zane resmunga, arfando inconformado. — Acham que Lady Celeste pode retornar para atacar Lady Lucretia? — Byrn pergunta. — Como vingança?

— É sempre possível. — Farrah diz. — Especialmente que o General não estaria bebendo sangue por dois anos e estaria enfraquecido. Isso a atrairia. Por sorte temos um escudo mágico à prova de invasores. — Como seria possível ele ficar dois anos sem beber sangue? — Byrn estranha. Tenho que admitir, eu não tinha pensado nisso, mas Byrn é mais ligada na vida dos vampiros que eu. — Que eu saiba, nenhum vampiro poderia. — Não sei, poderia? — Olho para Zane. Vejo o instante em que Zane morde a boca, pensando no que dizer, enquanto joga os olhos imensamente azuis para o lado. Conheço bem meu amigo e ele está omitindo algo. — Um vampiro que não bebe sangue fica enfraquecido, mas viveria. Essa parte é verdade, um vampiro ficaria enfraquecido, mas possivelmente viveria. Provavelmente espalhar um desses boatos de que Devon está enfraquecido seja exatamente um plano para atrair Celeste. Eu vi que Devon não está fraco de verdade, vi com meus próprios olhos como seu corpo se regenera! E me ocorre: aquela vez que Farrah disse que Zane estava com anemia? Agora sei qual a razão. — Que bom que não temos mais que nos preocupar quanto a isso agora com a Jaylee. — Farrah pisca um olho para mim. Há um controle muito grande no quanto de sangue que Devon consome. O que sei sobre isso? Ele não se satisfaz, pois me considera pequena, diz que meu sangue tem gosto ruim e só tem permissão para ter um escravo. Eu sou um disfarce? Ele me usa para fingir que se alimenta um pouco, apenas o que seria suficiente para não morrer quando na verdade enche a boca às escondidas com o sangue de Zane? Jogada inteligente, Devon. Mas algo não se encaixa! Zane disse que se Devon o transformasse em escravo seria considerado incesto, seria melhor procurar outro escravo ou aparecer na área de doação livre pelo sangue extra. Deve haver um motivo maior. O que torna o sangue de Zane tão valioso para fazer Devon quebrar regras por ele? Mais valioso do que o meu sangue ou o de qualquer outro escravo? Eu não tenho ideia! — Ei, vocês estão com fome? Posso preparar alguma coisa. — Byrn se oferece deixando o balcão e indo na direção do armário que usa como estoque. — É, seria ótimo! — Farrah sorri. Olho para Zane, que está pensativo, com a mão no pescoço, onde tem a tatuagem, Ela por si só já é mais valiosa que a minha. Então eu percebo: O que Zane tem de mais valioso é sua Relação-Sanguínea com Bawarrod, ele provavelmente tem o sangue mais forte que qualquer escravo vivo no planeta! Jogada muito inteligente. Durante o fim da tarde, conversamos sobre outras coisas enquanto terminamos de arrumar a sala. Arimá chega para ajudar enquanto Byrn cozinha alguma coisa para comermos. Zane é o primeiro a ir embora, fico com a impressão de que ele tem um convidado para jantar. De uma coisa preciso me gabar: entendo cada vez mais as motivações de Devon. Saber que ele é um homem que viveu e perdeu um grande amor me deixa em vantagem. Saber que uma das escolhas que ele teve que fazer envolveu não o poder e o amor, mas exatamente, Cassandra e Zane, me deixa em mais vantagem ainda.

Enxergo o jogo. Finalmente estou um passo à frente! Será que Zane ficaria aborrecido se eu quebrasse a promessa que fiz a ele e usasse o que sei contra Devon? Porque eu vou usar.

● ● ● — Está vendo? — Em uma noite em que o teatro está cheio e a Casa Taseldgard apresenta uma obra de Shakespeare, Devon, elegantemente vestido com um terno risca de giz preto se curva pesando minhas costas. Quase derrubo os binóculos dourados do alto do balcão com sua proximidade, o cheiro de seu perfume sobre mim. — Estou tentando, Vossa Realeza Sereníssima[6]. — Respondo em zombaria com seu título de nobreza. Hoje, enquanto entrava no salão com um vestido negro de renda de enorme fenda nas costas para exibir minha recém-adquirida tatuagem para todos os escravos de sangue que duvidaram de mim, escutei quando Sr. Orléans Rynbelech o chamou assim. — Não seja tão vulnerável ao meu charme. Encontre-os. — Ele roça o queixo no meu pescoço, pinicando a barba em meu ombro, provocando de forma sensual. Momentos atrás, Devon disse o que eu tinha que fazer: com o binóculo, finjo que estou olhando para o palco, quando na verdade, uso a minha alterada visão de Recém-Admitida para observar o que está acontecendo no camarote de Bawarrod, mais precisamente, com Zane. — Posso saber o motivo dessa sua obsessão? — Sou um homem de obsessões. — A voz rouca, quase um sussurro em meu ouvido me deixa toda arrepiada. — Agora, por exemplo, estou obcecado por esse caduceu nas suas costas. — Suas mãos deslizam do meu pescoço para minha lombar, depois, envolvem meus seios por cima do vestido. — Por acaso vocês são amantes? — Passeio os olhos pelos camarotes, vejo Byrn servindo vinho para Lady Lucretia e Farrah ao seu lado, assistindo à peça. — Você realmente acha que sou o tipo de homem que me deitaria com um garoto? — Devon aperta meus seios com vontade para enfatizar e meus joelhos amolecem. Meu corpo inteiro pede por clemência e tenho que segurar na barra do corrimão ou vou cair lá em baixo. — Não, meu senhor. — Solto a barra, seguro sua mão e retiro de meus seios, tendo que lutar contra a força de seus dedos. Subo mais um pouco o olhar, devagar, posso ver Rilde, enchendo a boca com docinhos, mas não encontro Bawarrod. Onde eles estão? — Nem com garotinhas virgens como você. — Ele me solta, colocando as mãos na minha cintura. — Oh, tenho certeza que você seria muito gentil. — Debocho. — Não, não seria. — Achei. — Informo quando meus olhos finalmente os encontram, primeiro, um borrão devido à escuridão, sombras que se tornam silhuetas e enfim, posso enxergá-los como se fosse dia. — Atrás das cortinas, Bawarrod está com Zane contra a parede. — Leia seus lábios para mim. — Devon beija meu ombro, com delicadeza. — Eles não estão conversando agora, meu senhor. — Informo com um tom que insinua

coisas. E realmente, nem preciso insinuar. — Bawarrod está com a língua na garganta de Zane. As mãos de Devon apertam mais minha cintura, incomodado. Ele desencosta a boca do meu ombro, em silêncio, mas continua com a cabeça apoiada em mim. Se isso não é ciúmes, é o quê? — Narre o que está havendo em detalhes. — Devon ordena, sinto amargura no tom de sua voz. Ele se sente responsável por Zane e claro que está enciumado! — Mesmo? Não sei se é saudável para você. — Jaylee. — Ele me ameaça. Não posso vê-lo, mas consigo imaginá-lo estreitando os olhos dourados. Quase me diverte! — Não dou a mesma ordem duas vezes. — Já sei disso! Bem, lembre-se que foi você pediu. — Demoro um pouco tomando fôlego só para deixá-lo impaciente. — Bawarrod está segurando-o com cuidado, apaixonado. É um beijo com sentimentos, o Imperador não está forçando, se quer saber. Acho que Zane está retribuindo. Algo brilha entre suas bocas, refletindo a luz do palco. Um filete de sangue escorre, Bawarrod se interrompe para lamber como um ogro. Ugh, que nojento! Eu achava que ele fosse mais civilizado, sabe? — Está? — Devon ri, não como quem acha divertido, mas como quem desdenha da minha hipótese, e me gira. Tiro o binóculo do rosto, encarando-o diretamente, meus olhos demoram para reverter a visão e enxergo um pouco embaçado. — A Casa Bawarrod possui habilidades metais, como da Dominação. Você acha que Zane pode fazer alguma coisa além de cooperar? — Quer dizer que Zane não tem vontade própria? — Quer dizer que considera que ele seja do tipo que gosta de homens mais velhos? — Não. — Respondo convicta. — Então você está com ciúmes do meu passado ou apenas curiosa? — Meus olhos se focam. Devon deixa um sorriso de canto se formar em seus lábios, com deleite. — Quero saber quais os motivos que levam você e o Imperador à disputarem Zane ao invés de entrarem em um acordo. — Minhas mãos alcançam a barra de sua calça social, por onde deslizo os dedos devagar. — Estou em vias de um acordo, mais ou menos. — Devon se gaba, mas sorriso some. Ele não tem um acordo, ele tem um plano. — Mas diga-me Jaylee, se fosse você na situação de Zane, não preferiria que eu interferisse? — Você interferiria por mim, meu senhor? — Tá, contra outra! — Aprenda uma coisa. — Devon me gira mais uma vez e coloca meu rosto virado de lado, na direção do camarote de Bawarrod. — O que pertence a mim é meu e de mais ninguém. Ele disse que eu pertenço a ele? Suas palavras quase me chocam, porém, ao mesmo tempo, é reconfortante saber que agora ele pensa assim. Mesmo que seja um sentimento de posse, é melhor do que ser menosprezada e significa que consegui conquistá-lo. Essa é uma parte essencial para que eu permaneça viva. Preciso sustentar minha família. — Você leva mesmo para o lado pessoal, meu senhor. — Aponto o binóculo para o palco, mas subo novamente o olhar para o camarote do imperador. — De fato. — Devon me solta e se senta na poltrona, para fingir que prestará atenção na

peça enquanto beberica um copo de whisky. — Pelas minhas contas, hoje o Imperador bebe sangue. Preste atenção e conte as mordidas. Será o número de vezes que esfaquearei seu coração. Eu fico bem próxima do balcão, em pé, durante toda a apresentação da peça. É terrível de olhar para Zane inexpressivo enquanto Bawarrod encrava os dentes em sua carne, no ombro. Especialmente depois de saber que mesmo se quisesse fazer algo contra isso, Zane não poderia reagir. O amasso quase romântico que presencio, parece uma brutalidade ao ponto que desejo que se Devon pode mesmo fazer algo para trazer Zane de volta para a Casa Riezdra, ele tinha que fazer urgentemente! Na quinta vez que o Imperador abocanha é no pescoço, mas Zane já está exausto e quase vai ao chão. O Imperador o segura e se ajoelha com Zane nos braços, sugando tão forte que suas bochechas afundam. — Foram cinco até agora. — Informo Devon enquanto Bawarrod se curva sobre o corpo de Zane e parece querer engolir e sugar sua alma. Não consigo mais olhar e viro para Devon, que resfolega e coloca a mão na boca, pensativo, estreitanto um pouco os olhos. Essa preocupação… — Você está preocupado porque teme que ele não resista. Você está usando Zane para beber sangue do Imperador. — Hm. — Ele tira a mão da boca, estendendo o copo para mim como se brindasse. — Te darei crédito por seu poder de dedução, Jaylee. Sempre bom saber que recrutei o soldado certo para o serviço. — Compreendo a necessidade de deixar que todos pensem que você está fraco. — Contorno a poltrona em que ele está sentado e coloco as mãos em seus ombros fortes, fazendo uma massagem. — Uma forma excêntrica de atrair sua ex-mulher, eu diria. — O que sabe sobre aquela cretina? — Não muito, apenas que ela levou você à ruína. — Dou tapinhas em seus ombros, debochando. — Não entendia porque o meu senhor não aceitava se casar com Lady Lucretia se queria a coroa, mas compreendi que não tem a ver com a coroa e sim com um grande amor. — Então você faz uma pequena pesquisa de campo e acha que sabe tudo sobre mim? — Devon segura na minha mão direita e me força a contornar a poltrona, ficando de frente para ele. Não respondo, apenas lanço um sorriso que responde um silencioso “sim” para sua pergunta. — Tenho novidades para você. — Ele me puxa, fazendo eu me sentar em seu colo e segura no meu queixo, empurrando minha cabeça para trás, eu deixo a cabeça tombar, meu pescoço fica livre para uma mordida dramática no camarote, diante dos olhos de todos os nobres. — Não estou tentando convencê-los que estou fraco, apenas deixando que pensem que eles me têm sob controle. — Tudo isso por amor ou por poder? A sede por dinheiro leva homens a loucura, senhor. — Amor, poder, dinheiro… — Ele beija delicadamente o meu colo, descendo para os seios, seus lábios suaves. — São esses os motivos que levam os homens a cometerem crimes ou agirem descontrolados. De fato. — Com a outra mão ele segura meus cabelos e levanta minha cabeça, encaro seus olhos brilhando na escuridão. — Mas nunca esqueça, Jaylee, eu sou

um vampiro. — E o que motiva um vampiro, meu senhor? Vingança? — O tipo de vingança que não esperará por um casamento ridículo ou pela morte de causas naturais. Quero ser eu a estar segurando a faca quando arrancar-lhe o coração. E acredite, eu o farei. — Seus dentes pontudos aparecem e enfim, ele me morde, sugando meu sangue.

CAPÍTULO 20

Transporte de carga Durante o jantar o que aprendi é que os nobres estão com medo de que o exército perca os perímetros à oeste da fronteira. Fico tremendo só de pensar que isso realmente possa acontecer. Imagine a guerra se aproximando novamente das paredes mágicas da Torre Bawarrod? Passo pela mesa de doces e meus olhos crescem. Docinhos! Nada me agrada mais nesses jantares cheios de nobres metidos que os docinhos que enfeitam as mesas. Enfio alguns na boca, morta de fome, ultimamente, tem sido mais difícil controlar o apetite. — Jaylee? — Devon me chama. Ops! Viro para ele de boca cheia, Devon está ao lado de Mordecai e um dos nobres barbudos da Casa Lunysum, bebendo vinho e conversando provavelmente sobre a guerra. — Sim? — Troco olhares com Renira, mas ela vira a cara. — O que você está fazendo? — Você cortou a farinha, senhor, e preciso repor minhas energias! — Afasto-me da mesa e chego perto dele, mastigando rápido e engolindo depressa. — Não, não precisa. O que você precisa é pegar minha jaqueta que deixei no teatro. — Ele gira no dedo uma chave, presa em uma corda de couro. Encaro o objeto antigo e dourado, tentando me lembrar: que jaqueta? Devon estava de paletó e posso vê-lo em cima da mesa. — No teatro? — Pergunto incerta, esticando as sobrancelhas. — Qual o seu problema? Açúcar te deixa sem cérebro? — Devon revira os olhos dourados e estende mais a chave na minha frente. — Não, senhor. — Pego a chave de sua mão. — Então, Devon… — O nobre da casa Lunysum chama sua atenção e Devon olha para ele em resposta. — Sobre a fronteira, você estava dizendo que o perímetro está seguro? — Se o Imperador concordar em enviar os recursos que eu solicitei, é claro. — Devon lança um meio sorriso. Confesso que não estou vendo o Imperador se mexer nesse aspecto e para ser sincera, parece parte do plano de Devon, mas será que ele não percebe que arrisca nossas vidas com isso? Bawarrod está cheio de crianças e pessoas de bem! — Não estou tão convencido disso. — O nobre coça sua barba espessa. — Ele parece distraído. Quais as alternativas? — O setor ao Sul está mais contido, podem operar com metade dos recursos. — Devon alcança sua taça e dá um gole — Desviar recursos da Ala Sul para a Ala Oeste? — Mordecai estica as sobrancelhas. — Você ficou maluco? — O que você ainda está fazendo aqui? — Devon olha para mim impaciente. — Vá logo!

— Desculpe! — Eu tomo um susto e giro, correndo. — O que tem de beleza tem de vento na cabeça. Às vezes me pergunto se não seria melhor um zumbi como escravo. — Escuto Devon desdenhar. — Você não pode tomar sangue de um zumbi, tecnicamente ele é um cadáver. Seria fatal. — Escuto a voz de Mordecai. — Mas aquele traseiro… Ugh, porcos! Aperto os passos e atravesso o salão de festas em direção à saída que dá acesso ao jardim dos nobres. Passo por Lady Lucretia e Byrn sentadas em um banco, elas parecem se dar muito bem, conversando. Há uma multidão de garotinhas sentadas em frente à elas ouvindo as histórias de Lady Lucretia. Apesar de suas mordidas serem brutais, creio que deve ser até legal ser próxima a ela, parece uma vampira de bom coração, dessas que inspiram pessoas, como uma rainha deve ser. Então acontece: Lady Lucretia segura no braço de Byrn e fala algo para ela. Byrn acena para mim quase que imediatamente e se levanta. — Jay! Espere! — E vem na minha direção. — Onde você está indo? Um choque percorre meu corpo e tira o véu da inocência dos meus olhos. Byrn é a informante de Lady Lucretia. Tudo o que for dito em sua presença poderá se virar contra nós e isso inclui saber tudo sobre mim, minha família e Lyek. Se posso confiar em Byrn? Acho que minha resposta é: não. — Meu senhor tem um gosto muito requintado e o vinho que estão servindo o desagrada. Vou até a cozinha atrás de alguma coisa mais forte, como uísque. — Dou até uma revirada de olhos para confirmar o quanto o assunto me aborrece e dar mais veracidade à minha mentira. Qual a necessidade de mentir sobre uma jaqueta? Nenhuma. O caso é que acabei de perceber que não estou indo buscar uma jaqueta. — Não é mais rápido ir pelo outro lado? — Byrn me indica o caminho inverso, apontando com o dedo. — Tem razão. — Envio um sorriso falso. — Obrigada. Enquanto retorno para o salão, Byrn senta-se ao lado de Lady Lucretia, ela nem espera para informar o que estou fazendo e começo a achar que já perdi minha amiga para a vampira maldita. Atravesso o salão e saio pela outra porta, que dá acesso a cozinha, garçons passam de um lado para o outro com bandejas de canapés e bebidas. Encho a mão com biscoitos salgados e enfio tudo na boca, enquanto entro na cozinha e subo as escadas que dão para o estoque. — Onde você vai mocinha? — O garçom segura meu braço. — Ahn? Eu queria um uísque para o meu senhor. Ele disse que o vinho é péssimo. — Uso a mesma desculpa. — Não fica lá em cima? — Vou mandar servir a ele, não precisa subir. Acesso restrito. — O homem me puxa, dois guardas já me cercam. Que raiva! Abro um sorriso falso com dificuldade: — Obrigada. — E desço as escadas. Começo a voltar para o salão quando vejo uma placa indicando que à esquerda fica o açougue. Com um sorriso, disfarçadamente dobro o corredor e tiro os sapatos, para não fazer barulho. Atravesso entre paredes sujismundas e com cheio de sangue podre. Passo pelas correntes em que penduram os porcos e tenho vontade de vomitar. Consigo encontrar a saída,

mas agora estou mais distante ainda do teatro. Olho para cima, onde tem uma escada de incêndio. Rasgo a saia do meu vestido para poder subir sem me enroscar e poder levantar mais os joelhos. Estico os braços e pulo, agarrando na extremidade de metal da escada e me ergo com um pouco de dificuldade. Alcanço a parte superior do prédio e olho para onde fica o teatro, consigo traçar uma rota por cima dos telhados. Passo por trás de Lady Lucretia e Byrn, estou mais para cima e uma menininha me vê. Ela aponta, eu me escondo quando noto os pescoços virando. Espero um pouco de costas contra alguns canos e vou me arrastando no chão atré atravessá-los. Continuo em frente até que chego em uma enorme fenda que separa o prédio em que estou das escadas de emergência externas do teatro. Oh, não! Coloco a chave dourada entre meus seios, cálculo o pulo que eu tenho que dar e respiro fundo. Pego distância e corro pulando alto, mas logo percebo que não foi suficiente. Vou cair! Estico os braços procurando segurar a barra e meus dedos passam distante. Fecho os olhos esperando o impacto contra o chão. Alguém segura minha mão. Fico pendurada no ar. — Pelos Céus! Você é louca? — Escuto uma voz conhecida, olho para cima e vejo Lori, com uma perna na grade. Ela está com um vestido de festa e os músculos crescem ao tentar me segurar. A tatuagem de Soretrat em sua bochecha a deixa ainda mais poderosa nesse instante. Lori me puxa para cima e me olha com uma espécie de pânico. — Obrigada. — Credo, onde você se arrastou? Está fedendo! — O que você está fazendo aqui? — Pergunto ofegante e com o coração a milhão pelo susto. — O mesmo que você, vim atrás de Zane. — Ela revira os olhos castanhos escuros. — Mas a porta está trancanda. — Bem, eu tenho uma chave. — Retiro o objeto dos meios do seio. — Garota, estou começando a gostar de você. — Ela mostra um sorriso de canto e aponta para cima. — Seis andares. — Vamos depressa. — Contorno a grade e subo as escadas. — Eu nem sabia que você era amiga de Zane. — Estou aqui porque Drarynina me enviou. — Lori vem atrás de mim. Drarynina. É a mulher de Soretrat que fica controlando o quanto de sangue Devon bebe e que me alertou sobre Lady Lucretia. Ainda não entendi como ela se encaixa nisso tudo, se é uma aliada ou uma inimiga, mas estou encarando-a como uma peça neutra. Será que posso confiar? — Desde quando Drarynina se preocupa com Zane? — Estranho, fazendo uma careta para Lori enquanto me interrompo na subida. — Garota, você realmente precisa se informar. — Lori me mostra um sorriso e passa por mim subindo. — Estamos quase, não fique aí parada. Estou perdida nessa história e quanto mais eu me informo, mais descubro que não sei de nada. Respiro fundo e tento me concentrar em um passo de cada vez. Sigo pelas escadas até

que alcançamos a porta de ferro. A chave que tenho é a chave mestra do teatro e abre todas as portas que precisamos, inclusive a do camarote de Bawarrod. — Zane! — Entro exasperada. — Shh! Seja discreta! — Lori segura firme no meu braço e me puxa, escondendo-me contra as cortinas. — Há guardas por todo o local. Uma feixe de luz passa por nós. Esperamos os guardas concluírem que está tudo normal para voltarmos a respirar e procurar por Zane. O encontramos no chão, com a cabeça encostada no assento da poltrona, a camiseta dourada tem uma mancha enorme de sangue, no ombro direito. — Zane? — Sussurro perto dele, mexendo em seu cabelo. Ele se remexe, acordando e olha para mim, a boca está suja com sangue seco. — Pode andar? Zane fica parado, sem expressão, nem me dá uma resposta. Lori se apoia em meus ombros, para olhar para ele também, curvando-se. — Merda. Ele bebeu demais e está com a mente bloqueada! Por que nada é fácil? — Lori resfolega e passa por mim, abaixando-se ao lado de Zane, puxa o braço dele para cima e abraça sua cintura, erguendo-o. Há uma trilha de sangue de sua boca, seguindo pelo pescoço e correndo pela camiseta. — Ajude aqui! Vou socorrê-la antes que Lori caia. Ela é baixinha e pequena, nem parece tão forte. Dou apoio para Zane, mas não acho que ele está em condições de andar. — E agora? — Pergunto. — Como saímos daqui? — Por onde viemos. — Lori explica e vai em direção à porta do camarote. Sigo seus movimentos e noto que Zane também. Ele parece fraco, sem forças para andar, mas colabora. Seguimos pelo corredor e subimos as escadas até o andar de cima. De lá, descemos as escadas de emergência para sair do prédio. Até me surpreendo ao notar que há um veículo esperando a gente, um carro prateado de modelo não muito novo, o motor já ligado. Os vidros são negros com bloqueadores solar. — Bem a tempo, Lori. Jaylee. — Reconheço Drarynina no volante. Ela acena para mim e eu respondo com a cabeça. Lori abre a porta do sedã e Devon está elegantemente sentado no banco de trás, com seu paletó. Empurramos Zane para dentro como um boneco sem vida, eu me sento e fecho a porta. Lori corre para o banco da frente. — O que é esse cheiro? — Drarynina acelera bruscamente e sinto meu corpo todo impulsionar para trás. O carro vai na direção dos portões principais, que estão fechados, duas grandes portas de metal. — Jaylee. — Lori puxa o cinto de segurança. — O que há de errado com ele? — Devon pergunta passando a mão na frente dos olhos de Zane, que nem ao menos pisca. — Mente bloqueada. Bebeu demais. — Lori responde, enquanto a fivela solta um “clic”. — Se continuarmos ele vai se transformar. — Devon enfia os dedos na boca de Zane, checando os dentes. Por acaso ele está procurando os caninos? — É um risco que corremos, Devon. — Drarynina responde. Os farois do carro piscam iluminando as duas grandiosas portas de metal e ela buzina, pedindo passagem. — Eu não quero sangue de Bawarrod nas veias do meu filho, Drarynina.

Filho?! Meu corpo entra em choque. — Melhor você sugar tudo, meu amigo. — Dradynina envia um olhar matador pelo retrovisor. Devon puxa Zane em sua direção. Os caninos surgem, mas ele se interrompe e me analisa: — Você precisa de um banho. — Desdenha, rindo. — Eu sei! — Resmungo inconformada. Devon encrava os dentes na carne de Zane, perfurando no pescoço. Suas mãos envolvem a nuca de Zane segurando-o firme. Meu coração acelera de medo e olho para frente. Péssima escolha, os portões estão fechados. Fecho os olhos esperando o impacto contra os portões, escuto a buzina. — Uhuuu! — Lori berra enaltecida e eu abro os olhos. Passamos pelos portões sãos e salvos. Ufa! Pensei que íamos morrer! Drarynina gira o volante e o carro faz uma curva acentuada, jogando todo mundo para a direita abruptamente, me seguro como posso. Encaramos uma estrada de asfalto remanescente do tempo em que não havia guerra e o céu, no horizonte, começando a clarear. — Está quase amanhecendo, melhor ligar o GPS. — Lori diz apertando um botão no carro. O painel da frente fica todo escuro, acendendo hologramas azuis claros, o contador de velocidade aparece e percebo que é um mapa estranho de onde estamos. — Obrigada. — Drarynina agradece com um sorriso e me olha pelo retrovisor. — Bemvinda a bordo. — Obrigada, eu acho. — Comprimo os ombros. Agora sem as buzinas, escuto os goles enormes que Devon dá no sangue de Zane. É assim que soa quando ele me engole, um pouco mais devagar. Advinhei a jogada de Devon! Nem acredito que fui capaz! Estou um pouco orgulhosa de mim e me sinto mais confiante para ir adiante em minha estratégia. Na tela do carro, encaro a rota: estamos indo para dentro das ruínas do que antes foi uma cidade, algum lugar entre a Fronteira e a Torre. Para o que eu acredito ser um acampamento clandestino nas fuças de Bawarrod. E essa seria uma jogada ousada e inesperada.

CAPÍTULO 21

Refúgio O tiro ressoa em camadas atravessando as paredes do que um dia foi uma usina de café. Meu corpo inteiro treme com o barulho e acordo no susto achando que está havendo uma batalha. Mas não é. Estou dentro de uma tenda negra. O complexo industrial foi transformado em um quartel general, mas ao meio dia há apenas silêncio. Todos os que estão aqui dentro são vampiros. Chegamos em duas horas de estrada e o carro tem gasolina apenas para voltar à Bawarrod. Deram-me roupas limpas, tomei um banho com um balde e uma tina. Água fria e um sabonete racionado. — Você nunca erra? — Escuto a voz de Lori. — Eu disse a você. — A voz de Zane me coloca de pé. — Há apenas uma pessoa com a mesma acurácia, mas ela é um lixo no xadrez. Giro o ombro cansada e com dores pelo corpo todo. Dormir em colchonetes é horrível e o cheiro do cimento destruído me faz lembrar de quando eu e minha família quase fomos soterrados durante os ataques alienígenas. Estou com meias confortáveis, botas militares, calça preta e regata, um uniforme completo que tinham sobrando. Puxo do gancho na saída da tenda uma jaqueta, da mesma cor e visto. No braço direito, fica o símbolo do Grande Império Bawarrod bordado em amarelo. Escuto mais um tiro. — Você realmente morou em um acampamento militar? — A voz fininha e suave de Lori me direciona. Sigo o som. Não parece estar longe. — Antes de chegar em Bawarrod eu passei por muitos lugares, inclusive acampamentos militares. — Zane responde e subo por escombros de cimento e ferro, seguindo as vozes. Acho que estou indo pelo lado certo. — Sente falta de algum lugar em especial? — Nova Iorque. Morei lá por três meses. Avisto o que restou das estruturas que serviam como tanque de café. O estranho é que ainda há um pequeno aroma enjoativo no ar. Avisto Zane e Lori, estão de uniforme como eu e de costas para mim. Há um enorme rifle militar todo preto apontando para os tanques, onde há uma placa pendurada por correntes entre eles. O rifle está apoiado com tripés, em pedaços do que deveriam ser paredes. Há uma brisa agradável e está um dia de sol, o céu bem azulado, mesmo assim, a temperatura está baixa e me faz tremer de frio. — Em que lugar dos Estados Unidos você morava antes de se mudar para Nova Iorque? — Lori pergunta interessada. Em seus dedos há um cartucho de bala, dourado, pequeno. — Nunca disse que estava nos Estados Unidos antes. — Zane aperta o gatilho e dá um tiro atingindo a placa do tanque, as correntes batem. Do lado de fora, não soa tão perto e nem

ecoa, o efeito deve ser a explosão pelos canos do tanque. — Uhuu! Bem em cheio! — Lori estica os braços para cima, brincando. Armas me assustam. — Onde você morava antes então? Você tem sotaque canadense. — Não é da sua conta, inseto. — Zane responde de uma forma que causa estranheza em mim. É que por um instante, seu tom de voz rude e seco me lembrou de Devon, o que me dá dor de cabeça. Estava sonhando ou ouvi que eles são pai e filho? O cartucho cai no chão e ele coloca um novo no rifle. — Deve ser da Cretinolândia, certeza! — Ela faz um momento de silêncio, Zane não se altera, mirando. — Seu nome é realmente Zane ou você mudou quando Riezdra te adotou? — Por quê? Acha que pareço com outra coisa também? — Ele se diverte e arma o canhão. — Você tem cara de Roberto! — Lori explica. — Roberto? Por favor. — Zane dá risada. Mais um tiro. A placa novamente chacoalha batendo as correntes. Eu percebo que a placa é de madeira, com o nome da marca da usina e um homem sorridente segurando uma xícara de café. A sensação de que Zane está atirando em uma pessoa me incomoda. — Um garoto na minha escola tinha olhos azuis como você. Ele se chamava Roberto. Eu gosto de Roberto. — Meu nome sempre foi Zane desde o dia em que me deram esse nome. — Ele puxa a alavanca mais uma vez e tira do bolso da calça um cartucho novo. — Isso não responde muita coisa, você sabe. — Talvez porque eu não queira responder. — Por que não? Eu me chamava Stéphany, sempre morei em Los Angeles. Mudei para Lori quando cheguei em Bawarrod, mais curto e eficaz. Diga-me qual era o seu. — Você não é muito curiosa para alguém do seu tamanho? — Qual é, eu te contei tudo e você não me contou. — Lori atira o cartucho nele malcriada. — Não é justo! — O que posso dizer? Gosto do meu passado onde ele está. — Jay! — Lori me vê e anuncia que estou aqui, acenando e sorrindo. Zane solta o rifle e olha para mim por cima do ombro. Ele dá um sorriso, indicando que está tudo bem e acabo sorrindo em resposta, feliz por ele estar bem. Quando descemos do carro, Devon teve que carregá-lo e apesar do coração estar batendo, Zane ainda estava com a mente em branco. Foi assustador, achei que ele não voltaria mais à si. — Você está bem! — Eu me aproximo dele em passos rápidos. — O que estão fazendo? Onde arrumou essa arma? — Tem um estoque cheio delas por aqui e fico entediado facilmente. — Zane gira para falar comigo, ficamos frente a frente. — Dormiu bem? — Tá brincando? Dormi em cima de pedras! Foi horrível. Acordei assustada com esse barulho horrível. — Dou um soquinho no braço dele, de brincadeira. — Desculpe! — Posso atirar? — Você sabe atirar? — Não! Mas seria uma boa hora para aprender. — Empurro Zane para o lado e seguro o

rifle. Ele é pesado, é difícil de posicionar, olho pela mira. — Espere. — Zane pede, mas é tarde, eu atiro e acerto um cano de ferro da escada, a bala ricocheteia e atinge a janela do carro de Drarynina, criando uma marca redonda de vidro quebrado, mas que não espatifa. — Eu disse para esperar! — Ops! Desculpe! — Tiro as mãos do rifle assustada, colocando para trás como criança que leva bronca da mãe. Por que eles possuem essas armas? Elas são inúteis na guerra contra os alienígenas! — Espero que não tenha danificado o GPS ou alguém vai ficar de castigo! — Lori dá risada. — Vou colocar a culpa em você. — Zane ergue as duas sobrancelhas brincando e Lori dá língua. Ele segura no meu braço e fica atrás de mim. — Eu ensino você, mas deixe o indicador para fora do gatilho. Faço como ele pede, me curvando com o rifle nas mãos. Ele puxa a alavanca, tirando um cartucho vazio e carrega um novo. A bala é pontuda e comprida, toda dourada. Ele fecha o compartimento armando o canhão. — Só um por vez? Que bobo! — Cabem cinco norma magnum ou três dessas, lapua. — Ele mostra a balística. — Por que você ia preferir uma munição que cabe menos? — Estranho. — É um rifle de longo alcance e alta precisão, não uma metralhadora, Rambo! — Zane segura nas minhas mãos, quase me dando um abraço, posicionando-me. — Alta precisão, huh? — Viro a cabeça para ele, erguendo um ombro, como se olhasse para trás e ergo as sobrancelhas duas vezes. Nossos olhares se cruzam e Zane me mostra um sorriso fofinho. — Se vocês vão se amassar, eu vou procurar feijões para comer. — Lori vira, andando em direção às tendas. — Trago um pouco para vocês quando ficar pronto. — Valeu, Stéphany. — Zane brinca e ela volta para dar um chute na perna dele, saindo correndo. Zane dá um passo para trás, me soltando e segura a canela. — Ai! — Você mereceu. — Dou uma risadinha. — Penso que sim. — Ele pisca um olho sorrindo e coloca o pé no chão. — Agora você olha aqui e com calma, estabiliza a mira. — Zane aponta para o que parece uma luneta acoplada no rifle. — Eu não sabia que vocês tinham um exército clandestino. — Fecho um olho e com o outro encaro a mira. São quatro linhas que se encontram fazendo uma cruz, mas não consigo fazer o rifle ficar parado, minhas mãos tremem com o peso da arma. — Qual o plano? Atacar Bawarrod? Deixar o mundo explodir com todas aquelas pessoas boas lá dentro, Zane? — Aperto o gatilho, erro novamente meu alvo e vejo faíscas em todos os lados. — Ei, calmaí! Assim você vai acabar explodindo alguma coisa! — Ele faz piada. Viro de frente para ele abruptamente, séria. Ele estranha de imediato, o sorriso fofinho some. Estou irada! — Eu pensei que você era diferente, Zane! Qual a vantagem de fazer parte desse exército? — O que você está dizendo? Não tem exército, Jay. — Pra que tanta arma, então? Não são eficazes contra alienígenas e sim contra

humanos! — Cruzo os braços sem acreditar. — Quando vocês pretendem atacar a cidade e matar todos? Vocês são genocidas! — Deus, Jay. Você realmente nos julgou mal. — Zane abre bem os olhos azuis e dá até um passo para trás. Ele coloca as duas mãos na cabeça e abre um pouco a boca, percebo que ele desiste do que ia dizer, soltando ar. Ele olha para mim com ares de dúvida, estreitando os olhos azuis, como quem se toca de algo de algo. — Você usou a palavra genocida? Pensa que é isso que somos? Que eu sou? — Pelo visto, sim. — Sentencio com a voz mais dura que uma parede de cimento. — Agora estou decepcionado. — Zane resfolega. Posso ver a decepção em seus olhos azuis, é tão sólida que até me deixa em dúvida do que estou falando, mas não posso me deixar dobrar. Foram muitas revelações e todas elas se encaixam agora! — Ouvi quando Devon Riezdra te chamou de filho, vai negar? — Eu te disse que ele e Celeste cuidaram de mim e da minha irmã. — Zane ergue as mãos e a cabeça. — Inacreditável! — Eu acreditei em você, Zane. Eu achei mesmo que você fosse uma vítima no meio de Bawarrod e Devon, mas agora… — Agora o quê? — Ele me desafia a continuar, cruzando os braços, ofendendo-se. — Você é parte disso! Você se tornou escravo para ajudar Riezdra a roubar o sangue do Imperador. É crime. — Eu não sou um mentiroso se é isso que quer saber, mas você tem razão, é um crime e se descobrirem provavelmente separem minha cabeça do corpo. — Zane descruza os braços e levanta o dedo próximo ao meu rosto. — Mas quer saber o que mais é um crime, Jay? — Ele aponta em direção à Torre Bawarrod, para o lado. Sigo o dedo para ver a enorme ponta da Torre emergindo ao longe, por trás das árvores. — O Grande Império expulsa pessoas dos limites da cidade todos os dias! Há famílias inteiras desalojadas de suas casas, sem comida, doentes, que eles colocam em um caminhão e dizem levar para fora da fronteira. Esse é um crime, quer saber outro? Essas pessoas não são expulsas, é tudo uma mentira! Na primeira chance, essas pessoas, idosos, homens, mulheres, crianças… São todas executadas. Agora me diga quem é o genocida! — Executadas? — Meu coração se comprime. — Com uma bala na cabeça. — Ele explica. Engulo em seco. — Isso aqui não é um exército, olhe ao redor! Você vê alguma coisa? Soldados, por acaso? — Zane abre os braços. Eu acabo olhando para as estruturas, alguns prédios que podem ser o antigo estoque e os tanques, não tem nada além de algumas tendas e três guardas armados cercando o local. — Você disse que tem um estoque de armas… — Dou de ombros e tombo a cabeça para o lado. — Armas pré-históricas e ineficazes! — Ele me conserta, como se fosse mudar o fato de que é uma arma, criada para tirar vidas. — Aqui é um refúgio, Jay. — Refúgio para quem? — Para os que foram expulsos. Pessoas são trazidas para cá e recebem os primeiros socorros, para depois as levamos até uma facilidade próxima. Nenhum de nós aguenta mais a tirania de Bawarrod, não é só você.

Pisco algumas vezes. Acho que um refúgio realmente muda as coisas de proporção! Eu não pensei que iria dizer isso, mas acho que Devon Riezdra está do mesmo lado do tabuleiro que eu. É um choque perceber isso. Um vampiro pode mesmo lutar pelos direitos dos humanos nessa ditatura? E que tipo de vampiro seria louco o suficiente para fazer isso? Então, meu coração encontra a resposta para mim. As lágrimas estão em meus olhos quando percebo: Um vampiro que criou um humano como se fosse seu filho. Esse é o tipo de vampiro que tomaria para si nossa luta. Mas Devon não pode ser esse vampiro. — Não, não, não! — Nego, dando alguns passos para trás. Coloco a mão na cabeça, fora de mim. Não pode ser verdade! — Riezdra é um monstro! — Ele não é um monstro. — Zane ergue as mãos, pedindo para eu me acalmar. — Ele é! Riezdra não pode ser contra a tirania quando ele mesmo é um tirano! Eu disse a você todas as coisas horríveis que ele fez comigo, Zane! — Eu sei, mas… — Zane! — Berro. Ele trava de susto. — Você é incapaz de ver porque você deve amálo tanto, mas… — Coloco um dedo no meu corpo, me apontando. Minha boca está trêmula e minha voz já não soa normal. É o quanto eu estou sozinha aqui, Zane nunca ficaria do meu lado, ele não sabe como é. — Ele me humilhou e me molestou, Zane. Eu não espero que você me entenda! — Eu entendo. Você está certa. — Zane coloca as duas mãos na cintura e abaixa a cabeça, pensando. — Devon não é perfeito, mas é o único que pode enfrentar Bawarrod ou os Anjos. É nossa melhor opção. — Como você pode dizer isso? — Pergunto incrédula. Coloco as duas mãos na boca. chorando. — É o que eu venho fazendo. Tá legal? — Zane ergue a cabeça, seu olhar azul e sua voz me rebatem com firmeza. — Vivi dez anos com um vampiro que matou meus pais. Peguei carona com criminosos para chegar até a Colônia N-F22. Fugi para Bawarrod com o primeiro soldado que ofereceu ajuda e quando reencontrei Celeste, preferi me tornar um escravo de um homem sem escrúpulos! Sou um oportunista. É o que eu faço, Jay! — Ele gesticula, apontando para si. — O mundo está se destruindo e apenas olho para frente escolhendo a opção que vai me manter vivo por mais tempo. E a opção que vai te manter vivo nem sempre é a mais atrativa! — Zane… — Balanço a cabeça. Sua história me esfaqueia a alma, mas o que me arranca mais lágrimas são seus olhos entristecidos. — Eu sinto muito. — Não sinta. Fiz o que eu tinha que fazer para sobreviver e não tenho o direito de olhar para trás e me arrepender disso. — Eu sei! Zane toma um tempo para pensar, mordendo a boca e joga os olhos para o chão fechando-os, tomando coragem para me dizer: — Mas você tem todo o direito de sentir raiva. — Ele resfolega e abre os olhos, me encarando. — Sinto muito que isso tenha acontecido, que Devon tenha… — Ele se interrompe e olha para o céu, mordendo a boca. — Nem consigo verbalizar. Essa é uma imagem horrível e muito distante do homem que eu conheço.

Zane se afasta, colocando as duas mãos na cabeça, cobrindo os ouvidos com os braços. Posso vê-lo tremer. Seco as lágrimas dos meus olhos, mas elas voltam a nascer. Eu me abraço, sentindo dor e solidão, me sinto sozinha e sento no chão, chorando. Meus soluços são os únicos sons a cortarem o silêncio por um tempo, até que o som das pedrinhas sendo esmagadas pelos coturnos de Zane me alcança. Ele se ajoelha na minha frente e segura o meu rosto, erguendo meu queixo, secando minhas lágrimas. Encaro seus olhos, estão sérios. — Não tenho direito de pedir a você que siga um líder no qual não acredita, mas há uma razão para que humanos e vampiros o admirem e o sigam, tente enxergá-la e tirar alguma vantagem disso. Zane está certo. Devon Riezdra é o único apto a ser o líder de uma revolução contra o Grande Império e que, ao mesmo tempo, pode nos oferecer proteção dos Anjos. — Por que você o ama tanto? — As lágrimas escorrem pelas minhas bochechas, contornando o rosto. — Eu não sei. Acho que todo garoto admira o pai como se ele fosse um herói. — Ele dá de ombros, comprimindo os lábios sem uma resposta boa para me dar. — Soa completamente risível e imaturo, eu sei. — Não, você está certo. — Seguro nas mãos de Zane, em meu rosto. — Diga-me que tipo de pai ele foi para você, antes da guerra. Por favor? Zane respira fundo e joga os olhos para cima. — Tá bem. — Solta ar pela boca. — Acho que ao menos te devo essa. ● ● ● — Marshmallows no chocolate-quente, também? — Raspo o restinho do feijão que tinha na lata que Lori esquentou para nós. — Toda noite de Natal. — Zane completa. Dá para acreditar? Devon era um paizão! Ele fazia chocolate-quente com marshmallow no Natal! E não foi só isso. Ensinou Zane a andar de skate, levava no cinema e para tomar sorvete nos finais de semana, tocava piano depois do jantar, dava beijo de boa noite antes de apagar a luz e as vezes até contava história! Ia buscar Zane e sua irmã no Colégio e ensinou matemática quando Zane quase repetiu de ano. É muito para lidar! Coloco a última semente de feijão na boca, ainda com fome. Estava comendo com os dedos, não tínhamos colher. — Eu sinto falta de chocolate e marshmallows. Minha mãe fazia para mim. — Lori suspira, lambendo os dedos. — Ela foi expulsa da Torre quando ficou doente, mas as vezes quando venho com Drarynina, posso vê-la no acampamento. — Sua mãe está aqui? — Olho para Lori surpresa. — Aham! — Ela sorri e olha para o céu alaranjado. — Quer dizer, não aqui, o refúgio fica mais distante ao Sul. Oh, meu Deus! Eu tenho que preparar o carro para a viagem de volta! — E levanta apressada, correndo para longe. — Devíamos voltar também. — Zane suspira e fica em pé, batendo as mãos. Solto a latinha no chão e fico em pé também. Respiro fundo, olhando para Zane.

Aguardo enquanto ele vai até o rifle e fecha o tripé, passando a trava antes de colocar a alça no ombro. Ele pega a caixa de munição e coloca no bolso. Devon também ensinou Zane a atirar quando a guerra começou, para que ele pudesse se defender e prometeu que voltaria para Bawarrod para tirá-lo das mãos daquele soldado com que ele pegou carona. Acho que posso dizer que o incinerador foi um fim bem merecido para aquele crápula! — Obrigada. — Falo quando Zane se aproxima de mim. Ele franze a testa sem me entender. — Por ter me contado sobre como era a vida com Devon antes da guerra. — Você é tão estranha. — Ele revira os olhos e começa a andar na minha frente. — Agora me diga o seu nome, seu verdadeiro nome. — Vou atrás dele. — Zane. — Ele apressa os passos. — Isso não é nome, deve ser apelido. — Emparelho com ele, rindo. — É de Johanes? — Johanes e Zane tem o quê? Três letras parecidas? Nah, eu não sou tão óbvio! — Ele pisca. — Eu sabia! Há um nome antes desse! — Dou uma ombrada nele enquanto atravessamos pelos escombros. — Diga-me qual é! — O que há de tão errado com Zane para vocês duas ficarem me enchendo com isso? — Eu gosto de Zane, mas ia ser bonitinho se seu nome fosse algo como Tommy. Ele balança a cabeça fazendo que não. Não sei se quer dizer que não vai me contar ou está dizendo que não acertei o nome. Dou um sorriso. É um fim de tarde agradável. Olho para as tendas, alguns soldados estão por ali se aprontando. Devon e Drarynina já estão de pé e com seus uniformes negros. O sol já se pôs, os raios não incidem diretamente sobre eles e acho que é seguro para vampiros agora. Lori está colocando algumas caixas verdes no porta-malas. Uma olgiva voadora passa por nós em silêncio e atinge o carro causando uma explosão. Fico surda e caio para trás. Zane cai do meu lado, rolando. Olho para cima e mais olgivas redondas estão vindo, prateadas e silenciosas. Atingem os prédios ao redor, explodindo diversos pedaços. Eu me encolho, segurando os ouvidos, em pânico. O que é isso? Zane fica em pé e passa os braços em gancho pelos meus ombros, tentando me colocar de pé, meus joelhos tremem. Vejo flashes das coisas acontecendo, mas não escuto nenhum som além dos meus ouvidos zumbindo: os prédios explodem com nuvens de poeira e fogo, escombros voam para todos os lados e atingem os soldados. Uma nave circular atravessa o céu voando baixo, branca. Anjos.

CAPÍTULO 22

Chamas Meus ouvidos enchem com os barulhos de explosão e das turbinas das naves espaciais. Respiro ofegante, como um atleta que correu demais. Meus olhos se focam em alguma coisa azul, quando percebo, Zane está na minha frente segurando meu rosto. — Achei que tinha perdido você. — Ele me solta e levanta. Olho para os lados, estamos entre os escombros, na parte detrás dos prédios do estoque da antiga usina. — Tente não entrar em pânico em horas como essa. Pode ser fatal para você, Jay. Uma explosão me assusta e dou um sobressalto, sentada no mesmo lugar. Zane ajeita a alça do rifle nos ombros, olhando para a estrutura do prédio, analisando alguma coisa. — São os Anjos? — Pergunto, mas é uma questão que ele não precisa realmente responder. Sei que são. — Vamos. — Zane alcança uma barra de metal e sobe a parede, que está um pouco tombada para o lado. Onde ele está indo? Sigo pelo mesmo caminho com a agilidade de um gato. Sempre escalei coisas como árvores e pedras, acampar era minha atividade favorita com meu pai antes dele morrer e em Bawarrod, essa era a forma com que eu me divertia. Subindo as torres, explorando os antigos prédios enquanto assisti todos serem preenchidos por pessoas e virarem formigueiros. Olho para cima e Zane está jogando o pesado rifle para frente. Ele passa uma perna e pula. Subo depressa para não ficar sozinha e quando chego no topo da parede, levo um susto. Há três naves circulares planando e atirando contra os soldados. Drarynina está na frente, com as duas mãos erguidas. Ao redor dela um domo translúcido, um escudo. Devon está atrás dela, segurando Lori nos braços. Eles parecem encurralados. As naves atiram sem trégua em cima deles. Desço para o telhado e corro abaixada, até Zane. Ele abre o tripé do rifle e apoia no parapeito, perto de um antigo cinzeiro, o que me faz pensar em funcionários fumando. Escuto Zane puxar a alavanca abrindo o canhão, ele retira manualmente o cartucho velho e coloca três balas novas, fechando rapidamente e armando. Escuto um “clique”, ele respira fundo e mira. Eu tampo os ouvidos e ele aperta o gatilho. Olho para as naves com a surpresa de ver que um tiro foi suficiente para desestabilizar uma das naves, tombando para o lado e se batendo com uma segunda. O som das naves se chocando é algo que nunca escutei antes e não se parece com nada conhecido como metal e vidro quebrando ou até mesmo alguma explosão. É um som agudo como um grito de uma cantora, as turbinas morrem e a nave para de girar, revelando terem um formato de hexágono. A segunda nave bate contra os tanques, pegando fogo. A terceira nave vira em nossa direção, atirando feixes luminosos. — Temos que sair! — Zane puxa o rifle de cima do parapeito e corre.

— Eu achei que tinha dito que essas armas são inúteis e pré-históricas! — Grito, enquanto o sigo. Feixes luminosos passam por nós, a nave atirando. — E são! — No parapeito, Zane hesita, olhando o chão e analisando o tamanho da nossa queda. — Como você fez isso então? — Lembra que eu disse que posso abrir gavetas às vezes? — Lembro. — Chego perto dele e olho para o chão também, é bem alto. — Eu menti. — Ele revela, jogando o rifle primeiro. Abro bem os olhos encarando-o e Zane segura no meu braço, puxando para pular. — Posso fazer melhor que isso. — Aaaah! — Eu grito quando sou impulsionada para cair metros. Fecho os olhos esperando o impacto, mas meus pés tocam gentilmente o chão. — O quê? — Eu disse! — Zane abre um sorriso divertindo-se e pega o rifle que está há alguns centímetros do pé. — Agora corre! Ele não precisa pedir duas vezes se quer saber. Eu corro o mais depressa que consigo. A luz dos canhões da nave giratória cobre nossas cabeças, olho para cima, ela está sobre nós. Meu coração sabe que não iremos escapar. Paro de correr, observando. Tudo acontece um tanto em câmera lenta diante dos meus olhos, mas sei que é questão de segundos. Zane passa por mim e segura no meu braço, me puxando para longe da área. Escuto um ressoar de eletricidade e raios brancos envolvem a nave, ela explode tão forte que voa pedaços, dela e dos prédios, para todos os lados. O chão debaixo dos meus pés tremem, eu perco o equilíbrio dando um tranco em Zane. Ele vira para me olhar e no mesmo instante um pedaço pontudo de ferro o atinge com força, impulsionando seu corpo para trás. Zane cai no chão mais para longe, gritando de dor e o céu inteiro pega fogo, alastrando a explosão da nave. Sou cercada por chamas que caem como chuva ao nosso redor. Tento ficar em pé, mas algo me atinge com força na cabeça. Minha mente apaga. ● ● ● — Não, não, não! — Os gritos de Zane me acordam no susto. Devon está sobre ele, prendendo-o com as pernas. Suas mãos ao redor do pedaço pontiagudo de metal encravado no ombro direito de Zane. Ele puxa com força e depressa, os músculos do braço forçam o tecido da jaqueta de um jeito quase sexy. Zane grita horrivelmente com dor e quase desmaia. — Não seja um fracote, aposto que nem doeu. — Devon joga longe a barra de metal, ficando em pé, bate as mãos limpando a poeira. Zane está no chão, com a mão no ombro e respirando forte, mas encontra forças para fulminar Devon com os olhos. — Não me olhe assim, preferia que cicatrizasse com um pedaço de metal? — Não, claro que não. — Zane se senta direito e seca o suor da testa com a manga do casaco preto. Apesar de estar suando e parecer estar com calor, quando fala, sai vapor de sua boca. A noite está gelada. Há uma fogueira crepitando, parece que estamos em uma floresta, tem grama úmida em baixo das minhas mãos e árvores ao redor. Onde estamos? Coloco a mão na cabeça checando

se estou bem, mas nem parece que fui atingida. A única coisa que sinto é muito frio. — Vejo que acordou. — Devon vira os olhos brilhantes na minha direção, ele cruza os braços e dá um passo para trás, com uma postura elegante. — Se sentindo melhor? — Anjos? — Olho para o céu assustada, parece tudo normal agora. Há algumas nuvens e estrelas, seria uma noite linda, mas a sensação de estranheza e irrealidade me atingem. É surreal pensar que fomos atacados dentro do perímetro seguro. — Alienígenas. — A voz de devon soa como uma repreensão. Pelo visto, alguém não gosta de usar a palavra “Anjos” por aqui. — Onde estão eles agora? — Pergunto. — Em direção a Torre Bawarrod. — Devon responde e se vira novamente para Zane, puxando-o pela jaqueta. — Levante, vamos sair daqui. Zane fica em pé, mas tenho dúvidas quanto ao seu equilíbrio, ele parece se sentir um pouco tonto e aperta os olhos, colocando a mão sobre eles, suando. — Ei, vamos lá, não vá desmaiar agora. — Devon segura em seus ombros. — Estou bem. — Zane se afasta e passa o pé na fogueira, apagando os rastros. — Jaylee, pode andar? — Devon olha para mim novamente. — Posso. — Fico em pé e percebo que somos apenas nós três, olhando ao redor, há apenas escuridão. — Ninguém sobreviveu? Lori? Drarynina? — Precisa de mais do que três naves para derrubar os escudos de Soretrat. — Devon desdenha. — Elas caminham mais depressa, foram na frente para comunicar a invasão e movimentar as tropas. — Zane explica, puxando o rifle do chão e colocando a alça no ombro, mas como é pesada, ele precisa segurar a arma com ambas as mãos na frente do corpo. — Enquanto isso, estou ancorado com dois humanos inúteis. — Devon toma a frente com toda sua impaciência que já conhecemos. — Jaylee é minha melhor amiga, seja gentil com ela. — Zane interfere, apressando os passos para emparelhar com ele. — Amiga? Achei que fosse sua namorada. — Você sabe que não faço esse negócio de namoradas. Não sou como você. — Esse não é o melhor momento para você dizer que prefere homens, filho. — Devon para de andar, inconformado. — Estava me referindo a me apegar, seu machista. — Zane anda de costas, em seu rosto bonitinho uma expressão aborrecida. — Agradável conversar com você, pai, como sempre! Gira dando as costas para nós e afasta-se em passos rápidos e furiosos afundando em folhas secas. — Zane…! — Devon o chama, mas Zane não espera, erguendo a mão direita e mostrando o dedo do meio. — Crianças esses dias! Chega uma idade que simplesmente é insuportável, qualquer coisa que eu diga ele fica bravo! — Bem, se chama adolescência. — Dou uma risada divertindo-me. — E você mereceu, por ser tão escroto. — Não é porque ele está do seu lado que pode falar comigo assim, cadela. — Devon me olha com raiva e todos os músculos do meu corpo endurecem com medo de sua fúria, quando acho que vou ser castigada, ele olha novamente para a floresta. — Zane! — Ele coloca as duas

mãos na boca para amplificar o som. — Não vá muito distante! — E vira para mim, as mãos na cintura e um suspiro cansado. — Alcance-o. — Eu não sou a babá dele, você sabe! — Ergo as mãos, caminhando e balanço a cabeça. Devon curva as duas sobrancelhas me enviando um olhar sério e cheio de ordens. — Tudo bem, estou indo! — Corro para alcançar Zane, subindo o pequeno morro cheio de árvores. Há um caminho de pedras, parece que aqui era um parque. Seguro em seu braço, tentando fazer ele parar. — Zane! — Não venha mediar discussões ou você vai soar como minha mãe. — Ele alveja palavras flamejantes, sem se interromper, passando por mim irritado e atravessando o caminho de pedras. — Será super esquisito e soará incesto! — Diz o garoto que é escravo de sangue do próprio pai! — Faço uma piada batendo as mãos na perna. — Te odeio nesse instante. — Zane fica ainda mais furioso e continua andando. Corro para alcançá-lo: — Mas na maioria do tempo, você me adora! — Fico na frente dele, bloqueando a passagem. Zane estreita os olhos me ameaçando. Ergo as mãos em sinal de paz. — Qual é, me dê uma chance! Vim desarmada e você tem uma espingarda. — É um fuzil. — Ele me corrige inconformado. — Desculpe! — Estico a boca sem mostrar os dentes e comprimo os ombros, não entendo nada disso. Zane balança a cabeça e sorri, achando graça, em trégua. Continuamos andando, atravessando a mata, eu não digo nada. Em alguns momentos da subida, olho para trás procurando Devon, mas não o vejo. Para quem estava apressado, ficar para trás é até irônico. Parece que caminhamos uma eternidade. Chegamos à saída do parque, os portões estão no chão e meio soterrados, umas partes erguidas por pedras e uma estátua de uma pantera rugindo em cima de uma estrutura de mármore branco e cimento. Devon está ali, parado de braços cruzados, como quem espera há tempos. Acho que ele não estava para trás e mais uma vez eu o subestimei. — Conseguiu contato? — Zane pergunta ao se aproximar. — Com a unidade do Oeste. — E? — Zane exige, ansioso. — Estão recuando, nos alcançarão em breve. Consigo colocar vocês comigo no comboio que vai para a Torre, mas é provável que ela esteja sob ataque, pode ser perigoso. — Devon se desencosta da estátua e começa a andar. — Perigoso como? — Zane pergunta seguindo-o e eu não fico para trás. — Perdemos comunicação com a Torre. Foi geral. Suas palavras me assustam. É quase como se a guerra tivesse nos alcançado. Meus joelhos querem parar de me obedecer, mas eu os forço. Não posso entrar em pânico, não posso! — Os escudos segurarão o ataque. — Zane observa confiante. Ele está do meu lado e preciso olhar para ele, para ter certeza de que ele não está delirando ou algo do tipo. Como ele pode estar tão calmo?

— Por algumas horas, pelo menos. — Devon dá de ombros sem se virar para nós, os cabelos castanhos claros por cima da gola da jaqueta. — Mas se há Favos há uma Colmeia em algum lugar. São como vespas, enviam zangões para checar. Os Favos são as naves circulares. Até ter visto uma caindo e sem girar, eu não compreendia esse nome, mas faz sentido. As Colmeias são naves maiores e redondas, como uma bola flutuante branca no céu, como reluzem, as vezes é difícild e enxergá-las, mas as naves circulares ficam ao redor, são dezenas. Se desacoplam e saem para a batalha. Nada derruba uma Colmeia, tentaram inclusive armas nucleares, elas nem tremem. Com duas Colmeias, a cidade em que eu morava virou ruínas. — Se explodimos os primeiros enviados, é capaz que esteja tudo bem. — Zane soa otimista. Eu consigo entender seu otimismo e quase acredito nele, afinal, se Zane foi capaz de explodir duas naves com uma única bala, quem sabe tenhamos uma chance de nos defender. Tudo o que precisamos é de mais soldados como Zane, certo? — Você tem razão, deviam ser os primeiros. O problema é que esse ataque não veio do Oeste. A Unidade Oeste está recuando, mas Román garantiu que nenhuma nave ultrapassou sua linha de defesa. — Veio de onde? — Indago. — Ninguém sabe. Nenhuma linha na Fronteira reportou falha de segurança. — Sabotagem? — Meu coração acelera. — A prioridade é defender Torre Bawarrod. — Devon continua. — A vantagem tática é pela manhã, provavelmente quando o ataque será mais intenso. — Então temos que chegar logo aos portões. — Zane deduz. — À propósito, por que você ainda está carregando essa espingarda? — É um fuzil! — Zane resfolega e tira a alça, jogando a arma no chão, reparando que está com ela e é inútil. — Como um general não sabe a diferença básica entre armamentos bélicos? — Essas coisas são brinquedos velhos, consigo armas novas para vocês quando cruzarmos com o comboio. — Devon revira os olhos, colocando as mãos no bolso. — Armas de verdade. — Você vai dar alguma habilidade da Casa Riezdra à Jaylee? — Zane tira a caixa de projéteis do bolso, jogando por cima do ombro. — Finalmente! — Ela já tem, mas é muito cabeça-de-vento para perceber. — Devon desdenha, com um sorriso de deboche. — Eu tenho uma habilidade mágica? Qual? — Eletromagnetismo. Significa que você será capaz de manusear uma ADE[7]. — Que irado! — Zane abre bem os olhos na minha direção. Acho que só eu não entendi o que isso quer dizer!

● ● ● Estou sentada na confortável poltrona azul de um Aeroflex, uma espécie de ônibus-

planador com velocidade ultrassônica, mas a sensação é a de estar em uma sala de cinema. Há uma grande tela ao redor de nós, enegrecida com a proteção para raios UV, projetando os hologramas com os mapas. A rota: Torre de Bawarrod. Atingiremos o destino em sete minutos. — Ainda sinto fome. — Resmungo encarando fundo da lata vazia do que era um patê esquisito misto de carne e peixe. — Agora me conte uma novidade. — Em pé no corredor ao meu lado, Devon está vestindo um traje negro de proteção por cima da farda. Ele olha para trás. — Zane? — Quê? — Zane se interrompe, com uma lata de lentilha na mão, quase inteira. — Seja educado. — Tá, como quiser. — Com um suspiro inconformado, Zane levanta da poltrona que está e me passa a latinha de lentilhas, limpando a boca com as costas mãos. — Nem tava com fome mesmo. — Desculpe! — Peço por pura simpatia e já pego a colher de metal. Encho a boca de lentilhas. — Isso é horrível, mas não consigo parar de comer. Zane não diz nada, apenas estica a sobrancelha direita, analisando minha fome e passa por Devon, dando tapinhas em suas costas. Ele vai para a parte da frente do Aeroflex, onde está Román segurando seu capacete e conversando com outros guardas. Não falei com Román. Quando o vi, apenas acenei com a cabeça e fiquei até feliz que ele estava ocupado com os assuntos da guerra e procurando os registros que pudessem indicar uma falha na segurança, assim não precisamos conversar e nem falar de Nytacha. Ele recebe Zane com um pequeno sorriso e passando o braço pelos ombros de Zane, apresentando-o para os outros guardas, todos armados até os dentes. Literalmente os dentes, haha! Queria saber o tipo de relacionamento e o tipo de vida que Zane tinha com todos eles. Os filhos dos nobres, quero dizer. Como deve ter sido ser o único humano a andar entre eles. Zane não fala muito sobre isso e espero que nem todos tenham sido como Lady Lucretia que mordia suas mãos. Fico imaginando uma versão miniatura daquela jovem histérica dando chiliques ao perder uma partida de xadrez e punindo Zane com seus dentes. Aquela cretina. — Acabou, esfomeada? Use isso. — Devon coloca no meu campo de visão um par de luvas negras e um dispositivo todo negro que parece uma pistola. Solto a lata vazia. Pego os objetos curiosa, separo as luvas e coloco em cima da poltrona ao lado, mais interessada na arma. Há um cano de metal, acredito que seja o canhão e no punhal não tem gatilho. Ué? — Mas é de brinquedo! — Ergo os olhos para Devon, ele quase dá uma risada e fecha a última fivela do trage, no pescoço. — Não tem gatilho! — Você não precisa de gatilho, não vai disparar projéteis como as armas comuns. Vai disparar energia. É por isso que te dei as luvas, ela são os receptores. — Ele me responde. Pego as luvas, são de um material que parece couro, pretas, mas há uma especie de estrutura metálica como se fosse o esqueleto, porém é mole. No lugar onde fica a palma da mão, há uma pedra redonda e cristalina. — Tá, mas como eu atiro? — Você é um desastre. — Devon resfolega e joga-se sentado ao meu lado, a armadura é pesada, afunda a poltrona. Resolvo não retrucar dessa vez. Devon segura minha mão, abrindo a palma, passando os

dois dedos como se fizesse massagem, um toque quente e firme. Sinto uma espécie de choque, quando como estamos com um membro dormente, tipo a perna, e resolvemos começar a andar liberando a circulação, chega a doer e mal conseguimos por os pés no chão. — A energia vai surgir na palma da sua mão e expandir para as pontas dos dedos, mas se você permitir, vai desperdiçá-la. Precisa contê-la na palma, entende? — Devon estica meus dedos, deixa minha mão aberta e encaixa a dele sobre a minha. — Desse jeito. Sinto um choque no meu cotovelo que se parece com uma tendinite, subindo para o pulso e que esquenta a palma da minha mão. Ele separa nossas mãos, não muito, o suficiente para ficar há dois dedos de distância da minha, entre elas, uma verdadeira tempestade elétrica, pequenos raios passando de um par o outro como relâmpagos na chuva. É uma sensação estranha de atração que ao mesmo tempo repele, como quando seguramos dois ímas muitos próximos e eles deslizam antes de se grudarem. É uma conexão única. — Isso é incrível — Fico maravilhada e ao mesmo tempo empolgada. — É um grande poder, realmente. Use-o com sabedoria. — Ele fecha a mão, cessando a tempestade e pigarreia, erguendo as duas sobrancelhas. Eu nunca o vi fazer isso e não sei o que significa. De repente, os paineis do Aeroflex ficam vermelhos, piscando. — Missil localizado. Preparar para o impacto em dois minutos. Impacto?! As telas exibem um relógio em contagem regressiva. — O que é isso? — Devon fica em pé e rapidamente vai até Román, colocando a mão em seu ombro, mas nem ele parece ter uma resposta. Da cabine do pitolo, sai um dos guardas. — O que houve? — Eu não sei, senhor, fui tomar um café e tudo parou! — O guarda responde. — Hackearam o piloto automático. — Román deduz. — Abram as escotilhas de saída! — Não consigo! — Um dos guardas já está com a mão na alavanca de emergência, mas parece travada. Com medo, coloco as luvas e me ajoelho na poltrona, observando. Um guarda estica a arma para atirar contra a escotilha. Todos gritam apra ele não atirar. — Se fizer isso vai explodir a todos nós, controle-se! — Román segura em sua arma e abaixa o cano. — Impacto em um minuto. — Preparar para impacto! — Devon anuncia e coloca o capacete na cabeça, dando um tapinha, como se quisesse encaixar. Os guardas fazem o mesmo o que me dá a impressão que eu deveria vestir uma dessas agora! — Jaylee! — Zane me alcança e me puxa, fazendo eu sair da poltrona. — Agrupem-se! — Román dá a ordem. Os guardas se juntam em círculo ao nosso redor. Eu já nao sei quem é mais quem, as armaduras são todas iguais, mas percebo que Devon está sem luvas e que um deles é uma mulher, de armadura com seios. — 10 segundos. — O piloto automático hackeado anuncia. — Nove, oito, sete… Seguro no braço de Zane amedrontada, ele olha para mim em seriedade e eu começo a ficar ofegante em pânico. Vejo Zane fazer que “não” com a cabeça, como se pedisse para eu não desmaiar, mas não sei se aguento ficar em pé.

— Escudos ao meu sinal! — Devon grita. — Seis, cinco, quatro... Diante do comando, os guardas erguem seus braços esquerdos, noto que na armadura há um um disco preto como um frisbee, só que bem pequeno. — Três, dois… — Agora! — Devon dá o sinal. É rápido. O míssil nos atinge com um impacto ressonante, sinto um tranco e abraço Zane, aterrorizada. O Aeroflex pega fogo imediato. É possível ver cada pedacinho deteriorando-se ao redor, menos nós. Um círculo nos protege no segundo em que o míssil atinge, brilhando em diversas camadas, uma dentro da outra. A primeira quebra, depois a segunda, a terceira, a quarta, quando a quinta some, caímos no asfalto, como se tivéssemos apenas pulando do Aeroflex com ele parado. O impacto em meus joelhos é mínimo. Os guardas levantam e entram em formação de batalha, erguendo suas armas, ajoelhados, nos cercando. Feixes de luz branca nos iluminam. Estamos cercados de naves circulares, apontando seus canhões para nós. Queria ter um escudo de Soretrat agora.

CAPÍTULO 23

Planeta mutante A sensação é de que esse é o fim da minha vida. Os segundos se alongam e só consigo escutar as batidas do meu coração. Olho para Zane, ele está sério e com uma calma que eu não tenho. Seguro em seu rosto e o puxo, fazendo-o curvar. Beijo sua boca e fecho os olhos. Os Anjos disparam feixes de luzes em nós. Escuto os barulhos dos disparos. — Hm? O que você está pensando? — Zane pergunta de lábios colados com os meus. Abro os olhos assustada e o solto. — Ah! — Estou viva? Confiro rapidamente o que está acontecendo, há um domo ao redor de nós, brilhante e translúcido, segurando os feixes de luz. Noto que o soldado de armadura feminina está com as mãos erguidas, uma Soretrat. — Pensei que íamos morrer. — Obrigado. — Zane franze a testa, tentando compreender o que houve. — Por querer morrer me beijando, eu acho. — Não foi isso! — Minhas bochechas pegam fogo. Zane responde alguma coisa, rindo, mas não escuto, Román grita por cima dele: — Granaaaaaadas! Os guardas retiram dispositivos cilíndricos de seus antebraços, acoplados nas armaduras. Eles clicam a extremidade de cima com os polegares, como se fosse uma caneta e os dispositivos brilham azuis. O escudo baixa. — Agora! — Román grita. Há explosões para ambos os lados, com as granadas explodindo em círculo. As naves se dispersam, voando de forma aleatória quase que assustadas, mas sem se bater. Uma delas é atingida e explode a lateral, perdendo o controle e se chocando com o chão, explodindo por inteiro. — Vocês dois, comigo. — Devon segura na minha nuca e na de Zane, nos tirando com ele do meio da batalha. Saímos da estrada, usando uma formação de pedras como esconderijo e proteção. Os guardas se separam em dois grupos pequenos de seis homens, correndo e ganhando distância grande entre eles, o traje que os vampiros usam fazem com que eles possam se mover muito rapidamente, bem mais depressa que humanos. As naves se reagrupam, mas agora, estão separadas também, seguindo-os. Que esquisito esses alienígenas! Eles se movem como se conversassem por telepatia, mas sempre por um padrão. Realmente como vespas! Escuto explosões e me encolho. — Procurem abrigo e sigam para o leste ao amanhecer. — Devon ordena, tirando um canivete da bota e passando para Zane. Ele aperta um dispositivo na lateral do joelho. A sola do traje acende numa luz azul clara, ele se impulsiona nas pedras e salta, metros de distância, afastando-se de nós.

— Detesto quando ele faz isso! — Zane reclama, guardando o canivete no bolso frontal da jaqueta e se ergue pelas pedras para observar a batalha. — Sair sem te dar chance de responder? — Deixar-me para trás. — Responde chateado. — Eles ficam com toda a diversão. — Ele valoriza sua vida. — Sentencio. Se tem uma coisa da qual posso ter certeza sobre Devon é isso: mesmo que pareça frio e se comporte como um sociopata arrogante, ele é um homem de coração quente, com fortes sentimentos. Aproximo-me de Zane, olho para a batalha, que se afasta de nós. — E agora o que faremos? — Procuramos abrigo e vamos para o leste ao amanhecer. Ele nos encontrará uma vez que essa batalha terminar. — Zane se afasta das pedras continua se afastando da estrada, indo em direção aos prédios em ruínas mais proximos. Eu o sigo. ● ● ● A cidade que um dia existiu deve ter sido uma metrópole, mas agora está como se apenas fantasmas vivessem nela. É uma imagem de destruição e de vazio que apenas a guerra é capaz de proporcionar, ainda assim, é fascinante. As ruas asfaltadas estão perdendo espaço para a natureza, pequenos arbustos começam a quebrá-los. Os prédios e casas estão como se um furacão tivesse passado, a maioria se tornou escombros sem forma, mas um ou outro ainda lembra as formas do mundo em que um dia vivi. Está escuro, mas com a visão aguçada pela Relação-Sanguínea, enxergo como se houvesse penumbra. O silêncio de nossos passos me incomoda. De repente, escuto um som: — Uhh-uhhh. — O que foi isso? — Agarro no braço de Zane, amedrontada. — Coruja. — Zane me olha rindo e passa o braço pelos meus ombros. — Você não vai gritar agudo se encontrar uma barata, vai? — Talvez eu grite. — Confesso rindo, abraçando-o. — Ali. — Zane aponta para um dos prédios que podemos ver. As janelas não são muito grandes e parece um dos prédios mais inteiros da redondeza, mesmo assim, está caindo aos pedaços. — Parece um bom lugar e não precisamos nos afastar muito da estrada. — É uma boa escolha. — Concordo. — Acha que tem uma cama? — Pouco provável, estamos próximos da Torre Bawarrod e a maioria dos lugares por aqui já foram saqueados pelos vendedores ambulantes. — Hm, que droga. Ter que dormir sobre pedras novamente não era bem como eu esperava passar essa noite. — Reclamo enchendo as bochechas de ar. — Desculpe, é o melhor que consigo fazer para hoje. — Zane dá de ombros. — Não é isso. Gostaria de saber que todos estão bem. — Suspiro. — Eles estão seguros. — Zane responde com convicção e sinto um pouco de inveja da certeza que ele tem. — Você verá. Chegamos na entrada do prédio e fica claro que é o prédio mais bem conservado dos arredores. As escadas de emergência estão inteiras e subimos por elas. Zane checa todos os

andares procurando um de melhor condição. Eu fico esperando enquanto ele segura nas alças da janela e chacoalha, destravando-a. Ele ergue o vidro. — Se fosse um Apocalipse Zumbi, você seria o sobrevivente número um. — Elogio com um sorriso. — Se fosse um Apocalipse Zumbi eu não teria como destravar a tranca com o poder da mente. — Zane retribui meu sorriso, enquanto pisca um olho, brincando e ao mesmo tempo, falando sério. — O lado positivo desse ser um Apocalipse Alien-Vampiro, então! — Dou risada. — As damas primeiro. — Zane aponta a janela aberta para mim. Seguro-me na parede, passando as pernas primeiro. Assim que entro, percebo porque Zane escolheu esse dentre tantos: uma das paredes tombou, criando uma estrutura lisa no chão, perfeita para dormir. — Sensacional! — Fico maravilhada e deito esticando as costas no pedaço quadrado e grande de parede, está gelado, mas não me incomoda. Meus músculos estão doloridos e tudo o que eu quero é dormir um pouco. Coloco os braços para cima. — É perfeito! — Não, não é, mas o melhor que temos. — Zane passa para dentro do quarto e olha para o horizonte, analisando a noite. — Essa batalha vai durar muito tempo. — Ele fecha o vidro e se deita do meu lado, fitando o teto, ele boceja. — Descanse um pouco, quando amanhecer, sairemos. — Não sei se consigo dormir com tanta fome. — Faço biquinho, virando a cabeça na direção de Zane, ele se ajeita, ficando de lado, olhando para mim. — Devíamos ter caçado aquela coruja. — Podemos procurar umas baratas! — Que nojo! — Abro a boca pondo a língua para fora. Zane ri, divertindo-se com meu desespero. — Acha que elas são gostosas cruas? — Para você considerar comer uma barata, deve estar mesmo faminta. — Estou! — Eu o fito. No escuro, seus olhos azuis ficam quase negros com as pupilas dilatadas. — A fome é tanta que eu comeria os meus próprios dedos. — Ugh. — Ele comenta enojado da ideia. — Quer beber meu sangue? — Posso fazer isso? Quer dizer, vai matar fome? — Eu estava brincando. — Zane se senta, rindo. Eu sento também, de frente para ele. — Vou atrás da coruja para você. — Não. — Seguro no braço dele com força, impedindo-o de se levantar. — Não me deixa aqui sozinha com os Anjos lá fora, por favor. — Calma Jay, você está segura. — Zane me mostra um sorriso amável e eu o solto, concordando. — Não demoro. Não digo nada. Zane abre a janela e sai, me deixando sozinha. Vou para a janela observá-lo descer as escadas de metal e sumir por entre os escombros, atrás da coruja. Eu fico sozinha e com medo, a escuridão é grandiosa e o vento assobia por entre as paredes. Ele não me abandonaria, certo? Enquanto espero, meus olhos ficam cansados. Acabo pegando no sono. ● ● ●

— Ei, Jay! Você não me fez ir atrás de uma coruja a toa, certo? — A voz de Zane me desperta. Eu dou um sorriso e abro os olhos, mas estou sozinha. Dormi encostada na janela. — Zane? — Olho ao redor, procurando Zane. Estava sonhando? Fico em pé e olho pela janela, colocando metade do corpo para fora, procurando-o. — Zane! — Grito. Minha voz ecoa sozinha, sinto como se eu fosse muda. Zane não me abandonaria e isso é uma certeza. Por acaso ele caiu e se machucou? Ou talvez os aliens o tenham alcançado. Todas as hipóteses me desesperam e meu coração fica esmagado de solidão. E se aconteceu alguma coisa? — Zane! — Berro com todo o meu pulmão. — O que é? — A voz dele vem de cima, das escadas de metais. Ergo a cabeça e o encontro olhando para mim. — Graças a Deus! — Resfolego com a mão no peito, feliz em saber que ele está bem e que não fui abandonada sozinha sem água e comida. — O que você está fazendo aí em cima. — Tentando acender uma fogueira. — Você pegou a coruja? — Saio pela janela e subo as escadas, em direção ao último andar. — Falei com você, mas acho que estava muito cansada. — Achei que estava sonhando. — Chego no último andar e a coruja já está depenada e sem sangue, amarrada de cabeça para baixo na grade com um pedaço de pano preto que parece novo e limpo, acho que ele rasgou a manga da camiseta. — Não é um sonho. Venha me ajudar. — Zane está ajoelhado com dois gravetos na mão, a fogueira é feita de pedaços encontrados de madeira. — Não consigo fazer isso funcionar. — Eu nunca acendi uma fogueira com gravetos. Quando acampava com meu pai, levávamos um fogão à gás. — Não foi o que eu quis dizer. — Zane ri e aponta minha mão, com a luva e os receptores. — Você pode usar seus poderes para acender. Raios elétricos costumam colocar fogo em florestas. — Posso tentar. — Dou de ombros e estico a mão em direção à fogueira. Zane está bem na minha frente. — Melhor você sair daí, não sei o que pode acontecer. Ele concorda se levantando e vindo para o meu lado. Respiro fundo, me concentrando e tentando lembrar como fazer para os raios surgirem na palma da minha mão. Sinto uma dormência na mão e a luva que estou usando se acende, brilhando, diversos raios passando pelos condutores elétricos de metal. Disparo uma rajada branca de energia em cima da fogueira e ela explode, virando cinzas por completo. Arregalo os olhos assustada. — Ah, bem. Melhor eu pegar mais alguma coisa para acender. — Zane desce a escada. — Desculpe! — Peço envergonhada, mas olho para minha mão. É realmente um grande poder. Não evito sorrir em vitória. ● ● ● Preciso de três tentativas até conseguir controlar a energia, mas a ideia não dá certo, o

fogo não surge. Voltamos a esfregar gravetos até acender uma fogueira, o fogo crepitante causa uma espécie de conforto térmico contra a noite gélida. Espetamos a coruja em um pedaço circular de metal e assamos. Demora bastante, o cheiro atiçando cada vez mais a minha fome, meu estômago chega a doer. Quando fica pronta, eu como a maior parte, com uma fome intensa. — Pode imaginar ser um vampiro e perder as coisas mais bonitas do planeta? — Zane pergunta, enquanto eu lambo os dedos, desejando que mais uma coruja aparecesse, eu comeria umas vinte! Olho para ele, sentado na escada, com os pés balançando para fora e os braços apoiado na grade. Seu rosto é tocado pela luz do nascer do sol, os olhos ficam como se fossem de vidro. — Você tem medo de se tornar um vampiro. — Deduzo cruzando os braços na grade, apoiando o queixo. — A ideia de perder a liberdade durante o dia é o que me apavora. Talvez esteja mais perto para acontecer do que eu queria. — Você tem bebido bastante sangue do Imperador para fortalecer Devon. — Comento com um suspiro e viro a cabeça para ele, analisando-o. — Agora que as transformações começaram, tem alguma forma de interrompê-las? — Eu poderia morrer. — Zane comprime os lábios e suas sobrancelhas se mexem bem pouquinho, conforme ele contempla o problema. É a resposta mais óbvia, acredito. A simplicidade na questão e na sua voz me deixa entristecida e um pouco desesperada, não acho que ele está brincando nesse instante. Fico parada olhando para ele, Zane vira para mim, com um sorriso e pisca, daquele jeito que eu quase odeio, o tal sorriso-disfarce. — Não se preocupe, levo você para Torre Bawarrod primeiro. — Idiota! — Brincando, dou um soco no ombro dele. — Você fala essas coisas me preocupa, como aquela vez que você tomou meio litro de vermute e o Imperador mandou chicotear você em praça pública. Ele podia ter te matado, sabia? — Você se preocupa à toa. — Ele me dá o olhar do “eu não me importo”. — Você é tão irresponsável! — Não sou irresponsável. — Vive uma espécie de carpediem insano, faz as coisas sem pensar. Isso é irresponsabilidade. Tem pessoas que gostam de você e que sofreriam caso você se machucasse, sabia? — Menos do que você imagina, Jay. — Ele desdenha, erguendo uma sobrancelha. — Mais do que você imagina. — Olho para ele revoltada. — Você é incrível, Zane, mas me preocupa quando parece que não pensa no futuro. Zane coloca a mão na minha cabeça com delicadeza única e acaricia minha sobrancelha com o polegar, enquanto deixa um sorriso triste escapar pelo canto da boca. Esse é o sorriso mais sincero que ele tem. — Em dias como esses que vivemos, a incerteza do amanhã é o que possuímos. Prometer um futuro é irreal, o que se pode oferecer é o presente. Posso viver uma vida inteira desse jeito, sobrevivendo dia após dia e um dia de cada vez. — Soa tão sem esperanças que me corroi a alma. — As lágrimas nascem nos meus olhos. — Você não merece isso, merece um futuro bom. Queria poder te oferecer um futuro

bonito e brilhante, Zane. — Ninguém pode. — Ele beija a minha bochecha e segura firme na grade, ficando em pé. — Devíamos ir. É de manhã. Concordo com um aceno de cabeça e fico em pé, batendo a roupa, seco os olhos com a barra da manga da jaqueta. Descemos as escadas de metal e caminhamos por algumas quadras dentro da cidade antes de voltar para a estrada. Não há nenhum vestígio de batalha, é quase como se não tivesse acontecido. A cidade fica para trás de nós. Seguimos em direção à imagem ao longe da Torre Bawarrod, o complexo de prédios distorcidos e tortos. ● ● ● Com o passar das horas, o sol fica muito forte, queimando nossas cabeças. Zane tira a jaqueta e amarra no rosto. Faço a mesma coisa. Evita de queimar nosso cérebro. Ainda assim, desidratamos, sem ter onde conseguir água. O cansaço é tanto que eu duvido que possamos continuar. Quero parar muitas vezes e me entregar ao chão, ficar deitada esperando chover, ou simplesmente morrer. Zane me força toda hora a ficar em pé e eu me esforço para seguir seus comandos, acreditanto que “estamos quase lá”. Até o momento em que sinto dor no abdomem, uma espécie de cãimbra de tanto caminhar e não consigo mais ficar de pé. Zane me carrega passando meu braço por seus ombros e segurando minha cintura, suas costas suadas. Eu fico curvada, com dor, é difícil levantar a perna para andar. Minha mente vacila, apago e acordo diversas vezes, todas parecem ser nos mesmos minutos. ● ● ● Abro os olhos devagar escutando barulho de água e encaro as margens de um rio. Sento, percebendo que não estamos distante de Bawarrod agora. Esse deve ser o rio que podemos ver do lixão, contornando o complexo de prédios. Quantas horas de caminhada até chegarmos às paredes da torre? Queria estar no Aeroflex ultrassônico agora, chegaríamos em segundos. É fim de tarde, a sombra das árvores e a pequena brisa refresca. Ao anoitecer, começará a fazer frio. Fico em pé e sigo para a margem, encontrando as roupas de Zane. Olho para o rio no momento em que Zane emerge da água. Esse era um rio poluído antes da guerra, não deve ser seguro nadar nele! — Zane? O que está fazendo? — Pescando! — Ele vira para mim e sorri, jogando os cabelos para trás, as pontinhas descem pelos ombros. — Dá para acreditar que há peixes na água? — Está limpa? — A informação me surpreende. — Está. — Eu te ajudo. — Abro a jaqueta e jogo no chão, desafivelando o cinto da calça. Sento para puxar a bota e a calça e tiro a regata.

— Não estou usando nenhuma roupa, se quer saber. — Ele provoca, com metade do corpo dentro da água e segurando um pedaço de galho com o canivete amarrado na ponta. — Por quê? Vai me agarrar? — Caio na água com um mergulho e meu corpo inteiro entra em choques, os músculos endurecendo. Tão fria! Emerjo gritando. — Está gelada! — O que você queria? Um sistema de aquecimento? — Zane ri de mim. Junto água nas mãos e dou largos goles. Zane espadana água na minha direção, meu rosto inteiro é atingido. — Fedelho! — Dou um tapa na superfície da água e atiro nele também, rindo. — Tá bem, você venceu. Pare ou vai assustar os peixes. — Ele seca o rosto com a mão, abanando e estende a mão para mim. — Tem pedras no fundo, não vá escorregar. — Não vou escorregar. — Seguro em sua mão, gelada e molhada e caminho com cuidado, tentando enxergar onde estou pisando. Chego do lado dele e encaro seu corpo, as cicatrizes das chicotadas em suas costas sumiram. — Pare de ficar me encarando ou você pode perder sua integridade. — Ele me repreende e fico com as bochechas vermelhas. — Indecente! — Dou um tapa no braço dele. Eu não vou pensar sobre isso, não vou! — Shh. — Zane pede silêncio. Eu me calo e esperamos a superfície do rio ficar mais tenra, a correnteza é bem leve nessa área, por causa das grandes pedras que agem como uma barreira. Enquanto observo o rio e as árvores. Alienígenas restauram a natureza. Talvez nós sejamos mesmo o câncer do planeta, talvez a raça humana não devesse existir. Zane atira o arpão improvisado contra a água com violência. — Acertei. — Comemora. — Não seria diferente, se você pode manipular sua arma com a força da mente, dificilmente erra mesmo. — Dou um tapinha na água. — É um peixe grande? — Vejamos. — Ele puxa o armão, o peixe tremelica na ponta. — Isso é esquisito. Tomo um susto encarando o peixe gordo, as escamas parecem comuns, prateadas, mas ao invés de nadadeiras, o peixe tem braços e pernas como um lagarto, sem boca e sem olhos. — É um peixe mutante? — É, mas mutante por quê? — Tou mais interessada em saber se é seguro comê-lo. — Dou de ombros. — Podemos tentar. — Zane ergue as sobrancelhas impressionado com a minha fome. Ele caminha em direção à margem e eu sigo atrás dele. Zane apoia o arpão no tronco de uma árvore e começa a se vestir. Algo passa por entre meus pés, me assustando. — Ahhh! — Dou um berro. — O quê? — Zane vira para mim colocando a camiseta, as mangas rasgadas, como imaginei. — Assustei com um peixe! — Dou uma risada e vou andando para a margem. Zane veste a jaqueta e senta, calçando as botas. Alguma coisa agarra meu calcanhar e puxa, eu caio no chão. — Zane! Socorro! — Grito, enquanto sou arrastada para trás. Tento me segurar nas pedras, mas minhas mãos escorregam. Zane se levanta e corre na direção do rio, entrando até os joelhos na água. Ele alcança meus braços e me puxa com força, sinto que Zane precisa fazer um grande esforço para me

segurar. De repente, minha perna é solta e com o enorme impulso, caímos os dois na água, eu por cima dele. — O que foi isso? — Ele pergunta. — Alguma coisa segurou o meu pé! — Grito, assustada, sentando por entre suas pernas. Zane olha meus peitos e eu dou um empurrão nele. — Pare com isso! Vamos sair daqui! Ele concorda acenando com a cabeça e se levanta, com as roupas encharcadas e me ajuda a ficar em pé. De repente, ele abre bem os olhos, encarando o rio. — Só pode ser brincadeira! — Comenta exalando ar pela boca. Olho por cima do ombro e encaro um enorme jacaré negro perto da margem, com metade da boca para dentro da água pronto para nos atacar. O que me surpreende em ver é que seu rabo é um conjunto de tentáculos de polvo. Impressão minha, ou estou olhando para um jacaré mutante?

CAPÍTULO 24

O fim do mundo Zane pensa mais rápido do que eu, ele corre para fora da margem e alcança o arpão. O jacaré ataca, vindo em minha direção, abrindo a enorme boca de dentes perigosos, uma mordida mortal. Antes de me atingir, entretanto, o jacaré recebe uma estocada no céu da boca, ficando com as patas dianteiras erguidas. É o suficiente para eu rolar para o lado escapando dele. O galho cede na dentada do jacaré. O dente raspa na mão de Zane abrindo uma ferida comprida e ele se afasta. O jacaré engole o canivete e se prepara para atacar Zane. Alcanço uma pedra e atiro acertando sua cabeça e o animal mutante vira para mim, correndo em minha direção. Grito, tão aterrorizada com o ataque que parece que meu corpo vai explodir de medo. As palmas da minha mão esquentam, ficando dormentes e escuto o barulho de eletricidade, como um curto circuito, o rio vira uma piscina de raios. O jacaré solta um gruninho e tomba do meu lado, levando uma descarga elétrica mortal. Zane se afasta da margem, dando passos para trás e se senta, surpreso e exausto. Minhas energias esgotam, os raios apagam. A superfície da água borbulha e muitos peixes esquisitos com mutações estranhas sobem, boiando. Fico parada em surpresa, encarando o que fui capaz de fazer. — Você é realmente um perigo, Jay. — Zane comenta, com a respiração entrecortada. ● ● ● Estamos subindo um morro tão íngreme que temos que nos agarrar nas raizes das árvores para não cair. Zane está do meu lado e sua mão alcança uma raiz na minha frente. — Isso é péssimo. — Encaro dentada do jacaré está enegrecida e me preocupa. Parece que ao invés de cicatrizar, está em grangrena. Não é estranho? Teoricamente, Zane cicarizaria em minutos por conta da Relação-Sanguínea, mas a mordida parece ter um efeito contrário, como veneno. — Dói? — Não sinto nada. — Ele encara a ferida e abre e fecha a mão, demonstrando. Pega impulso e sobe, soltando a raiz, agarrando a próxima. — Vamos, estamos perto dos portões. Respiro fundo e faço mais força, para cima. Meu pé escorrega e quase caio, mas me seguro nas raizes com força. Olho para baixo e procuro encaixar melhor o coturno num buraco formado por uma raiz. Consigo estabilizar meu equilíbrio e subo. Minhas mãos doem, mas guardei as luvas no bolso da jaqueta, aqueles receptores de metal tornavam tudo mais difícil. — Você não consegue levitar a gente para cima? — Estou exausto. Esgotei todas as minhas energias. Não consigo levitar nem uma folha.

— Zane responde, mais para cima. — Sei o que quer dizer. — Eu também esgotei toda a minha energia e estou com tanta fome, tanta fome, que considero morder a terra e engolí-la. — Achei que teríamos força para sempre. — Bem, até vampiros precisam repor energias, por que não teríamos? — Zane responde com uma pergunta retórica. — Água serviria, mas eu perdi coragem de beber daquele rio. — Eu também. — Concordo, subindo. — Acha que as mutações têm relação com os alienígenas. — Tudo indica que sim. Faz você pensar, não faz? Até o momento eu achava que eles estavam apenas se livrando de nós, poupando os seres vivos e as florestas, mas é como se eles quisessem o nosso planeta para transformar no deles. — Zane responde, alcançando o topo do morro, tenho a última visão dos seus pés. — O que quer que isso queira dizer. — Quer dizer que é o fim do mundo. — Alcanço o topo com as mãos e me puxo ansiosa, para subir. Quando encaro o horizonte, meu coração para de bater. — Não. — Zane se segura em um tronco, exausto e sem esperanças. — Aquilo é o fim do mundo. Era para encontrarmos os arredores da Torre Bawarrod, os portões e as enormes paredes, mas ao invés disso, o complexo de prédios está tomado por chamas gigantescas. Fico sem fôlego acometida pelo desespero. É isso? É o fim? Os alienígenas nos venceram? Será que minha família está morta? Desço o morro correndo. — Jay! — Zane grita, quase sem forças. Eu não paro, vou correndo para alcançar a cidade. Enquanto corro, vejo a torre maior ruir. O barulho da destruição ecoa pelos vales. ● ● ● — Está todo mundo morto? — Seco as lágrimas dos olhos, caminhando para dentro dos portões de Bawarrod. Uma das partes está no chão, destruída, a outra, tombada de lado. Até onde meus olhos podem ver, há corpos incinerados de soldados e de pessoas. Não é possível nos aproximar da cidade, as chamas tomam todo o local fortes, esquentando nossa pele, mas o pátio onde costuma ficar o grande mercado está destruído. — Espero que não. — Zane se aproxima de um soldado morto, o capacete está quebrado e a pele do rosto parece que foi comida. Ele puxa a arma, acopla no pulso esquerdo o bracelete com o disco que serve de escudo. — Evacuariam a cidade, daria tempo. — Você é tão otimista! — As lágrimas não param de cair de mim. — Não é otimismo, sei que haviam módulos de emergência para transportar as pessoas numa possível evacuação. Com certeza escaparam. Será que posso ter esperanças de encontrar minha família? — E para onde foram? — Pergunto com o coração doendo. — Para a Colônia S-03. É a mais próxima, embora não tenha alojamentos suficiente. — Zane se aproxima de outro pedaço de soldado, puxando cilindros, as granadas, de seu traje, guardando nos bolsos da jaqueta.

— Por que você está se armando? — Pergunto inconformada. — Como você pode ficar tão calmo? Zane fica em pé sem me dizer nada, me dando aquele olhar de decepção, como se eu dissesse alguma coisa errada. Cubro o rosto com as mãos, chorando. — Você quer ir para a colônia mais próxima atrás da sua família? — Quero. — Respondo. — Para chegar lá precisamos atravessar as linhas da fronteira ao Sul, sabe-se lá o que podemos encontrar no caminho. Então pegue o máximo de coisas que conseguir carregar, incluindo o que sirva de cobertores, água, comida e, principalmente, armas. Eu vou ver se encontro algum veículo apto a se movimentar e um sinal de rádio para contatar o Refúgio, se tem alguém vivo por lá vai nos ajudar. — Não devíamos procurar por sobreviventes? — Pergunto. — Olhe ao redor, Jay, alguém parece vivo para você? — Zane abre os braços e me irrita que ele tenha coragem de dizer isso. Eu o encaro furiosa. — Tá, procure o que quiser. — Zane revira os olhos e se afasta. — Volte e espere aqui quando terminar. Respiro fundo e olho ao redor. Vou até uma armadura e pego as granadas, não tinham todas, só duas. Guardo no bolso da jaqueta. Vou andando procurando mais coisas, um dos guardas tinha um canivete que guardo. Um pedaço de cortina pode servir para algo e um resto de corda de uma barraca de vendas. Reviro brinquedos, encontro uma faca de cozinha. Andando mais adiante, acho quase inteira uma barraca que vendia bolsas e sacolas. Pego duas inteiras e começo a juntar tudo o que acho que seria útil dos escombros. Como acabaram de abalar a cidade e todo mundo parece ter fugido e abandonado a maior parte das coisas para trás, encontro muitos cadáveres e muitas utilidades, inclusive mudas de roupas. Não consigo ir até a cozinha e nossas lavouras estão em chamas. Enquanto encho sacolas, começo a chorar mais e mais, com a certeza de que é o fim, não restou nada. Retorno para o ponto de encontro, o meio do pátio, coloco as últimas sacolas com as outras que já juntei e me sento sobre elas, chorando. — O que está fazendo, ladra? — Ouço uma voz de mulher, a arma apontada para mim. Ergo a cabeça e uma soldado do exército está na minha frente, encaro seus seios que são do tamanho adequado, a armadura parece se moldar ao corpo de quem veste. Atrás dela, há outros soldados e algumas pessoas. Uma delas, de jeans e jaqueta de couro vermelha eu conheço: Byrn. — Jaylee? Como você sobreviveu? — A soldado ergue a arma e vira para trás. — É uma dos nossos, abaixem as armas, rapazes! Os soldados obedecem. — Jay! — Byrn abre um sorriso e corre até onde estou. — Você está sozinha? — A soldado interroga. Byrn me abraça forte e eu choro, agarrada em seus ombros largos. — Não, ela está comigo, Lucretia. — Ouço a voz de Zane e olho para o lado, vendo-o em pé, segurando as armas que pegou. — Oh, pelos Céus! — A soldado gira e vai andando até ele com passos rápidos. — Você sabe há quantas horas estamos te procurando, seu idiota? — Explode um tapa no rosto dele. — Relaxa, só sumi por dois dias, gata! Não precisa morrer de saudades.

— Não estava com saudades, cretino. — Lady Lucretia coloca uma mão na cintura, eu encaro suas costas pequenas. Eu me afasto de Byrn e dou um sorriso, ficando em pé. — Mas meu tio talvez esteja chorando sua ausência como um bebê. — Ugh, me poupe. Por que vocês não estão com os outros? — Você sumiu, acharam que você tinha desertado e antes que te matassem, ofereci meu regimento para ir atrás de você. No meio do caminho Riezdra informou que estávamos sob ataque, mas quando voltamos, a cidade já estava em ruínas! Ei, o que houve com a sua mão? — Um jacaré mutante. — Zane revira os olhos e passa por ela. — O que diabos é um jacaré mutante? — Você pode analisar o cadáver dele nas margens do rio. — Zane explica. — Não consegui contatar o Refúgio. Você sabe de alguma coisa? — Perdemos comunicação em todas as redes, acho que foram derrubadas. Mas estou com um Aeroflex operacional para sairmos daqui ao amanhecer, se quiser carona. — Nada mal. — Zane se aproxima de mim e repara nas sacolas que estão ao lado. — Eu disse para pegar apenas o que você pudesse carregar. — Não conseguia me decidir. — Dou de ombros. Olho para Lady Lucretia conversando com os outros soldados e me inclino, para sussurrar. — Ela está do nosso lado? — Se você se refere ao Refúgio sim, mas eu tomaria cuidado com ela se fosse você. — Ele explica. De repente, percebo que quando Lucretia enviou Byrn para desviar meu caminho, não foi por estar do lado do Imperador como imaginei. Quando Devon e Lucretia se embedaram para desmoralizar o Imperador? Bem, entendi errado. Era tudo um grande teatro. Eu fui enganada e isso significa que todos os nobres foram enganados. É provável que mesmo em S03, o teatro continue até que Bawarrod seja derrubado. — Por que tenho a sensação de que vocês são mais íntimos do que parece? — Ex-namorada, um pé no saco. — Zane pisca o olho, sorrindo. — Tem alguém com quem você ainda não transou em Bawarrod? — Cruzo os braços irritada. — Você. — Ele ri e olha para as sacolas. — Pegue o essencial, vamos dar o fora daqui. Zane se afasta de mim e Lady Lucretia o intercepta na metade do caminho, soltando o capacete, seus cabelos caem sedosos e lisos por cima dos ombros e seus olhos brilhantes não são de uma pessoa ruim. Ela estende a mão: — Dê aqui. — Sério? — Ele parece indisposto. — Pode ser venenoso, tem uma aparência horrível. — Você sempre procurando desculpas para morder a minha mão, Lucretia. — Zane dá uma piscada e estende a mão direita para ela, exibindo a palma. — E você sempre me dando uma razão para mordê-la. — Lucretia sorri satisfeita, com os caninos para fora, e encrava os dentes na palma de Zane. Ele solta um palavrão e faz cara de dor. Eu prefiro não assistir. Esvazio uma sacola para encher com coisas úteis. Byrn se une a mim, para fazer o mesmo. — Por favor, não me diga que você tem Relação-Sanguínea com Lady Lucretia. — Peço

em súplica. — Claro que tenho, ela é perfeita e me adora. — Byrn sorri alegremente. Estico as sobrancelhas discordando. — Não fique assim, Lady Lucretia me disse que provavelmente a cidade foi evacuada para a Colônia S-03, vamos manter as esperanças. Tá bem? Lanço um sorriso pequeno para Byrn. Espero que estejamos certos e que nada tenha acontecido aos módulos de resgate no caminho até a Colônia. ● ● ● — O que há de errado com ela? — Lady Lucretia envia-me um olhar de puro nojo ao me ver comendo a quinta latinha de patê que havia no estoque do Aeroflex. Ela está elegantemente sentada sobre uma pedra, com as pernas cruzadas. Em suas delicadas mãos uma latinha de feijão, que ela nunca enche a colher e come bem devagar. É sem dúvida a mulher mais linda da nobreza e sua pele pálida de vampiro é assustadoramente sem defeitos. Eu fico intimidada com sua presença, o sangue da Casa Bawarrod é mesmo muito forte. Montamos um acampamento para dormir, já que o veículo está sem energia e precisa recarregar, o que só será possível com a luz solar. Não temos uma fogueira, mas as chamas que destroem Bawarrod esquenta nossas costas. — Relação-Sanguínea. — Zane explica, mastigando lentilha. — Hm? Em mim deu dor de cabeça. — Byrn dá de ombros, ela está comendo depressa também e parece cansada. — O sangue de Bawarrod trabalha mais no cérebro, por isso. — Lucretia explica com um sorriso divertido, seus olhos brilhando como estrelas. — Acho que o sangue de Riezdra ataca o estômago. — Faz sentido. — Confesso com a boca cheia. — Eu sinto cada vez mais fome, é terrível, vai ser sempre assim? — Como posso saber? — Lucretia dá de ombros. — Vou ver se Lyvia conseguiu contato com a Colônia. — Ela fica em pé e caminha até onde estou, me estendendo a latinha de feijões, encaro suas unhas compridas e feitas, pura perfeição a define. — Tome. Eu como pouco mesmo. — Hm, obrigada. — Aceito sua latinha. Eu tenho essa grande impressão de que não posso confiar em Lucretia e tanto Drarynina e Zane já disseram isso para mim, mas ela é tão boa e gentil que me deixa em dúvida e com vontade de querer ser amiga dela para descobrir. Lady Lucretia se afasta indo até onde os soldados estão, são quatro, um deles mulher, uma Soretrat, claro. O regimento dela é pequeno, mas parece ser eficaz. Encaro as mãos de Zane por um tempo, checando se está tudo bem. Depois que Lucretia sugou o sangue, ela cuspiu, mas a ferida cicatrizou logo após isso. O que houve com os animais do nosso planeta? Será que poderemos reconstruir um mundo após isso? É como se a natureza tivesse se voltado contra nós. — Eu vou dormir. — Zane passa por mim me dando sua latinha pela metade e anda em direção ao aeroflex, espreguiçando.

Byrn o segue com os olhos, interessada. — Não faça isso. — Reviro os olhos. — Achei que o seu negócio era com vampiros. — Pelo o que Lady Lucretia disse, ele vai ser um vampiro em breve. — Byrn dá de ombros, divertindo-se. — Ele está quase completando a transformação. — Ela diz muitas coisas a você? — Pergunto comendo feijão e segurando nos joelhos a latinha de lentilha para daqui a pouco. — Conversamos muito. Ela é a futura Rainha e vive isolada por isso. Não tem amigos e se sente sozinha. Sempre que pode, dá um jeito de escapar dos portões de Bawarrod. — Byrn explica. Eu reparei que em sua perna há um coldre e uma pistola sem gatilho. — Quando eu for vampira, seremos amigas para sempre. — Você acha que ela vai casar com Riezdra? — Pergunto, olhando para Byrn. — Talvez, mas pode ser aquele Mordecai fedido ou Román Rynbelech. — Byrn dá de ombros. — Não é ela que decide. — Se ela decidisse, quem seria? — Nenhum dos três. — E com o olhar, Byrn aponta para o Aeroflex. Ah, não acredito! — Zane? — Pergunto surpresa. — Mas ele é um escravo! — Ao se tornar um vampiro, Zane entra na linha de sucessão da Casa Riezdra e será um Bawarrod por Relação-Sanguínea. Você sabe que nossas marcas de escravidão somem quando nos tornamos vampiros? Viramos da família, podemos até ter escravos! — Não acho que Zane tem interesse em ser um Bawarrod. Ou vampiro. Nem mesmo de se casar com Lady Lucretia. — Foi o que ela disse! — Byrn balança a cabeça concordando, abrindo os olhos surpresa por eu saber. — Que teria de matar um dos dois para impedir a transformação. Você sabe, tem essa música que ela canta quando toca harpa que... — Oh. — Percebo agora, enchendo a colher de lentilhas. — Eu já escutei essa música uma vez.

CAPÍTULO 25

Tempos de desesperança A Fronteira é um gigantesco muro de energia que rodeia Bawarrod a apenas cinquenta quilômetros de distancia dos muros da cidade. Parece uma distância grande, mas para naves espaciais devem ser como centímetros. Levamos alguns minutos para atravessar em velocidade ultrassônica e uma vez que ultrapassamos o perímetro de segurança, fico com a sensação de que a qualquer momento posso ser atacada por alienígenas. Pelo que entendi a Colônia S-03 fica ao sul. Ao todo são quinze colônias. A Colônia NF22, fica ao norte. O Grande Império Bawarrod domina toda a área que um dia foi chamada de Estados Unidos, Canadá, Alaska e Groelândia. Os outros paises e continentes ou estão inteiramente dominados por alienígenas ou estão destruídos. Não há nenhum lugar que esteja dominado por humanos até onde se tem conhecimento. Como a Torre Bawarrod fica onde um dia foi Salt Lake City, nossa próxima parada é perto de Prescott, Arizona. Mas nada sobrou da cidade, a Colônia S-03 foi literalmente construída por cima. É difícil de imaginar que a raça humana, com mais de dez bilhões de indivíduos, tenha sido dizimada da Terra, mas foi exatamente o que aconteceu. Hoje a população conhecida é de cerca de duzentos milhões. Há um vampiro para cada duzentos mil habitantes. É vampiro para caramba! Mesmo assim, somos ao todo em menor número que os Alienígenas. Não caberia todo mundo no planeta, mesmo. ● ● ● É meio dia e os conectores de energiam se soltam do painel. O Aeroflex para de funcionar. Enquanto os vampiros se fecham dentro do veículo para proteção, Zane e eu subimos no topo do Aeroflex para consertar. — Se Lyek tivesse aqui, saberia o que fazer. — Comento encarando o emaranhado de fios multicores em baixo dos paineis de captação solar. — Nenhum daqueles vampiros lá em baixo pode consertar isso? — Pode, mas para ser sincero, me ofereci para o serviço só para sair aqui fora um pouco. — Zane me mostra um sorriso bonitinho, o vento batendo em seus cabelos de anjo barroco. Ele se abaixa, deitando. — Segure o painel. — Pensei que você estava feliz por reencontrar-se com Lady Lucretia. — Ergo as duas sobrancelhas, coloco as mãos no painel e puxo para cima, abrindo um vão. — Você entendeu errado, para variar. — Zane desaparece para baixo do painel, vejo

apenas sua perna dobrada para fora. — Esclareça, então. — Dou de ombros, forçando o painel para cima. É leve, mas os mússculos do meu antebraço recebem um pouco de pressão. — Vocês já foram namorados, possuem fortes sentimentos um pelo outro e ela prefere se casar com você. — Quem disse isso a você? — A voz de Zane soa por debaixo do painel. — Byrn. — Bem, não sou mais o mesmo garoto que era antes da guerra. — Não posso ter uma visão de seu rosto, sei que Zane sofreu muito durante a guerra e acho que esse tipo de sofrimento realmente muda os sentimentos das pessoas, mas ele não me convence nem um pouco. Escuto barulhos da manutenção, não sei o que ele está fazendo. — Além do mais, você já me conhece o suficiente para saber que a última opção da minha vida é me tornar um vampiro da Casa Bawarrod! — Eu achava que sim, mas fiquei sabendo daquela música que Lady Lucretia canta quando toca harpa. Parece que vocês têm uma promessa dramática e apaixonada. — Ai droga! — Zane reclama. Aposto que ele machucou o dedo, típica distração que recebo quando estou certa, mas a pessoa não quer admitir. Ele se ergue, com o dedo anelar na boca e dá dois tapinhas no painel. Eu solto os captadores no lugar e cruzo os braços encarandoo, esperando uma resposta. Zane tira o dedo da boca e olha para mim, com um sorriso de canto. — Por acaso é ciúme? — Não, Zane. — Desvio os olhos intimidada pelo confronto. — É uma promessa ou não? — Não da forma como você está pensando. — Ele segura na minha cintura e me puxa em sua direção, encostando as costas no estabilizador vertical do Aeroflex. Coloco as mãos em seu corpo para impedir o abraço. — É uma promessa sobre respeito e amizade. — Ele beija a minha bochecha com delicadeza e eu o empurro, — Não sei, Zane. — Arfo. Nem consigo olhar em seus olhos nesse instante, evitando contato. — Você mistura as coisas quando o assunto é amor e amizade e não acho que Lady Lucretia pensa o mesmo que você. — Olhe para mim. Não faça isso, Jay. — Zane segura no meu rosto com as duas mãos e força para que eu o olhe. No momento que encaro seus olhos azuis, meus joelhos falseiam. Zane exerce enorme poder sobre mim, não é paixão e nem amor, é apenas que o sangue de Bawarrod faz isso com as pessoas: essa dominação mental. — É sério. — Essa guerra já arrancou muito de todos nós e não estou disposta a perder você também. Prefiro você vampiro e casado com Lady Lucretia do que morto. — Shh, não diga mais nada por enquanto. Só me escute. — Ele sussurra e encosta a testa dele na minha e eu fico quieta, com um bico de indisposição. — Provavelmente a transformação finalizará da próxima vez que eu beber sangue de Bawarrod. Não há garantia que eu vá sobreviver ao final do processo, mas se eu sobreviver, ninguém me reconhecerá porque terei perdido toda a humanidade da minha alma. Além disso, não vou me casar com Lucretia, o Imperador não permitira, percebe? Por favor, compreenda que não quero viver uma eternidade preso através de laços de sangue com aquele homem. Prefiro a morte. Por que é tão difícil respeitar minha decisão? — Porque é muito covarde da sua parte jogar essa responsabilidade na mão de alguém

que se importa com você, Zane! — Minha voz soa firme, estou convicta a respeito disso. — Desafio você a ter coragem de esfaquear o seu próprio coração se quer mesmo morrer caso se transforme em um vampiro. — Não há uma razão que me impeça de fazer isso. — Há uma razão sim, Zane! Lady Lucretia é uma boa razão e eu vi como seus olhos brilham ao olhar um para o outro. Não ignore! Pense a respeito, a resposta está aqui… — Com o indicador, dou batidinhas em seu coração. — Dentro de você. Zane resfolega. Eu troco um selinho com ele e me afasto, descendo pela escada lateral do Aeroflex. Zane ainda fica um tempo sozinho ponderando tudo o que eu disse. Posso vê-lo em cima do Aeroflex de costas para mim, uma mão na cintura e a outra na testa. Fico na frente da escotilha esperando-o e quando desce, Zane nem me olha, aborrecido comigo, pelo simples fato de que eu tenho razão! Vou para o meio do Aeroflex, ele se senta em uma poltrona mais à frente e fecha a escotilha. As telas do Aeroflex ficam imediatamente negras com a proteção UV e o veículo torna a ligar os motores. O mapa indica para onde estamos indo, aringiremos o destino em cinco horas. Um sinal de emergência volta a ser transmitido. Lady Lucretia puxa o capacete e respira como se tivesse sufocando. Observo a princesa com curiosidade. Acho que alguém tem pavor da luz do sol. Pelo que me parece nem todos os vampiros se regeneram como Riezdra. — Obrigada. — Ela fala baixinho e me envia um quase sorriso, desses que é também um comprimir de boca e que indica que escutou minha conversa com Zane com seus ouvidos de vampiro. Aceno que sim com a cabeça e observo enquanto ela passa pelo corredor segurando o capacete até a última poltrona e vejo Byrn dormindo à sono solto, encolhida com frio. Lady Lucretia solta o capacete em uma poltrona ao lado, pega um cobertor cinzento do compartimento de carga e joga por cima de Byrn, ela acaricia o cabelo da minha amiga antes de se sentar em uma poltrona para descansar. A princesa é uma boa pessoa. Simpatizo tanto com ela que meu coração comprime de saber que por ter um coração tão amável, ela terá que esfaquear o homem que ama, porque ele é egoísta demais para se sacrificar por ela. Ajeito a minha poltrona esticando as pernas e viro a cabeça, acertando uma boa posição para dormir, mas para quem ficou dias dormindo em cima de pedras, as poltronas são de algodão. ● ● ● Acordo assustada com os apitos do alerta vermelho do Aeroflex. Alguma coisa vindo em nossa direção, mas não parece querer nos atingir. Na tela, acompanho um missil se explodir contra o chão bem a nossa frente. O Aeroflex perde o controle, rodopiando e perdendo uma das asas. O acidente é inevitável. Fico de cabeça para baixo presa pelo cinto de segurança. O Aeroflex tombou ao contrário. Vejo lá na frente, Zane soltar o cinto e cair no chão, gritando de dor. — Zane? Ouvi você quebrar uma costela? — Escuto Lady Lucretia. Estico a cabeça para o outro lado e a vejo pendurada, com uma faca na mão para cortar

o cinto. — Não vou morrer por isso. — Zane responde em dor, levantando-se com dificuldade. — Socorro! — Byrn reclama mais ao fundo do Aeroflex. — Meu cinto está preso. Zane checa se Lyvia está viva e alcança um capacete. Veste nela, cobrindo-a. Do lado de fora, escutamos explosões. A terra treme. — Acho que são mais Favos! — Com agilidade de uma ginasta, Lady Lucretia corta o cinto e desce da poltrona. Mais um soldado se solta do cinto, lá na frente. — Você está bem? — Zane me pergunta, se aproximando e estende a mão. — Estou. — Seguro em sua mão e solto o cinto. Zane me segura no tranco e me coloca em pé com um impacto bem menor, gemendo de dor, quase sem equilíbrio. Lady Lucretia ajuda Byrn a descer. — Obrigada. — Byrn se abaixa e pega um capacete para a princesa. — Oh, não, está quebrado. — Droga! — Lady Lucretia reclama e aponta para trás. — Olhe ali, deve ter outros. — Aqui. — Eu acho um capacete inteiro entre meus pés. Zane caminha até a escotilha enquanto ela se veste. Procuro minha sacola de coisas úteis pelas poltronas. Outra bomba explode perto e Zane chuta com força a escotilha, reclamando mais de dor. Um soldado de dred comprido se une a ele, chutando junto e a escotilha abre um pouco, deixando a luz do sol entrar. Ele se afasta cobrindo o rosto e coloca o capacete. Os outros não sobreviveram à queda. O soldado levanta Lyvia do chão, segurando-a. Zane se abaixa e passa para fora da escotilha. Nos juntamos na saída, Zane estende a mão para mim e saio, olhando para os arredores. As naves Favos estão em pedaços no chão. Há soldados do Grande Imperio ao redor de nós, interceptando os ataques. Um enorme escudo Soretrat se ergue em nossas cabeças. Estamos no meio da batalha. — A princesa está viva? — Um dos soldados pergunta, se aproximando, ajudando Zane a puxar Byrn. — Está. — Byrn responde com um sorriso. — Perfeito. — O soldado auxilia a puxar Lucretia. Depois, é a vez de Lyvia desmaiada. O outro soldado que está conosco se junta. — Há um módulo de resgate conosco, alteza, por favor, me siga. Passo o braço de Zane ao redor do meu ombro e o ajudo a caminhar. Vamos a passos rápidos por entre a batalha, naves passando por cima de nossas cabeças e um escudo Soretrat protegendo-nos, até um aeroflex diferente e maior, que se assemelha à um ônibus de dois andares com asas, um módulo de resgate. Há pessoas e vampiros lá dentro, todos da Torre Bawarrod. Fico sabendo que muitos módulos conseguiram sair da cidade antes dela virar ruínas, porém, esse módulo interceptou os sinais de emergência do Aeroflex de Lucretia e foi enviado para auxiliá-la. Eu me sento ao lado de Zane, enquanto ele reclama de dor, olho pela janela, observando a batalha. Sem dúvida os vampiros tem grande vantagem contra as naves Favos, derrubando uma a uma. Acabo observando um regimento específico de três soldados que parece ser muito

eficiente. Uma mulher se posiciona com escudos múltiplos na frente da batalha, interceptando os ataques. Atrás dela, dando cobertura, um soldado com duas pistolas atira freneticamente, derrubando Favos. O outro soldado se abaixa, coloca a mão no chão e raios elétricos sobem com gigantesca força da terra para as naves, abatendo-as imediatamente, com uma explosão tão ressoante que fico com a impressão de que se não houvesse um escudo envolvendo o módulo, ele seria explodido. Os Favos caem em pedaços no chão e a poeira levanta, cobrindo uma cratera. Meu coração dá saltos de medo e emoção. Eu conheço essa energia destruidora e branca cheia de raios elétricos: Riezdra. ● ● ● A Colônia S-03 é um conjunto de casas projetadas por enormes estruturas cilíndricas com uma abóboda de escudo refletores no topo. Cada cilindro é interligado por passarelas de metal que parecem andaimes. Somos recepcionados em um cilindro de paredes grosseiras e janelas voltadas para o centro, com mais de cinquenta andares. Cada janela é uma moradia, temporária ou permanente, mas a luz do sol está banida da cidade. No módulo, entregamos nossas armas e nos instruíram a fazer um registro para contagem de sobreviventes. Poderei checar se alguém da minha família se registrou e receberei uma numeração que me dará direito a uma cama nas tendas comunitárias. — A sensação é de confinamento. — Observo a abóboda no céu, pequenas faíscas descem dela, como se estivessem soldando metais. — É exatamente assim em N-F22. — Zane resfolega, um pouco insatisfeito. — Será que tem chuveiro de água quente? — Byrn pondera. — Qual o seu nome? — Um vampiro ranzinza com sobrancelhas grossas e bigode antiquado usa um marcador para imprimir um número no meu pulso direito e um sequencial no de Byrn. — Jaylee. — Byrn. — O alojamento de mulheres e crianças é para a direita, as refeições são servidas as oito, meio dia e dezoito horas. Ficarão lá até serem transferidas para outra Colônia. — O homem nem nos olha direito. — Não, elas são escravas. Com certeza serão alojadas de forma mais decente. — Zane passa os braços em nossos ombros, desafiando o vampiro marcador. — E você quem é? — O homem ergue os olhos para ele, vejo o momento em que arregala os olhos em susto, encarando a tatuagem que Zane tem no pescoço. — Guardas! — O bigodudo grita, acenando. Zane solta eu e Byrn. Somos cercados por alguns guardas do Grande Império, mas eles não querem nada conosco. Seguram forte no braço de Zane e o jogam com o rosto contra a mesa, algemando-os. As pessoas da fila ficam olhando para nós, como se fôssemos criminosos. — Ai, devagar aí! Eu quebrei uma costela! — Ele reclama rindo, divertindo-se com o trágico. Os guardas o erguem e o puxam, para o lado. — Zane! — Eu grito assustada. Tento ir até ele, mas Byrn me segura, fazendo que “não”

com a cabeça. — Está tudo bem. — Ele responde e pisca um olho, sorrindo, sendo levado. — Agora. — O homem ranzinza pigarreia e nos chama a atenção. — Vocês são Escravas de Sangue? De qual Casa? — Bawarrod. — Riezdra. Mostramos nossas tatuagens e ele nos indica outro alojamento. Eu peço para olhar os registros, atrás da minha família, em uma tela negra antiquada, mas não encontro ninguém. Já estou chorando quando Byrn fala: — Jay! Sua tia! Sua tia! — E aponta para o nome de minha tia, Lilane na tela. — Ela está no alojamento comum! — Vamos. — Pego no braço de Byrn e a puxo da mesa. — Espere, espere! Quero ver se acho meus pais. — Ela luta contra mim e volta para a mesa. Respiro fundo tentando esperá-la e para me distrair, procuro novamente pelos nomes de meu tio e minha mãe, nada. Nem mesmo Johin. Curiosa, começo a digitar o nome de todos que conheço, esperando Byrn. Encontro o nome de Lyek, no alojamento comum, o de Lori, Farrah e Arimá no alojamento dos escravos reais. Não encontro Renira e nem Elliot. — Eles não estão aqui. — Byrn fica com os olhos cheios de lágrimas. — Não desista, tá bem? Isso só quer dizer que eles não estão aqui e não que morreram. — Seguro em seu ombro, ela faz que sim com a cabeça. São palavras das quais estou tentando me convencer. — Vamos atrás da sua tia. — Encontrei Lyek. — Oh. — Ela não diz mais nada e nem parece muito feliz com isso, o que é estranho. ● ● ● O alojamento comunitário é uma tristeza. Tendas e mais tendas de acampamento com o toldo preto são erguidas, uma ao lado da outra. Camas pequenas de metais são colocadas lado a lado, sem colchão, crianças correm de um lado para o outro, adultos conversam. A maioria parece infeliz. Há pequenas luminárias incandescentes em cima das tendas, criando um caminho para andar em que possamos, literalmente, enxergar nossos pés. Olho por todas as tendas, atrás de alguém que conheço. Encontro minha tia com Johin no colo em uma das pequenas camas. Ele está dormindo e ela cantando para ele. Corro abraçando-a. — Tia! Johin! Johin! — Nem acredito que meu irmão está vivo e que minha tia também. — Jay! Achamos que tinhamos perdido você! — Ela me abraça, chorando. Beijo a cabeça do meu irmãozinho, entregue a um sono solto, ele nem me vê. — Vamos, tia, vamos para o outro alojamento comigo. — Eu puxo seu braço, pegando Johin no colo. — Onde está minha mãe? E o tio? — Não sei. — Ela chora mais. — Sua mãe me deu Johin antes de subir no ônibus e

voltou para procurar você. Não sei se ela conseguiu e seu tio… seu tio… — Ela explode copiosamente, cobrindo o rosto e tremendo. Meus olhos se enchem de lágrimas. Ela não precisa mais dizer. Espero que minha mãe esteja em algum dos outros módulos e que em breve, estejamos reunidas novamente.

CAPÍTULO 26

Ganhar ou perder O alojamento dos escravos não é a melhor coisa do mundo, mas ao menos cada um tem sua tenda, separada pelas Nove Casas. A minha não é das maiores. Sou apenas uma escrava. O maior números de escravos é Lunysum e Mordecai, suas tendas são várias unidas. Os guardas nos rodeiam e estamos isolados dos outros alojamentos, parece limpo e seguro. Temos cobertores, água e um pouco de ração em latas, mas nada de colchão ou roupas limpas. Servirá por um tempo. Informaram que seremos enviados para a Colônia N-D44, uma das mais novas a serem erguidas ao norte, com estrutura para alojar os nobres e, claro, cumprir as exigências do Imperador. Coloco Johin na cama por cima de um cobertor e o cubro com outro. Meu irmão está sem sapatos e sem brinquedos, estamos sem nada novamente. Deixo minha tia cuidando do meu irmão e resolvo andar pelo local. Falo com todos. Farrah e Arimá confortam Byrn. Rilde está lá, mas não está com o nome na lista, até me assusto em vê-la, mas ela não parece impressionada. — Os primeiros módulos chegaram em meio à batalha e não teve tempo para registros, muitos estão por aí, simplesmente. — Rilde dá de ombros, comendo uma latinha de feijão. Ouvir essas palavras me coloca novamente dentro do alojamento comunitário, berrando o nome da minha mãe. Corro por todos os lados possíveis, gritando. Algumas pessoas cansadas pedem para eu fazer silêncio e um guarda se aproxima de mim. Sinto um puxão no braço de repente. — Jay?! — E a voz tenra e calma, me coloca em prantos. — Lyek! — Eu o abraço com força. O cheiro de suas roupas continua o mesmo e é tão bom encontrá-lo nesse instante! Ficamos um tempo assim, em silêncio, em um abraço forte. Meu coração batendo tão depressa que parece que vou desmaiar. Depois de muito tempo, nos soltamos, enxugo minhas lágrimas. — Que bom que você está bem. — Falo aliviada, sorrindo, segurando em seus braços fortes. — Você viu minha mãe? — Nem a minha. — Lyek balança a cabeça em negação, ele está mais barbudo que o normal por não ter um gilete, mas seus olhos possuem a mesma ternura de sempre. — Ouvi que ainda não chegaram todos os módulos, eu e meu pai estamos esperando reencontrá-la antes da transferência. — O que houve na Torre Bawarrod? — Algo muito estranho aconteceu! Os escudos cederam de repente. Fomos evacuados e começou um bombardeio... Espero que a cidade esteja inteira. — Está em ruinas. — Fungo. Lyek balança a cabeça chateado. — Lyek? — Escuto uma voz de menina atrás dele. — Você conseguiu água? Seu pai

não está muito bem. — Tombo um pouco a cabeça e meus olhos batem em Elisabeth, com o mesmo vestidinho de camponesa e trancinhas. Eu sei que ela é como uma irmã para Zane, mas será que ela não podia desaparecer com um dos módulos perdidos?! Elisabeth me vê e se aproxima, surpresa, sorrindo amavelmente. — Jaylee? — Oi, Elisabeth, que bom que está bem. — Fico feliz em vê-la! — Elisabeth se aproxima e passa o braço com Lyek. Tento sorrir. Claro que estou feliz de ver que ela está viva, mas por que eles estão de braços dados? Isso dói meu coração. Lyek olha para ela, um pouco surpreso, mas não diz nada. — Vou ver se consigo trazer água de onde estou. — Giro saindo. Lyek segura no meu braço mais uma vez. Olho para ele, esperançosa que ele vá me dizer algo, que eu entendi errado esse romance entre eles. — O quê? — Obrigado. — Não tem de quê. — Puxo meu braço. Deixo o alojamento com lágrimas nos olhos. ● ● ● — Zane? — Abro as tendas múltiplas de Bawarrod procurando-o. Rilde está sentada conversando com Byrn e apenas me envia um olhar entristecido, balançando a cabeça em um “não”. Comprimo os lábios e exalo ar, derrotada. Procuro por comida e os soldados me dão uma unidade de latinhas, que levo para minha tia. Mais tarde, levo um cantil com água para Lyek e encontro ele e Elisabeth abraçados, trocando carícias. A impressão é de que estou delirando, mas não dá nem para negar que esteja acontecendo. Solto uma tosse falsa e eles se separam, imediatamente. — Aqui sua água! — Estico o braço abruptamente para Lyek e não olho na cara de Elisabeth, ragendo os dentes. — Obrigado. — Ele diz, segurando o cantil. Saio andando depressa, marchando para a saída. — Jay, espere! — Lyek vem atrás de mim, eu não paro, afundando os pés pelo chão de cimento do pátio dos alojamentos. Escuto seus passos apressados e ele segura firme no meu braço. — Jay! — Giro, encarando-o. Lyek está com uma aparência cansada, com olheiras e as roupas sujas, mas todos estamos. Eu também estou péssima. — O que há com você? — Eu que pergunto! O que tá havendo entre você e Elisabeth? — Puxo meu braço para me soltar e ajeito a jaqueta do exército no meu corpo. — Não está... — Ele se interrompe, incapaz de mentir. Coloca as mãos na cintura e resfolega. — Ela precisa de ajuda, Jay. — Ah, ótimo! Ela precisa de ajuda! — Dramática, estico os braços para cima. Minha respiração fica pesada, forte. — E quanto à nós? Aquilo que combinamos? Você simplesmente desistiu? — Eu não desisti, mas as coisas estão complicadas agora! — Ele se aproxima de mim, para não falar muito alto. Cruzo os braços, revoltada. — Ninguém vai apoiar dessa forma, os Anjos destruíram tudo, as pessoas estão com medo. — O que está dizendo?

— Precisamos dos vampiros. — E quanto ao futuro melhor que íamos construir? — “Juntos”, eu quero dizer, mas não consigo. A palavra fica travada na minha garganta. — Construir como? Nem ao menos temos para onde ir. — Agora seus olhos escuros e sempre sinceros me esfaqueiam. Posso ver toda a desesperança em Lyek, é transparente em cada centímetro de seu rosto. Eu não o culpo, muitos desistem. Chega um ponto nessa guerra que é quase impossível ter um motivo para lutar. Eu não sou assim. Cada derrota me dá mais vontade de vencer. — Então é isso? Você vai desistir? — Pergunto. Lyek coloca as palmas das mãos para cima, gesticulando sua falta de resposta. — Ótimo. Seja feliz com Elisabeth! — Viro as costas e saio batendo os pés. — Jay! — Ele me chama. Não quero conversar, apresso os passos e saio do alojamento comunitário indo em direção ao dos Escravos, onde ele não tem acesso. Meus olhos estão ardendo e o que eu vejo é um borrão de pessoas sem rosto e expressão. Volto para minha cabana e fico ao lado de Johin e minha tia, com lágrimas silenciosas escapando dos meus olhos. ● ● ● Dois dias nesse acampamento e já não aguento mais! Está quente, o ar fica sempre abafado e parece que estou suando demais. Lavo os braços na tina para me refrescar desejando que eu tenha acesso a chuveiros novamente. É barulhento nos alojamentos, podemos ouvir quando as pessoas conversam. Ontem chegou todos módulos de segurança que faltavam. A mãe de Lyek e os pais de Byrn estavam lá, minha mãe, não. Vi famílias se reencontrando, chorando. Fiquei imaginando eu e minha mãe reunidas novamente! Esperei até a última pessoa e ela não apareceu. Os módulos foram levados para a garagem, meu coração ficou pequenininho e em frangalhos. Jogo uma jateada de água gelada no meu rosto para me acordar. Sabe quando parece que estamos tendo um sonho ruim? Essa é a sensação. Minha barriga ronca e olho para meu irmão, enchendo a boca com a minha latinha de patê. Não consigo negar comida para Johin e eu realmente não devia comer tanto! Minha tia fica com ele, cuidando, seus olhos vermelhos e inchados. Deve ser horrível perder a filha e depois o marido. Percebi que ela está muito apegada a Johin e se assusta quando escuta um barulho alto, como quando alguém tosse no alojamento. Não está sendo fácil para ninguém. Saio da tenda. Meu coração está em pedaços! Além de tudo o que anda acontecendo, não esperava ver Lyek e Elisabeth juntos, não depois de tudo o que conversamos. Não posso ter nem mesmo um sonho de um futuro melhor. Caminho silenciosamente em direção as tendas de Bawarrod, abrindo as cortinas, uma a uma. Farrah e Arimá juntaram suas camas, dormindo abraçadas. Rilde está no canto direito, sozinha e Byrn está numa segunda tenda com sua família. Fico feliz por minha amiga, mas há algo de errado comigo pois a felicidade dos outros me incomoda, não por eu invejá-la, mas por ser uma alfinetada na minha alma, lembrando-me do quanto eu sou infeliz. Abro a última tenda. Olho para o fundo e encaro a cama, no final da cabana. Zane está

lá, dormindo. Respiro aliviada por vê-lo e caminho devagar, tentando não fazer barulho. Abro espaço entre seus braços para mim, entrando no cobertor e virando de frente para ele. Zane roça o nariz no meu pescoço, despertando com minha presença e passa o braço ao redor de mim. — Você está acordado? — Sussurro, fazendo um carinho em seus cabelos, um pouco sujos de terra e cheirando a suor. — Mais ou menos. — Ele responde baixinho, com a voz molenga. — Estou com fome. — Você só me procura quando quer comida? Respondo com um selinho em seus lábios quentes. Ele sorri, sem abrir os olhos, caindo no sono novamente. Eu beijo sua testa, abraçando-o. — Perdi tudo. — Confesso. A única pessoa com quem consigo ser sincera sobre meus próprios sentimentos ultimamente é Zane. Meus olhos ficam ardendo com as lágrimas. — Todos nós perdemos. — Zane boceja e coça os olhos, acordando. — Não, eu quis dizer tudo mesmo. Minha mãe não chegou em nenhum módulo. Já não tenho minha casa, meu tio, minha prima… e agora Lyek. — Lyek? Aquele seu amigo que está com Elisabeth? — Zane apoia o queixo nos meus seios, seus olhos azuis me analisam. — É por isso que está chorando? — Faço que sim com a cabeça. — Oh. — Estou tão assustada, Zane. — Fungo, limpando o nariz com a mão. Zane apoia o corpo no cotovelo, ficando sobre meu campo de visão. — Sabe? Meu mundo inteiro está desabando, eu não consigo pensar em mais nada a não ser que acabou. Minha mãe morreu! O que vai ser de mim agora? Estou desesperada! — Lembra que você me beijou quando estava com medo dos Anjos nos cercando? — Lembro! Achei que fosse desmaiar. — Choro e dou risada ao mesmo tempo, em estado lastimável. — Só queria pensar em algo bom. — Beije-me agora também. — Zane segura em meu rosto e me beija com vontade. Retribuo com carinho, abraçando-o forte e explorando o gosto de sua boca com a língua. Não penso em nada, apenas me entrego às sensações, procurando por baixo de suas roupas o calor de sua pele, enlaçando-o com minhas pernas. O peso de seu corpo sobre meus seios, esquenta e conforta. Toco seu abdômen, passeando as mãos pelas costas, arranho a nuca e puxo os cabelos com força, forçando sua cabeça para trás. O calor de Zane preenche o vazio que há em mim e é como se só existisse nós dois no mundo, dançando enquanto nossas respirações se tornam uma. Minha calça vai para o chão, nossos corpos se colam e se misturam. É intenso e ao mesmo tempo agradável, suave. Ele me toca com delicadeza e desejo ao mesmo tempo. Mordo forte seus lábios para conter um gemido de escapar, suas mãos firmes nas minhas costas. Meu corpo estremece. Zane se deita do meu lado e eu estou cansada, mas não é de uma forma ruim. Ele está respirando forte, viro de lado afastando os cabelos ondulados de seus olhos, para poder olhar para ele, recebendo aquele sorriso sincero que ele tem. — Por favor, não me abandone você também. — Suplico com urgência, as lágrimas

voltando a queimar meus olhos. Zane coloca a mão no meu rosto, passando o polegar na minha bochecha, segurando a lágrima que rolou. — Quando você me pede assim, meu coração quebra. — Ele respira fundo e beija a minha testa. Fecho os olhos deixando as lágrimas rolarem. — Eu não tenho forças para continuar sem você. — Você é mais forte do que imagina, Jay. Vai ficar bem. — Não, eu não vou. — Eu o abraço forte, com os braços enganchados e a cabeça afundada. Ele me abraça firme, acariciando minha nuca, mas não diz nada. — Se não for por Lady Lucretia, por favor, faça por mim. — O choro, que contenho há dias escondido no fundo da minha alma, escapa como um vulcão, explodindo em chamas de tristeza. É tão injusto que Zane se aproxime de mim e me conquiste dessa forma, para depois simplesmente ir embora como quem está só de passagem em um destino. Eu perdi tudo. ● ● ● Não consigo dormir. Minha cabeça dói de tanto que chorei e meu corpo parece de papel. Fico pensando muitas coisas e nada ao mesmo tempo. Rolando na cama de um lado para o outro, enquanto Johin e minha tia dormem abraçados. Levanto e calço as botas. Resolvo caminhar pela cidade, começo a subir as passarelas até que me canso e sento para observar a cidade. Algumas janelas do grande cilindro estão acesas e outras apagadas. Fico observando-as, imaginando-as como estrelas, já que não posso olhar o céu, por ser coberto pelo domo. Perco noção do tempo de quanto tempo fiquei aqui. É impossível dizer se é dia ou noite nessa cidade, chega a ser perturbador. As lágrimas mancham minha visão, mas não escorrem, como se eu fosse incapaz de produzir mais água pelos olhos. — O que há de errado com você que está tão depressiva? — Sinto um empurrão lateral, chamando minha atenção. — Veio afogar suas mágoas da batalha, meu senhor? — Enxugo as lágrimas, levando uma espécie de susto. Encaro botas militares, negras. — Não, vim comemorar. — Devon se senta do meu lado em um dos andaimes que ligam as partes internas do cilindro da cidade, ele tem uma garrafa de uísque na mão e está cheirando a álcool, provavelmente está bêbado, daquele jeito porcalhão e insuportável. — Servida? — Não bebo, obrigada. — Fungo, colocando as mãos no bolso da jaqueta preta. — Ajuda com a fome. — Ele me lança os olhos dourados e brilhantes, de canto. Uma espécie de desafio. Pego a garrafa e dou um gole grande, a bebida é forte, mas o gosto me lembra madeira, como o perfume amadeirado que ele usa e que posso sentir pinicar meu nariz. Não consigo engolir tudo o que pretendia tomar, escorre pelos cantos da minha boca, descendo pelo pescoço. Seguro o queixo. Devon venta rindo, posso até escutar ele pensando “você é um desastre” ou qualquer

comentário escroto do tipo, mas ele não se manifesta. Devolvo a garrafa, limpando a boca. Observo a linha de seu pescoço, os cabelos castanhos claros roçando a farda e o desenho da barba bem feita. Com a luz baixa da cidade abaixo de nós, ele fica tão perfeito que tenho dúvidas se estou olhando para um vampiro, um demônio ou para um semi-deus. Ficamos em silêncio por um tempo, o som da água revirando dentro da garrafa. Dou alguns goles no uísque. Ameniza um pouco a fome, mas em compensação, me dá dor de cabeça. Meus olhos se prendem em uma das medalhas de metal em sua roupa. — Você ganhou todas essas medalhas resgatando humanos de escombros? — Pergunto cortando o silêncio, com a voz baixa. — Entre outras coisas. Sou um soldado muito valioso para ficar fazendo resgates, se quer saber. — Não realmente. — Respondo entojada. Eu sei que ele é, eu vi e sinto todo o poder de seu sangue fluindo em minhas veias. — Ouvi dizer que você foi punido e enviado em missões de resgate por toda a extensão do Grande Império. — Também. — Devon dá uma revirada irritante de olhos e um gole no uísque, olhando para o teto. — Ouvi dizer que você encontrou um jacaré mutante. — Quem te disse isso? — Zane conversou comigo. — Devon dá outro gole no uísque e eu fico calada. Não tenho o que dizer sobre jacarés, peixes e alienígenas. — Ele decidiu se tornar sucessor da Casa Riezdra. Seja lá o que você fez, agradeço seus esforços. — Por que você acha que tem a ver comigo? — Pisco várias vezes, absorvendo as informações, olhando para ele. — Conheço muito bem meu filho e suas motivações. — E agora o que acontece? Zane vira um vampiro? — Bawarrod por sangue, Riezdra por direito. — Devon dá de ombros e um gole no uísque satisfeito. — O melhor das duas Casas. Ele apoia a garrafa no chão de metal da passarela, entre nós. — Isso é triste. Ele gostava do nascer do Sol. — Pego a garrafa, dou um gole, olhando para as janelas iluminadas à frente. Um sorriso surge nos meus lábios, que não consigo conter mesmo que devesse. — Em quinze anos Zane será poderoso o suficiente para assistir quantos nascer do sol ele quiser, é uma questão de paciência. — Ele se casará com Lady Lucretia? — O Conselho já se decidiu. Minha proposta pela coroa é financeiramente mais atrativa que a dos outros nobres. Rynbelech retirou-se da disputa e Mordecai me devia um favor. — E o Imperador não se opôs à essa decisão? — Se opôs, é claro! Porém, ninguém deu crédito aos seus reais motivos. Como somos melhores amigos, decidi oferecer uma festa de noivado em comemoração, quando chegarmos à N-D44. — Devon ri, divertindo-se. — E seus crimes de roubo de sangue Bawarrod nesse meio? — Eu não estava roubando sangue do Imperador! — Ele franze a testa, estranhando minha suposição, mas é representação. — Estava retardando a transformação de Zane. Ao menos é o que eles acreditam que fiz.

— Certo, mas por que você precisava do sangue de Bawarrod? Não vai fazer falta agora que você não tem mais como tirar dele? — Não seja tão apressada! Chegaremos lá um dia. Você verá. — Devon pisca um olho sorrindo e se levanta. Ele chacoalha a garrafa de uísque, no meu campo de visão. — Não beba demais, é um bourbon barato e dá dor de cabeça. — Obrigada, eu acho. — Pego a garrafa e encaro o restinho de whisky enquanto escuto os passos firmes e elegantes de Devon afastando de mim. — Boa noite, meu senhor. — Olho para onde ele está, fitando suas costas musculosas enquanto ele se espreguiça como um leopardo. — Pago bem meus débitos, Jaylee. — Escuto sua voz enquanto dou um gole na garrafa, olhando para o topo do domo. — Não demore muito para ir para casa, você não quer deixar sua mãe esperando. — Minha mãe? — Meu coração dá um salto. E repentinamente, tenho tudo o que eu queria.

CAPÍTULO 27

Uma nova esperança — Jaylee! Vá se arrumar ou você vai se atrasar para a festa dos nobres! — Mamãe grita, despertando-me do sono gostoso ao que estou entregue em um colchão macio. Rolo por dentro dos lençóis frescos e abro os olhos devagar. A luz alaranjada do por-dosol entra pela pequena janela redonda do meu quarto. O apartamento é menor que o anterior, mas não estou em posição de reclamar. Há um quarto para mim, um para meu irmão (mamãe acha que ele já merece privacidade) e um para minha mãe e minha tia. Fazem alguns dias que estamos em N-D44 e a região é muito fria! Há muitas montanhas brancas ao redor. Estamos no leste da Groenlândia, há um pouco de neve e lagos congelados, mas há cerca de 30% de terra verde no continente, além de uma geleira gigantesca que ocupa o restante das terras. Deve nos proteger e distanciar a cidade da guerra, enquanto as tropas avançam para recuperar o território que um dia foi a Torre Bawarrod. A antiga sociedade inuit é presente, eles se isolam de nós em áreas específicas da colônia e não parecem aceitar muito bem nossa presença. Nativos, trabalham nos grandes pesqueiros e nas caçadas, embora alguns dos nossos estejam trabalhando como ajudantes. N-D44 fica parte na água, em navios que aparentam cruzeiros antiquados, mas que são construídos com a tecnologia dos vampiros, ou seja: tudo funciona com magia. Há módulos submarinos para escape. Ouvi falar que há túneis por dentro da geleira que nos levariam para o outro lado da ilha caso uma nova evacuação seja necessária, mas eu torço para que nada abale nossa paz por um bom tempo. A economia da cidade mudou muito, se antes tinhamos grandes lavouras em Bawarrod, agora basicamente vivemos de pesca e plantação de alguns legumes como batatas e arroz. Dentro das estruturas da colônia é aquecido e agradável, um casaco simples resolve nossos problemas, mas do lado de fora, precisamos usar casacos especiais e térmicos. Esses trajes, nós humanos não temos acesso, só os soldados. Cada família recebeu um kit de emergência que permanece intocado e guardado em uma mochila em cima do armário da minha mãe, neles há um cobertor, lanterna e um traje especial para o frio. Mamãe também deixa uma sacola pronta com latinhas de ração que sobraram dos alojamentos. Ninguém tem dormido em paz depois do ataque e acho inteligente que ela esteja preparada para fugir. Ela inclusive pede que eu esteja sempre de calça e botas, exceto hoje, que usarei um vestido. — Jaylee venha comer a carne de baleia que fiz para você. — Mamãe aparece rapidamente pela porta, seus cabelos dourados e um conjunto de roupas simples, de moletom, que recebemos na cota de doação mensal. A quantidade de comida que recebemos não aumentou e nem diminuiu, o que podemos considerar uma bondade do Grande Império especialmente que temos uma pessoa a menos em

nossa família. Porém, fico sempre faminta! Frutas são raras, as vezes chega um carregamento de alguma cidade com pêssego e figo em calda, com sorte, geleia de uva, morango e amora. — Vou tomar banho antes! — Levanto da cama espreguiçando. Olho pela janela encarando o grande lago gelado com icebergs e a terra de flores vermelhas que rodeiam o local. Estamos na primavera. Finalmente. Uma coisa preciso dizer sobre a Colônia N-D44: aqui é um lugar bonito, com uma vista inspiradora e um nascer do sol maravilhoso que me deixa triste em pensar que Zane não poderá vê-lo. Aliás, desde que estivemos juntos na tenda do alojamento em S-03, eu não o vi mais e nem tive notícias detalhadas sobre o que aconteceu a ele. O que sei é o que todos sabem: Zane se torna oficialmente noivo de Lady Lucretia hoje a noite. Haverá uma cerimônia de portas fechadas com os membros do Conselho antes da festa. Eu, Byrn e Lori estaremos lá, já que somos escravas diretas dos membros, mas não seremos recebidas dentro da sala. Porém, Byrn me disse que Lady Lucretia revelou que a sala do conselho é de vidro transparente, porém, à prova de som. — Pegue o balde. — Mamãe retorna segurando um balde de ferro com uma toalha e passa para mim. A água está morna e apesar de temos em abundância, estou proibida de tomar banho de banheira ou chuveiro. Mamãe disse que posso ficar doente tomando friagem e não queremos estragar o meu valioso sangue. Vou para dentro do banheiro e apoio o balde na banheira desejando poder entrar nela um dia. Tiro a camisola e as roupas íntimas, afundo a toalha na bacia e umedeço o corpo. Passo sabonete nas mãos e esfrego meu corpo. Enrolo-me no roupão e lavo a o cabelo no balde, mas sem mergulhar a cabeça inteira. Deixo o quarto, esfregando a cabeça para secar. Levo um susto ao ver que tem alguém no meu quarto. Elisabeth está em pé, me esperando, com uma cesta cheia de carretilhas e alfinetes ao lado do corpo e um saco negro com um cabide sendo carregado no ombro. Paro de andar, surpresa. O que ela está fazendo aqui? — Jaylee a costureira veio tirar suas medidas. — Mamãe arruma minha cama, afofando o travesseiro. — Ela disse que é sua amiga, Elisabeth. — Ah, sim. — Eu diria mais ou menos, mas fiquei sem reação. — Tirei minhas medidas há duas semanas. O vestido chegou ontem. — Esse veio pela manhã. É um presente da Princesa. — Elisabeth mostra um sorriso simpático e pequeno, solta a cesta em cima da cama e estica o saco do vestido. — Uau! Se a princesa enviou um presente, melhor não desagradá-la. — Mamãe anda até a porta. — Trarei sua comida aqui. Elisabeth, aceita um suco? — Aceito, sim! Muito obrigada senhora Anneth. — Ela sorri amavelmente mexendo nas trancinhas, alegre, e eu não sei porque mamãe está sendo tão simpática. Elisabeth olha para mim. — Vamos? — Deixe eu vestir a lingerie antes. — Suspiro, andando até meu armario, escolhendo um conjunto. A campainha toca, um sino desses de fazenda que treme as portas quando alguém bate as correntes. Mamãe abre a porta. — Jaylee! Sua amiga Byrn está aqui. — Mamãe grita. — Tome, leve isso para elas.

— Jay! — Byrn entra segurando a bandeja com dois copos de suco de abacaxi e uma pilha de bifes de carne de baleia. — Sua mãe disse que eu podia entrar e... Oi, Elisabeth, não sabia que estava aqui. — Vejo o instante em que o sorriso animado de Byrn murcha. Estico as sobrancelhas e fecho o sutiã. — Trouxe um vestido para a Jaylee. — Elisabeth sorri e corre até o suco, bebendo sedenta. Ter polpa de fruta congelada não é para todos. — Eu vim trazer os sapatos que você me pediu, mas se você não vai usar o vestido azul... — Byrn solta a bandeja em cima de uma mesinha feita de um velho pneu. Ela está de vestido justo de renda branca e cheio de cristais, com manga e gola alta. Segura no braço uma sacola amarela feita de um saco de batata, onde estão os dois sapatos azuis que pedi. — Não, esse não é azul. — Elisabeth solta o copo em cima da bandeja. — Mas Lady Lucretia enviou sapatos e jóias. Eu não me preocuparia! — Você ganhou um vestido de Lady Lucretia?! Ai quero ver! — Byrn chacoalha os brincos compridos de metal dourado em forma de gota e se aproxima da cama, abrindo o vestido. Com curiosidade, observo ela levantar o saco e uma saia de panos rasgadinhos como penas surge, toda branca. O busto do vestido tem muitos cristais. — Ai que lindo! — Parece um vestido de noiva. — Reparo. Byrn está de branco também e me parece até que é uma afronta. — Não vão ficar irados por estarmos de branco? — Não! — Byrn dá uam risada engraçada. — Na Sociedade dos Vampiros, a noiva usa preto no noivado e vermelho no casamento. Além de uma venda e um véu de renda no rosto, pois os noivos não podem se ver até o dia do casamento. — Eles não podem se ver? Nem conversar? — Elisabeth pergunta, estranhando a tradição. — Eles podem se tocar e conversar, claro, não podem se olhar. — Byrn explica, rindo. — Que esquisito! — Elisabeth dá uma risadinha. — Normalmente se beija de olhos fechados, então não seria um problema. — Reviro os olhos e fico em pé. — E o que acontece na Cerimônia? — Elisabeth vem com a fita métrica para cima de mim, me medindo. Byrn se senta na cama ao lado do vestido, tocando no pano e se maravilhando com ele. — Eles assinam um contrato que antecede um casamento, coisas como mútua fidelidade e outras coisas previamente acordadas entre as casas. — Enquanto Byrn conta, entro no vestido e Elisabeth puxa para cima, prendendo o busto no meu sutiã. É bem pesado por causa das pedras. — Depois, têm de beber uma taça de sangue do membro do Conselho de cada casa, oferecido como forma de respeito aos noivos reais. Aí vem a grande festa! — Byrn suspira. — Ouvi que será oferecido a todos os habitantes de N-D44 um festival em comemoração. — Sim, hoje a noite. Lyek vai me levar lá. — Elisabeth fecha o ziper me fechando e puxa as laterais, para ajustar no meu corpo. Suas palavras são agulhadas no meu coração, dói tanto que preciso colocar a mão no peito. — Apertei muito? — Não, estou bem. — Lyek indo em festivais oferecidos pelos vampiros é novidade. Agora só falta você me dizer que ele até tira você para dançar. — Byrn provoca, com a língua entre os dentes. Estou sentindo uma pequena tensão entre elas ou é só impressão?

— Claro que ele me tira para dançar. — Elisabeth solta um risinho, como se Byrn fosse louca e costura o vestido, prendendo-o justo no meu corpo. A saia fica um pouco comprida e por cima dos ombros, visto um bolero quentinho, de mangas compridas. — Pronto, você está vestida. Ficou perfeito! — Obrigada. — Sento na cama, abrindo a caixa dos sapatos. — Uau, que lindos! — Byrn delira. Os sapatos são fechados, brancos e com uma flor prateada de metal no centro. Coloco nos pés, serve perfeitamente. — Essas são as jóias enviadas. — Elisabeth abre a caixa que contém um colar com penas brancas e pérolas, presas por correntes de metal prata, os brincos são duas penas presas em correntes. — Você tem que colocar o cabelo para cima vai ficar um arraso! — Byrn puxa a caixa das mãos de Elisabeth e segura na minha direção. — Tudo bem. — Concordo com um suspiro. Pego um brinco e passo a argola no furo da orelha. — Vou indo. — Elisabeth anuncia pegando o seu cesto de costura, ela se interrompe na porta. — Se falar com Zane, diga a ele que sinto saudades. — Se eu tiver a chance, claro. — Dou de ombros. Elisabeth sai do quarto e escuto ela se despedindo de minha mãe. Byrn me lança um olhar de repreensão e eu comprimo os ombros enquanto coloco o outro brinco, balançando a cabeça dizendo que não estou entendendo. — Francamente, essa garota me dá nos nervos! — Byrn fica em pé, ajeitando seu vestido no corpo. Ela olha meu prato de comida, ainda intocado. — Coma logo e vamos, senão iremos nos atrasar. Claro que eu não ia largar a comida para trás! ● ● ● Os nobres se amontoam ao redor da sala circular de vidro para observar. É difícil ter uma visão do que está acontecendo, mas Byrn consegue nos posicionar bem. Por cima das cabeças dos nobres, encaramos o que está acontecendo lá dentro, enquanto o som de harpas e violinos escoam apenas aos ouvidos de quem está do lado de fora. O vestido de Lady Lucretia é verdadeiramente antiquado e sem brilho, de mangas compridas, fechado até a altura do pescoço com laços e renda como as luvas em suas mãos. Não é possível ver muito dela, os cabelos estão presos em um penteado simples, um coque, com uma renda grossa e negra ao redor dos olhos, apenas o nariz e a boca, sem batom, estão a mostra. Não é só o noivo que não pode vê-la, aliás! Zane está com um fraque vitoriano, ou algo do tipo, todo preto. Também de luvas e vendado, com a renda prendendo os cabelos. Estranho a falta de opulência. Normalmente haveriam bordados dourados e penteados exóticos, muitas flores e uma abundância de jóias gigantescas. Os noivos ficam em pé no centro da sala, de costas um para o outro, de braços entrelaçados, inexpressivos, amarrados por uma fita de cetim negra e grossa, com uma chave grande dourada presa na ponta do laço. Parece ser uma cerimônia simbólica, como os casamentos humanos costumavam ser. Ninguém diz nada, ficam apenas olhando os noivos em

silêncio, todos para trás de uma mesa que segura um livro negro e antigo, um castiçal de velas vermelhas queimando e duas estátuas com os símbolos das Casas que serão unidas em matrimônio daqui alguns meses. Um a um, os nobres do conselho se aproximam dos noivos, com uma taça na mão, de cristal negro, cheias de sangue e um pano negro nas mãos. Os noivos não podem segurar as taças, os nobres que entregam o sangue diretamente em suas bocas, forçando goles. Zane engasga e tosse quando Mordecai vira a taça em sua boca. — O garoto nem consegue beber sangue! — Um nobre de bigode branco, próximo de onde estou, reclama erguendo a mão, inconformado. — Aquele sangue de animal? Você engasgaria também, deve ser nojento! — A mulher cheia de jóias do lado dele dá risada. — Ele era um humano. — Um terceiro se intromete, de barba grossa e cabelos esvoaçantes, grisalho. — Pode parecer que estamos enaltecendo-os! — Pode criar problemas futuros. Como uma revolução. — O de bigode continua. — Ele pode liderá-los, de fato, mas será ao nosso favor — A mulher nega, balançando as mãos. — Ele nem consegue beber sangue! — O de bigode insiste. — É uma ofensa aos nossos costumes! — Cale a boca, velho maldito, você quem ofende nossos costumes indo contra a decisão do Conselho! — A mulher revira os olhos. — Eu se fosse você, me preocuparia mais em agradá-lo do que ofendê-lo, ouvi dizer que ele possui a simpatia do Imperador e herdará a sucessão das duas casas. — Mais do que a simpatia, por sinal! — O de cabelos esvoaçantes ri. — Por isso mesmo que é um absurdo que seja nas mãos de um humano! — O de bigode esbraveja. — Ele é um de nós agora. — A mulher continua defendendo. Acho que essas opiniões refletem bem as que escutarei durante a festa, os nobres estão divividos e acredito que muitos não queiram ser governados por um vampiro que um dia foi humano. Acho a jogada de Riezdra genial nesse aspecto. Além de ser um ex-humano, que terá o apoio de todos os humanos que servem no Grande Império, Zane é o sucessor dos poderes das casas Riezdra e Bawarrod. Não restam dúvidas que quando o dia chegar, ele será magnífico como imperador. Só espero que tanto Zane quanto Lucretia continuem justos e de coração benevolente ao chegarem ao trono. É uma nova esperança: dias melhores virão. Dentro da sala, o Imperador coloca uma diadema dourada na cabeça de Lucretia e beija a testa de sua sobrinha, falando o que acho que são votos de felicidade, visto que Lucretia abre um sorriso e o reverencia. Ele faz o mesmo com Zane, mas é um beijo especialmente demorado e de olhos fechados, que causa uma comoção entre os nobres do lado de fora. Por último, os noivos são soltos e assinam o documento em cima da mesa. Todos os nobres do Conselho assinam na sequência. O Imperador dobra e gruda com um selo de cera quente vermelha. O contrato em papel grosso e preto vai para dentro de uma caixa de metal. A chave que estava amarrada na fita é que tranca a caixa e por fim, Lucretia a recebe como um colar, pendurando-a no pescoço. A cerimônia se encerra na pequena salinha e começa no grande salão. Harpa e violinos

param, entra um DJ com uma mesa de som. Máscaras de animais são entregues para todos. Eu fico com uma que é metade do rosto de um coelho, dentucinho e orelhudo. Byrn coloca uma máscara de pássaro, cheio de penas coloridas e um bico torcido para a frente. Olho novamente para a sala de vidro, Lucretia e Zane ficaram lá para trás, agora frente a frente, conversando, juntos, de um jeito íntimo, Lucretia segurando a chave como se fosse algo muito precioso para ela. Estou apenas feliz de ver Zane sorrir para ela, sinal de que deve estar tudo bem! — O que você está fazendo? — Drarynina enfia as unas na carne do meu braço. Eu a encaro no susto, seu vestido azul e cheio de bordados prateados brilhando multicores com as luzes da pista de dança. — Riezdra bebeu sangue? — O quê? Não, eu… — Ela me puxa com força. — Espera! — Empaco. Drarynina me fita com curiosidade, uma sobrancelha erguida por cima de seus olhos redondos e vermelhos. — Vamos voltar para aquela fase em que sou ameaçada de morte se aquele porco não beber meu sangue? — Quer receber uma punição, escrava? — Ela me puxa e acabo cedendo. — Não é uma ameaça, você está colaborando para que sua mãe e irmão fiquem vivos! Achava que essa fase havia ficado para trás, quando resolvemos a disputa entre o Imperador e Devon sobre Zane, mas pelo visto, se trata de outro assunto! Drarynina me coloca na frente de uma porta pequena de madeira marrom, com um grande espelho no qual posso me ver, vestida de coelho. — Ele está aqui dentro? — Pergunto. — Está. — Ela ajeita meus cabelos, puxa para baixo meu vestido e coloca as duas mãos nos meus seios, levantando-os para forçar que apareçam mais no decote, enquanto se curva para sussurrar no meu ouvido. — Agora que por sua culpa perdemos a forma de transportar sangue do Imperador, eu me preocuparia… o General precisará ainda de mais do seu sangue para repor energias. — E um sorriso assustador se forma em sua boca. Meu coração acelera com pavor e minha respiração fica forte e pesada. Coloco a mão na maçaneta de cristal transparente e giro, abrindo a porta. A sala não está iluminada, mas com a luz do salão consigo ver as paredes são decoradas por um papel preto e cinza, listrado. Há um lustre de metal preto no centro, parecendo um grande candelabro. A sala é maior que a anterior, há um conjunto de sofás cinzentos e prateleiras. Uma cômoda com um espelho e uma bacia com uma jarra de metal ao lado, perto de um armário. Fecho a porta e tento acender a luz no interruptor, mas não liga. Meus olhos se adaptam rapidamente à escuridão, mas antes que eles consigam, sou empurrada para o chão, caindo de costas no tapete. — Aaaaaah! — Grito aterrorizada. — Bem melhor dessa vez, escrava. — Encaro os olhos dourados de Devon, seus dentes de predador para fora. Ele está sobre mim, com as mãos nos meus pulsos, forçando contra o tapete. Respiro forte, enquanto me recupero do susto, não consigo pensar em nada além do cheiro do perfume amadeirado. — Agora… se você é um coelho, o que eu sou? — Uma raposa? — Está certa. — Devon encrava os dentes com força na minha jugular. Dou um gemido de dor, um pouco surpresa por não estarmos lutando um com o outro

dessa vez. Normalmente ele evita meu sangue e preciso me esforçar para receber uma dentada. Escuto os goles grandes que ele dá em meu sangue, enquanto minha consciência parece querer vacilar e cair adormecida para sempre. É ao mesmo tempo cruel e prazeroso tê-lo sobre mim. Minha mente está quase apagando e meus músculos já não respondem aos meus comandos estou enfraquecida. Ele me força para sentar, apoiando minhas costas no sofá. A princípio não compreendo o que está havendo, mas observo enquanto ele tira o paletó cinza, desabotoando a manga da camisa preta e arregaçando as mangas até o cotovelo. Seus olhos me hipnotizam. — Agora, sua vez. — Com um anel bico de corvo ele rasga a artéria radial, deixando o sangue escorrer. Deve doer, suas sobrancelhas se comprimem por um segundo. Devon coloca o pulso em minha boca, as primeiras gotas tocam minha língua criando uma sensação elétrica por todo o meu corpo, meus músculos se movimentam e atiça minha fome. Uma fome descontrolada. Eu seguro em seu braço, forçando mais sua pele em minha boca, chupando forte. Cada gole que dou é uma sensação intensa em meu corpo, energizando tudo o que existe dentro de mim. E eu quero mais, cada vez mais.

CAPÍTULO 28

Sede de Sangue — Você deve parar agora. — Devon segura firme em meu ombro, puxando seu braço e arrancando-o da minha boca. Ele está ajoelhado na minha frente, seguro em seu braço e dou uma lambida em seu sangue mais uma vez. Meu corpo inteiro pega fogo, em descontrole, com toda a energia que eu tenho dentro de mim, não desejo por mais nada. — Eu quero mais. — É, eu sei. — Ele venta, rindo, a mão na minha cabeça, como se achasse engraçado, mas tenta me separar dele, fico com os joelhos no chão. Mordo seu braço, abrindo mais a ferida, engolindo o seu sangue doce. — Já é suficiente, Jaylee. Ele puxa forte meus cabelos e separa minha boca de sua veia. Estou respirando forte, meu peito sobe e desce, o sangue escorrendo da minha boca. Devon me solta, seus olhos dourados me analisam. — Preciso de mais! — Precipito-me sobre ele, derrubando-o para trás, urgindo por sua boca. Eu o beijo com força, lambendo seus dentes, minha língua sangra contra seu canino e mordo forte sua boca. Meu sangue se mistura com o dele em nossas línguas. Ainda não me sinto saciada e não é só de sangue que tenho fome. Meu corpo parece uma fogueira! Devon não resiste, segura firme em minhas costas e me beija intensamente. Eu puxo seus cabelos claros e me aperto contra ele, engolindo uma mistura de saliva e sangue, com cheiro do perfume sensual que ele usa. Em segundos, perco o controle e ele também. Não consigo parar, sou viciada e preciso de mais uma dose, seguida de outra e outra. Estouro os botões de sua camisa enquanto o beijo, puxando-a de seu corpo, deixando-o despido. Afasto-me rapidamente para tirar o bolero e logo rompo sua boca àvida por mais. Devon segura firme meu cabelo e me empurra para trás, caio contra o tapete, enquanto ele percorre meu corpo com suas mãos firmes, abrindo meu vestido pela lateral. O pano fino e sedoso escorrega por minha pele, as pedras do corselete arranham meu rosto em uma puxada só, o sutiã costurado sai junto, violentamente. Aperto meu corpo nu contra o dele, pele com pele, calor com calor. Uma união perfeita e energética. Devon tira minha calcinha e minhas pernas enlaçam seu quadril. Minhas unhas arranham forte as costasdele, ferindo, Devon geme e me deixa louca, fora de controle, insana. Dou uma dentada violenta em seus lábios, até sangrar, o gosto de ferro explodindo contra a minha boca, enchendo de sabor. Devon aperta as mãos contra meu bumbum, um toque firme e cheio de desejo. Minha

consciência já não parece minha. Dou uma gemida de puro êxtase quando Devon se encaixa entre minhas pernas. É a melhor sensação que eu já provei em toda a minha vida, meu corpo inteiro leva choques de prazer. Eu me sinto poderosa e única, como se fosse capaz de qualquer coisa, mas além disso, eu também me sinto emocionalmente conectada a Devon, como se partilhar do mesmo sangue me fizesse parte dele. Ele está dentro de mim de todas as maneiras, físicamente, no sangue e na alma. Nossos corações batem apressados e em mesmo ritimo, ao ponto que não sei diferenciar qual é o meu e qual o dele. Nos tornamos um, com os mesmos desejos e vontades, a mesma urgência dominando nossos corpos e mentes. Seguro um gritinho agudo mordendo sua boca cheia de sangue e ele geme comigo, me levando ao delírio. Não sei dizer se é um orgasmo físico ou espiritual, talvez seja os dois. ● ● ● Não passaram muitos minutos, mas a sensação é de que dormi por horas. Desperto sem noção de onde estou e encaro um lustre negro com formato de um candelabro grande. Pisco diversas vezes, minha cabeça roda como se eu estivesse acordando de ressaca. Sento e percebo um braço masculino transpassando meu corpo, minhas pernas entrelaçadas com a de outro alguém. A energia em forma de raio que se dissipa visível entre nós me desespera. Levanto correndo, empurrando Devon para o lado. Alcanço meu vestido e cubro o corpo. Enquanto ele se senta, passo as alças e prendo o sutiã nas costas, segurando o peso do vestido. Vou até a cômoda, onde tem um espelho, checar meus dentes, tentando subir o zíper lateral com as mãos. — Você não é uma vampira. — A voz de Devon soa como quem acordou agora, mas ele está atrás de mim, como um gato silencioso. Suas mãos já alcançam minha cintura e ele sobe o zíper para mim, beijando meu ombro esquerdo, sinto um choque incômodo. — Ainda. — E um dia eu serei? — Viro assustada, inclinando meu corpo para trás, na cômoda — Com a velocidade com que você bebe sangue, esse dia está próximo. — Com um sorriso divertido ele se afasta. Ele está de calça, mas sem camisa. Engulo em seco, checando seu corpo musculoso, observando enquanto ele tira a camisa do chão, chacoalhando, percebendo que está sem botões. Se eu me tornar uma vampira, o que acontece? — Surpreendentemente feroz. — Ele venta, rindo. Acho que o adjetivo dispensado se aplica a ele também e estou pasma por isso. Quer dizer, eu estava preparada para um jogo de sedução, mas não esperei que fosse me entregar de corpo e alma a ele, ou que fôssemos tão compatíveis. Devon vira para mim, erguendo as duas sobrancelhas, atirando a camisa preta na minha face: — O que está fazendo parada, escrava? Pegue uma camisa nova para mim. — Sim, senhor. — Tiro a camisa com seu cheiro impregnado do rosto e giro, abrindo uma das gavetas da cômoda.

Está cheia de camisas, escolho uma preta e fecho a gaveta. Ando até Devon, abrindo a camisa, vestindo primeiro um braço e depois o outro, ele vira de frente para mim e abotoo devagar, um a um, no silêncio. É uma sensação de constrangimento única. Confesso que nunca agi assim com ninguém, normalmente os garotos que tomam iniciativa comigo. Desvio os olhos para o lado. — Você é tão patética. — Devon ri, como quem escuta uma boa piada. Ergo a cabeça e ele segura no meu queixo para cima, fazendo contato visual, olhos sérios. — Não desvie o olhar porque respondi às suas provocações, vadia. Assuma responsabilidade por seus próprios atos. — Claro, Vossa Alteza Sereníssima. — Desafio, com um sorriso provocante, só para que suas palavras cretinas não me ofendam. — Não foi a primeira vez que me tocou, mesmo. — E fica melhor a cada vez. — Ele solta meu rosto, empurrando para trás e se afasta, indo até a cômoda arrumar os cabelos. Cretino! Pego o paletó do chão e desamasso, batendo com as mãos, mas imaginando que estou socando a cara desse babaca! Estendo para frente e Devon pega o paletó antes de deixar a saleta. Sento no sofá apoiando os cotovelos nos joelhos e seguro minha cabeça com as mãos, meu coração batendo a milhão. ● ● ● Passei um tempo tentando colocar meu cabelo no lugar e abri a porta da saleta quando achei que tinha recomposto o meu lado emocional. Abro a porta e respiro fundo para encarar o restante da festa, mas nem co sigo dar um passo. Sou empurrada para dentro da saleta e a porta fecha. Minha boca é invadida por um beijo quente e avassalador, duas mãos suaves seguram meu rosto, mas com luvas. Meus joelhos falseiam. Dou tapinhas no ombro de Zane para ele me soltar. — Hm? O que está fazendo? — Pergunto, mas não consigo vê-lo direito com a venda em seus olhos. — Você não acabou de assinar um contrato de fidelidade com Lady Lucretia? — Estava morrendo de saudades de você, achei uma boa ideia te dar um “oi”. — Ele sorri, seus braços me segurando. — Você ao menos sabe o que a palavra fidelidade quer dizer? — Seguro em seus braços, fazendo ele me soltar. — Por que você está tão brava e me ofendendo? — Zane suspira insatisfeito e puxa a venda dos olhos. — Nada! — Seco o suor da minha testa, chateada. Ergo os olhos para ele. Zane é o mesmo, cheiro, calor e expressividade, a única coisa que mudou foram seus olhos. Antes, azuis cheios de emoção, agora brancos e brilhantes, frios como a geleira que rodeia a cidade. — Estou sem calcinha. — Tudo bem, não vamos precisar dela mesmo. — Ele venta, rindo e fazendo uma piada típica. — Zane! — Cruzo os braços aborrecida. — Estou falando sério!

— Não leio mentes, você sabe, certo? — Ele ergue as mãos sem entender. — Será que você não pode adivinhar só olhando ao redor, Sherlock? — Aponto pela sala, com o indicador, rodando. Ele faz uma careta de dúvida, até tenta entender o que quero dizer, mas balança a cabeça em negação. — Acho que fiz aquele tal de Ósculo. — Que noite divertida, Jay! — Zane explode em uma risada. Coloco as mãos na cintura, exalando ar pela boca, insatisfeita. — Isso explica porque não quer que eu te agarre! — Você não pode me agarrar, está noivo. Fidelidade, lembra? Não ama Lady Lucretia? — Isso depende da sua definição de amor. — Zane desafia com um sorriso de deboche no rosto bonitinho. — Amor é quando a gente só pensa na pessoa, quer passar o tempo todo com ela e essa pessoa se torna o que temos de mais importante em nossa vida, ao ponto que nos sacrificamos por ela! — Então essa é você. — Zane pisca um olho, sorrindo. Daquele jeito que fala sério, mas não muito. — Idiota! — Respiro fundo desejando paciência e me sento no sofá, cobrindo o rosto, prestes a chorar. — Desculpe, Zane, eu estou fora de mim, não quero estragar sua festa com bobagens. — Poxa, Jay! Você está mesmo precisando de um resgate emocional. — Ele suspira e se aproxima de mim, sentando do meu lado no sofá, beijando minha cabeça e me abraçando. Eu fungo, chateada. — Primeiro, não me entenda mal. É claro que amo Lucretia, ou nem estaria nessa maluquice toda para início de conversa, mas você é minha melhor amiga e não preciso medir palavras e nem atitudes, eu só gosto de contato físico, tipo, com todo mundo. — É um cretino sem noção, mesmo. Tenho pena de Lady Lucretia que se casará com um canalha como você. — Mas sou um cretino que você adora! — Pare de fazer piadas, Zane! Não tem graça. — Peço com a voz embargada, mas fico segurando o choro. Apoio a cabeça no ombro dele, seu braço por cima do meu ombro. — Segunda coisa que preciso te esclarecer é que beijo na boca não tem o mesmo efeito com vampiros, é mais comum do que você imagina… Já o Ósculo, é coisa muito séria. É o tipo de intimidade mais forte que um vampiro pode ter, toca a alma e o coração, mais intenso do que sexo. — Zane, você não está ajudando nesse instante! — Fulmino-o com o olhar cheio de lágrimas. — Vai ajudar se eu disse que Ósculo só é possível entre vampiros? — Ele debocha e eu reviro os olhos, cansada. — O que rolou foi apenas Relação-Sanguínea. É especialmente difícil para nós humanos… quer dizer, você, humana… — Ele solta um suspiro insatisfeito que parte o meu coração. — A propósito, da última vez que te vi, você estava chorando por Lyek. — Nada mudou nesse campo, não se preocupe! — Enxugo as lágrimas com amargura, passando as mãos nos olhos. — Lyek deve estar se divertindo com Elisabeth no festival. Acredita que ela foi até minha casa hoje entregar o vestido que Lady Lucretia enviou, só para me contar? — Uma mulher e seu coração partido, que desastre! — Zane brinca, rindo. Dou um soco no ombro dele de raiva. — Você precisa dar tempo ao tempo, Jay e toda essa tempestade vai

passar. Especialmente que é fato que você irá se tornar uma vampira pela Casa Riezdra e as coisas entre você e Lyek ficarão muito distantes. — Zane olha para mim, seus olhos brilhando no escuro são um lembrete de que ele sabe do que está falando. — Vai por mim. — Você está soando como meu amigo gay de novo, Zane. — Como você é vendida! — Ele ri e segura meu queixo com uma mão, dando um selinho na minha boca. Minha vontade de chorar some, um poder incrível que ele tem. Entendo completamente o que ele diz sobre ser capaz de afastar pesadelos, pensamentos ruins e todas essas coisas capazes de envenenar a mente. — E já que você e meu pai estão nesse lance seríssimo de Ósculo, por acaso devo te chamar de mãe? — Ah, por favor, cale essa boca indecente! — Dou um empurrão nele, derrubando-o do sofá. Ele cai rindo. — Senti sua falta, besta! — É, eu senti sua falta também. Estou enlouquecendo com todos esses vampiros ao redor de mim, sem poder sair durante o dia. — Zane confessa, com um sorriso que tenta disfarçar sua tristeza. — Condenei você ao inferno, não foi? — Mais ou menos, tem algumas coisas divertidas. — Zane dá de ombros, achando que me convence. — Ouvi que você não está conseguindo tomar sangue. — Acho terrível fazer com alguém algo que eu odiava que fizessem comigo. Fico enjoado só de pensar. — Zane confessa e meu coração esquenta só de saber que ele ainda pensa da mesma forma. Não entendo o que ele quis dizer com perder um pouco da sua humanidade, ainda está tão impregnada nele! — E você pode ficar sem tomar sangue? — Não. Uma hora eu tenho que beber, eles querem que eu tenha um escravo, você consegue imaginar? — Ele faz uma expressão indisposta e se senta no chão, apoiando os braços nas pernas encolhidas. — Você se acostuma. — Eu espero que não! — Você é forte vai ficar bem. — Uso suas palavras contra ele e recebo uma olhada enviesada em resposta. — Você e Lady Lucretia estavam lindos na cerimônia, quase chorei. — Ah, por favor. — Ele revira os olhos não acreditando nas minhas palavras e pega a venda do chão. — Isso pinica! E você viu que nojento? Tive que beber o sangue de todas aquelas pessoas. E frio! Teve vezes, que achei que fosse vomitar, claro que se eu fizesse isso, eu teria grandes problemas político, se você me entende. — Você está bem tagarela, não é? — Que posso dizer? Estou confinado em um quarto há dias e quando finalmente consigo sair, acabo em um quarto de novo. Seja paciente comigo! — Desculpe! — Escorrego para o chão e engatinho até ele. Seguro na venda de sua mão e puxo, esticando o elástico. — Pare de ficar me consolando, é seu noivado, você devia estar com sua noiva, dançando ou se amassando com ela atrás da cortina, sei lá. — Passo a venda por cima de sua cabeça, colocando sobre seus olhos brilhantes. — É indelicado deixá-la tanto tempo esperando, de qualquer forma. — Se você prometer que amanhã vai se juntar a mim, Lucretia, Byrn e Caedyn para uma

cavalgada noturna, eu sigo seus conselhos. — Zane se levanta e estende a mão para mim. — Com cavalos de verdade? — Aham, temos alguns cavalos islandeses. — Tudo bem, eu acho. — Seguro em sua mão e me levanto. — Ainda tem docinhos na festa? Estou faminta! — Se não tiver, mando fazer para você. — Ele passa o braço por meus ombros, me guiando até a porta. — A propósito, quem é Caedyn? — Filha de Izobel, minha tia. — Zane explica, como se fosse óbvio. Talvez para ele, né? Faço que não entendi balançando a cabeça. — Irmã de Riezdra. — Você tem uma prima? — Por que você está sorrindo, eu não disse que ela é legal! — Zane abre a porta e saímos da saleta abraçados, caminhando juntos como antigamente, mas aos meus olhos, tudo está diferente.

CAPÍTULO 29

Vale das sombras Cavalgamos por terras congeladas, não há nenhuma luz, apenas a enorme escuridão da noite e o céu nublado, enegrecido. Com a visão noturna, o cenário fica um pouco azulado, sem sombras, como uma pintura a óleo mal feita. O vento gelado bate nas minha nuca, bochecha e nariz, um pouco incômodo e que causa um pequeno estremecer na mandíbula. Entretanto, os vampiros não sentem o mesmo frio que eu. Os cavalos se assemelham à pôneis, robustos e de corpo coberto por espesso pelo. Eles são de tamanho baixo e pesados, com a coluna um pouco curvada, dando a impressão de serem barrigudos, mas a seleção natural os fazem vencedores nesse clima ingrato em N-D44. Estou montada em um cavalo marrom avermelhado de crina preta que é um pouco teimoso e gosta de cavalgar sempre com o nariz à frente do cavalo de cor avelã em que Byrn está montada. Lady Lucretia e Zane cavalgam um pouco mais à frente de mãos dadas, em cavalos negros como suas roupas fechadas pela castidade nupcial e Lady Caedyn, que é uma menina magrinha e ruiva de cabelos cacheados e volumosos, cavalga um lindo cavalo com pelos champanhe.[8] Byrn acelera seu cavalo para emparelhar com os príncipes e meu cavalo se adianta para ultrapassar o dela, mesmo que eu puxe as rédeas, tentando fazê-lo parar. Que competitivo e teimoso! Esse cavalo me lembra imediatamente de alguém: Riezdra. É difícil pensar em Devon nesse instante, meu coração acelera daquele jeito descontrolado, como quando estávamos nos beijando e confesso que parece que toda a pele ao redor da boca está sensibilizada pelo arranhar de sua barba. É um lembrete constante de algo que quero esquecer: como me sinto toda vez que o perfume amadeirado enche meu nariz. — Argh, isso está me matando! — Zane reclama e coloca a mão livre, coberta por uma luva nos olhos, por dentro da venda de renda negra, coçando. O capuz felpudo do casaco que ele está usando cai de sua cabeça com o movimento brusco. — Espere! Não tire! — Lucretia segura seu braço em desespero, tendo que se inclinar, equilibrada nas pedaleiras. — Ai! — Zane reclama. Lady Lucretia acaba forçando Zane para o lado e como ele soltou as rédeas, desequilibra-se e cai, puxando-a para o chão. Eles caem entre os cavalos na neve fofa. Os cavalos correm para longe, afastando-se e Lady Caedyn bate os estribos para alcançá-los. Zane dá risada, já sem a venda. — Não acredito! Você tirou a venda! — A princesa cruza os braços, com neve nos cotovelos e faz biquinho chateada, os cabelos compridos e ondulados estão soltos, mas ela está com uma touca negra na cabeça, por dentro do capuz. — Ah, por favor! Quebre as regras uma vez na sua vida, Lucretia! — Zane se ergue

apoiando o cotovelo na neve e estica a mão, para puxar a venda dela. — Não! Zane! — Lucretia segura seus pulsos e eles lutam um pouco, até que Zane consegue alcançar a renda e tira de seus olhos, jogando-a longe. De onde estou, vejo o momento em que eles cruzam olhares e ficam em silencio por um tempo, como se o tempo expandisse. Um sorriso fofo surge nos lábios de Zane. — Aí, viu, você estragou tudo, cretino! Eu queria ver esse olhar no dia do nosso casamento! — Prometo que você verá todos os dias de nossas vidas. — No dia do nosso casamento! — Ela segura no rosto dele com um misto de raiva, de quem quer destruir algo bonito, mas não tem coragem. — Você tem que respeitar os costumes, Zane! — Eles são entediantes! — Zane revira os olhos brancos. — Eles existem por um motivo! — Lady Lucretia dá um tapa na perna de Zane. — Qual o seu problema? Não aguentou nem o primeiro dia de Luto Nupcial! — Essa droga incomoda! Byrn desce do cavalo e eu seguro as rédeas para ela. Minha amiga procura pelas duas vendas, afundando os pés na neve. Ela perde o equilíbrio e quase cai, acaba dando risada e retorna com as vendas, batendo-as nas mãos, tirando a neve. Lady Lucretia pega as vendas lançando um sorriso de agradecimento. — Não seja tão amoral. — Lady Lucretia coloca uma das vendas em Zane, trocando um selinho e fica em pé, ajeitando a touca. Ela coloca a venda em si e cobre a cabeça com o capuz felpudo, virando-se para Lady Caedyn, acenando enquanto caminha até seu cavalo. — Veja só, ela te chamou de amoral. — Byrn provoca, chutando neve nas pernas de Zane. — Considerarei um elogio! — Ele faz uma bolinha de neve com as mãos e joga nela. — Ai! Isso dói! — Byrn se abaixa e faz uma bolinha. — Você vai ver só! — Ela atira a bolinha em Zane, mas erra feio e acaba me atingindo bem no rosto. A sensação é dolorida, como levar uma bolada na aula de educação física, mas muito mais gelada! — Ai, sua cega! — Reclamo, rindo e desço do cavalo, fazendo uma bolinha, não chego a lançar. — Shadow! — Lady Lucretia grita apavorada. Viramos assustados para ela e um dos cavalos negros está no chão, Lady Lucretia coloca as mãos ao redor do seu focinho e ele relincha. — O que houve? O que houve? — Eu não sei! — Lady Caedyn desce do cavalo, para ajudá-la. Zane fica em pé e corre até ela, segurando em seus ombros. Eu e Byrn trocamos olhares assustados. Ela começa a caminhar na direção dos outros e eu seguro nas rédeas dos cavalos que viemos, puxando-os. Dou três passos e o cavalo de Lady Lucretia começa a tremelicar no chão, como se estivesse tendo um derrame ou algo do tipo, o que é muito estranho já que cavalos islandeses costumam morrer de velhice e os cavalos são adultos. — Ahhh! — Lady Lucretia grita assustada de repente, cobrindo o rosto com os braços. O cavalo tem um ímpeto em instinto e tenta mordê-la, no segundo em que Byrn dá dois passos para trás em susto e eu paro de andar. Zane ergue a mão, o cavalo sofre um empurrão para trás e fica suspenso no ar. Escuto os

ossos dele se quebrando e o cavalo relincha em dor. — Zane! — Lady Lucretia fica em pé, segurando no braço de Zane. — Pare, vai matálo! O cavalo grita mais alto e solto as rédeas, colocando as mãos sobre os olhos, sem coragem de continuar olhando, agoniada. Escuto um barulho seco dos ossos quebrando, Byrn grita agudo em susto e o cavalo para de relinchar. Tudo fica em silêncio. Abro os olhos respirando forte, em tempo de ver o corpo do cavalo retorcido de forma grotesca no ar. Lady Caedyn está com os olhos dourados arregalados de pavor e os quatro cavalos correm em disparada para longe, cada um para uma direção. — O quê aconteceu? — Zane parece cair em si só agora. O corpo do cavalo cai na neve. Ele olha para as mãos, com as palmas para cima. — E-eu… O que eu fiz? — Não foi nada, meu bem. — Lady Lucretia está com a boca trêmula e suas mãos delicadas alcançam o rosto de Zane, virando-o de frente para ela. — Você estava só me protegendo, foi só isso. Está tudo bem. — Isso é estúpido. — Zane afasta as mãos dela e a empurra. Ele tira a renda dos olhos, jogando no chão, aos pés da princesa e vira de costas para ela. Quando passa por mim, em uma fúria silenciosa afundando as botas na neve, reparo em seus olhos brancos cheios de lágrimas. Acho que nunca vi Zane assim e me entristece ver tanta dor em quem não merece mais sofrer. Todos sabemos o quanto ele não queria ser um vampiro, acho que essa adaptação está sendo mais difícil para ele do que pensávamos que seria. Sinto-me culpada e impotente, não sou capaz de fazer nada para consolá-lo nesse instante, não tenho o dom de espantar pesadelos. Lady Lucretia se abaixa e pega a venda que ele jogou no chão chateada, colocando-a no coração. Ela comprime os lábios trêmulos, tentando não chorar. Byrn a abraça, segurando em seus ombros delicados e a guia, em minha direção, a cabeça baixa entristecida. — Vá cobrir o corpo do animal com neve, escrava! — Lady Caedyn cruza os braços e me olha com exigência. — Caedyn! — Lady Lucretia interfere, aborrecida. — Jaylee é minha convidada, se quiser, cubra o cavalo você. — Você sempre foi uma fraca, alteza. — Lady Caedyn cospe no chão e passa por Lady Lucretia, ofendendo-a. — Ei! — Giro, protestando. — Deixe! — Lady Lucretia me impede, segurando firme meu braço. — Não vale a pena, Caedyn é amargurada pela inveja. — Ela olha para onde está seu cavalo, sem sorrir. — Peço um favor à vocês, ajudem-me a dar um funeral decente à Shadow. — Claro. — Byrn concorda e anda até o cadáver do cavalo. Eu tenho muitas perguntas que ainda precisam serem respondidas, mas em respeito ao luto, apenas sigo atrás de Byrn. ● ● ● Começamos a cobrir o corpo retorcido do cavalo da princesa com a neve. Uma coisa

estranha que noto é que em seu tornozelo dianteiro direito, há sangue, primeiro penso ser uma fratura exposta, mas noto que as marcas se assemelham à um arranhão, marcas de unhas, como garras humanas. Inclusive, acho que enxergo uma unha de gente encravada na pele do animal. Estico a mão para levantar a pelagem e pegar a unha, mas Byrn joga neve por cima, me impedindo. — Irc, não encoste, pode te dar doença! Vai saber o que ele teve! — Ela abre bem os olhos, jogando mais neve. — Tem razão. — Afasto-me e junto neve nas mãos, cobrindo o pobre animal, brutalmente assassinado. Colocamos três pedras em cima, para caracterizar um ritual. Não vamos atrás dos outros cavalos e voltamos para a cidade a pé. No meio do caminho, a unidade de Devon cruza conosco, patrulhando. — Está tudo bem, vossa alteza real? — Román se adianta, vindo em nossa direção. Ele tem duas pistolas presas em um coldre por cima da farda e um tapa-olho. — Estou bem, mas quatro cavalos fugiram. — Lady Lucretia informa. — O que houve com o quinto? — Darynina pergunta, erguendo as duas sobrancelhas. Em suas mãos, um fuzil. — Morreu tragicamente. — Lady Lucretia responde. — Zane e Caedyn cruzaram com vocês? — Não. Lady Caedyn retornou sozinha. — Dradynina responde. — Viemos em seguida. — O que vocês estavam fazendo aqui fora sem uma unidade de guarda? — Devon pergunta de braços cruzados, aborrecido com as travessuras do Casal Real. — Eu só queria sair para respirar um pouco. — Lady Lucretia se adianta, passando por Devon e entregando a venda de Zane para ele. — Eu sinto muito, senhor, não vai mais se repetir. — Agora o quê? — Devon resfolega, impaciente, com os olhos estreitados. — O cavalo teve um infarto, não sei, tentou me morder e Zane o matou sem querer. — Lady Lucretia conta, gesticulando com as mãos como se torcesse um pano e depois ergue as mãos, na direção da cidade. — Ele saiu na frente, achei que tinha retornado. — Vá para dentro, Lucretia, é quase de manhã. Continuaremos daqui. — Devon ordena impaciente, com expresão fria. — Drarynina, vá com elas. Lady Lucretia o reverencia e passa rápido, sendo seguida por Byrn. Drarynina ajeita o rifle no corpo, os cabelos presos em uma trança comprida, seguindo a princesa. Devon ergue as duas sobrancelhas para mim, ordenando que eu siga com elas. — Talvez você queira olhar o cavalo, meu senhor. — Passo por ele reverenciando. — Ele foi ferido por alguma coisa, na pata dianteira. — Espere. — Ele me chama com um suspiro. Olho por cima do ombro. — Leve-nos até lá. — Sim senhor. — Giro e passo novamente por ele, andando na frente. Enquanto caminhamos, uma nevasca começa, ventando forte e gelado. Fecho todo o meu casaco e coloco o capuz na cabeça, cobrindo meu nariz e boca. — Use um desses. — Devon me entrega um óculos de proteção transparente, ele já está usando um. — Ou seus olhos vão congelar.

— Obrigada. — Agradeço e coloco os óculos no rosto. — Com essa nevasca será impossível localizar vestígeos, mas com certeza ele subiu a montanha. — Román aponta marcas no chão e na neve. Ele está usando um dos óculos de proteção também. — Quanto você acha que Zane consegue andar? — Considerando que ele é jovem e recém-transformado? Não tanto, poderemos alcançálo. — Está vendo essas marcas aqui? — Román se abaixa e aponta para uma marca na neve que parece diferente da trilha que estamos seguindo. — Não são as mesmas de Zane. Pode ser de um dos cavalos ou então... — Ele está sendo seguido. — Devon solta ar pela boca, como se a vida estivesse sendo difícil com ele nesse instante. Ele fica em pé e olha para o céu. — Ao menos o Sol nascerá por entre nuvens hoje. — Você disse que o cavalo estava ferido? — Román olha para mim, deduzindo alguma coisa em silêncio. Balanço a cabeça respondendo que "sim". — Onde ele está? — Ali, mais para baixo. — Aponto para o lado. — Parecia um arranhão, como se um animal tivesse arranhado-o, mas não tinham animais perto! — Alguma peculiaridade? — Devon pergunta, o olhar dourado em cima de mim. — Não. — Falo rápido, mas me arrependo logo depois. — Ah, tinha uma coisa esquisita no pelo, como uma unha. — Uma unha? — Román se adianta, caminhando para o lado que apontei. — Continuem por aí, eu vou checar o cavalo e encontro vocês. — Avise pelo rádio! Especialmente se for Zegrath. — Devon segue para a montanha, pinheiros sem folhas se estendem pela região, até o topo. — Sim, senhor. — Román corre, pegando distância. — Você disse Zegrath? — Apresso os passos atrás de Devon, mas é especialmente difícil seguir afundando os passos na densa neve. — Você me escutou. — Sua ex-esposa? — Apoio a mão em um dos troncos congelados. — Celeste? — Não importa o quão ruim já tenha sido meu dia, aquela vadia sabe como tornar ainda pior! — Devon resfolega no topo da montanha. — Ouvi dizer que é isso que "ex" fazem. — Provoco, alcançando-o. Devon venta, rindo. Acho que ele concorda. — Awm que feio, meu amor. Falando mal de mim pelas costas. — Uma voz rígida soa no alto de nossas cabeças. Olho para cima e no alto de um pinheiro há uma figura magra, sentada de pernas cruzadas, usando uma roupa que parece de látex branca, lixando as unhas. — Por acaso essa é sua nova namorada? Um pouco novinha demais para você, não acha? — Você só está com ciúme que ela é mais gostosa que você. — Devon debocha, mas é possível ouvir em sua voz o quanto ele detesta vê-la novamente. — Admita que sentiu minha falta. — Celeste desce do pinheiro e pisa gentilmente na neve em frente a nós, mantendo alguns metros de distância. Ela é alta e esguia, com um rosto alongado e pele amarronzada. Os cabelos são escuros como a noite e seus olhos são por inteiro negros, me checando. — Claro, chegue mais perto para eu te mostrar todo meu amor. — Devon dá um passo a

frente, em direção à Celeste, marcando um perímetro de defesa com as mãos. Ele me empurra mais para o lado, agindo como um escudo. Escutamos um ganido que parece de cachorro, pela direita. — Malditos lobos! — Os ganidos cessam. Reconheço a voz de Zane. — Zane! — Devon grita. — Awm a família reunida novamente! — Celeste vira a cabeça na direção da voz de Zane. — Estou bem! — Ele responde de longe, sem fazer ideia de que Celeste abre um sorriso de presas grandes para fora, na direção dele. — Vou abraçar nosso filho primeiro! -Celeste dá um salto na direção da voz de Zane e Devon a intercepta depressa, colocando as mãos ao redor da cabeça dela, uma no queixo e outra na nuca. Ela mostra os dentes para ele como uma onça, rosnando. — Não, você não vai. — Com violência Devon torce o pescoço dela, dá para ouvir o osso quebrar. Ele a solta no chão. Levo até um susto. Que fácil! Eu esperava que ela desse mais trabalho. Observo Celeste no chão, com o pescoço torcido e os olhos abertos. Devon se afasta, dando passos para trás. — Senhor? — A voz de Román soa no rádio, preso no bracelete da armadura de Devon. — É uma unha Zegrath, com certeza. — Venha logo para cá, encontrei a dona da unha. — Devon responde rápido. — Ei! — Zane aparece por entre os troncos de árvore congelados, a roupa cheia de neve e os cabeços também. — O que vocês estão fazendo aqui? Devon olha para Zane por cima do ombro. — Onde é que você estava? — Pergunta irado com Zane. — Procurando os cavalos que fugiram! — Zane se aproxima de nós. O pequeno momento de distração dá tempo para que Celeste fique em pé e torça o pescoço colocando-o no lugar. Ela é rápida, alcança um galho de árvore e ergue, como um bastão de basebal. — Cuidado! — Eu grito e me abaixo, escapando do golpe. Não dá tempo para Devon desviar, quando ele percebe já é atingido pelo galho e arremessado para longe. Zane para de andar, reconhecendo-a, ele abre bem os olhos brancos. Os olhos negros de Celeste grudam em mim, ela sorri em vitória.

CAPÍTULO 30

Presente de noivado Celeste gira o galho na minha direção. Rolo rapidamente para o lado inverso, escapando do golpe. Por cima da minha cabeça, Celeste joga o tronco em cima de Zane. Ele ergue as duas mãos e o galho volta na direção dela, atingindo-a com força. Seus pés de salto fino arrastam pelo chão deixando duas marcas na neve e Celeste cai no chão, com o tronco na barriga. — Isso não é jeito de mostrar amor à sua mãe! — Celeste rosna afastando o tronco e se levantando como um gato ágil, dando uma estrela para trás. — Mas também, ouvi dizer que você está se casando e nem me enviou um convite! — Você está um pouco atrasada para festa, já acabou. — Zane me puxa pelo braço, ajudando-me a ficar em pé na neve fofa. — Não deixe as unhas dela encostarem em você. — Ele me avisa. — Tá bem. — Aceno que entendi com a cabeça. — Resolvi dar uma passadinha e trazer um presente. — Celeste coloca a mão na cintura, jogando o quadril para o lado de jeito sexy. — Chamei uns amigos meus, espero que não se importe! Atrás dela, vários olhos surgem na escuridão noturna, acendendo. São vampiros? Nem consigo contar quantos são! Zane dá um passo para trás, percebendo o mesmo que eu: nossa enorme desvantagem. — Vamos crianças! Apareçam! — Ela ergue as mãos, como quem levanta algo pesado. Mãos cinzentas rompem bruscamente pela neve, e cadáveres levantam-se na frente de Celeste, ela dá uma risada enquanto encaro decréptos com roupas rasgadas e sujas, nos cercando. A maioria está com o rosto deformado, com pele caindo e ossos à mostra. — Zumbis?! Você trouxe zumbis! — Zane soa inconformado, ventando pela boca. — Não foi o que você me pediu de Natal? Como chamava? Plants vs Zombies? — Celeste torce a boca, batendo o indicador no queixo, como quem está pensando em uma grande questão. Encaro o horizonte, analisando as possibilidades de fuga. Mais ao longe, Devon está levantando com a mão no ombro esquerdo, por entre árvores tombadas. Ele gira o ombro, encaixando o osso no lugar e preparando-se para a batalha. — Na verdade, da última vez, era Left 4 Dead. — Zane a lembra. — Tanto faz! — Celeste resfolega e coloca as duas mãos na cintura, sorrindo. — Mandei alguns para a sua noivinha, também, para animar! Lucretia pareceu um pouco chateada com o súbito mal estar daquele cavalo. Sempre foi uma menina de bom coração, é uma pena que meus rapazes irão comê-lo! — Cretina! — Zane grita irritado.

— Isso é jeito de falar com sua mãe, moleque? Não te dei uma educação apropriada? — Ela mantém o sorriso imbecílico no rosto. — Ah, é, acho que não dei! — Já chega Celeste. — Devon rosna, distante. Sua voz como uma ameaça flamejante, falando entre dentes cerrados. — O que você vai fazer, doçura? — Celeste vira-se para ele, nada impressionada, o queixo levantado para cima em uma pose arrogante, de uma mulher que sabe que é muito poderosa. Se ela não se sente ameaçada por alguém como Devon, então sem dúvida eu devo temê-la. — Você sabe que não pode me matar! — Ela desafia, sorridente, as presas grandes e afiadas prontas para um ataque. — Mas eu posso matá-los! — Ela estala os dedos, dando um comando. Os zumbis recebem um tranco acordando e correm em nossa direção, são tão rápidos e numerosos que nem dá tempo de fugir ou reagir. Zane me puxa para mais para trás, mas também há zumbis em nossas costas, vindo em nossa direção fechando um círculo. Um raio branco e forte explode contra a neve, barrando alguns zumbis, cortando-os em pedaços. Devon dá um salto na direção de Celeste e a atinge segurando brutalmente em seu pescoço, a armadura expande ao redor de seus músculos do braço, de um jeito que penso que se fosse feita de pano, teria se rasgado. Com um choque, Celeste voa para trás, mas consegue se equilibrar colocando a mão para frente e inclinando o corpo. Celeste pega velocidade correndo na direção dele e eles se chocam com socos e chutes violentos, o som da batalha ecoando nas montanhas de neve como explosões. Vejo raios energéticos percorrê-los. São tantos zumbis que logo estamos cercados de novo. Zane estende as mãos, empurrando alguns zumbis para longe de nós, arremessando-os contra os troncos de árvores, alguns ficam empalados nos galhos. Percebo que se não fizer alguma coisa, vou acabar morrendo nessa batalha. Fecho a mão juntando energia na palma e dou um soco poderoso em um zumbi, fazendo-o voar para trás, com mandíbula dilacerada, batendo-se em outros zumbis e parando apenas contra o tronco de uma árvore, a costela se parte e ele cai no chão. Olho para minha mão e uma energia cheia de raios a envolve, como aqueles globos elétricos. Não sou mais tão indefesa e estou ainda mais forte do que da última vez que usei meus poderes. Os zumbis não morrem, eles se levantam novamente, vindo em nossa direção. Os que estão nas árvores se debatem tentando se soltar, o zumbi do qual quebrei a costela se arrasta com as mãos na minha direção. Zane acaba se separando de mim, empurrado por zumbis furiosos que o jogam no chão. Corro para ajudá-lo, mas o zumbi recebe um tiro na cabeça. Olho para a direção em que veio o tiro e vejo Román, com suas pistolas, atirando para todos os lados, com uma rapidez superior à muitos soldados. Diversos zumbis são nocauteados, mas se levantam logo em seguida, alguns estão sem cabeças. — Parece um pesadelo! — Grito, atirando raios e eletrocutando um grupo de zumbis. — Estou achando divertido! — Román sorri, pela expressão de satisfação, eu não duvido. Vampiros são um pouco esquisitos. Uma explosão abre uma cratera no chão, com Celeste no centro, rindo deitada. Devon rosna, mostrando os caninos de vampiro para ela, mas ela não se intimida. O que ela quis dizer

sobre ele não poder matá-la, é sério? Celeste o chuta com violência, ele voa para trás e ela fica de pé, olhando para mim e estreitando os olhos negros. Oh, oh! Ela corre em minha direção e eu acho que serei atacada, preparo o punho para interceptá-la, mas Celeste dá um pulo com grande impulso, desviando de mim. Vejo o momento em que Celeste cai em cima de Zane, derrubando-o no chão, por entre zumbis, eles rolam para longe e ela sobe por cima dele mostrando os dentes. Zane a segura nos ombros, bloqueando o ataque. Ela estica o braço com a mão em forma de uma garra, unhas crescem, ficando maiores e negras, querendo arranhá-lo. Ele intercepta o golpe segurando em seus pulsos. Fico com a impressão de que é algo bem pessoal que ela tem com Devon, para atacar Zane assim com tanta fúria. — Fique parado, criança maldita! — Ela grita por cima dele, curvando o corpo para mordê-lo. Zane não parece capaz de detê-la. Meu sangue ferve e ando depressa até Celeste, passando o braço ao redor de seu pescoço, dando um mata-leão. Zane a empurra com os joelhos e rola, escapando. Ele faz menção de vir me ajudar, mas um zumbi corre para cima dele como se fosse um jogador de futebol americano. Ele se defende com um braço, mas acaba recebendo o impacto do corpo do zumbi, caindo no chão. — Largue-me sua vadia! — Celeste dá uma dentada forte no meu antebraço braço. — Ahhh! — Grito em dor, soltando-a. Encaro os furos de sua mordida cruel e grandes. — Humana maldita! — Celeste se vira para mim, a boca vermelha de sangue, rosnando enraivecida e cospe meu sangue. — Você tem um gosto terrível! — Ela vem para cima. Seguro seus pulsos, para ela não me atingir, lembrando de manter suas unhas distantes. De perto, rosnando com a boca fedida na minha direção posso ver as veias negras ao redor de seus olhos de pura escuridão. É assustador, ela parece um animal entre o morto e o descontrolado. Celeste me dá uma rasteira e me derruba no chão, erguendo a mão para um ataque certeiro. Cubro o rosto com os braços por instinto, não é a decisão mais inteligente do mundo dar o braço de presente para ela arranhar. — Afaste-se. — Devon surge atrás dela, puxando seus cabelos negros. Ele a atira longe, contra uma árvore e Celeste cai na neve como um pedaço de tronco velho, mas logo se levanta. — Você sempre tão romântico! — Celeste coloca o calcanhar na árvore, pegando impulso e dá um salto violento para cima dele. — Cale sua boca maldita! — Devon soca-a na barriga, envolvendo-a com raios brancos. Ela cai para trás, com a mão na barriga onde foi acertada e a impressão que eu fico é que a descarga elétrica foi bem menor do que a que ele usou contra as naves dos alienígenas. Ele está hesitando? Ou será que Celeste é tão poderosa assim? Celeste mostra os dentes para ele e pula para trás, subindo nas árvores. Antes que Devon possa pensar em seguí-la, vários zumbis se amontoam por cima dele, atacando-o e derrubandoo no chão. Em minha última visão de Celeste, ela está fugindo como uma ginasta, pulando nas árvores.

Devon vira um montinho de Zumbis, mas eles se acendem com um raio branco, e explodem virando pedaços de carne podre. — Eles não morrem?! — Zane grita inconformado, com as costas encostadas em Román, ele está segurando uma pistola, nem sei onde conseguiu. — Não sei! — Román segura duas pistolas apontadas para os zumbis que os cercam. — Todo zumbi devia morrer com tiro na cabeça! — Não esses! — Zane responde, atirando também. — Vai ver são super-zumbis e tem que dar dois tiros. — Dou de ombros. — O nome correto é carniçau. — Devon me conserta, batendo a neve da armadura. O óculos de proteção dele tem uma lente rachada. Um zumbi vem para cima dele com fúria, mas sem se abalar, Devon segura no braço do zumbi e ele leva um choque, caindo no chão. — Literalmente cadáveres que obedecem comandos como marionetes, não podem morrer se já estão mortos. — E o que fazemos? — Pergunto. — A única coisa realmente eficiente contra eles é fogo. — Devon puxa o braço do zumbi fora e joga longe. — Mas desmembramento ajuda. — Por que não disse logo? — Reviro os olhos e quando um zumbi me ataca, dou um soco forte em sua barriga, partindo-o em dois. — Você precisa de treinamento, mas nada mal para uma novata. — Devon me observa. — Isso foi um elogio? — Pergunto sorrindo. — Ao seu traseiro, até que sim. Reviro os olhos. Que babaca! Não acredito nisso! Se não estivesse cercada por zumbis eu daria um soco na cara desse cretino. Soco mais um zumbi para longe e rolo por baixo da perna de outro, escapando de um ataque frontal. Passo uma rasteira derrubando-o no chão. Vejo o instante que Devon segura nos braços de um zumbi e pisa forte em suas costas. separando os braços do corpo. É uma violência feroz, mas ao mesmo tempo, executada com precisão e calma, como se ele dispendesse de todo o tempo do mundo para desmembrar zumbis. Digo, carniçaus. — Precisam de um lança chamas? — Román pergunta. — Seria útil. — Devon concorda. — Recuem! — Roman avisa. — E se abaixem, agora! Faço como ele pediu, agrupando e abaixando o corpo. Román atira. Os tiros de sua pistola se modificam, em vez de pequenos feixes energéticos, duas grandiosas labaredas em forma de jato atingem os zumbis. Román dá risada divertindo-se como um maníaco, acho que ele desconta a raiva e o ressentimento que sente na batalha. Os zumbis começam a queimar e se transformam em verdadeiras tochas ambulantes, abraçando-se com árvores e derretendo a neve. As árvores pegam fogo, aumentando ainda mais o incêndio. É rápido, logo não há mais zumbis e Román guarda as armas nos coldres. Ele também controla as chamas do incêndio na floresta, fazendo-as sumir. Fico em pé, encarando um amontoado de zumbis pegando fogo e virando cinzas. — Acho que foi até fácil para você, Román. — Devon venta, rindo. — De fato, senhor. — Román sorri satisfeito e estica as sobrancelhas escuras,

concordando. — E Celeste? — Zane pergunta. — Fugiu como um rato, é claro. — Devon tira os óculos quebrados dos olhos, jogando na neve. — Depois nos preocupamos com ela. Avisaremos ao Conselho que Zegrath atacou. Estão em Exílio e não deveriam se aproximar. — Acho que ela não dá a mínima para o que pensa o Conselho, se quer saber. — Zane concorda. — É o que vampiros corrompidos pela desonra fazem. — Devon estende para ele a venda. Zane respira fundo e troca pela pistola, colocando nos olhos novamente. Devon prende a pistola em sua perna, no coldre. Não vi o momento em que ele deu a arma para Zane, mas tomar consciência de que ele alcançou Zane no meio da batalha com a intenção de protegê-lo me deixa de certa forma segura e admirada. Não me resta dúvidas que Devon se preocupa com quem ama. É certamente uma qualidade, porém, uma enorme fraqueza. Celeste fugiu sem conseguir sem ferir um de nós. Não sei exatamente o que ela queria, se era machucar Zane, atingir Devon ou simplesmente criar uma enorme confusão por pura diversão, mas tive certeza de que ela é uma adversária muito poderosa e com grandes ressentimentos a respeito de Devon. Caminhamos juntos até o outro lado da montanha, por onde viemos. Podemos ouvir o barulho de tiros e bombas perto da cidade e encaramos o nascer do sol por trás de nuvens douradas, criando uma silhueta bonita de N-D44. Há tropas de soldados posicionados nos dois flancos, alguns armados com lança chamas. — É assim que se parece um Apocalipse zumbi. — Comento, olhando para o extenso campo de batalhas tomado por uma horda de carniçais. — E agora o que fazemos? — Explodimos alguns zumbis. — Devon sorri de um jeito malicioso, passando língua nos dentes. Vejo seus caninos surgirem e seus olhos piscam. — Adoro essa parte! — Román anima-se e adianta-se, correndo na frente em direção ao campo de batalha. — Uma coisa tenho que admitir, foi a primeira vez que Celeste acertou em um presente. — Zane se diverte, com as mãos na cintura. — Quer apostar quem mata mais? Cada zumbi vale um ponto! — Pergunto estalando os dedos das mãos. — Darei a vocês dois uma hora de vantagem. — Devon tira as luvas receptoras e me entrega, com um sorriso divertido e olhos que me surpreendem, por estarem pacientes. — Vá. Pego as luva e visto, entrando junto com Zane no campo de batalha.

CAPÍTULO 31

Peixes e tubarões A densa nevasca se mistura à poeira e fuligem das enormes labaredas de corpos decrépitos dos carniçais abatidos. O vento esfria uma das minhas bochechas enquanto as chamas de uma fogueira esquenta a outra. Contemplo o cenário de batalha que se estende por metros até os flancos próximos aos portões de N-D44, com a certeza de que estou ficando habituada ao cenário de destruição. Deve ser quase meio dia, mas a sensação pela falta de luz é deprimente, como se a noite fosse mais longa nessa região. O céu está ocre e escuro. Sentada em cima de uma grande pedra de gelo, arranco da coxa um pedaço de metal triangular. Faço cara de dor, mas não grito. Pelo rasgo da calça, vejo a pele exposta começar a cicatrizar. — Se machucou, escrava? — Caedyn senta do meu lado, com um sorriso sádico no rosto. Ela está de armadura, mas sem capacete. Noto que, como uma descendente da Casa Riezdra, ela está com luvas receptoras de energia também. — Vou sobreviver. — Dou de ombros. — Hm. — Caedyn cruza os braços, enquanto flocos de neves amontam-se em seus cabelos vermelhos, olhando para onde soldados incineram corpos mutilados. Minha barriga ronca alto, coloco a mão nela. — Fome? — Demais! — É, isso acontece. — Caedyn mostra um sorriso com as presas para fora. — Eu poderia comer todos os humanos em N-D44! Começando por você! — Você não quer fazer isso, Lady Caedyn, meu sangue tem gosto ruim. — Respondo, passando as mãos nos braços, afastando a neve. — Vá morder seu próprio escravo, Caedyn. — Devon se aproxima, encostando-se na pedra. — Você é como seu pai, sempre querendo o que me pertence. — Até onde sei, foi você que roubou a noiva e o comando do exército das mãos dele, tio. — Caedyn balança a cabeleira ruiva, provocando. — Tudo indica que sim. — Devon estica as duas sobrancelhas com satisfação em concordar com a sobrinha. — Quanto você marcou? — Caedyn pergunta. — 576. — Respondo. — Nada mal, eu marquei 915! Ei, Zane! — Caedyn olha para a frente, Lady Lucretia está apoiando Zane e dando passos interrompidos em nossa direção, ela está de armadura, mas sem capacete, com flocos pequenos de neve nos cabelos sedosos. — Isso parece estar doendo! — Só perdi um rim, estarei novo em folha em alguns dias. — Ele está com a mão na

lateral do corpo, a boca sangrando. — Marquei 1.337 pontos na disputa, valeu a pena. Lucretia marcou 1.098, posso adicionar à minha pontuação? — Não pode, não! Essa pontuação é minha! — A princesa protesta, sorrindo. — Você regeneraria mais depressa se fosse menos fresco e bebesse sangue, sabia? — Caedyn debocha. — Vá se ferrar, Caedyn. — Zane levanta o dedo do meio para Caedyn estressado. — Não ligue para ela. — Lady Lucretia abaixa a mão de Zane. — Sabe que Caedyn gosta de provocar confusão. — Ela o puxa, sem paciência para provocações. — Vamos, ladrão de pontos, você precisa de cuidados. — Ai, vá com calma, cretina, está doendo! — Zane reclama de dor. — Cale a boca antes que eu arranque seu outro rim! — Lady Lucretia rosna. Eles se afastam em direção aos portões. Román está lá e ajuda Lady Lucretia, dando apoio do outro lado para Zane. Os soldados os reverenciam quando passam. Não tivemos baixas em nenhum dos nossos, o que me deixa pensando se Celeste estava apenas atacando de brincadeira ou se esses são zumbis da “fase um”. — As vezes você me faz duvidar da nobre educação que deu ao nosso futuro Imperador, tio! — Caedyn resfolega, ficando em pé. Ela bate as mãos uma nas outras, espantando gelo. — Com essa boca suja, será difícil garantir o respeito dos nobres. — Ele herdou esse péssimo temperamento da mãe. — Devon justifica, de braços cruzados. — Não foi dela, não. — Provoco. — A escrava tem razão! — Caedyn dá uma risada e desce da pedra de gelo, afastandose com a mão no estômago. — Preciso comer alguma coisa, urgente! — Quantos pontos você marcou, meu senhor? — Pergunto curiosa, colocando o capuz por cima dos meus cabelos para me proteger do frio. — Perdi a conta depois de 2.789. — Ele resfolega e desencosta da pedra. Tento não parecer impressionada quando ele olha para mim. — Você é um desperdício de talento. Descanse por alguns dias e iniciaremos seu treinamento. — Sim, senhor. — Concordo com um aceno de cabeça, mordendo a boca para segurar um sorriso. Ele passa por mim com passos firmes dignos do General que é, apenas observo o movimento do seu corpo e a linha da armadura do pescoço às costas, até o cinto equipado no quadril. Contenho o ar na minha garganta, ou vou suspirar. ● ● ● — Abriram vagas para doadores. — Farrah dá de ombros, pintando as unhas dos pés. — Todos os escravos de Bawarrod que quiseram se tornar vampiros, foram recrutados. Rilde não me ouviu, ela não resistiu à troca de sangue. Engulo saliva com tristeza. Estamos na casa de Byrn, em seu quarto arrumadinho e um pouco vazio se comparado ao antigo em Torre Bawarrod. Aqui, temos menos coisas e estamos reconstruindo aos poucos. Byrn colocou colchões no chão, fizemos uma grande cama, trouxemos um pouco de comida e bebidas. É a noite das garotas!

— Por isso que temos que beber devagar. — Byrn dá de ombros. — Você não precisa ter medo. — Não quero deixar Arimá para trás. — Farrah enfia o pincel dentro do esmalte. — Por que estão recrutando? — Pergunto interessada. — Lady Lucretia disse que o Conselho está pressionando que a Casa Bawarrod expanda seus domínios. Você sabe, eles são pouco numerosos, apenas três se contar com Zane. — Byrn explica. — Zane. — Farrah venta pelo nariz, aborrecida e pinta o dedão do pé direito. — Ele era um Escravo, um de nós! Nem consigo acreditar que tenha mudado de lado, se tornado um deles e ainda por cima, que encrave seus dentes na carne de um dos nossos! — Estão dizendo que ele não tem se alimentado, você sabe disso, não sabe? — Preciso defendê-lo. Não é como se Zane quisesse ser um vampiro! — Você e Byrn serão vampiras em breve, a opinião de vocês não conta. — Farrah larga o vidro de esmalte no chão, em pé. — Vampiros são tiranos. — Como é que é? — Byrn cruza os braços revoltada. — Você estava outro dia toda agradecida quando Lady Lucretia distribuiu roupas e sapatos para todos no pátio depois do jantar! O que Byrn diz é verdade. Lady Lucretia tem estado mais próxima de todos os habitantes de N-D44. Ela está ativa e participativa nas questões sociais, distribuiu não só roupas e sapatos para todos da colônia, como também comida e remédios. Recebemos uma cota extra de geleias e farinha na cesta de alimentos mensais e o dobro de cupons para açúcar e mel. Além disso, liberaram metade das cadeiras da arquibancada do teatro para humanos e todos poderão assistir as apresentações de Taseldgard. Inclusive os ensaios, estão abertos ao público todo sábado e não precisamos pagar nada. Ela tem pensado no bem estar do seu povo, como uma futura Rainha deve pensar. Todos temos escutado o quanto ela tem sido benevolente nos corredores da nobreza e alguns nobres tem sido bem resistentes com as ideias da Princesa, criando tensão política. — Ela tem que fazer um ou outro trabalho comunitário por causa do Luto Nupcial, não é que ela realmente se importa em como nos sentimos! No fundo, ela é monstruosa! Sempre deixa a mordida sangrando depois que bebe! — Então para explodir a cabeça de Anjos e pedir proteção debaixo das asas do Grande Império, você é a favor deles, mas só porque tem casa, comida e roupa lavada, já acha que eles são monstros? Vá para fora das fronteiras ver como está o mundo lá fora, bem inóspito aos humanos! — Francamente, Byrn, você é muito vira-casaca! Bem como Zane! — Farrah esbraveja, gesticulando, os cachos dourados balançando e as sobrancelhas curvadas irritada, sobre seus olhos grandes. — Não diga coisas assim, Farrah, ofende! — Endureço, cruzando os braços. Farrah olha para mim com insatisfação, torcendo a boca. — Zane está enfrentando coisas muito difíceis, especialmente porque ele partilha da sua opinião e não está contente em se tornar um deles. Mas não posso deixar você dizer que ele é um vira-casaca, ele não mudou em nada, continua a mesma pessoa honrada e corajosa que sempre foi.

— Exatamente! Você que é uma covarde! — Byrn afia o olhar. — Quer saber, não preciso disso! — Farrah fica em pé, pegando o vidro de esmalte e puxa seu travesseiro da grande cama que montamos. — Nem sei porque perco tempo com vocês, já que vocês não são mais uma de nós! Ela deixa o quarto, batendo a porta em um estrondo malcriado. Resfolego. — Ela está nos tratando como se fôssemos hipócritas! — Byrn descruza os braços um pouco chateada com o que ouviu. — Talvez sejamos. — Dou de ombros, sem saber o que pensar sobre isso. Eu percebi a verdade, mas não podemos culpar Farrah por se sentir vítima. A verdade é que vampiros e humanos são como os peixes que rodeiam os tubarões. A diferença é que alguns peixes podem se tornar tubarões vez ou outra. O problema é que se todos os humanos virassem vampiros, logo não sobrariam humanos. Nem vampiros. — De qualquer forma, ela está certa. Não dá mais para pensar como humanos agora que vamos nos tornar vampiras e Zane precisa entender isso, ou ele vai acabar morrendo enfraquecido pela falta de sangue. — Byrn estica as sobrancelhas olhando para as próprias mãos. — Lady Lucretia disse que quando eu for vampira, poderei ter o escravo que quiser e só espero achar alguém bem gato! Sabe o que acho, devíamos escolher nossos escravos juntas um dia! Fico olhando para o sorriso de Byrn com um pouco de espanto. Claro que sei que minha amiga se tornaria uma vampira de corpo e alma, ela adora vampiros e sempre foi a favor da nobreza toda vez que conversamos sobre o assunto, mas isso o que ela disse me incomoda de uma maneira estranha. Eu vou ser uma Vampira um dia. E terei que beber o sangue de um escravo, que tal como eu, tremerá de medo diante dos dentes afiados de um vampiro. Não me parece uma coisa certa a se fazer com uma pessoa e entendo como Zane se sente ou porque é tão difícil para ele ir adiante. Mas eu não penso assim. Uma vez que você se torna um tubarão cheio de dentes afiados, você não pode voltar a ser um simples peixe. É uma questão de voltar a subir ao topo da cadeia alimentar e eu não quero, nunca mais, fazer parte da base. ● ● ● Recebi uma farda de treinamento inteiramente cinza, menos as botas que vieram negras. Quando as vesti, percebi serem confortáveis, térmicas e justas ao corpo. Amarrei os cabelos em um coque e vesti um capuz justo na cabeça, também cinza, apenas meu rosto ficou a mostra. As botas possuem um solado estranho, com pinos na ponta e só descobri para o que eles servem quando estava agarrada ao topo de uma geleria de quinze metros de altura, sem usar cordas, com as luvas receptoras escorregando. Só consegui ficar grudada à parede graças aos pinos da bota. Olho para baixo com medo de cair. A distância é grande e eu atingiria um chão cheio de pedras e neves que me traria a morte dolorosa e nada imediata. — Se você não consegue nem subir uma simples parede, como vou ensiná-la? — Devon

resmunga na minha frente, já no topo. Olho para cima para ter uma visão do solado cheio de pinos de sua bota negra e seus braços cruzados. Ele parece mais interessado no horizonte do que em mim, como se estivesse entediado pela minha batalha. Diferente de mim, ele está com a armadura e sem capacete, usando óculos de proteção contra o vento frio como os que eu estou usando. — Achei que já estivesse me ensinando, senhor. — Encaixo a mão nos sulcos de gelo e solto um pé, erguendo o joelho e prendendo a bota, para dar mais um passo para cima. Se eu caisse agora, acho que ele daria risada enquanto eu me agoniaria em dor antes de morrer. — Suba logo aqui, cadela. — Devon se impacienta. — Você é tão lenta que me aborrece. Estava mesmo demorando para começar os elogios! Forço meu corpo para cima com dificuldade e alcanço o topo. Fico com as pernas na parede e a parte de cima do corpo encostada no chão frio coberto por neve. Respiro cansada, mas consegui. Coloco os joelhos para dentro e logo estou de pé, na borda do grande precipício. — Consegui! — Respiro, girando e dou dois passos para trás, afastando-me da borda. Olho para onde Devon estava olhando e vejo uma grande lua coberta entre nuvens densas, numa noite que parece calma e silenciosa. — A vista é linda. — Não estamos aqui para apreciar a natureza. — Devon venta, rindo, como se me chamasse de idiota, mas sem precisar dizer e se afasta do precipício, caminhando para o meio do grande descampado. — Fique em pé aqui. — Ele me aponta um local. Hesito, um pouco desconfiada, mas acabo cedendo e caminho até onde é indicado. — Você é ágil, costumava fazer esportes? — Ele me pergunta, andando ao redor de mim, me analisando. Fico um pouco incomodada com o peso de seu olhar, como se uma energia estranha me envolvesse, arrepiando todo o meu corpo. — Costumava fazer aulas de dança. Ballet moderno. — Fico em pé, parada. — Hm. — Devon se afasta, dando uns dez passos para longe e para, virando para mim, com um sorrisinho provocante. — Agora me ataque. — Quê? — Tomo um susto, abrindo bem os olhos. — Você ouviu, não me faça repetir. — Ele rosna, aborrecido. — Depois não reclame, meu senhor. — Tomo impulso e corro em sua direção, para um ataque, nem vejo o que acontece e Devon me derruba no chão. — Ai! — Mas não dói, realmente, caio de costas na neve fofa. — Você é terrível. — Devon está com um joelho no chão, segurando meus braços cruzados na frente do meu corpo, imobilizando-me. Ele está sério, mas não impaciente. — Não é assim que se ataca um adversário, você precisa transferir a energia de suas mãos para o restante do corpo e o impacto vai ser maior. Devon me solta e fica em pé. Eu sento na neve. — Volte lá e tente novamente, dessa vez faça direito. — Tá bem. — Fico em pé e marcho de volta até minha posição inicial. Giro e Devon está esperando, ele estende a mão e gesticula para eu ir até ele, quase uma provocação. Fecho os olhos, sentindo a energia esquentar minha palma da mão, procuro direcioná-la para as outras partes do meu corpo, como o calcanhar e o joelho. Abro os olhos e corro, tentando novamente o ataque.

Devon se posiciona para a defesa e eu salto com agilidade, atingindo-o em cheio, derrubando-o na neve. Os óculos de proteção que ele usa se arrasta na superfície da geleira, para longe. — Venci! — Fico em cima dele, sentada e ergo os braços, respirando forte. — Sabe que apenas não defendi, não sabe? — Devon ri enquanto apoia a mão espalmada no gelo, erguendo o corpo. Uma lufada de ar joga seu perfume amadeirado contra mim. — Foi divertido mesmo assim. — Olho para ele, abaixando os braços, segurando em seu ombro. Devon está sorrindo leve, de canto. Reparo na linha da sua boca, a barba rala e os diversos tons de dourado que existem em seus olhos. Há um momento de silêncio entre nós. É de repente, que o meu coração me trai, batendo mais forte e mais quente. Acabo sorrindo. — O que você está olhando, escrava? — Ele pergunta piscando longo. — O quão incrivelmente bonito você é. — Inclino, segurando em seu rosto com as duas mãos, beijando levemente sua boca fria.

CAPÍTULO 32

Azar no jogo Encho minha boca com o gosto doce de Devon, ainda assim, o beijo com demora e suavidade. Abro os olhos para encará-lo nesse instante em que me afasto, mordendo a boca, guardando para mim a sensação de seus lábios deliciosos contra os meus. Devon pigarreia, erguendo as duas sobrancelhas e os olhos dourados na minha direção. Estreito os olhos analisando-o bem. Essa reação. — Do que se trata isso? — Ele pergunta com a voz baixa e tentando decifrar um enigma. — Deu vontade. — Respondo atrevida, colocando um ombro para frente com um sorriso malicioso. Fico em pé, fazendo-o levantar a cabeça para me olhar. Gosto muito dele agora: com uma expressão estática, no chão, entre minhas pernas e em baixo de mim. É onde quero mantêlo! A sensação de que estou no controle eletrifica todo o meu corpo. Tenho vontade de pular sobre ele, arrancar suas roupas aqui mesmo só para sentir o calor de sua pele contra a minha, mas não é isso que faço. Nunca daria a ele todo o sabor da vitória e muito menos, todo o controle sobre mim. Mas preciso que ele acredite que o possui. Giro graciosamente e volto para a posição que Devon me indicou antes, balançando meu bumbum de um lado para o outro em um rebolado provocante. Devon apoia a mão em um dos joelhos e fica em pé, limpando a neve das mãos. — O que você está esperando? — Ele desafia, com a voz ardida. Eu não hesito para um segundo ataque. Aprendo a controlar cada vez melhor a minha energia e levo muitos tombos também, mas encaro como parte do processo. Não desisto e todas as vezes que minhas costas alcançam o chão, eu levanto e o ataco com mais força. Aprendo golpes, vou ganhando mais resistência e mais força nos músculos a cada tentativa. O sangue poderoso que corre nas minhas veias ferve, energiza todo o meu corpo e me confere mais poder. Quanto mais eu uso, mais forte eu fico, até o momento em que estou totalmente exausta e tudo o que eu quero é um banho quente e um prato de comida. Um pouco antes do amanhecer, retornamos para N-D44. Nesse horário, todos os vampiros, exceto os guardas, estão em seus aposentos e os humanos ainda não acordaram a impressão é que a cidade é só nossa. ● ● ●

A latinha de patê se arrasta por cima da bancada de madeira clara na minha direção, o som do alumínio arranhando a superfície corta o silêncio. Seguro-a com as duas mãos, alcançando o lacre com avidez, faminta. Encaro o patê de carne lambendo a boca e alcanço um garfo. Hmmm, delícia! Meus cabelos estão soltos e o capuz está em cima da bancada, junto com as luvas de captação de energia. Estou sentada em um banco comprido e de estofado negro. O local é decorado de um jeito estranho, misturando coisas modernas com coisas muito antigas. Surpreende-me o fato de que o armário projetado na cozinha, com todas as prateleiras brancas está vazio. Inclusive, para achar um garfo, Devon procurou em todas as gavetas, como se não soubesse nem onde estava. A impressão que dá é que ele não vive aqui, mas sei que estou dentro dos aposentos do General, no corredor em que todos os vampiros da Casa Riezdra vivem. Em um deles, Lady Izobel e sua filha Caedyn dormem tranquilamente. É um apartamento comum, apenas o dobro do tamanho dos apartamentos em que os colonos vivem. Em cima de minha cabeça há os utensílios que toda cozinha deve ter, mas estão com um pouco de pó, como se ninguém mexesse neles. Sobre o chão de madeira há um tapete marrom feito com o couro de um urso, a cabeça empalhada e virada para uma lareira vazia, que nunca foi usada, rodeado por um conjunto de sofás de estilo Luis XV de cor creme e um chaise negro. Se em Torre Bawarrod as paredes do aposento era lotada de quadros vertendo memórias, esse aqui não tem nada. As paredes são literalmente vazias, pintadas de um tom cinzento. Aposto que se eu for até o quarto, encontrarei no máximo um armário e com sorte, uma cama. Devon, como todos nós, perdeu tudo que tinha de bens materiais em Torre Bawarrod, mas diferente de todo o restante das pessoas, ele não faz a menor questão de reconstruir, como se não reconhecesse que essa é sua nova casa, ou como se simplesmente preferisse enterrar o passado. Seria resistência em seguir em frente ou apenas um homem que pensa que não vale a pena tentar construir algo em tempos de guerra? Eu não tenho a resposta e não conhecê-lo me incomoda. — Não tem comida de verdade na sua casa? — Pergunto com uma bolota de patê grudada na bochecha, o garfo já dentro da latinha, buscando mais. — Não. — Devon responde em seco, já sem armadura, de frente para o único armário da cozinha que parece abastecido: o de vermute. Ele abre a porta da adega e pega uma garrafa sem escolher. — Considere sorte que tinha uma lata de patê. Dou de ombros limpando os dentes e enfio mais uma garfada na boca. Mastigo e engulo depressam como uma pessoa que não vê comida há dias, mas tenho me alimentado normalmente e às vezes, até como demais. Devon apoia a garrafa na bancada, encaro suas mãos firmes e o anel bico de corvo que ele usa enquanto ele rosqueia a tampa, abrindo a garrafa. Escuto um ploc do lacre de acrílico e ele joga a tampa por cima do ombro, acertando dentro da pia sem olhar, mas posso afirmar que não foi sorte. Devon leva a garrafa até a boca, fico um tempo olhando para o pomo-de-adão em seu pescoço, em como se move quando ele dá goles intensos na garrafa como se tivesse muita sede. O som é familiar e me causa conforto.

Desvio os olhos, para não ficar reparando demais. — E ninguém cozinha para você? — Pergunto cortando o barulho dos goles, remexendo meu patê. Devon se interrompe e solta a garrafa em cima da bancada entre nós. Ele limp a boca com as costas da mão e inclina-se para apoiar os cotovelos na mesa, segurando o queixo com uma das mãos. Uma sobrancelha se ergue. — Eu não como. — Não? — Estranho. Todas as pessoas comem, certo? — Achei que Zane cozinhava para você. Imaginei que agora que ele não é mais um escravo, vocês jantariam juntos todas as noites como uma família feliz. — Você imagina coisas demais. — Seu hálito de álcool me atinge, o timbre de sua voz é curioso e interessado. — Do que tem certeza? — Não muito, meu senhor. — Encho a boca de patê lançando um sorriso de boca fechada. — Tenho certeza que ainda estou viva e isso basta para ir vivendo os dias. — É uma forma de pensar. — Zane não mora com você? Ele poderia cozinhar e o senhor não passaria fome. — Zane está nos aposentos da realeza na Casa Bawrrod com Lucretia. É extremamente importante que eles passem o maior tempo possível juntos para fortalecer a futura união matrimonial. — Devon se ergue e pega a garrafa, contornando a bancada. Ele anda até o sofá negro. — Você irá entender em breve que nenhum vampiro da Casa Riezdra se sacia por completo, então, qual o ponto de começar a comer, de qualquer forma? — Ele se joga no sofá, deitando, com o braço para cima da cabeça, dando um gole na garrafa, reparo nos botões da jaqueta abertos, exibindo a camiseta preta colada. — Você não precisa, sei lá, comer por questões biológicas? — Dou a última garfada. — É para isso que guardo essas latinhas e na maioria dos casos, sangue é suficiente. E um pouco de álcool sempre ajuda. — Sangue sacia? — Largo a latinha e limpo a boca, descendo da bancada. Ando devagar até ele, com as mãos no casaco cinza da farda de treinamento, soltando os botões. O clima no recinto é agradável, apesar da falta de janelas que me deixa com a impressão que estamos com ar confinado. — Há peculiaridades no sangue Riezdra. Apenas sangue de vampiro pode nos saciar. — Mas alimentar-se de vampiros não é errado? — Crime. — Ele dá mais um gole no vermute e o brilho triste em seu olhar dourado me atrai como uma mosca ao redor de uma lâmpada. — Matar um vampiro tomando seu sangue é um crime hediondo em nossa Sociedade. O nome é Frenesi. — Muito hediondo? — Subo no sofá, por cima de suas pernas e engatinho devagar até entrar em seu campo de visão. — O único crime cuja punição é morte. — Devon me encara. — Algum vampiro já cometeu Frenesi? — Já. Sangue é um vício para nós da Casa Riezdra, quanto mais você toma, mais você quer. Especialmente se você tiver envolvimento emocional. — Ele inspira fundo e exala ar. — Interessante. — Com o indicador, percorro a linha de sua boca. — O que foi agora? — Devon me lança um olhar feroz, como se eu estivesse me

intrometendo sem ser convidada. — Você tem fome, deve precisar de sangue, meu senhor. — Provoco sorrindo, buscando sua boca para um beijo. Chego bem perto, mas não o beijo, mantendo uma distância mínima entre nossas bocas. Atraio-o para mais perto, como uma encantadora de cobras. Gosto de como acontece, toda vez que ele se torna incapaz de resistir a mim. — Você está ficando atrevida, Jaylee. — Devon deixa um sorriso escapar, mirando meus lábios. — Deve ser o efeito do seu sangue em mim, senhor. Que me deixa assim tão descontrolada querendo sempre mais. — Respondo com um murmúrio. Devon solta o vermute e vem para cima de mim, segurando minha nuca, me forçando em sua direção capturando minha boca na sua. Ele me beija ferverosamente e ao mesmo tempo simples, sem caninos ou sangue. Sinto sua língua quente explorando os centímetros da minha boca, a saliva adocicada e quente. É incontrolável, meu corpo pega fogo com desejo. Meus dedos se entrelaçam em seus cabelos e o puxo mais perto ainda, sua barba roça meu queixo e posso sentir toda a solidez de seus músculos contra meu corpo. Ele geme e me deita contra o sofá, seguro na gola de sua jaqueta e escorrego o pano pelo braço, despindo-o. Piso no meu calcanhar e arrasto a bota, tirando do meu pé, uma depois a outra, Devon puxa minha calça, me deixando só de calcinha, ele sobe por cima de mim, encaixando o quadril e pressionando sua ereção entre minhas pernas. Solto um gemidinho de prazer, sentindo-o tão excitado, pressionando beijos pelo meu pescoço e busto, massageando meus seios com as mãos, por cima de minhas roupas. — Como pode ter um gosto tão ruim e mesmo assim eu não conseguir tirar a boca de você? — Ele rosna com o timbre rouco e sensual, roçando os lábios contra os meus, suas mãos deslizam para minhas costas, eu sinto a pontinha do anel bico de corvo me arranhar na lombar. Não respondo, apenas sorrio maliciosamente, abaixando as mãos, alcançando suas calças e abrindo o botão, liberando-o. Empurro a calcinha para o lado. Arfamos quase que ao mesmo tempo quando ele me invade veemente. Curvo as costas, excitada, sentindo-o por inteiro dentro de mim. Rebolo enlouquecida, urjo por sua boca, a respiração ofegante, meus braços para cima enquanto Devon me pressiona forte, os dedos entrelaçados com os meus, segurando minhas mãos. O prazer arrebata meu corpo com espasmos, um gemido escapa de Devon, me levando ao deleite. Amoleço, enquanto ele solta o corpo do meu lado, respirando forte. Encaro o teto, o lustre simples com uma lâmpada retorcida e branca. Sento, procurando minha calcinha. Devon segura no meu ombro e me coloca deitada novamente. — Não posso deixar você ir agora. — Ele sussura com a voz amolecida e me abraça com os dois braços. Absorvo o seu perfume amadeirado enquanto seu calor conforta todo o meu corpo. Eu me sinto tão bem agora, protegida e apaixonada pelo som das batidas de seu coração. Adormeço. ● ● ●

Devon cai em um sono pesado e sou incapaz de acordá-lo. Visto minhas roupas e deixo um beijo em sua testa quando o deixo no sofá. Deve ser de tarde, os corredores sem janela e iluminados por luzes incandescentes estão movimentados, torço o pescoço de um lado para o outro e coloco as mãos no bolso da jaqueta cinza, checando que estou com as luvas receptoras e o capuz. Vou para casa e tomo um banho quente. Coloco uma roupa simples e abro a geladeira em busca de comida. Encontro um pouco de arroz e geleia, como misturando sentada no sofá. Minha boca arde, os músculos internos das minhas coxas doem e fiquei com uma enorme marca dos dedos de Devon em meu quadril. Os lembretes estão impregnados em mim e vão além da dor, são memórias que ficam repassando na minha cabeça, me fazendo uma pessoa ansiosa. Isso é ruim. Eu não queria me sentir assim. Por que ao invés de odiá-lo eu tenho tanta vontade de estar com Devon novamente? Não faz sentido. Vou para o meu quarto, olhar o por-do-sol pela escotilha. Escuto mamãe e Johin chegando da rua, possivelmente ela o levou para o parquinho infantil comunitário. Saio do quarto quando mamãe me chama para jantar, ela me mostra um sorriso e me estende um envelope preto com um selo prateado de Bawarrod. — O que é isso? — Pergunto. — Um guarda mandou entregar de manhã, mas você não estava. — Mamãe me dá um beijo na cabeça e vai para o fogão. — Onde passou a noite? Devo me preocupar com outro paquera em vista? — Estava com meu senhor, Riezdra. — Explico, sentando-me à mesa e abro o envelope, Lady Lucretia solicita a minha presença para o café-da-manhã nos aposentos reais (é daqui há duas horas). Fecho o envelope e olho para minha mãe. Ela está de costas, tirando algo do forno. As lágrimas queimam meus olhos. — Mãe, preciso te dizer uma coisa. — Então diga! — Ela ri, segurando uma travessa de pure de batata com carne de baleia picadinha. — Eu vou me transformar em uma vampira. Ela derruba a travessa no chão, atônita. Johin se assusta e começa a chorar. ● ● ● Depois de ouvir toda a minha história soluçante sobre como me tornarei uma vampira, mamãe segura minhas duas mãos e me mostra um amável sorriso. — Você está fazendo o que é melhor para todos nós e eu tenho muito orgulho de você. — Ela afirma, com muita segurança, mas os olhos cheios de lágrimas. Sabemos que quando eu me tornar uma vampira, eu me torno parte da Casa Riezdra, minha família humana não. Ainda poderei sustentá-los e possivelmente eles viverão em condições melhores, mas seremos afastados. Não poderei ter o mesmo contato que tenho atualmente e terei ainda que evitar que Johin seja avaliado pelo conselho e acabe se tornando um vampiro quando alcançar a idade correta. — Eu não sabia que era um processo irreversível, mamãe! — Choro, soluçando e secando os olhos com um lencinho de pano. — Eu me deixei levar, agora estou condenada!

— Não deve olhar dessa forma, minha filha, você apenas foi mais longe do que imaginou. — Mamãe segura minha cabeça e me beija. — Não é ruim, é bom. Eu e sua tia não iremos viver para sempre e é confortante saber que você e Johin terão uma possibilidade de futuro melhor. Se isso significa que você tem que se tornar vampira, então se torne, filha! Quantas pessoas lá em baixo na colônia não gostariam de estar no seu lugar? Há quem mate por essa oportunidade! — Não foi uma oportunidade, eu trouxe isso para mim mesma. — As lágrimas escorrem. — Melhor ainda, tudo conforme o planejado. — Ela sorri colocando as duas mãos na cintura, orgulhosa. — Você conseguiu, Jaylee. Fez o seu senhor valorizar você! Por que está chorando? Não era isso que queria? Anime-se! Faço que sim com a cabeça, mas continuo sentindo remorso. Por quê esse sentimento? Era o que eu queria. Eu joguei o jogo, eu posicionei as peças. É o meu jogo e eu estou ganhando! Por que esse sentimento? Esse acelerar de coração que me deixa sem fôlego e com um enorme panapaná na barriga toda vez que penso em Devon? Tive azar no jogo. Não faz parte do meu planejamento e coloca tudo a perder. Eu não posso me apaixonar agora. — Você tem razão. Não posso recuar agora. — Falo decidida. Olho para Johin, ainda na mesa de jantar, comendo a parte de purê que mamãe resgatou da travessa. Preciso ir adiante, por dias melhores. — Vou me trocar e encontrar com Lady Lucretia. Não vou me apaixonar agora.

CAPÍTULO 33

Silêncio na Casa Bawarrod Atravesso pelas muralhas que contornam a aldeia inuit para chegar aos aposentos de Bawarrod, um suntuoso castelo com a parte de trás colada na geleira, rodeado por árvores e um grande jardim. Chego acompanhada por uma escolta do Grande Império, seis guardas de armaduras caminharam comigo. Dois à frente, dois ao meu lado e dois atrás. Há uma grande escadaria que preciso subir até chegar à uma enorme porta pontuda de madeira e ferro. Um dos guardas puxa uma alavanca em uma grande roldona de correntes, fazendo-as soltar. A porta sobe, com um ranger. Encaro um caminho de neve rodeado de pinheiros que leva direto a um pequeno castelo quadrado de doze janelas, uma porta e duas torres laterais. No centro, o símbolo do Ouro Alquímico, o símbolodo da Casa Bawarrod, brilha com a luz da lua de uma forma quase mágica. A névoa deixa o castelo com ares etéreos, sem luz alguma, vampiros não precisam de luz para enxergar. Os guardas não transpassam o portão. Um deles, uma mulher Soretrat, me entrega um bastão neon azulado para que eu atravesse o caminho de escuridão total. Escuto apenas o som do vento batendo contra as folhas. Chego à porta de madeira e não preciso bater, humanos me recebem. Seus olhos submissos ficam no chão, o corpo seminus, com o busto de fora, muitos homens e poucas mulheres, cobertos apenas por pinturas vermelhas e pretas elaboradas. Alguns homens estão de calças e cuecas de pele de animal, as mulheres de shorts e botas, algumas com correntes presas nos dois seios. São servos com braceletes de metal. Nenhum é escravo de sangue, mas são todos escravos de outras coisas. O que me incomoda é perceber que todos estão com máscaras de ferro cobrindo suas bocas, como se fossem impedidos de falar. Diante de tal silêncio e torturante visão, eu mesma me calo. Há tapetes negros pelo chão, inclusive na escadaria que leva para o andar de cima. Um homem sem camisa e marcas roxas nas coxas me guia através de corredores de pedras com estátuas humanas de rostos distorcidos como se sentissem dor. A luz é pouca, apenas um lustre de neon no centro do corredor extenso. Observo a minha sombra no tapete, como ela se move encolhendo na minha frente e fica para trás, conforme eu atravesso a luz. O silêncio me deixa nervosa e passo a ouvir a minha respiração e meu coração batendo descompassado, com medo. Por que estou com medo? Todos os meus sentidos ficam em alerta. Eu não tinha ideia de que era assim e fico assustada, como nunca. Passo por algumas portas fechadas, mas uma, em especial, está aberta. Espio, encarando um quarto de banho, com uma piscina redonda azulada e todo iluminado, de paredes inteiramente brancas e pilastras. No centro, com o corpo coberto por correntes e um tapa-sexo,

vejo Kaiser Bawarrod, o Imperador, sendo esfregado por homens e mulheres com toalhas negras, apenas o som da água jorrando. Sem dizer nada, e acho que nem se quisesse poderia, o homem que me guia segura no meu braço e me lança um olhar de repreensão, como se eu estivesse invadido a privacidade do Imperador. Engulo em seco e continuo seguindo-o, até uma porta de vidro ao fundo, onde há um suntuoso jardim interno, posso ver uma mesa redonda de madeira iluminada com lampiões e rodeada de vasos cheios de plantas e flores amarelas e vermelhas. Há mulheres tocando harpas, um som agradável e relaxante. — Jaylee! — Lucretia me vê e me abraça com força, como uma amiga querida que você não vê há muito tempo. Ela exala perfume de rosas, mas está coberta por vestes negras e simples: calça justa, botas sem salto e até o joelho, camisa de mangas compridas e luvas. — Estou tão feliz que tenha vindo. — Ela se separa de mim, dando um beijo demorado na minha têmpora. — Obrigada pelo convite, alteza. — Eu a encaro, os olhos vendados por uma densa renda que não me deixa olhar para o brilho de seu olhar vampírico, sem batom ou joias. Como isso pode representar a pureza e a castidade se ao redor, homens e mulheres sofrem torturados sem poder manifestar suas opiniões? — Venha! Meu tio disse que quer se juntar a nós, espero que não se importe. — Ela segura na minha mão e me leva até uma namoradeira com correntes de balanço e estofado florido. — Sem problemas. — Sento-me ao lado da princesa. — Onde está Zane? — Ele virá, com sorte. — Lady Lucretia segura em minhas mãos, enquanto impulsiona o balanço com os pés. — Zane não estava se sentindo bem mais cedo, ele se recusa a beber e quando bebe, parece uma grávida vomitando. — Isso é normal? — Pergunto preocupada. — Não muito. Ele está doente. — Os lábios pequenos da princesa se comprimem em chateação. — Achei que vampiros não ficassem doentes. — Abro bem os olhos assustada. — Dá para curar? — Não é esse tipo de doença, é em sua mente. — Lady Lucretia suspira batendo o dedo na cabeça, indicando o cérebro. — O apego que ele tem o envenena, ele resiste ao inevitável. Dia após dia, eu assisto Zane se entregar à melancolia. Há tristeza em sua voz e ela me atinge. Lady Lucretia abaixa a cabeça, chateada. Dou dois tapinhas em sua mão, ao redor das minhas. — Não fique assim. Zane é valente e já superou muitas coisas, não é como se ele não pudesse superar isso também. Você precisa dar um pouco de tempo a ele e ajudá-lo a ter força de vontade. — Suspiro. — É por isso que te chamei. — Lady Lucretia me lança um sorriso triste. — Achei que se você viesse, eu poderia vê-lo sorrir. Zane é sempre ótimo quando está do seu lado. Forço um sorriso simpático, não muito grande e nem muito pequeno, apenas o suficiente para demonstrar minha gratidão. Não sei, a insinuação da princesa me soou um pouco como amargura e isso me incomodou. Espero que seja só impressão, eu detestaria ter Lady Lucretia

como rival em alguma coisa. — O que as garotas já estão fofocando? — A voz potente e ao mesmo tempo calma do Imperador sobrepõe-se ao som da harpa. Viro a minha cabeça e o vejo de terno inteiramente branco, elegante, com os cabelos negros e ondulados bagunçados. Seus olhos escuros são quentes, com um brilho avermelhado baixo, quase imperceptível. Ele tem um sorriso pequeno em seu rosto de barba bem feita. — Bom dia, tio. — Lady Lucretia mostra um sorriso de respeito e alegria ao Imperador, que ele retribui de coração quente. — Venha, venha se sentar comigo. — Ele a chama, com a mão estendida. Lady Lucretia desce do balanço e com um toque no meu braço me chama, caminhando até a mesa. Ela segura na mão dele e beija, ele faz a mesma coisa e ao mesmo tempo, com olhos tão amáveis que é um contraste enorme com a imagem do homem que mandou calar a boca de seus escravos. Eu me levanto do balanço e me aproximo devagar, enquanto um escravo abre as cadeiras para sentarmos. O Imperador senta-se primeiro, Lady Lucretia ao seu lado e eu me sento do lado dela e da cadeira vazia, o quarto lugar certamente é de Zane. Ficamos todos em silêncio enquanto a harpa inicia uma nova melodia delicada e o Imperador me olha firme, nos olhos, um olhar tão intimidador que imediatamente abaixo a cabeça. Queria ter uma venda como a da noiva agora. — Então você é a garota que será uma Riezdra brevemente. — O Imperador repara, enquanto observo um escravo encher o meu copo com um suco amarelo. — Sim, majestade. — Você é nossa convidada, Jaylee. Por favor, chame-me de Kaiser. — Ele alcança o copo, as mãos delicadas e que parecem macias. — Desculpe-me, maje… — Respiro, para me consertar e ergo os olhos, sorrindo. — Kaiser. — Estava dizendo a Jaylee que espero que ela fique pela noite. — Lady Lucretia sorri empolgada, mostrando as gengivas como um cavalo relinchando. É um sorriso bonito, como os das modelos de revistas, os dentes pequenos a deixam quase como uma humana, mas os caninos, são presas duplas acima dos que temos. Há uma pontinha branca das presas compridas que eles colocam para fora quando desejam. — Você perguntou a ela ou está impondo, Lucretia? — O Imperador dá um gole no suco enquanto Lady Lucretia dá de ombros. Ele olha para mim. — Você me parece cansada, Jaylee, espero que Lucretia não esteja sendo um incômodo. — De modo algum. Será um prazer ficar. — Minto. Estou exausta e preferia estar em qualquer lugar menos aqui. — O que achou da casa? — É bem silencioso por aqui. — Comento um pouco atrevida, eu realmente não devia dizer uma coisa dessas para o Imperador, mas seus olhos sempre me compelem a falar. — Foqueiros devem ser punidos, não concora? — Kaiser me encara curioso, as sobrancelhas grossas se erguem. É uma pergunta legítima. — Mas precisam ser punidos dessa forma brutal? — A punição correta para fofoqueiros é que lhes arranque as línguas. — A princesa logo

o defende, equanto um escravo coloca na sua frente um prato de panquecas com mel, manteiga e geleia. — Meu tio foi um homem benevolente ao drecretar o silêncio. — Pensando por esse lado… — Desvio o olhar para o lado e um escravo coloca um prato de panquecas na minha frente. Arrancar a língua, dá para imaginar? — Sobre o que eles estavam comentando que era tão perturbante? — É melhor que os nobres não fiquem sabendo os problemas que estamos enfrentando e alguns deles infiltram informantes. — Kaiser suspira, pegando o garfo e a faca de prata, para comer. A Princesa então pega os talheres e eu também. Ele sempre é servido primeiro e estou feliz que minha mãe tenha me dado educação, do tempo em que serviu a dama de honra da Rainha. — O General e eu concordamos que era preciso segurar as palavras antes que virassem armas. — Mas eles ainda podem escrever e gesticular. — Desafio cortando um pedaço de panqueca e colocando na boca. Ai, maravilha, estava mesmo precisando de comida. — Não o farão. Ninguém aqui testará a falta de piedade latente em Devon. — Kaiser ri, achando graça da minha questão. — Nem mesmo eu testaria. Rivais que se respeitam. Chega a ser irônico que esses homens que se estranhavam e brigavam silenciosamente, possuam agora um objetivo em comum. — Parece que vocês se conhecem muito bem. — Reparo. — De fato. — Ele mastiga com graça. Coloco um pedação enorme de panqueca na boca. — Podemos ir para o lago mais tarde, o que acha tio? Fazer um piquenique! — Lady Lucretia interrompe. — Você está comendo não pode estar pensando em comida! — Ele ri, segurando no queixo de Lady Lucretia com carinho. — Devo considerar que Jaylee é muito querida para você, se este é o caso, ela é muito querida para mim também. — Obrigada, tio. — Lady Lucretia sorri com satisfação. Os escravos servem mais e mais comidas. É uma variedade de pães, bolos, doces e recheios diversos. Oferecem sopas, cremes doces e salgados, tortas diversas, canapés e frutas caramelizadas ou em compotas. Cada iguaria é ainda mais deliciosa que a outra e ainda bem que fizeram bastante comida, pois meu apetite é mesmo superior. Conversamos sobre N-D44, escuto sobre alguns problemas de manutenção que ocorrem pelo clima inóspito e parecem preocupados pelos dias de verão, em que teremos quase quatro meses sem noite, experimentando uma luz parecida com o crepúsculo nesse período. — Realizaremos a transferência de alguns prisioneiros neste período, há menos chances de escaparem. — O Imperador comenta, como se fosse o lado bom de uma estação inteira de luz solar. — São os dias de escuridão que me preocupam. Especialmente com o fim do Exílio de Zegrath. Escutei “fim do Exílio”? — Mas ela nos atacou! — Lady Lucretia protesta imediatamente, soando preocupada. — Aqueles carniçais não representaram verdadeira ameaça, o Conselho negou extender o tempo de Exílio. Mesmo que não agrade muitos de nós, não há o que possamos fazer. — O Imperador resfolega, bebericando chá. — Os aposentos Zegrath estão sendo construídos em ND44 para receber todos os nobres.

Meu estômago embrulha de tal forma que perco o apetite. Sério que Celeste virá com sua corja para N-D44 no inverno? E se ela tentar nos matar novamente? Considerando que Zane está especialmente enfraquecido, não acho que é seguro para ele ficar ao lado daquela mulher agora. Sinceramente falando, eu não quero chegar perto dela de novo. — Quando isso irá acontecer? — Ao que tudo indica eles virão com a chegada do inverno. — Quem virá com o inverno? — Zane se aproxima de nós nesse instante, pegando o final da conversa. Viro a cabeça para olhá-lo, com vestes negras semelhantes as de Lucretia e olhos vendados. Ele parece um pouco abatido, pálido e com os lábios inflamados como se tivesse febre. — Nada com o que você deve se preocupar agora, meu amor. — Kaiser estreita os olhos na direção da sobrinha, pedindo silêncio e Lady Lucretia arfa, discordando da decisão, mas a respeita, não se manifesta. Quando Zane chega ao seu lado, o Imperador coloca a mão em suas costas, de um jeito carinhoso. — Achei que não iria se juntar a nós e seria indelicado com nossa convidada. — Eu vim. — Está se sentindo melhor? — Um pouco cansado, mas tudo bem. — Zane passa o braço pelos ombros do Imperador e se inclina, segurando com a outra mão em seu rosto, beijando-o demoradamente na boca. Olho para a Princesa esperando um surto de reação, mas ela pega um pãozinho doce de cima da mesa, com cobertura de açúcar e granulado colorido, mordendo. Fico um pouco impressionada com essa demonstração de afeto e intimidade, mas bem, é Zane, ele faz isso. — Devo considerar que você acordou de bom humor? — O Imperador pergunta baixinho, separando-se de Zane. — Talvez. — Zane responde com um sorriso de canto e contorna por trás do Imperador, passando pela mesa e aproximando-se de Lady Lucretia. — Estou feliz que você está melhor. — Ela sorri comendo o pãozinho enquanto ele passa por ela, acariciando seus ombros pequenos. — Pensei em fazermos um piquenique no lago. Você adora o lago. — Desde que não envolvam cavalos. — Zane se precipita sobre ela, trocando um selinho enquanto ela mastiga. — Sem cavalos, prometo. — Tudo bem, eu acho. — Zane concorda e depois, vem na minha direção, segurando em meu rosto com as duas mãos e me dando um selinho também, de lábios quentes. Fico com aquela sensação esquisita de que beijei o Imperador e Lady Lucretia por tabela. — Que bom que está aqui, Jay, senti muito sua falta. E por fim, se senta entre eu e o Imperador, empurrando o prato de panqueca para longe, fazendo uma careta de nojo e apoia o cotovelo na mesa, segurando o queixo. — Você não vai comer? — Lady Lucretia logo pergunta, reparando. — Já estão frias. — Ele recusa, soa um pouco impaciente em precisar se justificar. — Foi você que dormiu demais e demorou para chegar. — Lady Lucretia faz um

biquinho insatisfeita. — Não faça assim, a culpa é sua por ter me cansado ontem. — Zane provoca, mandando um beijo no ar para ela. — Não fale sobre nossa intimidade em voz alta, o que Jaylee vai pensar de nós?! — Lady Lucretia atira nele um bolinho com chantily em cima, do qual ele se desvia, rindo. — Você está ótimo pelo visto. — Kaiser se levanta, fechando o paletó branco por cima do colete cinza, sorrindo. — Coma algo e não deixe sua noiva preocupada. — O Imperador olha para mim. — Jaylee, ficará bem com esses dois? Sinto não poder acompanhá-la, mas tenho assuntos urgentes que merecem minha atenção. — Já estou acostumada com esses dois. — Abro um sorriso. — Viu, ela disse que está acostumada. — Zane puxa uma torrada de cima da mesa e morde, divertindo-se. — Com você, é claro! — Lady Lucretia cruza os braços. — Com sua licença. — Kaiser dá uma pequena inclinada reverenciando em respeito. Não que ele precise se reverenciar a alguém, simplesmente o faz por ser educado. — Então, qual o plano? Vamos nadar pelados no lago? — Zane brinca. — Eu ia gostar de duas garotas molhadas do meu lado! — Por que você é tão indecente? — Dou um soquinho em seu ombro e ele dá risada. ● ● ● Passo a noite com o Casal Real. Primeiro vamos para o lago, pegamos o barco a remo e vamos até a metade dele, competir quem atira pedrinhas mais longe e quantas vezes elas quicam na água. Lady Lucretia acusa Zane de trapacear usando telecinese e o barco vira derrubando-nos na água gelada. Saimos do lago tremendo de frio, fico com a boca roxa. Sou levada para a sala de banho da Princesa, onde escravas nos despem e vestem uma espécie de véu negro que cobre o topo de nossas cabeças e o corpo, mas ficam flutuando na água. Tomo banho imersa numa água quente cheia de vapor, perfumada de rosas, junto de Lady Lucretia, com mulheres esfregando meu corpo com toalhas macias e quentinhas. — Você é tão pequena. — Lady Lucretia repara no meu corpo. Ela é mais magra, alta e corpulenta que eu. — Deve ter mesmo muita força interior para receber um sangue como o de Riezdra sem se quebrar por inteiro. É admirável. — Obrigada. — Agradeço. Fico envergonhada e um pouco contrangida, mas é mais pelo fato de que estou nua e recebendo toques de todos os lados. — Não, eu que agradeço você, Jaylee. — Ela segura no meu rosto com o véu, o pano incrivelmente macio roçando na minha bochecha. — Sei que Zane concordou com a transformação depois que você pediu, por sua causa, estou tendo a chance que sempre quis. — Ele não fez isso apenas por mim, alteza. — Seguro nas mãos dela e junto com as minhas, beijando em reverência. — Foi por todos nós que nos importamos com ele e especialmente, por você. — Você que percebeu primeiro que ele, então, sim, eu tenho muito a te agradecer. —

Lady Lucretia me mostra um sorriso bonito cheio de gratidão. — Meu débito com você é eterno, Jaylee. Para o que precisar, conte comigo. Dou um sorriso em resposta.

CAPÍTULO 34

Insaciável Um pouco antes do amanhecer, resolvo ir embora. Estou cansada e preciso dormir um pouco. — Por favor, volte breve. — Lady Lucretia me abraça forte, novamente como se eu fosse uma amiga que não vê a séculos, por cima do ombro olho para Zane e ele está sorrindo. Foi uma noite agradável com o Casal Real. Vesti a roupa de Lady Lucretia e fomos para o salão de jogos, onde jogamos xadrez e Lady Lucretia tocou harpa enquanto nos esquentamos na sala com lareira e cobertores de pele. Serviram chá com bolinhos. — Obrigada, voltarei sempre que possível. — Dou tapinhas em suas costas para ela me soltar e me sinto um pouco esmagada pela carência dela nesse instante. — Zane, você a acompanha, certo? — Lady Lucretia coloca as mãos na lombar de Zane, é um carinho delicado, um toque íntimo. — Certamente. Não a deixaria sozinha pelos corredores de Bawarrod. — Ele concorda acenando um “sim” com a cabeça e me oferece o braço. — Te espero no quarto, meu bem. — Lady Lucretia segura no meu ombro, apertando firme e se afasta, deslizando as mãos. — Não me espere de roupas! — Ele sorri maliciosamente. — Não fique falando isso em voz alta! — Lady Lucretia exala ar pelo nariz e se retira, caminhando para longe no corredor, em direção às escadas do segundo andar. — Não demore ou você vai dormir no sofá! — Pelo visto as coisas estão bem quentes! — Comento, rindo. — Achei que vocês estavam em processo de castidade. — Oh, Deus, você não quer saber sobre isso! — Zane me acompanha pelo labirinto de corredores apertados em direção à saída. Alguns escravos silenciosos nos observam quando passamos abraçados por eles. — Não podemos fazer muitas coisas e temos que ficar vendados o tempo todo, perde metade da graça. — Tenho certeza que sua mente pervertida dá um jeito de tornar as coisas interessantes! — Posso sentir o pano das roupas negras de Zane roçando na minha bochecha e o perfume de ervas que exala de seu corpo, é agradável. — Lucretia faz tudo parecer melhor, de qualquer forma. — Ele suspira, apaixonado. Um fio de vento fino e gelado escapa pelas frestas da janela e é possível ver que está nevando, aumenta a minha sensação de solidão. — Espere, você suspirou? — Debocho, dando uma cotovelada em suas costelas, brincando. — Não imaginei que viveria para ver o dia em que você ficasse todo mole por causa de uma garota!

— Não estou todo mole por causa de uma garota! — Ele protesta de imediato, olhando para mim por trás das vendas. — Sim, você está! Até dividiram um cobertor no salão, a coisa mais fofa! — Ah, por favor! — Ele suplica, não aguentando se perceber através da minha opinião e ergue as vendas para a testa, me lançando um olhar de impaciência. — É um pouco incômodo, de repente nos tornamos uma unidade: o Casal Real. — Vocês fazem bem um para o outro e Lady Lucretia é realmente incrível, então não seria diferente. Não pode ser tão ruim assim estar ao lado dela, é? — Lucretia é uma gata e o motivo por eu estar aqui, você mesma disse! — Zane me mostra um sorriso fofo, ele está com um pouco de olheiras. — Ela é, certo? — Comprimo os lábios com um pouco de tristeza. — Então você está bem? — Mais ou menos. É difícil, não apenas o lance do sangue, mas especialmente por ter que ficar todos os dias confinado. Sinto falta da minha liberdade e dos raios solares. — Zane… — Paro de andar, virando de frente para ele e comprimo os lábios, colocando as mãos em sua cintura. — Será que um dia você vai me perdoar por ter te pedido para se tornar um vampiro? Ver você sofrendo desse jeito, é a pior coisa desse universo. — Eu te amo e seria capaz de qualquer coisa por você, sabe disso, não sabe? — Há intensidade em seus olhos brancos como o gelo que cobre as montanhas, encontro uma espécie sagrada de paz, que reflete a minha própria imagem entristecida. — Sim. — Ninguém me obrigou a nada, Jay. Eu fiz uma escolha, a responsabilidade é toda minha! Ninguém precisa se culpar por eu ter me tornado um vampiro. — Queria poder te ajudar nesse período de alguma forma, talvez se você beber o meu sangue... — Ugh, não! — Zane faz uma careta enojada, as pontinhas escuras do cabelo ondulado batendo em seu ombro de um jeito agradável. — Ouvi dizer que tem um gosto horrível! — Não faça piadas, Zane, não tem graça. — Faço biquinho. — E o que acontece agora? Ele pisca um olho e sorri levemente, mostrando os dentes simétricos: — Você me beija e vai para casa, ué! Sempre um galanteador! — Você é impossível! — Mostro um sorriso amável e levanto os pés, alcançando sua bochecha macia. Dou um beijinho delicado. — Não assim, eu quero um beijo de verdade, Jay. — Os braços de Zane me envolvem antes que meus calcanhares voltem para o chão, impedindo que eu me afaste. — Zane, não… — Resisto, virando o rosto para o lado, tentando escapar, mas é inutil, meus joelhos amolecem contra minha vontade. Suas mãos alcançam minhas coxas e deslizam pelo meu bumbum com vontade. Por cima de seu ombro, vejo os escravos que estão no corredor desviarem os olhares, evitando presenciar tal infidelidade. Zane se aperta contra mim, amassando meu corpo contra a parede. Quase perco o equilíbrio, enquanto meu corpo inteiro responde ao magnetismo que ele tem. Fico sem reação e não por me curvar à explosão sexual que nasce dentro de mim quando sua boca me alcança e ele me beija com vontade, o hálito fresco e deslizando as mãos pela minha

cintura, mas por ser incapaz de reagir à dominação de Bawarrod. Sinto quando ele desliza algo para dento do bolso direito da calça preta de Lady Lucretia que estou usando. É assim que eu me torno um pombo correio. Acho que o menino de ouro se tornou no soldado infiltrado. Não percebi até agora. — Diga oi para o meu pai por mim. — Ele sussurra em meu ouvido e se afasta, sorrindo sem mostrar os dentes. Recobro minha consciência e o controle do meu corpo. Sou capaz de falar com minha garganta: — Claro. — Ergo as duas sobrancelhas e caminhamos até a porta, com o braço ao redor de sua cintura. — Estava mesmo pensando em cozinhar o jantar. — Paramos em frente a porta de madeira. Um escravo de tanguinha me cede um casaco de peles, que cubro o meu corpo e esquenta, para enfrentar a nevasca. Ele abre a porta para mim, olho para ele rindo. — Sabe, o Imperador tem mesmo um gosto muito exótico! — Brinco. — Você ainda não viu nada. — Zane me mostra um sorriso insinuante e ergue as duas sobrancelhas. — Vejo você na festa de Solstício. — Cuide-se. — Eu o abraço, despedindo-me. A neve está densa, mas me sinto bem. Sigo todo o caminho em direção aos aposentos da Casa Riezdra, para realizar uma entrega especial, o horizonte inicia a mudar de tonalidade, de um azul intenso para um lilás claro. ● ● ● Bato três vezes com as costas das mãos na porta de madeira, bem de leve, mas o que considero suficiente para um vampiro ouvir. — O que você quer aqui? — Devon abre a porta rosnando e sem camisa, apenas com a calça da farda, o braço encostado no batente da porta, segurando uma garrafa de vermute. Acho que alguém teve um dia cheio e estressante. — É quase de manhã. — Tenho uma entrega para você, meu senhor. — Encaro seu abdômem bem marcado e os músculos fortes de seus braços, assim fica impossível resistir! Tudo em Devon me atrai como um ímã. — Que tipo de entrega? — A voz enrouquecida e sexy arrepia minha nuca. — Do seu menino de ouro. — Ele foi rápido. — Com um sorriso de canto, Devon me deixa entrar. Seus cabelos castanhos-claros estão um pouco bagunçados, conferindo a ele um ar sexy. Mordo a boca contendo o sorriso e o desejo, e entro no apartamento vazio. — Escutei hoje mais cedo que sua esposa está vindo para N-D44. Você deve estar ansioso! — Caminho até o meio da sala, o aquecimento interno está ligado e a temperatura está agradável. — Ex-esposa. — Devon me conserta e fecha a porta em uma batida forte. O som me assusta, enrijecendo os músculos dos meus ombros. — Ciúme? — Bem que você queria! — Olho para ele por cima do ombro, erguendo uma sobrancelha em desafio, Devon me observa com um misto de satisfação e curiosidade. — Onde está? — Ele solta a garrafa em cima da bancada, o líquido já pela metade.

— Bolso direito. Você tem que vir pegar. — Provoco. — Eu poderia. — Devon venta, rindo, se aproximando de mim. Ele roça a barba ao pé do meu ouvido e meu corpo inteiro ansea pelo toque de suas mãos, mas ele não me toca. — Mas primeiro, você teria que admitir que sentiu minha falta. — Eu poderia. — Empino o bumbum, para me encostar nele. — Mas não senti. — Mentira, mentira, mentira! — Sua boca me nega, mas seu corpo não. — Seguro de si, ele coloca a mão no meu bolso e retira o que tem lá, se afastando. A distância cresce entre nós enquanto ele caminha de volta até a bancada enquanto abre o bilhete, tento conter minha respiração, antes que eu comece a hiperventilar. Analiso suas costas, mais interessada em reparar em todos os músculos e a linha vertebral, subindo até sua nuca, onde os cabelos castanhos-claros se juntam. Devon larga o papel negro em cima da bancada, está vazio, não tem nada escrito. Ele gira, se encostando na bancada. Em suas mãos, um cilindro de ferro cinza escuro, do tamanho de uma bala de fuzil. — O que é isso? — Uma chave mestra. — Devon ergue os olhos dourados para mim. — Por que meu senhor precisa dela? — Pergunto curiosa. — Você vai descobrir na hora certa. — Devon coloca o cilindro em cima da bancada e caminha na minha direção, segurando no meu rosto, apertando, erguendo-o para cima de forma que eu o encare. O anel bico de corvo no indcador arranha minha bochecha. — Não quero correr o risco de que coisas escapem dessa sua boquinha maldita. Não afasto o rosto, nem me manifesto. Devon não é nenhuma criança inocente e sabe como armar jogadas. Ele ainda não confia em mim o suficiente para me contar seus planos, mas ele irá e depois, poderei controlá-lo. — O que você quer que eu faça agora, meu senhor? — Pergunto sem expressão, com o rosto amassado por sua pegada firme. — Pense em alguma coisa, já estou entediado com sua presença. — Ele me ofende, como sempre. Oh, posso pensar em muitas coisas! Seguro em sua mão, lambendo seu polegar de leve e o abocanho, chupando, enquanto abaixo lentamente, ficando de joelhos no chão. Desafivelo o cinto e abro os botões de sua calça preta, seguro firme na calça e no elástico de sua cueca e roço o meu nariz em seu membro, sentindo-o pulsar e enrijecer antes de liberá-lo, apontando para mim. Com a língua, confiro seu comprimento e faço movimentos circulares na ponta. Ele segura em meus cabelos, me forçando a engolí-lo e eu obedeço seus comandos silenciosos, até que ele estremece, gemendo e me separa dele, antes de gozar. — Não assim. — Ele segura nos meus braços, me colocando em pé. — Quero estar dentro de você. Desamarro os cordões da calça que estou vestindo e o pano se desenlaça da minha carne, escorregando, puxo a camisa para cima, tirando, ficando inteiramente nua e vulnerável diante dele. Devon me levanta e me encaixa. Arfo de prazer e logo estou contra a parede, sendo pressionada, invadida, enquanto ele me segura firme nas coxas. Seguro firme em seus cabelos e pressiono seus caninos contra a pele do meu pescoço, cedendo.

A mordida é forte e profunda, um pouco dolorida, mas eu logo estou entregue aos prazeres do sangue o corpo amolece. Ele me deita sobre a mesa e morde o pulso, um filete de sangue vem na minha boca, enchendo-a de sabor. Eu quero mais. Sento e forço seu braço contra a minha boca, sinto seu poder encher minhas veias, mas ainda quero mais! Dou goles largos, escutando o som de guti-guti que faço engolindo-o. — Não beba demais, você pode não suportar. — Devon sussurra e me segura, afastando minha boca de seu braço e encaro seus caninos vermelhos do meu sangue. — Preciso de mais! — Exijo, como uma ordem, invadindo sua boca, mordendo seus lábios e chupando forte, querendo arrancar tudo dele. — Shhh, não ainda. — Ele me acalma, deslizando a boca por meus seios e abrindo minhas pernas. Meu corpo inteiro estremece com o toque de sua língua entre minhas pernas. Perco o controle do meu ser e da minha existência e mordo minha própria mão para suprimir um grito de prazer. ● ● ● Acordo entre lençois macios de uma cama grande. Encaro um teto cru, de cimento, com rachaduras. Pisco várias vezes tentando encontrar nas memórias onde estou e me sento, perdida. Olho ao redor e bato com o olhar no corpo de Devon, deitado do meu lado, as costas descobertas. Passo os dedos pela minha arcada dentária superior. Não, tudo normal. Ainda sou eu mesma. Desço da cama pisando no chão com cuidado para não fazer barulho e ando devagar, saindo do quarto. Encontro a camisa simples de algodão que Lady Lucretia me emprestou e visto, cobrindo meu corpo até as coxas. Continuo até a cozinha e acho um garfo e uma latinha de lentinhas. Tudo o que eu preciso agora. Sento para comer na bancada, abro a latinha e dou uma grande garfada, enchendo a boca. Suspiro, enquanto penso o que vou fazer da minha vida agora que não consigo parar de desejar aquele homem que deixei dormindo na cama. Eu o quero de todas as formas e quanto mais eu tenho, mais preciso. O que há de errado comigo, afinal? São os efeitos da RelaçãoSanguínea? Como vai ser quando ela se completar e eu passar a transformação? Lembro que Zane disse que não queria se ver ligado ao Imperador pelo resto da eternidade, mas é exatamente como ele está, inclusive, o deseja quando o beija a boca, mesmo que seu coração pertença à Lady Lucretia. Dou outra garfada e bato os olhos no cilindro de ferro em cima da bancada. Tinha até me esquecido disso. Uma chave mestra, Devon disse. Não faço ideia que portas ele pretende abrir com ela! Solto o garfo e pego o cilindro, observando-o. Ele é liso, um pouco marcado como se alguém tivesse batido forte com o martelo, não reluz e é bem pesado. — O que você está fazendo? — A voz de Devon me assusta, dou um pulinho parada no mesmo lugar, mas não grito. — Comendo. — Solto o cilindro em cima da bancada. — E tentando saciar minha curiosidade, já que com a fome é inútil. — Remexo com o garfo nas lentilhas. Devon não diz nada, apenas vai até o armário de bebidas abrindo a porta, fito a pele da

sua bunda torneada com um pouco de satisfação. Ele dá um gole na bebida e coloca a garrafa em cima da bancada. Solto a latinha, Devon segura no banquinho em que estou sentada e o arrasta, me virando de frente para ele. Descubro que os vampiros da Casa Riezdra são insaciáveis no sexo também.

CAPÍTULO 35

Masmorras — Você está pronta? — A mão quente de Devon está na minha nuca, firme, causando choques por todo o meu corpo. — Estou. Tem sido assim nos últimos meses em que ele me toca, nossos corpos se colam e minha mente fica em nuvens. Não consigo pensar em mais nada! O perfume amadeirado atiça meus desejos e inspiro fundo, procurando absorver o máximo possivel dele. Estou tão ferrada! A primavera passou enquanto eu me perdi em seus braços, seus beijos carinhosos e ao mesmo tempo brutais, suas mordidas e o prazer do sangue. Foram encontros noturnos que começaram espaçados e se tornaram dia após dia mais frequentes. Escravos não podem entrar nos aposentos de seus mestres sempre, precisam ser convidados. Eu recebo convites quase que diariamente, Devon é obcecado por mim. A guerra avançou nesse período, recuperamos parte do território perdido e N-D44 é uma das colônias mais seguras. O norte tem sido muito procurado. Estamos operando com toda nossa capacidade, a cidade se tornou um vespeiro o que despencou o preço da doação de sangue para quem utiliza as áreas livres. Humanos passam fome, carregamentos inteiros de farinha e açúcar terminam em poucas semanas. O verão se instalou e o Imperador dobrou as áreas de plantio sustentável, mas há algo de errado com o mar, peixes estranhos às vezes ficam encalhados no cascalho próximo à neve. Eu acho que a mutação dos Anjos finalmente nos alcançou e isso é assustador. Se os Anjos fazem isso com a natureza do planeta, o que será que fazem ao nosso corpo ou ao dos vampiros? Não vou pensar nisso agora. Deveria ser um bom período para acordos de paz, mas não existe isso. Anjos querem nossa aniquilação total: humanos e vampiros. Para eles, não há distinção. Eles envenenam nosso planeta e nos roubam as chances de vida. Hoje é o dia sem noite. O dia de Solstício. Prisioneiros estão sendo transferidos das Masmorras antigas para as mais novas: vinte e cinco celas de ferro e chumbo do tamanho de madames-de-ferro, projetadas para conter vampiros criminosos. Por incrível que pareça, a Sociedade dos Vampiros é muito pacífica, eles possuem um senso de comunidade e mútua ajuda que nós, humanos, nunca conhecemos ao longo da história, mas me assusta um pouco o quanto eles confiam no sistema mesmo com provas de que é um tanto ineficiente, à exemplo de Zegrath. Vampiros não ficam presos para sempre. Só um crime recebe punição de morte, o restante vária em tempo e tipo de Exílio. É um problema, na minha opinião. O Grande Império é como o facismo. O Imperador é o oficial de maior comando, logo

abaixo fica o General, que é da Casa Riezdra e há um Major, que é da Casa Lunysum. Ele é um velho senhor que concorda com tudo o que Devon diz, pelo que fiquei sabendo, é um homem que deve sua vida à Devon na época em que ele era enviado para missões de resgate de humanos e essas coisas. Devon não fala muito sobre isso, eu não pergunto, normalmente deixo que ele me conte o que quiser contar. Escuto até ele cansar de falar, ou até eu adormecer com o timbre delicioso de sua voz, abraçada a ele na cama ou no sofá. Ele nunca fala da família ou de Cassandra. De vez em quando, escuto sobre como era na época em que Zane era criança. São as memórias mais preciosas e quando Devon fica com um brilho único no olhar. Se outra pessoa me contasse que um vampiro aristocrata adotou um humano, eu acharia que um humano adotou um gato de rua, por exemplo, mas Devon realmente tem fortes sentimentos por Zane, isso se ele não for a pessoa mais importante da vida de Devon. O que torna tudo mais complicado, já que a fraqueza do General é a mesma que a minha. Em uma noite das mais frias com o sangue irrigado a vermute, Devon me contou sobre como o adotou. O dia que matou o pai de Zane. Ou, como ele mesmo referiu-se: “o dia em que matou alguém sem ser para se alimentar”. Estava chovendo e Devon andava sozinho por ruas não muito bonitas ou seguras para humanos. A tempestade havia deixado o bairro entregue à escuridão e esse era um dia perfeito para um vampiro sair às ruas em busca de comida. Foi atraído pelo cheiro de sangue. Acho que Zane tem mesmo algo de especial e único no sangue, capaz de atrair tantos vampiros e os mais diversos predadores. Talvez seja isso que ele tenha no sangue que permita que ele seja um vampiro tão cheio de magnetismo, desejado, invejado e admirado. Não é irônico? Ele nem era um vampiro no início de sua vida. Devon atravessou algumas ruas e escalou alguns telhados farejando até encontrar o garoto. Um bebê chorava aos berros altos, suprimindo o som dos relâmpagos. Devon contoume que o que ele viu arrancou-lhe a coragem de beber sangue naquela noite, mas em compensação, acendeu uma raiva única. Ele degolou o pai de Zane com as próprias mãos, arrancando a carne e espirrando sangue. O dia em que ele matou um humano sem que fosse para se alimentar. Essas palavras ficaram gravadas na minha alma de um jeito intenso, como se a dor dele tivesse sido a minha. Devon nunca descreveu a cena que viu e deixou tudo entregue a minha imaginação. O que o pai de Zane havia feito que era tão horrendo? Até que ponto pode ir a obscuridade da alma humana? O garoto havia sido espancado? Sodomizado? Torturado? Eu nunca vou saber, mas ficarei eternamente garata à Devon por ter farejado Zane aquela noite, por ter salvado-o da morte e por ter criado de forma tão correta e tão incrível uma das pessoas mais importantes da minha vida. Será um débito eterno. Acho que Lady Lucretia e o Imperador sentem-se da mesma forma. Devon também me contou que um vampiro veste sua farda quando alcança a maioridade. Para eles, algo por volta dos quatorze anos, quando os poderes no sangue começam a se manifestar. São treinados nas artes de suas Casas e se dividem em esquadrões de acordo com a idade. Algumas equipes são maiores, outras menores, dependem da função. Não sei muito sobre elas. O que sei é que Drarynina é companheira de esquadrão de Devon desde o

início e que ela é uma espécie de melhor amiga, além de ser o escudo mais poderoso em Soretrat. Ela é seu braço direito, inclusive, é encarregada pelas operações secretas do Refúgio. Celeste também fazia parte do esquadrão conhecido como Strigidae até sair por motivos óbvios. Havia um homem que era da Casa Blonnard, Chad, mas que teve um destino cruel durante a guerra, bem como uma das melhores arqueiras que ele já conheceu, Rosário, da casa Lunysum. Román quando entrou era muito jovem, ainda uma criança em seus quatorze anos, quando seus pais quiseram discipliná-lo. Devon sabia que ele era amigo de Zane e foi paciente com o novato desgovernado, dizendo que as vezes até se enxergava em Román, que era esforçado. Sobre o período de guerra, eu pouco sei. É um mistério nebuloso que atiça minha curiosidade. — Você ao menos está me escutando? — O tom impaciente chama minha atenção e ergo a cabeça para encarar Devon. Os olhos afiados esperam uma resposta. — Desculpe, o que foi? — Pisco, como se acordasse. — Coloque o capacete e vamos. — Ele ergue as duas sobrancelhas silenciosamente me dizendo “você é um desastre” e coisas do tipo, e vira as costas. Não evito conferir suas linhas demarcadas pela armadura que se ajusta ao corpo e pego o capacete de cima da poltrona, colocando-o na cabeça e dando um tapinha para encaixar com o restante da roupa. Escuto um barulho como se despressurizasse ar e me sinto confinada. Tudo vira silêncio e é como se eu estivesse sozinha em um traje de astronauta. Os hologramas aparecem diante dos meus olhos, com o tempo, aprendi a interpretá-los, profundidades e formas, não tem cores. É através dos hologramas que enxergo o momento em que Devon coloca algo cilíndrico para dentro de sua roupa, preso em uma corrente no pescoço. É aquela chave mestra? Ele está tramando alguma coisa. É meu primeiro dia de trabalho como um soldado do Exército e estou acompanhando uma missão, como trainee. Treinei bastante, mas ainda sou humana, segundo Devon, ele ainda precisa que eu seja capaz de andar sob a luz do dia. Uma pena que perderei a minha tatuagem, gosto da obsessão de Devon por ela, sua língua em minhas costas, tracejando o desenho como se ele fosse um artista. Eu preciso parar de pensar nele dessa forma! Respiro fundo e encaro o interior do Aeroflex planando em direção às Masmorras. Neste módulo os prisioneiros serão transportados e fico nervosa só de pensar que estarão sentados aqui, em carne e osso. Confiro as pistolas presas nas minhas pernas e me dirijo para a escotilha de saída no instante em que o Aeroflex para. Encaro os soldados que estão de armaduras como a minha. É um pouco engraçado que no topo de suas cabeças marque seu nome, com uma flechinha. Parece videogame. Aliás, esses capacetes são muito legais, eles marcam as miras, calculando distância, velocidade, variáveis do vento e de clima, além de possuírem sistema de som em canal interno com o esquadrão e canais de operações. Román passa por mim. Sei que é ele apenas por ler o nome, ainda acho que todos os soldados de armaduras são iguais e ainda não compreendo como Nytacha sabia que era Román

ou não em uma armadura. Nytacha… tenho vontade de chorar sempre que penso nela e meu coração se rasga com raiva. A escotilha se abre e um caminho marca no mapa, como um GPS. Drarynina desce primeiro, depois Devon, Román, eu e pouco a pouco os outros soldados vão também. — E aí, vaqueira, como estamos? — A voz de Caedyn soa no canal do esquadrão, divertida e de um jeito que posso imaginá-la com os pés em cima da mesa de controle. Caedyn faz parte do esquadrão em que eu estou, ainda estamos entrando em formação e não temos um nome oficial, fiquei sabendo que demora um tempo para conseguir um, mas que deve acontecer daqui uns anos. Byrn se juntará a nós depois que o seu tempo de adaptação passar. Ela é uma Recém-Transformada da Casa Bawarrod e já tem inclusive um Escravo-deSangue, que não tive oportunidade de conhecer. A última vez que a vi, ela estava muito contente de ter se tornado uma vampira, uma espécie louca de realização de um sonho gótico. — Tudo bem por aqui, vaqueira. — Respondo no microfone, olhando para a enorme estrutura de metal em formato cilíndrico no meio da neve. As Masmorras estão no fundo desse gigantesco poço, o GPS aponta bem para ele. Piso na neve fofa, mas não é difícil caminhar. Com essas armaduras, nossos passos são mais potentes, dá para correr mais depressa e pular muito alto. Eu acho demais! Há um segundo Aeroflex estacionado, de onde saem outros guardas. Eles vieram fazer o trabalho braçal. Seus nomes pulam em cima de seus hologramas, ninguém que eu conheço. Suas vozes invadem minha audição através do canal de operações, alguns conversam sobre o festival de Solstício que estão perdendo. Entramos no grande cilindro, o chão é de metal e há um enorme vão que é o poço redondo. O vento assobia e há uma roldana com correntes gigantesca. Os soldados se posicionam e começam a içá-las. Fico junto de outros guardas, em pé perto da saída. Caedyn começa a cantarolar uma música esquisita, sem letra, ela fica fazendo “lá lá lá” e “bam bam bam” no canal do esquadrão enquanto os soldados puxam as correntes. Os canais se alternam, tenho que me esforçar para isolar os ruídos que não são importantes e receber as ordens, mas confesso que sinto falta de ouvir a voz de Zanem ele é nosso veterano, o que podemos considerar uma grande honra, sermos liderados pelo futuro Imperador. As Masmorras são colocadas no salão redondo de metal lado a lado. Vinte e cinco Masmorras. Uma a uma, são destrancadas e abertas, divididas em duas partes com espinhos de ferro. Dentro, os vampiros criminosos estão enrolados em panos brancos. Pelo que entendi, os espinhos impedem a circulação de sangue e inibe o uso de poderes, além de preservar a integridade dos corpos. — Você é tão sortuda. Se eu estivesse aí poderia dar um “oi” para o meu pai. Fazem anos que não o vejo! — Caedyn tagarela. — Ei, diga a ele que sinto saudades! — Não acho que teremos chance de conversar. — Respondo, meio rindo, mas falando sério. Não acho que tenho que conversar com criminosos. São criminosos, certo? — Ah, qual é, prometa que vai falar se tiver chance! — Caedyn exije, com a voz inflamada. Ela é muito explosiva e rancorosa, não quero deixá-la brava comigo. — Prometo, mas não terei chance! Fale com ele quando o tempo de punião acabar. Aliás, por quanto tempo ele fica preso? — Não existe um temp certo para isso! — Caedyn dá risada, como se eu fosse louca.

— Não? Então como funciona? Ficam presos para sempre? — Podem sair quando conseguem sair. — Caedyn explica e fico com a impressão de que ela está me dando uma resposta impaciente, sabe quando damos uma resposta ardida porque fizeram uma pergunta idiota. Caedyn continua cantando e os corpos são colocados lado a lado no chão. Através do meu capacete vejo o monitoramento cardíaco, enquanto o sangue volta a circular em suas veias. Os panos removidos e os guardas os ajudam a ficar de pé. Nenhum soldado tira suas armas dos coldres e nenhum dos prisioneiros é algemado. Não há um sinal de opressão, eles são simplesmente escoltados para dentro do Aeroflex e acomodados em poltronas. O veículo volta a planar. Fazemos todo o percurso para as novas Masmorras, construídas recentemente. Os prisioneiros não falam nada e nem dão trabalho, todos ficamos em silêncio. Quer dizer, menos Caedyn! Observo os nomes dos prisioneiros que surgem na tela do capacete, um deles me chama atenção: Dorian Riezdra. Esse deve ser o pai de Caedyn. E tio também, já que ele é irmão de Devon e de Izobel. Respiro fundo e dou passos até ele, parando do seu lado, mantenho as mãos para baixo, caso precise sacar minha arma. — Ahn, senhor Riezdra? — Chamo. Ele vira a cabeça para mim e eu não vejo exatamente seu rosto, só uma análise de sua expressão facial, com porcentagens de sentimentos: confusão, medo, curiosidade. — Caedyn pediu para dizer que sente saudades. — Bem… — A voz dele ressoa sem firmeza, mas profunda e potente, enquanto a expressão facial muda para desapontamento, confusão, satisfação, melancolia e tristeza. — Diga a ela que sinto o mesmo. E que sinto muito. Comprimo os lábios em um sorriso e só então me toco que ele não pode ver o meu rosto. Aceno que “sim” levemente e em reverência e me afasto, voltando para o meu lugar. Chamo Caedyn pelo canal: — Mensagem entregue, vaqueira. Ela para de cantar e fica um momento em silêncio, talvez ponderando. É algo incomum, Caedyn não consegue ficar calada, é daquelas pessoas inquietas com energia demais, que batem os dedos e as pernas nas mesas, pratica esportes e sofre de insônia. Costuma dizer que tem “muita energia” numa espécie de piada com o fato de poder lançar raios energéticos, como eu. Minha vantagem sobre ela é a agilidade. — Obrigada. — Sua voz corta o silêncio e ela inicia a cantoria, muto o canal. A viagem é relativamente rápida, logo estamos na nova construção, também cilíndriga, mas dessa vez, há um sistema com elevadores flutuantes, a mesma tecnologia dos Aeroflex, suponho. Os prisioneiros são colocados lado a lado enquanto as Masmorras são trazidas. Um a um, eles são colocadas em suas novas caixas de prisão, dessa vez deitados no que parece uma nave espacial criogênica de filmes de ficção. Dorian é o terceiro a ser encaminhado para uma das Masmorras. Devon estende a mão para ele, para dar apoio, enquanto ele se deita. — Estou orgulhoso de você, meu irmão. — Dorian bate as mãos ao redor da de Devon, numa espécie de cumprimento. Tudo o que ele recebe em resposta é um aceno de cabeça e deita-se, em silêncio,

colocando os braços para dentro. Devon abaixa a tampa com força e ouvimos as travas automáticas se fecharem. Devon dá dois passos para trás, os soldados se aproximam e a câmara de Dorian é erguida no tudo do elevador. Apertam um botão e ela desce em alta velocidade para o fundo do poço. Pensei que Devon havia passado por cima do irmão para conseguir o amor de Cassandra, o posto de General do Exército e os poderes plenos de Príncipe da Casa Riezdra, que havia levado uma flechada nas costas por isso. Então, por que eles pareceram tão ligados? Ou será que estou julgando-os através da ótica dos humanos? As outras Masmorras são preenchidas e enviadas para baixo do poço. Os soldados trancam a grande estrutura e ligam os sistemas de segurança, mas já que nenhum deles tentaria escapar, acredito que o sistema seja para protegê-los. Intrigante! Voltamos para N-D44 e o Imperador é informado de que a operação foi um sucesso durante a viagem. Nessa mesma noite, enquanto estou nos aposentos de Riezdra, enchendo Devon de beijos e arrancando suas roupas com desejo, percebo que o cilindro pendurado em seu pescoço, sumiu. ● ● ● É uma manhã gelada, clara e sem nuvens no céu. Atravesso os corredores até o pátio de troca de cupons para pegar um pouco mais de geleia para que mamãe possa fazer o bolo de aniversário de Johin hoje. Agradeço ao senhor que cuida da banca de trocas e pego a sacola, conferindo que está tudo ali enquanto ando. Alguém puxa meu braço, com delicadeza: — Jaylee! Não acredito que é mesmo você. Ergo os olhos e encaro Elisabeth. Ela está sorrindo, parece que tem se alimentado muito bem e há uma aura de felicidade etérea nela. — Uau. — Reparo em sua barriga de gravida com espanto. O volume protuberante que estica o simples conjunto de inverno que os colonos recebem em cestas. — Elisabeth. Grávida! Parabéns. Eu acho. Meu coração dói. Pelo visto Lyek está muito ocupado! Ele realmente seguiu em frente. — Faz algum tempo que não nos vemos e não tive oportunidade de te contar sobre isso. — Elisabeth sorri, noto que ela também veio pegar geléia. — Falou com Zane? — Encontro-o de vez em quando, você sabe, ele passa a maior parte do tempo confinado na noite e naquele castelo. — Dou de ombros e a acompanho até a saída, abrindo a porta da vendinha. — Às vezes nos vemos durante a guarda noturna, ele é meu veterano e comandante no exército. — Espere, você está no exército? — Ela dá um risinho. — Todo vampiro vai para o exército. — Suspiro. Elisabeth para de andar e segura no meu braço com força. — Você vai se tornar uma vampira? — Seus olhos são puro espanto. — Sim. — Dou de ombros e comprimo os lábios. O que ela tem a ver com isso, de qualquer forma? — Elisabeth? — Ao ouvir a voz de Lyek meu coração para de bater. Minhas mãos ficam

geladas de imediato e viro para o lado, abruptamente, no susto e ao mesmo tempo, atraída. — Jay? — Ah, oi. — Fico sem graça. Não sei o que dizer e nem como reagir, muito menos como devo me sentir. A última vez que vi Lyek foi um desastre e muito antes de chegarmos à N-D44. — Quanto tempo! — Muito tempo. — Os olhos quentes e escuros de Lyek se firam aos meus, como quem procura algo dentro de mim. Ele não mudou nada, continua exalando cheiro de combustível e graxa. Seu rosto está sem barba e os cabelos escuros um pouco bagunçados, mas fica bem nele. Sinto calor, se chama constrangimento. — Você está... Bem? — Er... Sim. Dentro do possível. Você está vem, pelo visto. — Ergo as duas sobrancelhas. Preciso fugir logo daqui ou vou explodir! Olho para a barriga de Elisabeth, depois para Lyek. Ele estreita os olhos e depois joga a cabeça um pouco para trás, abrindo os olhos de novo. — Não eu... Eu... — Ele gagueja, com as mãos na cintura. — Não! Quer dizer... De qualquer forma, o que você tem feito? — O de sempre. — Dou de ombros torcendo a boca. Por que ele não consegue falar comigo? Isso é tão incômodo! — Jaylee estava dizendo que entrou para o exército e que vai se tornar uma vampira. — Elisabeth expõe, falando até depressa. — O quê? — Lyek abre muito os olhos, chocado, olhando para mim. — Você não pode, Jay! — Eu não posso? — Pergunto colocando uma mão na cintura aborrecida. — Quem você pensa que é para dizer o que posso ou não fazer? Francamente! — Solto o braço da mão de Elisabeth com brusquidão e passo por eles. — Felicidades pelo bebê! Marcho para longe com passos aborrecidos. Eu não estou realmente brava com Lyek ou Elisabeth, na verdade, é bom saber que eles estão felizes e que ela está grávida, um bebê é uma bênção, especialmente em dias como esses. Estou brava comigo! Por me sentir assim, por me importar, por ter inveja! — Espere aí! — A mão grande e firme de Lyek segura no meu braço e me vira com força, fazendo-o me encarar. — Você não vai sair andando de novo sem conversar comigo de forma decente, Jaylee. E eu sei, no fundo de seus olhos, o quanto isso é verdade.

CAPÍTULO 36

Guerreiros do gelo — Não importa o que você tenha para dizer, eu não estou interessada de ouvir! Você não tem nem que se justificar, Lyek! Está seguindo a sua vida e isso é ótimo para você! — Jogo as palavras como um vento forte, a voz ardida. — Como você pode ser tão estúpida?! — Ele exala ar pela boca e segura no meu rosto com as duas mãos, colando a boca com a minha. Recobro as batidas no coração. Assustadas e potentes. — O que você tá fazendo?! Sua namorada está vendo! — Eu me afasto de Lyek, empurrando-o com as duas mãos. — Ou esposa, sei lá! — Gesticulo, com as mãos para frente. — Elisabeth não é nada além de minha amiga! — Lyek responde com calma e com a voz pausada, ele coça a sobrancelha. — Ela está grávida de Roy, um amigo meu. Foi isso que tentei te dizer aquele dia nos abrigos em S-03. Ela estava com problemas! Nervosa, passando mal, Roy estava sumido… tudo foi tão complicado aquele dia e você não quis me escutar, foi embora e eu… Eu devia ter ido atrás de você. — Com um suspiro, Lyek coloca as mãos na cintura, usando uma calça de frio creme, botas e um casaco marrom claro. — Eu sinto muito, Jay. Será que poderíamos conversar? — Bem… talvez. — Respiro fundo. — Hoje é aniversário de Johin, se vocês quiserem, você, Elisabeth e Roy, podem jantar na minha casa. — Seria ótimo. — Lyek responde. Mostro um sorriso e seguro no braço esquerdo de Lyek fazendo um carinho. — Colocaremos a conversa em dia e você me explica essa sua ideia estúpida de se transformar em uma vampira. ● ● ● Cantamos parabéns, Lyek, Elisabeth e Roy comparecem ao evento e trazem biscoitos, que Elisabeth mesma fez e um aviãozinho de madeira que Roy construiu. Ele é um dos envolvidos nas construções da ala de Zegrath e tem acesso à materiais extras. Mamãe coloca Johin para dormir e nos serve um café para conversarmos, sentando-se à mesa conosco e com minha tia Lilane. Roy é um rapaz de cabelos loiros bem claros e olhos azuis, alto, com o timbre profundo e suave. Ele fica o tempo todo de mãos dadas com Elisabeth e conta que conseguiram um pequeno apartamento de um quarto para os dois morarem. Antes de anoitecer, Elisabeth e Roy se despedem de nós. Mamãe e minha tia ficam em casa e eu resolvo dar um passeio com Lyek pela praia. A àgua revolve calma e o vento gelado fere minhas bochechas. Há pessoas por aqui essa hora a maioria casais olhando o por-do-sol e abraçados, algumas crianças jogando bola e pescadores retornando para casa.

— Você está tremendo. — Digo para Lyek, percebendo que ele está com as mãos dentro do bolso e os ombros empinados, passando os braços por suas costas, a roupa fria. — Está frio para diabo! — Ele me olha de canto, enquanto caminhamos. — Mas acho que você não deve estar sentindo. — Eu disse a você que o sangue dos vampiros poderia nos fazer mais forte. — Pisco, rindo. Estamos conversando como antigamente, como os bons amigos que somos. Acho que amizades verdadeiras são assim, você passa tempo longe da pessoa e quando se encontram novamente, nada mudou! — Mas eu não sabia que uma vez que se toma sangue de vampiro é irreversível, então entrei nessa quase sem querer. Quer dizer, não é irreversível, tem que matar o mestre antes de você se transformar. — Parece fácil. — Ele brinca e olha para o horizonte. — N-D44 é um lugar muito bonito, mas é triste pensar que não temos liberdade para viver nossas vidas. — Depende de como queremos viver nossas vidas! — Falo. Lyek olha para mim intrigado, esperando eu articular a questão. — Para alguns, viver a vida como um vampiro é uma prisão, para outros, liberdade. Mesma coisa conosco. — Está falando de Byrn? — Lyek resfolega. — Ouvi dizer que ela recentemente se transformou em uma vampira, os pais dela foram transferidos perto de onde estou. — E como eles estão? Lyek torce a boca e balança a cabeça de um lado para o outro dizendo “mais ou menos” de jeito silencioso. Ele completa: — Vendendo as coisas que não couberam na mudança, mas apesar de estarem inseguros com o futuro, parecem muito felizes por ela. Dizem que é uma grande chance, tenho certeza que sua mãe pensa o mesmo. — Ela pensa que estarei garantindo o meu futuro e o de Johin, mas… — Mas? — Eu entendo o que você quer dizer. Quando Zane se tornou vampiro, foi difícil, não era algo que eu quisesse para ele, ou que ele mesmo quisesse. — Zane, né? — Lyek revira os olhos. — Vocês devem estar bem íntimos agora, você virando vampira e ele também. Muitas coisas em comum, como sempre. Inclusive saliva. — Não faça isso. — Olho para o céu, a cor laranja começa a sumir, dando lugar para um rosáceo arrocheado e nostálgico. Exalo todo o ar dentro de mim pelo nariz, cansada. — Zane é meu amigo e alguém importante para ter como aliado. — Aliado, né? — Lyek ergue uma sobrancelha e eu simplesmente adoro que ele esteja com ciúme nesse instante. — Por acaso ele continua beijando a sua boca? — Não respondo e Lyek abre bem os olhos. — Exatamente! — Zane está noivo de Lady Lucretia e eles vivem confinados em um castelo, não temos nos encontrado. Você sabe disso. — Também sei que ele é seu comandante no exército. Vocês devem se encontrar bastante, isso sim! — Não seja tolo. — Dou risada e encosto a cabeça no braço de Lyek. Respiro fundo, inalando o cheiro do mar. Ficamos um tempo em siêncio apenas caminhando. Chuto uma pedrinha branca para o mar gelado. — O que você anda fazendo agora que não está tentando salvar o mundo dos vampiros?

— Quem disse a você que não estou mais tentando? — Lyek dá uma risada e passa o braço por mim, me abraçando. — Diga-me, se houvesse uma chance de você não se tornar vampira, você iria querer se tornar? — Claro que não quero ser uma vampira, mas... — Estou juntando números. — Números? Que números? — Pergunto. — Números! Nós somos 3.038 apenas em N-D44. Alguns inuit recentemente se juntaram à nós, não apuramos o total. Temos até um nome agora: Guerreiros do Gelo. Espere! O que ele disse? Paro de andar. — O que você disse? — Pisco, para ver se estou mesmo acordada! — É um nome terrível, eu sei, soa melhor quando inuit falam! — Lyek abre um sorriso. — Não isso, quer dizer, é mesmo um nome terrível, mas… Você viu como foi a destruição da Torre Bawarrod e que não temos chances contra os alienígenas sem os vampiros! — Isso foi antes. — E tem as mutações! — Pontuo. — Estamos pensando em tudo isso, Jay! — Lyek tira as mãos do bolso e segura nos meus braços, olhando firme para mim. — Escute. Interceptamos os sinais de transmissão direta de algumas localidades. Dá para imaginar? — Lyek explica sorrindo. — Brasil, China, Europa, India, Rússia! Em todos esses lugares há pelo menos um núcleo de sobreviventes. Eles estão de pé e resistindo! — Como isso aconteceu? — Após chegarmos em N-D44 conectamos um rádio a pilhas antigo e pegamos uma transmissão clandestina russa, bem, Roy é neto de russos e ele arranha um pouco, então conversamos. É uma história longa, posso te contar com calma outro dia! Há um grupo nômade e numeroso nas terras do Grande Império e através deles conseguimos contatos com o resto do mundo. Finalmente temos uma chance, Jay! — Lyek parece empolgado. — Uma chance para quê? — De mudarmos a história! Receberemos reforços no próximo comboio e armas de disparo UV, é letal contra os vampiros! Os russos desenvolveram muitas tecnologias e essas armas são capazes de ferir vampiros mesmo que eles usem armaduras. Meu coração acelera mais. Minha respiração fica ofegante. É quase como um ataque de pânico. Não. É um ataque de pânico! — Não, Lyek! Não pode fazer isso! — O quê? — Ele para estático, olhando para mim. — Não se preocupe com os Anjos, a Aliança tem armas contra eles também. Temos uma chance, Jay, uma verdadeira chance de ter um futuro melhor. Você está comigo, certo? Você sempre esteve! Diga-me que está do meu lado. — Você não devia ter me contato isso, oh não. — Coloco a mão na testa. Se alguém de Bawarrod descobrir? Se a Aliança exterminar todos os vampiros? De que lado da guerra eu vou ficar? Lágrimas começam a surgir em meus olhos, o desespero me consumindo. Zane, Byrn, Lucretia, Caedyn, Devon… — Jay? — Você disse que tem armas contra vampiros! Vai matar todos eles? Vai matar a mim?!

— Não! — Lyek franze a testa. — Você mesmo disse que não é irreversível. Que podemos matar o seu mestre! — E o que você quer fazer? Matar Devon? — Devon? — Lyek pisca na minha frente, é quase um colapso em seu rosto, conforme a expressão muda. — Agora você o chama pelo primeiro nome? — As sobrancelhas dele caem pesadas em insatisfação. — Por acaso está dizendo que ficará do lado deles? — Lyek! Escute-me, não é isso, é que… Oh, meu Deus, como vou explicar? Zane é um vampiro agora e… — Lá vem você com esse Zane, outra vez! — Ele se afasta de mim, exalando ar pela boca e com uma expressão única de incredulidade. — E Byrn! — Grito, segurando em sua jaqueta, puxando-o. — E quanto à Byrn? Você vai matá-la também? Lyek hesita, posso ver em seus olhos a bondade que ele sempre tem. Então, algo muda, sua alma endurece e ele trava os dentes. — Byrn sempre lutou pela causa dos vampiros. — Você está louco! Não pode fazer isso! — Qual o seu problema?! — Lyek segura nos meus pulsos, para eu soltar de sua jaqueta marrom. — Quer saber, Jay, acho que foi um erro contar isso a você! Você está do lado deles! Se entregou! Se vendeu pelo luxo que eles podem te proporcionar! — Não! Eu não! — Pense na sua liberdade! Nossa liberdade! — Lyek está falando alto, mas é um misto de desespero e nervosismo. Até quando ele fica bravo é suave. — Você mesma me convenceu a entrar nessa e agora vai desistir porque eles te deram uma chance? E quanto a todos nós que não temos chance?! E quanto ao seu irmão?! Johin? Qual é o futuro que você quer dar a ele? — Lyek me afasta dele e empurra meus braços. Eu permaneço estática, chorando, absorvendo suas palavras e as verdades contidas nela. — Pense nisso, Jay! Se você não quiser se transformar em uma vampira, se Byrn… — Ele coloca a mão na testa. — Se qualquer um deles quiser se juntar a nós… Bem, estou aqui por você e deixe-me saber que precisa de minha ajuda, caso contrário eu… — Ele comprime os lábios, quase sem coragem de dizer. Lyek respira fundo, recobrando-se, os olhos alagam de emoção. — Caso contrário estaremos em lados opostos nessa guerra quando ela explodir. — Lyek... — Te darei um tempo para se decidir. — Lyek! Ele passa por mim, balançando a cabeça, aborrecido, mas se interrompe por um instante. — Mais uma coisa, Jay. A revolução já está ocorrendo em maior parte do mundo, é questão de tempo para chegar nesse fim de mundo maldito. Tudo o que eu te contei, se você abrir a boca e expor nossos planos… — Ele não termina. E nem precisa. Apenas balança a cabeça enquanto eu soluço e caio no chão sentada, chorando. Assisto seus sapatos se afastarem de mim. As lágrimas congelam nos meus olhos. Volto para casa e fico brincando com Johin, montando o quebra-cabeça, pensando em qual seria o melhor futuro para oferecer a ele.

● ● ● — Você cantando me faz desejar de novo aqueles zumbis! — Zane reclama jogando a cabeça para trás, com as duas mãos em um fuzil apoiado na torre de observação. É de noite e o único movimento é o da neve despencando do céu. — Caedyn! — Alguém está de mau-humor. — Caedyn dá uma risada e balança os cabelos ruivos, parando com sua cantoria sem graça. Ela está do outro lado, onde tem outra torre de observação. Ambas são interligadas por uma passarela de ferro e nossa tarefa é observar o perímetro pela noite. — Sua noiva não está dando conta do recado? — Cale a boca! — Zane rosna. Ele se ergue da mira do fuzil e olha para o horizonte insatisfeito. — Sua cantoria não é tão boa quanto você pensa, Caedyn. — Byrn está em pé na outra torre, ao lado de Caedyn, usando armadura e segurando um fuzil menor encostado ao corpo. — Eu paro se a Jaylee disser que devo parar. — Caedyn brinca. — Por favor, diga a ela que pare! — Zane vira os olhos brancos para mim em uma súplica-exigência. Ele dificilmente usa a venda rendada se Lady Lucretia não está presente. — Caedyn, por favor, pare! — Peço, rindo. — Isso é tão injusto! — Obrigado. — Zane agradece baixinho e volta em posição, checando o binoculo. De repente, ele levanta e segura no meu ombro. — Diga que está vendo uma pessoa. Eu me abaixo um pouco, olhando pela mira do fuzil. Entre os flocos de neve que caem, vejo uma sombra se movendo na escuridão e parece humanoide. — Ou é um zumbi. Vai ver Celeste te escutou. — Brinco, piscando um olho. Zane assovia com o sinal de silêncio e obedecemos imediatamente, tomando cobertura nas estruturas da torre. Ele sinaliza para Caedyn a posição e ela pega um binóculo do chão, rola para se posicionar e espia. Ando abaixada até o bióculo no tripé, fazendo uma checagem dupla. Zane arma o rifle, energizando o canhão, mirando. Fico com a impressão de que é uma pessoa e não um zumbi, achei até que vi uma calça amarela mostarda. — Não atire. — Digo. Vejo a figura cambalear e cair no chão fofo e branco, afundando, como se perdesse o equilíbrio. — Você atirou? — Você ouviu o disparo? — Ele me pergunta arisco e fica em pé. — Byrn, assuma aqui. Eu e Jaylee vamos checar; — Sim, senhor. — Byrn entrega o fuzil para Caedyn que aponta na direção da figura e assume o rifle de longo alcance. — Atirem ao primeiro sinal de ataque. — Zane pula da torre. Eu o sigo. O impacto é absorvido pelo meu traje, poupando meus joelhos, não sinto a queda de metros de altura. Pego uma pistola da minha perna e Zane também. Ele pede para eu dar cobertura mais para o canto e é o que eu faço, encostando-me contra um tronco de uma árvore. Aponto minha pistola para o alvo enquanto ele se aproxima devagar do corpo caído. Acompanho enquanto Zane ergue a mão para tocar na figura. Está coberto pela neve e parece que tem um cobertor cobrindo seu corpo. É um homem, com certeza, mas não consigo

ver seu rosto, por estar afundado na neve. Aquela calça mostarda eu já vi antes. Mas onde? — Senhor? O senhor está bem? — Zane segura no ombro da pessoa, para virá-lo, mas o homem agarra o seu pulso na hora, jogando-o ao chão e enforcando-o. Nem penso! Atiro acertando-o no ombro. Caedyn e Byrn começam a atirar desgovernadas. Quando penso que o homem será alvejado até a morte, algo repele nossos ataques. — Não atirem! Não atirem! — Zane grita, com o escudo da armadura ativado, abraçando o homem e absorvendo os impactos, protegendo o homem. Paro de atirar, o homem coloca a mão no ombro, onde o acertei. O escudo começa a quebrar com os tiros energéticos. Nunca vi esse escudo fazer isso, mas acho que foram projetados contra armas dos Anjos, não contra as nossas próprias armas. Meu coração acelera, pensando na tragédia. — Suspendam fogo! — Zane grita mais alto. O que acho estranho é que ele não apenas protegeu o estranho homem, como segurou em sua cabeça, uma espécie de abraço. As meninas suspendem o fogo. É bem em tempo, antes do escudo de Zane se quebrar por inteiro. Zane recupera o fôlego e solta o homem, virando para as meninas, irado, mostrando os dedos do meio para ambas: — Vocês quase me mataram, cretinas! — Malditos novatos! — O homem fica em pé, ainda segurando no ombro e olha para mim, estreitando os olhos de brilho alaranjado, os cabelos compridos e negros cheios de flocos de neve e gelo balançando com o vento. Ele é um homem bonito, de rosto pequeno e com uma barba grande, espessa. — Foi um bom tiro, a propósito, soldado. — Obrigada, senhor. — Dou de ombros. Ele vira para Zane, colocando as mãos na cintura, sorrindo. — Sempre bom ver você, Zane. — O homem estende a mão, em cumprimento. — O que houve com seus olhos? — O que posso dizer? — Zane sorri em resposta apertando a mão do homem com um cumprimento firme. — Bem vindo de volta, tio! — Pai! — Caedyn vem lá da torre, correndo, gritando animada e saltitando como uma gazela. O homem olha orgulhoso para os portões da cidade e respira fundo, segundos antes de Caedyn se chocar contra ele, abraçando-o com força. Byrn avisa pelo canal operacional: Dorian Riezdra deixou as Masmorras e retornou com honra para a cidade. Tenho dúvidas quanto a essa “honra”.

CAPÍTULO 37

Reunião em família Sentada em uma poltrona vitoriana, Caedyn toca uma melodia intensa e dramática. Ela está com um vestido marfim curto e sapatos pretos de salto bem alto que deixam o joelhos para cima. A imagem é de pura sensualidade enquanto ela toca com um enorme instrumento entre as pernas. A luz alaranjada proveniente de um antigo lampião deixa seus cabelos cacheados parecendo uma tocha flamejante. O cheiro do recinto é de óleo queimado misturado à um incenso de sândalo, as habilidades dos dedos de Caedyn me deixam impressionada, mas pareço ser a única a não estar habituada com a atmosfera belle epoque. A sensação é de que estou invadindo a intimidade de uma família que se reúne após o jantar, mas é também de acolhimento, como se a família fosse minha. — Pronto, meu querido. — Izobel segura uma tesoura, seu rosto alongado banhado de luz pela metade. É uma mulher bonita de perfil esguio e elegante, com ares de intelectual, com cabelos castanhos avermelhados lisos, no ombro, sem volume. Seus olhos são quase cristalinos, como um topázio amarelo, único indício que é uma vampira. Ela está com um vestido preto de panos transparentes que marcam toda sua silhueta. Seus movimentos são sempre elegantes e leves, como os movimentos das bailarinas. — Obrigado, você sempre habilidosa com as mãos, Izobel. — Dorian agradece em tom lascivo, coçando o queixo, a barba recém feita. Seus olhos intensos e laranjas, recaem sobre mim. — Como estou? — Ele me pergunta. Tomo um tempo analisando-o, sem camisa e posso ver a corrente que segura a chave mestra em seu pescoço, sentado em um pufe circular no centro da sala, no conjunto de sofás creme com almofadas vermelhas que foram um grande círculo. Em seus pés, os fios de cabelos negros se amontoam. — Bem, você se parece com uma pessoa agora. — Respondo sorrindo, sem mostrar os dentes e um pouco insegura do que eu devia dizer. Estou sentada quase diante dele, nos sofás que formam um círculo, sua presença tem uma energia potente e intimidadora. Zane dá risada, deitado do outro lado do círculo, com os braços para cima e a cabeça em uma almofada quadrada vermelha. Izobel senta-se ao seu lado, largando a tesoura em cima de um aparador de madeira situado no sofá. Há dois deles, um do meu lado, onde apoio meu cotovelo. — “Como uma pessoa”. — Ele faz até aspas com as mãos, usando as vestes nupciais, mas sem a venda. — Isso é supostamente, um elogio? Caedyn tem que parar de tocar o violoncelo para rir. — Gosto do senso de humor dela. — Dorian olha para Devon, parado ao seu lado e estendendo um copo de uísque. — O que há de errado com o garoto? Há sangue Bawarrod em

você? — É, tem sangue Bawarrod em mim, gênio! — Zane revira os olhos, entojado. — Respeite-me, criança malcriada. — Dorian pega o copo um pouco insatisfeito. — Que tipo de educação você deu a ele, Devon? — Do tipo que ensina a não temer um idiota como você. — Devon provoca, com um sorriso e Dorian dá um gole em seu uísque, com um sorriso no rosto. — Uma ou outra coisa saíram do percurso original, nada que não possamos lidar, Dorian. — Devon enche mais dois copos de uísque e larga a garrafa no aparador de bebidas. — Há Bawarrod nele! — Dorian ergue os braços inconformado, segurando o copo, enquanto Devon caminha até Izobel com os copos de uísque nas mãos. — Esse moleque é uma perda de tempo por completo. — Você que estava preso sem conseguir sair. — Zane responde com petulância. — Zane. — Devon o repreende e Zane exala ar, cansado. — Seja gentil, Dorian! Está sendo difícil para Zane. — Izobel faz um carinho nos cabelos de Zane, como uma mãe amorosa, mas olhando impaciente para Dorian. — E foi ele quem descobriu a existência de uma chave mestra, então, apenas seja gentil. — Eu não quero ser gentil! Quero que ele pague! Vou empalar aquele maldito Kaiser. — Dorian cospe no chão, ofendendo o nome do Imperador. Ele parece especialmente irado com o assunto e fico com a impressão de que as coisas estão tensas. — Cuidado, ele pode até gostar da sua ideia, tio! — Zane ri. Izobel acaba rindo também e brinda o copo com o de Devon os dois dão um gole. — Levante. — Devon dá um tapinha de leve na perna dobrada de Zane. — É quase dia e você precisa voltar para o castelo. — Já? Mas Dorian acabou de chegar! Tinha esperanças de dormir aqui. — Zane faz um bico insatisfeito e se senta, olhando para Izobel. — Por favor, tia? — Eu sei, querido. — Calmamente e com a voz suave, ela segura no rosto dele delicadamente. — Todos sentimos muito com a sua ausência também. — Ela o beija com um selinho e ele faz uma careta insatisfeita por antecipar que receberá um “não” como resposta. — Mas você precisa voltar para lá. Precisamos de você lá dentro e sua noiva o aguarda, não a deixe esperando. — Isso. Volte para sua noiva, garoto! Lucretia merece ao menos respeito. Seja bom com ela, não siga os erros de seu pai. Devon resfolega, mas não diz nada, dando um grande gole no uísque. Dorian estica a mão para Zane, chamando-o: — Venha aqui, garoto. — Ele pede. Zane se levanta e anda até ele de forma obediente. Dorian fica em pé e solta o copo no pufe, segurando no rosto de Zane com as duas mãos, juntando testa com testa. — Você agiu bem e com lealdade, como um filho da Casa Riezdra deve agir. Prometo que quando chegar a hora, Kaiser pagará por tudo. Posso te garantir. Ok? — Eu sei, tio. — Zane concorda dando tapinhas no braço de Dorian. — Por favor, tenha cuidado. — Você também. — Dorian beija Zane do jeito que mafiosos fazem e o solta, liberandoo para ir embora.

— Caedyn. — Zane anda até Caedyn, segurando no encosto da cadeira e beijando sua bochecha. — Bom ouvir música de verdade saindo de você. — Tenha uma boa noite. — Caedyn recebe o beijo sem parar de tocar. Zane anda na minha direção, despedindo-se de mim com um selinho de lábios frescos. — Tenha bons sonhos, Jay. — Zane se afasta de mim. — Obrigada, você também. — Lanço um sorriso, mas Zane tem uma expressão de quem está em um enterro. — Prometa que irá visitar, pai. — Ele se aproxima por último de Devon, que segura em sua nuca, acompanhando-o até a porta. — Jogaremos xadrez. — Devon dá um beijo na cabeça de Zane. Eles se abraçam forte e depois se separam. Devon coloca a mão na cabeça de Zane em um carinho protetor, antes de abrir a porta para ele sair. Os guardas já estão esperando-o para escoltá-lo de volta ao castelo. Devon fecha a porta e retorna, sentando-se no sofá do meu lado, ele dá um apertão no meu joelho, não sei se é um carinho ou se ele está chamando a minha atenção, mas cruzo as pernas escapolindo de seu toque na mesma hora, incomodada. — Sangue Bawarrod! O que você estava pensando, Devon? — Dorian pergunta, em pé na sala, segurando um copo e sobrancelhas curvadas em irritação. — Aliás, você estava pensando, ao menos? — Celeste o rastreou enquanto eu estava ausente, na guerra, não pude fazer nada. — Devon responde inexpressivo. — E o garoto simplesmente concordou em seguir os planos dela? — Dorian esbraveja. — Vai me dizer que foi um caso de traição dentro de nossa própria família? — Claro que não, Dorian, o que você está pensando?! — Izobel ergue os braços, gesticulando, os olhos bem abertos em uma expressão em choque. — Zane teve que implorar misericórdia, ela ia matá-lo! Onde estávamos quando ele precisou de nós? Ele fez o que precisava ser feito, o que ela queria que ele fizesse. — Izobel explica, colocando a mão no peito. — Em parte a culpa recai sobre nós que não estávamos com ele e em especial em você! Que preferiu esperar antes de transformá-lo. E isso, meu irmão, foi o seu pior erro! Agora ele é um Bawarrod e temos que aceitar isso. — E onde está Celeste agora? — Dorian pergunta virando-se para Izobel, passando a mão no queixo amassando a boca. — Estará aqui no inverno. — Devon dá um gole em seu uísque. — Maldita! — Dorian atira o copo contra a parede, em um dos quadros de família retratando Izobel e Caedyn bebê. Izobel fecha os olhos e respira fundo, tentando não se estressar. Devon nem se abala, possivelmente acostumado com os dramas do irmão, mas eu estou bem assustada com essa instabilidade. — Não a perdoarei e a torturarei pelo tempo que ela o fez implorar por sua vida! — Dorian jura. Todos tomam um momento de silêncio para si enquanto Dorian se senta no sofá onde Zane estava. — Todos iremos. — Izobel dá o braço com ele encostando a cabeça. — Quanto de poder Kaiser deu a ele? — Dorian pergunta, dando tapinhas na mão de Izobel.

— Kaiser deu à Zane tudo. — Devon responde com a voz amargurada. — Sangue forte. Seria magnífico como um sucessor Riezdra. Olharei do lado positivo, os poderes de Bawarrod podem se tornar úteis. Kaiser já falou sobre Zane ser sucessor? — Falará. O Conselho decidiu que ele será o futuro Imperador, como um pedido de desculpas pelo pequeno furto. — Pequeno furto! — Dorian venta aborrecido. — E o quê? Temos que assistir nosso sucessor se tornar o sucessor de Bawarrod pela coroa?! Isso é uma besteira! — O processo estava quase finalizado, Dorian, não havia alternativa e foi nossa melhor opção. — Izobel interfere com um suspiro. — O sucessor pela coroa. Zane quase não concordou. — Posso entender porque ele preferiria a morte à ser Bawarrod, mas não entendo o que o fez mudar de ideia. — Dorian pondera, erguendo as duas sobrancelhas. — Jaylee o fez mudar de ideia. — Devon coloca a mão no meu ombro e os olhos afiados de Dorian novamente prestam atenção em mim. — Seja grato, meu irmão. — Serei eternamente grato, senhorita Jaylee. — Dorian fala, diretamente para mim. — E com a coroa teremos ampliado domínios políticos. — Izobel pondera. — Zane é obediente, sempre foi. — E você acha isso bom, irmã? — Dorian resfolega. — A coroa brilhando em sua cabeça é como um alvo de pontaria! Celeste irá para cima com certeza, é a única coisa que ela quer e será a grande oportunidade. — Estou contando com um primeiro ataque. — Devon toma a palavra. — Kaiser se sentirá pressionado para proteger Zane ao primeiro indício de risco e fará a transferência do Conselho para ele. Uma vez que ele for um Filho de Nether, Celeste não poderá machucá-lo, mas ainda… — Devon se interrompe. — Ela virá por todos os que sobrarem. — Não quero pensar nisso, mal tenho dormido! — Izobel abana o rosto, espantando o medo. Celeste deve ser mesmo muito poderosa para causar uma reação assim. — Maldito o dia que você provocou a fúria daquela mulher, irmão! Devon ergue as mãos sem vontade de gastar saliva na questão e se encosta no sofá. — Shhh, Izobel, Devon foi quem mais perdeu nessa disputa e ele não precisa de palavras acusativas agora. — Dorian respira fundo, abraçando a irmã, confortando-a. — Caedyn está viva e a salvo, lembre-se disso. Lisa não. — Todos nós sofremos com a perda de Elisabeth, não foi apenas Devon. — Izobel funga. — Fique tranquila, Zo. Uma vez que Celeste for neutralizada, teremos nossa vingança. — Dorian promete. Olho para Devon, que de semblante sério dá mais um gole no uísque. Por acaso eles estão falando da mesma Elisabeth que eu conheço? Não sabem que ela está viva? Ou ainda, que está grávida? O que Zane está escondendo? — E teremos ampliado domínio sobre as decisões do Conselho, até que ter se tornado Bawarrod foi útil. É um ótimo plano, mas comos sabe que Kaiser passará o Conselho para Zane ao primeiro sinal de ataque? — Você conhece Zane, ele pode ser muito apaixonante quando quer. — Izobel sorri e levanta o copo brindando no ar. — Justiça seja dita, irmã. — Dorian concorda. — Agora, diga-me uma coisa, Devon… — Ele aponta para mim, os olhos firmes em mim. — É um novo brinquedo ou você está

considerando ouvir meus conselhos uma vez na sua vida. — Quer mesmo saber? — Devon lança um sorriso-desafio para Dorian, que faz que sim com a cabeça, interessado. — Vença-me no xadrez. — Agora estamos negociando! — Dorian fica em pé animado e estala os dois dedos. Durante o restante da noite, Caedyn toca violoncelo enquanto Dorian e Devon jogam xadrez conversando assuntos aleatórios do exército: linhas de defesa, tecnologia alienígena. algumas estratégias. Pergunto para Izobel sobre o quadro que retrata ela e Caedyn bebê, Izobel resolve me mostrar um álbum de família, sentando-se ao meu lado e folheando fotografias antigas e algumas da infância de Caedyn. Acho bonitinho e engraçado saber que Caedyn sempre fez muita bagunça, inclusive nos dias de hoje. Ao contrário de Devon, Izobel tem um acervo histórico enorme, isso porque ela não estava em Bawarrod quando a torre foi destruída, mas em uma das colônias ao Sul e muitas de suas coisas foram mantidas a salvo durante a guerra. — Você tem fotos de Zane e Lisa? — Não muitas, me desculpe. — Izobel me mostra um sorriso amável. — Quando ainda não são vampiros, dificilmente deixamos aparecer em fotografias para não chamar atenção dos outros nobres… Ainda mais naquela época, com a câmera digital, celulares e as redes sociais como… como chama? Instagram? — É, Instagram. — Dou risada. Olhando para as poucas imagens no final do álbum de Caedyn e um apanhado de aniversários. — Eu tenho umas. — Caedyn para de tocar e se junta a nós, remexendo na caixa onde ficam os álbuns que Izobel guarda. — Você tem? — Izobel se surpreende. — Teve esse dia que fomos para Nova Iorque visitá-los, sabe! Eu nunca contei a ninguém, fomos escondidos. — Caedyn tira um celular de dentro da caixa, um daqueles smartphones que os jovens sempre tinham, eu mesma tinha um igual. Ela energiza a pontinha do dedo, recarregando a bateria e liga. — Eu, Román, Lucretia, Bertha, Mark e Nel. — O grupo todo? — Izobel pergunta. — É, o grupo todo! — Caedyn sorri remexendo no celular. — Aposto que a ideia foi de Lucretia! — Ela estava chateada, choramingando de saudades, mas a ideia foi de Bertha. Ela nem precisou de muito para nos convencer. — E o que vocês fizeram lá sem permissão para sair, se não se importa de eu perguntar? — Izobel cruza os braços, dando uma bronca tardia na filha. — Ficamos zanzando pelo centro da Broadway, vadiando e andando de skate. Foi uma noite daquelas! — Caedyn me entrega o celular. — Aqui! Reparo que o celular tem sinal, como se alguma rede de telefonia estivesse ativada. Ué, isso sim seria pré-histórico! Caedyn olha para mim e começo a olhar as fotografias, enquanto as duas conversam. — Oh, Caedyn, que perigo! E se amanhecesse? A primeira foto é do grupo, reconheço Caedyn de batom vermelho e piercing da boca, dando beijinho para a câmera, ao seu lado Lucretia fazendo um “v” com os dedos, Román

olhando em seu próprio celular e os outros jovens rindo e posando, dentro do metrô. Vou passando as fotos, enquanto eles estavam no metrô, uma ou outra mudança de cenário e uma fotografia diante de um prédio famoso como turistas, todos de braços abertos para cima, menos Caedyn, quem deve ter tirado a foto. — Fomos pelos trilhos do metrô, para evitar a luz solar e levamos roupas protetoras! Ficamos por lá durante a noite e nada aconteceu, aliás, ninguém nem percebeu que fugimos, mãe! — Caedyn coloca as mãos na cintura. A próxima foto já reconheço Zane, com um copo de plástico na mão fazendo uma careta e Lucretia do lado, tentando equilibrar um lápis entre o nariz e a boca. Olhando essas imagens de alguns anos atrás, quando mais jovens e mais felizes, eu tenho certeza que Zane e Lady Lucretia foram feitos um para o outro. Há muitas fotos deles juntos, com os amigos, em grupo e até Caedyn, fazendo selfies. Desejo do fundo do coração que os dois possam voltar a sorrir como nessas fotos. — Mesmo assim, mocinha, você tem muito o que se explicar! — Izobel. — Sem cabimento, mãe! Agora depois de quatro anos?! Ah, essa é Lisa! — Caedyn escapa de sua mãe para arrancar o celular da minha mão e mostrar uma foto de Lisa, uma menina pequena, com uns doze anos, de cabelos bem volumosos e cacheados, loiros. Não preciso de muito, só de ver os grandes olhos inocentes da pequena menina eu sei: é Elisabeth! Fico atônita. — Ela era chatinha e medrosa, vivia enfiada no celular jogando, mas era boa companhia, sempre muito calada e na dela. — Muito bonita, parecendo uma boneca. — Digo, devolvendo o celular com pressa para Caedyn, que olha a foto com tristeza nos olhos. — Era mesmo. — Caedyn resfolega e passa o celular para Izobel. — Pode ver, não fizemos nada demais, mãe! Meu coração entra em colapso batendo forte, mas procuro não demonstrar o que vi. Oh, meu Deus. É Elisabeth! Quando Zane disse que ele a via como uma irmã, era porque eles são mesmo irmãos! Não acredito! Por que ele mentiu para todo mundo? Por que Elisabeth está escondida e ninguém na família Riezdra parece saber que ela está viva? — O que houve com Elisabeth? — Pergunto. Izobel tira os olhos das fotografias, ela está com lágrimas nos olhos emocionada de saudades por ver a imagem de sua sobrinha. — Celeste. — Izobel quase não consegue falar, chorando. — Ai, mãe, não te mostrei isso para você ficar chorando. — Caedyn toma o celular de Izobel e olha para mim. — Durante a guerra os humanos eram enviados para colônias diversas, Celeste armou para enviar Zane para um lugar e Lisa para outro. — Eles sumiram por um tempo… chegamos a acreditar que estavam mortos. — Izobel diz, limpando os olhos e procurando recobrar seu emocional. — Localizamos Zane um tempo depois, quando ele se tornou Escravo-de-Sangue da Casa Bawarrod. Lisa foi dada como morta. Acharam seus restos mortais na proximidade de N-F22, em uma floresta. Não foi para essa colônia que Zane diz ter sido levado? E que pegou carona com uns homens na floresta? Por acaso aquela história que ele disse ser dele, não foi somente dele? Elisabeth podia estar junto. Por que ele iria mentir a morte da própria irmã? — O que vocês estão conversando? — Dorian segura nos ombros de Caedyn se

intrometendo. — Estava mostrando os álbuns para Jaylee. — Izobel sorri secando as lágrimas. — Ao contrário de você, meu irmão, não preciso de um jogo de xadrez para saber aquela resposta. E descobri que Caedyn… — Ela segura no braço da filha. — Fugiu para Nova Iorque com os amigos para visitar Zane e Lisa. — Você fugiu? — Dorian pergunta rindo. — Para Nova Iorque? — Broadway, precisamente! Há provas neste celular aí! — Izobel aponta o aparelho. — Não são provas, são umas fotos estúpidas que eu fiquei de passar para Lucretia, mas nunca passei. — Caedyn abana o celular. — Agora, perderam importância. — Deixe-me ver isso. — Devon pega o celular da mão dela. — Como se liga? — Não, espere já carreg… — Ela não termina. O celular recebe uma carga elétrica potente e frita. — Meu celular! Argh! — Caedyn puxa o celular das mãos de Devon. — Por que você fez isso, eu disse que já tinha carga! — Não disse! — Devon protesta. — Oh, Devon, francamente, você sempre explode os eletrônicos, lembra daquele carrinho de controle remoto que demos a Zane? — Izobel resfolega. — Faça um favor e conserte isso, deve haver peças nos depósitos de lixo do exército. — Tudo bem. — Devon revira os olhos e dá de ombros, colocando o celular dentro do bolso da calça da farda e joga os olhos dourados para mim. — Jaylee, vamos, estou exausto. — Sim, senhor. — Fico em pé rapidamente e ele segura na minha nuca, me apressando. Acho que preciso fazer uma visitinha para Elisabeth!

CAPÍTULO 38

O segredo Acordo assustada com o barulho de um tiro e me sento, respirando ofegante. O quarto está escuro e só há silêncio. Olho para o lado, Devon está dormindo com os braços para cima e o corpo inteiramente nu, um pedacinho de lençol branco cobrindo sua cintura. Vivo. Passo a mão na testa escorrendo o suor, sentindo que estou em um forno, o lençol por onde eu deitei parece empapado. Limpo as lágrimas dos meus olhos, constatando que estou chorando. Exalo ar do meu pulmão aos poucos me acalmando, como se eu esvaziasse toda a ansiedade que parecia explodir dentro de mim. Tive um pesadelo. Nem ao menos pareceu real, daqueles sonhos nebulosos com imagens foscas e que não se fixam na sua mente. Tinha uma arma e sangue. Devon morrendo nos meus braços. Não parecia real, mas eu senti como se fosse. Na escuridão fechada do quarto sem janelas, todas as imagens são azuladas e não é diferente com o rosto de Devon. Faço um carinho em seus cabelos macios e me aproximo devagar, roçando de leve o meu nariz com o dele e beijando delicadamente sua boca. Fecho os olhos enquanto estou de lábios colados e inspiro seu perfume amadeirado. Quando me afasto, abrindo os olhos, levo um pequeno susto, ao encontrar os olhos dourados de Devon em mim. — Desculpe, não queria te acordar. — Sussurro. — Mas acordou. — Ele me responde baixo. — Estava chorando? — Não foi nada! — Já me afasto. Devon passa o braço pelo meu corpo e me puxa de volta, ficando em cima de mim, colando seu calor no meu corpo. — Tem algo errado. Você passou a noite distante, não disse nenhuma palavra... E agora chorando. — Hm. Sua família me impressionou, é só isso. — Forço um sorriso. — Será sua família muito em breve, já era hora de você se interar de nossos assuntos. — Ele beija minha boca de leve e se afasta. — Eu sei. — Minha família? Soa tão estranho. Faço carinho na franja dele, entrelaçando os dedos em seus fios castanhos-claros. — O que impressionou você? — Dorian estava com aquela chave mestra, você deu a ele. Zane deu a você. Provavelmente roubou do acervo do Imperador. — Estratégia básica. — Mas por quê? Ele é um criminoso, deveria cumprir pena. — Ele é, tem razão. — Devon responde, me olhando. Fico quase vesga com sua

proximidade. — Mas muito antes, ele é família. Família é o que existe de mais importante para a Casa Riezdra. — E o sangue? — Esse é o princípio. Mesmo com outro sangue em suas veias, Zane continua leal à família. Você entendeu? — Sim. — Não se impressione com Dorian, a maior parte é teatro. Outra estratégia básica em uma guerra é fazer com que temam você. — Como você ter fama de ser um general impiedoso, cruel e nada ortodoxo? — Não, essa parte é verdade. — Ele franze a testa e olha um momento para cima, procurando compreender o que eu quis dizer. — De qualquer forma, estar chocada com a família não é motivo para chorar. — Não é. — Então me diga o que é. — Ele olha para mim. — Eu te conto, mas não pode rir. — Dou um sorriso e com a ponta do dedo, um tapinha em seu nariz. — Tudo bem. — Ele escapa, colocando o rosto para trás e morde meu dedo, de um jeito sexy. — Tive um pesadelo, acordei assustada. — Conto em um fôlego só. Ele ergue uma sobrancelha, enquanto passeio com o dedo pela linha da sua boca, provocando. — Sonhei que você levou um tiro e morreu. Devon explode numa risada, rolando para o lado. — Você disse que não ia rir! — Balanço as pernas protestando, escondendo o rosto com as mãos. Por que eu contei, pra começar?! — Inevitável! Não um pesadelo, é uma piada! — Pesadelo. — Giro ficando com as mãos em seu tórax definido, apoiando o queixo no meu braço. — Quando você sonha algo ruim que pode acontecer. — No máximo, um sonho surreal. Impossível de acontecer. — Ele sorri seguro de si mesmo e me olha de canto. — Ou devo considerar que estava com medo de me perder? — Por quê? Você teria medo de me perder? — Não vai acontecer. Não perco nada e não deixo ninguém pegar o que é meu. — Devon se senta, erguendo o corpo com os braços e espalma as mãos no colchão. Acabo me sentando para acompanhar e o observo bem nesse instante. Ele fala com essa segurança, mas sei que não é verdade e me irrita um pouco que ele esteja agindo como se fosse o rei-do-pedaço quando na verdade, já falhou com suas promessas. — E quanto à Zane? — Pergunto séria. Eu o deixo totalmente exposto agora e posso olhar dentro de sua alma. Devon desvia o olhar e ergue as duas sobrancelhas, absorvendo minhas palavras com culpa. Ainda que minhas palavras o firam, ele não hesita. — Você tem razão. — Devon olha para mim. — Cometi um erro quando subestimei Celeste. Mais do que isso. Falhei com Zane no momento em que ele mais precisou de mim. Eu era imaturo e egoísta, não sabia o verdadeiro valor da família. Agora eu sei. E não sou o tipo de homem que comete o mesmo erro duas vezes.

Seguro em seu rosto com as duas mãos e o beijo com a única vontade de acalentar a dor em seu coração. ● ● ● Alguns dias depois e fui ao pátio em que ficam as mercearias com a intenção de criar um encontro casual-sem-querer com Elisabeth. Nas primeiras vezes, passei a tarde toda por lá, procurando-a, mas não a vi. Até que um dia, quando eu já pensava em desistir de encontrar com ela, a vi entrando na fila de troca de cupons de açúcar. Dei um jeito de passar pela fila, como se estivesse procurando outra pessoa e segurei no braço dela. — Elisabeth. — Jaylee! — Ela logo me abriu um sorriso. — O que você está fazendo aqui? — Vim pegar um pouco de geleia, mas notei que esqueci meu cupom em casa. Bom te encontrar, como você está? — Estou bem. Quantos potes de geleia você precisa? — Um. De abacaxi. Minha mãe vai fazer panquecas. — Trouxe três cupons, te dou um, depois você repõe para mim. — Ela sorri. — Venha, fique aqui na fila comigo. — Tudo bem! E então, como estão os arranjos do casamento com Roy? — Ah, você sabe, não é um casamento de verdade, eu nem tenho um vestido. Mas os inuit farão uma espécie de cerimônia, vai ser divertido. Não temos muito tempo para organizar nada, também, especialmente que todos os nossos esforços estão com o bebê e não tenho um berço ainda. — Ela revira os olhos, não de um jeito irritante como Zane costuma fazer, mas sorridente, como quem pondera toda a confusão em que se meteu. — Quer saber? Eu tenho um vestido branco em casa que pode servir para o ocasião, você pode fazer os ajustes necessários no seu trabalho. Se você quiser, levo na sua casa um dia desses. — Puxa, eu aceito sim, se não for nenhum incômodo! Mas então você tem que me prometer que vai estar no casamento! — Ela segura no meu braço. — Oh, meu Deus, seria perfeito se Zane pudesse ir também. Você fala com ele? — Eu não sei se ele poderá ir, Elisabeth… — Escondo os lábios forçando um sorriso de quem nem sabe o que dizer. — Oh, você tem razão, ele está lá confinado com aqueles vampiros. — Elisabeth suspira chateada. — Eu tenho certeza que se não fosse isso, ele iria. Você é como uma irmã para ele. — Damos um passo para a frente na fila. — Somos amigos há bastante tempo. — Ela devaneia por um momento. — Como foi que se conheceram, mesmo? — O pai dele morreu no incinerador, ele veio morar comigo e meus tios. — Ela dá de ombros. — Essa parte eu sei, ele contou. Mas você não chamou um garoto que não conhecia para

morar com você do nada, estou dizendo a primeira vez que se falaram. — Insisto um pouco, segurando em seu bracinho roliço da gravidez. — Estava chovendo. — Ela estreita um pouco os olhos, como se procurasse enxergar a memória. — É, estava chovendo. Ele estava chorando. Deixamos ele entrar. Hm? Que esquisito! — Então, o que você falou para ele “oi, pode entrar menino estranho que eu nunca vi na vida”? — Brinco, só para ver sua reação. Elisabeth franze o cenho, pensando a respeito por um momento. — Agora que você falou, eu nem me lembro! — Ela faz uma expressão de quem nem se compreende nesse momento. — Talvez vocês tenham se conhecido em N-F22! — Eu nunca estive em N-F22! — Ela dá uma gargalhada mágica, como se eu estivesse brincando. Ou Elisabeth é uma verdadeira dissimulada com uma interpretação digna de uma atriz que já ganhou muitos prêmios na vida, ou tem algo de muito estranho acontecendo aqui. Acompanho Elisabeth até em casa, para conhecer o local, simples porém arrumadinho e fico de voltar outro dia com o cupom e o vestido para ela arrumar em tempo para o casamento. O problema é que não tenho nenhum vestido branco e agora que prometi, terei que dar um jeito de conseguir! ● ● ● Os nobres da casa Lunysum ofereceram um jantar de boas vindas para Dorian, parece que boa parte deles serviu ao exército enquanto Dorian era o general e resolveram homenagear o seu retorno com alegria. O salão estava animado, cheio de vampiros dançantes embalados por uma música eletrônica. As luzes explodiam coloridas de um lado para o outro, confesso que me luzes assim sempre me deixam um pouco aérea! Dorian dançou com todas as donzelas: Izobel, Byrn, Lady Lucretia e Caedyn. Ele quis me tirar para dançar e eu recusei, dizendo que pisaria em seu pé. Lady Lucretia me salvou do vexame, dizendo que já tinha me visto dançar e que eu era um vexame. Enquanto Devon e Bawarrod conversavam com semblantes sérios sobre qualquer coisa, escapuli para a mesa de docinhos, atrás de Zane. — Eu sei o seu segredo. — Digo baixinho, alcançando um palitinho de wafer recheado com chocolate. — Qual deles? — Zane tira um palito de wafer doce da boca e olha para mim com um sorriso bonitinho e leve, piscando um olho, brincando, como sempre e ao mesmo tempo, insinuando que tem mais de um segredo. — Elisabeth. — Dou um gole na taça de vinho. O sorriso de Zane se apaga de imediato. Detesto-me nesse instante. A venda que cobre seus olhos hoje é negra e de um pano transparente, permite que eu veja suas sobrancelhas bem desenhadas. — Descobri que ela é mesmo sua irmã. — Como?

— Liguei uns pontinhos. — Não conte a ninguém. — É a primeira coisa que ele me pede, os olhos brancos e brilhantes me encaram por trás do pano negro transparente, sua voz sai bem baixa, quase um sussurro. — Ela está para ter um bebê. — Por acaso o filho que ela está esperando é seu? Zane comprime os lábios em silêncio. — Isso é um “sim”? — Pergunto surpresa. — É um “estou desapontado por pensar isso de mim”. — Ele responde e coloca as mãos cobertas por luvas negras para dentro do bolso da calça preta, abaixando o olhar. — Acredita que eu seria o pai da criança? — Não sei o quanto isso não é normal lá entre vocês, Caedyn é filha de Dorian e Izobel, eles são irmãos. — Justifico, antes que ele fique mais irado comigo. — Não é normal o suficiente para mim. — Ela está se escondendo e está grávida... — Coloco a mão na testa, pensando. — Não sei, pensei que pudesse ser possível. — Talvez você tenha um ou dois motivos para pensar isso. — Ele suspira, conformando-se e ergue o olhar para mim. — Mas tente não me ofender com suas suposições, Jay. — Desculpe, Zane. Não tive essa intenção. — Seguro no braço dele, deslizando, fazendo um carinho e apertando. — Você sabe que eu te amo, não sabe? — Se é verdade, então esqueça esse assunto. — Ele range os dentes, erguendo uma sobrancelha. — De quem é o bebê, Zane? — Pergunto, cruzando os braços. — De um cara qualquer que ela conheceu. — Ele arfa. — Não me convenceu. — Cruzo os braços e jogo o quadril para o lado, exigindo uma resposta. — Se o filho não é seu, de quem é? — Eu não sei se interpreto sua pergunta como uma questão retórica ou não, mas ela não me agrada. Deixe Elisabeth fora disso! — Zane exala ar pela boca, insatisfeito e se afasta de mim, dando as costas. — Zane! — Eu o chamo, mas ele não para, atravessando o salão. Encho as bochechas de ar, chateada e vejo Lady Lucretia interceptá-lo. Há um chapeu no topo de sua cabeça, como uma cartola pequena, que segura o véu negro na frente do seu rosto. Observo-os enquanto conversam rapidamente, Lady Lucretia olha para mim e Zane vai embora. Eu viro de costas para o salão, encarando a mesa de doces, disfarçando, para ela não vir conversar comigo. Encho a boca com camafeus e não demora muito, ela chega segurando meu braço com a luva macia. — Jay? — Oi! — Viro com a boca cheia de docinhos, mastigando todos de uma única vez. Lady Lucretia me lança um olhar um pouco enojado, o brilho de seus olhos por trás do véu renda negra me alcança. — Tudo bem? — O que você disse à Zane? Ele parecia abalado. — Ela já pergunta, sem perder tempo. — Uma amiga em comum está grávida, eu insinuei que pudesse ser dele. Foi uma piada,

mas ele se ofendeu. — Você diz a irmã dele? Não me admira que ele tenha se ofendido. — Lady Lucretia tapa a boca com a mão, rindo. — Se bem que, faria sentido, para alguém como Zane! Ele não faz muita distinção. — Ela debocha. — Tem razão. Zane ficou ofendido por eu insinuar que ele tinha transado com ela, mas aposto que se não fosse irmã de sangue, ele transaria! — Brinco. — Se não fosse irmã de sangue, claro. — Lady Lucretia estreita um pouco os olhos, pensando. Ela segura no meu braço. — Se ele se ofendeu, direi que você sente muito. — Obrigada. — Dou um sorriso. — Não exagere nos docinhos, vaqueira. — Ela aponta para os camafeus, andando de costas e se afasta, sorrindo. Pego mais uns dois docinhos e volto para perto de Devon, que ainda conversa com Bawarrod. Apesar de que ele mantém a mão quente na minha nuca, a conversa é entediante e não fico muito por perto. Dou uma volta no salão, ouvindo os comentários sobre o retorno de Dorian. Pelo que escutei, todos acreditam que foi uma saída legítima das Masmorras e completam com coisas como “não poderíamos esperar nada diferente de alguém como o Ex-General” ou “servi com ele, sei de seus incríveis feito!”. Idiotas! Todos caíram no teatro feito patinhos! O surpreendente é que há muitos nobres que o respeitam e acham que seu retorno como um oficial do exército, mesmo que em cargo menor, acrescentará um pouco de força e coesão, já que Devon não é muito ortodoxo. Os mais conservadores, estão confiantes. Os menos conservadores estão alertas e comemorando que Devon continua no comando. — Jaylee! — Alguém me chama, olho para o lado encontro Lady Lucretia. — Estava procurando por você! — Agora me achou! — Dou um sorriso. — Vim me despedir. — Ela reverencia-me com um leve inclinar de cabeça e dobrar de joelhos. — Zane não se sente bem, vamos nos retirar. — O que houve? — Abro os olhos assustada. — Ficar confinado tem esse efeito as vezes, abala nossas emoções especialmente em lugares muito cheios como este salão. — Lady Lucretia exala ar. — Ele está um pouco chateado. — Espero que não tenha se chateado sobre o que eu disse. — O que você disse? — Com licença, alteza? — Uma mulher de uns quarenta anos se aproxima de nós, ela tem uma tatuagem no braço com o símbolo de Bawarrod e mantém os olhos no chão. — Desculpe atrapalhar. — Aconteceu algo, Alice? — Devo chamar o carro, alteza? — Faça esse favor, Alice. — Lady Lucretia responde e a mulher sai. Ela vira para mim, estica as mãos cobertas por luvas, dando de ombros. — Queria poder ficar mais e aproveitar um pouco de sua companhia, mas infelizmente tenho que ir. — Vá lá e cuide do seu noivo um pouco. — Com sua licença, senhorita. — Lady Lucretia me abraça forte um tempo. Por cima do

seu ombro olho para Alice, afastando-se e indo em direção á entrada. — Diga a Zane que sinto muito. — Sim, claro. — Lady Lucretia se afasta e franze o cenho me analisando. Eu dou um sorriso que finge ser feliz e ela caminha em direção à saleta principal da Casa Bawarrod. Volto para perto de Devon, assim que chego do seu lado ele coloca a mão na minha nuca e desliza pelas costas, causando um arrepio único. Tento manter a expressão estática, enquanto um escravo sussurra algo no ouvido de Bawarrod.

CAPÍTULO 39

Lanternas — Então você ainda come esse lixo? — Jay! — Lyek abre um sorriso com a boca cheia de arroz e carne de tubarão. Ele solta a marmita em cima do capô e desce do carro, uma Ferrari preta e prateada, com modificações. — Veio me visitar? — Trouxe sua sobremesa. — Dou de ombros e estendo uma sacola de pano em sua direção. Na verdade fiz um rocambole recheado com aquela geleia de abacaxi que peguei de Elisabeth. — Queria conversar com você. — Claro, seja bem vinda. — Ele limpa a mão na frente do corpo, no macacão sujo de graxa e sei lá mais o que, azul marinho, antes de pegar na sacola, sorrindo. — Sente-se. Estava fazendo uma pausa antes de checar os freios. — Algumas coisas nunca mudam, você continua sendo um fanático por carros e motores. — Não me culpe! Essa belezinha pode correr mais depressa que alguns Aeroflex de carga, mal posso esperar para vê-la rodando. Ainda mais com motores originais, movidos à gasolina, entende? Faz tempo que não vejo uma dessas! — Lyek se senta, apra terminar de comer. — Hm. — Sento-me ao lado dele. Nem estou muito interessada em carros, motores e velocidades nesse instante. — E também é uma massagem no ego, certo? — Uma Ferrari é uma Ferrari mesmo durante a guerra. — Lyek ri. Os olhos escuros, quentes e amáveis em cima de mim. — Estava encostada, mas recebi ordens para tirá-la do depósito. Tem que ficar pronta essa noite e estou numa correria danada. — Você irá testá-la? — Ergo as duas sobrancelhas, mostrando interesse. — Quer dar uma volta? — Ele dá uma batidinha no capô com a mão. — Sempre bom com um co-piloto. — Só se for agora. — Dou um sorriso. Lyek se livra da marmita e entra no carro sem abrir a porta. Eu contorno a Ferrari e faço a mesma coisa, no banco ao seu lado. É apertado, porém confortável. Lyek testa os motores, o veículo ronca firme e ele acelera devagar, dirigindo para fora da garagem em direção ao pátio. Não tem muito para onde ir, mas damos uma voltinha em alguns metros de pista que separam a garagem e o estacionamento. Com o dedo, Lyek me mostra o depósito em que ficam os carros e ao lado, os Aeroflex. Alguns homens estão consertando um módulo com defeito e temos que desviar deles. Lyek gira o carro e para, com a ponta do capô apontada em direção ao muro que contorna a Colônia N-D44. Fica apertando o acelerador e roncando, com o freio de mão puxado. — Lyek… — Eu o chamo, um pouco assustada. Ele olha para mim. — Cuidado e se

esse freio falhar? — Não confia em mim? Sou um ótimo mecânico. — Ele abre um sorriso e suas sobrancelhas dançam me desafiando, para cima e para baixo, duas vezes. — Não duvido, mas… — Antes que eu termine a frase, ele acelera forte, cobrindo o som da minha voz com o barulho do motor. Os pneus cantam e o velocímetro em segundos vira para o outro lado, acelerando muito. — Lyek! — Grito. Ele solta o freio de mão e o carro dispara como uma bala para cima do muro. Eu grito e fecho os olhos, esperando o impacto. Sinto o freio brusco, abro os olhos, o compartimento do airbag está aberto, mas eles não tem um airbag. O carro está há centímetros da parede. Fico respirando forte, com suor na testa. Lyek explode numa risada, apontando para mim. — Essa sua cara! Queria poder tirar uma foto! — Seu bastardo! — Dou socos em seu braço, mas ele apenas ri e se defende. — Eu disse que precisava testar os freios! Você sentiu como amorteceu os impactos? Foi uma modificação que eu fiz, sou um gênio! — Não assim! E se falhasse? Teríamos morrido, seu imbecil! — Continuo batendo nele, mas não com força, afinal, acho que com meus poderes eu poderia arrancar o braço dele. — Nossa, alguém realmente não confia em mim! — Ele segura meus braços, alivio os ombros cessando a batalha. — O que houve com você, se tornou uma medrosinha? — Não mudei nada, continuo sendo a mesma. — Olho-o com firmeza e abaixo os braços. Ele me solta, ainda rindo. — Acho que isso é bom de certa forma. — Lyek suspira, encarando o muro cinzento. Ele pega a sacola com meu rocambole e abre o papel, dando uma mordida. — Servida? Pego o rocambole e dou uma mordida, não muito grande, tentando não parecer uma esfomeada, algo que eu me tornei com o sangue da Casa Riezdra em minhas veias. — A propósito, onde você consegue gasolina para abastecer um carro? — Pergunto, devolvendo o rocambole a ele. — Recebemos combustível às vezes e não sei ao certo de onde vem, vai ver os dentuços conseguem extratificar petróleo mágico. — Ele brinca, apertando a mão no volante e rindo, mas não gosto muito desse tom de deboche e eu não deveria me incomodar com ele. — Provavelmente em breve tenhamos que substituir os motores comuns por paineis solares, mas vai deixá-la lenta. Vou apenas aproveitar que ouvi os motores roncarem e fazer meu serviço. Os freios estão funcionando! — Hm. Tem razão, a eletricidade posso entender que venha de painel solares, mas gasolina é surpreendente. Possivelmente acharam sobrando nos destroços, certo? Se tinham fuzis militares comuns, por que não gasolina? — Fuzis? — Lyek ergue as duas sobrancelhas, curioso. — Onde você viu fuzis? — Ahn, nada! Foi só uma coisa que vi com o Zane. — Ah, lá vamos nós. Zane. De novo. — Qual é, Lyek, agora não posso nem conversar com você sobre nada! Falo o nome de Zane, você fica tão arisco. Ele é meu amigo e irm... amigo de Elisabeth. Ele a considera uma irmã. — Cruzo os braços. — Eu sei que ele é seu amigo e importante para você. Elisabeth também tem bastante

apreço por Zane. Eu posso respeitar isso, sabe. Eu costumava admirar o que vocês faziam, desafiar o Grande Império drogando o Imperador! Deve ter sido uma grande coisa, mas… — Mas? — Zane é um deles agora. — Não diga isso assim, julgando sem conhecê-lo. Zane não mudou nada, ele continua muito apegado aos valores humanos. E se ele ficar do nosso lado? — Nosso lado? — Lyek para de mastigar e abre bem os olhos. — Quer dizer que pensou no que eu te falei? — Estou pensando. — Bem, além de Zane, o que mais te impede? — Vi com meus olhos a potência dos alienígenas, Lyek. Eles destruíram Torre Bawarrod às cinzas, você estava lá na hora, também viu. Ainda por cima estão ocorrendo essas mutações, não sei o quanto pode ser seguro para nós. — Solto um suspiro pesado. — Está com medo de matar os vampiros e ficar sem proteção contra os Anjos? — Exatamente. Quem garante que esses caras com quem você está falando são mesmo confiáveis? Quem garante que eles estão mesmo tendo sucesso contra os alienígenas? Por acaso você viu essas armas e do que elas são capazes de fazer? — Eu vi. — Viu?! — Abro bem os olhos. — Pela manhã, quando o sol está mais forte é quando podemos trabalhar sem que eles vejam. Os inuit estão conosco, ajudando. Recebemos algumas dessas armas, testamos em algumas armaduras dos vampiros… Puxa, Jay, você precisa ver, é de verdade, não tem o que temer. Eu garanto. Ao redor do mundo, estamos sobrevivendo com a tecnologia dos Russos. — É verdade, então. — Ergo as sobrancelhas para cima, olhando para o chão e poderando. — E as armas contra vampiros? São as mesmas? — Diferentes. Eu poderia mostrar a você um dia, te ensinar a atirar. Olhe. — Lyek remexe nos bolsos do macacão e me entrega algo que parece um isqueiro preto e pequeno, quadrado como um antigo zippo. — Isso é uma Lanterna, como as chamamos. — Ele estende na minha direção, mas não me entrega, está apenas mostrando. — Você aperta aqui para calibrar. Um flash pode cegá-los por um tempo, atordoá-los, mesmo com o capacete. Depois você modifica a potência aqui e mira no coração, é letal. Derrete a armadura e o corpo deles. — Você já testou? — Vou pegar a lanterna, mas Lyek guarda novamente no bolso. — Testamos nas armaduras, um garoto que arruma os estoques conseguiu um ou outro exemplar, treinamos os tiros em fantoches. É como uma espada Jedi, só que concentra raios UV. É rápida e silenciosa, eles não terão chances. — O quão rápida? — Velocidade da Luz. O atraso é o tempo que você leva para apertar o botão de disparo. — Lyek dá de ombros. — Você não tem que temer nem vampiros e nem Anjos, Jay. Podemos ser livres. Nossos reforços estão chegando e eu realmente preciso de alguém como você do meu lado. Não foi você que teve essa ideia? Que me disse que poderíamos lutar contra isso? Você me fez acreditar em dias melhores e eles tão vindo. — É, eu fiz. — Seguro no rosto dele e comprimo os lábios. — Eu poderia aceitar, mas quem garante que estarei segura caso eu me transforme em uma vampira? Seus colegas viriam

atrás de mim. — Por isso você não pode se tornar uma vampira até lá. — E como vou fazer isso, Lyek? Eu não tenho como me defender, você sabe que os vampiros são espertos, acha que sou mais poderosa do que ele? Riezdra é um General, você sabe a fama que ele tem. — Mordo a boca. — Ele já fez coisas horríveis comigo. — Que tipo de coisas horríveis, ele ameaça sua vida? — Sempre que ele toma do meu sangue é uma ameaça a minha vida. Não entende? E outras coisas… — Desvio o olhar. — O que ele fez? — Lyek segura nos meus ombros, virando o corpo para mim, querendo me abraçar e me proteger. — O que um homem pode fazer de ruim à uma mulher? — Pergunto, sem querer dizer o que foi. Lyek abre os olhos e a boca, em uma expressão de susto. — Meu Deus, Jay! — Ele segura no meu corpo e me puxa para um abraço. — Isso é… isso é… — Ele perde as palavras. Eu o abraço forte, afundando a testa em seus ombros. Ele se separa de mim, olhando firme nos meus olhos. — Faremos ele pagar. Está bem? — Fazê-lo pagar não é suficiente, não me protege. E se ele me matar? Ou ainda, me transformar numa vampira enquanto esperando esses reforços lentos que não chegam? Você ao menos sabe onde eles estão, por acaso?! — Os Russos estão vindo pelo Ártico. Chegarão no leste antes do inverno. — Pelos fundos da cidade? — Queremos impedir que os vampiros evacuem através do túnel das geleiras, mas eles ainda tem de chegar até aqui, talvez esperemos o inverno passar, contar com a força da luz do Sol, é sempre uma vantagem e queremos que todos os vampiros estejam aqui, inclusive os da Casa Zegrath. — Oh, pode funcionar, mas é muito tempo, eu não tenho todo esse tempo. — Seguro firme nos braços de Lyek, quase chorando. — Serei transformada com a chegada do inverno, exatamente com a chegada da Casa Zegrath. — Você precisa aguentar firme, é só isso. Atrase a transformação, se ele for para cima de você.. Se ele… — Lyek bate as mãos no bolsos de novo e me estende a Lanterna. — Use isso, um flash e você poderá correr. Aperte aqui para virar um feixe de luz e acerte-o no coração. Os inuit te darão proteção, mas se você matá-lo antes dos Russos chegarem, Jay… os outros virão atrás de você e não teremos poder de fogo suficiente contra eles. Você tem que aguentar até o final do inverno, quando tiver luz do Sol. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance. — Pego a Lanterna e guardo no bolso da minha jaqueta. — Obrigada mesmo, Lyek. — Seja forte. — Ele segura no meu rosto e beija a minha boca. Recebo o beijo de Lyek, com gosto de abacaxi. Nos despedimos quando ele tem que voltar ao trabalho. Chego em casa e escondo a arma em uma das mochilas que minha mãe guarda em cima dos armários, aquelas em que ela transformou em pequenos kits de sobrevivência, em caso de uma evacuação. — Jaylee? Jaylee? — Minha mãe grita, me procurando. Coloco a mochila para cima do armário e de volta no lugar e vou correndo até a sala,

onde Johin está brincando com o quebra-cabeça que ganhou de Lady Lucretia. — Seu vestido para a festa de apresentação de Byrn chegou. — Mamãe abre a porta. — Quem diria, ela entrou depois e será apresentada primeiro à Sociedade que você! Coloque em cima da cama, para não amassar, por favor. Um funcionário da alfaiataria entra com um cabide ensacado e eu o guio até meu quarto. Ele é um rapaz não muito mais velho que eu, com os cabelos trançados e um pano, contendo os fios claros, seu corpo é magro e afinado, como um poste. Normalmente é ele que me trás os vestidos e faz os ajustes, se chama Murilo. Ele solta o vestido em cima da cama e olha para mim, segurando o cesto de costura: — Melhor você fazer a última prova, amanhã não teremos tempo para ajustes finais. — Por que não? — Pergunto desconfiada. — Está uma bagunça por lá. — Murilo resfolega. — Recebemos cristais para pregar aos vestidos e priorizamos os de Lady Lucretia, acontece que não era para pregar no vestido dela e sim no de Lady Byrn. Recebemos uma advertência do Imperador, agora estamos arrancando tudo e pregando no outro… Vão cortar metade dos nossos cupons esse mês. — Ah, nossa. Ela deve estar mesmo nervosa. — Fico chocada. Lady Lucretia está de luto nupcial e realmente seu vestido não pode ter nada, até as costuras são simplificadas. Nenhum brilho, nenhuma saia bufante, nada que mostre seu decote, realmente erraram quando puseram coisas no vestido dela, mas… O Imperador advertir porque erraram o vestido de Byrn é meio esquisito. Se bem que, por outro lado, posso entender um pouco. Dizem que a noite em que um Recém-Transformado é apresentado à Sociedade dos Vampiros é muito importante. Fazem uma demonstração de poderes diante dos nobres e passam a ser avaliados socialmente. É como passar a existir, uma espécie de B'nai Mitzvá. É uma importante cerimônia. Quando eu for uma vampira, passarei por essa cerimônia também. Para Byrn, deve ser algo mais importante que casamento! Haha! — Vou me trocar, será rápido e você poderá voltar logo, Murilo. — Obrigado, você é sempre tão gentil. — Ele sorri.

CAPÍTULO 40

Ilusões — Sinto muito. Reagi mal. — Zane fala com o rosto sem expressão e sem piscar os olhos, como se fosse um quase-robô. Ele vira para Lady Lucretia quase que de imediato. — Aí está, fiz como você queria. — Zane! — Lady Lucretia cruza os braços por cima da armadura e torce a boca. Ela está vendada. — Você tem que realmente querer pedir desculpas para ser sincero. E coloque já essa venda! — Mas eu não quero pedir desculpas! — Ele resmunga e faz como ela pediu, abaixando a venda da testa para os olhos, ele está de armadura também, é fim do nosso expediente. Devíamos estar trocando de roupa como os outros soldados liberados do serviço, mas antes que eu pudesse entrar no vestiário, escutei um “psst” e Lady Lucretia me chamando. Ela me guiou até um canto mais reservado, entre prédios do exército, uma grande lixeira fedendo onde Zane me esperava. — Jaylee, não ligue para ele! Zane está sendo… imaturo. — Lady Lucretia vira para mim, suas sobrancelhas escuras por cima da venda. — Eu não estou sen... — Peça de novo. — Ela passa a ordem, sem deixar que ele termime a frase. — Anda! — Tá bom! — Zane enche as bochechas de ar, cansado e toma fôlego. Eu o interrompo, esticando as mãos para frente, cobertas pelas luvas receptoras: — Não tem problema, Zane, não precisa. Achei até que você ia demorar mais tempo para olhar na minha cara, eu realmente não devia ter dito aquilo. — Mas você disse. — Ele agora curva um pouco, para ficar da minha altura e olhar nos meus olhos, mesmo que eu não veja os dele agora. Desvio o olhar arrependida e ele se ergue. — Ainda assim, Lucretia acha que eu exagerei e que não precisava ter deixado você falando sozinha, então me desculpe, mas eu me apavorei quando você disse que sabia de Elisabeth. Como você descobriu afinal? — Foi meio óbvio na verdade, de repente descubro que sua irmã falecida se chama Elisabeth! — Ergo os dois braços. — Liguei os pontinhos. — Eu disse a você que Elisabeth era muito na cara, gênio! Tinha que ser Sarah, Paula, Gabriela, qualquer coisa menos Elisabeth. — Lady Lucretia coloca as mãos na cintura. — Mas eu não podia trocar o nome que ela escolheu e gosta tanto. — Zane protesta, erguendo as mãos, tentando marcar sua opinião. — Costumava dizer que se sentia uma princesa. — O que nos leva a outra questão: afinal, você tinha um nome antes de se chamar Zane! — Aponto para ele, com o dedo, rindo. — Não esse assunto de novo. — Ele exala ar pela boca e joga a cabeça para trás,

percebendo que falou besteira. — Você tinha outro nome? O que isso quer dizer? — Lady Lucretia cruza os braços e vira para ele, erguendo ambas as sobrancelhas. — Não! Eu… Ai. Jay. — Ele vira para mim, me dando bronca, colocando a mão na testa. — Diga logo qual é. — Dou risada, colocando a mão na cintura. — Não! É muito constrangedor. — Não vou me casar com um homem de quem eu nem sei o nome verdadeiro! — Lady Lucretia se une à mim, mas com motivos bem mais pessoais que os meus. Só estou curiosa, para mim, Zane será sempre Zane. — Conto no dia do casamento. — Ele se vira, dando as costas para nós e saindo. — Diga agora. — Lady Lucretia segura ele pelo braço, impedindo-o. Ele arfa pelo nariz, inconformado, mas fica pensando a respeito, enquanto ela entende o dedo até o nariz dele. — Ou faremos luto de dois anos! — Se eu disser, vamos marcar o casamento para o fim do ano e tirar essa venda estúpida. — Ele negocia, abaixando a mão dela. — Feito. — Lady Lucretia abre um sorriso, convencida. — Luke. — Ele diz. Abro a boca. Uau. — Skywalker. — Cretino! — Lady Lucretia o empurra tirando-o do caminho e passa por ele. — Lucretia! — Ele a chama, parado. — Curta o seu Luto, Sr. Anônimo, vou pedir para ser totalmente fechado. — Ela sai batendo os pés. — Você está sendo tão vingativa. — Ele reclama, mas ela não para. — Tudo bem, é você que vai demorar mais tempo para saber, mesmo. — Observamos enquanto Lady Lucretia some, de volta aos vestiário para tirar a armadura. — Dá para acreditar nela? — Bem, sabe o que dizem, não provoque a ira de uma mulher! — Dou risada e ele balança acabeça em um “não”. — Por que você está escondendo Elisabeth da sua família, de qualquer forma? — Ela não gostava muito da vida que tinha, então quando acharam que Lisa tinha morrido, pensei que era uma boa oportunidade para fazer acontecer. — Zane confessa. — Lucretia me ajudou. Removeu as memórias de Elisabeth. — Ela pode fazer isso? — Pergunto surpresa. — Entre outras coisas, sim. — Você plantou um corpo falso ao redor de N-F22? Ninguém fez um exame de DNA? — Não, tonta. Eu disse a todos que ela tinha morrido lá, mas não foi eu que coloquei nada, eu já estava em Torre Bawarrod. — Devon. — Descubro. Zane dá de ombros, indicando que acertei. — Isso explica porque ele destruiu o celular de Caedyn. Mas vocês não acham perigoso para Elisabeth ficar aqui em N-D44 e te encontrando de vez em quando, Zane? — É, eu sei. Estamos esperando o bebê dela nascer em segurança para que ela e a família sejam enviados para outra colônia. Especialmente com Celeste vindo para cá… É melhor não arriscar. — Ele respira fundo e exala o ar, passando o braço pelos meus ombros e me guiando, saindo de perto das lixeiras. — Deixá-la ir embora é melhor do que vê-la morrer.

— Acho que você tem razão. — Mostro um sorriso. — A propósito, Elisabeth queria um vestido de casamento, eu disse a ela que tinha um vestido branco, mas acontece que eu não tenho… Pensei em… — Certo, falo com Lucrecia, ele deve ter um monte dessas tralhas sobrando. — Assim que ele fala, Lady Lucretia passa por nós, com suas roupas de luto nupcial e empina o nariz, passando por Zane aborrecida, em direção à saída. Ficamos um tempo observando-a andar. — Ih, melhor eu ir atrás da fera. Vejo você amanhã, na apresentação de Byrn. — Ele me dá um selinho e se afasta. — Espere, Zane. Você não deveria fazer uma apresentação, também? — Pergunto. — Como se o Sr. General fosse deixar que eu me apresentasse como da Casa Bawarrod na frente de todos aqueles nobres! — Ele se diverte e gira, saindo. — Até amanhã! — Cuide-se! — Aceno. Antes de entrar no vestiário, observo Zane ir atrás de Lucretia e segurá-la no braço, conversando. Eles se beijam e saem abraçados, mas Lady Lucretia ainda dá uma cotovelada na costela de Zane, aborrecida. Eu amo esses dois! E os amo tanto, tanto e tanto, que não posso deixar que nada ruim aconteça a eles. Sinto como se fosse meu dever protegê-los de qualquer ameaça, inclusive aquela ameaça que eu mesma criei: a rebelião dos Guerreiros de Gelo. Mas como vou fazer isso? Lyek me alertou que independente do lado que eu ficar a rebelião está vindo e que os russos estão chegando com armas letais. Se a facção de humanos em N-D44 disposta a lutar é mesmo de mais de 3 mil homens, então tenho um problema: sozinha, nunca darei conta. ● ● ● As palmas explodem pelas paredes do grande salão quando uma chuva de bolhas de sabão multicores caem do teto em cima dos nobres. Izobel estica o dedo o mais distante que consegue para tocar uma, ela explode. — Incrível, inclusive explodiu! — Ela se maravilha. Os cristais amarelados em seu vestido vermelho brilham com a luz dos enormes candelabros de luz neon pendurados por correntes pesadas. — É só uma ilusão idiota. — Dorian resfolega e revira os olhos ao mesmo tempo, desviando o olhar. Ele está sentado ao lado de Izobel, de terno vinho e gravata preta, com os cabelos negros arrumados para cima. — Você pode ver, mas não pode tocar. — Elas explodiram, Dorian. — Izobel lança um sorriso de lábios esticados e olhar impaciente, chamando-o de idiota. — Sabe o nível de concentração que deve ser necessário para controlar cada uma dessas bolhas? — Uma mosca pode fazer isso. — Ele puxa o copo de uísque da mesa, dando um gole largo. Não sei se Dorian está fazendo uma piada ou sendo sério ao desmerecer os poderes de Byrn. — Nesse caso, uma mosca seria mais eficiente que você, meu irmão. — Izobel o provoca, rindo. — É só bolha de sabão. — Caedyn faz uma careta de quem nem entendeu o motivo da

discussão entre seus pais, para início de conversa. Devon coloca a mão na minha nuca, olho para ele, mas a conversa com Mordecai parece mais interessante que o show. Evolus Mordecai dá uma risada e coça a barba. Estou um pouco aborrecida, já tentei me aproximar dele três vezes, mas Devon não me deu atenção apropriada. — Ouvi que Kaiser está apaixonado pela nova menina! — Mordecai comenta. — Os servos do castelo disseram que ela esteve em seu quarto todos os dias pela manhã. — Ela é realmente bonita, Lady Lucretia escolheu bem. — Devon comenta. — Deve estar desesperada para tirar Bawarrod de cima do garoto! Agora que noivou em especial. — Ao lado de Mordecai, um velho da Casa Lunysum dá risada. — Ouvi que a Casa Taseldgard está especialmente ofendida com você, meu caro amigo, por ter escolhido um garoto tão bonito. — Quando adotei Zane, ele era um bebê. Não tinha como imaginar. — Tente convencer a Casa Blonnard, que está ofendida pelo sangue. Dizem que seu filho tem um gosto divino, em todos os sentidos. — O velho fala de um jeito que eu considero até pervertido. As mãos de Devon apertam ao redor do meu pescoço, enquanto ele dá um gole no uísque. Talvez não seja apenas eu. Fico com vontade de arrancar os olhos desse velho com minhas próprias unhas. Bastardo maldito. — Bem, se quiser uma mordida, terá que entrar na fila, Dwane, mas há uma coisa, senão a única, que eu e Kaiser partilhamos: uma inevitável indisposição à partilhá-lo. — Devo dizer que Kaiser tem sido mais eficiente nesse aspecto que você, caro amigo. — Não precisa dizer. — A voz de Devon arranha com amargura. Olho para ele, mas Devon não troca olhares comigo nesse instante, ofendido com os comentários e mantém os olhos no salão, onde Byrn, ou “Lady Byrn” como os nobres estão chamando-a está se apresentando. Ela está com um lindo vestido rabo-de-peixe, com saia cinza e o busto tomara que caia cheio de cristais, os quais foram pregados um a um por Murilo e sua equipe, em uma noite fria, lamentando terem ficado sem metade dos cupons. Não evito conferir Lady Lucretia, na sequência, e o vestido que teve os cristais arrancados, mas não posso vê-lo. Ela e Zane estão usando um véu negro e fechado por cima do corpo até os pés, uma espécie de burca toda negra. Há uma renda pesada onde ficam os olhos. Acho que alguém falhou em acalmar a fera. Zane se inclina um pouco, como para escutar algo que ela tem a dizer, Lady Lucretia coloca a mão na boca para cobrir e falar próximo ao ouvido dele, como ninguém pode vê-la, acho que é para ele escutar melhor. Ao som de uma batida eletrônica, dessas que os vampiros apreciam, Byrn está fazendo um show de ilusões no meio do salão. Um teatro que consiste em fazer objetos sumirem diante dos olhos, mas ainda ficarem lá, projetando imagens, como as bolhas de sabão e criando um cenário. Ela coloca a mão na testa por um breve minuto e depois, parecendo aquelas garotas que ficam atrás do apresentador do programa de TV, vira os pulsos e as mãos. O chão do salão se transforma em uma galáxia, como se estivéssemos flutuando. Ela controla a mente de cada um de nós ou apenas o que os nossos olhos podem ver? É um pouco perturbador.

Byrn passa as mãos nos cabelos e pelo rosto, de um jeito dramático e sensual. Sua imagem inteira modifica-se para a de outra mulher, loira, e seu vestido cinza fica todo azul. Mais aplausos. Impressionante, devo admitir! Bato palmas. Os garçons servem uma tulipa de champanhe para todos, avisando que é para o brinde. A música morre aos pouquinhos quando a apresentação acaba. O Imperador se levanta com um arrastar de cadeira e os nobres param de falar. — A Casa Bawarrod tem o prazer de anunciar Lady Byrn! — Suas palavras puxam uma salva de palmas. Ele pega uma taça. — Proponho um brinde. Todos os nobres pegam a taça. Devon faz um carinho no meu cotovelo, chamando atenção, olho para ele: — Quê? — Você vai querer brindar a esse espetáculo. Pegue a taça. — Ele se diverte e fica em pé, junto com os nobres. Obedeço. Pego uma taça e me levanto, como todos. Respiro fundo, estou especialmente nervosa hoje, com a cabeça lá na Rússia! Meus joelhos ficam até tremendo. Coloco a mão livre nas costas de Devon, chamando-o. Ele olha para mim enviesado, em silêncio me dizendo que eu não deveria tocá-lo no salão. Tiro imediatamente minha mão dele. — Queria conversar com você. A sós. — Seja educada, meu bem, e contenha seu desejo sexual até após o jantar. — Devon venta rindo, debochando de mim. Exalo ar pela boca incrédula. Que idiota! Por que ele sempre subestima o que vem de mim? Perco até a vontade de dizer para ele o que eu sei e deixar que os russos o apunhalem pelas costas, mas não tenho opção aqui. Os russos não poupariam minha vida e se a tecnologia for mesmo tão eficiente como dizem, não quero que eles se aproximem da geleria. — Lady Byrn, seja vem vinda nesta Casa! Que suas noites sejam sempre prósperas, tal como a prosperidade que você trouxe à essa família. — Kaiser fala para ela, olho no olho. Byrn sorri meio boba. — E é por isso, meus amigos, que tenho o prazer de anunciar que Byrn foi escolhida para ser progenitora do Sucessor da Casa Bawarrod! O salão fica um tempo em silêncio, absorvendo a informação. Byrn olha para o Imperador, um pouco sem entender o silêncio, mas Devon puxa um aplauso. Logo as palmas começam a sugir aos poucos, devolvendo o sorriso de Byrn. Eu aplaudo, mas estou um pouco incrédula. O sucessor não era Zane? Dorian, Izobel e Caedyn não seguram as mãos, aplaudindo. — Em comemoração, a Casa Bawarrod tem um presente a oferecer à Lady Byrn. — O Imperador coloca as mãos em suas costas e a guia em direção à saída. Todos os nobres seguem até o lado de fora, Byrn dá um berro de alegria. Seu presente é aquela Ferrari que Lyek estava consertando ontem. Byrn e Kaiser entram na Ferrari e dão algumas voltas e aos poucos os nobres retornam para o salão. — Vá zanzar pelo salão, peixinho. — Devon segura em minha nuca e me empurra para dentro do salão novamente. — Certamente, meu senhor. — Concordo e entro no salão Faço meu serviço, escutando as conversas de todos, nada demais a maioria parece feliz que o Imperador tenha decidido ter um filho e muitos nobres lamentam que a decisão tenha

sido após o Conselho se decidir que a coroa iria para a cabeça de um humano. Um ou outro não se convence, dizendo, e eu reproduzo aqui as palavras usadas: “Tanto trabalho para roubar um vampiro da Casa Riezdra, desistir agora que conseguiu, parece estranho para um homem como o Imperador”. Devon disse que era um espetáculo. Ele tem razão. Não me convence nem um pouco que Kaiser tenha se apaixonado por Byrn! Preciso de mais que uma demonstração pública de afeto e de um corte nos cupons por causa de um vestido para me convencer disso. Além do mais, já presenciei o quanto esse homem entregou seu coração à Zane, não me resta dúvidas! Entretanto, compreendo que se quiser reconquistar a credibilidade dos nobres e convencer a todos de que não entregará a Sucessão da Casa Bawarrod para seu amante, ele precisa que os nobres acreditem que ele e Byrn estão envolvidos. Minha única preocupação é com os sentimentos de Byrn, ela é um pouco vislumbrada com o mundo dos vampiros. O que acontece quando ela descobrir que foi usada? — Essa é a garota que te falei. — Um jovem da Casa Lunysum sussurra para seu amigo quando eu passo. Espera, estão falando de mim? — A que se deita com o General? — O outro parece espantado. Fico um tempo por ali, fingindo que estou procurando por alguém e muito ocupada para escutá-los. — Ela é muito pequena. Aguentará se tornar uma Riezdra? — Acho que ela é mais um brinquedo. — Ou uma substituta para Lady Cassandra. — Outro diz. Como assim uma substituta? Lady Cassandra. Esse nome logo me remete à conversa que tive com Zane, durante a mudança de Byrn. Ele me contou que Cassandra e Devon viveram um romance, que ela era seu verdadeiro amor. Não gosto de ouvir isso. Por que isso me incomoda? Saio de perto das especulações dos cadetes do exército, não me darão nenhuma informação útil, é claro, mas meu coração discorda de mim, me enchendo de inseguranças. Do outro lado do salão, Dorian e Devon conversam enquanto bebem com Evolus Mordecai. Até me irrita que ele não esteja prestando atenção devida em mim essa noite, que não me deixe tocá-lo e que me mande trabalhar como sua escrava. Pela primeira vez, encaro o problema de frente: é exatamente esse o papel em que eu me coloquei e eu o detesto. E eu não deveria me prender nessas questões tão pessoais agora, eu preciso conversar com Devon sobre os russos. Respiro fundo recobrando um pouco de estabilidade emocional, sabe aquela impressão de que já nem sei mais o que eu estou fazendo? Sou eu nesse instante. Se eu conto para Devon sobre os russos, sobre os Guerreiros do Gelo, estarei condenando Lyek e todos os humanos envolvidos, além do mais, não quer dizer que há chance que os vampiros possam lutar contra as armas que possuem… de qualquer forma, o futuro é incerto. Porém, se eu não contar… Vou perdê-lo.

CAPÍTULO 41

Percepção — Ei, Jay! — Zane segura no meu braço antes que eu consiga chegar em Devon. Giro e encaro ele e Lady Lucretia, quer dizer, os panos negros que os cobrem. Parece até que é um aviso para que eu não diga a Devon o que preciso dizer. Como um desses sinais que Deus nos envia, mudando nossos caminhos de última hora. — Pode vir conosco um minuto? — Lady Lucretia pede, com a voz abafada por baixo dos panos. — Hm? Ah, bem. — Olho para trás, onde Devon está conversando e volto a encarar os fantasminhas de preto na minha frente. — Onde vamos? — Apenas venha! — Ela segura no meu outro braço e sou arrastada pelos dois até a porta da saleta da Casa Bawarrod. Alice destranca a porta para entrarmos e fica fazendo guarda. Ela fecha a sala assim que passamos para dentro. Velas aromáticas impõem um cheiro doce de sândalo. A sala-de-estar de Bawarrod é luxuosa e um pouco perturbadora ao mesmo tempo. Eu realmente espero que quando Zane se torne o Imperador, ele mande trocar essa decoração macabra! Se bem que pelo que fiquei sabendo, demorará um pouco para Zane e Lady Lucretia serem coroados. Há inúmeras máscaras de torturas de ferro penduradas na parede, com formatos estranhos e caretas esquisitas de dor. Presos com correntes, alguns alicates, garfos medievais, tesouras esquisitas e até uma pera-da-confissão, usada para dilascerar as partes internas da vítima, repousando em cima de uma penteadeira. Um dos itens que mais me chama atenção é um cinto da castidade masculino, perto de um armário. Bizarro! Acho que Kaiser é um homem sádico, que gosta de sentir prazer com o sofrimento dos outros, ou se sente poderoso causando medo nas pessoas. Minha mente pisca com a imagem do teatro, quando ele mordia Zane contra sua vontade, sorrindo e inflingindo dor, mesmo que não fosse uma tortura medieval, era uma tortura, de certa forma. Na época, achei que ele estava sendo carinhoso! Não sei se estou enganada, ainda acho que Kaiser tem um tipo de amor único por Zane. Vai ser esquisito se eu disser que acho até bonito esse sentimento? É ua questão de honra ou loucura ser capaz de qualquer coisa por amor. Será que eu seria? Há dois ambientes cortados por uma cortina cinza pendurada por um aparador. De um lado, uma verdadeira sala de luxo: tapete preto paredes de pedra, uma poltrona de couro preto moderna e um sofá em “L” de seis lugares, repleto de almofadas, com um divã. No centro, uma mesa de pedra negra, redonda, aparando uma bandeja com bebidas, copos e algumas velas. Do outro lado, entretanto, não posso ver o que tem, mas minha mente já imagina uma sala de tortura.

— Eu e Hunter trouxemos o vestido! — Lady Lucretia avisa e começa a engruvinhar a burca. — Hunter? — Lucretia acha que se disser todos os nomes que ela conhece, vai descobrir qual era o meu nome. — Zane responde. — Depois de falar todos os nomes masculinos, vou usar os femininos. Quem sabe eu acerte, não é, Pablo? — Ela puxa a burca, tirando-a. — Pablo? Sério? Pablo? Tenho cara de Pablo para você? — Zane cruza os braços. — Como eu vou saber! Você não me diz, James! — Lady Lucretia arfa, recuperando o fôlego e joga a burca em cima do sofá. — Por que você tirou? Não fazia tanta questão de usar o luto fechado? Coloque de volta. Eu me sento na poltrona, esperando que os dois terminem. Uma coisa engraçada quando os casais passam muito tempo juntos: eles brigam de mentirinha o tempo todo sobre todas as coisas, testando os próprios limites. É uma forma de amar, mesmo que esquisita. — Vá se ferrar, Zane! — Irritada, ela coloca as mãos na cintura, os cabelos bagunçados e um vestido todo preto e simples, grudado no corpo, posso ver algumas linhas que ainda sobraram dos cristais que foram arrancados do busto. — Quer dizer, Andrew! — Oh, por favor! — Zane puxa a burca, tirando também. — Por que você tirou? — Ela pergunta aborrecida. — Se você vai tirar, eu também vou. — Ele joga no sofá em cima da dela. — Você não pode tirar! — Lucretia coloca as mãos nos olhos. — Ah, não, olhe pra mim. — Não, Jeff! — Como você vai pegar o vestido para a Jaylee assim? — Pegue você, cretino! — Não me chame de cretino… — Zane faz biquinho, mas ela não está vendo. — Eu te chamo de qualquer coisa, já que nem sei seu nome. — Lady Lucretia limpa as lágrimas e ergue os olhos vermelhos. Eu não tinha percebido até aqui como esse é um assunto sério para ela. — Como vou saber quem você é e me casar com você? — Mas você sabe quem eu sou, certo? — Zane faz um carinho no rosto dela. — O homem que eu sou, os sentimentos que eu tenho por você, não mudam com meu nome. É só um maldito nome, não deveria ser tão importante. Você me conhece há tempos. — Tem razão. — Lady Lucretia mostra um sorriso lânguido e resfolega, vencida. — Eu te conheço muito bem e não preciso duvidar de você ou de seus sentimentos por mim. — Eu te amo. — Ele se inclina e beija sua cabeça, em respeito. — Amo você. — Ela o abraça. — Não vou mais te perturbar com esse assunto e não precisa mais usar o luto nupcial fechado se não quiser, Zane. — Milan. — Quê? — Você queria o nome. — Milan? Como a cidade? Que tipo de nome é esse afinal? — Lucretia debocha, sorrindo e se afastando um pouco dele. — Quando Devon me adotou, deixei que ele me desse outro nome. Zane estava bom

para mim. — Milan não era o nome do filho da Shakira? — Talvez minha mãe fosse fã de Shakira, não sei. — Talvez fosse. E onde você morava quando se chamava Milan? — Acha que eu me lembro? Sinta-se agradecida por eu saber o meu nome. Elisabeth nem sabia que o nome dela era Tessa! — Tessa? É bonito. E seu nome combina com você, Milan! — Ei, não te disse o meu nome para você ficar usando! — Milan! Milan! Milan! — Cala a boca — Ele revira os olhos resfolegando e coloca as duas mãos na cintura. Para Escapar de Lucretia, vira-se para mim. — Vou pegar o vestido para você, Jay. — Ah, puxa, por um instante até achei que vocês tinham se esquecido de mim. Milan. — Vocês sempre se unem contra mim! — Ele arfa e vira as costas. Zane vai até a penteadeira e pega de cima da mesa uma caixa negra, simples. Ele entrega para mim. Lady Lucretia veste novamente a burca para o luto. Seguro a caixa, não é pesada, mas é bem grande. — Obrigada. — Abro um sorriso. — Não. Eu que agradeço. Diga a Elisabeth que a felicito pelo casamento. — Sabe, você podia ir à cerimônia e dizer isso a ela você mesmo. Zane faz que “não” com a cabeça sem dizer nada, mas vejo tristeza em seus olhos. Abraço-me com ele e depois com a fantasminha Lucretia. — Obrigada, Elisabeth ficará muito feliz. Deve ser um vestido lindo! — É branco. Normalmente usamos em enterros. Usei quando meus pais morreram. — Ela dá alguns tapinhas no meu ombro. — Por que você colocou essa fantasia de novo? Não vamos parar de usar? — Zane logo reclama. — Você não viu o estado do meu vestido? Não vou desfilar na frente daqueles bonachões assim! — Ninguém presta atenção em vestidos, vá sem se quer que olhem para você. — Eu não sou tão atrevida como você, Milan. — Não me chame assim, por favor? — Milan! — Lady Lucretia provoca. — Zane tem razão, Milan é um péssimo nome, pegue leve com ele! — Digo quando fecho a porta, saindo. ● ● ● Guardo a caixa do vestido em baixo do sofá da sala da Casa Riezdra, para que ninguém ache e me pergunte o que é. De manhã, quando todos os nobres já tiverem saído, posso retirála em segurança. Abro a porta para sair e Devon entra, me empurrando para dentro de novo. — Estava procurando por você, por que se escondeu? — Ele segura nos meus braços e me puxa para perto dele, encostando na porta.

— Não me escondi. — Estava me esperando? — Ele venta rindo. Minha bochecha se amassa contra a porta da saleta, mantenho as mãos contra a porta e fecho os olhos com dor, enquanto os caninos letais de Devon se encravam na parte inferior das minhas costas, no lado direito. — Devon, precisamos conversar. — Ele dá enormes goles no meu sangue, meus joelhos começando a amolecer. Suas mãos quentes percorrem minhas coxas, ele desce a minha calcinha até os joelhos, seus dedos dentro de mim. Prendo a respiração. Será que essa noite não poderia acabar logo, simplesmente? Fecho os olhos bem cerrados. — Isso não está funcionando. — Devon me solta. Suas mãos seguram e me viram de frente, encaro sua boca ensanguentada e comprimo os lábios. — O que há de errado com você? — Ah, agora você quer me ouvir? — Arfo. Devon segura firme no meu cabelo e empurra minha cabeça contra a porta. Doi, mas não muito, ele está pegando leve. — Estou com cólica, acho que vou ficar menstruada. — Não, não vai. — Ele venta, rindo, mas eu conheceço essa reação. Ele não acreditou em mim… melhor, ele sabe que eu menti. — Não admitirei uma mentira pela segunda vez, Jaylee, então é melhor que você me diga a verdade quando eu perguntar. — Arfo, erguendo os olhos para ele, os tons de dourado estão em chamas. Só por ter me ignorado a festa inteira no salão, vou dar um pouco de trabalho a ele essa noite! — Quando vamos conversar sobre Lady Cassandra? — Seguro firme em seus ombros. — O quê? — Devon solta meus cabelos e franze o cenho. — Quem disse esse nome a você? Zane? Izobel? — Estão comentando o tempo inteiro no salão sobre isso, sei que ela foi sua amante, mas nunca conversamos a respeito disso. — Não, não teremos essa conversa hoje. — Ele se afasta de mim, virando as costas e andando até o meio da saleta, onde a mesa de centro está segurando uma garrafa de vinho. Ele pega a garrafa e dá um gole, sentando-se no sofá. Fico com a sensação de que quem vai ter um momento difícil sou eu e não ele. Péssima escolha de tópicos. Eu esperava uma reação mais agressiva ao ouvir o nome de Lady Cassandra, mas parece que ele se fechou. Estranho. Devo achar que ele tem sentimentos por ela ainda? Sinto uma dor estranha no corpo, como se eu estivesse me desmanchando por inteiro. Devon não diz nada, apenas coloca os braços no encosto do sofá e olha para mim, seus olhos esquadrinham toda a minha reação agora e eu respiro fundo, deixando a calcinha escorregar no chão. Ando até o sofá e me sento sobre Devon, entrelaçando os dedos no seu cabelo macio e liso, jogando os fios castanhos-claros para trás. Ele ergue as duas sobrancelhas com um suspiro e dá um gole na garrafa, tentando me ignorar. Isso é familiar, ele resistindo a mim e eu tendo que convencê-lo a não resistir, é a parte fácil. O difícil é todo o resto: como ele me faz com que eu me sinta culpada por algo que não sou ou todas as sensações que ele causa no meu corpo, me enchendo de desejos. Todas essas sensações que eu ainda não sei exatamente como lidar. Às vezes acho que é algo inerente da

Relação-Sanguínea, outras vezes me convenço que deve ser amor para depois mudar de ideia, achando que é apenas o prazer do sangue. Não consigo viver assim, com seus olhos longe de mim, com distância física entre nós. Sem o som da sua voz, já não consigo dormir e seu perfume amadeirado virou minha obcessão. Será que estou confundindo tudo? Seria errado que eu me apaixonasse? Qual o meu problema que não consigo resistir? Por que de repente, seu passado inteiro me incomoda a ponto de eu não querer mais dividir uma história com outra mulher? Roço o nariz em seu pescoço, procurando cheirá-lo. Suspiro. Devon continua tomando vinho sem se importar comigo e me machuca sua frieza agora. Dou mordidinhas leves em seu queixo e uma lambida em sua boca quando ele encosta a garrafa dando um gole. Mais congelado que o gelo das geleiras lá fora, Devon me entrega a garrafa, esperando que eu dê um gole. Como se disesse que eu devo me satisfazer com uma garrafa e não com seu calor. Até parece! Pego a garrafa e o observo, os olhos dourados distantes que procuram me ignorar. Não posso deixar isso acontecer. Derramo um pouco de vinho no meu corpo, molhando o pescoço e o busto, deixando o líquido frio e vermelho escorrer devagar, quase simbolizando um banho de sangue. Devon então me olha, interessado, curioso. Exatamente o que eu queria. Sua atenção em mim. E para ter certeza que ele não a perca, encho a minha boca de vinho e me aproximo dele, devagar, segurando um sorriso antes de beijar e verter o líquido em sua boca. Escorre mais depressa do que ele possa engolir e eu lambo seu queixo, seus lábios e seu pescoço com volúpia, me apertando contra ele, atiçando novamente o volume no meio de suas pernas. Ele corresponde me beijando, deslizando a língua pelos meus seios, descendo a alça do vestido. Ele chupa meu mamilo e eu solto um gemido, desejando mais. Devon encrava os dentes no meu seio, chupando forte. Aperto o meu quadril com o dele. — Pare com seus jogos e diga o que você queria me dizer. — Logo Devon está por cima de mim, me invadindo e me preenchendo, o perfume amadeirado me entorpecendo. — Tenho sua atenção agora, meu senhor? — Pergunto, quase sem fôlego e fazendo uma provocação. — Hm. — Ele geme mansinho. — Você me tem por inteiro. Ai, falando assim, quem é que resiste? Beijo Devon com um misto de desejo e tristeza. Gosto tanto dele, de estar com ele, de ser dele. Ele geme, afundando-se em mim com vontade, meu corpo já está perto de explodir de prazer, mas minha alma, entristece. Enquanto gozo, contenho a vontade de chorar que começa a crescer em mim. Abafo o pranto, mas é inútil, lágrimas queimam meus olhos. — Você está chorando. — Devon diz baixinho, prendendo-me em seus braços fortes. Sua mão alcança meus cabelos, fazendo um carinho. — Por quê? — É o que quero te dizer a noite toda. — Sua figura é um borrão criado pelas minhas lágrimas em meio à escuridão do quarto, seus olhos brilham, buscando os meus. — Mas você não quis escutar. — Se você quer que eu escute, melhor começar a falar. — Sua voz é um sussurro calmo,

um pouco sem fôlego, porém, uma ordem irrecusável.

CAPÍTULO 42

Confissão As lágrimas rolam dos meus olhos, escorrendo pelas minhas têmporas. — Estou chorando porque te amo. — Confesso, chorando. Minha boca retorcida para baixo em uma careta mais feia que um palhaço triste. — Esse é o problema — Encolho-me, buscando conforto em seu corpo quente, ainda de terno, pois nem tiramos nossas roupas. — Esse é o problema? — Devon dá risada e beija minha boca com carinho. — Vocês humanos sempre complicam tudo, não é mesmo? Não acredito que ele colocou dessa maneira. E qual o motivo de estar rindo? Vampiros são mesmo os piores! — Engole esse sorriso, Devon! — Grito, ele me lança um olhar afiado que diz que passei dos limites. Coloco a mão na testa. — Não estou me declarando! — Às vezes é impossível decifrar você. — Ele franze a testa. — Deixe-me falar. Ele segura na minha perna, passando a mão pelas minha coxa, mas não de um jeito lascivo, é apenas um carinho de conforto e um carinho que eu preciso muito nesse instante. As lágrimas escorrem pelos meus olhos como uma fonte. Coloco as duas mãos na testa, encostando os pulsos na ponte do nariz, tremendo. — Agora você está me deixando preocupado. — Devia ficar. — Passo a mão nos olhos e na bochecha, respirando fundo, tentando recobrar o meu emocional. Eu me sinto como um lixo agora, prestes a expor tudo o que Lyek me contou. Ele confiou em mim, me ajudou. Ao invés de mostrar gratidão eu o traio. — O tempo todo dizem que o mundo foi destruído pelos Anjos, mas ninguém sabe que não é verdade. — O que está insinuando? — Seus olhos dourados recaem sobre mim. Então ele não sabe! Estamos mesmo ferrados se o exército de vampiros não tem ideia dos perigos que o rodeiam! — Há alguns sobreviventes humanos. Os russos desenvolveram armas contra os alienígenas e armas contra vampiros. Conseguiram contato com um grupo de rebeldes em ND44 e estão vindo para cá libertar os humanos. Virão pelo ártico, atacarão ao fim do inverno. — Soluço. — Há amigos meus envolvidos, na verdade, essa ideia de juntar pessoas que queriam liberdade foi um pouco minha, começamos a chamar todos que estavam insatisfeitos com o Grande Império. É muita gente, incluindo os guerreiros Inuit. E agora, tem esses russos vindo. É um pesadelo. — Interessante. — Devon me observa e tiro a mão do rosto para olhá-lo. Sua mão no meu joelho, apertando, me trazendo para mais perto dele, de um jeito que ficamos com os corpos colados. Faz sentido o que ele está dizendo? — Você nesse momento. Humanos e

crises de consciência. É algo que me intriga. — Ele ergue a sobrancelha, explicando e os olhos em cima de mim, analisando-me. Encaro seus olhos, o brilho energético quase mágico, como os olhos de um animal predador. — Você e Zane são muito parecidos, nesse aspecto. Depois que o tirei daquele homem que ele chamava de pai antes de mim, por pior que fossem as coisas que ele tinha sofrido, ele chorou de saudades e arrependimento nas primeiras noites. — Somos humanos, é isso que fazemos! — Protesto com mais lágrimas rolando. — Ou pelo menos, ele era. E claro que estou em uma crise! É diferente! Nenhum deles fez coisas ruins contra mim, ao contrário, Devon! Ao contar a você, condenei todas as pessoas envolvidas, muitas das quais estenderam a mão quando eu precisei. Devon ergue as duas sobrancelhas e desvia o olhar de mim. — Não tenho como te confortar agora e sinto muito que essa decisão tenha recaído sobre você. — Ele beija meu ombro. — Eu também sinto. — Fungo, abraçando-o, enganchando minhas mãos em seus ombros, absorvendo o perfume amadeirado que faz com que eu me sinta no paraíso. — Considerarei sua confissão como um ato de fidelidade á Casa Riezdra. — Ele diz baixinho, no meu ouvido. Sinto-me como um capacho nesse instante, um sentimento misto de vergonha e gratificação. Eu não fui fiel à Casa Riezdra, eu fui fiel a Devon e ninguém mais. Seria amor? Paixão? Relação-Sanguínea? Dependência? Como sabemos a diferença? O que define o amor? — Fui fiel a você. — Confesso, com uma lágrima escorrendo pelos meus olhos. Ela é única. — Compensarei sua demonstração de fidelidade. — Devon segura em meu rosto com carinho e beija na maçã do rosto, onde a lágrima está e eu o quero novamente, até que eu não sinta mais dor em meu coração. Até que eu tenha certeza de que fiz as escolhas corretas. Procuro sua boca, ele me beija em resposta. Suas mãos percorrem minha coxa. Abro sua camisa com pressa, procurando não estourar os botões. Ele já está com a calça aberta, acabamos de fazer, ainda assim demonstra disposição, rígido. Giro no sofá, ficando por cima dele. Devon segura em minhas coxas, deslizando as mãos por dentro do vestido até minhas nádegas e aperta forte. Enquanto eu o beijo, me encaixo e ele me aperta mais, insaciável, descendo a língua pelo meu pescoço até meus seios. Seguro em seus cabelos e deixo um gemido de prazer escapar e desabo sobre ele, respirando forte. É um momento de silêncio em que busco apenas o conforto de seus braços fortes, o som do seu coração de vampiro batendo igual ao de um humano, o que confere a ele um ar tangível e encantador. Essa sensação de pertencer a ele e de estar segura com ele, é a sensação que me fez tomar essa decisão. Ele me abraça forte e suspira. Eu gosto dessa sensação, faz eu me sentir amada. Eu fiz a escolha certa, não poderia ser diferente. — E agora o que fazemos? — Pergunto, cortando o silêncio. As pontinhas dos dentes de Devon aparece, mas suas presas não estão para fora. É um sorriso? Ele roça o queixo na minha testa e deposita um beijo calmante. — Não há uma nação no mundo que tenha se benficiado da guerra. — Sua voz soa rouca, mas não amolecida. — Se as tropas inimigas entrarem pela geleira, será um banho de sangue com baixas para os dois lados. Nem tudo na guerra é sobre tiros e explosões.

Tentaremos uma aproximação diplomática antes. — Devon, eles estão armados! — Afasto-me dele caindo para o lado, para olhar sua expressão agora, mas não parece impressionado com o que eu disse. Ele apoia a cabeça na mão, o cotovelo no sofá, o outro braço ao redor de mim. — Armas que são letais para vampiros. — Nenhuma arma é letal o suficiente, Jaylee. — Ele venta, rindo. — Isso não existe! — Meu Deus! Por favor, esse homem não pode ser um bastardo arrogante agora! — Não subestime seus inimigos. — Não estou subestimando ninguém. Vocês humanos são limitados em suas próprias limitações. Apenas compreendem o que conhecem. — Vampiros possuem limitações também, Devon! Luz do sol! É uma arma de raios UV. — Coloco a mão na testa. Por que ele é incapaz de acreditar em mim? — Faz estragos naquelas armaduras que vocês usam, por favor, não trate da questão com arrogância. — Não estou. — Devon resfolega e sua mão escorrega para minha coxa, fazendo com que eu o envolva com minha perna. — Falarei com o Conselho a respeito disso e decidiremos o que fazer, não se preocupe. — O que podem fazem? Matar a todos? — Ergo as sobrancelhas aborrecida. — Seria terrível um genocídio de qualquer um dos lados. — Você precisa parar de olhar para os vampiros e para mim como se fôssemos apenas genocidas, meu bem. Bebemos sangue de humanos, mas nunca levamos a espécie à extinção. Estou errado? — Não que eu saiba, mas porque resolveram lutar contra os alienígenas e instalar as colônias, então? Achei que era um processo de dominação. — Esse é o problema com o verbo achar, não é uma certeza. Quebramos o Sigilo[9] sobre nossa exitência para que a humanidade não acabasse dizimada pelos alienígenas. — Ele fala como um fazendeiro falaria do seu rebanho, mas suas palavras fazem pouco sentido para mim. — Se chegar a um ponto que os humanos possam assumir a dianteira dessa guerra, faremos o recuo, total retirada. Não construímos as Colônias para nós. — Simples assim? O Grande Império simplesmente vai se retirar da batalha? Liberar o território? Deixar os humanos viverem em liberdade? — Já conversamos sobre liberdade. — Ele me relembra, uma sobrancelha sobe e desce, sinal de aborrecimento. — Sim, sua opinião é de que liberdade é uma ilusão, mas na prática, o que isso quer dizer? — Que será “simples assim”. — Ele dá ênfase, usando minhas próprias palavras. — Voltaremos para a sombra oculta em que sempre estivemos, habitando apenas o inconsciente e os livros de ficção. — Você está delirando, Devon! A humanidade não vai simplesmente deixar vocês irem apra qualquer lugar em paz. Muitos deles falham em demonstrar gratidão e vêem os vampiros como uma ameaça que precisa ser erradicada. Eu sei disso porque eu me sentia assim antes. — Jaylee, você está aterrorizada com armas supostamente letais contra vampiros e tudo bem, você pode sentir medo. — Ele segura no meu rosto com uma das mãos, limpando as lágrimas que escorrem pela minha bochecha, elas simplesmente não param de cair. — Porém,

deve compreender que essa é uma visão limitada pelo costume de ver sua própria espécie acabando consigo mesmo em guerras territoriais. Ainda que estivéssemos na sombra do anonimato, houve sempre nosso domínio sobre a humanidade. — E daí que não sabíamos dos vampiros e eles faziam parte do mundo da ficção antes? — Eu me balanço, afastando a mão dele do meu rosto, negando. Ele está delirando e precisa acordar! — Agora que sabem que os vampiros existem, eles não vão recuar! O que você pretende fazer? Um aperto de mão? Convencê-los de que venceram? Como? Armando mais um teatro? Não vai funcionar. — Há uma razão para que a Casa Bawarrod esteja na liderança. Eles podem ser bem convincentes quando querem. Já instauramos o Sigilo tantas vezes ao longo da história humana, será apenas praxe instalá-lo mais uma vez. — Devon junta os ombros, como se fosse óbvio e eu estivesse exagerando. — Houveram épocas nas quais os vampiros precisaram se levantar, elas ficaram marcadas nos livros de história sem que houvesse uma real menção à nós. Alguns históriadores nos chamam de deuses, outros de sorte. — Os russos atirarão em vocês antes que vocês digam qualquer coisa. — Cruzo os braços. — Não. Eles terão a mente bloqueada antes de pensarem em atirar e é uma garantia que eu te dou. Além do mais, mesmo que atirem, precisa de mais que armas com disparos UV para destruir um escudo Soretrat. — Está sendo arrogante de novo, você nem ao menos testou a arma! — Estou falando porque sei. Somos superiores. Quando digo que somos como deuses não estou usando o sentido figurado. Somos Nether. — Devon segura no meu rosto e beija meus lábios. Meu coração está acelerado de susto, mas o calor de sua boca me acalma um pouco. Ele se solta de mim. — Sei que para humanos é difícil de entender nossa magnitude, mas você será uma vampira em breve e vai entender. Até lá, saiba que nossas defesas serão ativadas para quando eles chegarem, não há o que temer. — Como não?! Você não sabe nada sobre nossos inimigos, só que estão armados e que virão pelo ártico. — É tudo que eu preciso saber para neutralizá-los. — Devon se levanta, de costas para mim, fechando a calça e o cinto. Arfo aborrecida. Ainda estou abalada por toda a situação. Imaginei um genocídio contra os Guerreiros do Gelo e um genocídio contra vampiros. Não compreendo essa confiança e tenho medo de que os vampiros sejam menos poderosos do que acreditam ser. Posso confiar que os vampiros são tão poderosos assim? — Estou preocupada, Devon, eu... — Deixe que eu me preocupo com a guerra e você se preocupa com… sei lá, suas preocupações. — Ele fecha a camisa. — Desculpe? — Pisco algumas vezes, incapacitada pela surpresa. — Posso saber quais preocupações você acha que eu devia me preocupar? — Esse vestido em baixo do sofá. — Com um sorriso presunçoso, ele se afasta de mim, em direção ao espelho, seguindo a rotina: lavar as mãos e arrumar os cabelos. Abro a boca abismada. Ele não disse realmente isso, disso?! Quem ele pensa que é me tratando assim? Subestimando minha inteligência? — E Celeste Zegrath.

— Celeste não os Russos? Você está brincando comigo? — Nem um pouco. — Devon abre a porta. — Agora com sua licença, senhorita, tenho que convocar uma reunião do Conselho em caráter urgencial. Fico um tempo sentada no sofá, respirando forte e com a mente em branco enquanto ele se curva e me deixa sozinha. Não consigo pensar em nada concreto, mas se Devon está certo de sua vitória, sem ser um delírio fúnebre e petulante, então subestimei os poderes dos vampiros em relação à humanidade. Espero que ele esteja certo.

● ● ● Há tantas nuvens no céu que está escuro e quase sem sombra. Ajeito a caixa negra e enorme nos braços, tentando carregar o vestido para a ala em que vive Elisabeth. Ou será que eu deveria ir até a alfaiataria? Boa pergunta. Maldita hora que resolvi prometer um vestido e só estou forçando minhas pernas cansadas a se moverem pelo único motivo de: não posso decepcionar Zane e Lady Lucretia. Dirijo-me para a ala mais simples da Colônia. São pequenas casas germinadas, de apenas um andar, todas com uma porta e janela, lado a lado, como se fosse um hotel de beira de estrada. Há três andares. É um grande quadrado oco. No centro, crianças brincam de amarelinha, bola, de pular corda. Há uma espécie de pátio, com árvores rodeadas por pedras e ferros dobrados fazendo uma cerca, alguns bancos de cimento e neve no chão. O inverno está se aproximando, posso sentir o clima esfriando e ficando cada vez mais úmido, como se fosse sempre chover. Logo teremos uma grande nevasca e Zegrath se mudará para a Colônia, retornando do Exílio. Depois do inverno, serão os Russos. Parece que os tempos de paz estão longe. Se que Devon disse para eu não temer os russos, mas espero que não seja um sinal de insensatez. Nunca ouvi dizer de uma falha do General, mas teve aquele ataque à Torre Bawarrod que permanece sem explicação… — Ai! — Uma criança ruivinha se bate contra mim e quase derrubo a caixa. — Desculpa, moça! — Ela me mostra um sorriso faltando um dente e logo sua mão vem de longe, puxá-la pelo braço e brigar com ela. Solto um sorriso de simpatia e continuo o meu caminho. Como trouxe Elisabeth aqui outro dia, sei onde é o apartamento dela: fica no segundo andar e a vista é para a muralha que separa regimento do exército, mais especificamente a torre de controle e a ala burocrática. Sigo em direção às escadas, o local é pouco iluminado e tem cheiro de mijo. As paredes são rabiscadas por carvão. Da última vez que vim, me apoiei em uma delas e me arrependi, minha mão ficou toda negra! Sorte que Elisabeth me deixou lavá-la na pia da cozinha. Os apartamentos aqui são bem pequenos, tem uma grande sala, a cozinha e o banheiro. Os colonos dividem com caixotes para fazerem paredes falsas. Roy e Elisabeth moram com os pais que não são pais de Elisabeth: um senhor alfaiate e sua mulher costureira, eles não possuem filhos atualmente, quer dizer, além de Elisabeth. Assim que chego no andar há um senhor sentado em frente a porta de seu apartamento

em uma cadeira dessas de praia, segurando um livro nas mãos. Ele sorri para mim, procuro não ser antipática, mas sempre que um homem velho sorri para mim, lembro da minha mãe me dizendo: “Não fale com estranhos!” quando eu ainda era adolescente rebelde antes da guerra. Sinto falta daquela época, mas não posso dizer que essa vida não tem me contentado, quer dizer, às vezes eu até me considero feliz. Paro diante de uma porta vermelha, o número pregado de metal no centro me deixa conferir que é a porta certa. Dou uma batidinha com a mão fechada e a porta abre, destrancada. Ué! O interior está escuro, tento olhar pela fresta, mas não parece haver ninguém. Será que esqueceram de trancar? O vizinho do outro lado do corredor troca olhares comigo. — Não tem ninguém? — Pergunto, apontando a porta. Ele dá de ombros. Reviro os olhos ponderando e toco a maçaneta redonda, forçando a porta para abrir. A frestinha se move alguns centímetros, mas emperra. Balanço a maçaneta e a porta, forçando. — Elisabeth? Roy? O homem se levanta e vem na minha direção. — Algum problema, mocinha? — É um senhor barrigudo e magro, de cabelos grisalhos e muitas rugas pelo rosto. Nas mãos, ele trás o livro. — Está emperrada, eu vim entregar um vestido. — Dou de ombros. — Não parece ter ninguém, mas estava aberta. — Deixe-me ver. — Ele pede. Dou licença, andando para o lado e deixando ele se aproximar da porta. O homem tenta empurrar, como eu fiz, esperando que ela se abra sozinha e nos dê uma visão do interior do apartamento, mas percebe o mesmo que eu: emperrada. — Está emperrada. — Repito, um pouquinho impaciente, confesso. O homem me dá uma olhada de canto e empurra com mais força, tendo que basicamente empurrar com o peso do corpo. Ele quase tropeça, mas logo se curva para trás, fugindo: — Meu Deus do céu! — Grita exasperado, com uma expressão de pavor. Sigo o olhar dele, mirando no apartamento, ao chão. Derrubo a caixa do vestido das mãos e preciso me segurar no batente da porta ao perder as forças no joelho. Há sangue pelo chão, as pernas cheios de arroxeados de Elisabeth era o que estava emperrando a porta: o corpo de Elisabeth está no chão. Nua, de costas, com sangue pelas pernas e a barriga de lado, deitada. Morta. Grito.

CAPÍTULO 43

Sofrimentos Não são comuns terremotos no ártico, mas todos nós sentimos um abalo sísmico. As paredes tremeram e mamãe disse que Johin acordou assustado, chorando. A geleira despencou uma parte e o oceano ficou ainda mais gelado. Zane caiu no chão de joelhos, gritando e chorando ao saber da morte de Elisabeth, Devon tentou abraçá-lo, mas o castelo de Bawarrod se partiu ao meio com a notícia. Literalmente. “Você disse que ela ficaria a salvo!” Zane soluçava, enquanto Devon o abraçava, dizendo “Shhh”, com a mão na cabeça de Zane. Ele se debatia, perdendo as forças aos pouco, fora de si. Eu não aguentei tanto sofrimento. Lady Lucretia me abraçou, buscando conforto, tentando achar em mim alguma força que ela também não tinha, seu rosto sempre tão bonito e firme, estava destruído e de natiz vermelho. A poeira caiu por cima de nós e grudou no meu cabelo. O terremoto passou quando Zane desmaiou. Aparentemente seu coração de humano não aguentou a magnitude da liberação energética de seus poderes vampíricos. Ao que me parece, ter sido humano tem uma desvantagem. O caos foi instalado: Dorian sentiu-se traído por ter sido informado que Lisa ainda estava viva e que seu irmão havia escondido ela da família. Devon respondeu com um frio “Ao menos você não está sofrendo agora” que mascarava toda a dor que ele mesmo estava sentindo enquanto ainda segurava Zane desmaiado no braço. Izobel explodiu um tapa na cara dele, com os olhos em lágrimas, Caedyn segurou a mão da mãe, separando-os. Acredito que ela estava sofrendo duas vezes. Kaiser Bawarrod assistiu a tudo distante da dor de todos. Esperava que ao menos um sorriso sádico surgisse em seu rosto, mas não aconteceu. O Imperador mostrou ter um pouco de sentimento dizendo que Devon devia levar Zane, que ele precisava da família ao seu lado. À Elisabeth não foi dado um enterro pela Casa Riezdra, só um enterro humano pela manhã. Estive presente para contemplar com tristeza que seu vestido branco foi usado dentro do caixão. Roy estava acabado. Lyek estava ao lado dele, mas fui embora antes que ele tivesse chance de falar comigo e me confrontasse sobre qualquer coisa, especialmente se tivesse algo a me falar dos russos, eu não queria mais saber. Voltei aos aposentos Riezdra para relatar o que vi e trazer notícias sobre a criança na barriga de Elisabeth, mas o bebê estava morto também, enterrado ao lado da mãe. Uma tragédia dessas que ninguém gostaria de presenciar em sua própria família. Enquanto eu abraçava Zane, Izobel e Caedyn ao mesmo tempo, Dorian pediu desculpas à Devon e o abraçou forte. Escutei uma respiração quase convulsiva. Deve ser o máximo que homens do exército chegam próximo ao choro.

Senti culpa, por todas as vezes que tive rancor com Elisabeth, mas sem dúvidas fui a que menos sofri com sua morte e arrisco dizer, por pior que isso vá parecer, que sofri mais com dor dos que sofreram com a morte dela. Eu queria poder confortá-los. Queria poder confortá-lo. ● ● ● Para vampiros, Maeror[10] é uma coisa séria e que deve ser respeitada. Dizem que se você não fizer corretamente, sensações de desespero e raiva podem ser experimentadas por mais tempo, gerando até traumas. É conhecido como Miséria o sentimento de total infelicidade que pode levar um vampiro ao suicídio, um período em que após abnegar a vida e ficar entregue à total inércia, o vampiro simplesmente morre. Tirando as tradições de vestimentas, o Maeror é muito parecido com o luto dos humanos: um período de reclusão, tristeza e choro, que representa respeito pela morte da pessoa querida. Segundo me explicaram, o uso de vestimentas brancas simboliza a paz de espírito que a família deseja que a pessoa que morreu encontre. Quando é feita uma cerimônia apropriada, o corpo é lavado, envolvido em panos brancos e totalmente cremado em uma embarcação que deve seguir para o norte. Vampiros morrem muito velhos, com mais de 500 anos, antes disso apenas fatalidades. Eles inclusive respeitam uma taxa de natalidade decidida pelo Conselho, que inclui os RecémTransformados. Acreditam que muitos vampiros ou poucos vampiros, pode levar à destruição do mundo. Um vampiro pode fazer luto por muitos meses ou anos, ele decide. Mas quando faz, deve se resguardar: ficar em casa com a família, trabalhar apenas o necessário e evitar participar em atividades celebrativas. Normalmente se respeita um período grande de Maeror, mas com seis dias recluso e longe do castelo, Kaiser Bawarrod enviou uma notificação á família Riezdra, solicitando a presença do futuro Imperador. Ele alegou que apesar do Maeror ter de ser respeitado, o Luto Nupcial com Lady Lucretia não poderia ser negligenciado, mas acho que a princesa não se importaria que Zane fosse acalentado por sua família por mais tempo. — Acharemos todos os responsáveis! — Dorian esbraveja com o sangue entorpecido de tanto vermute. Ele está com camisa e calça branca, a cor que predomina nas vestes de todos nós. — Chega desse assunto, por favor. — Zane coloca a mão nos olhos, exausto, apoiando o cotovelo no encosto do sofá. Izobel aperta seu ombro para confortá-lo, fazendo massagem. De todos nós, Zane é o mais arrasado. Ele se sentou no sofá todos esses dias, apenas tentando achar um pouco de controle emocional, sem muito sucesso. Teve dias que ele passou a noite com o olhar distante e nem se mexia quando alguém falava com ele ou o abraçava. Fiquei desesperada! Devon era o único capaz de fazê-lo piscar e com sorte, conseguia que ele comesse alguma coisa. Pouco a pouco, Zane recuperou as forças. Ainda sinto saudades de seu sorriso, mas acredito que a vontade que ele tinha de sorrir sumiu com a vida de Elisabeth. Dói em mim vê-lo entregue a tanto sofrimento. — Você não quer achar o culpado? — Dorian parece incrédulo, ele vira-se na direção do

irmão. — Devon? Devon apenas comprime os lábios e balança a cabeça em negação, seu braço ao redor dos meus ombros, sentado do meu lado no sofá circular. Faço um carinho em seus cabelos castanhos, enquanto ele dá um gole no vermute para afogar as mágoas. — Todos nós queremos achar os culpados pelo assassinato, meu querido. — Izobel interfere. — Mas que bem faria à nós agora? — A barbárie foi feita por humanos. — Caedyn range os dentes, aborrecida, sentada e com os braços cruzados. — Fiquei sabendo que em dois dias empalarão em praça pública um homem que foi condenado. Estupro e duplo assassinato. Zane segura um suspiro, fechando os olhos e abaixando a cabeça. Dorian exala ar e se levanta de onde está sentado, indo até Zane, colocando a mão em sua cabeça. — Não foi sua culpa, garoto. — É até como se advinhasse o pensamento de Zane nesse instante e só posso acreditar que ele conhece Zane muito bem. Dorian se abaixa, ajoelhando na frente de Zane, as duas mãos em seus ombros. — Você fez o melhor que podia para protegê-la. — O homem confessou, sabe? Vi as fotos da cena do crime, foi terrível, Lisa sofreu bastante. E parece que uma testemunha identificou uma garota envolvida. Dá para imaginar? — Caedyn arfa. — Uma garota! Deve ter sido por ciúme, talvez Elisabeth estivesse grávida do namorado dela. — Por favor, Caedyn, não quero mais falar disso. — Zane suplica, abraçando o tio. Meu coração fica em pedaços. — Shhh. — Dorian abraça Zane confortando-o, ainda com o copo de vermute na mão. — Precisamos que você seja forte agora, garoto. Acha que pode fazer isso? — Vou chorar uns dias, mas ficatei bem. — Zane faz que "sim", apesar de não estar chorando, é palpável a tristeza em seus olhos e se afasta de Dorian. Acho que o que mais o machuca é saber que Elisabeth sofreu muito antes de morrer, indefesa e grávida, sem ter como fugir. Não consigo nem imaginar a dor que ela não passou antes de morrer. — A perícia disse que ela foi estuprada depois de morta, aquele doente maldito! — Caedyn continua. — E o bebê ainda ficou vivo na barriga por horas, até que não resistiu. — Caedyn! — Dorian passa a bronca. — Eu só estou apresentando os fatos para ajudar a descobrir quem foi! — Ela ergue os braços — Você não está ajudando em nada. — Devon rosna, irritado. — Você não ajudou em nada também! — Caedyn berra. Devon fica em pé e atira o copo na direção de Caedyn, não para acertá-la, mas para passar um aviso. Meu coração acelera e seguro no pulso de Devon, com a sensação de que ele arrancaria o coração de Caedyn nesse instante. — Ela queria viver uma vida de humana! — Ele grita, soltando o braço de mim, discordando do meu pedido para ter calma. — E essa foi a vida de humana que ela teve, Caedyn! Mostre um pouco de respeito às memórias de sua prima! — Pai! — Zane interfere. — Vou fazer um chá de camomila, estamos todos precisando.— Izobel fica em pé, o vestido branco quase transparente mostra tudo do seu corpo, ela seca os olhos com as mãos,

chateada. Devon se senta do meu lado e passa as duas mãos no cabelo, empurrando-os para trás. Não toco nele de novo até que ele me dê abertura, ou vai sobrar para mim. — Zane, meu bem, você quer um copo de sangue? — Izobel pergunta. — Não fale de sangue agora. — Ele faz cara de nojo, cobrindo a boca com a mão como se fosse vomitar. Acho que partilho de sua opinião. Na minha mente, os flashes da imagem que tenho na minha mente de Elisabeth ensanguentada perturbam. Ela estava perto da porta, caída, como quem tinha se arrastado tentando fugir. Imaginar que foi bem ali onde estava que foi molestada depois de morta, me deixa enjoada. Que tipo de monstro ataca uma mulher grávida? É um crime mais que hediondo! — Você quer ajuda, Zo? — Pergunto, já fazendo menção de levantar. talvez ocupar a mente seja uma boa agora. — Não, querida, não precisa, volto em um instante. — Izobel deixa a sala e eu permaneço sentada. — Temos que fazer alguma coisa. — Dorian fica em pé, colocando a mão na cabeça de Zane. — Talvez devêssemos nos envolver na investigação. — Não, Dorian. — Devon o repreende. Ele repousa a mão no meu joelho. — Comprometeria a nossa capacidade de julgamento. — Você tem razão, meu irmão, estou nervoso com essa espera! — Dorian dá uma voltinha pela sala, caminhando de um lado para o outro. Ficamos todos em silêncio escutando seus passos. Izobel retorna, com uma bandeja cheia de biscoitos, pequenos sanduíches e — Por que você fez comida se sabe que normalmente não comemos? — Dorian resmunga enchendo seu copo com mais vermute — Oh, Dorian nem tudo no mundo se trata de você. — Ela empina o nariz, colocando as mãos na cintura. — Jaylee e Zane devem querer comer alguma coisa. — Não, não quero. — Zane arfa. — Você precisa comer antes de voltar ao castelo, querido! — Izobel insiste. — Ainda não estou pronto para voltar para aquele hospício. — Zane revira os olhos aborrecido e cobre o rosto com as mãos. Izobel suspira cansada em resposta. Eu já me inclino e pego dois sanduíches, um em cada mão, enfio um na boca por inteiro com fome e pego um terceiro, me recostando normalmente no sofá. Dorian olha para mim, intrigado. — A menina é insaciável! — Dorian ri, divertindo-se e repousa os olhos em Devon. Eu fico de bochechas vermelhas. — Quando Jaylee vai se tornar uma de nós por completo? — Antes de Zegrath chegar. — Devon resfolega. — Teremos que pensar outra estratégia para os rebeldes, talvez Zane pudesse começar um conflito com os nobres que os incitasse à revolução. — Conflitos com os nobres é bem amplo, pai. — Zane coloca os olhos brancos em cima de Devon com um quase-sorriso de provocação aparecendo nos lábios. — Só um conflito não uma guerra, garoto. — Dorian o repreende, erguendo a mão em sua direção pedindo calma, mas com um sorriso de satisfação. Zane ergue as sobrancelhas e

abaixa a cabeça em respeito, ponderando. — Ainda pensando em como vai fazer com Celeste? — Avaliando opções. — Devon diz. Pego mais sanduíches repetindo a operação, pego dois, engulo um e pego um terceiro. — Pelo que Celeste fez a Zane, farei Sidara cair. — É o mínimo, olho por olho. — Dorian concorda. Acredito que Sidara seja a sucessora de Celeste, então. — Isso irá enfurecer Celeste. — Izobel se senta no sofá e pega um sanduíche, colocando quase junto ao nariz de Zane, ele faz que não com a cabeça e ela segura eu seu rosto, forçandoo a dar uma mordida. Com olhar arisco, ele toma o pão da mão de Izobel e morde. — Espero enfurecê-la a ponto de fazê-la revidar. — Devon responde. Ele é muito manipulador, às vezes fico até surpresa com o tipo de controle que ele tem, mesmo que não seja um Bawarrod, que dizem, são os piores manipuladores da mente na Sociedade dos Vampiros. — Seria propício que houvesse um ataque de Zegrath para que Bawarrod transferisse logo a sucessão. — Vejo onde quer chegar, mas Celeste tem muitos seguidores. — Caedyn pode se aproximar de Mark, já foram amigos, ele tem alguns ressentimentos com Sidara. — Dorian se senta, cruzando as pernas. — Jaylee devia se aproximar daquele capacho que Celeste tem, Henri. Se ganhar confiança, poderemos antecipar algumas jogadas daquela bruxa. — Eu? — Pisco várias vezes tentando entender suas palavras. — Aproximar? Quer dizer seduzí-lo? — Se acha que pode fazê-lo. — Devon olha para mim, sério, porém com uma leve erguida na sobrancelha, a mão dele aperta firme meu joelho. — Jaylee pode seduzir o homem que quiser. — Izobel diz rindo. — Eu que o diga. — Zane resfolega, de boca cheia. — O que me diz, menina? — Dorian pergunta, esperançoso em me incluir em seus planos. — Eu não sei, talvez? — Junto os ombros insegura. Quer dizer, talvez eu possa seduzir homens, eu acho que posso e quero ajudar a neutralizar os planos maléficos de Celeste, mas... com Devon me olhando desse jeito tão intenso, talvez ele esteja me dizendo que não me quer envolvida nos assuntos de família. — Ela pode. — Izobel insiste. — Certo. — Devon revira os olhos, respondendo por mim. — Decidido. — Dorian conclui e levanta o copo, brindando no ar. — É isso aí, vaqueira! — Caedyn bate as mãos comemorando. — E quanto aos humanos vindo pelo ártico? — Dorian pergunta. — Interceptei os sinais e atraí alguns para o Refúgio. Quando chegarem nas margens do Oeste serão recepcionados e abrigados. Analisaremos se suas armas são mesmo tão letais como Jaylee pensa que é. — Devon explica. Oh, então, no fundo, ele me ouviu? Surpreendente. — Não podemos usar os soldados para criar problemas à Celeste? — Izobel pergunta. — Soltá-los como cães em cima dela? — Dorian dá risada, nada convencido. — Celeste faria um exército de zumbis para matá-los. — E as armas certamente não foram desenvolvidas para isso. — Devon ergue as duas sobrancelhas. — Vamos contê-los, oferecer aliança e convencer Bawarrod de que as colônias

podem ser liberadas se as tropas realmente puderem contra os alienígenas sozinhos. — Ênfase no “se”. Batem na porta com força, o som interrompe nossa conversa e faz com que todos ergam seus olhos para ela. Dorian arfa e se levanta, apontando para Zane: — Vá se trocar, garoto, devem ser os soldados para te escoltar à Bawarrod. — E se aproxima devagar da porta. — Ah, não. — Zane resmunga, mas se levanta. — Fique aqui. Vou pegar suas vestes nupciais, querido. — Izobel se levanta. — Vista-as por cima do maeror, nos outros dias, use uma faixa branca no braço para simbolizar sua dor. — Não posso ficar mais? Por favor? — Queria que sim, mas precisamos de você lá dentro. — Devon se levanta e vai até Zane, segurando com as duas mãos em seu rosto, beijando sua testa. — Tente conseguir uma cópia da planta dos aposentos de Zegrath. Enviarei Jaylee para visitar você e Lucretia. — Sim, senhor. — Zane concorda. Dorian segura na maçaneta, esperando a conversa terminar. Quando Izobel volta para a sala com as vestes negras de Zane, ele abre a porta: — O que foi? Ele não está pronto ainda, nos dê mais duas horas. — Não viemos para a escolta, senhor. — Um dos homens à frente diz, enquanto outros soldados empurram forçando a entrada, passando por ele e Dorian com pressa, armas empunhadas. Devon segura nos ombros de Zane e Izobel abraça as vestes nupciais como um ursinho de pelúcia. Caedyn fica em pé. — A que se deve essa invasão soldado? — Devon pergunta franzindo o cenho. Os soldados apontam suas armas para mim, dois deles me levantam do sofá, nem entendo o que está havendo, quando o soldado lá da porta anuncia, com um papel na mão: — Se deve à uma prisão. — Algemas de ferro são passadas ao redor dos meus pulsos. Entro em choque. Como assim presa? — Sob a acusasão de cumplicidade na Ocorrência N-4466789. — Esse é o número da ocorrência referente à morte de Elisabeth. — Caedyn anuncia colocando as mãos na boca. Ei, peraí, como assim?

CAPÍTULO 44

Dias de escuridão A luz do sol bate contra meus olhos me despertando. A sensação é de que estou surda. Meu corpo inteiro está dolorido e estou dentro de uma cela construída para prisioneiros confessarem seus crimes. Como sou uma humana e tenho Relação-Sanguínea, minhas mãos estão amarradas atrás do meu corpo, presas na cadeira, com luvas isolantes e criadas para conter meus poderes. Logo que fui trazida me interrogaram, perguntaram se eu estive na casa de Elisabeth e eu tive que contar toda a minha história, que estive lá em duas ocasiões e quais foram essas ocasiões com detalhes que minha mente sequer era capaz de guardar. Caí no erro de dizer que eu não precisava de uma geleia de abacaxi quando a abordei, acharam que era indício de que eu era suspeita de envolvimento no crime. Fiquei o tempo todo algemada na sala de interrogação, com sono, fome, sede, cansaço. Quando eu assistia filmes, achava que depois de fazer um boletim de ocorrência eu estaria livre e poderia ser solta, aguardando em liberdade. Vi aquele senhor que me ajudou a abrir a porta, quando fui visitar Elisabeth, acompanhado de dois guardas, dentro de uma sala de interrogatório enquanto eu estava sendo levada para fora da sala que eu estava. O que ele fazia aqui? Seus olhos percorreram minhas mãos algemadas. Estranhei, mas não dei muita atenção a ele naquele momento. Fui arrastada para outro lugar. Trancaram-me em uma cela sujismunda. Tinha um arado sem colchão que deveria me servir de cama e um balde para ser o pinico. Chorei a noite inteira esperando que me tirassem de lá, mas ninguém veio. ● ● ● Acordei com uma baldada de água fria e os guardas arrancaram minhas roupas. Puseram as mãos em mim e começaram a me bater para que eu confessasse o crime. Claro que não confessei, eu não o cometi! A princípio não doía, meu corpo se regenerava bem depressa e pude continuar em silênco. Chamaram um soldado da Casa Lunysum e as coisas ficaram complicadas, ele era mais musculoso, maior e mais forte. O primeiro soco já me nocauteou, nem quero saber o que vem depois. — Confesse! — O soldado segura nos meus cabelos, seus olhos tem um brilho azulvioleta intenso. Está escuro mas posso vê-lo em tons azulados, um cabelo cheio de dreads, comprido. Acho que já o vi no salão dos nobres. Faço que não com a cabeça e levo outro soco, o gosto de sangue na minha boca. Fecho os olhos e não consigo conter as lágrimas. Por que eu estou aqui? Por que estou sendo acusada

de algo que eu não fiz? Como chegaram a essa conclusão absurda? Outro soco e a cadeira tomba para o lado, fico caída no chão gritando de dor. Meu ombro! Sinto tontura, minha consciência vacila. De repente não estou aqui, estou com Zane, ele me abraça e beija a minha testa enquanto vemos o nascer do sol no alto de um prédio. Levantam minha cadeira, a dor no meu ombro volta, mas amenizando devagar. Aos poucos o ombro se recoloca no lugar e não sinto mais nada. Eu sei que regenerar é bom, significa que eles não vão me matar simplesmente me espancando, mas dói demais. Não sei se aguento. Por que ninguém veio me buscar? As lágrimas escorrem forte pelos meus olhos e se juntam no queixo. — Vai falar agora? — O soldado segura firme na minha cabeça. — Essa daí é durona, para resistir tanto a você, Eugene! — O outro soldado fala, eu já não o enxergo, há muitas lágrimas e mal consigo abrir os olhos. — Vamos ver até quando. — O soldado que estava me batendo estala os dedos e eu levo mais um soco. E outro. E outro. O quarto me joga com toda a força para trás. Encaro o teto da cela. Por que Devon não veio me buscar? Apago. ● ● ● — Jay? Você está bem? — Um carinho na minha cabeça me desperta. Estou consente que estou presa, fico com medo e tento me soltar, mas meus braços estão presos por uma grande pesada algema de ferro nas grades da cela. No escuro, um lampião brilha na parede. — O que esses malditos fizeram com você? Meus olhos demoram para se acostumar, estou cansada, sinto dores por todo o corpo e muito frio. A pessoa na minha frente segura na minha mão, um toque quente e familiar, firme e áspero. Faço um esforço físico gigante para minha garganta funcionar. — Lyek? — Estou sem forças. Minha voz quase não sai, pelo menos, não escuto. — Vou tirar você daqui, aguente firme, tá bem? — Ele faz menção de se afastar, mas seguro em sua mão, ele me olha, ainda abaixado na minha frente. Tento forçar a língua e as cordas vocais, apenas murmuro. Lyek se aproxima de mim. — O que foi? O que você está dizendo? — De… von… — Nenhum deles veio por você, não é? — Lyek deduz, sua voz ecoa nas paredes da cela e são como facas afiadas agora. Sei que há mais celas no corredor e pelo som da sua voz retumbando nas paredes, a maioria está vazia. — Eles te abandonaram aqui. Lágrimas surgem nos meus olhos, começo a tremer e a chorar. Eles me abandonaram aqui. Todos eles me abandonaram! Devon, Zane, Byrn, Lucretia, até mesmo Dorian, Izobel e Caedyn. Ninguém veio por mim. — Não chore. — Lyek pede, sua mão segura forte as minhas. — Não vou te abandonar. Eu choro de culpa. Eu o traí, mesmo que os vampiros não tenham esmagado os Guerreiros do Gelo, eu os traí. É irônico que seja Lyek quem vem por mim, ao meu resgate, me oferecer ajuda e consolo.

— Ela precisa mesmo ser tratada assim? — Deixam que os Relacionados entrem em estado de inanição, assim perdem seus poderes. — O guarda explica, com a voz baixinha. — Não tem nada que possamos fazer. — E roupas? Ela precisa ficar assim exposta? — Lyek se aborrece, sua mão no meu rosto. Até fecho os olhos sentindo seu toque, enquanto seus dedos ásperos limpam minhas lágrimas. — Não tem nada. — Jay, me escute. Eles querem matar você, marcaram uma tortura, você confessando ou não, não importa. Faça o que fizer, mas não confesse. — Eu não a… eu não matei. — Choro, encolhendo o meu corpo. Minha voz quase inaldível. — Não importa, eles pensam que foi você. Há provas de que foi você. Checaram a mente daquele vizinho de Elisabeth e ele viu você com outros dois homens. — Oh, Deus. — Choro mais. — Não é verdade! Não é verdade! — Não se entregue, eles querem que você confesse, não confesse ou vão matar toda sua família, sua mãe, Johin… — Suas palavras me deixam soluçando. — Escute, Jay. Nós temos armas, vamos tirar você daqui, no dia, na praça, atiraremos em todos os vampiros. Apenas aguente firme até lá. — Lyek. Você precisa ir antes que alguém te veja. — Um soldado fala. Não é o mesmo que me bateu, acho até que é alguém infiltrado. Lyek fica em pé e solta minha mão. Tento pedir que ele fique, que não me abandone, mas não consigo. Ele enfia alguma coisa dentro da minha boca, tem gosto de bolo e geleia. Acho que foi minha mãe que fez esse doce, está tão gostoso. Por recebermos muitas geleias em N-D44 ela começou a fazer esses rocamboles, Johin adora e ela conseguia que ele comesse alguma coisa naquela fase que as crianças não querem nada. As lágrimas escorrem, não consigo parar de chorar e faminta, engulo o bolo. — Aguente firme, tá bem? Todos os guerreiros estão do nosso lado, vamos salvar você. — Ele se afasta. — Lyek… — Tento chamá-lo, tento segurar sua mão, mas seus dedos escapam de mim. Lyek vai embora, seu amigo guarda apaga o lampião e trancam a grade no final do corredor. Tudo o que posso ver de onde estou é isso: uma parede lisa, o chão, a grade que me prende e o corredor, até que perco de vista. Eu me encolho com frio e tristeza. Lyek tem razão, ninguém veio por mim. ● ● ● Os dias que se seguem são dias de escuridão. Não vejo luz e nem tenho uma noção de quantas horas ou dias estou entregue à total falta de humanidade. A sensação é que estou presa há uma eternidade e que vou morrer. Não tenho mais esperanças. Lyek não voltou. Minha mente não desliga, fico acordada e cansada ao mesmo tempo, sofrendo uma

espécie de exaustão corporal. Presa à grade, acho que meu corpo grudou aqui, sentada no chão frio. Nem mesmo tremendo eu estou, embora ainda esteja apavorada de medo do que pode acontecer, acho que acostumei-me a ideia de estar trancada e de que serei torturada e morta. Se eu fosse uma vampira, não me matariam, talvez me prendessem nas masmorras por muitos anos, mas como sou humana, serei julgada e possivelmente seja morta em público, na praça dos castigos, para que sirva de exemplo. Estou sendo encrimidada por um crime que não cometi. Seria um golpe da má sorte? Uma conspiração? De quem? Não fiz inimigos. Como há provas de que fui eu? Minha mente tenta encontrar soluções, mas são delírios quase insanos: Lady Lucretia poderia me querer presa por ciúmes, Zane disse que eu não podia confiar nela. Penso que talvez seja Caedyn, sempre teve armagura da família. Talvez seja alguma rinha política entre as Nove Casas, talvez queiram mesmo desestruturar Riezdra, mas será que eu sou assim tão importante? Não devo ser, ninguém veio por mim. E não pode ter sido Lady Lucretia, certo? Uma mulher capaz de matar o amor de sua vida para não ter de vê-lo sofrer não tem o coração ruim! Embora eu acho que seu espírito heróico faria com que ela tentasse matar Kaiser e não Zane. Não, ela não me trancaria e nem me incriminaria. Certo? Deve ter sido Caedyn. Não, também acho que não foi. Caedyn pode ser estranha e rancorosa, mas ela é da família. Eu era da família. Ela não me trairia. Eu tenho certeza disso. A família é o mais importante e deve ser valorizada. Além do mais, às vezes ela demonstra empolgação por partilhar comigo o fato de sermos duas mulheres jovens na Casa Riezdra. Ser uma mulher entre aqueles machistas é muito difícil mesmo, ter boas ideias e não ser escutada a menos que Zane seja aquele que diz o que nós dissemos, aí sim, nossas ideias são boas. Ela partilha isso comigo, se fosse atacar alguém por ódio e rancor, seria Zane, mas ela o ama e sofreu com ele a perda de Elisabeth. Zane nunca atacaria sua irmã, nem Devon. Dorian nem sabia que ela estava viva e nem Izobel, que chorou duas vezes a mesma morte. Nenhum deles mataria Elisabeth para incriminar uma Escrava de Sangue. Eu sou só uma Escrava de Sangue, por isso nenhum deles veio por mim. Devon não veio, ele pensa assim. Sou apenas uma Escrava de Sangue. Encolho meu corpo, não consigo nem me abraçar agora! Nem mesmo meu próprio conforto não consigo encontrar. Por que me encriminaram? Não analisaram direito as provas? Eu não matei Elisabeth, por que eles acham que eu matei? Foi aquele velho. O vizinho que estava aqui outro dia. Ele era a testemunha que viu uma garota na casa de Elisabeth! Ele deve ter me encriminado, mas por quê? Eu só cheguei lá bem depois, quando ela já estava morta. Será que alguém mandou ele dizer isso? Lyek disse que avaliaram a mente dele. Talvez tenha sido Lady Lucretia, mexendo com as memórias. Ela pode fazer e outras coisas, não sei bem quais… Seria ela uma traidora? E se ela me enganou com seus poderes? Fazendo-me acreditar em seu bom coração quando na verdade tramava contra mim? Estou julgando errado meus inimigos? Estou sendo muito

complacente? De repente, foi mesmo Lady Lucretia. É, pode ter sido Lady Lucretia. Choro. Estou com tanta fome que vomito algo azedo, não me mexo e o vômito escorre pelo meu corpo nu. Mesmo sabendo que não me soltarão enquanto eu não confesse ou morra e que, se eu confessar mesmo que seja inocente, vão me matar e não me deixarão ir, não é isso que ocupa meus pensamentos agora. Eu penso nele. O quanto ele deve estar me odiando agora, achando que matei Elisabeth. É por isso que ele não está aqui, não veio me visitar e não fez nada para me tirar daqui. Isso dói. Ser abandonada. Doi mais ainda a opinião que ele faz de mim agora. Se ele me considera capaz de ter matado Elisabeth de forma tão cruel como os soldados acreditam, se ele pensa que eu sou um monstro… Então… Então eu não quero mais viver. Aos poucos, deixo a mente se desligar, entregando-me. ● ● ● Aguente firme. O sussurro ecoa na minha mente e abro os olhos. Estava sonhando? Uma jateada de água gelada me coloca de volta ao mundo real, mas eu não quero fazer parte dele agora. Um soldado me segura pelo cabelo me colocando de pé. Encosto-me na grade, com as mãos presas. — Tem que ficar bem limpinha, a putinha vai receber uma visita importante hoje. — Um soldado segura um balde. O soldado de dread, aquele que me encheu de porrada, coloca luvas de borracha. Ele pega uma bucha dessas de lavar panela de dentro do balde e se aproxima de mim, esfregando todo o meu corpo, com a parte mais áspera. A água escorre de mim suja. Os soldados abrem minhas pernas, tento lutar contra eles, mas é em vão. Vulnerável, o soldado de dread se aproxima de mim, esfregando minha vagina e meu ânus, dói. Ele se afasta de mim e os soldados me largam. Caio no chão molhado, chorando. — Tá limpa. — Ele bate as mãos e tira as luvas, jogando-as dentro do balde. — Se prepara, putinha, hoje vou ouvir você gritar. — Diz o terceiro soldado ele é mais gorducho que os outros e aperta o meio de suas pernas mostrando um volume. Acho que é isso o que acontece com mulheres na prisão. Eles me deixam chorando. Tremendo.

CAPÍTULO 45

A tragédia Acho que não existe nada que possa ser pior que essa sensação de que não valho nada. Perdi toda a minha dignidade. Não importa o que façam, curve a cabeça, mas nunca a alma. Não acho que posso manter essa promessa agora. Escuto o barulho de tambores lá fora. Acho que é o dia da minha tortura, deve estar tendo um festival, com diversos espectadores em praça pública. Não sinto medo, só pena de mim mesma por ter esperado alguma coisa, por ter confiado nas pessoas erradas e estragado a confiança daqueles que confiaram em mim. Eu merecia morrer. O chão está seco em baixo de mim. Escuto o barulho da porta de ferro do corredor abrindo. Dois guardas retornam, o gordo de bigode e o alto, de dread. — Cadê Pierre? — O gorducho pergunta, abrindo a tranca da minha cela. — Ele disse que não tinha interesse. — O de dread responde, se posicionando em frente a cela. — Moleque maldito, assim vai morrer virgem. — O gorducho cospe no chão entrando na cela. Eu me encolho, sabendo que agora é a hora em que eles me estupram. O porcalhão puxa meus cabelos para cima, sinto dor e com a força de seu braço, ele me coloca em pé. Suas mãos grandes percorrem meu corpo, seios, barriga, coxa, bunda. É de um jeito invasivo, sexual, uma espécie de abuso. É só o começo. — Parece boa. — Ele me gira e me empurra com força. Bato a cara contra os bastões cilíndricos da grade e suas mãos fazem uma vistoria em mim. — Ouvi que ela dava para o General antes de ser presa. — É. — Não imaginei um homem como Riezdra afastado do cargo por se envolver com uma Escrava de Sangue! — Uma fatalidade vergonhosa, eu deveria dizer. — Encaro o soldado na minha frente, aquele cara de dread. Ele tem uma expressão séria, rangendo os dentes, mas o brilho de seus olhos, tão cândidos e brancos, me encanta. — Dá para entender, é uma gostosa. Faz tempo que não como uma menininha. — O gorducho se aproxima de mim e dá uns tapinhas no meu bumbum, para testar a carne. Ele mantém distância me analisando. Penso em eletrocutá-los, mas estou totalmente sem poderes, depois de dias trancada com fome e sem água. Um alarme soa dentro de mim, conforme percebo que não terei escapatória. — Hmm, que delicia. — O gorducho lambe os dedos como se fizesse sexo oral em mim, só que nos seus dedos. Eu sinto raiva e nojo, desvio os olhos quando noto que ele está abrindo

as calças. — Prende ela mais pra cima, Eugene! Quero perfurar essa carne nova. — Quem mandou ser tão anão? — O soldado venta, rindo. — Rá. Rá. Tá engraçadinho hoje, alguém comeu teu cu gostoso? Olho para o soldado na minha frente. Queria poder matá-lo também, Esses babacas que ficam assistindo ao invés de fazerem alguma coisa, sem coragem para participar ou fazer qualquer coisa para impedir. Por acaso ele sente tesão em me ver ser invadida por um porco? — Cretino! — Cuspo nele. — Uhh ela te chamou de cretino! — O gorducho faz, debochando. — Não, eu não. — O soldado pisca o olho e sorri, daquele jeito que Zane faz quando está aprontando alguma coisa. Espera, Zane? Abro bem os olhos, notando a única diferença entre ele e o soldado que me bateu: a cor dos olhos. Ele ergue as sobrancelha e olha para o bolso dianteiro da farda que está vestindo, inclinando para abrir minhas algemas enquanto o homem gordo se alisa, deixando o pênis ereto, pensando que vai se enfiar em mim. É rápido. As algemas destrancam eu puxo um cilindro de seu bolso, uma ampola de sangue e coloco na boca, mordendo e engolindo. O sangue cheio de poder entra nas minhas veias, causando uma espécie de prazer que eletrifica todo o meu corpo. Não deixo o homem se aproximar de mim prendendo seu pescoço com meus pés, enforcado-o. Ele se enfurece e segura nos meus tornozelos, queimando-os com as mãos. Giro jogando-o no chão enquanto meu corpo regenera e seguro no pênis ereto do gorducho. Ele fica tremendo com espasmos do choque e cai para trás, todo duro, ejaculando. — Alguém levou para o lado pessoal. — Escuto Zane atrás de mim. — É o que chamamos de orgasmo chocante, porco! — Chuto o homem no chão. Ele fica travado pelo choque e ficará assim por bom tempo. Puxo suas botas e calça, vestindo. Pego a jaqueta, para cobrir o corpo, deixando-o de cueca arriada e camiseta. A algema com que estive presa todo esse tempo, uso para imobilizálo. — E agora? — Viro para Zane. A ilusão já dissipou. Posso vê-lo como ele é, os cabelos com cachinhos de anjo barroco, os olhos brancos e usando armadura, ele está um pouco mais sério que o normal, ainda assim quero abraçá-lo de tantas saudades, mas alguma coisa me repele, não sei, talvez sua postura endurecida nesse instante. — Temos dezoito minutos. — Zane olha no relógio da armadura. — Preciso saber por que razão você matou Elisabeth. Suas palavras são um tiro a queima-roupa em mim, achei que por estar aqui, me ajudando, ele não duvidasse da minha integridade e lealdade. — Quê? — As lágrimas surgem nos meus olhos, tento conter com a manga da jaqueta. — Não acredito que você está me perguntando se eu a matei! — Não estou perguntando. — Zane comprime os lábios e desvia os olhos de mim, como se não pudesse nem me olhar nesse instante. — Eu quero saber por quê. Se havia alguém ameaçando você, sua família, qualquer coisa que explique isso. — Zane… Eu… — Encaro a situação com um pouco de perplexidade. Realmente: ele me perguntou a razão, como quem tem certeza que fui eu. Isso é mais chocante do que tudo!

Por que ele me salvaria, se acha que eu matei Elisabeth. — Por que você acha que fui eu?! — Uma testemunha viu você e mais dois homens entrando no apartamento de Elisabeth pela manhã. Você deve saber quem é, o vizinho. — Ele atira mais uma vez em mim. — Não é possível. Ele está mentindo! — Ele está dizendo a verdade, fizeram um scan da mente dele. — Zane coloca as duas mãos em cima da cabeça, indicando o cérebro, mas sem tocar os cabelos. — Tiraram as imagens e mostraram para todos nós. Foi horrível descobrir que você estava por trás de tudo. Ficamos todos arrasados. — Não fui eu, Zane, você precisa acreditar em mim! — Quem foi então, Jay? Quem? — Ele esbraveja, se afastando de mim e coloca as duas mãos na cabeça, de costas, respirando forte. — A prova aponta diretamente para você. — Eu nunca faria, Zane, você sabe! — Grito, virando para ele. — Você mesmo disse que Lady Lucretia pode manipular memórias! E se ela manipulou a mente daquele velho para me encriminar? — Não acredito que ouvi isso. — Reparo que Lady Lucretia está na porta, armadura com uma renda nos olhos e outra na mão, com os cabelos soltos. Ela para de andar na hora, meio no susto. Ops, não esperava que ela escutasse. — Você acha que eu estou envolvida? — Lady Lucretia fica com a boca meio aberta. — O que mais explicaria o homem ter me visto lá quando eu não estive? — Pergunto. Eu realmente não sei o que poderia explicar, só consigo pensar nos poderes de Lady Lucretia. — Você perdeu a sanidade? — Zane olha para mim indignado, as sobrancelhas curvadas. É sólido o qua to Zane é incapaz de achar que Lady Lucretia faria alguma coisa contra Elisabeth. Duvido até de mim. — Tudo bem, eu acredito em você. — Lady Lucretia cruza os braços. Suas sobrancelhas finas e desenhadas se erguem por cima da venda. — Você acredita? — Olho para ela incrédula. — Para você chegar ao ponto de me acusar de manipular mentes é porque tem mesmo muita certeza que não foi você. — Lady Lucretia diz. — Pode abrir a minha cabeça e olhar dentro se quiser! — Arfo, com os dois braços junto ao corpo. — Não é má ideia. — Lady Lucretia segura no braço de Zane, em um gesto carinhoso. — Se Jaylee concordar, posso projetar a mente dela para você, se houver qualquer indício de que ela realmente foi até Elisabeth, veremos. — Por mim tudo bem. — Digo convicta e cruzo os braços. Zane faz que não, acho que ele está negando a possibilidade de ver Elisabeth através dos meus olhos. Lady Lucretia resfolega e tira as luvas, entregando para ele, batendo no corpo dele, que segura a luva no instinto. — Serei rápida. — Ela segura no braço dele e coloca a outra mão na minha testa. É rápido realmente, minha vida passa diante dos meus olhos como um filme em rewind, sem som. É tão depressa que pula algumas partes, como se ela buscasse coisas bem específicas, abrindo portas na minha mente, passando por Elisabeth morta e pelo velho, me vendo sair de casa com o vestido, acordando, na festa de Byrn. — Já chega! — Zane se solta dela e coloca a mão na testa, tentando se manter de pé.

Lady Lucretia ainda está segurando minha testa, indo mais para trás na minha mente, tão depressa que chega um ponto que não mais consigo enxergar o que ela vê. De repente para numa imagem, na festa de boas-vindas de Dorian, eu e ela conversando sobre Elisabeth. “Não exagere nos docinhos, vaqueira”. Lady Lucretia me solta, arrancando a venda em um gesto que demonstra toda sua perplexidade, com lágrimas nos olhos. — Oh, não! — Ela cambaleia para trás e perde o equilíbrio. — O que foi? — Zane a segura, antes que ela desmaie. Lady Lucretia fica com a cabeça encostada em Zane, respirando forte. — O que foi? — Ela falou comigo… — As lágrimas escorrem e Lady Lucretia olha para ele, sem ar. — Mas não era eu! O quê? Meu coração pula uma batida, conforme contemplo o que aconteceu. Era outra pessoa, disfarçando-se de Lady Lucretia. — Quem era então? — Pergunto, com o coração batendo forte, apertado. — Byrn. — As lágrimas rolam mais dos olhos de Lucretia. Acho que o terror de contemplar a verdade é tão grande que ela nem se importa de que ele a olhe diretamente nos olhos, desrespeitando o luto nupcial. Byrn? Penso por um instante, faz todo o sentido do mundo, ela pode fazer ilusões. Mas por que minha melhor amiga me encriminaria de matar Elisabeth? — Temos que cancelar a operação. — Zane resfolega e ajuda Lady Lucretia a ficar em pé. — E Byrn tem que ser acusada. — Que operação? — Pergunto, sem entender. — Estamos encenando sua morte na praça. — Zane explica. — Agora? — Nesse mesmo instante. Meu tio está sustentando uma ilusão. O plano é que um holograma de você seja torturado e enforcado, enquanto tiramos você daqui em segurança. Queríamos ter vindo antes, mas alguém no Conselho dificultou as coisas. Devon foi afastado do cargo de General antes mesmo que pudesse fazer uma requisição para sua soltura. — Deve ser coisa de Celeste, ela estava esperando o momento certo e essa foi a oportunidade para descredibilizà-lo. — Zane olha no relógio. — Temos que ir. Drarynina está trazendo um veículo para te levar ao Refúgio, sua família está lá com Román. Ela chega em dez minutos. Tenho muitas coisas para pensar. Com Devon afastado deve ter sido impossível virem me visitar sem chamar atenção e o plano de fingir a minha morte enquanto me levam em bora em segurança, para perto da minha família, é genial, diga-se de passagem. Fico contente por saber que mesmo distantes, mesmo que achassem que eu fosse uma assassina, vieram por mim. Abraço Zane e Lucretia ao mesmo tempo, apertando-os com força e engolindo o cheiro de sândalo, rosas e ervas que eles exalam juntos e dou um beijo na boca de cada um. — Ok, o que foi isso? — Lady Lucretia pisca estranhando minha proximidade e meus olhos se enchem de lágrimas, mas de alegria dessa vez. — Eu amo vocês! Sabem disso, não é? — Ah, não fique toda molenga agora, soldado, temos uma missão para cumprir. — Zane debocha.

De repente, eu me lembro: se diante de todos eu for torturada, Lyek e os Guerreiros de Gelo irão atacar. Meu corpo inteiro treme. — Essa não! — Seguro no braço de Lady Lucretia e de Zane. — Lyek vai atacar. Ele pensa que estou lá na praça, que vou morrer. Eles tem armas contra os vampiros, os guerreiros todos vão se unir! Temos que avisar todos antes que seja um massacre. — Você está falando dos rebeldes? — Lady Lucretia abre bem os olhos, assustada. — Esses mesmo! — Por que tudo tem que ser tão complicado? — Zane reclama jogando a cabeça para trás. — Temos que chegar até a praça. — Eu conheço um atalho. — Lady Lucretia toma a frente, guiando-nos pelos corredores do prédio da prisão. Entramos em uma sala cheia de pequenos arquivos de metal, Lady Lucretia abre a cortina e revela uma janela pequena, abrindo-a. Olho para baixo, constatando que dá para alcançar uma estrutura de metal que liga os prédios, mas fico com vertigem, ainda enfraquecida pelo tempo que passei sem nutrientes ou sangue. Zane vai primeiro, pisando na estrutura de metal, ela é um pouco bamba, não parece muito segura. Ele estende a mão para mim e eu passo pela janela. Meus pés sentem toda a falta de firmeza do local, bem alto. Ele me solta e ajuda Lady Lucretia, mas ela dá um tapa na mão nele como indício de que pode se levantar sozinha. E ela pode, com uma agilidade bem incrível. Temos que nos equilibrar para atravessar, como verdadeiros malabaristas. Alcançamos o outro prédio e podemos ver a praça, com as tendas iluminadas. Os tambores estão rufando e no centro, meu holograma está ajoelhado, com um saco branco na cabeça. Passam uma corda pelo pescoço. Corremos para mais perto, pulando pelos prédios, seguindo Lady Lucretia que sabe o melhor caminho. É meio difícil imaginar que ela esteja pula do prédios, eu sempre a vi como uma garota cheia de frescura e um pouco histérica. Ficamos meio de frente para a tenda em que está Kaiser Bawarrod, sentado em uma cadeira suntuosa, de vestes pomposas. Ele está no centro, ladeado por quatro cadeiras ocupadas por representando as Nove Casas exceto por uma, vazia, a que será ocupada por Celeste um dia. Avisto Byrn atrás do Imperador, chorando copiosamente e limpando os olhos com um lenço de pano. Ela está sofrendo minha morte ou fingindo? Não sei o que pensar. Enquanto Lucretia tenta chamar atenção acenando com os braços, procuro Lyek na multidão. — Eles não estão me vendo! Ei, Zane onde você vai? — Fiquem aí! Não se mexam! Olho para Lady Lucretia, ela está na beirada do prédio e Zane está descendo pela escadinha de metal. O que ele vai fazer? Ando até Lady Lucretia, olhando para baixo, Zane está atravessando a praça, correndo até o centro onde estão os tambores, o carrasco e o meu holograma, no palanque de madeira no qual eu serei enformaca. Ei, colocar isso numa sentença é meio esquisito! Eu-se-rei-en-for-ca-da. Supostamente. — Parem! Parem! — Zane grita, estendendo os braços. — Oh não, o que ele está fazendo? — Lady Lucretia parece preocupada.

— Algo digno de Zane. — Resfolego. Os nobres remexem-se em sua cadeira, os tamborem param e o carrasco também. Um zumzumzum começa na plateia, todos os que estão assistindo. Passeio meus olhos por eles, um a um, os aldeiões. Reparo que alguns deles estão com uma roupa negra, misturando-se na escuridão e de capuz. — Zane? — Devon faz menão de levantar, mas Kaiser estende a mão para ele pedindo calma. — Fique aqui, eu cuido de Byrn. — Lady Lucretia junta os cabelos com as mãos, prendendo com um elástico um rabo de cavalo. Olho para onde Byrn está, os cabelos negros espivitados balançando de um lado para o outro com o balançar de sua cabeça, checando os dois lados.Lady Lucretia aperta um botão na armadura, energizando a sola e o joelho, para pular. — Ela não é a pessoa certa a se culpar. — Zane aponta para trás, onde meu holograma está. — O que você está dizendo? Que nosso julgamento está errado? — O nobre da Casa Rynbelech fica em pé apontando para Zane. — Não… Quer dizer, talvez vocês não saibam de todas as variáveis do caso. — Zane tenta explicar. Do meu lado, Lady Lucretia dá um salto, alcançando o prédio do outro lado, descendo, em direção à Byrn — Matem a garota! — Um cara da plateia berra. Logo há um coro. — Isso é um ultraje! — A mulher da Casa Taseldgard, aponta o dedo gordo para Zane. Uma comoção se inicia, a multidão começa a se levantar indignada, ventando palavras. Bawarrod fica em pé, finalmente, com vestes brancas e douradas. Os nobres sossegam, sentando-se novamente. Eu vejo Lady Lucretia se aproximar de Byrn, por trás, esperando o momento certo. — Você pode provar? — Bawarrod pergunta, com o braço para trás, como se segurasse os nobres. — Essa e a culpada! — Lady Lucretia empurra Byrn no chão, algemada, no meio do pátio. Parece que elas brigaram bastante, pois os cabelos de Lady Lucretia estão bem bagunçados e ela está ofegante, Byrn está com parte do vestido rasgado, chorando. Lady Lucretia cospe no chão. — Você me desonra! — Agora! — Escuto um grito. Parte da multidão se disperça, correndo aleatoriamente cada um para um lado, criando uma enorme confusão, os soldados ficam perdidos, sem saber o que fazer. É tão rápido que meus olhos não conseguem acompanhar o movimento de todos. Escuto o barulho de tiros, eles ressoam agudos como se alguém apertasse muitas teclas de piano. Todos os vampiros do palanque são alvejados, mas quando os hologramas somem, apenas Zane, o único vampiro que estava realmente lá, cai no chão de madeira, depois de levar diversos tiros. A multidão para, congelada no tempo. Eu vejo Lyek, perto de onde meu holograma estava, como se segurasse algo no ar. Talvez seja o que ele pensou ser meu braço. Os nobres dos conselhos podem se mexer, como todos os vampiros e inclusive eu, acho que Kaiser não

sabendo que eu estava aqui, não conseguiu congelar minha mente. Desço pela escadinha de metal, corro para o palanque. Devon também e até Dorian, que pula pelas cadeiras da arquibancada. Eu fico com as mãos na boca, apenas observando Zane engasgar com a boca cheia de sangue e o corpo inteiro baleado. Devon o ergue um pouco do chão segurando-o em seus braços. — Zane? — Dorian coloca a mão na cabeça dele, ajoelhando-se. Meus joelhos falseiam. — Doi. — Com dificuldade, é tudo o que Zane consegue dizer. Ele tosse sangue. — Você vai ficar bem. — Devon o segura firme em seus braços, embalando como um bebê. A mão em volta da sua cabeça. Zane perde a consciência, desfalecendo. Caio de joelhos no chão. É uma tragédia descobrir que a arma de seus inimigos é realmente letal.

CAPÍTULO 46

Nova Ordem Ensudercida pelo som das batidas desesperadas do meu coração, por alguns segundos achei que tudo estava acabado: Zane ser alvejado e desfalecer nos braços de Devon era o ato final, as cortinas se fechariam e Celeste tinha vencido, ainda que nem participasse do teatro. Perplexa, contemplo um futuro frio e um mundo mais sombrio sem a presença quente e brilhante de Zane. É como afundar em areia movediça. O que será de mim sem ele? Quando eu me senti perdida, ele era meu abrigo. Se eu estava triste, ele fazia com que eu sorrisse. Não posso imaginar viver sem ele. As lágrimas nascem nos meus olhos. Zane abre os olhos e busca o ar, como se estivesse se afogando. Dorian levanta, colocando as duas mãos na cabeça e vira as costas. Meu coração dá uma batida dupla e exasperada. Respiro. É como presenciar um milagre. — Apenas respire. — Devon o mantém junto ao corpo, segurando a cabeça de Zane. — Respire. Zane recupera o fôlego devagar, como se acordasse de um pesadelo. Devon segura em seus ombros. — Como está se sentindo? — Sinto-me enjoado. — Zane responde, colocando a mão na boca. Devon fica em pé, auxiliando Zane a se levantar. Dorian gira e se aproxima, passando o braço de Zane nos ombros, para conceder apoio. Pisco diversas vezes para ter certeza que não estou delirando, que não é uma ilusão. Zane está vivo, com o corpo cheio de tiros, machucado, sangrando, mancando, mas vivo. Como? Achei que as armas dos Guerreiros do Gelo fossem mesmo letais. Pareceram letais. Sou surpreendida pelos lábios quentes de Devon. Ele segura meu rosto com força, com as duas mãos, e me beija intensamente. Meus joelhos amolecem e o tempo para de contar, eternizando o momento. Seguro em sua cintura. Como senti falta dessa sensação, desse cheiro, de seu calor. Ele se afasta de mim e eu suspira. Acho que isso quer dizer que ele sentiu a minha falta também, certo? — Você não devia estar aqui. — Devon mantém seus olhos dourados nos meus. — E você não devia ter me abandonado sozinha naquela cela! — Seguro nas mãos dele, tirando do meu rosto. Estou um pouco irritada com isso! Devon abaixa as mãos, colocando-as na cintura. — Sugeri que você tinha sido incriminada, mas fui acusado de atrapalhar as investigações por conflitos pessoais, só complicou tudo. Fui temporariamente afastado do… — Espere! — Estico a mão para a frente, cortando-o. O que ele disse?! — Você sugeriu que eu havia sido incriminada? Quer dizer que não acreditava que tinha sido eu? — Talvez por meio segundo de choque eu tenha caído em dúvida. — Ele responde firme. Meus olhos se enchem de lágrimas e Devon segura no meu rosto, passando os polegares

em minha bochecha, limpando. — Por mais rancores que você tivesse contra mim, jamais executaria tal barbárie. Eu não poderia aceitar. Abaixo a cabeça e limpo as lágrimas. Estou feliz que ele tenha dito isso, que ele acreditou na minha inocência no caso. Não é apenas uma questão de dizer que confia em mim, mas de confiar na minha integridade. E essa confiança significa muito para mim, especialmente por ser ele o vampiro de quem eu costumava ter rancores. — Zane! — O Imperador se aproxima do palanque, seus olhos de tom vermelho intenso são pura preocupação, ele estica a mão, ajudando Zane a descer as escadas laterais. — O que você pensa que estava fazendo? — Eu não pensei em nada. — Zane responde, segurando na mão de Kaiser e passando de Dorian para ele. — Ai. — Coloca a mão na barriga, onde tinha um tiro, mas agora, é só um hematoma bem grande e roxo, como quem levou uma porrada forte. — Tão impulsivo! É o que há de pior em você. — O Imperador o repreende, segurando em sua cintura, provendo equilibrio. — Você costumava gostar da minha impulsividade. — Com um sorriso arteiro, ele provoca o Imperador. — Não seja indecente agora, garoto. — Dorian esfrega a mão no cabelo de Zane, bagunçando, e para com as mãos na cintura, observando Kaiser levar Zane para perto dos membros do conselho. Dois nobres do conselho se curvam, em respeito, Evolus Mordecai e Órleans Rynbelech. Observo a praça. Os humanos estão se retirando como se não estivéssemos aqui, os que estavam armados são compelidos a entregarem suas armas, jogando-as de livre e espontânea vontade em uma pilha. Quer dizer, não de livre e espontânea vontade, acho que se deve a uma pequena demonstração dos poderes de Bawarrod. — Você tinha razão, aquelas armas não funcionam contra vampiros. — Olho para Devon, comprimindo os lábios. — Não, você tinha razão e não eu. — Devon passa o braço pelos meus ombros. — As armas são eficientes. Eu deveria ter escutado você e sinto muito por não tê-lo feito. — Mas Zane não morreu… — Não compreendo. Por outro lado, estou feliz por ele admitir uma vez na vida que eu tinha razão e que ele estava errado. Acho que é muito para alguém orgulhoso como ele. — Um golpe de sorte que nenhum tiro atingiu o coração. — Ele explica enquanto caminhamos abraçados. — Há poucas formas de vampiros serem mortos: Miseria, decaptação, arrancar o coração e queimar o corpo até virar cinzas. Se você lembrar de disperçar as cinzas o suficiente, talvez. Caso contrário renasceremos das cinzas. Ah, e velhice. A maioria morre mesmo é de velhice. Surpreendente. Não é a toa que vampiros se sentem como imortais, quer dizer, não é qualquer um que conseguiria arrancar o coração ou decaptar um vampiro! Caminhamos pela praça, indo na direção de Izobel e Caedyn, que já estão com Dorian, nos esperando. Soldados passam na nossa frente. — Você me roubou tudo! Tudo! — Uma pessoa ensandecida, que um dia eu conheci pelo nome de Byrn, grita na minha direção enquanto é levada pelos soldados do exército para o carro da prisão.

— Cale a boca! — Lady Lucretia fecha a porta do furgão com uma batida forte e bate as mãos, limpando a sujeira ética. Ahn? O que eu roubei dela? Byrn sempre teve tudo: a família unida mesmo com a guerra, os melhores vestidos e não me lembro de vê-la passar necessidade. Não tenho ideia do que ela está falando e a menos que eu esteja delirando, acho que não roubei nada! — E aí, vaqueira? Precisando de um banho? — Caedyn olha para mim com um sorriso orgulhoso. — Preciso mesmo responder? — Seguro uma risada e ela me abraça forte, acho que estava preocupada. — Você está mais magra, vou fazer um ensopado especial para você. — Izobel coloca a mão na minha cabeça. Como é bom ser recebida por todos! Fecho os olhos, aceitando os abraços e cumprimentos. ● ● ● Dias depois fiquei sabendo que Byrn guardava rancores de mim por causa de um garoto: Lyek. Parece que os dois tiveram um relacionamento anterior à minha chegada em Torre Bawarrod. Eu nunca nem desconfiei que houvesse algo entre esses dois! Fiquei boquiaberta. Em depoimento, ela confessou que se sentiu lesada quando eu fiquei com a vaga de Escrava de Sangue no lugar dela, sendo que ela quem tinha me oferecido em primeiro momento! Foi a primeira vez que um ataque foi direcionado a mim. Unicamente à mim. Estou chocada. Não falei mais com Lyek, mas ele sempre terá um espaço no meu coração por ter sido aquele que voltou para me consolar e para lutar por mim quando eu mais precisei. Ele foi meu primeiro amor e acho que teríamos sido perfeitos um para o outro se eu tivesse me casado com ele ao invés de ter me tornado uma Escrava de Sangue. Quando eu me tornar uma vampira, sei que ele não me olhará da mesma forma, me verá como outro pessoa, tal como ele vê Zane. Os vampiros acreditam que quando os humanos estiverem prontos para tomarem a frente da nação na guerra contra os alienígenas, os Guerreiros do Gelo terão um papel importante e poderão lutar para que N-D44 se torne seu verdadeiro lar. Até lá, serão monitorados e auxiliados por formas ocultas. Sabemos que recentemente eles desviaram um carregamento de farinha de trigo e açúcar, para doar àqueles que recebem menos cotas. Claro que os vampiros poderiam impedir o roubo do caminhão se quisessem. Se quisessem. — Tempo de chegada ao destino: cinco minutos. — Anuncia o GPS do Aeroflex. Meu corpo inteiro treme de ansiedade e junto as mãos na frente da boca, como quem reza. Ai, nem acredito que vou ver mamãe, Johin e tia Lilane! Ainda bem que tudo deu certo! Poderei passar o dia e a tarde inteira com eles no Refúgio, mas quando for embora, essa será a última vez que se lembrarão de mim. Não quero que nada aconteça a eles. Pensar nisso me deixa com os olhos marejados. — Você tem certeza que quer fazer isso? — Sentado do meu lado, de armadura e com os cabelos claros para cima, está Devon. Ele joga os olhos dourados com seriedade para cima

de mim, erguendo as sobrancelhas. — É o melhor a se fazer, certo? Melhor deixá-los ir do que vê-los morrer. — Parafraseando Zane, lanço um sorriso para ele. — Se você tem certeza. — Devon concorda, apertando a mão no meu joelho com carinho. Eu gosto desse toque. Descobri que Devon e Kaiser entraram em um acordo enquanto tive presa. Decidiram-se por trégua. Foi necessário expor o Refúgio para o Imperador em troca de que ele fizesse a ilusão na praça, a que encenaria a minha morte, enquanto Zane e Lucretia me tirariam da cela e Drarynina me levaria embora… então… É, acho que sou muito importante, afinal. Claro que parte da trégua incluiu jantares semanais hora na Casa Riezdra, hora na Casa Bawarrod, para que Zane pudesse se reunir com a família sempre que possível. Eu mataria Devon se ele não incluísse essa questão, é claro, especialmente que Zane é muito importante para mim. E vocês tem que ver a cara que ele faz toda vez que Zane e Kaiser se beijam, é impagável! — O tempo de chegada ao destino é de: um minuto. O Conselho resolveu que Devon deveria voltar a ser o General, parece que o nobre da casa Lunysum que assumiu o cargo era muito limitado, além do mais, eles não conseguiriam ignorar por muito tempo que a requisição que Devon fez, a que pedia minha libertação e sugeria que eu estava sendo incriminada, era assertiva e que ele era o homem correto para o cargo. Dorian também voltou para o exército, como Major. O Imperador decidiu-se por não destruir o Refúgio e sim, de utilizar a ideia para um plano de aposentadoria aos escravos e doadores que fossem afastados do serviço, inclusive teve um festival de comemoração e Zane fez seu primeiro discurso como príncipe e sucessor à coroa. Com seu sorriso encantador e o timbre sensual, Zane anunciou a todos que a partir daquele instante, nenhum vampiro tinha o direito de tirar a vida de um humano bebendo a Última Gota de Sangue e que caso o fizesse, seria punido de acordo com as leis ao mínimo de dez anos nas Masmorras. Ele foi aplaudido de pé, aos urros pelos humanos. Zane sempre encantou todos e não seria difícil para ele conquistar os humanos na primeira vez que falasse diretamente a eles, quanto mais quando apresentasse medidas do Grande Império que demonstrassem respeito à espécie que os mantém vivos. Alguns nobres detestaram, claro, chamaram de “ultrajante” e se referiram à Zane como “sangue-sujo”, embora saibamos que não existe ninguém de sangue mais puro do que ele. Houveram aqueles que acharam a lei digna para “preservar a natureza humana”, claro que estou falando dos vampiros de Mordecai, os druidas. O fato é que a Era da Nova Ordem, como os humanos passaram a chamar, se instalou. Infelizmente quando amanhecer, será o primeiro dia de Inverno e à noite, Celeste Zegrath e todos os vampiros da Casa Zegrath entrarão em N-D44. Meus problemas estão apenas começando. — Dez, nove, oito… — O GPS avisa. Respiro fundo. Olho para Devon mais uma vez e me inclino, esticando o corpo para alcançar seu pescoço, roçando o nariz. — Você ainda me amará depois que eu me tornar uma vampira? — Pergunto.

Ele olha para mim, abaixando a cabeça, segura na minha mão, seus dedos entrelaçados nos meus. — Cinco, quatro, três... — Sempre. — Um pequeno sorriso se faz em seus lábios e eu sei, dentro do meu coração, que não preciso de mais nada. — Dois... Nossas bocas se unem.

Fim

CONTINUA EM PRINCESA DAS SOMBRAS LIVRO II – SÉRIE VENENOS IMORTAIS

VERONA WYNTER é Mariana Mello Sgambato

Para mais informações sobre a Série Venenos Imortais: www.marianalivros.wordpress.com www.facebook.com/groups/venenosimortais/

Agradecimentos Olá querido leitor! Obrigada por ler o meu livro! Espero que tenha gostado muito da leitura! (Agradeço muitoooo por ter segurado esse livro na mão e me ajudado a concretizar uma versão impressa!) Quero lembrar que esse livro foi publicado gratuito no Wattpad e Widbook e assim permanecerá (por favor, avise as amigas e amigos para todos lerem e comentarem, essa é sem dúvida a parte mais importante para mim)! Agradeço a minha família por me apoiar, entender meus momentos da "caixa do nada" (como chamo quando eu entro no meu quarto, fecho a porta - com a criança correndo e gritando pelo local, claro - e escrevo). Sei que não é fácil conviver com uma escritora em casa e agradeço que compreendam o quanto as palavras significam para mim! Um beijo em especial para minha mãe, Suzana, que sempre que pode me ajuda a distrair a criança enquanto escrevo. Um beijo para Erick, a minha criança mais fofa e boazinha que não apenas entende que a mamãe está ocupada como divide comigo o amor pelos livros! Mamãe te ama muito! Um super beijo para meu namorado e pai do meu filhote, que respeita os momentos em que dou aquela sumida nas redes sociais “porque estou escrevendo”. Você é incrível. Ao resto da família - oh, é impossível listar todos! - que sempre se gaba por sua filha/sobrinha/neta/prima que escreve livros! Obrigada mesmo por torcerem por cada passo que eu dou nessa carreira, significa muito para mim! Em especial, e não poderia deixar de ser, a todos aqueles que leram (e continuam lendo) a história no Wattpad e Widbook, quem comenta, quem recomenda e quem deixa estrelinha. Sem vocês, certamente, nada disso seria possível! Obrigada por acompanharem a confusa Jaylee, o insuportavelmente arrogante e sexy Devon e também o fofo e maluco Zane. Esse é um trabalho que faço por amor a criatividade e a escrita, às vezes até mais como um exercício do que como profissional e é muito significativo ver que mesmo quando estamos brincando juntos, podemos realizar uma obra que nos toca, nos faz pensar e causa tantas emoções. Obrigada mesmo por ler e se emocionar. Adoro os comentários gigantes e super cheios de teorias! Por favor, continuem acompanhando a série! Há mais livros disponíveis em meu perfil digital, para baixar, para comprar (se acharem que eu mereço) e comentem muito, pois essa interação é o que eu mais gosto e prezo. Vocês não sabem como é importante para um autor nesse país perceber que suas obras foram apreciadas, pois infelizmente é muito difícil publicar (sem ter dinheiro) ou patrocínio (o que eu não tenho). Agradeço a amizade de todas as leitoras e leitores que entraram no grupo do Facebook e do WhatsApp, quem tuitou sobre a história, quem é #TeamDevon, #TeamLyek, #TeamZane. Vocês são incriveis e demais, adoro todos vocês! Não cabe em meu coração tanta gratidão! Um super beijo!

Outros livros da série disponíveis:

Princesa das Sombras (Volume 2) Herança (Spin Off da Lucretia) Frenesi Noturno (Spin Off Devon)

[1] Para saber mais sobre as Casas, por favor, leia o anexo no grupo do Facebook. www.facebook.com/groups/venenosimortais/ [2] Relação-Sanguinea é normalmente utilizada para quando um humano possui intenções de se transformar ‘vampiro’ por uma das 9 Casas. O Recém-Admitido passa por algumas provações ao longo do processo, mas uma vez que a transformação é completada, recebe alguns dos poderes da casa (escolhidos por seu mestre), nessa última fase ele recebe o nome de: Nascido. Entretanto, nunca será um membro tão forte ou tão valorizado como membros de Sangue Real, mas há como fortalecer membros com a substituição do sangue. Apenas o Príncipe da Casa tem permissão para transformar um humano em vampiro ou fortalecê-lo. [3] Refere-se ao membro de uma Casa que foi expulso da mesma pelo Príncipe. A penalidade é retaliação (um tipo de Vendetta) e morte súbita. [4] Os estágios da morte que um Zegrath pode infligir incluem: Pallor Mortis (empalidecimento da pele) Algor Mortis (esfriar o sangue gradativamente até a temperatura ambiente), Rigor Mortis (enrijecimento muscular com duração de 24h), Livor Mortis (acúmulo do sangue com a gravidade e roxidão da pele), Decomposição Cadavérica e Esqueletização. [5] Exílio: O clã não é exatamente expulso, apenas sofre um período de exílio (afastamento social) com punição, mediante a concepção de alguns crimes, como o de traição à coroa. Marca-da-Maldição: Uma punição mágica concedida. [6] Pronome de tratamento para Arquiduques. [7] ADE: Arma de Direcionamento Energético. [8] As cores reais dos cavalos são: Bay, Chestnut, Black e Palomino, na ordem. [9] Sigilo: Refere-se ao fato de que os Vampiros permaneceram anônimos ao longo da história da humanidade, confundidos com deuses (egípcios, nórdicos, gregos, etc). [10] Período de “Sofrimento”, em que se lamenta morte de alguém.
escrava de sangue - venenos imortais - livro 1 - verona wynter

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